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ANTÔNIO CARLOS TRINDADE DA SILVA

A PERSPECTIVA METAFÍSICA DE JOSEPH


MARECHAL: DO REALISMO
À MÍSTICA

UFRJ/IFCS
2007
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A PERSPECTIVA METAFÍSICA DE JOSEPH


MARECHAL: DO REALISMO À MÍSTICA

ANTONIO CARLOS TRINDADE DA SILVA

Tese apresentada à Pós-Graduação


do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do Título de Doutor em
Filosofia.

Orientador:

Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães

RIO DE JANEIRO

2007
3

A PERSPECTIVA METAFÍSICA DE JOSEPH


MARECHAL: DO REALISMO À MÍSTICA

ANTONIO CARLOS TRINDADE DA SILVA

Tese apresentada à Pós-Graduação do Departamento de Filosofia da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do Título de Doutor em

Filosofia.

Aprovada por:

_________________________________________
Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães
(Orientador – UFRJ)

_________________________________________
Prof. Dr. Luigi Bordin
(Membro – UFRJ)

__________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
(Membro – UFJF)

__________________________________________
Profª. Drª. Regina Coeli Barbosa Pereira
(Membro - UFJF)

__________________________________________
Profª. Drª. Rosilene de Oliveira Pereira
(Membro - UFJF)
4

S586j Silva, Antonio Carlos Trindade da


A perspectiva metafísica de Joseph Marechal: do realismo à
mística / Antonio Carlos Trindade da Silva. – Rio de Janeiro :
UFRJ/IFCS, 2007.
199 f.

Tese (Doutorado em Filosofia)

1. Metafísica 2. Ética 3. Razão 4. Neotomismo I. Título.

II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de


Filosofia e Ciências Sociais, Departamento de Filosofia.
5

Dedico aos meus pais e irmãos


que me encorajaram nessa
tarefa.
À Profª. Soraya pelo carinho,
amizade e ajuda nos desafios
deste árduo trabalho.
Aos meus amigos Arthur e Ivani
pelo incentivo.
6

AGRADECIMENTOS

A Deus, fonte da Sabedoria, pela luz e coragem nessa trajetória.

Ao Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães, ilustre pensador, pela

disposição, orientação e toda atenção na realização desse trabalho.

Ao Prof. José Carlos Rodrigues, pela amizade, atenção e incentivo

nessa caminhada.

À Profª. Ivani , pela amizade e cuidadosa revisão deste trabalho.

Aos Professores do curso e membros da Banca, pelo digno trabalho no

horizonte do pensar.
7

RESUMO

Joseph Marechal desenvolve seu sistema filosófico a partir da superação do


criticismo kantiano mediante uma doutrina amplamente coerente – o repensamento
do realismo metafísico da crítica tomista do conhecimento. Marechal, nesta
perspectiva demonstra que a necessidade prática e subjetiva dos postulados da
razão prática consiste, de modo igual, numa necessidade objetiva e teórica. Assim,
um objeto produzido no ato da afirmação, é através deste mesmo ato um dado
sensível, uma síntese objetiva - conteúdo do julgamento é referido à ordem absoluta
do ser). Quando se afirma que algo existe, experimenta-se e conclui-se algo como
exigível, enquanto valor, portanto trata-se de uma axiologia. Estendendo o a priori e
o transcendental como termos que expressam a referência do ser e do conhecer nas
condições existenciais, Marechal não fecha seu pensamento no horizonte restrito de
um humanismo relativo. Ele abre então este horizonte para um Absoluto que se
impõe implicitamente em toda parte. Ele persegue sua investigação além das
potências, além da natureza, além do sujeito e do objeto, até chegar na condição
primordial de toda possibilidade, de toda existência, de todo dado. O trajeto filosófico
marechaliano aponta um encontro entre a filosofia, a teologia e a mística e sob este
aspecto se situa a originalidade de seu pensamento

Palavras-chave: Tomismo. Absoluto. Dinamismo. Mística. Metafísico


8

ABSTRACT

Joseph Marechal develops his philosophical system from the kantian criticism over
come through a widely coherent doctrine – the rethinking of the metaphysical realism
of the thomist criticism of knowledge. Marechal, in this perspective shows that the
practical and subjective need of the practical reasoning postulates consists, on an
even manner, in a theorical and objective necessity. This, an object produced on the
act of affirmation, is through this same act, a sensible fact, an objective synthesis –
the content of the judgement is reported to the absolute order of being. When one
affirms that something do exist, one experiences and concludes something as
requirable, while value, therefore it is regarded as an axiology. Widening the a priori
and the transcendental as terms that express the reference of the being and the
knowing on the existential conditions, Marechal doesn’t close his thought on the
restrict horizon of a relative humanism. He opens then his horizon for an Absolute
which imposes itself everywhere. He pursues his investigation beyond the potencies,
beyond nature, beyond the subject and the object, until reaching the primordial
condition of all possibility, of all existence, of all fact. The philosophical “Marechalian”
path points to a linking among philosophy, theology and the mystic and under this
aspect lies the originality of his thought.

Key-words: Thomism. Absolute. Dynamism. Mystic. Metaphysical.


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ABREVIATURAS

KRV Kritik der Vernunft

KPV Kritik der praktischen Vernunft

KU Kritik der Urteilskraft


10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................12

CAPÍTULO I – O REALISMO METAFÍSICO DOS ANTIGOS....................... 20

1.1. A oscilação entre os termos da antinomia nos pré –


socráticos.........................................................................................................23
1.1.1.Heráclito: predomínio da multiplicidade...................................24
1.1.2. Os eleatas:predomínio da unidade.........................................26
1.2. O advento de uma crítica metafísica do conhecimento.................27
1.2.1. Sócrates: regresso ao equilíbrio do uno e o múltiplo.............28
1.3. A solução platônica: o realismo do entendimento..........................30
1.4. A solução aristotélica: moderação do realismo do entendimento..36

CAPÍTULO II – O REALISMO MODERADO DE SÃO TOMÁS......................48

2.1. Necessidade de uma crítica do objeto de conhecimento..............48


2.2. A questão transcendental da afirmação
ontológica.......................52
2.3. Relação recíproca dos atos primeiros da inteligência e da
vontade.................................................................................................68
2.4. O Princípio inicial do dinamismo intelectual..................................72

CAPÍTULO III – A QUESTÃO TRANSCEDENTAL KANTIANA....................78

3.1. A bipolaridade do objeto................................................................83


3.2. Subsunção formal e o ato sintético ...............................................89
3.3.Significado transcendental do movimento......................................94
3.4. Os postulados morais e a transcendência do objeto.....................97
11

CAPÍTULO IV – O ABSOLUTO COMO HORIZONTE DO PENSAMENTO..107

4.1. O absoluto do ser, a ordem ontológica........................................110


4.2. Impossibilidade do fenominismo absoluto...................................112
4.2.1. A atitude contemporânea: negação da norma absoluta......113
4.3. O fenomenismo absoluto ............................................................115
4.4. O princípio de identidade.............................................................117
4.5. Justificação racional do absoluto.................................................127
4.6. O método.....................................................................................129
4.6.1. O conteúdo da consciência e o princípio de identidade.......130
4.6.2. A noção de verdade e a ordem do julgamento.....................137
4.6.3.
Universalização.....................................................................143
4.6.4. A atualidade do intelecto - agente........................................146
4.6.5. A inteligibilidade da imagem sensível...................................147
4.6.6. Os caracteres próprios dos
conceitos...................................149
4.7. Julgamento e objetivação ...........................................................151
4.7.1. Conseqüências do julgamento afirmativo.............................154
4.7.2. A finalidade do conhecimento...............................................156
4.7.3. O julgamento e o absoluto do ser.........................................158
4.8. Um dever - ser sustenta o entendimento.....................................162
4.8.1. A ordem da finalidade ..........................................................169
4.8.2. Vontade e inteligência
..........................................................171
4.9. Objetivação e princípio de identidade..........................................174
4.10. O absoluto e os primeiros princípios..........................................177
4.11. O fim último do acontecer intelectual e o destino sobrenatural.180

CONCLUSÃO ...............................................................................................185

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................191

BIBLIOGRAFIA.............................................................................................193
12
12

INTRODUÇÃO

Joseph Marechal é um filósofo e teólogo pouco conhecido nos

meios acadêmicos, constituindo-se, por isso mesmo, e lamentavelmente, uma

ausência entre os estudiosos da filosofia contemporânea. Apenas os que se

interessam pela corrente neo-escolástica, e particularmente do neotomismo, ou os

que pertencem à tradição filosófica lovaniense, têm algum conhecimento da obra

de Marechal e alguma idéia de sua importância para a investigação filosófica da

primeira metade do século XX. É verdade que sua influência permanece como

fonte primeira, embora nem sempre explicitada, nas chamadas correntes do

Tomismo Transcendental, sobretudo na Alemanha e na França.

Marechal viveu e desenvolveu toda sua obra nos meios

acadêmicos da Alemanha e França e ainda no Escolasticado da Companhia de

Jesus de Louvain. A originalidade de seu pensamento não poderia deixar de

despertar reservas e, também muitas polêmicas. Parte de sua produção intelectual

experimentou dificuldades em obter licença para a impressão, e sua difusão foi

bastante restrita e limitada apenas a alguns estudiosos. A segunda causa residiu

justamente na originalidade do pensamento marechaliano em face da rotina

repetitiva que dominava boa parte da produção neo-escolástica.

Marechal não foi um escritor fecundo e difuso. Seus textos são

redigidos em estilo sóbrio, conciso e obedecem a uma lógica rigorosa. Desta

sorte, o acesso a seu pensamento não deve enfrentar longos e fastidiosos


13

volumes. Toda sua obra está recolhida nos cinco cadernos sob o título Le point de

départ de la Metaphysique (1923-1927), dos quais apenas quatro foram

publicados durante sua vida (I, II, III, V), sendo o quarto editado postumamente

(1947).

É permitido afirmar que a primeira intenção de Marechal

representa uma tentativa de dialogar com Kant e superar as refutações

antikantianas convencionais dos manuais, perfeitamente estéreis na medida em

que permaneciam num campo conceptual extrínseco à estrutura e à lógica própria

do criador da filosofia transcendental. O projeto kantiano de elaborar uma nova

metafísica depurada do dogmatismo torna-se atraente a Marechal, na medida em

que vê nela a possibilidade de sua restauração e assim, de construir o edifício da

filosofia.

Recuperar a legitimidade da metafísica e torná-la possível a partir

do momento de sua depuração pela crítica, eis o grande desafio marechaliano. A

solução do problema do conhecimento teórico, que visa o inteligível puro, está

para Marechal, herdeiro assim de toda a tradição que tem origem em Parmênides,

ligada à demonstração da validez da primeira afirmação de onde parte a

Metafísica: a afirmação do ser. Pode-se dizer também que o projeto de Marechal

não se resume em tornar Kant palatável aos meios acadêmicos da tradição neo-

escolástica. Ele foi muito além disso ao estabelecer também a possibilidade de um

intercâmbio entre a filosofia, a teologia e a mística não no sentido de uma

subordinação de uma à outra, mas como meio de um discurso interdisciplinar.

Nesse sentido, o interesse marechaliano pela metafísica nasceu

provavelmente de seus estudos sobre a mística e, sobretudo sobre a mística


14

especulativa. A Mística apresenta-se historicamente como um caminho de acesso

ao Absoluto, alternativo ou paralelo à Metafísica. Esse caminho termina

necessariamente numa intuição do Absoluto. Ora, essa intuição, não obstante sua

componente afetiva, é considerada por Marechal numa perspectiva

eminentemente intelectualista. Eis porque ele a estuda preferencialmente em

Tomás de Aquino.

Metafísica e mística são alternativas e, desta sorte, caminhos para

o Absoluto, que freqüentemente se confundem. É no horizonte desse problema

que se dá a aparição de Kant. O filósofo de Königsberg, como é sabido, rejeitava

qualquer ingerência da mística nos domínios da Filosofia e, mais ainda, da

metafísica. Mas Kant, ao ser reinterpretado na década de 20, com o declínio da

exegese neokantista, não era visto mais como um anti-metafísico. Ao contrário,

para preservar o conhecimento metafísico de qualquer contaminação com a

intuição mística, ou das que ele considerava antinomias ou paralogismos da razão

pura, a retira do terreno da razão pura ou teórica para fundamentá-la no terreno da

razão prática, e recusa à razão pura qualquer tipo de intuição com alcance

ontológico. No terreno da razão pura, a antiga metafísica para Kant, limita-se ao

domínio do puro pensar, na forma de uma Dialética transcendental. Todo

conhecer lhe é vedado. Ao reconstituir historicamente o “ponto de partida” da

metafísica desde Parmênides, Marechal devia necessariamente encontrar-se com

o interdito kantiano. Dedicou-se a um estudo profundo das obras de Kant e expôs

sua interpretação da Crítica da razão pura. Mas, a partir do próprio Kant, como

restituir a validez teórica da metafísica e distingui-la da mística? Para tanto,


15

Marechal recorre a Tomás de Aquino e empreende uma leitura profundamente

original da noética tomásica em confronto com a crítica kantiana.

Marechal objeta à análise kantiana do conhecimento teórico, no

momento em que esse se defronta com a inevitável afirmação do ser, um caráter

estático e predominantemente logicista. Ora, a afirmação do ser é, por definição,

como se sabe desde Parmênides, absolutamente universal, tanto

extensionalmente quanto intencionalmente. Se à nossa inteligência limitada e finita

não é dada, no seu exercício normal distinto do conhecimento místico, a intuição

do Ser absoluto e infinito, ela deve ser dinamicamente ordenada a essa intuição

como termo da sua tendência intelectual mais profunda e constitutiva. Sem o

conhecimento do Absoluto, por intuição imediata ou como inscrito

necessariamente o dinamismo intelectual, não há metafísica. Kant recusa a

intuição. Mas não leva em conta o dinamismo da inteligência.

É por esse caminho que Marechal tenta superá-lo. É importante

observar que Marechal está aqui na entrada noética, ou seja, no estabelecimento

da condição de possibilidade da metafísica e não no seu interior já constituído

como ontologia. O dinamismo da inteligência não oferece uma prova formal da

existência de Deus, mas é sua condição transcendental a priori.

A aventura da metafísica ocidental, em todo o trajeto da história da

filosofia grega e da cristandade medieval, de Parmênides a Tomás de Aquino,

teve como protagonista uma certa concepção da inteligência cujo exercício

permitiu ao filósofo estender inquirição além do horizonte do sensível e propor

modelos diversos de uma ciência do puramente inteligível, admitindo-se inclusive


16

ora a metafísica como filosofia primeira ou teologia, ora esta subordinada ao

próprio discurso filosófico.

Neste contexto, o entendimento que leva a razão a postular a

metafísica é, propriamente, uma inteligência espiritual, e teve seu exercício

reconhecido e celebrado como o mais alto cimo que a inteligência humana pode

alcançar, até que o nominalismo tardo-medieval iniciou o lento trabalho de

“reconstrução” que acabou por depor a metafísica do lugar eminente que ocupava.

Mas, este pretendido retraimento epocal, representa, na verdade, um processo

histórico multissecular e é o avançar desse processo que permite caracterizar a

modernidade como um rompimento de uma metafísica como ontologia, ou como

ciência do ser enquanto ser, para ocupar-se com o sujeito. A modernidade não

exclui a metafísica de seus horizontes, ao contrário, aponta que uma metafísica

futura deve ser construída a partir da subjetividade ou, conforme Kant, da

subjetividade transcendental.

Marechal tenta ao revisitar a filosofia transcendental kantiana

empreender um novo projeto qual seja, estabelecer entre o kantismo e o tomismo

a possibilidade de um novo entendimento. É possível, a seu ver, um encontro

entre a escolástica depurada pela crítica e a crítica transcendental kantiana. Mas,

tal empreendimento se realiza na região da subjetividade e na afirmação da

possibilidade da objetividade do real. A afirmação desta objetividade ultrapassa os

limites da subjetividade adquirindo validade e universalidade.

Ao ser submetido ao dinamismo da afirmação, o juízo transgride a

limitação eidética da síntese concretiva, e eleva o objeto ao nível da

universalidade formal do ser o que implica, por sua vez, referí-lo ao absoluto real,
17

que é posto com a finalidade última do dinamismo intelectual. É justamente na

natureza dessa estrutura relacional constitutivamente metafísica do juízo que jaz

um dos mais profundos entre os problemas da metafísica: pensar as sequências

desses dois movimentos intencionais da inteligência, que definem sua pulsão

essencial: a passagem da síntese concretiva ou da representação ao ser e do ser

ao absoluto.

A afirmação do real leva a perguntar pelo absoluto, ou seja, pela

intuição do absoluto. Este absoluto se situaria ao fim do projeto metafísico. Ele

não é uma postulação inicial, mas deve-se admitir sua possibilidade, ou mesmo

como uma alternativa para a investigação metafísica.

A demonstração da existência de Deus não é, portanto o começo,

mas o fim do discurso metafísico. Ela supõe que a estrutura metafísica do real

acessível à nossa experiência externa e interna tenha sido elucidada e é essa

elucidação que nos permite articular tal demonstração. Ela não seria possível se

não apoiasse numa pré-compreensão original e originária do Absoluto que tem

lugar na intencionalidade do discurso metafísico, justamente, na descoberta da

dimensão tética do juízo no curso da análise reflexiva que, partindo da refutação

do ceticismo radical, põe em evidência a ordenação ao absoluto do dinamismo

intelectual.

Assim, as etapas de nosso projeto de investigação sobre a

trajetória de Marechal se constituirão, inicialmente, em reconstituir os momentos

decisivos da metafísica como momentos do desvelamento do ser. Isso quer

significar que não se pretende, como também tal não é a intenção de Marechal,

elaborar uma história da filosofia do ser. O que se pretende é delimitar reflexão


18

metafísica nos primórdios da filosofia grega e medieval. Essa reconstituição da

metafísica clássica tem seu ponto culminante na síntese tomista levada a cabo na

Idade Média, quando em Santo Tomás, há o encontro entre Platão e Aristóteles.

Ressalte-se também nessa abordagem que nesse momento a metafísica como

discurso do ser ou como ontologia tem seu apogeu e fim.

É, justamente, a partir da modernidade, quando não há mais lugar

para o ser considerado em si mesmo e, plenamente acessível à razão, aflora

então o sujeito como constituidor da objetividade. A temática da metafísica na

modernidade será desenvolvida privilegiando-se o sujeito como única

possibilidade de afirmação do ser. Marechal tenta fazer a transição entre a filosofia

clássica e a modernidade e envolve a mística como intuição do absoluto.

O problema fundamental a ser destacado é estabelecer os limites

dessa transição que será realizada no último capítulo dessa investigação. Trata-se

de investigar a transição do projeto da metafísica clássica situada sob o enfoque

do ser para o da modernidade sob o enfoque do sujeito. Outra questão a ser

discutida e pesquisada é os limites da inquirição filosófica que, conforme a

tradição encontra-se na imanência e os horizontes da teologia se encontram

justamente na transcendência. Este é o desafio de Marechal. O risco de construir

uma teologia transcendental deve ser levado em consideração. O que nos

propomos, no desenvolver dessa pesquisa, é discutir com o autor e, com os

subsídios fornecidos pela tradição filosófica, seu projeto filosófico.

Pretende-se, ante o exposto, encontrar um justo meio e

acompanhar o trajeto filosófico marechaliano e, vislumbrar o que nos parece sua


19

originalidade em sua investigação onde prometem um encontro entre a filosofia, a

mística e a teologia.
20

CAPÍTULO I

O REALISMO METAFÍSICO DOS ANTIGOS

A crítica do ceticismo antigo termina com esta conclusão: a

afirmação é inevitável; ela expressa a natureza mesma de nossa atividade

intelectual, até tal ponto que negar a afirmar é uma afirmação.

E tal necessidade da afirmação leva consigo a necessidade do

primeiro princípio (princípio de identidade), já que, com a falta dele, a afirmação se

destrói a si própria. A identidade consigo mesma é sem dúvida o mínimo que se

pode afirmar de um objeto qualquer.

Sem explicar sempre com toda claridade, os antigos tiveram

consciência de que esta crítica preliminar da afirmação bastava para fundar seu

realismo objetivo, ou seja, para fundar o valor absoluto do conteúdo do

conhecimento.

Considera-se atentamente a supremacia reconhecida ao primeiro

princípio sobre todo conteúdo de consciência sem exceção, reconhecer-se-á que

esta jurisdição universal implica uma verdade fundamental: todo objeto (todo dado

objetivo de consciência) pertence ao domínio do ser. Pois para ser idêntico a si

mesmo é preciso, antes de tudo, de uma outra maneira, ser. Aplicar o princípio de
21

identidade ou de contradição a um objeto é, portanto, referir a este objeto um juízo

implícito, mas absoluto, de ser.

Ao contrário, se vê patentiar sua repugnância lógica: um objeto de

meu pensamento não é ser de nenhuma maneira, é totalmente não-ser. Para que

uma proposição semelhante tivesse sentido, seria preciso que o total não-ser, a

nada absoluta, fosse pensável.

a idéia do nada não é mais que uma pseudo-idéia, um amontoamento


verbal ao que não corresponde (nem pode corresponder) nenhum
conceito homogêneo. O pretendido nada que nós representamos é
sempre relativo, sempre o não-ser de alguma coisa; não o não-ser
absoluto, senão o outro, é dizer, também o ser, real ou possível1.

Mas se nada não é pensável, segue-se que todo o pensável é. E,

deste modo, encontra-se uma imediata aplicação do primeiro princípio, a

afirmação absoluta e universal do ser, com a exclusão do nada. Tal é, o

fundamento do realismo metafísico nos gregos.

Sem embargo, o pensamento grego, ao impor como uma

necessidade primordial o princípio essencial do realismo, não há mais que

preludiar sua tarefa crítica. Com efeito, se todo conteúdo do pensamento é o

objeto de uma absoluta afirmação de ser, é preciso – indispensavelmente – sob

pena de arruinar novamente o primeiro princípio e com ele a possibilidade mesma

1
No original: que la idea de la nada no es más que una pseudo-idea, un amontonamiento verbal al
que no corresponde (ni puede corresponder) ningún concepto homogéneo. La pretendida nada que
nos representamos es siempre relativa, siempre el no-ser de alguna cosa; no el no-ser absoluto,
sino lo outro, es decir, tambíen el ser, real o posible. (MARECHAL, Joseph. El punto de partida de
la Metafisica. I,p.58)
22

da afirmação, que os mais diversos conteúdos do pensamento se harmonizem

entre si, na unidade do ser, ao amparo da contradição lógica.

Revelar, como diz Aristóteles contra os sofistas, a incoerência

teórica e prática e, para falar da impossibilidade do ceticismo integral, não era,

senão colocar, de um modo mais expresso e já crítico, o postulado instintivo de

todo o realismo antigo. Aristóteles, ao desenhar sua protofilosofia tinha dela uma

consciência muito clara, de que, protegendo-se com a necessidade da afirmação

absoluta como um preâmbulo crítico posto de uma vez por todas, se organizaria o

conjunto dos objetos dessa afirmação absoluta em um sistema devidamente

equilibrado; ou seja, se tratava de edificar uma metafísica rigorosamente coerente

o bastante compreensiva para que todo o conteúdo objetivo do pensamento

humano encontrasse nela seu lugar definido.

Acabamos de estabelecer o princípio metodológico da crítica do

conhecimento tal como a entenderam os Antigos, isto é, a Antigüidade e a Idade

Média.

A crítica metafísica do objeto permaneceria quando todo o

conteúdo do pensamento estivesse distribuído e coordenado sem choque nem

contradição. Em tal caso, com efeito, a afirmação necessária e absoluta de ser se

encontraria aplicada e graduada sem determinação alguma e, pelo mesmo,

também sem desviação possível. A antinomia da multiplicidade e a unidade, tema

básico da metafísica humana, estaria definitivamente superada.2

2
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, I, p.60
23

Mas não assinala um limite para a razão humana este ideal

imutável?

Buscaremos a resposta a esta questão através da sinuosa história

da metafísica; e deste modo nos encaminharemos até a posição moderna do

problema do conhecimento.

1.1 - A oscilação entre os termos da antinomia nos pré-

socráticos

Desde seu despertar, o espírito humano, essencialmente

unificador, se vê em apuros diante a multiplicidade dos dados; forcejeia-se com a

antinomia do uno e o múltiplo sem que tome imediatamente consciência da

envergadura real do conflito. Com efeito, os primeiros sistemas cosmológicos não

delatam ainda mais que o trabalho instintivo de unificação ao que a natureza,

cambiante e diversa, provoca ao espírito que a contempla. Só mais tarde se

adverte que a especulação cosmológica, não faz senão colocar em série as

etapas de um processo fundamental e de seu indefinido, a saber: a introdução da

unidade na pluralidade3.

Não faltam espíritos profundos e audaciosos que tomam

explicitamente consciência desta exigência sintética do pensamento, e lhe

concedem, em conseqüência, toda sua importância. Tales um dos pensadores de

Elea e Parmênides, ambos, mestres e discípulos, afirmam a unidade absoluta do

3
Cf.Ibid.p.61
24

ser. Sem dúvida, a multiplicidade da experiência se levanta contra esta atitude

imperiosa da razão. E, isto chega, até a Magna Grécia a partir de Heráclito de

Efeso (544), que coloca em contrapartida a tese dos eleatas.

A partir deste momento, a antinomia do uno e o múltiplo alcança

toda sua agudeza na consciência filosófica. Examinemos com mais determinação

as duas atitudes unilaterais e intransigentes que, mais que resolver, acentuam o

conflito: a atitude heráclita e a atitude eleática. E ao se colocar em primeiro plano

o real e multiplicidade representa a contrapartida da tese dos eleatas.

1.1 - Heráclito: predomínio da multiplicidade

Em base mesma de sua doutrina, o enigmático pensador de Efeso

situa a realidade experimental da mudança: tudo é devir. E se tudo é devir, tudo é

multiplicidade; multiplicidade interna das coisas cambiantes que transcorrem no

tempo: não é possível passar duas vezes no mesmo rio, já que este arrasta

incessantemente novas águas”4 (multiplicidade na diversidade contraditória das

mesmas propriedades de uma coisa: “a água do mar é simultaneamente a mais

pura e a mais suja, potável e mantenedora da vida para os peixes, não-potável e

mortal para os homens”). Pelo demais, a contradição não tem nada que deva

repugnar ao filósofo; é o lugar do devir e constitui, por conseguinte, o fundo das

coisas em sua essencial mobilidade. Heráclito ao destacar a variabilidade e a

contradição íntima dos objetos, pode deixar transparecer que a afirmação absoluta

4
PLATÃO, Crátilo, 402
25

não encontre realmente nada em que se apoiar; porque não há afirmação possível

sem uma certa unidade objetiva coerente e estável. Contudo, por uma espécie de

instinto metafísico, mais que por um raciocínio rigoroso, Heráclito restaura essa

unidade necessária: a descobre na mesma forma do devir universal e na harmonia

do contraste cósmico o verdadeiro logos divino, imanente às coisas. O paralelismo

realista do pensamento, animado por um mesmo princípio ativo (o fogo), é

arrebatado, a um ritmo idêntico, pelo movimento vertiginoso de um devir infinito.

Assim, pois, aos olhos de Heráclito, a existência objetiva se traduz exatamente na

multiplicidade: a unidade desta multiplicidade é puramente formal e de tendência.

A idéia de multiplicidade, em combinação com a idéia de homogeneidade, dá uma

base bastante firme às filosofias atomísticas. Demócrito ou Anaxágoras, os

atomistas, movidos pelo instinto unitário da razão, também se esforçaram, por sua

vez, em reduzir a infinita diversidade das coisas; só que confundem unidade e

homogeneidade, reduzem a diversidade qualitativa a combinações locais de

átomos idênticos, e a mudança aos deslocamentos sofridos por estes átomos. A

simplificação introduzida deste modo nas coisas não tem mais a aparência da

unidade: é a unidade da quantidade e do movimento passivo; ou seja, a

multiplicidade pura, a homogeneidade material, a inércia. E neles a quantidade

material penetra os objetos e o pensamento. Nos objetos, o logos de Heráclito,

forma harmônica e princípio diretor, é substituído pela configuração espacial dos

grupos atômicos; no espírito, a unidade inteligível da idéia tende a reduzir-se a um

mero agregado de sensações elementares. Subsiste, portanto, uma vez mais, o


26

paralelismo entre o espírito e as coisas, mas a expensas da unidade propriamente

dita5.

1.1.2 - Os eleatas: predomínio da unidade

Frente ao dinamismo universal de Heráclito, os eleatas

sucessores de Jenófanes, e entre eles, em primeiro lugar, Parmênides, mantém, e

talvez, exageram os direitos da unidade.

Move-se no terreno comum do realismo: o pensamento objetivo é

rigorosamente co-extensivo ao ser. Segundo Parmênides, o ser se opõe

contraditoriamente ao não-ser. Por conseguinte, só o ser é: somente ele pode ser

pensado; o não-ser não é, nem pode ser pensado.

Embargado por esta metafísica todavia nova, o poeta-filósofo leva

sua tese fundamental até as mais extremosas conseqüências; propõe o dilema:

ser (totalmente) ou não-ser (não ser em nenhum grau).

Não existe meio termo. Nem o menor rastro de não-ser pode contaminar
o ser. A multiplicidade, a divisibilidade, a mudança, o movimento,
implicam o não-ser. Por conseguinte, nem o múltiplo nem o cambiante
são. O ser é indivisível, imutável, imóvel: é uno6.

5
Cf. MARECHAL, op.cit., p. 63
6
No original: No hay término medio. Ni el menor rastro de no-ser podría contaminar al ser. La
multiplicidad, la divisibilidad,el cambio, el movimiento, implican el no-ser. Por consiguiente, ni lo
múltiple ni lo cambiante son. El ser es indivisible, inmutable, inmóvil: es uno. (Ibid.,p.65)
27

Posto que o ser é único, nosso pensamento objetivo, o que nos dá

a verdade do ser, é necessariamente monista. Como é possível então, que a

multiplicidade invada nosso espírito e apareça nos objetos?

A multiplicidade não tem realidade objetiva; é a forma ilusória de

nossos sentidos que descompõem a unidade do ser; é pura aparência. A fonte de

todo pluralismo se oculta no sujeito sensível, que dá uma objetividade fictícia ao

não-ser.

É patente a forma como os eleatas se livram da antinomia: no que

se refere ao objeto, sacrificam a multiplicidade: sua metafísica é um monismo do

ser; pelo lado do sujeito cognoscente negam todo valor objetivo ao sentido,

faculdade do múltiplo: sua epistemologia é um realismo da inteligência pura.

1.2 - O advento de uma crítica metafísica do

conhecimento

Até aqui, com efeito, a sistematização metafísica apenas abarcou

outra coisa que o objeto entendido no sentido estrito, isto é, as coisas exteriores

aos outros, e quando por acaso se estendeu até o sujeito cognoscente, também a

este se referiu por fora, como uma coisa em meio as outras.

A controvérsia com os sofistas, ao impor a necessidade de

graduar rigorosamente a afirmação que convém a cada conteúdo de consciência,

tanto ao da consciência direta quanto ao da reflexa, obrigou a revisar e ampliar os

quadros da metafísica. Isso precisou não só aperfeiçoar e dar coerência à


28

metafísica do objeto (no sentido restrito); não só desenrolar a metafísica do sujeito

humano, considerando em si como sustância, senão também fazer lugar, nos

quadros da afirmação metafísica, a esta relação de sujeito e objeto que percebe-

se sempre que temos consciência de conhecer.

Com outras palavras: o problema do valor de nossos

conhecimentos, plantado no terreno geral do realismo antigo, apelava

necessariamente a uma ontologia do conhecimento, ou, mais exatamente, a uma

metafísica do sujeito cognoscente enquanto tal.

O problema total do conhecimento se introduz assim na filosofia

antiga, sob a égide da metafísica, como uma ampliação necessária do problema

objetivo do uno e o múltiplo. Desde este momento, se pode falar no sentido

próprio de uma crítica dos objetos, posto que, segundo o temos de ver com mais

detenimento, toda teoria ontológica do conhecimento envolve uma crítica.

Platão e Aristóteles foram, por distintos conceitos, os primeiros

artífices desta crítica metafísica do conhecimento. Sócrates lhes preparou o

terreno.

1.2.1 - Sócrates: regresso ao equilíbrio do uno e o

múltiplo

Sócrates, sem abandonar o realismo objetivista de seus

predecessores, modera a desalentadora oscilação que lhes arrastava

alternativamente da unidade intelectual à multiplicidade sensível, de Parmênides a


29

Heráclito, e à inversa. Ele não podia combater à Sofística de um modo mais eficaz

que o de habituar aos filósofos a conduzir seu espírito, sem contradição, desde as

sensações múltiplas até as unidades conceituadas cada vez mais gerais. Porque,

num sistema de conceitos, devidamente ordenado, as aportações do sentido e as

da inteligência devem constantemente equilibrar-se. Desta maneira, entre os

pontos de vista absolutos da unidade e a multiplicidade, empenha-se a

estabelecer uma hierarquia de unidades intermediárias nas quais os dois termos

opostos se combinam em proporções diversas: as idéias gerais.

Assim, para edificar uma metafísica compreensiva não basta

raciocionar de um modo exato, ainda fragmentário; é preciso, ademais, descobrir o

centro de perspectiva que domina o conjunto de nosso campo de visão. Mas,

numa metafísica humana, o centro de perspectiva não se pode encontrar muito

distante da idéia geral, que é a manifestação mais característica de nossa

inteligência imperfeita.

Sócrates, preocupado sobre todos os conceitos morais, não chega

a construir uma metafísica geral nem uma cosmologia. Sua filosofia não pode

ficar imune ao gérmen cético, mas outro grupo de discípulos de Sócrates continua

a obra construtiva do grande mestre. Este limitou-se a custodiar o dogmatismo

realista, infundindo nos espíritos um princípio de ordem; Platão e logo Aristóteles

acrescentam à indução socrática que permite construir corretamente as idéias

gerais, considerações mais amplas e precisas sobre a natureza e o valor objetivo

destas idéias. A síntese do uno e o múltiplo assegurada no conceito, é a partir de

então, transposta às coisas mediante condições melhores definidas. O realismo do


30

pensamento grego tende a uma forma crítica. Consideremos rapidamente esta

nova fase7.

1.3 - A solução platônica: o realismo do entendimento

Aristóteles faz notar, no livro I de sua Metafísica, que a

epistemologia de Platão é um ensaio de conciliação da teoria socrática dos

conceitos gerais com o movimento de Heráclito. Também pode-se afirmar que o

platonismo aproxima entre si pontos de vista de Heráclito e Parmênides. Ambas

fórmulas destacam igualmente o caráter sintético da solução platônica. Unidade e

pluralidade vão, por fim, encontrar-se, sem excluir-se, no seio de uma filosofia que

abarca o domínio inteiro do objeto.

No ponto de vista que nos ocupa, é preciso distinguir na obra de

Platão dois aspectos que são inseparáveis.

Em primeiro lugar, um aspecto lógico ou dialético. Platão

aperfeiçoa a dialética de Sócrates e dilata seu alcance. Seu método dialético

descobre ao espírito humano o meio de elevar-se desde as aparências sensíveis

até a idéia geral que expressa sua essência inteligível, seu substrato lógico

imediato e sua unidade universal ; ele ensina a comparar entre si estas formas

inteligíveis, a captá-las em suas delimitações e em sua mútua implicação,a fim de

referi-las todas ao último substrato ideal que lhes serve de base comum e não tem

7
Cf. MARECHAL, op.cit., p.69
31

necessidade de fundamento ulterior8. A dialética se conduz deste modo acima das

idéias ou formas, por um procedimento que assemelha-se muito a uma abstração

de espécies e gêneros, levada até o gênero supremo; a idéia se encontra nos

outros como conceito abstrato, e o signo verbal da idéia é, em nossa linguagem, o

termo universal.

Mas este aspecto dialético vem acompanhado de um aspecto

psicológico e metafísico, expressivo do fundamento ontológico das relações

lógicas.

A idéia platônica não é representável por uma imagem comum

que traduz a semelhança material das coisas sensíveis; não é, então, objeto de

ciências, porque todo trabalho de combinação e dissociação que podemos fazer

com o sensível cai dentro dos limites da aparência, da opinião. Com efeito, Platão

reconhece com Heráclito que as aparências sensíveis, o mundo das idéias, são a

variabilidade mesma; mas ademais, como Parmênides, considera incompatíveis a

mudança e o ser. O paralelismo entre o ser e o pensamento, postulado por toda a

antigüidade grega, não pode portanto, estabelecer-se valendo-se do intermediário

da sensibilidade.

Professa, por conseguinte, que com ocasião da percepção

sensível dos objetos, desperta sempre em nosso espírito uma idéia

correspondente. “ Esta idéia se introduz sob as representações sensíveis como

8
Cf. Ibid., p.71.
32

base inteligível e a expressão mesma de sua realidade, porque em todas as

coisas é a idéia, e só ela, o que nossa inteligência conhece” 9.

Mas as idéias, suscitadas ao azar dos encontros sensíveis, se

articulam entre si em nosso pensamento; superando a dialética abstrata, há uma

dialética vivente das idéias, presidida pelo guia divino, o amor. O saber verdadeiro

e completo consiste, sob a influência estimulante do amor às idéias e nos impulsa

cada vez mais até a Idéia suprema do Bem. Ao recorrer, desde o centro mesmo

de nosso espírito, numa contemplação direta e progressiva, a hierarquia completa

das unidades ideais parciais, subordina-se à Idéia primeira que, dominando-as, as

articula. Sendo assim, todo o processo do despertar e da evolução das idéias é

teológico.

Esta contemplação ideal nos faz alcançar o ser, já que, segundo o

princípio, todavia inalterado do dogmatismo realista, o ser é o mesmo que é

pensado, com exclusão do que é sentido; o ser é o inteligível. A realidade

verdadeira e subsistente é preciso, portanto, encontrá-la no imóvel esplendor

destas Idéias.

Neste contexto, os sentidos e o entendimento buscam

verdadeiramente no exterior as determinações materiais ideais. Entre as

aparências exteriores e as idéias subsistentes existe um impreciso vínculo de

participação, de assistência que faz das Idéias os tipos superiores e os princípios

da unidade das aparências.

9
No original: Esta idea se introduce bajo las representaciones sensibles como su sostérn inteligible
y la espresíon misma de su relidad, porque en todas las cosas es la idea,y sólo ella, lo que nuestra
inteligencia conoce. (Ibid., p.72)
33

As idéias subsistentes, objetos imediatos de nosso conhecimento


intelectual, constituem ao mesmo tempo a unidade real – imanente ou
transcendente – das coisas que nos aparecem. O dogma do paralelismo
entre pensamento e os objetos encontram assim uma ampla base
metafísica10.

Segundo Marechal, se a epistemologia platônica se limitasse à

afirmação do paralelismo entre nossos conceitos gerais e as idéias subsistentes,

sem intentar nenhuma explicação metafísica de tal paralelismo, não excederia o

nível de um dogmatismo realista bastante arbitrário. De fato, a metafísica de

Platão faz um caminho de relação mesma de sujeito e objeto e engloba deste

modo uma teoria metafísica do conhecimento.

Assim, desde o momento em que se abandona o ponto de vista –

criticamente insustentável – de uma ausência total de relação ontológica entre o

objeto e o sujeito, se introduz a relação mesma de conhecimento no quadro das

relações metafísicas; e se vê obrigado, a partir desse momento, a descobrir

causas reais, necessárias e suficientes da operação cognoscitiva.

Portanto, uma das primeiras exigências metafísicas que chama a

atenção de Platão é a necessidade de encontrar no sujeito mesmo, com

anterioridade todo exercício imanente de sua atividade, o conjunto das suas

virtualidades, pois como podia eu conhecer um objeto se não o tenho em mim de

nenhum modo? Uma certa presença do objeto em mim é a condição necessária

da representação que eu me formo. Mas que presença? Pode o objeto estar

presente desde agora no seio de minhas faculdades cognoscitivas, seja pela

10
No original: As ideas subsistentes, objetos inmediatos de nuestro conocimiento intelectual,
constituyen al mismo tiempo la unidad real – inmanente o transcendente – de las cosas que nos
aparcen. El dogma del paralelismo entre el pensamiento y los objetos halla así una amplia base
metafísica. (Ibid., p.73)
34

semelhança de sua forma, seja por sua realidade própria? A partir da teoria da

anámnesis, há que se dizer que, segundo Platão:

as idéias gerais, latentes nos outros se desperta por ocasião da


percepção sensível as quais não são inatas: formam nos outros o
resíduo da intuição imediata que havia tido das idéias subsistentes numa
existência anterior, que na alma, não entorpecida ainda pela matéria,
vivia diretamente a vida das Idéias11.

Para conhecer as idéias é preciso a volta ao mundo ideal para

encontrar-se a si mesmo sob a carga sensível que a aprisiona. Também o

verdadeiro meio da contemplação das idéias consiste na ascética purificadora do

espírito, nessa que restaura na alma, de um modo progressivo, a primitiva

transparência de sua sustância ideal.

Assim, pois, desde que se intenta desenrolar sistematicamente a

metafísica platônica do conhecimento, chega quase necessariamente a

estabelecer, com os neoplatônicos, a imanência ontológica das idéias no espírito,

tanto na inteligência universal quanto na inteligência humana, emanação do

primeiro.

Entretanto, com independência inclusive de toda hipótese inatista,

imanentista ou emanatista, a unidade do sujeito e o objeto encontra ainda em

Platão uma certa expressão metafísica. Com efeito, o processo teológico do

conhecimento tem como fim último o mesmo do amor (Eros): a possessão do Bem

absoluto.

11
No original: las ideas generales, latentes en nosostros y despiertas com ocasíon de la percepcíon
sensible, nos son innatas: forman en nosostros el residuo de la intuicíon inmediata que habríamos
tenido de las Ideas subsistentes en una existencia anterior, vivía directamente la vida de las Ideas.
(Ibid., p.75)
35

Portanto, o ponto de vista teológico em Platão, já apela, e em

parte dá lugar, a uma verdadeira metafísica do conhecimento.

Segundo Marechal toda metafísica do conhecimento concebida à

maneira platônica contém antinomias e permanecem impotentes para resolver o

problema crítico. Assim, por exemplo, pode reduzir de um modo excessivo o papel

da sensação no conhecimento do real. E por outra parte, ao tratar nossos

conceitos abstratos como a expressão adequada de puros inteligíveis, corre o

risco de introduzir na inteligência enquanto tal, certas condições da sensibilidade,

produtos da abstração.

Contudo, a consideração platônica da finalidade no

conhecimento, soma do ponto de vista de Parmênides um complemento destinado

a alcançar, na história ulterior da filosofia, uma extraordinária importância teórica.

A unidade suprema do conhecimento não pode, consequentemente, definir-se só

como forma representativa; deve responder, ao mesmo tempo, aos caracteres de

um fim último12. Estabelecer esta exigência é inaugurar o princípio do que

necessariamente se desprende a tese da analogia metafísica ou, se prefere, a da

transcendência do ser. Com efeito, o cume supremo do conhecimento, enquanto

representação, não transforma a idéia universal de ser; o ápice do conhecimento,

enquanto finalidade ativa, é a posição do Bem em si. É pois, idêntica a posição do

Bem em si à intuição do ser? Não, responde Platão e, de um modo mais explícito,

seus sucessores alexandrinos: o Bem é superior ao Ser, porque o Bem, diferente

12
Cf. Ibid., p.523
36

do Ser, não admite a oposição de um Não-Ser. Para Platão a idéia suprema do

ser se confunde para com nosso conceito do ser, com a forma representativa do

ser adequado ao nosso entendimento. Em Aristóteles, veremos somar a distinção

crítica que fará possível que o Ser se coloque acima da região do conceito, até o

mesmo plano do Bem absoluto.

1.4 - A solução aristotélica: moderação do realismo do

entendimento

Em muitos aspectos, Aristóteles continua Platão, mas não sem

refrear algumas das audácias ontologistas de seu antecessor.

Como este, adota a equação entre o inteligível (humano) e o

universal, sendo que o conceito que expressa o inteligível, é primitivamente

universal.

Mas é aqui onde se aponta a divergência: em Aristóteles, o

conceito universal não provém de uma intuição ontológica das idéias subsistentes,

se origina nas coisas sensíveis; dentro dessas, realmente, descobrimos o

inteligível.

Aristóteles tira as idéias de seu pedestal e as submerge

totalmente na realidade material; as faz imanentes às coisas: de toda coisa

sensível se pode dizer, num sentido verdadeiro, que encerra o universal, a idéia.

Com efeito, segundo a física aristotélica, todos os objetos que afetam a nossa

sensibilidade estão compostos de um princípio material e de uma forma


37

especificativa que é uma verdadeira idéia, imanente aos indivíduos. E esta idéia

imanente oferece ao nosso pensamento os caracteres de um universal, por si

mesma, independentemente da matéria que a restringe, é a idéia ilimitada da

espécie inteira.

Em suas faculdades sensíveis,o sujeito recebe o selo qualitativo

das coisas exteriores. Mas ao mesmo tempo, por sua inteligência imaterial,

reacional sobre a imagem concreta que se lhe apresenta, de maneira que não

assimile mais que seu elemento formal, sem a matéria. Segundo Aristóteles, a

forma desmaterializada está, pelo mesmo, desindividualizada : “representa, na

inteligência abstrativa, o tipo geral da espécie [...], livre da concreção material que

a aprisionava no seio dos indivíduos múltiplos” 13.

Neste sentido, a concepção aristotélica da intelecção pressupõe

uma metafísica do indivíduo material e, por uma vez, traz consigo como

conseqüência, uma epistemologia crítica que revela uma grande moderação do

realismo do entendimento.

Segundo Marechal, o pressuposto metafísico constitui essa tese

famosa da individuação, tão imersa no íntimo do ser quantitativo, que todavia

segue sendo o tema das mais sutis discussões entre filósofos. Aristóteles a

formula quase com a mesma claridade com que logo o farão os tomistas: toda

multiplicidade numérica no interior da espécie provém da matéria, princípio de

multiplicidade pura. A individualidade dos seres materiais depende também da

relação de sua essência com a matéria concreta. A essência, por si e,

13
No original: representa, en la inteligencia abstractiva, el tipo general de la espécie (...), libre de la
concrecíon material que la aprisionaba en el seno de los individuos múltiples. (Ibid., p.79-80)
38

primordialmente, é uma, o mesmo que é imaterial; pela matéria dá lugar a uma

multiplicidade. Deste modo, a essência não subsiste nas coisas com a forma da

universalidade de que se reveste no entendimento abstrativo. Em conseqüência, a

afirmação necessária do objeto de nossos conceitos deve ser crítica; tem de

distinguir, em cada conceito, como mais tarde expressará o tomismo, o que é

verdadeiramente significado e o modo abstrato da representação, ou seja, a parte

do objeto e a parte do sujeito no conceito objetivo14.

Esta distinção, pela primeira vez estabelecida aqui com toda

claridade, é de uma importância capital, pois introduz uma origem no dogmatismo

realista do pensamento grego primitivo, e assinala assim o ponto de partida de

toda crítica do conhecimento; trata-se de uma verdadeira crítica do objeto

enquanto tal, isto é, de uma crítica a qual recai sobre as condições do valor da

operação objetiva primária de nossos entendimentos.

A necessidade de uma afirmação absoluta de todo objeto, é dizer, a


verdade absoluta do primeiro princípio ( princípio de identidade) em sua
aplicação a qualquer conteúdo de consciência. O valor absoluto do
primeiro princípio não se demonstra; se consigna15.

14
Cf. ARISTÓTELES. Metafísica, A, 1074 a, 33.
15
No original: a necesidad de una afirmacíon absoluta de todo objeto, es decir, la verdad absoluta
del primer principio (principio de identidad) en su aplicacíon a cualquier contenido de conciencia.
(MARECHAL, op.cit., p.82)
39

Assim a verdade absoluta do primeiro princípio implica uma

afirmação absoluta de ser, ou, o que é o mesmo, a posição absoluta do objeto. Ao

contrário, o sacrifício do primeiro princípio leva consigo a completa relatividade do

ser. A realidade absoluta do ser nos mostra, portanto, inseparável da verdade

absoluta do primeiro princípio; sustentar uma é manter a outra.

Em segundo lugar, há a necessidade de uma seleção do objeto

metafísico; isto é, do ser sob a norma do primeiro princípio. Com outras palavras:

a diversificação da afirmação ontológica segundo as relações lógicas de seu

conteúdo.

Nesta perspectiva Aristóteles compreende a necessidade de

recorrer ao ponto de vista dinâmico para escapar às antinomias que levantava

diante a razão o monismo do ser. Ele não encontra outro caminho que evite sair

da contradição, sendo que aplicar novamente o primeiro princípio é, pois, o único

caminho logicamente aberto.

Não há que duvidar que Aristóteles era um físico tanto como um

metafísico: é, por certo, na sua Física nos remete à crítica decisiva do imobilismo

eleático. A revelação do dever, síntese geral de ser e não-ser, a encontrou na

percepção viva do movimento, lei universal do mundo físico .Todo conteúdo de

pensamento nos é dado, primeiro, sob a forma da sensação, e nos proporciona a

matéria imprescindível de nossos conceitos. Assim, o objeto sensível é

essencialmente móvel segundo os quatro modos de mudança16.

16
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, A, 986 b, 30.
40

Adquirida a noção central de movimento, Aristóteles a submete a

análise racional mais rigorosa. Descobre nela os elementos de sua teoria geral

das quatro causas: a essência ou forma, a matéria ou sujeito, o princípio e o fim.

Aliás, na mesma raiz da dualidade experimental de forma e matéria reconhece

Aristóteles os dois grandes princípios metafísicos que são, para os outros, a chave

do sistema do ser, porque fazem possível restabelecer a unidade ontológica no

seio da multiplicidade.

E ao lado do ato, a mudança nos manifesta, não o puro não-ser,

como supunha Parmênides senão o não-ato, a potência. Tal distinção entre o não-

ato e o não-ser não equivale a uma escapatória verbal, porque o não-ato, a

potência, longe de resolver-se no nada, implica uma proporção positiva ao ato,

uma predisposição a ser mais plenamente. Esta predisposição, não só faz

referência a um ato que chega a cumpri-la, senão que dela mesma procede, em

última análise, de um ato anterior que a mantém. A potência passiva não é senão

a expressão objetiva de uma potência ativa, de um dinamismo positivo

antecedente.

Apenas é preciso mostrar que a noção peripatética do dever,

solução dialética da antinomia do uno e o múltiplo, se converte na chave da

metafísica aristotélica do ser.

Com efeito, já que o objeto primeiro de nosso conhecimento

ontológico está tomado no mundo sensível, e como o mundo sensível está

essencialmente sujeito à mudança comprende – se que o ser se apresenta

primeiro à nossa inteligência como um devir, isto é, como repartido

complementariamente entre o ato e a potência.


41

Em conseqüência, é este devir, esta aliança do ato e a potência, a

forma em que há de se revelar a totalidade do ser; pois o que não se transparece

no objeto próprio e primário de nossa inteligência permanece sempre inacessível

aos outros.

Mas todo devir, diz Aristóteles, procede de um ato que é seu

princípio motor e tende até um ato em que se acaba. Entretanto, se o princípio e

o fim de um devir particular contém todavia algo de potência ao lado do ato, eles

mesmos constituem devir e exigem, por sua vez, um ato que seja seu princípio e

outro que seja seu fim. A totalidade do devir; ou o dever como tal, se desenrola,

portanto, necessariamente, entre um princípio universal, um primeiro motor, que é

Ato puro, e um fim absolutamente último, que é igualmente Ato puro. E o que

torna possível o devir é a potência, a potência em todos os graus, até ao limite

inferior cuja realização separada implica contradição: a pura potência, a matéria

primeira.

Tanto do ponto de vista dialético como do ponto de vista

metafísico, a antinomia do uno e o múltiplo se faz resultado; de agora em diante,

os quadros gerais do ser fundamentam-se no primeiro principio.

A metafísica aristotélica ordena em um sistema coerente: “O

objeto inteiro do conhecimento direto, desde a pura potência, a matéria prima, até

o ‘primeiro motor imóvel’17, que é Ato puro e, por conseguinte, também Idéia

pura”18

17
Cf. ARISTÓTELES, Metafísica, K., 1072 a, 25
18
Cf. Ibid., K., 1074 b, 34
42

Segundo Marechal não deixa de existir em Aristóteles alguma

obscuridade acerca da origem da matéria prima, princípio da multiplicidade, e da

natureza da noção criadora, da perfeita transcendência de Deus e do destino final

do homem. Os escolásticos, a mercê da idéia cristã do sobrenatural, tiveram

acerca destes pontos teses mais claras. Contudo, na metafísica aristotélica as

grandes linhas de uma metafísica do objeto alcançam seu perfil definitivo, irradiam

desde o mesmo ponto em que se verifica o contato entre essas faculdades

cognoscitivas e a realidade ontológica.

Todo o objeto do conhecimento é reflexivo. A reflexão, captando o ato


direto de conhecimento, percebe nela a oposição imanente de Sujeito
ativo e Objeto representando, ou, dito de outra forma, a que há entre Eu
e Não-eu19.

Mas todo conhecimento intelectual é ontológico. Pela reflexão, que

o opõe a ele mesmo, o sujeito cognoscente se encontra, portanto, referido por sua

vez, ao plano absoluto do objeto ou do ser. O objeto do conhecimento direto

aparece, sob a reflexão, ao mesmo tempo, como uma representação imanente ao

sujeito e como uma realidade oposta ao sujeito.

19
No original: Todo el objeto del conocimiento reflexivo. La reflexión, captando e lacto directo de
conocimiento, percibe em él la oposicíon inmanente de Suejto activo y Objeto representado, o,
dicho de otra forma, la que hay entre Yo y No-yo. (MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la
Metafísica, I, p.88)
43

O conhecimento é considerado em si mesmo como relação de objeto e


sujeito. Em efeito, combinando os dados do conhecimento direto e os do
conhecimento reflexivo, se pode ver que o conteúdo da consciência, ou
a consciência considerada objetivamente, depende às vezes do Eu e do
Não-eu. Supõe uma certa relação de identidade entre um sujeito real e
um objeto real. É o que Santo Tomás expressará mais tarde com célebre
fórmula “intelligibile in actu est intelligens in actu”, simples tradução
metafísica do princípio aristotélico. 20.

Mas, se o conhecimento se verifica na mesma medida em que o

objeto surge, ou se faz imanente ao sujeito, da mesma aproximação de uma

metafísica do objeto surge uma metafísica do conhecimento. Esta consiste na

análise dos graus possíveis de uma síntese objetiva-subjetiva no seio mesmo do

sujeito.

Portanto os aristotélicos medem o conhecimento objetivo pelo

grau de imanência do objeto ao sujeito. O conhecimento conceitual abarca,

portanto, essencialmente, uma síntese de condições objetivas e de condições

subjetivas. Mas, diante disso Marechal coloca uma questão: se o objeto primário,

imediato de nossa inteligência constituem as coisas materiais e extensas, como é

possível que estas entrem em síntese com o espírito, essencialmente imaterial e

inextenso?

20
No original: El conocimiento, considerado em si mismo como relacíon de objeto y sujeto. Em
efecto, combinando los datos del conocimiento directo y los del conocimiento reflexivo, se puede
ver que el contenido de la conciencia, o la conciencia considerada objetivamente, depende a la vez
del Yo e del No-yo. Supone uma cierta relacíon de identidad entre um sujeto real y um objeto real.
Es lo que Santo Tomás expresará más tarde com la célebre fórmula intelligibile in actu est
intelligens in actu, simple traducción metafísica del pricipio aristotélico: (Ibid., p.89.)
44

É indubitável que os objetos materiais atuem primeiro de uma

maneira física sobre nossos sentidos; a imagem que resulta desta ação prolonga a

forma do objeto material, abstraída da subjetividade concreta.

Mas a forma continua entorpecida pela matéria, porque a própria

imaginação é ato de uma faculdade orgânica. A forma muda a matéria do objeto

exterior pela do sujeito cognoscente; e é isso um começo de imanência da forma

no sujeito, mas não é todavia a imanência estritamente espiritual.

O espírito nunca por si só possui sua atualidade última: não

conhece a não ser, passando sempre da potência ao ato. Há motivo, portanto,

para discernir em nossa inteligência um intelecto passivo, uma inteligência

sensível, isto é, uma potência de intelecção atual. Mas como o ato pode mover a

esta potência inteligível e revesti-la com as diversas formas do conhecimento? Há

desproporção entre uma atividade material e uma potência espiritual.

Necessariamente, pois, a atuação procederá de um agente imaterial da mesma

ordem que a inteligência passiva 21.

Diante dessa questão encontra-se, de um lado, o objeto exterior,

prolongado, no que toca a sua forma, pela imaginação. De outro lado, o espírito

humano, enquanto passivo, encontra-se em condições de receber todas as formas

do ser e, enquanto ativo, é capaz de realizá-las em si próprio.

21
Cf. Ibid., p.91
45

Deste modo, a atividade pura de nosso espírito (não-intuitivo),

abandonada a si mesma, carece de um conteúdo diverso sobre o qual exercer.

Onde encontrará este conteúdo senão na imaginação ? E sob que condição o

encontrará senão sob a de poder exercer sobre a imaginação uma operação que o

leve a apreender ? Esta operação denominada “abstração” é descrita e consiste

na atividade espontânea pela qual o intelecto criador, em presença da imaginação

ajusta sua ação aos caracteres formais deste, para reproduzi-los no intelecto

passivo, no que chegam a ser as determinações próximas da intelecção.

A forma universal, abstraída do fantasma pelo intelecto ativo, chega,


portanto, através de um encadeamento contínuo de causalidades
ontológicas, a representar ou, mais exatamente, a prolongar, até o seio
da inteligência passiva, a forma concreta do objeto exterior. Deste modo
se realiza a medida de imanência do objeto requerido pela intelecção; a
forma sensível, “desmaterializada” pelo intelecto ativo, se converte em
num inteligível, num “inteligível em ato” inerente à inteligência. 22

Concluindo, Marechal agrupa a crítica primeiramente a qualquer

conteúdo de consciência, e por estar submetido ao primeiro princípio, refere-se ao

absoluto do ser; a pura relatividade dos conteúdos de consciência estaria assim

em contradição com o primeiro princípio.

22
No original: La forma universal, abstraída del fantasma por el intelecto activo, llega, por tanto, a
través de un encadenamiento continuo de causalidades ontológicas, a representar o, más
exactamente, a prolongar, hasta el seno de la inteligência pasiva, la forma concreta del objeto
exterior. De este modo se realiza la medida de inmanencia del objeto requerido por la inteleccíon;
la forma sensible, desmaterializada por el intelecto activo, se convierte em um νοητόν , en un
inteligible em acto inherente al νομς . (Ibid., p.92)
46

Pelo que toca a este primeiro princípio, trata-se de algo que não

pode ser demonstrado em si, de uma maneira objetiva; mas demonstra

perfeitamente sua necessidade para todo sujeito cognoscente e pode ser

traduzido na linguagem dos modernos dizendo: o primeiro princípio, em seu

sentido absoluto, não é suscetível de demonstração analítica, mas sim de uma

prova transcendental.

Em segundo lugar, se todo conteúdo de consciência é,

absolutamente, na medida de sua identidade consigo mesma, isto é, na mesma

medida de sua essência com todas as relações que esta traz consigo; a ciência da

existência e a ciência da essência se confundem; dito de outra maneira, a ordem

lógica ou ideal expressa a ordem ontológica.

Assim, os conteúdos objetivos de pensamento, a todos os quais

refere – se à ordem absoluta do ser e os designa sob a apelação comum de

seres, são múltiplas e diversas, não só em suas notas representativas, senão em

sua relação com a existência concreta; cada uma delas não existem realmente

mais que segundo condições respectivas que lhe são próprias23.

23
Cf. Ibid., p.94
47

A determinação geral desta relação das essências com o absoluto

do ser, pertence à metafísica, ou seja, ao discernimento dos modos de ser sob a

norma do primeiro princípio.

Deste modo, a realidade, em geral, é patrimônio de todas as

essências, mas por títulos e sob modos muito diversos, e não necessariamente

pelo título da subsistência própria; pois o ser, objeto formal de nossa razão

afirmadora, tem múltiplas acepções.

o ser enquanto tal tem mais de um sentido: umas vezes designa o


acidente, outras significa a verdade, por oposição ao não-ser, que seria
o falso; outras vezes é atribuído segundo a divisão das categorias, é
dizer, segundo a essência, a qualidade, a quantidade, o lugar, o tempo,
e assim sucessivamente; por último, ademais de tudo isto, o ser abarca
a potência e o ato24.

A questão do conhecimento objetivo não consiste, segundo

Aristóteles, em efetuar um estranho trânsito de ordem lógica ou ideal à ordem

ontológica: toda ordem lógica é ontológica. O problema consiste, em encontrar a

relação inteligível de toda essência particular com a subsistência atual, subjetiva

ou objetiva, mediata ou imediata, que postula. Este problema pertence à crítica do

conhecimento, mas a uma crítica formulada originariamente em termos

metafísicos.

24
No original: el ser em cuanto tal tiene más de um sentido: unas veces designa el accidente, otras
significa la verdade, por oposicíon al no-ser, que sería lo falso; otras veces e atribuído según la
división de lãs categorias. es decir, según la esencia, la cualidad, la cantidad,el lugar, el tiempo, y
así sucesivamente; por último, además, de todo esto, el ser abarca la potencia y e lacto
(ARISTÓTELES, Metafísica, E., 1026 a, 33).
48

CAPÍTULO II

O REALISMO MODERADO DE SÃO TOMÁS

Tendo em vista que a filosofia medieval se desenrola dentro do

marco do realismo antigo, pretende – se assinalar em São Tomás o renascimento

e o término da solução, dialética e metafísica, aportada já por Aristóteles ao

problema do uno e o múltiplo. E nossa atenção à discussão deverá fixar-se em

dois aspectos do problema que mutuamente relacionam: a unidade compreensiva

geral da metafísica com relação aos objetos, e, a relação particular dos objetos

com o sujeito cognoscente, ou seja, a natureza do conceito. Será, pois,

considerado aqui a síntese tomista do uno e o múltiplo, sobretudo desde a

perspectiva psicológica e lógica.

2.1 - Necessidade de uma crítica do objeto de

conhecimento
49

A sensação ou, mais diretamente, a imagem derivada da

sensação é uma causa parcial, mas necessária, de nosso conhecimento

intelectual. 25 Causa parcial, porque a intelecção abarca algo mais que a sensação

ou a imagem; causa necessária, porque da passividade que resulta em nós da

união substancial da alma e o corpo, nossa inteligência não é movida mais que se

apresentam determinações sensíveis26, e tampouco utiliza os princípios

cognoscitivos adquiridos senão referindo-os à sensação ou a imagem:

convertendo-se em um fantasma27.

São Tomás se coloca, pois, ao lado de Aristóteles para afirmar,

tanto contra Demócrito como contra Platão, a necessidade de uma colaboração

íntima do sentido e o entendimento em todo conhecimento intelectual.

Mas a aportação do sentido constitui a multiplicidade das coisas

individuais e mutáveis. Captada pelo entendimento, esta multiplicidade se unifica e

se imobiliza.

Meus olhos veriam, juntos, Sócrates, Callias, Antístenes e tantos outros;


minha inteligência os solda, por assim dizer, num único conceito que
representa a todos e cada um deles: “o homem”. Heráclito dizia: “a mão
não toca duas vezes a água de um rio que flui”; a sensação, por
expressar um objeto essencialmente mutável, não poderia reaparecer de
um modo idêntico; e sem embargo minha inteligência, imóvel na orla,
contempla, sob a incessante corrente material, sob o fluxo do tempo que
ruge, a “água” sempre idêntica28.

25
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I, 84, art.6
26
Cf. Ibid., I, 84, art.6
27
Ibid., I.c., art.7
28
No original: Mis ojos veían, juntos, a Sócrates, Callias, Antístenes y tantos otros; mi inteligência
los suelda, por así decirlo, en un único concepto que representa a todos y cada uno de ellos: el
hombre. Heráclito decía: la mano no toca dos veces el água de um rio que fluye; la sensacíon, por
expresar um objeto esencialmente cambiante, no podría reaparecer de um modo idêntico; y sin
embargo mi inteligência, inmóvil em la orilla, contempla, bajo la incesante corriiente material, bajo
el flujo del tiempo que huye, el água siempre idêntica. (Ibid., I, 84, art.1)
50

Segundo São Tomás, Heráclito equivoca-se indiscutivelmente:

não posso sacrificar desse modo o valor de minha inteligência. Mas Platão não

resolve o problema: a ciência que trata de explicar é a ciência abstrata das coisas

sensíveis e imutáveis; sobre estas, e não sobre nenhum estranho mundo de idéias

subsistentes e separadas, versam as afirmações – aparentemente contraditórias.

Platão, nisto, é vítima de uma ilusão representando todo conhecimento segundo o

modo da semelhança, acredita que a forma do objeto conhecido há de afetar

necessariamente o sujeito cognoscente segundo o mesmo modo que se reveste

no objeto conhecido. Pensa, então, que a forma concebida pela inteligência se

encontra nesta de um modo universal, imaterial, imutável, como se patentiza pela

mesma operação intelectiva, que se verifica de uma maneira universal e

necessária . Conclui-se que as coisas assim entendidas possuem analogicamente

uma subsistência imaterial e imutável.

Segundo Marechal, aqui se encontra, claramente formulada, a

tese fundamental do realismo crítico, que mais acima temos visto desprender-se

da filosofia de Aristóteles. Desde o ponto de vista epistemológico, a Idade Média

recobra totalmente o contrato com a filosofia grega da época de máximo

esplendor.

O realismo há de ser crítico. Não deve admitir nenhuma afirmação

desentendida, indistintamente, de todo conteúdo do espírito. A afirmação, para ser

legítima – e não trazer, antes ou depois, uma contradição interna – deve liberar o

objeto do modo subjetivo que o envolve. Uma crítica do objeto pensado: isto é o

que exige o realismo, tanto o de São Tomás como o de Aristóteles.


51

O próprio São Tomás diz, sem embargo, o reparo seguinte: não é


empreender o caminho do ceticismo o distinguir no conceito um modo
meramente subjetivo e um conteúdo objetivo? “Quicumque enim
intellectus intelligit rem aliter quam sit, est falsus. . . Si ergo intelligamus
res materiales per abstractionem specierum a phantasmatibus, erit
falsitas in intellectu nostro”29.

Para São Tomás o conceito, por si mesmo, não é verdadeiro nem falso;
mero “estado subjetivo” pode ser materialmente semelhante ou
dessemelhante com relação a algum objeto exterior: A verdade ou o erro
só surge no momento em que o sujeito cognoscente “se decide” pela
significação do conceito e o coloca “per modum composiotionis aut
divisionis” na afirmação judicativa. “Cum ergo dicitur quod intellectus est
falsus, qui intelligit rem aliter quam sit, verum est si ly aliter referatur ad
rem intellectam: tunc enim intellectus est falsus, quando intelligit rem
esse aliter quam sit” 30.

Segundo Marechal não encontrar outra fórmula mais clara para

dizer do uso legítimo da afirmação (isto é, do juízo) supõe uma prévia crítica do

objeto pensado. Portanto, o fim desta crítica consiste em extrair do conteúdo bruto

do espírito as modalidades enraizadas na constituição mesma do sujeito

cognoscente, e a significação real, que é o único que cabe afirmar de uma

maneira objetiva.

29
No original: El próprio Santo Tomás se hace, sin embargo, el reparo siguiente:¿ no es emprender
el camino del escepticismo el distinguir em el concepto um modo meramente subjetivo y um
contenido objetivo? Quicumque enim intellectus intelligit rem aliter quam sit, est falsus... Si ergo
intelligamus res materiales per abstractionem specierum a phantasmatibus, erit falsitas in intellectu
nostro. (TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I, 85, art.1,1º)
30
No original: El concepto, por sií mismo, no es verdadero ni falso; mero estado subjetivo puede
ser materialmente semejante o desemejante com relacíon a algún objeto exterior: eso es todo. La
verdade o el error solo surge en el momento en que el sujeto cognoscente se decide por la
significacíon del concepto y lo pone per modum compositionis aut divisionis en la afirmacíon
judicativa. Cum ergo dicitur quod intellectus est falsus, qui intelligit rem aliter quam sit, verum est si
ly aliter referatur ad rem intellctam: tunc enim intellectus est falsus, quando intelligit rem esse aliter
quam sit . (MARECHAL, op. cit., p.111)
52

2.2 – A questão transcendental da afirmação ontológica

Marechal a partir do método dedutivo estabelece a priori, por

conceitos a possibilidade da inteligência não-intuitiva de representar, como

objetos, os conteúdos de consciência, a partir da afirmação estritamente

metafísica. Ou seja, essa realidade deve ser determinada, pelo menos

implicitamente, por uma realidade transcendente: sendo que recusar essa

afirmação eqüivale a negar a possibilidade mesma do pensamento objetivo. É

esta demonstração que permite afirmar o valor metafísico dos objetos, como

“númenos”, o pensamento objetivo, como tal. Isso nos leva, no quadro da

metafísica tomista, a uma dedução transcendental da afirmação ontológica.

Inicialmente é preciso afirmar que o valor de ser de um objeto

está na sua atualidade. O que é soberanamente ser esta eminente em ato,

reciprocamente. A existência é a atualidade de toda forma ou natureza; assim, a

bondade ou a humanidade não são atuais senão quando a supomos existentes31.

Ser é a atualidade de toda forma ou natureza; [...] O ser em si é mais


perfeito de todos por atualizar a todos; pois nenhum ser é atual senão
enquanto existente. Donde o ser em si é a atualidade de todas as
coisas, e, mesmo das próprias formas32.

A inteligência não concebe nada fora do ser, e tendo em vista o

“Ser primeiro”, a supremacia do universal, exclui toda potencialidade (potência):

31
TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, q.3, a.4, in c.
32
No original: Esse actualitas omnis formae vel naturae; [...] Diendum ipsum esse perfectissimum
omnium; comparatur enim ad omnia ut actus; nihil enim habet actualitatem nisi in quantum est,
unde esse est actualitas omnium rerum,et etiam ipsarum formaum. (Ibid. I., q.4, a.1, ad 3m)
53

É necessário que aquilo que é o ente primeiro esteja no ato e de


maneira alguma em potência. Na verdade, é lícito em um e outro,
porque vai da potência para o ato, a potência seja primeiro no tempo que
o ato, o ato porém é simplesmente anterior a potência, porque o que
está em potência não se reduz a ato a não ser pelo ente, no ato33.

Assim, existe uma relação de equivalência entre o ato e o ser de

forma que a atualidade é a medida do ser, do mesmo modo que a atualidade, no

objeto, é a medida da inteligibilidade e no sujeito, a medida do poder de conhecer.

“Como um ser é conhecível enquanto atual, Deus, Ato puro, sem nenhuma

potência, é, em si mesmo, soberanamente conhecível”34.

Com efeito, o indeterminado, como tal, não pode ser objeto de

conhecimento: não se conhece a potência mais que pelo ato. E a causa disso é

porque a inteligência é ato. E por isso, é preciso que aquelas coisas que são

percebidas estejam em ato. Pelo que a partir do ato se conhece a potência35.

A matéria, aquilo que individualiza os objetos sensíveis é

totalmente desprovida de inteligibilidade; ela só é conhecida na correlação com a

forma, e a forma finita que é, todavia, potência somente como limitação do ser ou

do ato. Assim, a atualidade do objeto mede, pois, absolutamente falando, a

inteligibilidade do objeto.

33
No original: Necesse est id quod est primum ens, esse actu et nullo modo in potentia. Licet enim
in uno et eodem, quod exit de potentia in actum, prius sit tempore potentia, quam actus, simpliciter
tamen actus prior est potentia, quia quod est in potentia non reducitur in actum nisi per ens in actu.
(Ibid., I, q.3, a.1, in c.)
34
No original: Dicendum quod, cum unumquodque sit cognoscibile secundum quad est in actu,
Deus, qui est actus purus, absque omni permixtione potentiae, quantum est in se, maxime
cognoscibile est.
(Ibid., I, q.12, a.1, in c.)
35
No original: Et hujus causa est quia intellectus actus est. Et ideo ea, quaeintelliguntur, oporter
esse in actu. Propter quo ex actu cognoscitur potentia. (ARISTÓTELES, Metafísica. Livro IX,
lição10)
54

Desse modo, quanto mais um sujeito está em ato, há mais

capacidade de abarcar a inteligibilidade do objeto. A imaterialidade, isto é, o

afastamento da potência no seu grau mais ínfimo, define em qualquer ser o seu

grau de conhecimento. Isso porque a matéria é um princípio de concreção e de

passividade, uma cadeia, enquanto que o conhecimento requer uma certa

universalidade, ou ao menos uma flexibilidade maior do sujeito e um campo mais

extenso de potencialidades. “A imaterialidade de alguma coisa é a razão para que

seja cognoscitiva e, segundo esse entendimento, a imaterialidade é o modo de

entendimento”36. Nesse sentido, Santo Tomás deduz a inteligência de Deus de

sua qualidade de “Primeiro motor”, isto é, de sua atualidade suprema37.

Agora, se o conhecimento é a relação imanente da atualidade do

sujeito com a atualidade do objeto, uma infinidade de conhecimentos intuitivos se

perfila diante do metafísico.

Deus, Subsistente perfeito, totalmente Ato, de uma vez e identicamente


Intelecção em ato e Inteligível em ato, se conhece perfeitamente a si
mesmo, e, posto que é atualidade criadora, conhece perfeitamente, em si
mesmo, todas as coisas possíveis ou existentes38.

Nessa perspectiva, o ato abaixo de Deus se contamina de

potência, a essência limita o ser. Essa forma, quando é “subsistente”, isto é,

realizada segundo a plenitude de sua lei constitutiva como as essências angélicas,

36
No original: Immaterialitas alicujus rei est ratio quod sit cognoscitiva, es secundum modum
immaterialitas est modus cognitionis. (TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.14, a.1)
37
Cf. MARECHAL, El punto de partida de la Metafisica,III, p. 315
38
Cf. Ibid. I, q.14, a.1,2,3
55

permanece, certamente, em potência diante da infinidade de perfeições

acidentais, cujo limite (inacessível) é a posse integral do Ser; no entanto, em

relação ao seu grau de ser ou a sua essência, esta forma subsistente está em ato

acabado, determinado. E visto que essa essência se abre por sua potencialidade

à novas atuações, o conhecimento intuitivo se estende progressivamente a estes

enriquecimentos da atualidade essencial. A “forma subsistente” se conhece

intuitivamente em sua essência e na sua atividade39.

Assim, a alma humana, dentre as formas imateriais, conhece

também na medida de sua atualidade própria. Já que está unida ao corpo como

forma substancial, não possui o ato último de sua essência: a união substancial

com a matéria significa precisamente que todo ato acabado desta forma depende

do concurso, intrínseco ou extrínseco, da matéria. Mas, esse concurso não

permite a alma expressar e nem conhecer a sua própria essência40.

Contudo, uma vez colocada em cooperação com a sensibilidade

material, tem o poder sendo espiritual, de conhecer-se por reflexão sobre sua

atividade, mas somente na medida dessa atividade. E a intuição de si mesmo,

intuição essencial dos anjos, se reduz aqui a uma “consciência de si”: é o grau

mais simples da intuição intelectual, e como tal as intuições sensíveis.

Mas, o problema se complica de maneira singular no instante que

aparece a intermediação entre o modo intuitivo e o modo puramente receptivo de

nossas intelecções diretas. Com efeito, nosso conhecimento intelectual de todos

os objetos que não são identicamente nossa própria atividade é espontâneo de

39
Ibid. I , q.14, a.2; I. , q.56, a.1
40
MARECHAL, op. cit., p. 317
56

uma vez e dependente de um dado exterior. Como representar então a atualidade

do objeto e atualidade do sujeito?

Se a nossa inteligência humana fosse posta diretamente frente à

essência das coisas, apresentando cada uma um grau definido de inteligibilidade,

logicamente se conheceria os objetos tais quais são, por uma idéia simples, sem

“composição nem divisão”, ou não se poderia conhecer em absoluto, porque não

se poderia conhecer parcialmente, com perigo de equivocar-se a seu respeito. Ou

melhor, o nosso conhecimento intelectual, ao captar imediatamente os objetos

inteligíveis tendo em vista a inteligibilidade própria, seria simples e infalível

relativamente a cada um deles; caso contrário, não se teria em absoluto

conhecimento algum destes objetos41: “Nas coisas simples, em cujas definições

não se pode intervir, não podemos ser enganos; mas faltamos em não atingi-

las.42”

Assim, não somente diante das essências fisicamente compostas,

se não também diante do que, por natureza, é “simples” e “puramente inteligível”,

nosso conhecimento permanece composto e falível: possível de erro. Isso quer

dizer que a inteligibilidade em si dos objetos constitui talvez um dado indireto,

mas não um dado imediato de nosso conhecimento: nossas representações

intelectuais são todas compostas e divisíveis, sujeitas aos acidentais.

Portanto, é pretensão querer que a atualidade própria do objeto ou

sua inteligibilidade absoluta defina sua inteligibilidade imediata, em relação a nós.

41
Cf. Ibid. p. 319
42
No original: In rebus simplicibus, in quarum definitionibus compositio intervenire non potest, non
possumus decipi; sed deficimus in totaliter non attingendo. (TOMÁS DE AQUINO, Suma
Teológica, I, q.85, a.6, in c.)
57

Sem dúvida, como se havia dito mais acima: “absolutamente existem aquelas

coisas existentes em ato”43.

Mas, de quantos objetos que caem sob nossa afirmação, não é

possível dizer, pura e simplesmente, que são. Neles, com efeito, o ato está

revestido de potência.

E as que não existem em ato existem em potência, em relação ou a Deus


mesmo, ou, à criatura. Em potência ativa ou passiva, ou em potência de
opinar, de imaginar, ou de qualquer outro modo de significar44.

Há várias maneiras de estar em potência. Santo Tomás adota a

divisão e classificação do ente proposto por Aristóteles: “tantos modos de

afirmação, tantos de ser “45.

Sabe-se que a noção de potência na filosofia tomista, que

precisa, e inclusive supera, neste ponto, ao aristotelismo primitivo se divide em

dois graus: um grau inferior a “matéria primeira“ ou a “subjetividade pura“,

elemento potencial das “essências compostas”, principio radical da quantidade e

um grau superior, universal, a essência já simples, oposto à existência como a

potência ao ato.

Sendo assim, a matéria prima considerada em si, isoladamente de

toda a forma, não constitui pois, um objeto legítimo de afirmação. Isso se confirma

em diversas expressões repetidas por Santo Tomás, onde ele afirma que a

43
No original: Simpliciter sunt, quae actu sunt. (Ibid., I, q.14, a.9, in c.)
44
No original: Ea vero quae no sunt actu, sunt in potentia, vel ipsius Dei, vel creaturae,; sive in
potentia activa, sive in passiva; sive in potentia opinandi, vel imaginandi, vel quocumque modo
dignificandi.
(Ibid., I, q.14, a.9, in c.)
45
Ibid., I, q.15, a.1, ad 1m
58

matéria não existe por si, não possui nem inteligibilidade, nem verdade, nem

atividade, nem bondade, nem nada que possa constituir um termo de ação:

A matéria prima, não sendo atual, mas somente potencial, não existe por
si mesma na natureza das coisas; e, por isso, tem mais de concriado que
de criado. Deus tem certamente idéia da matéria, não diferente, porém,
da idéia do composto. A matéria prima, assim como o ente, não existe
senão em potência, assim o bem existe senão em potência. Mas, na
verdade, alguma coisa participa do bem, certamente na mesma ordem ou
aptidão para o bem; e, por isso, não convém a si aquilo que é desejável,
mas aquilo que ele deseja. A matéria prima é mais alguma coisa formada
do que criada46.

Essa deficiência de ser na matéria deve-se antes de tudo, à sua

indeterminação, já que a subsistência ontológica supõe a inteira determinação. No

mesmo sentido, Santo Tomás nega à forma material, substância incompleta,

principio de atuação da essência composta, o privilégio negado também à matéria:

como tal, isoladamente, a forma de um composto não é mais que a matéria.

Assim, pois, como o ser feito e o criado convenham propriamente só ao


ser subsistente, não é próprio das formas o serem feitas nem criadas,
mas o serem concriadas. O que, porém, se faz por um agente natural é
composto, porque é feito da matéria47.

46
No original: Materia prima non existit in rerum natura per se ipsam, cum non sit in actu, sed
potentia tantum. Materia secundum se, neque esse habet, neque cognoscibils est. Habet quidem
materia ideam in Deo, non tamen ab idea compositi. Materia prima, sicut non est ens nisi in
potentia, ita ne bonum nisi i potentia. Sed tamen aliquid participat de bono scilicet ipsum ordinem,
vel aptitudinem ad bonum; et ideo non convenit sibi quod sit appetibile, sed quod appetat. (Ibid., I,
q.7, a.2, ad 3m; I, q.15, a.3, ad 3m.)
47
No original: Et ideo, cum fieri et creari non conveniant priprie nisi rei subsistenti... formarum non
est fieri, neque creari, sed concreatas esse. Quod autem proprie fit ab agenti naturali, est
compositum, quod fit ex materia. (Ibid., I, q.45, a.8, in c.)
59

Nem a matéria nem a forma merecem isoladamente receber os

atributos do ser: só o composto, isto é, a unidade complementar da matéria e a

forma, é verdadeiramente, e pode ser conhecido como objeto.

Os elementos complementares de essência não são, pois,

suscetíveis de receber o atributo somente na relação de toda essência, seja

simples ou composta, se afirma realmente que possui o ser. O conhecimento da

matéria não pode, pois, representar mais que uma abstração de nosso

conhecimento da mesma essência48.

Marechal aqui recorda uma tese especificadamente tomista. Tão

somente de um ser se pode afirmar que sua essência e sua existência sejam

idênticas:

É preciso, portanto, que o mesmo seja dirigido pela essência, que é


oriunda do mesmo para outro fim, assim como o ato para a potência(...)
Como, pois, em Deus nada seja potencial, segue-se que a essência não
seja nele outra coisa que o ser. Sua essência, portanto, é o seu ser49.

Assim, todo ser fora de Deus está mesclado necessariamente de

potência; e o elemento potencial que determina o ato de ser à espécie, responde à

definição de uma essência. A essência finita é ao ser (ou a existência) o que a

potência é ao ato; proporciona ao ato de ser um suporte próximo, que é ao mesmo

48
Cf. MARECHAL, op. cit., p.322
49
No original: Esse est actualitas omnis formae, vel naturae... Oportet igitur quod ipsum esse ad
essentiam, quae est alio ab ipso, sicut actus ad potentiam. Cum igitur in Deo nihil sit potentiale (...),
seguitur quo non sit aliud in eo essentia quam suum esse. Sua igitur essentia est suum esse. (Ibid.
I, q.3, a.4, in c.)
60

tempo, uma delimitação especifica. “Matéria e forma dividem a substância

material, a potência, porém, e o ato dividem o ente comum”50.

Mas, se todo objeto inferior a Deus está composto de essência e

existência na relação de ato e potência, conclui-se que a inteligibilidade própria de

todo objeto inferior a Deus é a de um movimento, síntese de ato e potência e

única síntese logicamente concebível de ser e não-ser.

Todo ‘dever transcendental’ – ou, para empregar a terminologia


propriamente escolástica, toda ‘contingência’ metafísica – implica, de seu,
uma determinação radical frente ao ser, um inacabamento das condições
internas de possibilidade. O objeto contingente, quando é, poderia não
ser, e quando não é, poderia ser: existente, não é simplesmente ser,
senão ‘tal’ ser; inexistente, não é simplesmente ‘nada’, posto que é
possível. Este objeto não apresenta, pois, por si só, à nossa inteligência,
as condições lógicas, seja de uma afirmação plena, seja de uma negação
plena: não desvenda completamente o ‘afirmável’ mais que em uma
síntese superior que o refere a uma condição absoluta de ser, isto é, que
o relacione a este topo, onde a essência alcança a existência e o
possível, o necessário51.

Nesse sentido, a afirmação objetiva e a atualidade do objeto

começam a apresentar-se melhor. Cada objeto é afirmável segundo o grau de sua

participação no Ato puro, Subsistência perfeita. Dessa forma, a matéria prima se

introduz na afirmação em relação à forma, seu ato e a essência mesma - forma

50
No original: Materia et forma dívidunt substantiam materialem, potentia autem et actum dívidunt
ens commune. (TOMÁS DE AQUINO.Summa contra gentes, II, 54.)
51
No original: Todo “devenir transcedental” - o, para emplear la terminología propiamente
escolástica, toda contingencia metafísica – implica, de suyo, una indeterminación radical frente al
ser, un inacabamiento de las condiciones internas de posibilidad. El objeto contingente, cunado es,
podría no ser, y cuando no es, podría ser: existente, no es simplemente nada, puesto que es
posible. Este objeto no presenta, pues, por sí solo, a nuestra inteligencia, las condiciones lógicas,
sea de ua afirmación plena, sea de una, negación plena: no devendrá completamente afirmable
más que en una síntesis superior que lo refiera a una condición absolutade
ser, es decir, que lo relacione a esta cima, donde la essencia alcanza a la existencia y lo posible a
lo necesario. (MARECHAL, op. cit. 325)
61

simples, unidade de matéria e forma, está em potência em relação ao atributo de

existência atual. Isso quer dizer que o mesmo ato existencial de toda essência

finita se manifesta em nossos juízos como um ato precário e imperfeito, o qual

subsiste somente em dependência permanente de uma condição ontológica

suprema, absoluta, isto é, da atualidade pura.

É preciso ainda para a afirmação objetiva do ser, subdividi-lo em

“ser puramente intencional” e em “ser real”, perguntando se o movimento pode

todavia afirmar-se somente no pensamento ou no absoluto.

De uma e outra parte, ao que parece, trata-se de um objeto real

ou de um objeto ideal, a afirmação se regula sobre a atualidade do objeto, mas os

escalonamentos necessários de potência e ato, da afirmação, pertencem

unicamente ao pensamento ou se realizam também, paralelamente, fora do

pensamento52.

Conforme Marechal, no pensamento encontram-se, inicialmente,

“conceitos genéricos”. Estes, essencialmente, indeterminados, permanecem,

segundo sua forma ideal mesma, inseparavelmente afetados do coeficiente de

abstração que assinala sua origem: para acontecer suscetíveis da afirmação de

ser, precisam pelo menos, de uma determinação específica. O gênero pode ser

representado por um conceito preciso distinto, mas numa relação com a espécie,

52
É importante salientar, por conseguinte, que, para Marechal, o ser enquanto tal que constitui,
assim, o termo final, saturativo de nossa inteligência não é o ser abstrato, o ser oposto ao concreto,
o ideal, oposto ao real. Na verdade, o conteúdo, afirmado ou afirmável de nossa consciência, não
é, por si mesmo suficiente, logicamente, como representação pura ideal, oposto ao real . Nossa
afirmação do ser, que, em razão de sua matéria primitiva, se caracteriza, por uma invasão do real,
prolonga-se e completa-se (no implicitamente vivido) pela posição absoluta do Real transcendente:
passividade inicial, posição terminal, todo nosso saber formal se torna inobjetivo e inconsistente, a
não ser que seja referido a estes dois extremos.
62

já que a existência (seja atual, seja possível); não tem idéia própria 53: “Aos

gêneros não pode corresponder uma idéia diferente da de espécie, idéia

significando exemplar; pois, um gênero nunca se realiza a não ser em alguma

espécie”54.

A condição do gênero, no conceito objetivo, recorda a condição da

matéria prima no composto substancial. Na realidade, nossos conceitos explícitos,

de gênero, são conceitos secundários. É necessário volver sempre a tese

essencial do aristotelismo, aquela que centra todo nosso conhecimento do real no

objeto próprio e primário de nossa inteligência discursiva: “O objeto próprio da

inteligência humana é a qüididade da coisa material, que cai sob o sentido e sob a

imaginação”55.

Posto que nossa inteligência não é intuitiva, se faz logicamente

necessário que o primeiro objeto que afete nossas faculdades intelectuais seja

um atributo qüididativo, abstraído de indivíduos materiais, isto é, um conceito

específico. E é, pois, em nossos conceitos específicos, diretos, que está a fonte

onde descobrimos todos nossos outros conceitos objetivos; estes serão conceitos

objetivos, suscetíveis de receber o atributo de ser, somente na medida em que

relacionar-se a uma apreensão específica original.

53
Cf. Ibid., p.326
54
No original: Genera non possunt habere ideam ab idea speciei, secundum quod idea signíficat
exemplar: quia nunquam genus fit nisi in aliqua specie. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I,
q.15, a.3, ad 4m.)
55
No original: Intellectus humani proprium objectum est quidditas rei materialis, quae sub sensu et
imaginatione cadit. (TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentes, I, q.85, a.5, ad 3m.)
63

Portanto, os conceitos genéricos e os conceitos de quantidades

devem, para objetivar-se, ser integrados a um conceito específico, sendo que

nenhum universal pode ser, como tal, “subsistência”, “essência primeira” porque

permanece essencialmente “em potência”. Para receber o atributo de ser atual,

em um juízo categórico, a qüididade abstrata deve despojar-se desta dupla

indeterminação, isto é: deve enquanto representação abstrata, subjetivar-se na

matéria concreta, e ao mesmo tempo, enquanto forma finita, encontrar o

complemento de sua unidade inteligível na sua dependência intrínseca em relação

ao ato puro de ser. Sendo, então, a pura matéria e Ato puro, requeridos para toda

realização atual da qüididade e do objeto possível ou afirmável, se comprova, sem

surpresa, que eles se estendem fora da esfera puramente conceitual, além de

toda “idéia” de nosso entendimento56.

Com efeito, a matéria prima, longe de constituir, em nosso conhecimento,


uma representação justaposta a outras representações, uma espécie de
matéria prima ideal, assinala realmente o limite inferior, extramental, de
nossos conceitos [...] Por outra parte, no limite superior de nossos
conceitos, o Ser puro, unidade suprema, não pode já ser ‘representado’
em nós por uma forma ideal qualquer que lhe convenha em sentido
próprio; para assentar a chave de abóbada de nosso pensamento
objetivo, devemos franquear os limites deste pensamento mesmo e
submergirmos no real por um procedimento que utilize a representação
conceitual sobrepassando-a57.

56
Cf. MARECHAL. op. cit. p.330
57
No original: En efecto, la materia prima, lejos de constituir, en nuestro conocimiento, una
representación yuxtapuesta a otras representaciones, una especie de materia prima ideal, señala
realmente el límite inferior, extramental, de nuestros conceptos, o, si se quiere, el punto crítico
donde expira, para nosostros, el orden intencional. Nadie se representa un tal límite, sino en la
medida en que, físicamente, se sufre su constriccíon. Por otra parte, en el límite superior de
nuestros conceptos, el Ser puro, unidad suprema, no puede ya ser representado en nosostros por
una forma ideal cualquiera que le convenga en sentido propio; para asentar la clave de bóveda de
nuestro pensamiento objetivo, debemos franquear los límites de este pensamiento mismo y
sumergirnos en lo real por un procedimiento que utilice la representación conceptual
sobrepasándola. (Ibid, p.330)
64

O conteúdo afirmado ou afirmável de nossa consciência não se

basta, pois, logicamente, como representação pura. A afirmação de ser a qual se

inicia em nós por uma invasão do real concreto, se prossegue e termina (no

implícito vivido) pela posição absoluta do real transcendente, Ato Puro. Isso nos

leva às condições lógicas e ontológicas do real, e a clareza de que todo o abstrato

é secundário, ou seja, não é, originariamente, mais que a forma imaterial de nossa

percepção de indivíduos concretos. O puramente “pensado”, ainda que, não seja

em nós, mais que mero “possível“, e que esse conhecimento do “possível” não

seja, de nenhuma forma, uma etapa necessária para o conhecimento do

“existente”, o “possível “ nos é dado primitivamente no “existente”. O “existente” ,

portanto, não é inteligivelmente cognoscível mais que por sua relação vivida ao

ato absoluto de ser58.

Mas, de outro lado, sem contar que a metafísica racionalista, em

estrita lógica, conduz ao panteísmo imanente e não resiste à crítica kantiana, o

pensamento nos ultrapassa. Nenhum de nossos conceitos o representa tal como

é.

... a afirmação objetiva, se é indiferentemente aplicável a todas as


essências finitas, sem exigir nenhuma delas nem excluir tão pouco a
nenhuma, obedece, não obstante, enquanto que expressa o grau de
atualidade dos objetos, a uma lei de progressão rigorosa. Com efeito,
afirmar a matéria (na qual não é possível mais que em virtude de nossa
participação física da mesma ), é ao mesmo tempo afirmar a forma, ato
da matéria; afirmar a essência é indiretamente afirmar o esse, ato da
essência; afirmar o esse finito, ato limitado, é afirmar implicitamente o Ser
puro, perfeição necessária do ato; afirmar o Ato puro como condição
racional suprema, como Ideal por excelência é, logicamente, afirmar Ato
puro como realidade absoluta, porque um Ato puro ideal, que não se
assentara como ato puro real, seria uma potência de atuação declarada
em cima do ato59.

58
Cf. CAMPOS. Tomismo Hoje, p.162
59
MARECHAL, op. cit. p.333
65

Segundo Santo Tomás, o valor objetivo ou subjetivo do

conhecimento deve encontrar-se no sujeito mesmo. Um objeto é conhecido

segundo o modo e a medida de sua “interioridade”.

Um sujeito que é o protótipo e o produtor das coisas segundo a

amplitude inteira de seu ser possui em si, eminentemente, a totalidade das

determinações objetivas existentes e possíveis. Mas, uma tal plenitude de

conhecimento não pode pertencer mais que a uma Atualidade pura, pois essa

encerra e domina a infinita extensão do “possível”. Somente em Deus os objetos

conhecidos têm a plena interioridade: a interioridade do efeito em sua causa

adequada. A partir da essência e da existência de Deus podemos medir todas as

coisas. “A inteligência divina é mensurante, não mensurada”60.

O conhecimento divino realiza assim o tipo perfeito de intuição,

criadora de seu objeto. Desse modo, pode-se dizer que a forma das coisas está

prefigurada na inteligência divina, e que a existência das coisas esta

predeterminada na vontade divina. “A inteligência divina se entende a não ser

através de sua própria essência”61. E essa essência divina não é outra que o Ato

puro de ser, pura Idéia subsistente. O conhecer de Deus é a divina essência; e o

Ser divino é o próprio Deus; pois Deus é essência e seu próprio ser62.

60
No original: Intellectus divinus est mensurans, non mensuratus. (TOMÁS DE AQUINO, Summa
contra gentes, I, 44)
61
No original: Intellectus divinus nulla alia specie intelligit quam essentia sua. ( Ibid. I, 53)
62
No original: Intellígere Dei est divina essentia; et divinum esse est ipse Deus; nam Deus est
essentia et suum esse. (Ibid., I, 45, 1)
66

Nessa perspectiva, a inteligência humana, que ocupa o último

degrau, somente não é atualidade pura, mas uma potência sempre em ato: uma

inteligência afetada de passividade.

Assim, não percebemos diretamente, em si mesma, as formas ou

idéias subsistentes, o mundo imaterial não se revela mais que através da analogia

da matéria. E ainda que nossa inteligência participe da Inteligência divina, ela não

goza, de nenhuma maneira, nem em nenhum grau dessa visão objetiva em Deus.

Contudo, uma faculdade não-intuitiva, que não possui em si, por

natureza ou de origem, todos os elementos objetivos de sua atividade

cognoscitiva, deve buscar outro complemento que lhe falta: deve receber

extrinsecamente determinações objetivas, ou seja, deve ser impressionada desde

fora e reagir somente sob a dependência imediata dessa impressão sofrida, o que

é o próprio da sensibilidade.

E, por causa disso, uma sensibilidade não pode ser mais que

material, corporal, porque a recepção externa de uma impressão implica, entre o

agente e o paciente, uma potencialidade na continuidade da matéria63.

Porém, de outro lado, uma faculdade espiritual não pode

apresentar os atributos materiais de uma sensibilidade. Assim, a nossa faculdade

dos conceitos, faculdade do universal , é com certeza uma faculdade espiritual:

sua operação própria a eleva claramente acima da matéria concreta. Mas, agora é

preciso conciliar , na unidade de uma mesma consciência, a espiritualidade

63
Cf. MARECHAL., op. cit., p.339
67

(espontaneidade intelectual) com a passividade material (receptividade sensível )64

Tal conciliação desses atributos só é possível na teoria do

entendimento-agente.65 É necessário de fato, conservar na inteligência imaterial

sua espontaneidade, mas, ao mesmo tempo, é necessário coordenar uma

faculdade receptiva, sensível e material. A faculdade intelectual deve, por

necessidade da natureza, relacionar sua atividade imanente com os caracteres

formais da atividade sensível, o qual se concebe a partir da unidade substancial

estrita de um sujeito sensitivo-racional.

Nossa inteligência possui, pois, por natureza, os princípios


transcendentais que permitem reconstruir uma unidade ‘inteligível em ato’
sobre o modelo de uma representação concreta, que não é inteligível
mais que em potência. O qual eqüivale dizer, na terminologia moderna,
que a inteligência encerra uma ‘condição sintética a priori’ , inquantitativa
e meta sensível, que, sem embargo, não entra no jogo mais que com o
favor de uma cooperação atual da sensibilidade. A cooperação sensível
completa materialmente as determinações transcendentais, inatas à
inteligência, permitindo-lhes assim expressar-se em representações
objetivas66.

A partir da interioridade intuitiva, perfeita, própria do Ato Puro, a

inteligência humana traz em si um modo transcendental de unidade que exige

uma matéria onde aplicar-se. A inteligência humana, em possessão natural, mas

não objetiva, enquanto ser, está limitada extrinsecamente por “coisas em si”

donde deve para passar ao ato objetivo, assimilar-se, por através dos sentidos, as

aportações sucessivas.

64
Cf. Ibid., p.339
65
Cf. Ibid., seç. II, c.3 .p.340
66
Ibid., p.341
68

Mas, em vista que os dados materiais da coisa em si não iguala a

potência à inteligência, na realidade, o que encontramos são conceitos

defeituosos e inacabados. A inteligência, ao produzi-los, não alcança o limite de

sua própria potência.

2.3 - Relação reciproca dos atos primeiros da inteligência


e da vontade

É evidente que este preâmbulo refere-se a toda operação de uma

potência que, ao apresentar uma parte de passividade, deve ser movida a seu

ato ou, como se dizia precedentemente, que por si mesma fica indeterminada

diante da sua diversidade.

Assim, para se tratar o problema inteiro do movimento requerido

por nossas faculdades é necessário considerar os atos da inteligência e da

vontade desde o primeiro momento não menos que os seguintes, tanto do ponto

de vista do exercício quanto do ponto de vista da especificação.

Aplicada esta questão por Santo Tomás as res naturales, isto é,

seja aos agentes inconscientes, seja aos agentes capazes de conhecimento, mais

que operam por modo natural, sem ser guiados atualmente, em sua ação, por um

conhecimento prévio. Na realidade todo movimento impresso nas diversas

potências da alma, se funda nos princípios reciprocamente primeiros: um principio

especificante (forma) que é obra da inteligência, e um principio dinâmico


69

(exercício) que é obra da vontade, de tal maneira que, na relação imanente das

faculdades, inteligência e vontade, não há espaço à prioridade racional67.

Na realidade, este argumento se funda nas propriedades

intrínsecas e objetivas da verdade e do bem, objetos formais respectivos da

inteligência e da vontade, e não sobre as circunstâncias de que a verdade seja

livremente requerida e o bem previsto como tal. A raiz psicológica da

reciprocidade entre as operações consiste, pois, na unidade natural da

inteligência, potência ilimitada de assimilação de formas e da vontade, apetite

universal do bem68.

Tal inclusão mútua dessas duas potências encontra-se, não

somente na alternância de suas operações respectivas, mas também e de forma

mais forte, na relação complementar e interdependente de seus atos primeiros.

Visto que a vontade, como apetite ilícito, regula sua operação pelo

bem objetivamente conhecido, a primeira operação da vontade pressupõe uma

intelecção que a especifique, ou seja, uma condição de natureza anterior a toda

operação. É evidente que a inteligência mesma encontra-se especificada pelo

objeto que ela apreende; mas como esta apreensão intelectual do objeto é

atividade e não pura passividade de uma forma, mas de uma matéria, é

necessário que exista antes do primeiro ato de apreensão objetiva da inteligência

uma determinação formal própria, uma espécie de “ato primeiro formal” que possui

por natureza, isto é, uma causa universal69.

67
MARECHAL, El punto de partida de la metafisica, III, p.382
68
Ibid., p.383
69
Ibid., p.384
70

De fato, essa moção formal é logicamente prévia à impressão

externa, direta ou indireta, do objeto. Resulta quase supérfluo notar que essa luz

inteligível, forma inata de nosso entendimento, designa identicamente este ato

primeiro formal.

Sob o movimento transcendente, nossa inteligência é , pois, base

de uma primeira especificação natural, por meio do qual passará ao ato segundo,

em que as condições extrínsecas de uma operação lhe sejam oferecidas. O ato

primeiro de nossa inteligência consiste nesta especificação primitiva.

Portanto, nossa natureza intelectual, antes de qualquer ato ilícito,

deve apresentar em si mesma, isto é, na unidade correlativa da inteligência e da

vontade consideradas segundo seus atos primeiros respectivos, “uma condição a

priori, uma vez formal e dinâmica, a saber: a capacidade e o desejo, igualmente

ilimitados, do ser (ens)”70.

Assim, a inteligência, ao encontrar um dado externo, passa ao ato

segundo por meio do movimento formal deste dado e sob o impulso permanente

do apetite natural, uma determinação particular, positiva, se encontra subsumida

pela forma universal do ser, a qual é exigência de todas as determinações

possíveis. Aí o objeto se destaca e é representado na consciência. E esta

representação objetiva, traz para a faculdade dinâmica do apetite uma nova

especificação, um novo ponto de partida formal.

À medida que, sob a invasão incessante dos dados exteriores, os fins


parciais e as especificações particulares da tendência racional se
multiplicam, a potencialidade ou a indeterminação inicial desta se reduz.
Porque em uma faculdade espiritual nada se borra; a ciência adquirida

70
Ibid., p.388
71

que persiste em nossa inteligência no estado de ‘hábito’, é, por assim


dizer, uma segunda natureza, interposta entre o ato primeiro e os atos
segundos: é o surdo gravitar do passado sobre a atividade presente. O
‘hábito’ se acrescenta à forma natural da cada potência, para influenciar
por antecipado todo exercício desta71.

Nesse contexto, toda a atividade intelectual mesma é um

“acontecer”, “movimento assimilador”, que se propaga indefinidamente através das

formas acumuladas e conduz à verdade total, fim último da inteligência; tudo o

que concerne a atividade da inteligência se refere à ordem do exercício, ou da

causa final: pois, é obra do apetite racional seja como vontade natural, seja como

vontade propriamente dita, ou como vontade ilícita72.

Ao contrário, tudo o que nestas operações, como também na

atividade voluntária, é determinação, especificação, e não exercício, tudo isto com

certeza, refere-se a ordem da causa formal, nunca ao apetite como tal, o qual não

especifica nada. A vontade, quando impõe a ação determinações formais,

empresta seu dinamismo às determinações formais da inteligência. Assim, a

inteligência, por sua parte, se inserta, como forma, seja natural, seja intencional,

na finalidade ativa do sujeito, neste dinamismo que parte inicialmente do

movimento do Ato criador e que se prolonga na vontade propriamente dita:

“vontade e intelecto se incluem mutuamente”73.

Contudo, exercício e especificação, só se identificam em Deus,

em quem a essência é o operário mesmo e o ser mesmo: em qualquer outro caso

estas funções, ainda que inseparáveis, se opõem relativamente e são, pois,

realmente distintas.

71
Ibid., p.389
72
Cf. MARECHAL., op. cit., p.390
73
TOMÁS DE AQUINO,Suma Teológica, I, q.16, a.4, ad 1m.
72

2.4 - O princípio inicial do dinamismo intelectual

A natureza da potência que revela a análise do movimento como

tal, embasa a correlação que existe entre o primeiro princípio e último da atividade

intelectual. A potência se baseia sempre num ato, que é logicamente prévio, e se

mede pela virtualidade produtora inerente a este ato, pois ela, longe de identificar-

se com o não-ser , designa uma aptidão positiva para o ser, uma exigência de

ser.

Assim, a potência objetiva, a possibilidade de ser, se concebe em

função da potência criadora, isto é, como virtualidade objetiva do ato divino.

Da mesma maneira, a matéria mesma , isto é, a potência subjetiva

intraessencial, princípio potencial do seres quantitativos, se concebe como um

apetite da forma, e, pela forma, como um apetite do ser ou do bem. Um apetite

de ser ou de forma significa ontologicamente a condição criada pelo movimento

prévio de um ser ou de ato.

Ou melhor, potência, é pois, a condição objetiva criada pelo

impulso original do Ato a comunicar-se direta ou indiretamente: no princípio

primeiro de toda potencialidade há uma vontade criadora74.

No exercício de nossas faculdades racionais percebemos a

passagem da potência ao ato e o impulso que ultrapassa o momento presente.

74
Cf. Ibid., p.408
73

Assim, São Tomás reconhece nelas as correlações essenciais a todo acontecer.

Se como foi afirmado o principio primeiro e o fim último são correlativos, logo o

intelecto agente, em um móbil é o impulso recebido do motor, é, portanto, o

principio do movimento75.

Visto que o fim último da atividade intelectual se confunde com o

fim último da atividade voluntária e que essas atividades se complementam

reciprocamente no caminho de todo o seu desenvolvimento como a ‘forma de um

dinamismo’ e o ‘dinamismo de uma forma’, é preciso concluir necessariamente

que essas faculdades racionais nascem de uma origem comum. Buscar o principio

original de uma é buscar o principio original da outra76.

Nossa vontade procede, pois, segundo Santo Tomás, de uma

virtualidade natural. Assim, essa coincide exatamente, no seu pensamento com o

primeiro princípio, a atividade total do sujeito inteligente. E esse dinamismo

radical e natural, que se estende na atividade propriamente voluntária, é o mesmo

precisamente que sustenta, como apetite natural, a atividade especulativa da

inteligência.

Tal dinamismo inicial, tanto intelectual como voluntário, depende

de uma virtualidade que vem pela natureza e que é imposta ao agente. Isso

porque a espontaneidade e a autonomia perfeitas não podem pertencer mais que

um agente cujo o ato não está limitado por nenhuma potência. Sendo o ato de ser

o fundamento de todo ato, a um agente cuja a mesma essência seja o ser,

75
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica,I, q.12, a.1, in c.
76
Cf. MARECHAL., op. cit., p.410
74

somente Deus, por conseguinte, goza de plena espontaneidade e de completa

autonomia.

A potência ao se misturar com o ato e a essência opõe-se

complementariamente ao ser, a espontaneidade é reduzida, ou seja, há aí uma

participação limitada do ser; agentes inferiores ao Ser Absoluto, como a

inteligência e a vontade.

Entretanto, esta inclinação natural, que a vontade tem

originariamente de Deus, não apresenta nenhuma violentação exterior: “mover-se

voluntariamente é mover-se por si mesmo, isto é, a partir de um princípio

intrínseco; mas este princípio intrínseco pode ser de outro princípio extrínseco.”77

Portanto, a autonomia da vontade é real, mas somente parcial e

relativa, já que não exclui o movimento transcendente da causa primeira. Esse

movimento constitui precisamente a virtualidade natural que precede e sustenta

todo ato elícito da vontade. Ela possui um dinamismo natural através de um poder,

em virtude da inteligência por uma moção superior que, dada a universalidade de

seu objeto, não pode ser mais que uma moção divina.

Toda essa teoria do impulso primitivo da vontade representa na

realidade uma aplicação dos axiomas escolásticos que exigem que toda potência

se apoie sobre um ato, onde se mede e fundamente sua realidade, e que toda

potência, enquanto potência não tenha a possibilidade de atuar-se por si só. Se

77
No original: Moveri voluntarie est moveri ex se, id est a principio intrinseco; sed illud principium
intrinsecum potest esse ab alio principio extrinseco. (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica,I,
q.105, a.4)
75

requer, pois, um ato como fundamento último da toda possibilidade ontológica e

como princípio primeiro de toda atuação. Logo, um ato somente realiza esta dupla

condição universal, o Ato Puro e simples, Deus. Nossa natureza intelectual, como

princípio radical de atividade imanente, é, pois, uma participação finita dessa

atualidade infinita.

Nesse ponto, considera agora Marechal essa atividade na

perspectiva da forma absolutamente primitiva onde o ato primeiro intelectual é a

forma universal e abstrata de ser.

Nessa condição, a forma não representa ainda um objeto, nem

sequer virtual, mas somente a forma de uma virtualidade assimiladora, uma

condição formal a priori que regula nossa apreensão de objetos eventuais. Para

objetivar-se na consciência, é preciso que encontre, em primeiro lugar, uma

matéria sensível, um inteligível em potência. Mas, de onde vem ao sujeito

inteligível este princípio formal, que condiciona todas suas intelecções

particulares?78 Para entendermos o que consiste esse movimento transcendente é

preciso reconhecer na base mesma de nossas intelecções sucessivas, um poder

ativo , sempre em ato, o entendimento-agente. Santo Tomás, ao refutá-lo mostra

que esse deve ser inerente a cada inteligência, visto que a atuação universal e

permanente de nossas inteligências imperfeitas, isto é, a atualidade mesma do

entendimento-agente, sua espontaneidade natural, não se concebe mais que pela

influência incessante de uma atividade superior, única e perfeita. O entendimento-

78
Cf. MARECHAL, op. cit., p.415
76

agente leva os indivíduos à participação da Inteligência Pura, Ato Supremo e

Primeiro.

Contudo, pois, algo há que represente, em nossa inteligência, a

participação no poder intuitivo da inteligência absoluta, esta é posse virtual dos

primeiros princípios, dos princípios do ser. É pela intelecção imediata, ou melhor

pela intuição dos primeiros princípios que nossa razão, discursivamente e não

discernindo o inteligível mais que no sensível, participa em algo da simplicidade da

inteligência pura79.

No entanto, esses primeiros princípios do ser não são

encaminhados de fora através da experiência sensível, mas essa somente os

levam a tomar corpo nas representações objetivas. E , ao mesmo tempo, isso é

realizado em nós analogamente e afastado da inteligência absoluta, onde se

compreende a plenitude do ser e se realiza a verdade primeira e perfeita.

A natureza mesma da faculdade intelectual e seu poder de

conhecer inteligivelmente. Antes de toda atividade elícita, recebe a Inteligência

Absoluta. O que quer dizer que a natureza seja ativa ou passiva, é uma

propriedade essencialmente ligada à imaterialidade da forma. A forma é de si

infinitamente acolhedora e é translúcida não menos que luminosa; toda opacidade

do inconsciente provém da matéria. De Deus recebemos nossas faculdades

intelectivas, ou seja, a substância imaterial da forma que nos anima80.

Sua determinação formal primordial, primeiramente simples lei de

sua potência aquisitiva ilimitada, mais que no contato com os dados externos, vai

79
Cf. Ibid., p.418
80
Cf. Ibid., p.419
77

projetando-se imediatamente como um ato de inteligibilidade. Tal forma objetiva

primordial refere-se aos primeiros princípios inteligíveis, na condição de um

implícito vivido: único movimento intelectual que não tem sua fonte na passividade

de nossa inteligência imperfeita frente a objetos externos.

Assim, segundo Marechal e fundamentado em Santo Tomás é

possível afirmar que o homem recebe alguma participação da verdade divina, das

idéias divinas, admitindo não mais que uma participação limitada aos “primeiros

princípios inteligíveis” - aos atributos transcendentais do ser81.

Aliás, essa participação, significa uma disposição natural de

ordem dinâmica necessitada de um complemento material, em que os “primeiros

inteligíveis” se imprimem primeiramente em nosso eu, como a forma vivida de uma

tendência, isto é, revelando-se, por conaturalidade, nos objetos mesmos que

compõem o exercício concreto desta tendência.

Um absoluto sustém nosso ser, um princípio radical está na

origem de nossos atos, um ato precede toda forma. Numa metafísica existencial

não se pode então parar aos aspectos formais da vida, mas é preciso ir até a

procura e determinar sua conduta diante da existência da causa universal.

Partindo da forma, é preciso progredir até a afirmação do Ato puro.

81
Ibid., p.419
78

CAPÍTULO III

A QUESTÃO TRANSCENDENTAL KANTIANA

O eu empírico está relacionado com o eu transcendental de igual

modo que a apercepção empírica está com a apercepção pura ou originária. O

primeiro está constituído pelas determinações concretas do sentido íntimo; o

segundo se confunde com o eu penso, suprema unidade a priori de toda

representação consciente. O primeiro se inserta no tempo e, por conseguinte,

pertence à série dos fenômenos: é a única expressão objetiva do segundo, que

segue sendo, por si mesmo, pura espontaneidade.

A doutrina que acabamos de resumir suscita um conjunto de

problemas: o principal concerne à unidade destes dois eus pela consciência.

Mas, como pode o eu do eu penso ser distinto do eu que se intui a

si mesmo (eu empírico), e, sem embargo, não formar com ele mais que um

mesmo sujeito? Em outros termos: como pode dizer que eu, enquanto inteligência

e sujeito pensante, me conheço como objeto pensado, somente de igual modo

que conheço os demais fenômenos, ou seja, não tal como sou ante o

entendimento segundo minha realidade metasensível, senão tal como me apareço

como fenômeno?
79

Diante desta questão, de um lado, o eu empírico é posto no plano

dos fenômenos, é um eu-objeto. Mas o fundamento imediato do fenômeno não é

outro que a coisa em si. O eu profundo, transcendental, princípio e sustento do eu

empírico, se confunde, deste ponto de vista, com a coisa em si. De outro lado,

Kant supõe, entre o eu transcendental e o eu empírico, uma relação de identidade,

segundo sua subjetividade comum, isto é, o sentido interno dominado pelo eu

transcendental, é o eu afetado por si mesmo: o eu determinante e o eu

determinável são dois aspectos do mesmo eu. Mas então, se o eu empírico está

em mim como meu – e mais ainda se é percebido como meu – segue sendo puro

fenômeno? Para aparecer como um eu, ou seja, como uma agrupação qualquer

de fenômenos, não deve oferecer a consciência imediata – em uma espécie de

percepção reflexiva, equivalente a uma intuição intelectual – o eu superior,

originário e determinante, ademais das representações concretas do sentido

interno?

Kant responde, descartando a intuição intelectual, mas não toda

capacitação metaempírica do eu:

Na unidade sintética originária de apercepção (função suprema do eu


transcendental), tenho consciência de mim, mas não tal como apareço,
nem tal como sou em mim mesmo (quer dizer, nem como fenômeno nem
como coisa em si): somente tenho consciência de que existo. Esta
representação é um pensamento que reduz os elementos diversos de
toda intuição possível a uma unidade da apercepção, um determinado
modo de intuição em virtude do qual são dados estes elementos diversos,
[...] a determinação de minha existência somente pode ter lugar segundo
a forma do sentido interno e de acordo com a maneira particular em que
os elementos diversos que enlaço vem dados na intuição interna; por
conseguinte, não me conheço de modo algum como sou unicamente
como me apareço a mim mesmo. Assim, pois, eu existo como uma
80

inteligência que tem simplesmente consciência de sua faculdade de


síntese82.

Na verdade, comenta Marechal, que Kant não exclui a percepção

metasensível de nossa própria existência - toda determinação formal da essência:

a inteligência tem simplesmente consciência de sua faculdade de síntese; quer

dizer, que a inteligência se percebe a si mesma, não certamente como fonte

permanente de unidade – o qual equivale a um conhecimento da sustância do eu

– senão como ato transcendental de síntese, ato superior ao tempo, ao que

determina a priori a elaboração do eu empírico. Firmo a existência, enquanto

percebo, através das agrupações espaço-temporal do eu empírico, o exercício

atual de uma síntese a priori. “Eu: simples representação, por si mesma vazia de

todo conteúdo, de que nem sequer se pode dizer que seja um conceito, senão que

é uma simples consciência que acompanha a todos os conceitos.”83

Portanto, o eu abarca todos os fenômenos, e não somente os do

sentido interno; porque todos os fenômenos pertencem, desde o momento em que


82
No original: En la unidad sintética originaria de la apercepcíon [ funcíon suprema del yo
transcendental], tengo conciencia de mi, pero no tal como me aparezco, ni tal como soy en mi
mismo [ es decir, ni como fenômeno ni como cosa en si]: solamente tengo conciencia de que
existo. Esta representacíon es un pensamiento que reduce los elementos diversos de toda intuicíon
posible a la unidad de la apercepcíon, un determinado modo de intuicíon en virtud del cual son
dados estos elementos diversos [...] La determinacíon de mi existencia sólo puede tener lugar
según la forma del sentido íntimo y de acuerdo com la manera particular en que enlazo vienen
dados em la intuicíon interna; por consiguiente, no me conozco en modo alguno como soy sino
únicamente como me aparezco a mí mismo. Así , pues, yo existo como una inteligencia que tiene
simplemente consciencia de su faculdad de sintesis. (MARECHAL, Joseph. El punto de partida
de la Metafísica, II, p.105)
83
No original: Yo: simple representacíon, por sí misma vacía de todo contenido de la que ni
siquiera se puede decir que sea um concepto, sino que es una simple conciencia que acompaña a
todos los conceptos. (KANT, KRV, B, p.404)
81

emergem, à unidade universal da consciência. Se estabelece, dessa forma,

distinção de graus nesta pertença – o grau da sensação externa, o do sentido

interno, o dos conceitos do entendimento – nenhuma destas diferenças de grau

corresponde a separação eu – não-eu. Portanto, é na órbita da consciência e, por

assim dizer, do eu mesmo, de onde será preciso descobrir a oposição eu – não-

eu, que então adquire os caracteres de uma oposição imanente de sujeito e

objeto.

No entanto, a união dos dois eus em um eu pela consciência do

sujeito não é um problema tão fácil de resolver. Assim, Kant, de acordo com o

sentido comum, começa a supor o resultado do problema. Coloca de golpe o

desenrolar da reflexão crítica no marco de um individual, todavia indiviso. Afirma e

reafirma, sem provas, a radical unidade do sujeito sensitivo-racional.

O homem consciente da mudança (de seu pensamento), pode ainda


pretender que é um somente e o mesmo sujeito (enquanto a alma)? A
questão é impertinente; porque não adquire consciência dessas mudança
senão representando-se a si mesmo como um sujeito idêntico na
diversidade de seus estados. Certamente, o eu do homem é duplo
enquanto a forma (que dizer, enquanto ao modo de representação que
dele se faz), mas não enquanto a matéria84.

Para demonstrar, com absoluto rigor crítico, esta proposição (que

afirma algo mais que a unidade lógica da consciência) é necessário supor na

atividade intuitiva do eu empírico uma capacitação direta ou indireta do princípio

sintético originário, (do eu determinante) que a impõe.

84
No original: El hombre consciente ( de los) cambios ( de su pensamento), ¿ puede aún pretender
que es un solo y el mismo sujeto ( em cuanto al alma)? La cuestíon es impertinete; porque no ha
adquirido conciencia de esos cambios sino representándose de sus estados. Ciertamente, el yo del
hombre es doble em cuanto a la forma (es decir, en cuanto al modo de representacíon que de él se
hace), pero no en cuanto a la materia. (KANT, Antropologia, § 4, nota final)
82

Na perspectiva marechaliana, o eu transcendental deve conceber-

se, não somente como unidade lógica de nossas apercepções particulares, nem

unicamente como pedra angular do edifício das condições a priori, senão como

um pensamento capaz de captar-se a si mesmo, em sua ordem, segundo o

atributo essencial que o constitui em princípio originário de síntese. Ou seja, o eu

transcendental deve conceber-se, não somente como pensamento, senão como

espírito. Sobre o plano mesmo do eu penso (excluindo o plano da coisa e dos

fenômenos), o eu sou, essência e existência conjuntamente, se introduz aqui na

filosofia transcendental.

Mas esta interpretação hipotética sobrepassa, evidentemente, a

doutrina consignada na Crítica da Razão Pura.

Outra questão: a consciência que, segundo Kant, adquire-se do eu

transcendental como pura existência deve traduzir-se em uma afirmação

categorial ou metacategorial? Somente poderia ser categorial se a existência

afirmada estivesse representada no tempo como fenômeno, mas então, seria a

existência de um eu empírico, não de um eu transcendental. Assim, a Crítica nos

propõe a afirmação metacategorial de uma existência desprovida de toda

determinação categorial de essência e de modalidade. Neste sentido, Kant

escreve assim em 1793:


83

...do sujeito aperceptivo, do eu lógico enquanto representação a priori,


não há nada mais que conhecer: nem sua essência, nem sua
constituição natural; este eu é (para nós) algo análogo a (o que seria) a
substância, despojada de todos os acidentes que lhe foram inerentes, e
subtraída assim absolutamente a todo conhecimento ulterior, posto que
os acidentes seriam precisamente os que nos fariam cognoscível85.

Deste modo, conhecer o eu, abstração feita de toda determinação

particular, é conhecer o sujeito como é em si na pura consciência, não como

receptividade, senão como pura espontaneidade. A consciência do eu

transcendental se obtém, pois, por uma espécie de redução fenomenológica a

partir do eu-objeto (do eu empírico).

3.1 - A bipolaridade do objeto

Não há conhecimento objetivo sem uma intuição86 em virtude da

qual nos seja dado um objeto. A mesma declaração se faz no começo da Lógica

transcendental. Para conhecer um objeto não basta pensá-lo mediante conceitos,

é necessário ter intuição dele.

“O objeto é aquele cujo conceito reúne os elementos diversos de

uma intuição dada (literalmente: aquele em o conceito do qual está unificado o

diverso de uma intuição dada)”87.

85
No original: ...del sujeto aperceptivo, del yo lógico en cuanto representacíon a priori, no hay nada
más que conocer: ni su esencia, ni su constituicíon natural; este yo es [ para nosostros] algo
análogo a [ lo que seria] la sustancia, despojada de todos los accidentes que le fueran inherentes,
y sustraída así absolutamente a todo conocimiento ulterior, puesto que los accidentes serían
precisamente los que nos harían cognoscible. (MARECHAL, op.cit., p.112)
86
A intuição em Kant significa o modo como se refere imediatamente aos objetos e ao qual tende
como um meio de pensamento.
87
MARECHAL, op.cit. , p.114
84

Portanto, para constituir um conhecimento objetivo, é necessário

que um conteúdo intuitivo – no homem, um conteúdo de intuição sensível

(receptiva) – seja unificado no conceito, quer dizer, referido, mediante alguma das

categorias, à unidade da consciência. Pode-se ver que a definição kantiana

suspende o objeto de consciência entre dois pontos fixos e, por assim dizer, entre

dois pólos opostos: por um lado, através das categorias a unidade suprema do eu;

por outro, através da intuição sensível.

Nossa natureza quer que a intuição não possa ser nunca (para nós),
senão sensível, quer dizer, não contenha outra coisa que a maneira como
somos afetados pelos objetos [...] Sem a sensibilidade, nenhum objeto
nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado Os
pensamentos sem matéria são vazios; as intuições sem conceitos são
cegas88.

Portanto, Kant ao opor a intuição e o pensamento formal, pensa

menos em caracterizá-los, respectivamente, pela presença ou a ausência de um

conteúdo representativo, que em subtrair uma determinada qualidade de evidência

possuída pelo conteúdo intuitivo em virtude de sua mesma origem. Na intuição

88
No original: Nuestra naturaleza quiere que la intuicíon no pueda ser nunca ( para nosostros), sino
sensible, es decir, no contenga outra cosa que la manera como somos afectados por los objetos
[...] Sin la sensibilidad, ningún objeto nos seria dado; sin el entedimiento, ninguno seria pensado.
Los pensamientos sin materia son vacios; las intuiciones sin conceptos son ciegas. ( KANT, KRV,
A, p.51; B, p.75)
85

intelectual o conteúdo (determinado completamente a priori, como essência e

existência), se impõe de maneira apodíctica, como produção autônoma do sujeito.

Na intuição sensível, o conteúdo é dado primitivamente; se impõe também, mas

desde fora, por uma coação obscura. Assim, pois, de uma e outra parte, a intuição

estabelece originariamente um contato vital, um vínculo existencial entre a

consciência formal e algo absoluto, indiscutível, que reside, por cima e por fora da

hierarquia das formas. A intuição sensível é, pois, fator de objetividade, como

ministradora de conteúdo quanto como apreensora de realidade, ou seja, como

reflexo subjetivo de uma coisa em si.

Semelhante interpretação de diversos textos kantianos é plausível,

à condição de que não se introduza a coisa em si, como termo, nas relações de

verdade objetiva de que pode ocupar-se a Crítica; mas nada impede que essas

relações imanentes tenham um ponto de vinculação extrínseco e absoluto na

coisa em si.

Se os objetos de que se ocupa nosso conhecimento fossem coisas em si,


não poderíamos ter deles conceitos a priori. Efetivamente, de onde os
sacaríamos? [...] Pelo contrário, se não podemos entendê-los de modo
algum mais que com os fenômenos, não somente é possível, senão
necessário, que determinados conceitos a priori precedam ao
conhecimento empírico dos objetos. Com efeito, como os fenômenos,
constituem um objeto que somente existe em nós, posto que uma pura
modificação de nossa sensibilidade nunca se encontra fora de nós. Agora
bem, esta mesma consideração, a saber, que todos os fenômenos em
questão, e consequentemente todos os objetos de que podemos ocupar-
nos, residem em mim, quer dizer, são determinações de meu eu idêntico
faz ressaltar a necessidade de uma unidade perfeita destes fenômenos
em uma só e a mesma apercepção. Mas nesta unidade do conhecimento
86

possível consiste precisamente a forma de todo conhecimento de objetos


(aquele em virtude do qual o diverso é pensado como pertencente a um
objeto).89

O modo segundo o qual o diverso da representação sensível

(intuição) pertence à unidade de uma consciência precede, pois, a todo

conhecimento objetivo, como sua forma intelectual, e constitui um conhecimento

formal a priori de todos os objetos em geral, enquanto objetos pensados

(categorias). Assim, pois, os conceitos puros do entendimento são possíveis a

priori e inclusive necessários, por relação à experiência. Isso pela razão de que

nosso conhecimento não abarca senão fenômenos, cuja possibilidade reside em

nós, e cujo encadeamento e unidade (na representação de um objeto) unicamente

se encontram em nós. Portanto devem preceder a toda experiência, fazendo-a

primeiramente possível enquanto a forma90.

O tom idealista desta explicação não pode deixar de impressionar.

Afirma-se, não somente que o objeto está constituído por fenômenos, senão que

as condições que erigem o fenômeno em objeto, dentro da imanência do sujeito,

são as mesmas que referem esses fenômenos à unidade do eu aperceptivo: os

89
No original: Si los objetos de que se ocupa nuestro cooncimieto fuesen cosas em si, no
podríamos tener de ellos conceptos a priori. Efectivamente, ¿ de dónde los sacaríamos? [...] Por el
contrario, si no podemos entendérnoslas em modo alguno más que com los fenómenos, no sólo es
posible, sino necesario, que determinados conceptos a priori precedan al conocimiento empíricode
los objetos. En efecto, como fenómenos, constituyen un objeto que sólo existe em nosostros,
puesto que uma pura modificacíon de nuestra sensibilidad nunca se encunetra fuera de nosostros.
Ahora bien, esta misma consideracíon, a saber, que todos los fenomenos en cuestíon, y
consiguintemente todos los objetos de que podemos ocuparnos, residen en mí, es decir, son
determinaciones de mi yo idéntico, hace resaltar la necesidad de una perfecta de estos fenómenos
en una sola e la misma apercepcíon. Pero en esta unidad del conocimiento posible [ el subrayado
es nuestro] consiste precisamente la forma de todo conocimiento de objetos (aquello en virtud de lo
cual lo diverso es pensado como perteneciente a un objeto). KANT, KRV, A, p.129.
90
Cf. Ibid., A, p.130
87

fenômenos constroem objetos porque encontram no sujeito consciente as

condições a priori (permanentes) de sua própria possibilidade como fenômenos.

Na unidade da consciência possível consiste a forma de todo

conhecimento de objetos, isto é, aquele em virtude do qual o diverso da

sensibilidade é pensado como pertencente a um objeto.

Assim o objeto imanente, ainda quando exija um conteúdo de

origem intuitiva, recebe sua forma de objeto unicamente da espontaneidade

intelectual do sujeito. Os Prolegômenos, apesar da visível preocupação por

apartar a acusação de idealismo, contém mais de uma passagem que refere de

maneira especial à objetividade do objeto, à unidade superior da apercepção.

Assim atesta, entre outros, este texto:

Toda experiência contém, ademais da intuição sensível pela que algo


vem dado, o conceito de um objeto (que seja) dado como fenômeno
nessa intuição: há, portanto, conceitos de objetos em geral que, como
condição a priori, servem de fundamento a todo conhecimento da
experiência91.

Pensar em geral algo como objeto é assim a função dos conceitos

a priori. Também as categorias se definem como conceitos de um objeto em geral,

mediante os quais a intuição sensível do dito objeto é considerada como

determinada por relação a uma das funções lógicas do juízo.

91
No original: Toda experiencia contiene, además de la intuicíon sensible por la que algo viene
dado, el concepto de un objeto ( que sea) dado como fenómeno en esa intuicíon: hay, por tanto,
conceptos de objetos en general que, como condicíon a prori, sirven de fundamento a todo
conocimiento de experiencia. (KANT, KRV, A, p.93; B, p.126)
88

Isso resulta na compreensão de que o entendimento é

essencialmente uma faculdade objetivadora, que põe o objeto em gênero; que a

intuição sensível, captação puramente material de uma realidade em si, não

oferece a nós conhecimento do objeto em geral mais que uma diversidade

particularizante.

Isso apóia-se na observação da estreita relação que Kant

estabelece entre a objetividade e a universalidade de um conteúdo de

consciência. A representação sensível se objetiva subordinando-se a um conceito

universal: a universalidade é sinal de objetividade.

Estes últimos não exigem nenhum conceito puro do entendimento,

senão unicamente o vínculo lógico que associa as percepções na unidade de um

sujeito pensante. Os primeiros, pelo contrário, exigem sempre, as representações

de uma intuição sensível, conceitos especiais, originários do entendimento, que

fazem precisamente que o juízo da experiência seja objetivamente válido. Todos

nossos juízos são primeiramente simples, juízos de percepção, válidos para nós

somente, isto é, para nós enquanto sujeitos; unicamente depois os assinalamos a

uma nova relação – relação a um objeto – e pretendemos que (o juízo) seja válido,

não somente para nós em qualquer tempo, senão também para todos.

Efetivamente, se um juízo concorda com um objeto, todos os

juízos pronunciados sobre esse mesmo objeto devem assim concordar entre si;

deste modo, o valor objetivo do juízo da experiência não significa outra coisa que

o valor universal e necessário do juízo. Mas inversamente, se há alguma razão

para considerar um juízo como universal e necessário, deve-se, por ele mesmo,
89

reconhecer que é objetivo, quer dizer, que não expressa somente a relação de

uma percepção a um sujeito, senão uma determinação constitutiva de um objeto92.

Desta forma, a universalidade e a necessidade de um juízo, seu

valor transubjetivo é independente dos sujeitos particulares. O valor transubjetivo

funda-se, no sujeito transcendental, na aprioridade, fonte de universalidade; esse

mesmo valor transubjetivo está fundado, fora do sujeito, nas coisas em si, único

fundamento (ontológico) concebível da verdade transubjetiva dos juízos.

Consequentemente, a coisa em si aparece aqui como a ratio essendi postulada

pela universalidade do conceito objetivo.

Assim, pois, vemos que, na noção kantiana de objeto, se verifica

mais de uma vez um desprendimento do centro de atenção para o pólo superior,

aperceptivo. Este passo parece tanto mais significativo quanto a objetividade do

conceito puro, não somente pela relação do conceito a uma intuição empírica

possível, senão também, de maneira mais próxima, pela relação do conceito das

intuições a priori de espaço e tempo, logicamente prévias a toda intuição empírica.

Este aspecto do problema do a priori sensível ocupará nossa atenção

posteriormente.

3.2 - Subsunção formal e ato sintético

Segundo Marechal a idéia de subsunção, quer dizer, uma

concepção essencialmente formal e lógica do transcendental, triunfa em toda

linha. Mas a Dedução Transcendental da segunda edição da Crítica reassume e


92
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, II, p.121
90

reforça o tema da atividade sintética. É interessante investigar o princípio e o

alcance desta viagem.

O princípio não é outro que essa absoluta primazia da síntese

sobre a análise: toda unidade analítica pressupõe uma unidade sintética

correspondente; e a unidade analítica da apercepção pressupõe uma unidade

sintética da apercepção; se a unidade analítica é absolutamente universal, a

unidade sintética será primitiva, originária.

A síntese de que aqui se trata, é considerada já como exercício

atual da síntese. O produto concreto da síntese é o primeiro que parece sob a

consciência, que abstrai dela a forma de unidade; mas esta abstração – que é

uma reflexão – não é possível se a forma de unidade não resulta, em última

análise, de uma condição a priori puramente sintética, que Kant não duvida em

chamar, na linguagem do dinamismo, ação, atividade do entendimento, ato da

espontaneidade do sujeito93.

A categoria pressupõe o enlace, isto é a representação da

unidade sintética do diverso. Efetivamente, todas as categorias se fundam em

determinadas funções lógicas de nossos juízos; nestes já é pensado um enlace

e, por conseguinte, uma unidade de conceitos dados. Portanto, é preciso buscar

esta unidade, ali onde reside o princípio de unidade dos diferentes conceitos no

seio dos juízos; noutras palavras: o princípio da possibilidade do entendimento,

desde o ponto de vista de seu uso lógico.

93
Cf.Ibid., p.125
91

Assim, pois, a função sintética deve dominar, conjuntamente, o

uso lógico e o uso transcendental do entendimento. A unidade sintética da

apercepção deve suspender todo uso do entendimento, porque este poder

(sintético) é o entendimento mesmo.

Na concepção marechaliana, Kant traça com claridade a

topografia das funções do entendimento, colocando o ato sintético na cúspide.

O princípio (da unidade sintética, necessária da apercepção) não é,


aplicável a todo entendimento possível, senão somente aquele cuja pura
atividade aperceptiva, exercida na representação do Eu sou, não produz
todavia nenhum conteúdo diverso. Um entendimento, no qual o diverso
da intuição seja dado pela simples consciência de si (em outros termos)
um entendimento em que a representação realizaria, ao mesmo tempo,
na existência, os objetos dessa representação; semelhante entendimento
não necessitaria para nada de um ato sintético particular que reduz o
diverso à unidade da consciência.94

Neste contexto, o (enlace) é um ato de espontaneidade da

faculdade representativa; e, posto que é preciso chamar a esta espontaneidade

entendimento, para distingui-la da sensibilidade; todo enlace, seja ou não

consciente, já abarca elementos diversos da intuição ou diversos conceitos; e seja

a intuição sensível ou não, todo enlace é um ato do entendimento. Este ato é

denominado síntese, para dar a entender assim que não se pode representar

nada como compreendido na unidade do objeto sem uni-lo antes no entendimento.

A síntese é a única que não pode ser-nos proporcionada pelos objetos, senão

somente pelo sujeito mesmo, posto que é um ato de sua espontaneidade. É fácil

94
No original: El principio (de la unidad sintética necesaria de la apercepcíon) no es, empero,
aplicable a todo entendimiento posible, sino sólo a aquel cuya pura actividad aperceptiva, ejercida
en la represenrtacíon del Yo soy, no produce todavia ningun contenido diverso. Un entedimiento,en
el cual lo diverso de la intuicíon sería dado por la simple conciencia de si (en otros térrminos) un
entendimiento en el que la representacíon realizaria, al mismo tiempo, en la existencia, los objetos
de esa representacíon; semejante entendimiento no necesitaria para nada un acto sintético
particular que redujese lo diverso a la unidad de la conciencia. (Ibid., p.128).
92

observar aqui que este ato deve ser originariamente um e aplicar-se por igual a

toda síntese, e que a decomposição, a análise, que parece ser seu contrário, a

supõe sempre.

Este texto faz a aplicação do que precede:

Portanto, tenho consciência de um eu idêntico, pela relação à diversidade


das representações que me são dadas em uma intuição, posto que
chamo minhas a todas essas representações, que não constituem mais
que uma só (unidade analítica). Agora bem, isto eqüivale a dizer que
tenho consciência de uma síntese necessária a priori destas
representações, e isso é o que constitui a unidade sintética originária da
apercepção, a qual encontram-se submetidas todas as representações
que me são dadas, mas devendo reduzir-se a ela por meio de uma
síntese95.

Desta forma, as representações, pelo fato de estar presente na

consciência, encontram-se já submetidas à unidade sintética originária da

apercepção, mas que, para ser pensadas objetivamente, devem ser

explicitamente reduzidas a essa unidade originária, em uma síntese consciente.

Esta síntese aclaradora resulta de uma reflexão do entendimento sobre o

processo sintético, profundo e obscuro, que assegura diante das representações

a consciência dotada de unidade.

Em todo sujeito consciente, a unidade lógica geral convêm

indistintamente a qualquer conteúdo de pensamento. De maneira semelhante, a

unidade do eu, como centro universal de referência dos conteúdos de consciência,

95
No original: Por tanto, tengo conciencia de un yo idéntico, por relacíon a la diversidad de las
representaciones que me son dadas en uma intuicíon, puesto que llamo mías a todas esas
representaciones, que no constituyen más que una sola (unidad analítica). Ahora bien, esto
equivale a decir que tengo conciencia de una síntesis necesaria a priori de estas representaciones,
y éso es lo que constituye la unidad sintética originaria de la apercepcíon, a la cual se encuentram
sometidas todas las representaciones que me son dadas, pero debiendo reducirse a ella por medio
de una síntesis. (KANT, KRV, B, § 16, p.135-6)
93

pertence o mesmo a um entendimento intuitivo. Em compensação, a unidade

analítica e a unidade sintética originária da apercepção, se encontram sujeitas a

aquisição de um dado múltiplo. Por conseguinte, ao exercício de uma

sensibilidade não pode convir um entendimento intuitivo, criador de seu objeto. A

função sintética tomando aqui o termo síntese em sua mais ampla acepção, segue

sendo peculiar de um entendimento discursivo; a unidade sintética que produz

denota o caráter fenomênico do objeto assim unificado. Esta discursividade não

deve ser, por necessidade absoluta, espaço-tempo, ainda quando seja na

consciência humana. O princípio mesmo da unidade sintética aperceptiva tem um

alcance radical, sendo que não pode ser de modo algum restringido por nenhuma

classe de dados que tenha de sintetizar.

Neste sentido, Kant não nos oferece mais que um caminho destas

funções superiores de unidade, cuja pura possibilidade resista à necessidade

lógica, a saber: a intuição intelectual. À medida que a idéia de síntese,

primeiramente confinada ao plano da imaginação, invade o nível das categorias, o

plano superior da apercepção, onde a unidade aperceptiva suprema se revela

como atividade aperceptiva originária, o juízo se converte no ato mesmo da

síntese categorial dos fenômenos; o ato que os refere à unidade objetiva da

consciência. Então, a função objetivadora concentra-se no ato sintético: diante dos

elementos estruturais do juízo, somente a cúpula expressa a condição

transcendental que faz com que a unidade formal dos termos seja objetiva, mais

que subjetiva 96.

96
Cf. MARECHAL.op.cit.p.134
94

Ainda que não se negue a necessidade de um dado de intuição

sensível para constituir um objeto, se presencia que o valor objetivo será buscado,

cada vez mais, na universal necessidade das condições a priori da representação

e, consequentemente, dependerá, no entanto da origem do conteúdo submetido à

síntese, quanto à prioridade absoluta do ato sintético que impõe uma forma ao

conteúdo. Assim, o objeto é de tipo dinâmico, e a síntese objetiva do dado

adquire, o objeto imanente com caráter de um devir.

3.3 - Significação transcendental do movimento

O devir, isto é, movimento no sentido mais amplo: é aqui um termo

inquietante, quando se pronuncia a palavra crítica. Kant confessa que durante

muito tempo se perguntou se a noção de movimento pertencia à filosofia

transcendental. Ele assinala inclusive a noção de espaço e tempo como uma das

fontes do método dialético inventado por Fichte e organizado por Hegel.

O movimento de um objeto no espaço não pertence a uma ciência pura


nem, por conseguinte, à geometria; porque não podemos saber a priori,
senão unicamente por experiência, que algo é móvel. Mas o movimento
como descrição de um espaço é um ato puro da síntese sucessiva
realizada, pela imaginação produtiva, entre os elementos diversos
contidos na intuição exterior no geral, e (enquanto tal) não pertence
somente à geometria, senão também à filosofia transcendental97.

97
No original: El movimiento de un objeto en el espacio no pertenece una ciencia pura ni, por
consiguiente, a la geometria; porque no podemos saber a priori, sino únicamente por experiencia,
que algo es móvil. Pero el movimiento como descripcíon de un espacio es un acto puro de la
síntesis sucesiva realizada, por la imaginacíon productiva, entre los elementos diversos contenidos
en la intuicíon exterior en general, y (en cuanto tal) no pertenece solamente a la geometria, sino
tambíen a la filosofia transcendental. (KANT, KRV., B, § 24, p.155)
95

Quer ele dizer que, a diferença do movimento dos corpos, de que

não temos mais que uma representação empírica, a síntese pura do espaço

segundo o tempo desenrola em nós – com a ocasião de toda construção espacial

– um movimento de determinações metaempíricas cuja realidade, como

determinação transcendental do sujeito, nos é dada a priori. Nesta ocasião,

recebemos do mesmo Kant a confissão reflexiva da sólida realidade do

movimento, não certamente como modificação ontológica de um sujeito-sustância,

senão como processo necessário de atuação do sujeito transcendental.

No fundo, toda extensão de uma condição a priori (prescindindo

do a priori analítico) a um conteúdo contingente é, de seu, um movimento; por

desvelar no campo mesmo do a priori, uma virtualidade conquistadora, este

movimento de atuação progressiva é uma determinação pura do tempo pela

espontaneidade do sujeito. Assim, pois, ainda que Kant nunca assemelhe o

conceito de movimento a uma categoria, dito conceito, ele participa das

propriedades lógicas dos dados a priori do sujeito cognoscente. Isto é,

determinada espécie deve exigir, enquanto processo imanente do sujeito

transcendental, a mesma afirmabilidade que, como disposições formais desse

sujeito, reclamam os conceitos a priori do entendimento e as intuições a priori da

sensibilidade.

Portanto, é no raciocínio crítico como no objeto da Crítica, que a

síntese avantaja decididamente a análise. Esta primazia absoluta, menos evidente

ao começo do período crítico, se afirma mais na medida que o sistema idealista

kantiano vai concentrando-se em maior massa ao redor da unidade do eu. Ao

mesmo tempo, aparece cada vez mais claro que as relações entre a unidade
96

analítica e a unidade sintética, examinadas nas páginas que precedem, não

colocam unicamente o problema da limitação recíproca de duas unidades formais,

senão também, com maior profundidade, o problema da limitação mútua entre o

ato e a forma na unidade total da consciência.

Ele realiza um cario entre o sujeito transcendental e as coisas em

si. O encontro destas com o sujeito estabelece na consciência um primeiro estrato

de determinações formais: a variedade analítica das sensações. Na continuação

do processo cognoscitivo, esta primeira diversidade qualitativa desempenha

constantemente o papel de objeto, nunca o de sujeito98.

Na escalação das determinações formais da consciência, um

segundo estrato vem constituído pelas intuições a priori de espaço e tempo, ou

seja, pelas formas puras da receptividade sensível, oferecidas objetivamente à

consciência, à maneira de conteúdo a priori. Estas formas devem subordinar-se à

unidade suprema do eu transcendental para entrar no conhecimento objetivo, mas

não as deduz desse eu; com respeito ao eu transcendental, seguem sendo algo

contingente.

Finalmente, alcançamos um terceiro estrato: a unidade

aperceptiva pura, acunhada nas categorias; somente nelas revela-se

imediatamente à consciência o sujeito transcendental como puro ato de síntese.

Estes três planos sobrepostos, qualidades sensíveis, intuições a

priori da sensibilidade e unidade da apercepção pura se reúnem no objeto

(imanente); em contrapartida, por parte do sujeito não se realiza a união; existe

98
Cf. Ibid., p.150
97

uma falta em dois níveis: nem as intuições puras do espaço e tempo nem as

qualidades sensíveis derivam logicamente da unidade originária do eu.

Semelhante imperfeição no encadeamento sistemático dos planos formais da

consciência, e sobre todo o dualismo sempre aberto entre a unidade aperceptiva e

o a priori da sensibilidade, têm parte nas oposições, não eliminadas por completo,

que temos denunciado mais acima: oposição entre o objeto em geral e o objeto da

experiência, entre o eu transcendental e o eu empírico. Estas oposições

desaparecem totalmente se logra-se completar a unidade funcional do eu, de

modo que deriva-se da espontaneidade do entendimento todo o elemento formal

de nossas representações, desde os conceitos puros até as qualidades sensíveis,

inclusive. Se entrevê aqui uma possível evolução do sistema kantiano,

precisamente na mesma direção em que se afirma a primazia do ato sintético.

3.4 - Os postulados morais e a transcendência do

objeto

Das obras publicadas por Kant, a Crítica da Razão Prática é onde

se afirma mais abertamente o dinamismo radical da razão, na plenitude de suas

exigências incondicionais. Como imperativo categórico, a razão intima a nossa

ação deliberada à mesma lei de unidade universal que, enquanto ato aperceptivo,

impõe as determinações objetivas de nossa consciência. É lamentável que, em

lugar de fazer a síntese direta destes dois aspectos de uma mesma posição

soberana, o filósofo criticista se contentara em vinculá-las, extrinsecamente,


98

mediante a teoria dos postulados. Esta teoria nos exige que, a examinemos

atentamente, porque representa uma evasão, perfeitamente consciente e querida,

em direção à transcendência metafísica. Também devemos examinar este

sistema, e cortejá-lo com as conclusões da razão prática.

É preciso inicialmente colocar o problema do maior ou menor

hermetismo das duas razões ou, com maior precisão, o problema da relação entre

o fundamento prático dos postulados e a possibilidade teórica dos objetos que se

postulam. Trata-se, no fundo, de saber se a razão, com anterioridade a toda

divisão de si mesma em razão teórica e razão prática, possui já um alcance

objetivo geral.

Que os princípios da razão pura, em seu uso prático, quer dizer,

em seu uso moral, tem realidade objetiva, é, em resumo, o que a Crítica da Razão

Pura havia nos ensinado acerca dos postulados. Afirma Kant:

Entendo por postulado da razão prática [...] uma proposição teórica,


enquanto esta, que é teoricamente indemonstrável, é também
inseparadamente solidária de uma lei prática válida a priori e
incondicionalmente99.

Assim, para estender um conhecimento puro de ordem prática, é

preciso que uma meta, ou um fim, sejam dados a priori por modo de objeto, e que

este objeto, independentemente de todo princípio teórico, mas como

conseqüência de um imperativo (categórico) que determina de maneira imediata a

vontade, se represente como praticamente necessário; tal é, neste caso, o

99
No original: Entiendo por postulado de la razón prática [...] una proposicíon teórica, en cuanto
ésta, que es teoricamente indemostrable, es también inseparablemente solidaria de una ley
práctica válida a priori e incondicionalmente. (KANT apud MARECHAL. El punto de partida de la
Metafísica, II, p.162).
99

soberano bem. Mas este não é possível (concebível) senão pressupondo três

conceitos teóricos: a liberdade, a imortalidade da alma e Deus. Assim, a lei prática

que prescreve a realização do bem mais perfeito possível em um mundo dado,

postula, em benefício dos objetos (problemáticos) da razão pura especulativa, a

possibilidade, a realidade objetiva que essa razão não pode assegurá-los. Deste

modo, o conhecimento teórico recebe, sem dúvida, um acrescentamento dos

conceitos que, de outra maneira, seriam problemáticos (puros objetos de

pensamento); eles são agora enquadrados assertoricamente entre os conceitos

que correspondem a verdadeiros objetos.

Porque a razão prática não pode eximir-se de ter o soberano

bem,a razão teórica (que não concebe o soberano bem mais que rodeado de

certas condições objetivas) se encontra autorizada a pressupô-lo. Este

acrescentamento da razão teórica não é, então, uma ampliação da especulação;

não permite que se empenhem positivamente, com fins teóricos, os objetos

postulados; com efeito, não nos é dado nada de sua intuição real ou possível100.

As três idéias transcendentais, que não eram, todavia, por si

mesmas conhecimentos, senão somente pensamentos (transcendentes) não

contraditórios, agora, em virtude de uma lei prática apodíctica, são revestidas de

realidade objetiva, como outras tantas condições necessárias de possibilidade do

objeto (o soberano bem) que esta lei manda realizar.

100
Cf. KANT, KPV, p. 243-244
100

Desde o ponto de vista prático, as idéias, de transcendentes e

reguladoras que eram, se convertem em imanentes e constitutivas, ou seja, que

fundamentam a possibilidade de realizar o objeto necessário da razão prática pura

(o soberano bem).

Assim, pois, os objetos postulados nos são dados pela razão

prática como verdadeiros objetos com respeito a nossa ação; e a razão teórica dá

a este juízo a patente de objetividade; e inclusive leva mais longe sua

colaboração, aplicando a esses objetos reais as negociações e as afirmações

com que as idéias reguladoras rodeavam a seus objetos hipotéticos, antes de ser

erigidas em postulados; melhor ainda: aplicando esses predicados segundo toda a

amplitude intensiva que exige o absoluto moral. Por exemplo: na hipótese da

existência de Deus, a razão especulativa demonstra que o autor e ordenador do

universo deve ser imensamente sábio, bom, poderoso, mas não pode ir mais

longe: a omnisciência, a bondade absoluta, a omnipotência, escapam à

demonstração puramente física ou metafísica. Sem dúvida, a noção de Deus,

enquanto postulada pela lei moral, recebe por este título, não somente a

objetividade bruta, senão também os mesmos atributos de perfeição absoluta

inacessível por qualquer outro caminho: efetivamente, a razão teórica julga que

Deus não poderia assegurar a possibilidade do soberano bem, se não fosse a

onisciência, a onipotência, a onipresença, o eterno, em uma palavra, o Ser

absolutamente perfeito101.

101
Cf. KANT, KPV, p.252
101

Não parece, em conseqüência, que, uma vez dada a obrigação

absoluta da ação moral, todas as relações implicadas na teoria dos postulados

são de ordem lógica, analítica? Isso não é inteiramente exato. Kant põe à prova,

muito escrupulosamente, a qualidade lógica das principais articulações de sua

teoria.

Uma necessidade da razão pura em seu uso especulativo

somente conduz a hipóteses; a necessidade da razão pura prática conduz a

postulados.

A necessidade teórica responde à tendência que o pensamento tem


assim sua própria perfeição subjetiva; mas a possibilidade – que se
reconhece – de alcançar esse termo não se requer, de maneira alguma,
para a objetividade dos conhecimentos que a precedem102.

A necessidade da razão pura prática se funda em um dever, na

obrigação de estabelecer a meu querer um objeto (o soberano bem) ao que eu

tenda com todas as minhas forças; para fazê-lo, devo pressupor a possibilidade

desse bem e de suas condições (racionais), a saber, Deus, a liberdade, a

imortalidade.

Agora bem, o dever se impõe por si mesmo, com uma certeza

apodíctica, sem que precise de nenhum apoio especulativo.

Mas o efeito subjetivo desta lei (do dever), quero dizer a intenção

de ter a realização do soberano bem, pressupõe, pelo menos, a possibilidade

102
No original: La necesidad teórica responde a la tendencia que el pensamiento tiene hacia su
propia perfeccíon subjetiva; pero la posibilidad – que se reconoce – de alcanzar esse término no se
requiere, en manera alguna, para la objetividad de los conocimientos que la preceden. (KANT.
KPV, p.256).
102

deste último; se não fosse assim, tropeçaríamos com a impossibilidade prática de

ter para o objeto um conceito.

Porque a intenção moral, longe de ser somente uma decisão

facultativa, determinada por inclinações contingentes, é a obediência a um

mandamento absoluto, objetivamente fundado na natureza das coisas; portanto,

exclui a dúvida sobre a possibilidade objetiva do fim preceituado. A adesão

intelectual aos postulados, no sentido em que se acaba de definir, é denominada

por Kant fé moral ou fé racional pura prática103.

O princípio que determina nossa afirmação dos postulados é

subjetivo enquanto necessidade (da razão); ao mesmo tempo, como meio de

promover um fim prático, objetivo, é o fundamento da máxima que faz considerar

verdadeiros, na perspectiva moral (determinados objetos cuja demonstração

teórica segue sendo insuficiente).

Antes da conclusão deste parágrafo, levemos a cabo um rápido

reconhecimento na direção da terceira Crítica.

A razão prática descobre em nós um fim absoluto (o soberano

bem), do qual temos obrigação de realizar mediante a conformidade de nossa

ação empírica com a lei de nossa liberdade. Aceitar este fim último é, ao mesmo

tempo, admitir, entre nossas faculdades e o mundo dos fenômenos, a medida de

correspondência, de adequação prévia, que permite uma prossecução eficaz do

fim último. Esta adequação prévia se concebe necessariamente como efeito de

103
Cf. MARECHAL. El punto de partida de la Metafísica, II, p.166
103

uma inteligência ordenadora, que adequa a constituição das coisas às exigências

ativas de nossa razão prática.

Como vimos mais acima, a necessidade apodíctica da lei moral

não se discute; daí se deriva, para a razão teórica, um corolário imediato: a

possibilidade da ação moral; e como esta possibilidade deve estender-se em toda

a amplitude do preceito moral, inclui logicamente a possibilidade em si do fim

moral supremo, quer dizer, do soberano bem, ao menos enquanto esse soberano

bem representa uma perfeição moral. Assim, a aliança entre a razão prática e a

razão teórica proporciona conclusões certas, objetivamente válidas na ordem

supra-sensível do numêno104.

Enquanto a necessidade de uma inteligência transcendente para

fundamentar a harmonia dos dois elementos do soberano bem, não é,

propriamente falando, mais que um postulado prático, subjetivamente necessário,

no sentido de que nossa razão – que não vê outra hipótese explicativa, mas que

pode, em rigor, abster-se de formular nenhuma – cede à sua necessidade de

unidade sistemática mediante um ato positivo de crença, em conformidade com os

ditados do interesse moral.

Consequentemente deve-se admitir, no mundo dos fenômenos,

uma estrutura que se preste às exigências da ação moral. Se, ademais,

obedecendo a um desejo imperioso de nossa razão, postula-se uma suprema

sabedoria ordenadora, se reconhece a priori no mundo, não somente um

encadeamento mecânico de causas e efeitos, senão uma causalidade dirigida

104
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, III, p.332
104

pela representação dos efeitos, quer dizer, uma ordem de fins objetivos. Mas o

que se sabe desses fins?

Não são dados objetivamente na experiência, somente se

conhece suas causas e efeitos. Mas, sabendo que existem e que devem estar

subordinados ao fim moral supremo, é possível – a partir da idéia de finalidade

natural – reconstrui-los hipoteticamente no marco de um sistema da experiência,

indefinidamente perfeito e perpetuamente controlado pela ação. A edificação deste

sistema é obra da faculdade de julgar considerada em seu uso reflexivo. A

faculdade de julgar:

... oferece, na idéia de uma finalidade da natureza, o intermediário


conceitual (que nos é indispensável) entre os conceitos de natureza e os
conceitos de liberdade, quer dizer, um conceito que acha possível o
passo do puro âmbito teórico ao puro âmbito prático, da regularidade
rígida do primeiro à perfeição final do segundo105.

Assim, por cima dos fins da natureza, existem os fins a liberdade,

os fins morais, e entre eles o fim absolutamente último, cuja possibilidade não está

condicionada por nenhum outro fim. A este fim está radicalmente ordenada a

natureza, apesar de que, por si mesma, é incapaz de realizá-lo; o homem, agente

livre, pode fazê-lo, submetendo a natureza à legislação incondicionada da ordem

moral. Sendo já fim de última natureza, seu destino moral o faz capaz também de

um fim supremo, ao que a natureza inteira está subordinada teleologicamente.

105
No original: ... ofrece, en la idea de una finalidad de la naturaleza, el intermediario conceptual
[ que nos es indispensable] entre los conceptos de naturaleza y los conceptos de liberdad, es decir,
un concepto que haga posible el paso del puro ámbito teórico al puro ámbito práctico, de la
regularidad rígida del primero a la perfeccíon final del segundo. (KANT, K.U. , p. 55)
105

Segundo tem mostrado a Crítica da Razão Pura, a interpretação

finalista da natureza considerada em si mesma – abstração feita do imperativo

moral – responde indiscutivelmente a uma necessidade de nossa razão, sem

sobrepassar, então, o valor lógico de uma hipótese admissível; sobre esta

hipótese se levanta a prova físico-teológica, mas persuasiva que conclui, em favor

da existência de um criador sapientíssimo e poderosíssimo. Evidentemente, para

Kant, todo este trabalho construtor da faculdade de julgar procede da atividade

reguladora ou heurística da razão e, do ponto de vista teórico, o mais que se pode

fazer é solicitar de nós uma adesão de fé doutrinal. Mas, tal como é, abre o

caminho aos requerimentos absolutos da liberdade, a esse complexo de

exigências apodícticas e de postulações teóricas que formam a trama de uma

ética-teologia:

A físico-teologia é uma teologia física mal compreendida, somente


utilizável, como preparação (propedêutica) para a teologia; não pode
contribuir, mais diretamente, a dito fim se não é tomado como ponto de
apoio um princípio inteiramente diferente (o princípio moral)106.

Então se converte em uma ética-teologia, objeto de um ato de fé

moral, cujo valor prático e certeza não é inferior, em sua ordem, ao valor certo das

evidências especulativas.

Neste sentido, pois, as duas razões estão mutuamente

coordenadas, e uma supre as insuficiências da outra. Mas essa simples

106
No original: La físico-teologia es una teologia física mal comprendida, solamente utilizable como
preparacíon (propedéutica) para la teologia; no puede contribuir, más directamente, a dicho fin si
no es tomado como punto de apoyo un principio enteramente diferente (el principio moral). (KANT,
K. U., § 85, p.410)
106

coordenação criaria conflitos: estas razões estão subordinadas uma a outra, sob a

primazia da razão prática:

Na união da razão especulativa com a razão pura prática com vistas ao


conhecimento, a primazia pertence à razão prática [...] Em última análise,
todo interesse da razão é prático (moral): o mesmo interesse especulativo
é condicionado e somente alcança sua plenitude no uso prático (moral)107
.

Agora, com a clara afirmação da primazia da razão prática,

esboça-se, um sistema metafísico. A metafísica kantiana, pois, será

essencialmente uma metafísica da razão prática, um dogmatismo moral. Uma

metafísica puramente especulativa, uma ciência do ser, não pode ter, no kantismo,

outra significação que a de uma metafísica da intuição intelectual (atual ou

possível). As afirmações necessárias desta metafísica prática impõe à nossa

adesão intelectual autênticos objetos noumenais: os objetos da fé moral não são

nem menos certos nem menos reais que os de ciência teórica.

Uma última observação. Se a metafísica dos postulados é uma

metafísica do objeto, o dever é a posição singular do sujeito racional, no que se

reúnem os dois mundos da natureza e da liberdade, do fenômeno e do númeno.

Assim, o homem se revela, cada vez mais, como a chave do sistema kantiano,

como o centro de perspectiva desde o qual devem ser vistas todas as coisas para

adquirir, a nossos olhos, seu justo valor.

107
No original: En la unión de la razón especulativa con la razón pura práctica con vistas al
conocimiento, la primacía pertenece a la razón práctica [...] En último análisis, todo interés de la
razón es práctico (moral): el mismo interés especulativo es condicionado y sólo alcanza su
plenitud en el uso práctico (moral). (KANT, KPV, p.218-9)
107

CAPÍTULO IV

O ABSOLUTO COMO HORIZONTE DO

PENSAMENTO

Segundo Marechal, a metafísica é a ciência humana do absoluto.

Ela traduz imediatamente a percepção de nossa inteligência pelo absoluto,

percepção que não é um domínio conquistado, mas um princípio interno de vida.

Assim, Marechal introduziu a primeira redação do Ponto de partida da Metafísica

de 1917.

O absoluto, na filosofia marechaliana, pode ter dois sentidos : ou

ele designa o Ato puro, Absoluto sendo independente de qualquer outra coisa; ou

ele designa o objeto em si, como independente da própria operação afirmativa.

No primeiro sentido o Absoluto é condição prioritária de todo ato

de afirmação, mas esta tese só será provada no final de nosso relato. No segundo

sentido, a cada ato de afirmação, a posição do absoluto é evidente para a

reflexão crítica e pode então servir de ponto de partida do raciocínio marechaliano.

Assim, a metafísica é, para Marechal, uma ciência fundamental

que exprime , em uma linguagem humana, nossa mira do divino e a influência do

Absoluto, Ato puro, sobre nossa existência.


108

Antes de poder elaborar uma ciência, antes de qualquer pensamento,


antes qualquer ato [...] já existe a presença do Absoluto. Mergulhamos na
sua luz, agimos sob seu impulso: é ele que age em nós. Impossível
escapar de sua influência, impossível de se privar, de desprezá-lo.
Devemos dar importância a isto pois foi ele quem nos compreendeu
desde nosso nascimento, porque a cada ato comungamos à sua
bondade108.

A presença do divino é como um pressuposto de toda a

metafísica. Tal pressuposto não é um preconcebido. Para ser verídico, ele exige

uma demonstração.

A atitude inicial de Marechal fica então em oposição aberta com a

orientação geral da ideologia kantiana. Ela marca uma verdadeira inversão de

perspectiva, uma inversão nos pontos de vista filosóficos, principalmente daqueles

que se modelaram na revolução copérnica de Kant. Se, para Kant, o homem se

encontra no centro da filosofia, para Marechal, é Deus.

Se houver verdade o qual tudo nos conspira, uma verdade que vivemos,
mesmo antes de conhecê-la , e que podemos perceber com certeza
antes mesmo de submetê-la ao controle da prova por conceitos, com
certeza é a existência de Deus109.

Não que esta verdade vivida e inconseqüente prove a validade do

raciocínio em si, mas serve como um índice de orientação. O controle racional,

108
No original: Avant de pouvoir élaborer une science, avant toute pensée, avant tout acte [...] il y a
déjà la présence de l’Absolu. Nous baignons dans sa lumière, nous agissons sous son impulsion:
c’est lui qui agit en nous. Impossible d’échapper à son emprise, impossible de s’en passer, de le
négliger. Il faut en tenir compte parce qu’il nous a saisis dès notre naissance à l’être, parce que
dans chaque acte nous communions à sa bonté. (DIRVEN, E. De la forme a L’Acte, p.150)
109
No original: S’il est une vérité vers laquelle tout em nous conspire, une vérité que nous vivons
avant même de la connaître, et que – tant elle nous est connaturelle – nous pouvons percevoir
avec certitude avant même de la soumettre au contrôle de la preuve par concepts, c’est à coup sûr
l’existence de Dieu. (Ibid.p.151)
109

direto ou indireto, vem em seguida garantir a firmeza de nossa afirmação

espontânea de Deus.

Marechal enfatiza que, uma doutrina que não conhece o Absoluto

como condição de possibilidade da realidade é incapaz de dar uma explicação

coerente desta realidade mesma, da nossa maneira de compreendê-la e da

maneira em que as provas da existência de Deus segundo São Tomás podem ser

legitimamente interpretadas.

Sua conclusão foi desde então lógica: aquele que parte do

humano, da evolução subjetiva, do ideal esperado pela atividade espiritual, ou do

pensamento-ação, atingirá certamente uma perfeição ulterior à própria ação – o

último fim subjetivo do agente, diriam os escolásticos – deve ser possível se a

ação, ela mesma, for racional . Aqui se abre o horizonte do divino. Para atingi-lo,

basta uma mudança de perspectiva, uma conversão da exigência dinâmica para o

pressuposto especulativo, do dever-ser para o ser necessário; pois é somente

como condição objetiva de possibilidade da perfeição subjetiva da ação, é

somente como fim último objetivo que a existência de Deus se impõe ao nosso

consentimento.

Já em 1908, na pesquisa sobre “O sentimento da presença “,

Marechal não pensa diferente :

A inteligência humana, diz-ele, não é um simples espelho refletindo


passivamente os objetos que passam por ele, mas uma atividade,
orientada no seu mais profundo intimo para um último termo, o único
onde ela possa se concentrar completamente para o Ser absoluto,
Verdadeiro e Bem absolutos. O Absoluto põe sua marca na tendência
lógica de nossa inteligência; assim, esta tendência ultrapassa
110

constantemente as percepções particulares, sempre relativas quanto


particulares.110

Esta visão era também neste momento o resultado de uma

inversão dos termos do problema. Diante da tentativa de explicação do fenômenos

místicos, era preciso se perguntar se não seria mais lógico apresentar o real, a

afirmação e o objetivo e procurar ver como isto se desagrega ou se desdobra na

dúvida e no subjetivo.

4.1 - O absoluto do ser, a ordem ontológica

O que ele claramente imagina, desde 1908, o que ele considera,

em 1931, como uma posição bem estabelecida, Marechal quer demonstrar no Le

Point de départ, de 1917 à 1926.

É então uma nova revolução copérnica que Marechal quer por em

obra e, esta, em todo o sentido do termo. Ao invés de envolver a epistemologia no

horizonte humano e de rodear as criaturas e os seres envolta do homem, o

homem, ele mesmo, e todo ser, serão orientados em direção ao Absoluto, Ato

puro, o qual serão dependentes.

110
No original: L’intelligence humaine, dit-il, n’est pas un simple miroir reflétant passivement les
objets qui passent à sa portée, mais une activité, orientée dans son fond le plus intime vers un
terme dernier, le seul où elle puisse s’absorber complètement, vers l’Etre absolu, Vrai et Bien
absolus. L’Absolu a mis sa marque sur la tendance foncière de notre intelligence; aussi bien, cette
tendance dépasse-t-elle constamment les intellections particulières, toujours relatives en tant que
particulières. (MARECHAL, J. Etudes sur la Psychologie des Mystiques, p.120)
111

No entanto esta revolução só será possível se toda solução de um

problema qualquer de filosofia, toda discussão sobre os valores do kantismo toda

explicação de conceitos próprios, se enraizarem com um pressuposto radical, o

absoluto, aqui o absoluto objetivo, posto em toda aplicação do primeiro principio.

Uma percepção da realidade só será possível se toda afirmação for relativa,

necessariamente e legitimamente, ao seu conteúdo no absoluto do ser, ou seja,

que um conhecimento puramente fenomenal seja impensável e impossível.

Ao contrário da sentença o pressuposto na percepção de

Marechal é: actus prior est forma. Porque o Ato puro condiciona toda a existência,

é impossível ter uma explicação da existência sem se referenciar a este Ato. Esta

visão vai se impor à inteligência porque, a inteligência ela mesma, está sempre

ativa na ordem ontológica do ser. Neste lugar, o aspecto existencial e dinâmico de

nossa existência concreta tem ainda uma preeminência sob o aspecto formal.

Segundo os escolásticos, como já foi visto, um existente isolado

que tem a atualidade de uma forma, é inexplicável. É esta visão que dirigiu os

trabalhos de exploração de Marechal.

Portanto, não basta só afirmar uma certa posição doutrinal; é

preciso também provar ou pelo menos demonstrar o bien-fondé.

Para poder, finalmente, concluir o Ato puro, como centro de toda

existência, é preciso mostrar no processo da pesquisa, ou da intuição do

marechaliana onde se baseia a teoria ou hipótese sobre a afirmação do absoluto

objetivo em cada ato, antes mesmo de poder aceitar as conseqüências. Deve-se


112

indicar onde se situa este absoluto; indicar sua presença e para bem dizer o modo

de operação, o funcionamento111.

De uma certa forma, todo o sistema servirá como confirmação da

hipótese marechaliana e da doutrina tomista. Os antigos discutiram sobre a critica

do conhecimento na via metafísica e perceberam que o conteúdo bruto do espírito

apresenta elementos contraditórios, que não podem então, indistintamente, ser

objeto de afirmações legitimas; o problema era introduzir, no conteúdo do espírito,

as distinções e as sobreposições necessárias a fim de preservar o primeiro

princípio normativo, sempre mantendo a necessidade absoluta e universal da

afirmação. Esta crítica objetiva do conhecimento, quase finda nos Gregos, atinge

seu ponto culminante no aristotelismo de São Tomás112.

4.2 - Impossibilidade do fenomenismo absoluto

Em cada pensamento existe uma relação entre a verdade e o ser.

É então normal concluir que além do pensamento deve existir uma outra regra que

sustenta este pensamento, levando em conta o que é verdadeiro ou falso.

Esta regra deve, acima de tudo, envolver um valor absoluto e

eterno. Ora, na afirmação, na negação e na dúvida quer dizer, a cada ato de

nossa inteligência, o ser sempre se opõe ao pensamento atual, o absoluto no

relativo. Nosso espírito é radicalmente incapaz de pensar no vazio absoluto

porque ele é incapaz de tomar uma atitude, seja por pura negação, seja por pura

111
Cf. DIRVEN, E., De la forme a L`Acte. p.154
112
Cf. Ibid., p.155
113

vontade : num esforço crítico pode-se dizer que, sempre o ser sustenta o não-ser,

a afirmação sustenta a negação, o querer apóia a vontade. No modo especulativo

não escapamos a uma verdade objetiva; no modo prático não escapamos a um

fim absoluto: tanto pelo pensamento quanto pelo poder, deposita-se sempre então

categoricamente o ser. Fora do pensamento deve então existir um ser com

caracteres absolutos e eternos.

4.2.1 - A atitude contemporânea: negação da norma

absoluta

É evidente que a existência de um pensamento, de uma verdade

ou de um ser, não implica nenhuma relação de um relativo ao absoluto, nem um

fim absoluto, nem um ser posto categoricamente e perpetuamente de maneira

absoluta. O que sabemos, nosso pensamento, nosso fim, nosso ser, apresentam,

pelo contrário, sinais totalmente diferentes: nada em nós é absoluto, e não

entendemos porque, nem como alegaríamos que do relativo se possa gerar um

absoluto. Dizer que o relativo sustenta o absoluto ou que o absoluto sustenta o

relativo, que ele é a fonte, é talvez uma explicação comumente e tradicionalmente

aceita, mas que não se impõe. Aquele que entende a estrutura do ser e a natureza

da existência no mundo, percebe que ela é desenvolvida nela mesma, sobre ela

mesma, para ela mesma.

Deste modo, contra todo apelo ao absoluto se ergue então a

seguinte afirmação, fundamental para alguns espíritos: é impossível ir além do


114

que sou, do que conheço, do que trato. Mesmo se eu me afirmar como autônomo

total num ato de liberdade espontânea, gratuita; mesmo se considero este ato

como um tipo de auto-criação – uma posição própria onde a fonte se encontra em

mim mesmo – em outras palavras: mesmo se examino o ato o mais elevado, que

parece ultrapassar o determinismo assim como a contingência, mesmo então – e

principalmente, – eu ainda sou eu mesmo.

Este eu, é verdade, não é mais o eu limitado, acanhado, de um


psicologismo doentio, ou a palavra-chave de um racionalismo fechado
sobre ele mesmo [...] ele é um experimento como fonte de toda atividade,
lógica, psicológica e moral, como iniciativa, [...] Mas é só o meu (ego).
Impossível deduzir daí a existência de um absoluto : não o atingiremos
jamais113.

Pretende-se, assim, atingir algo que excede o eu pessoal e a

situação presente, particularmente: o ser – que se ocultando não é menos que

uma realidade.

Diante disso, o homem tem até mesmo a obrigação de se voltar

para a explicação, para um esclarecimento mais consciente, que encobre o

suposto além, que está ao nosso alcance. Enunciando o sempre transcendente,

ele justamente concretiza, na imanência de sua própria existência, a atualidade

deste transcendente. Nesta revelação progressiva aposta-se no destino do

homem e de sua história. O homem é verdadeiramente homem e a história só tem

sentido quando se mergulha neste misterioso abismo de onde jorram as fontes de

vida, de consciência, de realidade atual.

113
No original: Ce moi, il est vrai, n’est plus le moi restreint, étriqué, d’un psychologisme maladif, ou
le moi-sujet d’un rationalisme étranger à la vie, ou le moi transcendantal d’une critique enfermée
sur elle-même [...] Il est expérimenté comme source de toute activité, logique, psychologique et
morale, comme initiative, [...] Mais ce n’est que le moi. Impossible d’inférer de là l’existence d’un
absolu: on ne l’atteindra jamais. (DIRVEN, op. cit., p.167)
115

4.3 - O fenomenismo absoluto

Marechal mostra por alto uma crítica do fenomenismo absoluto.

De certa forma, a objeção desse fenomenismo já estava contida na objeção da

dúvida metódica e radical.

O que o fenomenismo defende é algo compreensível e, a primeira

vista, totalmente legítimo. Ele sustenta que o homem só pode conhecer o humano

e isto ad modum humani.

O homem constata que apesar de seu desejo legítimo para a

unidade, apesar da afirmação da verdade e de ser contida a cada julgamento,

uma incerteza irremediável e radical ataca e dissolve a própria forma de toda

verdade lógica. O primeiro princípio racional, o princípio da identidade ou de

contradição parece flutuar na dúvida. Pois em todo objeto só se conhece o

fenômeno transitório, o aparecimento efêmero de uma forma que permanece

sempre estranha. Nossa subjetividade perverte tudo o que ela toca.

No conhecimento o objeto permanece fora de nós, fechado aos

nossos olhares ávidos de conhecer. O que conhecemos, o fenômeno, o objeto

imediato, está sempre em uma oposição mais ou menos reconhecida no qual ele é

o objeto ou o fenômeno.

Contudo reconhecer que existe uma oposição, já é aceitar mais do

que o realismo tomista de Marechal exige. A polêmica deve começar desde que

pretende-se só conhecer o fenômeno interno. A primeira questão é: se no ato


116

direto da percepção, ato imanente, o objeto imediatamente conhecido é ou não é a

species como tal, ou seja, a forma particular deste ato. Reconhece-se aqui a

questão discutida por São Tomás na Suma Teológica114. Ora a conclusão em

comum de São Tomás e de Marechal é muito explicita. È impossível que a

species seja o objeto direto e próprio de nosso conhecimento. O que se conhece

diretamente, é o objeto mesmo, a realidade115. Pois:

...ou só julgamos a aparência subjetiva atual, e nenhum julgamento é


absolutamente verdadeiro ou falso, se todos são verdadeiros todos são
falsos pois se contradizem, ou a species intelligibilis, ou seja, a
determinação subjetiva atual de nossa inteligência, não faz função de
objeto primário, mas somente de forma caracterizada segundo a qual o
ato intelectual se dirige diretamente ao objeto. Deve se escolher entre
esta verdade imediata do objeto e a negação mesma do “primeiro
princípio” como norma dos julgamentos “contradictoriae essent simul
verae116.

O argumento principal se resume então nesta única acusação

capital: porquê ele desconhece a lei do princípio de identidade, o fenomenismo se

condena por ele mesmo à contradição interna que se destrói por si mesma.

Ora por definição a species como tal não é mais que uma

modalidade acidental de nosso conhecimento: ela pertence ao sujeito como um

simples reflexo fugitivo, um fato bruto, um puro momento fluente e inconsistente;

ela não exclui nenhuma variabilidade; ela pode parar de ser, assim como ela pode

não ter sido: ela é uma relação sem essência nem suppositum, um simples esse

114
Cf. TOMAS DE AQUINO, Suma Teologica, I, 85.
115
Cf.TROISFONTAINES, De l`existence à l´etre, p.10
116
No original: ...ou bien nous ne jugeons que de l’apparence subjective actuelle, et auncun
jugement n’est absolument vrai ni faux; si tous sont vrais, tous sont faux, car ils se contredisent; –
ou bien la species intelligibilis, c’est-à-dire la détermination subjective actuelle de notre intelligence,
ne fait point elle-même fonction d’objet primaire, mais seulement de forme spécifiante selon
laquelle l’acte intellectuel se porte directement à l’objet. Il faut choisir entre cette vérité immédiate
de l’objet et la négation même du “premier principe” comme norme des jugements “contradictoriae
essent simul verae”. (TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, 85, 2, c)
117

ad. Mas de onde virá sua consistência, a necessidade, a capacidade de ser

aplicada validamente a um objeto ou a vários?

Somente o principio de identidade pode lhe conceder estas

qualidades. O que o elemento bruto, por ele mesmo, não expressa ainda, o

princípio de identidade lhe impõe: a referência ao ser. Se o elemento em si

permanece transitório, inconstante, contingente, pelo menos a relação

estabelecida entre o elemento e o ser oferece um aspecto não transitório,

imutável, absoluto.

A união do primeiro principio ao elemento subjetivo, ou à species,

se confunde assim com a objetivação mesma desse elemento, digamos: com a

síntese primordial deste elemento ao ser. A afirmação objetiva vai então além do

conteúdo bruto, fenomenal da species.

4.4 - O princípio de identidade

Até agora pretende-se dar uma justificação à condição de

possibilidade de base: o absoluto (como o objeto em si), colocado em ato,

recusando o fenomenismo absoluto e apelando à necessidade de colocar o

princípio de identidade.

O princípio de identidade pode, de fato, ser considerado como

uma das bases que torna esse argumento sólido. Em nenhum lugar a referência

ao absoluto do ser se impõe com tanta evidência. Resumindo, o homem recua

somente diante do fato, sobretudo se este fato é ele mesmo quem o coloca e o
118

qual ele não pode deixar de colocá-lo. Nenhuma questão grave, unindo o ser e o

humano, pode se resolver num diálogo discursivo por um simples raciocino. É aí

onde a questão se torna difícil, o raciocino não tem saída. Só o fato oferece uma

saída.

De fato, pode parecer que estamos encurralados num círculo

vicioso. De um lado, a existência de uma norma absoluta – ou, pelo menos, a

refutação daqueles que não aceitam esta norma, enquanto que por outro lado esta

norma já é suposta para poder aplicar o mesmo princípio.

Neste contexto, Marechal afirma:

Nós colocamos o ser, como uma norma exterior ao nosso pensamento


atual e subjetivo. Para que “verdade seja”, é preciso que, entre essa
norma exterior e o pensamento atual, exista uma relação fixa,
inteiramente determinada, de concordância ou discordância. Se o objeto
do meu pensamento atual resulta somente em uma relação incerta e
indeterminada, alternando o sim ou não, em vão se falaria de uma
relação de verdade [...] Meu pensamento é verdadeiro ou falso só se, em
cada determinação que ele se dá, corresponde uma relação
absolutamente estável – positiva ou negativa – com o ser. Ora, esta
estabilidade necessária de qualquer objeto pensado é expressado pelo
“primeiro princípio”, o princípio da identidade117.

Ora, não tendo acesso diretamente ao absoluto, está bem claro

que só o primeiro princípio deve dar conta tanto da existência do absoluto quanto

do seu valor.

117
No original: Nous posons l’être, disions-nous, comme une norme extérieure à notre pensée
actuelle et subjective. Pour que “vérité soit”, il faut qu’entre cette norme extérieure et la pensée
actuelle, existe un rapport fixe, entièrement déterminé, de concordance ou de discordance. Si
l’objet de ma pensée actuelle ne contractait avec l’être qu’une relation incertaine et indéterminée,
oscillant du oui au non, c’est en vain que je parlerais d’un rapport de vérité [...] Ma pensée n’est
vraie ou fausse que si, dans chaque détermination qu’elle se donne, correspond un rapport
absolument stable – positif ou négatif – avec l’être. Or, cette stabilité nécessaire de tout objet pensé
est exprimée par le “premier principe”, le principe d’identité. (DIRVEN, op. cit., p.175)
119

Mas, só o fato pode decidir. Ora, o primeiro princípio é um fato.

Assim, o princípio de identidade se manifesta de duas formas: como princípio

abstrato e como concreto vivido. Estas duas maneiras vão, inclusive mais ou

menos juntas, com as duas funções do princípio de identidade: o ser é ser, o que

é ao mesmo tempo analítico e sintético.

O princípio de identidade é analítico enquanto os termos

coincidem. Ou, como identidade do ser com ele mesmo. Ele é sintético enquanto

que os dois termos são seguramente diferentes ou, como identidade do ser com o

pensamento.

Em outros termos: chama-se de analítico o julgamento que afirma

a identidade material do sujeito e do predicado. Chama-se de sintético o

julgamento onde o predicado acrescenta ao sujeito. É claro que se pode

considerar os dois termos, o sujeito e o predicado do julgamento de identidade, ou

como se referindo materialmente ao mesmo objeto, ou também segundo a função

formal que eles atestam no julgamento. No último caso o predicado acrescenta ao

sujeito a inteligibilidade formal, ou o ser como razão formal.

Este princípio não é uma proposta idêntica. Ele exprime a identidade do


ser real e do ser inteligível; o ser como ele é nele mesmo e idêntico ao
ser tal como no pensamento.É o princípio que os modernos chamam
“princípio de identidade do pensamento e do ser. Ele exprime a absoluta
objetividade do pensamento”118.

118
No original: Ce principe n’est pas une tautologie. Il exprime l’identité de l’être réel et de l’être
intelligible: l’être tel qu’il est en lui-même est identique à l’être tel qu’il est dans la pensée. C’est le
principe que les modernes appellent “principe de l’identité de la pensée et de l’être. Il énonce
l’absolue objectivité de la pensée”. (Ibid. p.176)
120

Nesta perspectiva toda metafísica nada será que uma aplicação

da identidade, vista tanto como princípio sintético que como princípio analítico

pois, o que a noção do ser é, como princípio incompleto, o princípio de identidade

do ser o é como princípio complexo. Estes princípios metafísicos, alguns são

deduzidos do princípio de identidade como sintético e outros, do mesmo princípio,

como analítico. À primeira classe pertence o princípio da causalidade

transcendental e suas diferentes formas, a segunda, todas as verdades sobre os

modos do ser, por exemplo, um espírito não é temporal, Deus é todo-poderoso.

Ora, o princípio da identidade se impõe como princípio sintético

porque “a essência do pensamento exige absolutamente a identidade do

pensamento e do ser”119.

Pensamento e princípio de identidade são iguais. Não se pode

pensar sem dizer que uma coisa é inteligível. Se isso não é dito, não se diz mais

nada. Dizer, pensar, é afirmar a inteligibilidade. Ora isto, é antes de tudo,

acrescentar à função formal do ser como sujeito, a razão inteligível do ser como

objeto. Afirma-se assim, a identidade dos dois termos formalmente opostos.

No entanto, nenhuma identificação do real e do inteligível, quer

dizer, que nenhum pensamento pode acontecer se a primeira identidade concreta

não for afirmada. De fato, se a identidade do real e do inteligível fosse para si

próprio, se ela já existisse, ela não poderia acontecer. Em suma: o ser que se

revela a nós, não é um pensamento abstrato, um conceito vazio, é o concreto, e

119
SCHEUER apud DIRVEN, De la forme a L`Acte, p. 177
121

este concreto é a identidade do real e ideal. Assim não se tem outra prova a dar

de nosso princípio fundamental, a não ser que dizer que há um fato que pense

nele próprio ; que desta forma, é eu; que quando eu aplico a palavra ser, eu

transponho somente esta apreensão a outras coisas. Enfim, se o ser não é

concebido por homologia com a presença do eu no eu, não tem mais conteúdo,

nenhum sentido, e não é mais do que um conjunto de letras.

Assim o conhecimento humano não é um sistema de verdades abstratas


que se desenrolam diante o espírito, que são somente um objeto diante
do sujeito e exteriores a um sujeito, mas ela é um conjunto do qual um
sujeito dele mesmo faz parte; nossa existência faz parte do conjunto das
coisas, e assim sendo, que este conjunto toma a forma do sujeito
consciente , dizemos que este conjunto se torna conhecido 120.

Entretanto, na perspectiva marechaliana, já que o homem se

conhece por si mesmo somente no seus atos, e que eles dependem de todos,

diretamente ou indiretamente de uma maneira sensível, concebe-se que não pode

ter outra representação de si a não ser numa representação fenomenal.

O conhecimento ontológico do eu se encontra então voltado para

as condições gerais do conhecimento dos objetos da experiência. Entre o eu

empírico e os objetos empíricos, nossa inteligência não faz, no ponto de vista que

nos tocam, a distinção radical. O eu que revela a experiência interna é uma

relação objetiva ao absoluto, então um objeto inteligível do eu, não é nem mais

nem menos que os objetos de experiência externa.121

120
No original: Ainsi la connaissance humaine n’est pas un système de vérités abstraites qui se
déroulent devant l’esprit, qui ne sont qu’un objet devant le sujet et extérieures à un sujet, mais elle
est un ensemble dont un sujet lui-même fait partie; notre existence fait partie de l’ensemble des
choses, et c’est em tant que cet ensemble prend la forme du sujet conscient que nous disons que
cet ensemble devient connu. (SCHEUER apud DIRVEN, De la forme a L`Acte, p.177)
121
Cf.DIRVEN,op.cit., p.178
122

Neste contexto é preciso compreender que a crítica kantiana

parece indecisa e incompleta sobre este ponto de vista, e que Marechal busca

completá-la a partir de Fichte, pois a crítica do conhecimento postula alguma coisa

que é do domínio da ação.

Porém, ao termo ação utilizado por Fichte para designar a

atividade profunda do eu, pode ser substituída por uma expressão mais precisa,

usando o vocabulário escolástico. Entre a causalidade formal e a causalidade

eficiente (a ação propriamente dita), os escolásticos conhecem uma causalidade

imanente que eles chamavam actio per modum naturae: ela é vizinha da

causalidade formal porque ela assimila os elementos estranhos; ela participa da

causalidade eficiente, porque ela tem, inconscientemente um fim. Designa esta

como atividade imanente, prévia à consciência como à ação voluntária, a

finalidade interna ou a tendência natural do sujeito inteligente ou do eu.

Marechal, conhece a importância de uma doutrina do eu, e ele

sabe que muitas dificuldades podem ser resolvidas levando em conta este ponto.

Esta doutrina do eu – ou da finalidade – não procura sua

importância no fato de ser uma intuição, de ser diretamente clara e evidente como

substância, mas no fato de ser uma atividade, que se revela por si mesmo, como

atividade subjetiva, como um ato novo principalmente na reflexão total. Este

conhecimento da atividade, ele a nomeia, portanto, como uma maneira de intuição

do eu.122

122
Cf.Ibid., p.183
123

Assim, esta doutrina do eu como teoria de uma atividade finalista

se manifesta no interior de uma afirmação.

Ora, a filosofia chega normalmente a uma justificação – ex factis –

do absoluto do ser, afirmado em cada ato. Esta justificação nos é presente em

toda aplicação do princípio de identidade segundo a sua forma abstrata; ela nos é

imposta, nós a tocamos, na vida direta do eu, que é o princípio de identidade

segundo sua forma concreta.

Por outro lado, a filosofia de Marechal, pelo menos neste ponto,

não é nada mais que uma outra expressão da mesma necessidade. E a conclusão

segue: a justificação do absoluto afirmado em cada ato, se impõe em sua filosofia

mútua, a partir do princípio da identidade.

Marechal conhece evidentemente o princípio de identidade em

sua forma abstrata. Parece mesmo ser o único do qual ele fala. Ele supõe que

todo mundo o aceita: todas filosofias, críticas ou não, reconhecem o valor do

primeiro princípio, pelo menos como regra analítica do pensamento. Além disso,

toda explicação do primeiro princípio afirma o absoluto objetivo.

O princípio da identidade diz mais do que uma simples

redundância, porque o predicado ultrapassa o sujeito. O sujeito exprime a

realidade só na maneira de um dado bruto ; o predicado, por sua coerência com a

cópula, afeta este dado no modo de necessidade. E quando se diz:

ens est ens ou: o que é, é o que é, o sentido explícito dessas proposições
só pode ser o que segue : ens est id quod habet r a t i o n e m (formam)
entis; ou: o que é, é o que tem a qualidade (ou a forma) expressada nas
palavras: o que é, todos julgamentos que traduzem, mediante a cópula
124

afirmativa, a unidade necessária de um suppositum hipotético – o ser


como dado bruto – e de uma forma – o ser como razão inteligível.123

O princípio de identidade exprime então, nos termos mais gerais

possíveis, a síntese necessária do quod e do quo, da existência e da essência; ele

significa, no fundo, que todo ser, como ser é um inteligível. Atribuição de

necessidade e de inteligibilidade: aí está então o que o predicado acrescenta ao

sujeito em cada enunciado do primeiro princípio.

Esta consideração do primeiro princípio no abstrato permite que

ele conclua que é pela aplicação mesma do primeiro princípio que um reflexo de

absoluto penetra em nossos conteúdos brutos de consciência e os eleva à

dignidade de conhecimentos objetivos. Mas para tal é preciso que a realização do

princípio de identidade seja verdadeiramente uma síntese a priori; a síntese a

priori por excelência, aquela que fundamenta todas as outras sínteses; a síntese

do dado ao ser, síntese conquistadora do absoluto.124

A forma abstrata – síntese que torna inteligível o conteúdo objetivo

da consciência – deve ser enraizada no vivido do ser, no concreto do ato, para ser

plenamente válida.

123
No original: “ ens est ens” ou: “ ce qui est, est ce qui est”, le sens explicité de ces propositions ne
peut être que le suivant: “ ens est id quod habet rationem (formam) entis”; ou: “ ce qui est, est ce
qui a la qualité (ou la forme) exprimée dans les mots: ce qui est”, tous jugements qui traduisent,
moyennat la copule affirmative, l’unité necéssaire d’un suppositum hypothétique – l’être comme
donnée brute – et d’ une forme – l’ être comme ‘raison intellible”. ( DIRVEN,op.cit., p.184-185).
124
Cf. TROISFONTAINES, De l`existence à l´etre, p.89
125

O princípio de identidade vive-se no real, que não é: ou objeto, ou

sujeito, mas que é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Seria de fato errado

imaginar uma experiência do ser numa tomada subjetiva do eu, e ao lado dela a

objetividade da qual se deve ainda provar que ela tem verdadeiramente uma

relação na realidade existente. Objeto e sujeito são dados no vivido mesmo da

consciência refletindo-se. O conhecimento dos objetos não estabelece – numa

primeira etapa – uma inteligibilidade a qual precisa acrescentar – numa segunda

etapa – uma realidade. A experiência, que acentua a realidade, não é um dado

irracional, um tipo de tomada emocional, onde se deve ainda clarificar a situação.

A inteligibilidade e a realidade são vividas no mesmo ato que afirma sua

identidade. Este ato é: vida consciente do sujeito se relacionando ao objeto.

Vários aspectos devem então ser analisados no princípio de

identidade.

Há primeiramente a constatação de que o princípio de identidade

se revela à nossa inteligência numa síntese concreta, ou seja, que toda noção de

ser, implicada no sujeito ou o predicado, se encontra aumentada por uma relação

a supposita materiais. Neste caso, ele mantém sempre uma conotação do tempo

– o que é observado na fórmula negativa: “o que é, não pode, ao mesmo tempo e

sob a mesma relação, não ser”.125

Mas além desta concreção na matéria, há a afirmação de uma

unidade necessária de todo ser com o inteligível. Como o julgamento: o que é, é o

que é.

125
No original: ce qui est, ne peut pas, en même temps et sous le même rapport, ne pas être.
(DIRVEN,op.cit., p.186)
126

A diversidade, como diversidade, não pode ser princípio de sua

própria unificação, a necessidade de uma síntese deve ter sua fonte na

necessidade mesma de uma unidade onde se apaga a diversidade dos termos

sintéticos. Ora, com o princípio de identidade, já possuI o tipo de unidade sintética

o mais geral possível. É o Absoluto, Ato puro, onde esse e essência, realidade e

pensamento se encontram na unidade do Ato puro do Ser.126

Há então em cada afirmação do primeiro princípio uma exigência

do Absoluto. Mas este Absoluto nunca nos é dado na sua própria unidade. Não

temos nenhuma representação exaustiva dele; ele nunca está presente na

maneira dos objetos empíricos. Todo conhecimento intelectual humano se realiza

de fato só pelo encontro de duas condições. Uma é o absoluto colocado em cada

ato, mas a outra tem nela todas as marcas da passividade, já que ela é

essencialmente uma condição empírica: a intuição sensível.

Assim, segundo Marechal, há uma aliança possível entre esta

passividade e o ato que evoca o Absoluto. Mas, essa síntese universal só pode

ser fundada no Absoluto e esta aliança é possível somente por meio da finalidade

dinâmica de uma inteligência dirigindo-se a sua última perfeição por assimilações

sucessivas.

E sendo assim, a unidade do absoluto não é mais exprimível, de

maneira adequada, nem em conceitos nem em julgamentos. A unidade que

fundamenta a necessidade lógica do primeiro princípio se encontra

inevitavelmente rejeitada fora de nosso pensamento, num Absoluto subsistente.

126
Cf. BRETON, S. Essende et Existence. PUF. 1962.
127

Mas o que não pode ser representado pode ser significado. Aqui

ainda o dinamismo final nós dará os elementos de uma resposta completa.

4.5 - Justificação racional do absoluto

Marechal se coloca na metafísica tomista diante das diferentes

filosofias e seu objetivo particular é de colocar o kantismo ao diapasão do

tomismo. Para isso ele destaca da metafísica tomista as linhas salientes de uma

teoria geral do conhecimento e nesta análise mesma da doutrina tomista, reúne o

máximo de materiais de uma epistemologia conforme às exigências críticas dos

modernos.

Este propósito deliberado, ousado, de querer apresentar o método

ontológico tomista à moda transcendental confunde afinal de contas as

classificações etiquetadas prévias.

Marechal não hesitou a arriscar esta aproximação porque,

segundo ele, a crítica ontológica e a crítica transcendental, apesar de diferentes

no ponto de vista sob o qual elas consideram primeiramente o objeto conhecido,

convergem de direito para um mesmo resultado final: uma metafísica finalista.

Então a conclusão impõe-se, que de uma crítica à outra devem

existir correspondências estreitas, permitindo tratar uma como uma simples

transposição da outra. Já que o problema crítico do kantismo encontra seu lugar e

recebe seu desfecho no sistema metafísico do tomismo, as soluções antigas e


128

modernas se tornam comparáveis à única condição de transpor a linguagem

metafísica em linguagem crítica e inversamente.

A lei desta aproximação tomistica-kantiana esta inserida nas

seguintes linhas: O método transcendental de análise do objeto é um método não

exclusivo. No objeto do conhecimento espontâneo, se considera a influência

imediata das faculdades que erigem este em objeto conhecido. Quer dizer, em

linguagem kantiana: considera-se o a priori constitutivo do objeto, ou seja, as

condições transcendentais de possibilidades do objeto em oposição a sua conduta

empírica, o dado sensível. Ou seja, em linguagem escolástica é considerado o

cognoscível em ato segundo as condições que o constitue em sua atualidade

cognoscível. De fato, Marechal nota ele mesmo, no início de seu estudo, esta

ressonância kantiana de uma doutrina tomista127:

De hoje em diante, e sem perder de vista que devemos primeiramente


interpretar com fidelidade uma doutrina metafísica, nós vamos adotar o
método francamente dedutivo que exige o acabamento de uma
demonstração crítica [...] E talvez bastaria em seguida aliviar nossa
demonstração do contexto metafísico onde ela se cercava, para transpô-
la legitimamente, afinada mas não desanimada, sobre o terreno da
filosofia kantiana128.

Portanto, no pensamento marechaliano de nosso autor, as duas

doutrinas, apesar de muito diferentes, se encontram neste ponto preciso e se

cruzam. Nesta intercepção, onde duas concepções se identificam por um

127
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafisica, II, p. 90..
128
No original: Désormais, et sans perdre de vue que nous devons avant tout interpréter fidèlement
une doctrine métaphysique, nous allons adopter la méthode franchement déductive qu’exige
l’achèvement d’une démonstration critique […] Et peut-être nous suffirait-il ensuite d’alléger notre
démonstration du contexte métaphysique dont elle s’entourait, pour la transposer légitimement,
amincie mais non énervée, sur le terrain de la philosophie kantienne. (DIRVEN,op.cit.,p.191)
129

momento, efetua-se uma transposição dos pontos comuns, para se chegar em

seguida a um enriquecimento sobre os pontos antagonistas e divergentes.

Temos dois caminhos: um preliminar e metodológico, o outro –

explicativo da consciência – se desenvolvendo no coração mesmo do sistema

marechaliano.

4.6 - O método

Marechal compara uma com a outra a partir da teoria do a priori

kantiano e, especificamente tomista, do objeto formal. A chave desta aproximação

se encontra nesta frase à qual tomistas e kantianos poderiam assinar: “O termo

imanente de uma ação é necessariamente conforme à natureza do agente”129.

Assim que se conhece o resultado imanente de uma atividade,

pode-se deduzir as condições que o determinaram, e retornar até reencontrar

finalmente a natureza do agente.

Aquele que, finalmente, encontra todas as condições

determinantes de nosso ser em ato, que os estrutura segundo seus níveis

respectivos, que justifica a manobra, esclarecendo as origens (ou a fonte única),

este tem tornado possível definitivamente todo desenvolvimento filosófico.

129
No original: Le terme immanent d’une action est nécessairement conforme à la nature de l’agent.
(Ibid. p.193)
130

Contudo, a descoberta, a estruturação, a justificação, dessa

questão pede o estabelecimento de um método do qual parece depender o valor

mesmo da empresa.

Ora aqui se situa a primeira descoberta de Marechal após exame

detalhado, o método transcendental kantiano e o método tomisto-metafísico tem

uma grande semelhança.

Marechal não formula tão explicitamente seu pensamento, mas

sua exposição não deixa a sombra de uma dúvida a este respeito.

As duas iniciam-se de alguns preliminares quase idênticos, que

poderíamos classificar sobre os denominadores comuns: conteúdo de

consciência, princípio de identidade, reflexão.

4.6.1 - O conteúdo da consciência e o princípio de

identidade

Descartes investiga para ver e achar o que seria inevitavelmente

aceitável. Ele chega no eu que pensa e existe. O eu penso se impõe distintamente

como idéia clara, que não se pode não aceitar.

A escola socrática por seu lado, vinte séculos antes de Descartes,

estabeleceu com solidez a fatal necessidade da afirmação, sendo que tal se

confunde com a posição absoluta dos conteúdos de consciência segundo a regra

universal do primeiro princípio.


131

Em seguida, toda a tradição metafísica sustenta que uma única

verdade lógica existe e que tem um conteúdo necessário nas nossas afirmações.

O método deles - a dedução metafísica – supõe inicialmente: quaisquer dados de

consciência, sob o indício do primeiro princípio.

Neste sentido, nomeia-se a afirmação objetiva universal do ser

nas suas duas partes sintéticas: o dado afirmável e sua aplicação ao ser.

De fato, o homem, afirmando ou reagindo, age sempre colocando

uma relação estável entre o que ele afirma e o ser.

A crítica transcendental pressupõe, ela também, tanto os dados objetivos


como o primeiro princípio, mas ela suspende a afirmação primitiva
absoluta do ser para examinar neles próprios os conteúdos de
consciência130.

O objeto é então considerado como fenômeno, e o primeiro

princípio só é usado como norma reguladora do pensamento. Na crítica

transcendental o primeiro princípio é aceito como norma do pensamento: na crítica

metafísica ele entrega, inicialmente, a chave do real (ontológico).

Ora, vimos anteriormente que Marechal parte, como os antigos, da

afirmação do absoluto objetivo, que esta afirmação é necessariamente dada em

cada aplicação de princípio; que este primeiro princípio se apresenta sob dois

aspectos: um aspecto abstrato e um aspecto concreto que o aspecto abstrato se

impõe inevitavelmente, como um fato, em cada ato de pensamento, mas que ele

130
No original: La critique transcendantale présuppose, elle aussi, tant les données objectives que
le premier principe, mais “elle suspend l’affirmation primitive absolue de l’être pour examiner en
eux-mêmes les contenus de conscience”. (Ibid., p.195)
132

nos deixa insatisfeitos; que por conexão necessária, a afirmação do absoluto do

ser parece destinada à uma cláusula final que a joga no abstrato e que,

finalmente, só o aspecto concreto pode dar plena satisfação ao nosso apetite de

segurança e a prova completa da afirmação de um Absoluto, Ato puro131.

Deste modo, ao passo que a crítica metafísica se coloca de

improviso em uma perspectiva finalista, a crítica transcendental realça a afirmação

absoluta de ser para atribuir ao primeiro princípio só um valor normativo para o

pensamento.

Ora a reflexão transcendental, segundo a explicação de nosso

autor, envolve também o dinamismo final. Que ela se revela sendo

essencialmente dinâmica, ninguém coloca em dúvida. Kant descobriu

progressivamente ao longo dos anos, o papel essencial do dinamismo no seu

sistema. Daí as críticas finalmente não constituir sem uma propedêutica, mas

propriamente dito, uma pratico-metafísica. No método transcendental, a própria

investigação e a pesquisa crítica já se tornam o ato filosófico por excelência,

incluindo toda a metafísica dinâmica.

Mas, na perspectiva marechaliana, a noção de prioridade, num

conceito clássico muito esquecido dos cartesianos assim como dos empiristas,

entra no conceito de casualidade formal.

O kantiano que fala de análise transcendental certamente

reconhece o direito de inventariar a escolha analítica das determinações e

condições do objeto.

131
Cf. Ibid., p.195
133

“O que o interessa não é tanto o desmembramento do objeto já

constituído, mas o objeto na sua possibilidade interna, o objeto no estado

nascente (in fieri)”.132

O que Kant quer é não destrinchar arbitrariamente, mas realmente

descobrir os elementos estruturais do objeto da consciência, ou seja, as condições

que tornam a representação possível. A informação e não somente a forma, a

síntese ativa dos fenômenos, o exercício da espontaneidade. A prioridade formal

deve então se situar numa ordem dinâmica de casualidade, deve ser entendida no

sentido ativo, dinâmico e determinado pela causa.

A casualidade formal, não pode então ser vista no sentido de uma

forma estática, tal como a forma de uma estátua, congelada no repouso do

mármore. Ela deve permanecer repleta de universalidade virtual, ou seja, de uma

significação expansiva. Ela vai além da forma estática como uma condição

permanente e dominadora.

Na língua escolástica, poderíamos dizer, segundo Marechal, que a

casualidade formal das condições a priori no objeto imanente de conhecimento,

não é um resíduo inerte, uma estrutura que constata-se e que descreve-se, mas o

investimento ativo de uma matéria reconhecida pela finalidade interna, pelo o se

tornar natural do sujeito. Para se apresentar como objeto, a matéria do

conhecimento deve primeiro se deixar captar pela corrente que leva o sujeito para

seu fim natural: o objeto, na nossa consciência é, propriamente dito, esta

132
No original: ce qui l’intéresse, c’est moins le dépeçage de l’objet déjà constitué, que l’objet dans
sa possibilité interne, l’objet à l’état naissant (in fieri). (Ibid. p.199)
134

percepção mesma de uma matéria sensível pelo movimento vital de nossa

natureza intelectual.

Portanto, para ser eficaz este método transcendental deve então:

por um lado mostrar no a priori um caráter dinâmico e conclusivo, por outro lado

perceber a atividade imanente como inelutável e como condição sine qua non de

possibilidade. Ora, isto só é possível se alcança-se a atividade dinâmica no

mesmo momento onde ela “se insere e põe em ato o elemento material de nossas

representações”133; o que quer dizer que deve-se captá-la no momento onde o

objeto pensado nos é oferecido “como passando da potência ao ato, como fase de

um movimento ou de um tornar-se intelectual”.134

Ora, o pressuposto do método transcendental de análise parece

ser este: que nossos conceitos objetivos nos sejam dados, na reflexão, como

determinações ativas de uma matéria assimilada, como a transição de uma

potência objetiva de determinação à determinações atuais, resumindo, como o

movimento imanente de uma faculdade conhecedora tal como é.

Tudo isso: dinamismo, finalidade, reflexão, do conhecimento com

o movimento imanente da faculdade, provém do íntimo mesmo da análise crítica,

apesar de que Kant dele não tirou todas as conclusões. Ele ignorou, de fato,

numa certa forma “o papel essencial que a finalidade ativa do sujeito atual na

constituição mesma do objeto imanente, e este esquecimento torna impotente seu

método transcendental”.135

133
No original: compénètre et met en acte l’élément matériel de nos représentations. (Ibid. p.200)
134
No original: comme passant de la puissance à l’acte, comme phase d’un mouvement ou d’un
devenir intellectuel. (Ibid. p.200)
135
No original: le rôle essentiel que la finalité active du sujet joue dans la constitution même de
l’objet immanent, et cet oubli frappe d’impuissance sa méthode transcendantale. (Ibid., p.201)
135

Uma conclusão, importante para o método de Marechal, aparece

deste estudo da transposição. Como na metafísica tradicional, ele parte da

afirmação do absoluto implicado em todo exercício do primeiro princípio, ou seja,

em toda atividade. Mas, sem assinalá-lo explicitamente, ele deixa parcialmente a

atitude espontânea dos Antigos, para se colocar no plano da crítica. Ele aceita o

primeiro princípio, mas sem mencionar que ele lhe dá inicialmente somente um

valor puramente intelectual: uma regra de controle, uma norma abstrata.

Essa norma terá um valor ontológico, como nos Antigos, mas somente se
ela controla realmente a realidade inteira; se podemos alcançá-la em sua
função de controle; se controle e aplicação à realidade concordam de
fato. Neste momento, diversificando, a realidade se fixará como
expressão e referência ao absoluto. Neste momento teremos reunido o
ideal ao real, o pensamento ao ser136.

O controle eficaz, essa coincidência de luminosidade e de ato no

interior de um conhecimento em plena mudança se faz graça à consciência, ou

melhor, graça à reflexão transcendental que identifica-se com a afirmação, no

momento mesmo onde se deduz transcendentalmente a necessidade do ato

afirmativo.

Entre os dois pontos de vista, não existe nenhuma

incompatibilidade, já que o segundo é somente um aspecto preciso do primeiro; e

entre os dois métodos, não há nenhuma oposição, porque o segundo só explicita

136
No original: Cette norme aura une valeur ontologique, comme chez les Anciens, mais seulement
pour autant qu’elle contrôle effectivement la réalité entière; pour autant qu’on puisse la saisir dans
sa fonction de contrôle; pour autant que contrôle et application à la réalité coïncident de fait. A ce
moment-là, tout en se diversifiant, la réalité s’imposera comme expression et réference à absolu. A
ce moment-là on aura renoué l’idéal au réel, la pensée à l’être. (Ibid., p.201)
136

o que o primeiro aplicava desde muito tempo, mas muitas vezes de forma

impensada.

É necessário então partir para a segunda etapa de nossa

exploração, antes de tudo, de um conteúdo de consciência qualquer e do princípio

de identidade como regra de todo pensamento. Recusar um conteúdo de

consciência é retirar toda matéria de pensamento; negar o princípio de identidade

como norma intelectual, é querer defender o ato de inteligência de ser inteligência

em ato.

Um terceiro elemento se apresenta: a reflexão como meio de

explicitação de análise e de prova. Na sua fase implícita, ela coincide com o ato

mesmo do conhecer. Ela é então uma consciência concomitante que permite uma

auto-inspeção do ato em movimento. Desde a abertura de nossa inteligência para

o objeto, ela acompanha o andamento inteiro de sua atualização progressiva.

Pode-se com ela observar as diferentes determinações que constituem um objeto

em ato no pensamento, conhecer as diferentes faculdades, funções das quais ele

depende, atingir o conjunto das necessidades racionais (condições a priori de

possibilidade do objeto na consciência). Ela é toda transcendental.

Assim, é preciso, em conclusão, deduzir que a afirmação de um

objeto transcendente é uma condição constitutiva do objeto, não somente para a

prática, mas para a teoria. A afirmação ocupa esta função se ela toma o objeto

pelo íntimo desde sua emergência na consciência. Condição necessária de todo

conteúdo de consciência, esta afirmação participa do valor teórico dos objetos que

ela exige. Se esta condição implica logicamente a afirmação de um objeto

transcendente, igual afirmação reveste, não somente a necessidade prática de um


137

postulado, mas a necessidade teórica de uma evidência especulativa, pelo menos

de uma evidência especulativa indireta (analógica). Mas então, nós não nos

encontraríamos mais no kantiano.

4.6.2 - A noção de verdade e a ordem do julgamento

Devemos mostrar que nossa consciência pode, em certas

condições, reivindicar o atributo de verdade lógica, ou seja, ser verdadeiramente

objetiva.

Segundo Marechal, seguindo assim São Tomás somente o

julgamento pode reivindicar esta qualidade de ser emissário da verdade. O

julgamento em si conscientiza o objeto como objeto.

Este papel distinto reservado ao julgamento como base de toda

doutrina da verdade e até mesmo de toda filosofia, pode, a primeira vista,

surpreender. Não seria lhe conceder um valor que na verdade ele não possui?

É certo que para Marechal a verdade não pode ser encontrada em

nenhum outro elemento do conhecimento humano. Nem a sensação, nem o

simples conceito, nem a apreensão, nem a síntese concreta não apresentam –

signate aut exercite – os elementos essenciais de uma relação de verdade lógica.

Assim, para ter uma relação de verdade lógica deve haver uma

verdade qualquer que esteja presente na inteligência. Pode-se falar de uma

verdade imanente à coisa – São Tomás a chama de verdade ontológica.


138

De outro modo, pode se supor que ela esteja corporalmente

presente, mas que ela não atinja nossa consciência de forma alguma, nem mesmo

implicitamente, então ela é para nós como algo sem realidade. A verdade no

sentido próprio só pode ser dita em função de uma inteligência. As coisas

existentes, dependem de uma fonte de verdade: elas emergem do ser por uma

Inteligência infinita, elas são medidas pela Inteligência primeira.

A verdade existente na nossa inteligência não é esta verdade ontológica.


Aproveitando da inteligência para se encontrar na superfície da
consciência filosófica, querendo nos tornar expressões de verdade, a
coisa se relaciona com nossa inteligência : mesmo integrada no
conhecimento, a coisa mede nossa inteligência137.

O pensamento só atinge a verdade mostrando uma conformidade

entre seu ser (se exercitando no ato da inteligência) e o objeto real (encontrando

sua expressão – forma vicária – no conhecimento). Esta conformidade de

oposição, da inteligência com a coisa, forma a relação de verdade lógica.

Deste modo, a noção de verdade sempre contém a atualização

proporcional entre o pensamento e a realidade: na verdade ontológica, verdade no

sentido derivado, a coisa é medida por uma inteligência; na verdade lógica,

verdade no sentido próprio, a inteligência é medida pela coisa; ela fica ao mesmo

tempo marcada pela oposição ao objeto.

137
No original: La vérité de ce que possêde notre intelligence n’est pas cette vérité ontologique. En
empruntant la voie de notre intelligence pour apparaître à la surface de la conscience
philosophique, en voulant devenir en nous expression de vérité, la chose contracte un certain
rapport avec notre intelligence: tout en étant intégrée dans la connaissance, la chose mesure notre
intelligence. (Ibid., p.205)
139

A apreensão dos objetos é verdade para nossa inteligência na

medida em que essa toma consciência de sua assimilação ao objeto o qual ela se

opõe. Na verdade, esta só se encontra na intersecção das condições a priori e

das condições empíricas de nosso conhecimento objetivo.

Ora, dentre todas estas condições, nenhuma fica isolada, pois se

realiza a integração formal na alteridade que caracteriza o verdadeiro

conhecimento. Todas devem ser superadas, se ordenar hierarquicamente sob o

julgamento até realizar a afirmação ontológica que liga a inteligência ao ser

absoluto.

A luz de um conhecimento só brota na inteligência no momento de

sua identificação com o objeto. Sujeito e objeto devem coincidir para que um

conhecimento ilumine nosso mundo interior. O conhecimento não ata esta união,

ele é a união, ele supõe a união feita. Mas nossa inteligência humana não é

intuitiva. Ela é discursiva, e uma inteligência discursiva, que nem sempre está apta

a conhecer, deve receber seus objetos. Seus objetos lhe são dados. Ela depende

dos outros quanto ao conteúdo de suas posses. Ela é receptiva.

Ora a recepção supõe um certo condicionamento recíproco de

receptividade e de comunicação. Qualquer um não recebe qualquer coisa. Deve-

se estar preparado para o que se quer aceitar; e isto só se alguma coisa for dada

e esta alguma coisa estiver adaptada às nossas possibilidades.

Ora, por um lado constata-se o fato do conhecimento. Por ele

mesmo, mostra-se toda interioridade. Ele se apresenta como um ato imanente da

consciência. Ora a ação imanente não é transitiva entre um sujeito em si e um

objeto em si. Ela é possessão de objeto no interior do sujeito.


140

Por outro lado, nossa inteligência, discursiva, deve aceitar. Em

outras palavras: um objeto se opõe ao sujeito. Um objeto e um sujeito se

defrontam, se freqüentam. Para que eles se unem um deve agir sobre o outro.

Uma atividade transitiva é necessária.

Mas a atividade conhecedora é imanência e ato. Todo seu efeito

próprio é interioridade. O agente principal do ato transitivo parece então ser o

objeto. A ação do objeto sobre o sujeito se impõe como um pressuposto. Nos

encontramos diante coisas dadas, coisas recebidas. Dadas como frutos da

atividade do objeto, recebidas como aceitas pela inteligência. Dom e recepção são

os primeiros elementos que orientam nossa procura do condicionamento

inteligência-objeto.

A ação do objeto sobre o sujeito supõe no sujeito uma capacidade

de sofrer uma influência vinda do exterior, ela pede a aplicação de uma faculdade

receptiva externa. Assim, o conhecimento é possessão ativa de conteúdo, de

consciência. Se de uma maneira ou de outra ela recebe, a receptividade deve

estar inscrita na sua realidade viva. A receptividade puramente material não é

suficiente, a aceitação do dado e tudo que abrange o dom, deve se encontrar na

imanência, no ato.

A forma natural possui em si uma operação estritamente

imanente, ela não é totalmente absorvida pela matéria, ela emerge. Nela a

recepção material se prolonga em uma recepção imaterial que implica o

conhecimento. Ou melhor, a recepção imaterial que lhe é própria se dobra, se

exterioriza numa recepção material que a coloca em contato com o mundo físico.

Este é particularmente o caso dos seres sensíveis. Para se tornarem


141

conhecedores, eles começam por aceitar as influências exteriores que se

imprimem na sua materialidade, e eles a completam pela aceitação interior da

forma objetiva que foi comunicada nesta impressão.

Neste contexto, pode-se concluir: a recepção material, a pura

sensação, só é, nela mesma, relatividade. Ela é constituída pela interação

material do sujeito e do objeto em si. Seu próprio conteúdo é a forma que resulta

diretamente da união dos dois termos, a marca pela qual o mundo exterior vem

ativamente modelar nossos órgãos sensíveis. Logo que é impressa no sensorium,

esta forma considerada como tal, pertence tanto ao sujeito como ao objeto. Ela é

relativa. Ela é entendida como um conjunto, o que a escolástica nomeia o objeto

formal.

O objeto formal que acabamos de citar existente na sensação,

marca sempre uma relação recíproca do sujeito ao objeto. Ele é o acordo mútuo,

apercpeção requerida; é então o aspecto sob a qual os objetos materiais da

potência se relacionam.

Na unidade universal que ele exprime, os objetos particulares estão


realmente em força, um próprio ato complementar de um sujeito
conhecedor; por outro lado, o objeto formal é a força mesma (a
capacidade) do sujeito com relação aos objetos exteriores, de onde as
determinações são recebidas pelo sujeito como também por outros atos
que o “aperfeiçoam”. Conhecendo bem o objeto, a atualização se torna
mútua : o objeto formal representa, para cada poder, a condição comum,
média, onde objeto e sujeito se completam e comungam naturalmente,
segundo uma relação recíproca de ato e de poder138.

138
No original: A l’unité universelle qu’il exprime, les objets particuliers sont réellement en
puissance, comme à leur acte complémentaire dans un sujet connaissant; d’autre part, l’objet
formel est la puissance même (la capacité) du sujet relativement aux objets extérieurs, dont les
déterminations sont reçues par le sujet comme autant d’actes seconds qui le “perfectionnent”. Dans
toute connaissance d’objet, l’actuation est donc mutuelle: l’objet formel e représente, pour chaque
faculté, la condition commune, mitoyenne, où objet et sujet se complètent l’un l’autre et
communient par connaturalité, selon une relation réciproque d’acte et de puissance. (Ibid., p.210)
142

Então não é a ação física do objeto material que delimita o

aspecto formal, característica de uma faculdade. Nenhum objeto material

apresenta por si só as qualidades de unidade, de universalidade e de necessidade

que ele possui uma vez integrado no conhecimento. De fato, estas qualidades

estão em desproporção flagrante com a ação exterior, múltipla, particular e

contingente da materialidade. Mas é na adaptação conjunta que a forma preexiste

como resultante possível tanto no eu como no objeto.

Já que é só pelos caracteres de imanência estrita que as

qualidades sensíveis chamam nossa atenção, a forma dada à sensibilidade deve

já estar na ordem das idéias assim como partícipe analogicamente das qualidades

da forma subsistente.

A forma da sensibilidade, apesar de sua perfeição, permanece

para os escolásticos, realmente orgânica, intrinsecamente limitada pela matéria do

sensorium, constituindo com esta matéria um só principio indivis de operação

imanente. Mas ao mesmo tempo ela se apresenta como uma operação que, se

voltando-se para os objetos exteriores e sofrendo a marca material do mundo

objetivo, possui acima de tudo uma função intencional e psicológica, característica

para o conhecimento completo139.

Podemos dizer que sem matéria sensível e sem intuição

quantitativa desta matéria, o conhecimento fica no vazio, por falta de conteúdo

139
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica, III, p.341
143

determinado; mas também sem a desmaterialização deste conteúdo numa

atividade imanente, a matéria sensível nunca é conhecida.

Nossa inteligência possui, pois, por natureza, os princípios


transcendentais que permitem reconstruir uma unidade ‘inteligível em ato’
sobre o modelo de uma representação concreta, que não é inteligível
mais que em potência. O qual eqüivale dizer, na terminologia moderna,
que a inteligência encerra uma ‘condição sintética a priori,’ inquantitativa
e metasensível, que, sem embargo, não entra no jogo mais que com o
favor de uma cooperação atual da sensibilidade. A cooperação sensível
completa materialmente as determinações transcendentais, inatas à
inteligência, permitindo-lhes assim expressar-se em representações
objetivas140.

A partir da interioridade intuitiva, perfeita, própria do Ato Puro, a

inteligência humana traz em si um modo transcendental de unidade que exige

uma matéria onde aplicar-se. A inteligência humana, em possessão natural, mas

não objetiva, enquanto ser, está limitada extrinsecamente por “coisas em si”

donde deve para passar ao ato objetivo, assimilar-se, por através do sentidos, as

aportações sucessivas.

4.6.3 - Universalização

O objeto se apresenta e estampa: uma sensação é necessária. À

recepção material, esta sensação deve se desdobrar em uma receptividade

imaterial para se tornar realmente reconhecida. Este distintivo imaterial só se

explica numa teoria da intencionalidade onde a forma surge além da matéria, tira

140
Ibid., p.341
144

dos objetos sua materialidade e se enriquece de conteúdos ideais pertencendo à

ordem da idéia.

Não, é somente o nível da receptividade, mas onde certos

caracteres só se explicam com referência a um nível superior. Eles presumem o

andamento de uma atividade que não se encontra na própria natureza da

sensibilidade.

O fantasma (ou imagem sensível) é o produto específico da

sensibilidade. Dependendo do objeto material para sua presença física o fantasma

deve ser realçado de maneira a se assimilar finalmente o conteúdo da atividade

imanente. Para se dar conta então da desmaterialização da imagem sensível, é

preciso resolver o caráter intencional na gênese de nosso pleno conhecimento.

É evidente que só a imagem sensível não pode preencher uma

função intencional. Esta figura só existe se concretizada numa referência explicita

e direta ao materialismo do objeto físico; ela precisa de um condicionamento para

desencadear seu interior; e estando ligada à quantidade ela não apresenta as

qualidades de universalidade, de necessidade e de atividade reivindicadas pelo

nosso conhecimento.

A inteligência não é um tipo de sentido interno, passiva à sua

maneira. Os problemas e as exigências que foram formuladas para a

sensibilidade, não se fixam nem para o ato nem para o produto da inteligência. O

conceito, produto do ato intelectual, não é intrinsecamente ligado à imagem

concreta. De outra maneira o conceito se revestiria totalmente, consciente em si,

das propriedades estritamente individuais e quantitativas.


145

É então preciso uma inteligência que resolva o enigma da

receptividade imaterial, que aja sobre a imagem sensível, que assim revele a

intencionalidade do completo conhecimento e que forneça assim um objeto

idealizado ao ato imanente.

Ora, tudo isto só é possível pressupondo uma atividade que tenha

sua fonte própria na inteligência e que só seja atividade, sem nenhuma recepção.

É necessário que a atividade intelectual, não seja somente a priori como a

sensibilidade, mas que ela seja espontânea num sentido mais estrito.

Mas será que não há outra solução do que a espontaneidade da

inteligência? Como, por exemplo, a intervenção de um Ser transcendente?

Diante dessa questão, Marechal nos conduz a uma solução: supor

um Ser transcendente atuando diretamente sobre a inteligência seria contrário aos

princípios metodológicos fundamentais de uma filosofia saudável.

A inteligência é ativa sob um aspecto e passiva sob outro.

Reconhece-se aqui as teorias escolásticas, um pouco fora de moda, mas não

ultrapassadas, do intelecto-agente e do intelecto-possível.

A função necessária da inteligência-agente, diz Marechal, consiste

em criar no intelecto-possível os inteligíveis no ato, ou seja, lhe fornecer

determinações específicas (species), intrinsecamente livres de qualquer restrição

material.

4.6.4 - A atualidade do intelecto-agente


146

Tendo em vista que se deve colocar na inteligência um aspecto de

espontaneidade, um aspecto de atividade onde a fonte se encontra na potência

intelectual, um aspecto o qual denomina-se intelecto-agente, deve-se logicamente

admitir que a inteligência, neste ponto de vista, não necessita de ato desconhecido

para entrar em ação e que ela está sempre atuando. Os efeitos particulares de

sua atividade serão prolongamentos em ação do seu estado de ato. Naturalmente

dinâmico, o intelecto-agente está sempre em ato conforme sua substância.

Pode-se considerá-lo, pois, como uma espontaneidade radical, um

poder da alma que se estende ativamente em direção a tudo em que a

inteligência, como possibilidade de conhecimento, pode integrar.

Por outro lado, já que não temos os objetos de nosso

conhecimento nascidos em nós, devemos dizer que:

a parte verdadeiramente espontânea de sua intervenção não vai além de


certos caracteres absolutamente gerais, os quais a próxima especificação
depende do dado sensível. Kant dizia o mesmo, em termos críticos : o
conceito não é totalmente a priori nem totalmente espontâneo : ele é a
posteriori (ou empírica) quanto à sua matéria (seu conteúdo diverso), a
priori e espontâneo quanto à sua forma sintética (sua forma de
universalidade)141.

Ou melhor, potência, é pois, a condição objetiva criada pelo

impulso original do Ato a comunicar-se direta ou indiretamente: no princípio

primeiro de toda potencialidade há uma vontade criadora142.

141
No original: la part vraiment spontanée de son intervention ne dépasse pas certains caractères
absolument généraux, dont la spécification prochaine dépend du phantasme. Kant disait de même,
en termes critiques: le concept n’est pas totalement a priori ni totalement spontané: il est a
posteriori (ou empirique) quant à sa matière (son contenu divers), a priori et spontané quant à sa
forme synthétique (sa forme d’universalité). (Ibid., p.216-7)
142
Cf. Ibid., p.408
147

No exercício de nossas faculdades racionais percebemos a

passagem da potência ao ato e o impulso que ultrapassa o momento presente.

Assim, Santo Tomás reconhece nelas as correlações essenciais a todo

acontecer. Se como foi afirmado o principio primeiro e o fim último são

correlativos logo, o intelecto agente, em um móbil é o impulso recebido do

motor, é, portanto, o principio do movimento143.

4.6.5 - A inteligibilidade da imagem sensível

O inteligível em ato, diz Marechal, não indica nada mais que a

forma objetiva de atuação da potência intelectual. Nem o objeto exterior, nem a

imagem sensível apresentam esta atualidade objetiva do conhecimento. Eles são

no máximo intelligibilia in potentia, os quais devem ser atualizados. O papel do

intelecto-agente será então facere intelligibilia in potentia esse intelligibilia in actu.

Como o intelecto-agente acontece? Não por uma transformação

física da imagem sensível, mas por uma abstração da forma universal. Ao invés

de impedir o conhecimento da realidade segundo sua verdadeira natureza assim

como sua real existência, a abstração rende à imagem recebida todo teor

universal do ser real por ele mesmo; ela universaliza.

A inteligência mesma está em potência, mas com a possibilidade de sair de si


mesma, de seu estado de espera, no momento de um objeto presente sobre
sua trajetória. Ela capta então uma possibilidade pré-existente no objeto para
atualizá-lo. Esta atualização (o universal tal como revelado na inteligência após

143
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q.12, a.1, in c.
148

a reflexão) não é o objeto exterior, com certeza que não, mas ela realiza o que
o objeto possui de valido, de importante144.

A função do intelecto-agente com a imagem sensível parece

então, no sistema tomista, com a uma dupla casualidade. O intelecto-agente é ao

mesmo tempo e sob certos aspectos uma causa formal e causa eficiente.

A relação do intelecto-agente com a imagem sensível implica algo

nesta pluralidade de causas, se quisermos nos dar conta da atividade recíproca

dos dois elementos cognitivos. De fato, existe uma solidariedade natural muito

unida entre o intelecto-agente e a imagem sensível porquê, segundo São Tomás,

esta relação se prende à doutrina geral sobre a intercomunicação vital das

potências numa formação humana. Para São Tomás e para Marechal, o ser

humano só forma uma unidade, uma substância, um principio radical de agir. Toda

atividade humana é então profundamente uma, e cada potência particular se

encontra, parcialmente ou por repercussão, nas outras potências. Cada ato

exprime o ser humano inteiro, mas ao seu modo. Esta unidade não impede a

multiplicidade de faculdades, de possibilidades e atos, mas ela exige um princípio

de unificação contínua.

Paralelamente, a relação entre o intelecto-agente e a imagem

sensível é, por um lado a de uma casualidade material e formal e, por outro lado,

a de uma casualidade eficiente e final. No primeiro caso a imagem sensível é

como o suppositum ou o suporte material que permite ao intelecto-agente existir

144
No original: l’intelligence elle-même n’était qu’en puissance, mais avec la possibilité de sortir, de
soi-même, de son état d’attente, à l’occasion d’un objet présent sur sa route. Elle capte donc une
possibilité préexistante dans l’objet pour l’actualiser. Cette actualisation (l’universel tel qu’il est
révélé dans l’intelligence après réflexion) n’est pas l’objet extérieur, sûrement pas, mais elle réalise
ce que l’objet possêde de vraiment valable, d’important. (Ibid., p.217)
149

como informação num conteúdo. No outro caso, o intelecto-agente se mistura

continuamente, como um princípio ativo e dinâmico à sensibilidade; ele a dirige

como uma causa orienta seu efeito.

Então, no homem, a finalidade interna, o apetite natural da sensibilidade


não fica confinada à algo concreto espacial e transitório, mas sim, através
deste concreto, se orienta para o inteligível. É por isso que no homem,
não como nos animais, o produto superior da imaginação chama, por sua
natureza, como o complemento normal, a inteligibilidade. É o que exprime
a formula recebida: phantasma est intelligibile in potentia.145

Assim, como já foi dito a imagem sensível deve ser o produto de

uma receptividade tanto imaterial quanto material. A síntese passiva,

simplesmente resultante de associações automáticas e de marcas materiais, deve

então se duplicar em uma síntese ativa, construtiva ou re-construtiva, para entrar

como unidade na consciência.

4.6.6 - Os caracteres próprios dos conceitos

O intelecto-agente realiza para a inteligência a comunicação de

sua própria atualidade permanente a um paciente: a inteligência mesmo sendo

uma possibilidade de conhecimento. Logo que ele entra em exercício ele

comunica sua própria vitalidade à imagem sobrelevando-a, preparando-a para ser

captada, e depois do contato atual estabelecido entre as duas faculdades,

sensitiva e intelectual, o intelecto-agente transporta seu próprio movimento


145
No original: Chez l’homme donc, la finalité interne, l’appétit naturel de la sensibilité ne demeure
pas confiné au concret spatial et temporel, mais à travers ce concret, s’oriente vers l’intelligible.
C’est pourquoi, chez l’homme, à la différence des animaux, le produit supérieur de l’imagination
appelle, de sa nature, comme un complément normal, l’intelligibilité. C’est ce qu’exprime la formule
reçue: phantasma est intelligibile in potentia. (Ibid., p.219)
150

segundo as especificações de sua matéria sobre a qual ele agia. Neste

movimento, pelo qual a inteligência se especificou se adaptando

espontaneamente a uma matéria, ela possui o tipo formal, dinâmico,

intrinsecamente imaterial do termo sobre o qual o intelecto-agente exerceu sua

ação.

Do encontro, necessário e inconsciente, do intelecto-agente e do


fantasma, o primeiro se submetendo ativamente ao segundo
(analogicamente como causa principal e causa instrumental), resulta na
faculdade intelectual uma determinação dinâmica correspondendo à
estrutura qualitativa do fantasma, termo desta atividade146.

Segundo a doutrina de São Tomás a species ainda não constitui o

id quod do conhecimento, mas somente o id quo. Ela possui no conhecimento

(como possibilidade) uma função dinâmica e formal, mas não objetiva. Marechal

diz que ela é, a linha característica de uma atitude, mas de uma atitude objetiva,

dinâmica e não estática.

O aspecto puramente formal desta atitude pode muito bem se

exprimir pela terminologia kantiana das categorias ou puro conceitos. Segundo

Kant, estes conceitos só têm uma real existência por uma síntese concreta que os

ligam à unidade categorial do real. Marechal diz também que de uma maneira

geral, é uma condição necessária da representação objetiva no julgamento.

Deste modo, para passar do fantasma a um conceito universal é

necessária a presença simultânea de duas qualidades: primeiramente a species

deve ser liberada de qualquer resíduo particular próprio e estar integrada numa

função universal; em segundo lugar ela deve permanecer ligada de uma matéria
146
No original: De la rencontre, nécessaire et inconsciente, de l’intellect-agent et du phantasme, le
premier se subordonnant activement le second (analogiquement comme cause principale et cause
instrumentale), résulte dans la faculté intellectuelle une détermination dynamique correspondant à
la structure qualitative du phantasme, terme de cette activité. (Ibid., p.220)
151

qualquer a uma materialidade unificada. A primeira operação é efetuada pela ação

do intelecto-agente sobre o fantasma. A segunda se realiza pela síntese concreta.

São Tomás dizia o mesmo recorrendo à unidade do ser

quantitativo. A atividade intelectual sempre se liga a uma materialização muito

geral. Um elemento de representação sempre interfere em todas suas atividades.

Ela só pode fazer funcionar as species na consciência objetiva e levando-as até

uma imagem atual e concreta correspondente.

Portanto, observa-se que, mesmo admitindo uma síntese

concreta, segundo São Tomás e Marechal, ainda não se vai além da função

representativa do conceito. O conceito não se torna totalmente objetivo porque ele

está ligado a uma unidade categorial do real. Conhecer a representação objetiva

do objeto, não é ainda conhecer o objeto ele mesmo como que se opondo

objetivamente ao sujeito. Esta última etapa, a objetivação propriamente dita, só

será realizada no dinamismo final da inteligência.

4.7 - Julgamento e objetivação

A síntese concreta não basta para explicar a função objetiva do

conceito. Porque o conceito deve não somente apresentar um conteúdo

universalizado, uma species considerada precisa no interior de nosso

conhecimento próprio. Ele deve ser atribuído de maneira explicita ao objeto, ele
152

deve significar a unificação do objeto e do sujeito na oposição. Sozinho, ele não

dá conta. Isolado, ele é apenas uma representação. Ele tem nele a marca da

concreção, quer dizer de sua origem e de sua relação à imagem sensível; mas ele

não é ligado à realidade, ao ser.

Se a função objetiva do conceito se confunde totalmente com a

sua função representativa, como o supõe a Crítica da Razão Pura, é preciso

concluir que a espontaneidade do intelecto-agente, na formação das espécies

inteligíveis, se reduz a um poder formal de síntese numérica. A unidade inteligível

não é outra que a unidade abstrata do número. Ora São Tomás e Marechal

pretendem que através da unidade abstrata de número uma outra unidade,

inteligível, seja afirmada em cada conhecimento; que uma significação, inclusa

virtualmente em cada representação, transporte a consciência além de toda

imagem sensível para uma região metaempírica, conhecida analogicamente. Sem

essa unidade ulterior, sem essa importância significativa, cai-se no agnosticismo

metafísico, não se conhece realmente os objetos. Se a inteligência suporta o

objeto, ela deve, sobretudo se opor a ele ativamente. É preciso que não somente

o conhecimento perceba a origem estrangeira da determinação imanente (isso

conduz somente à afirmação de um objeto em si do qual não se sabe nada, nem

se ele existe de verdade), mas que conserve a relação ad extra, que ele afirme

esta relação na imanência do sujeito. Por isso, o tomismo tem o título de verdade

graça ao julgamento que afirma e que nega. A síntese, a pura composito e divisio

(quer dizer: uma união de um dado com as categorias do real ou do irreal), não
153

basta; uma síntese afirmando ou negando a referência ao ser, à realidade

existente é necessária147.

O conceito, visto isoladamente, reflete com mais ou menos

intensidade a fidelidade ao objeto exterior: existe um tipo de estado de

conformidade entre eles e o objeto, como num retrato, nada mais. A verdade aí se

encontra, mas somente como ela se encontra numa coisa na qual a realidade

própria manifesta. Se o conceito ou a simples apreensão implicam um grau mais

elevado de verdade, é que eles participam da composição do julgamento.

Para se conservar uma oposição na imanência mesma do sujeito

e não criar uma confusão de objeto e de sujeito no interior da consciência, é

preciso recorrer a uma função do julgamento que ultrapasse sua atividade

sintética. Ligar uma síntese de objeto e de sujeito numa unidade abstrata do

conceito, admitir uma composição e divisão sem participação explícita do ato

intelectual, não é mais suficiente, é necessário que o ato de afirmação ou de

negação seja integrado no conhecimento.

A verdade se une formalmente, não a uma expressão conceitual, mas a


um princípio quase intuitivo, a atividade intelectual. Ela ultrapassa o
quadro da imanência subjetiva para render a um objeto, o conteúdo da
representação conceitual.148

Esta quase-intuição, Marechal a chama: a afirmação. A afirmação

confere ao julgamento o valor objetivo149. Ela, na qual prima o elemento ativo e

147
Cf. MARECHAL, Joseph. El punto de partida de la Metafísica,III, p.498
148
No original: la vérité se rattache formellement, non à une expression conceptuelle, mais à un
principe quase intuitif, l’activité intellectuelle. Celleci déborde de cadre de l’immanence subjective
pour repporter à un objet le contenu de la représentation conceptuelle. (Ibid., p.223)
149
Cf. MARECHAL,op.cit., p.502
154

intuitivo da inteligência, é de uma importância capital para a teoria de Marechal.

Ora, sem perceber, ela esta presente em toda a evolução, em toda a gênese de

nosso conhecimento. Ela arrasta todo o peso da verdade, implicitamente contido

em cada elemento consciente. Ela é a força estimulante, a origem imanente e o

dinamismo final. Ela confere finalmente ao conceito uma relação de oposição que

o marca na nota de ser (ou melhor: que o liga à existência).

Antes de passar a nossa seção seguinte, que se move

diretamente sobre o plano ontológico, para conduzir definitivamente ao Absoluto

do ser, Marechal ainda destaca algumas conseqüências desta integração da

afirmação. Essas conseqüências poderiam ser como tantas razões que forçam a

aceitar a necessidade da afirmação. Elas apresentam somente a explicação de

certas exigências de nossa vida intelectual.

4.7.1 - Conseqüências do julgamento afirmativo

A faculdade de objetivar transborda, em nós, a capacidade de

representação formal; porque nosso poder de afirmar não é restrito aos objetos

representáveis segundo sua forma própria.

Mais uma vez é a retomada a questão doutrinal da distinção

existente entre id quod e id quo do conhecimento. A inteligência não pode possuir

a forma própria do objeto na sua conexão com a materialidade: uma forma de

vigor é necessária. Mas, como já observamos, esta forma vicariante, a species,

não é aquilo que nós conhecemos: São Tomás e Marechal nela voltam
155

regularmente. O que se conhece, é o objeto exterior. Existe então uma disjunção

entre a afirmação objetiva e o modo da representação. Na representação, não se

possui o valor total da afirmação. A afirmação ultrapasse a representação.

A species, em si e por precisão, é uma forma abstrata, universal,

exprimindo a semelhança entre o conhecimento e objeto conhecido. Mas a

semelhança não é a última palavra de nosso conhecimento, e a existência ao

modo universal não é o verdadeiro objeto concreto. A representação deve ainda

significar o objeto real, e por isso ser relatada ativamente à realidade, ao ser.

Ora, após a doutrina analisada até agora, deve-se dizer que o fato

de não ser representável não leva a dizer que o Absoluto não possa ser

significado. Certamente, uma certa representação deverá servir de suporte

material ou de suppositum à nossa significação do Absoluto. Mas representação

não é afirmação. A afirmação vai muito mais longe que a representação; o que

ela significa ultrapasse o representável. Escolhemos então uma representação

pelo menos mínima. Ela servirá de veículo à significação enquanto que esta falará

diretamente sobre a existência de Deus. Não haverá conhecimento representado

de Deus, mas sua existência será significada, afirmada150.

O conhecimento dos atributos divinos se apõe sobre

representações conceituais muito inadequadas em relação à realidade visada.

Tiradas da experiência concreta do mundo empírico, elas não dizem nada da

natureza própria de Deus. O julgamento sobre Deus deve então ter alguma coisa

150
Cf.MARECHAL,op.cit., p.503
156

a mais, que não apresenta a representação. E de fato, este julgamento é uma

comunicação ao ser, não na sua formulação conceitual, mas na realidade

dinâmica que o transporta além dos conceitos para o objeto significado. A

afirmação enriquece nossas representações dando-lhes um valor objetivo.

Inserida nas afirmações, a representação se dobra de uma referência explícita e

vivida ao ser e à perfeição.

4.7.2 - A finalidade de nosso conhecimento

O caráter dinâmico e conclusivo de nosso conhecimento,

qualidade evidente, poderia não fazer nenhuma dificuldade e assim pedir nenhum

desenvolvimento ulterior. Deste ponto depende, portanto, da boa compreensão e

eficácia do raciocino marechaliano.

Uma certa finalidade dinâmica move toda a estrutura, toda

disposição das diferentes partes que colaboram na eclosão da consciência

luminosa.

Um impulso contínuo dirige e condiciona nossa percepção. Ela

encontra sua fonte na espontaneidade intelectual, e se apõe na aquisição do

objeto perseguido. A espontaneidade dirige os elementos ativos a partir da

sensibilidade até o intelecto-agente; mas é o objeto, como fim procurado, que

determina a forma. Há então um funcionamento dirigido para um fim. Os dois,

função e fim, colaboram na construção progressiva do objeto imanente.


157

O fim dirige a forma de nosso dinamismo: a necessidade de

explicar a objetividade de nosso conhecimento – uma objetividade que liga ao ser

e opõe um objeto a um sujeito – obriga-nos a aceitar um dinamismo que leva a

mais longe que a representação. Sendo mais que uma representação, o objeto

exige que a atividade atinja mais que a representação, que ela significa o ser

mesmo. O fim deve ser presente no tipo formal e dinâmico da atividade

intelectual151.

Assim, a nossa inteligência conhece objetos dos quais ela não

tinha conhecimento antes e tende a conhecer vários outros; ela domina este

conhecimento com todo seu condicionamento a priori. Ela entra em ação por uma

espontaneidade que ela mesma esta orientada para uma aquisição de objetos.

Então é uma passagem de potência ao ato, sob a influência de um mundo

objetivo.

Ora, um movimento é a perseguição de um fim; o movimento

intelectual é especificado por seu objeto formal. A uma tal capacidade pode só

corresponder um só fim absolutamente último: o Ser infinito.

Sob o desenvolvimento de nosso tornar intelectual, se reconhece

um movimento para um objeto que se afasta sempre mais. É uma verdadeira

ascensão o Absoluto, porque para ser totalmente saturante, o objeto de do

movimento se revela como sendo necessariamente o Ser infinito.

Mas, para mostrar que nosso dinamismo intelectual tem um fim

151
Cf. MARECHAL,op.cit.,p.402
158

sem limites, não somente ideal, mas ainda existente, é preciso agora falar da

intercomunicação de duas faculdades: inteligência e vontade.

4.7.3 - O julgamento e o absoluto do ser

Kant cria a realidade objetiva da existência de Deus sobre a

necessidade prática do bem agir. Este caminho é certamente uma via praticável

para se chegar pessoalmente a Deus, a condição de se engajar ou de

estabelecer a necessidade de bem agir. O dever moral, que se impõe

universalmente como sentimento natural, e sobretudo a fórmula explícita do dever

de onde Kant inferiu seus postulatos práticos, pode ser negados sem cair em

contradição. O agir se impõe a todos, mesmo na abstenção.

Ora, toda ação voluntária é a perseguição consciente de um fim; e

perseguir um fim é afirmar implicitamente as condições objetivas da realização

deste fim. Então, por causa da necessidade geral de agir, é necessário afirmar,

de uma maneira absoluta, tudo aquilo que condiciona a existência deste agir, ou

seja, simplesmente a existência da realidade ontológica, e notadamente a

existência de Deus.

Porém, uma certa dúvida afeta o caráter absoluto deste raciocínio.

Não se deve dizer como Kant propõe, que a cognoscibilidade do Ser Absoluto

recebe uma certeza convincente somente após estar necessariamente posto pela

ação. Esta ação é absolutamente necessária, é certo; mas o conhecimento das

condições que regem a ação só tem valor se tiver sido atualizada pela ação. Em
159

outros termos: já que o ato voluntário é, dentre outros atos, o único que afeta

nossa consciência clara e que este querer depende ou não de um dever, as

condições do querer se revela categoricamente à nossa consciência só depois da

posição efetiva do ato. Só neste momento deve aceitar, pelo nosso conhecimento,

o condicionamento ou o não querer. A cognoscibilidade das condições segue a

atividade voluntária.

A posição ou não da ação voluntária pode não ser submissa ao

arbitrário de nossa vontade, mas o conhecimento das condições que regem este

agir, depende de qualquer forma de nosso compromisso voluntário. A prova

pretendida da existência de Deus e toda a metafísica, são submetidas, pelo

menos quanto à sua cognoscibilidade, ao nosso querer consciente.

A ação voluntária coloca no absoluto todas as relações especulativas


inseparáveis do objeto como tal. É preciso observar que essa posição
absoluta sobrevive ao objeto já constituído no pensamento, pelo menos
como objeto fenomenal, e resulta então imediatamente não da
constituição necessária do objeto pensado, mas somente da constituição
necessária, do sujeito agindo como que para querer, deve jogar o objeto
fenomenal na ordem dos fins e tratá-lo como um objeto nominal. A
necessidade especulativa de colocar objetos metafísicos na ordem da
realidade permaneceriam então sujeita ao meu compromisso, ela seria
subjetiva.152

Ora, Marechal se integra de uma certa forma ao desejo de um

entendimento para que, de uma certa forma, o conhecimento do Absoluto

152
No original: L’action volontaire pose dans l’absolu toutes les relations spéculatives inséparables
de l’objet comme tel. Il faut remarquer que cette position absolue survient à l’objet déjà constitué
dans la pensée, au moins comme objet phénoménal, et résulte donc immédiatement non pas de la
constitution nécessaire de l’objet pensé, mais seulement de la constitution nécessaire du sujet
agissant qui, pour vouloir, doit jeter l’objet phénoménal dans l’ordre des fins et le traiter comme un
objet nouménal. La nécessité spéculative de poser les objets métaphysiques dans l’ordre de la
réalité, demeurerait donc assujettie à mon engagement, elle serait, après tout, subjective. (Ibid.,
p.235)
160

dependa do compromisso, que ele não refuta subscrever a certas expressões de

autores modernos fazendo apelo, para as provas da existência de Deus, a um

conhecimento mais completo que só o conhecimento intelectual. Nosso autor não

ultrapassa então Kant prático metafísico já que ele descreve a intervenção da

vontade na prova de Deus, quando ele diz que: a unidade, que fundamenta a

necessidade lógica deste último (do princípio de identidade) se encontra

forçosamente rejeitada fora de nosso pensamento, num Absoluto subsistindo.

Esta conseqüência inelutável coloca a epistemologia diante de um dilema

decisivo, o único, na verdade, que se mostra lógico: ou então aceita-se a

evidência primitiva do primeiro princípio e coloca-se implicitamente o Real

absoluto, que é também o Pensamento absoluto; ou ainda recusa-se a evidência

primitiva do primeiro princípio e então, com os sofistas antigos, tenta-se sem

sucesso, pelo meio do pensamento, negar o pensamento mesmo.

Contudo, o conhecimento de Deus como absoluto constitutivo de

nossas percepções particulares de objetos, não depende de modo algum da

vontade ilícita. Ela não é então o resultado de uma opção livre. A afirmação do

infinito é uma condição de possibilidade de todo conhecimento intelectual,

independente de um poder explícito ou de uma opção. Deus não pode não ser

afirmado implicitamente em todo ato da inteligência.

Numa primeira especificação poderia se dizer então que a recusa

ou, pelo contrário, a livre aceitação, importa não sobre a finalidade, mas, como diz

Marechal, sobre a evidência primitiva do primeiro princípio.

A escolha, da qual fala nosso autor, não trata então sobre o

primeiro princípio como tal, mas sobre a evidência do primeiro princípio, ou o


161

primeiro princípio como evidente. O primeiro princípio como asserção coincide

com a afirmação do objeto que nos leva implicitamente ao Absoluto do Ser, e

então com o dinamismo finalizante da inteligência. Mas a evidência do primeiro

princípio pode ser somente um aspecto do movimento afirmativo, tal como ele se

impõe à nós.

Mas esta escolha, ela mesma, enfatiza melhor a influência de uma

certa vontade em todo exercício de conhecimento. Recusar o primeiro princípio

como evidência intelectual e não poder recusá-lo como exercício mostra que o

conhecimento não apresenta somente um aspecto formal, que ele não é

simplesmente um ato imanente ao sujeito, mas que ele é sempre propulsado por

uma tendência que o sustenta de dentro. O conhecimento não pode deixar de

perseguir um fim, seu fim. Ele deve se realizar: o fim é para ele um bem que ele

não pode negar. É este querer que visa-se falar da vontade, intervindo de uma

certa forma, no conhecimento.

Para ultrapassar o kantismo, é preciso então explicitar um pouco

esta certa maneira onde a vontade intervém tanto na constituição do

conhecimento objetivo, fenomenal, como no objeto da razão.

Aqui está, em poucas palavras, todo o caminho que nos resta a

fazer, para que a necessidade prática e subjetiva dos postulados se torne uma

necessidade objetiva e teórica.

Precisaria que a introdução do objeto no absoluto dos fins, em vez de se


fazer só pelo querer ilícito, supondo o objeto já constituído diante da
consciência, se faça na própria gênesis do objeto como objeto, na região
162

deste dinamismo implícito, ainda indiferenciado, onde a especulação e a


ação têm igualmente sua fonte.153

Tenta-se então observar de onde a vontade se introduz na

intelecção, de forma que o conhecimento, permanecendo totalmente ele mesmo,

revista-se assim mesmo na sua gênesis.

4.8 - Um dever-ser sustenta o entendimento

O entendimento, de maneira nenhuma intuitiva, se exerce por

composição e divisão. Ora, estes termos contêm alusões e referências às sínteses

concretas e judicativas e, pedem em conseqüência, a inserção de um movimento,

ou seja, de uma passagem da potência ao ato.

Evidentemente, não é preciso compreender a palavra movimento

como um seguimento de estados sucessivos, ou de qualidades consecutivas num

substratum ontológico.

O movimento traduz a influência do ato sobre a potência e é

desde de então essencialmente dinâmico. Motus est actus existentis in potentia

prout in potentia. O movimento não é então movimento, se a ato do momento

presente não abrange virtualmente o ato do momento que seguirá.

Portanto, é possível considerar o movimento de um dos dois

lados: como potência que exige o ato seguinte, que é de novo uma propensão

153
No original: Il faudrait que l’introduction de l’objet dans l’absolu des fins, au lieu de se faire
seulement par des vouloirs élicites, supposant l’objet déjà constitué devant la conscience,
s’effectuât dans la genèse même de l’objet comme objet, dans la région de ce dynamisme implicite,
encore indifférencié, où la spéculation et l’action ont également leur source. (Ibid., p.239)
163

para; ou como atualização acontecendo, que ainda porta nela o efeito da

propulsão. No primeiro caso pode-se falar de um a priori funcional (o

transcendental kantiano):

É o lugar natural, a exigência formal de determinação; é então o que os


escolásticos chamam um poder passivo, dobrado de uma tendência”. No
segundo caso, a determinação acontecendo pode ser considerada como
um efeito do dado. Mas continuando possível uma aquisição ulterior, o
dado, para ser assimilado na faculdade, deve, nesta medida, e
correlativamente, responder à exigência que ela satura.154

Existe então, um laço indissolúvel entre o dado e a potência. A

potência, existente numa tendência em movimento, existe somente em relação

com o ato seguinte: O poder contém, condensado em virtualidade (positiva ou

privativa), a expansão total da ação (exercida ou sofrida).

Entre a potência e o dado que aparece, entre a faculdade e o ato

a vir, entre o movimento e o termo, entre a forma do movimento e o fim, a relação

é recíproca, mas condicionada pelo fim. Num movimento em ato, a forma do

movimento não pode existir sem o fim, já que a forma é somente antecipada do

fim.

Marechal faz observar que este fim, que produz um efeito

imanente ao agente ou que tenha um efeito exterior, deve sempre ser distinto da

atividade mesma:

154
No original: C’est le lieu naturel, l’exigence formelle de déterminations; c’est donc ce que les
scolastiques appellent une puissance passive, doublée d’une tendance. Dans le deuxième cas, la
détermination survenue pourrait être considérée comme un effet de la donnée. Mais tout en rendant
possible une acquisition ultérieure, la donnée, pour être subsumée dans la faculté, doit, dans cette
mesure, et corrélativement, répondre à l’exigence qu’elle sature. (Ibid., p.241)
164

Jamais uma atividade tendenciosa, quer dizer uma atividade que se


desdobra por passagem da potência ao ato, não saberia ser por si
mesmo seu próprio fim: o ato pelo qual queremos alguma coisa não se
confunde com o ‘qualquer coisa’ que queremos com este ato; assim, o
fim absolutamente último de nossas ações imanentes não pode ela ser
um ato de querer, já que tão bem este, por definição mesma, é ordenado
ulteriormente a um objeto, que não pode ser indefinidamente um
querer.155

Neste contexto procura-se então as características do objeto

completo de nossa tendência, constatando a sua infinidade e sua necessidade.

Assim, é preciso explicar esta tendência que se desloca sempre para o objeto.

Sem objeto infinito, pelo menos tão real quanto a realidade, vivida, inelutável,

concreta, de nosso dinamismo, não há tendência ao infinito.

Mas isto não implica nem que este objeto deve existir fora do

sujeito nem que ele seja mais real que o dinamismo. Em outras palavras: isto não

obriga, segundo nós, a ultrapassar um certo panteísmo evolutivo ou supor que o

objeto não esteja na medida de nossa tendência como nossa. Isto implica,

portanto, que não se pode atribuir aos objetos intermediários uma realidade maior

do que aquela do objeto final ilimitado na medida da tendência infinita, nem uma

existência mais desligada do sujeito.

Este caminho então demonstra a realidade e a objetividade das

coisas, pela realidade de um dinamismo que afirma o objeto ultrapassando toda

determinação concreta e representável. A existência real é atribuída a toda

afirmação: sujeito, dinamismo, fim.

155
No original: Jamais une activité tendancielle, c’est-à-dire une activité qui se déploie par passage
de la puissance à l’acte, ne saurait être à soi-même sa propre fin: l’acte par lequel on veut quelque
chose ne se confond pas avec le ‘quelque chose’ que l’on veut par cet acte; aussi, la fin
absolument dernière de nos actions immanentes ne peut-elle être un acte de vouloir, puisque aussi
bien celui-ci, par définition même, est ordonné ultérieurement à un objet, qui ne peut être
indéfiniment un vouloir. (Ibid., p.242)
165

Ora, já que o objeto final ilimitado existe de maneira

transcendente, todo o mundo objetivo participa, como fim intermediário, e

analogicamente a desta transcendência, possuindo então uma existência

independente do agente imperfeito.

A realidade distinta dos objetos depende, desde então, não mais

da realidade do dinamismo, mas da realidade do último fim.

Tudo isso foi desenvolvido anteriormente. A questão colocada

finalmente era: o Ser ilimitado se encontra somente na ordem ideal, intencional, ou

ele se situa na realidade que nos transcende?

Neste ponto, acontece como uma transposição no raciocínio de

Marechal. Esta transposição, pelo nosso conhecimento, nunca foi notada nem por

Marechal nem por seus discípulos. Todo o desenvolvimento seguinte se entende

somente na ótica desta transposição.

Até agora analisou-se o movimento da inteligência para o fim. Aí

constatou-se uma tendência e uma forma de tendência. A causa final teve um

papel preponderante. Todas estas linhas de exploração convergiram para um

termo de dinamismo: o objeto. Este se concretizou numa aglomeração de objetos

particulares, mas finalmente se confundiu com o objeto final: o Ser ilimitado.

Mas da realidade deste Absoluto depende a objetividade real dos

outros objetos. Os objetos existem porque eles participam da existência do Ser

primeiro; eles são objetivos para nós, porque eles são captados na afirmação que

coloca finalmente o objeto total e primeiro, o Ato puro. Já temos a existência

necessária do último final objetivo. Isso tende a provar, não a realidade da

existência de Deus, mas a realidade dos objetos afirmados, ou melhor, a


166

objetividade real de nosso conhecimento pela afirmação. Neste objetivo, são

analisadas: a tendência da faculdade intelectual, a possibilidade e a necessidade

do fim subjetivo, e como corolário a necessidade do fim objetivo: para que a

assimilação ao Ser absoluto seja possível, é preciso antes de tudo que este Ser

absoluto exista. Para esta afirmação é preciso pressupor a possibilidade de um fim

subjetivo que seja uma assimilação do Ser absoluto156.

Deste modo para Marechal a existência dialética, envolvida no

desejo, toma uma importância nova quando se trata de Deus. O que pressupõe

um desenvolvimento da exigência dialética do desejo. Esta última não visa

somente a análise sucessiva das diferentes fases da intelecção, nem a

necessidade de colocar um termo último ao dinamismo, mas sim a correlação

verdadeiramente dialética da inteligência com a vontade.

E, portanto, de uma certa maneira, é bem assim que Marechal

raciocina: provar a existência absoluta como condição de todo ser contingente. É

claro que esta existência dá um novo significado a tudo que é afirmado, mesmo na

afirmação de Deus. Afirmar que Deus que é possível, é afirmar puramente e

simplesmente que ele existe, já que sua existência é a condição de toda

possibilidade.

A possibilidade de nosso último fim subjetivo pressupõe logicamente a


existência de nosso último fim objetivo, Deus, e que assim em cada ato
intelectual, é afirmada implicitamente a existência de um Ser absoluto”.
Da possibilidade de Deus segue realmente a existência de Deus, porque
foi provado que Deus é verdadeiramente, na existência, a condição de
toda possibilidade.157

156
Cf. MARECHAL, op.cit.,p.521
157
No original: la possibilité de notre fin dernière subjective présuppose logiquement l’existence de
notre fin derniére objective, Dieu, et qu’ainsi dans chaque acte intellectuel, est affirmée
implicitement l’existence d’un Etre absolu. De la possibilité de Dieu suit réellement l’existence de
Dieu, parce qu’il a été prouvé que Dieu est vraiment, dans l’existence, la condition de toute
possibilité. (Ibid., p.251)
167

No Caderno V Marechal diz que:

a evidência propriamente objetiva, na ordem do conhecimento metafísico,


deriva ao mesmo tempo de duas fontes lógicas: de uma necessidade
normativa, estritamente analítica, e de uma necessidade pura, radical,
natural de afirmação, que nos permite chamar uma necessidade
transcendental158.

Nós falamos destas duas necessidades analisando o princípio de

identidade como norma do pensamento e retornando, para a necessidade

transcendental, à realidade do dinamismo finalizante ou do princípio de identidade

concreta. Revelamos agora o que diz Marechal destas duas necessidades: A

necessidade analítica, diz ele, nos tece uma rede hipotética de alternativas

formais: ser ou não ser; mas é a necessidade transcendental da afirmação que

nos impõe a aplicá-las num conteúdo, e de antemão as resolve em favor do Real.

Em outras palavras: a aplicação das atribuições ser ou não-ser a um conteúdo de

pensamento é somente válida sob esta condição: que a necessidade

transcendental da afirmação imponha esta aplicação. Mas então, na realidade, a

questão está já de antemão, resolvida em favor do Real. Isso porque Deus já

constituía – e sempre foi – a condição de possibilidade de toda afirmação no ser,

por causa disto pode e deve conceder o ser, não somente a Deus ele mesmo,

mas a todo o conhecimento objetivo.

Na realidade, aqui está como Marechal pensa resumir esta prova:

Negar o Ser necessário é destruir o fundamento de toda possibilidade. É então

158
No original: l’evidence proprement objective, dans l’ordre de la connaissance métaphysique,
dérive à la fois de deux sources logiques: d’une nécessité normative, strictement analytique, et
d’une nécessité pure, radicale, naturelle d’affirmer, que l’on nous permettra d’appeler une nécessité
transcendantale. (Ibid., p.251)
168

eliminar todo possível. Mas suprimir todo possível é negar o pensamento objetivo,

ele mesmo, suprimindo todo conteúdo possível do pensamento. Ora, negar o

pensamento objetivo, é uma impossibilidade a priori, já que o pensamento

objetivo, negado num julgamento, se afirma implicitamente pela sua negação

mesma.

Tudo depende notadamente da maneira na qual se interpreta o

pensamento objetivo. Este não pode ser interpretado somente segundo seu

conteúdo pensado, deve ser levado em toda sua importância vivida e real, de tal

maneira que uma forma lógica seja aplicada a um conteúdo real. O pensamento

objetivo é, de fato, radicalmente impossível, não somente se não tem norma lógica

do pensamento, mas se não tem conteúdo para o pensamento. E Marechal

conclui:

Nós dizemos, examinando este argumento, que se Kant abandonou mais


tarde a conclusão, foi somente porque ele achou ter encontrado, em
nosso pensamento, outro conteúdo que o ‘dado fenomenal’, o resto
sendo de ordem puramente funcional e formal.159

Assim, para ultrapassar o ponto de vista agnóstico de Kant, é

preciso descobrir, em nosso pensamento, um conteúdo objetivo que não seja

somente fenômeno, não somente matéria extrinsecamente recebida. Mas por

outro lado, para não se cair de novo no ontologismo, é preciso também que este

conteúdo objetivo metempírico não seja nem idéia inata, nem intuição ontológica.

A solução deste enigma reside na finalidade dinâmica da inteligência.

159
No original: Nous avons dit, en examinant cet argument, que si Kant en abandonna plus tard la
conclusion , ce fut seulement parce qu’il crut ne trouver, dans notre pensée, d’autre contenu que du
‘donné phénoménal’, tout le reste y étant d’ordre purement fonctionnel et formel. (Ibid., p.253)
169

De novo, a transposição acaba de ser feita: se queremos provar a

existência de Deus, é preciso partir de conteúdos reais da afirmação. Ora estes

conteúdos só são reais porque eles são inseridos numa afirmação onde tem Deus

como condição absoluta de possibilidade da afirmação. Então, neste momento

somente, pode-se argumentar: Se Deus é possível, a possibilidade de Deus leva

sua existência. Mas Deus é possível? É provado, não pela análise lógica do

conteúdo conceitual, nem por um exame do puro finalismo (exame dos termos da

atividade intelectual), mas por uma fixação no ser do dinamismo, por uma

coincidência com a atividade como ato e exigência propulsiva, em outras palavras,

por um retorno até as fontes desenvolvendo as exigências dialéticas do desejo.

Vamos desenvolver as diferentes fases, sem tardar.

4.8.1- A ordem da finalidade

A tendência nos permite fazer a transposição e voltar à fonte de

toda a prioridade que é somente a moção natural da verdade primeira. O termo

nos ensina sobre a extensão e a essência desta fonte. A relação de união, que

constitui a função objetiva em exercício, nos faz ver a dependência ontológica

numa forma concreta, que é a ordem da finalidade. Por isso, esta ordem concreta

da finalidade toma, um sentido completo que não possuía talvez inicialmente. E,

em vez de informar somente sobre uma causa final ideal e abstrata, ela significa:

primeiramente uma origem que se explica somente em relação com uma causa

eficiente, depois um fim que retorna a uma causa final, e em terceiro, um laço
170

entre as duas que designa um mesmo Ser Absoluto tanto para a origem como

para o Fim.

Esta interpretação recusa a dependência na prova da existência

de Deus do único finalismo; ela apela tanto à causa eficiente, como à causa final;

ela pretende que as duas causas sejam significadas pela ordem da finalidade.

Assim, toda necessidade da ordem da finalidade, e de caráter experimental e

aquele do fato constatado, próprio ao dinamismo finalizante, devem ser atribuídos

tanto ao nosso conhecimento do mundo empírico quanto àquele do mundo real,

mas para cada um segundo sua constituição própria.

Na inteligência se possui então uma forma que se refere a um

último final, mas que se fixa numa natureza, e uma tendência que indica um

encaminhamento para uma perfeição onde o sujeito pré-contém a forma por

participação.

A afirmação consagra, em cada etapa, a penetração de um dado

na faculdade intelectual e efetua a projeção imediata deste dado na realidade

objetiva, certamente não como efeito produzido, mas como fim finalizado.

As duas funções da afirmação consagram a dupla finalidade

antecedente: a projeção se concebe somente na ordem dos fins e o dado se

objetiva se tornando um elemento da finalidade conseqüente do sujeito que

afirma.

Num quadro de uma metafísica franca do ato e da potência, lembraremos


então, para demonstrar que todo conceito abstrato, objetividade numa
afirmação de ser, teve não somente que se concretizar com referência à
matéria e assim se exteriorizar em relação ao pensamento, mas,
sobretudo, se subordinar, segundo a relação de analogia, a uma
condição essencial superior e absoluta, que não pode mais ficar interna
171

ao nosso pensamento, e que só pode ser o cume absoluto do real, o Ato


puro.160

De fato, a afirmação não é somente uma simples função categorial

oposta à negação, mas, com estes dois aspetos de finalidade antecedente e

conseqüente, ela cria raiz na natureza mesma da inteligência e da vontade pela

qual ela se torna uma antecipação transcendente do Ser infinito.

Para mostrar isto, devemos desde já nos concentrar sobre o

estudo da reciprocidade dialética da forma e da tendência no tornar intelectual, ou,

sobre a prioridade recíproca do verdadeiro e do bem. As implicações desta

relação complementar conduzem inevitavelmente ao Absoluto.

4.8.2 - Vontade e inteligência

O próprio do dinamismo intelectual é constituir não somente um

finalismo, mas uma ordem da finalidade. Este significa ao mesmo tempo:

tendência, forma de uma tendência, termo de uma tendência e relação dinâmica

entre esses diferentes componentes. De uma certa forma, temos duas ordens: a

ordem da forma e a ordem do fim. Mas para Marechal os dois se coincidem na

ordem da finalidade. Isto provoca às vezes obscuridade, mas tem a vantagem de

160
No original: Dans le cadre d’une métaphysique franche de l’acte et de la puissance, on tiendra
donc pour démontré, que tout concept abstrait, objectivé dans une affirmation d’être, a dû non
seulement se concrétiser par référence à la matière, et déjà s’extérioriser ainsi par rapport à la
pensée, mais surtout se subordonner, selon la relation d’analogie, à une condition essentielle
supérieure et absolue, qui ne peut davantage demeurer interne à notre pensée, et même qui ne
peut être que le sommet absolu du réel, l’Acte pur. (Ibid., p.258)
172

não separar elementos que estão necessariamente juntos. Para maior clareza nós

os consideramos progressivamente.

A ordem da forma se manifesta de várias maneiras e não traz, no

conhecimento, nenhuma dificuldade.

Suponhamos um conhecimento de objeto na qual entra,

implicitamente ou explicitamente, um julgamento de verdade.

1. O objeto já estava presente, potencialmente, num a priori. Ele

existia pré-formado na forma do conhecimento.

2. A forma do objeto, captada por um se tornar, é interiorizada no

conhecimento. Ela se insere como um bem possuído sobre o qual se modela a

inteligência.

3. Uma vez possuída, ela é objetivada. Ela se realiza de novo na

forma dinâmica da objetivação.

4. Finalmente, objetivada ela é possuída na consciência luminosa,

no ato próprio da inteligência, onde o objeto e o sujeito coincidem, por um instante

passageiro, e onde a tendência encontra seu repouso provisório.

Mas a inteligência se situa na ordem dos fins. Um dinamismo não

pode se manter numa pura forma, mas exige uma relação definida entre um

elemento formal e um elemento de atividade, de exercício. Esta relação da forma

e da atividade, na condição em que rege nosso dinamismo intelectual, deve

transparecer através do movimento de nossas intelecções. A movimentação da

espontaneidade intelectual, a mais pura, a presença ativa do intelecto-agente com

o fantasma e o intelecto-possível, já orienta dinamicamente nossa inteligência

para o conhecimento e para o ser ilimitado.


173

Assim, a tendência como tendência, seguramente, não está mais

presente.

...a possessão satisfaz a ordem da causa final. No interior do


conhecimento objetivo, consciência (o ato próprio da inteligência) e
possessão (o ato que contém a tendência da vontade na inteligência)
coincidem, a consciência sendo o desafogo característico da possessão
numa faculdade especulativa.161

Tudo isto nos mostra que a forma inteligível não existe isolada,

mas ela é levada por um exercício, assim ela pode ser considerada nela mesma

como forma especificadora do apetite racional: forma e tendência vão juntos na

elaboração da intelecção consciente. E, assim como a finalidade natural interna,

ou o apetite natural de um ser racional, pode se chamar vontade natural, em

oposição à vontade elícita, assim um apetite racional sustentando a forma

intelectual pode se chamar, de uma certa forma, uma vontade consciente, não

como vontade elícita conhecida pela inteligência, mas como consciência de uma

tendência que move a inteligência.

Então, no pensamento de Marechal, a vontade colabora para a

constituição do conhecimento e isto tanto para a ciência teórica quanto para a

ciência prática.

Na ciência prática, a forma inteligível não é então, em si, um

princípio de ação, mas se torna um princípio de ação quando a vontade se une a

161
No original: ...la possession couronne l’ordre de la cause finale. Au sein de la connaissance
objective, conscience (l’acte propre de l’intelligence) et possession (l’acte qui rassasie la tendance
de la volonté dans l’intelligence) coïncident, la conscience étant l’épanouissement caractéristique
de la possession dans une faculté spéculative. (DIRVEN, op. cit., p.260)
174

ela. A vontade, se introduz aqui no interior mesmo da inteligência. Não é alguma

coisa acrescentada, mas o conhecimento ele mesmo muda de tonalidade pela

vontade que o orienta para a ação.

4.9 - Objetivação e princípio de identidade

Existe uma reciprocidade entre a inteligência e a vontade: a

atividade intelectual se desenvolve sob a égide de tendências e, freqüentemente,

a vontade depende de fins objetivos que lhe são oferecidos somente pela

inteligência.

A vontade está presente no caráter intencional de toda intelecção;

ela torna possível o uso atual de conhecimentos precedentemente adquiridos; ela

decide sobre a aceitação das certezas livres (crenças) e dos julgamentos de

opinião.

A inteligência por sua vez especifica cada movimento como ela é

apreensiva de verdades; ela propõe à vontade o objeto de volição ela move a

vontade como um fim conhecido, objetivamente move uma tendência162.

Resumindo: a vontade reivindica a prioridade enquanto a

intelecção é colocada em exercício por um dinamismo subjetivo e a inteligência

antecede a vontade como especificação.

Tudo isto se aplica especificamente ao tornar intelectual. De fato,

este antes de conhecer, está em potência com várias formas de intelecção. Ora,

162
Cf. MARECHAL, op.cit.,p.380
175

alguma coisa que está em potência com relação a vários objetos precisa de uma

dupla intervenção para sair de seu estado de potência. A primeira intervenção visa

o exercício, a colocação em movimento, a segunda traz a especificação. Ora, tudo

o que se refere ao movimento, ao exercício, intervém como orientação para um

fim, apresentado como um bem a obter.

A especificação, pelo contrário, vem da determinação do objeto,

como princípio formal: “O primeiro princípio formal, porém, é o ente, e certamente

universal, o qual é o objeto do intelecto. E, portanto, por meio do movimento o

intelecto move a vontade apresentando assim, o seu objeto.” 163

Então: “A vontade move o intelecto quanto para o exercício do ato

[...] Mas quanto para a determinação do ato que é da parte do objeto, o intelecto

move a vontade.” 164

Marechal conclui: Toda especulação é ação. As duas são

inseparavelmente ligadas. A especificação nunca vai sem exercício, e o exercício

nunca opera sem a forma que a determina. Mas isto traz esta grave conseqüência:

que não se pode jamais separar a forma ou a especificação (ou o fim) da realidade

ontológica que a leva. Em um conhecimento, todo objeto reveste um valor

ontológico pelo fato que ele está inserido num exercício do valor de ser. Para

julgar o objeto, é preciso considerá-lo na tendência que o leva para o fim.

Portanto, o valor do conhecimento não depende antes de tudo da

forma, ou do termo, ou do objeto, nem do fim, considerados isoladamente, mas

163
No original: Primum autem principium formale est ens, et verum universale, quod est objectum
intellectus. Et ideo isto modo motionis intellectus movet voluntatem sicut praesentans ei objectum
suum . (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I,82, 3 ,ad.3)
164
Voluntas movet intellectum quantum ad exercitium actus [...] Sed quantum ad determinationem
actus, quae est ex part objecti, intellectus movet voluntatem.” (Ibid., ad. 3)
176

da realidade ontológica que o conhecimento possui como coisa em exercício. “ A

própria verdade é um certo bem, ao lado do qual o intelecto é uma certa coisa, e a

verdade é um fim de si própria.”165 “Está claro também que nada impede que a

verdade seja um certo bem, segundo o qual o intelecto que conhece é aceito
166
como certa coisa.” A inteligência e suas operações pertencem a ordem da

finalidade: como realidades ontológicas. A tomada de consciência, a cognitio, é

assim o efeito imediato e proporcionado da verdade intelectual no sentido

ontológico da expressão, ou seja, do verdadeiro na sua fase vivida.

Se todo valor do conhecimento como dinâmica finalizante está

suspensa da realidade ontológica das faculdades que colaboram com sua

aparição, compreende-se porque toda objetivação deve atingir a realidade. Não

por causa de ser a caminho de um objetivo, mas por causa de sua inserção na

existência pelo exercício real que tende para um objetivo. A luminosidade interna

da consciência ilumina o objeto vivido, conforme ao atual imanente, sem nada a

suprimir e nada a acrescentar. Por consequente, fora desta fosforescência

reveladora, que é a primeira propriedade do ato como ato, tudo o que apresenta o

objeto consciente: diversidade material, estrutura sintética, oposição ao sujeito,

deve já estar determinado no jogo da inteligência considerada como faculdade

ontológica, como res submissa às leis gerais da causalidade e da finalidade.

165
No original: Ipsum verum est quodddam bonum, secundum quod intellectusres quedam est, et
verum finis ipsius. (Ibid. 1,82, 3, ad 1)
166
No original: Patet etiam quod nihil prohibet verum esse quoddam bonum , secundum quod
intellectus cognoscens accipitur ut quaedam res. (ARISTÓTELES, Metafísica, Livro VI, lição IV)
177

4.10 - O Absoluto e os primeiros princípios

Se a realidade se declara em primeiro lugar acima do dinamismo,

é preciso então estudar o conhecimento na sua primeira aparição, onde ele toma

sua origem: em seus atos primeiros da inteligência e da vontade.

Marechal insiste então em esclarecer a reciprocidade dos atos

primeiros e sua origem. Ora, a raiz psicológica (tanto quanto ontológica) da

reciprocidade entre as operações elícitas de nossas duas faculdades, constitui na

unidade natural da inteligência, o poder ilimitado de assimilação das formas, e da

vontade, apetite universal do bem.

O que nos interessa então é a origem primeira do conhecimento

quanto à relação com a especificação (o aspeto próprio da inteligência). Tal

origem se encontra na condição de natureza, que precede toda operação.

Ou seja, um agente exterior não seria necessário se a intelecção e

a volição fossem faculdades em ato. Mas ambas são somente e potencialmente,

operativas e exigem então quantum ad primum motum um agente dando a

primeira impulsão ao poder.

Mas antes de concluir este raciocínio referente à existência de

Deus, causa universal de toda moção, é preciso colocar os dois aspectos de

especificação formal e de exercício dinâmico ao mesmo tempo na inteligência e na

vontade. Como impulsão dinâmica, em exercício, independentemente de toda

especificação, a moção que constitui a inteligência em ato primeiro não difere da


178

moção natural em exercício expresso pela causa universal, como o princípio

formal e especificador da vontade e da inteligência.

Mas, para conduzir até ao alvo o intinerário de Marechal é preciso

incluir o próprio da causalidade no princípio da densidade em exercício.

É somente numa metafísica do ser, segundo o ato e a potência,

que a relação com a causa e com a necessidade de ser, tomam um sentido

existencial que pode designar Deus. A causa é transcendente porque ela é

atualidade pura, o ser necessário é infinito porque ele é o ser essência.

Assim, não é a referência da forma conceitual ao fim, não é o

único finalismo da tendência, que nos faz concluir a idéia de um Ser único e

necessário para a sua existência. Um final ideal, por mais perfeito que seja, não é

ainda uma existência real. O fim pode ser a soma de uma infinidade de perfeições

acabadas, mas permanecer na ordem da idéia. A ordem da finalidade, pelo

contrário, muda completamente a realidade da existência. Ela não é antes de tudo

uma idéia; ela é um fato e um fato que é ao mesmo tempo realidade, idéia e

tendência. Entregar exatamente esta ordem é possível somente numa metafísica

da potência e do ato, porque só esta metafísica exprime ao mesmo tempo a

complexidade do movimento e sua relação com o ser.

Ora, esta ordem da finalidade, como já foi visto, é a expressão de

um princípio de identidade que é concretamente vivido no ato da afirmação. E a

afirmação, realizando concretamente uma identificação de objeto e de sujeito, de

idealismo e de realidade, coloca ao mesmo tempo uma dependência real diante

de um ser objetivo, real e infinito.


179

Recusar esta dependência, é recusar a ordem mesma da finalidade. Aceitar


esta dependência é reconhecer um princípio de causalidade em exercício. Pois
reconhecer o princípio de causalidade é, da mesma forma, admitir que a
constituição no ser da tendência concreta exige uma relação ontológica a uma
origem existencial.167

Que esta origem deve ser infinita, já foi provado segundo

Marechal. Ainda é necessário justificar o princípio que nos permite apelar para

esta origem primeira. Ora este princípio se firma no ato da afirmação: ele é um

fato. É sua justificativa.

Os primeiros princípios são então para Marechal como a luz que

se recebe diretamente da inteligência e do amor de Deus. Em outras palavras:

toda tendência de nosso ser é exigência de explicação; a explicação é dada

implicitamente na presença dos primeiros princípios; ela deve somente se

explicitar.

Diante disso, um ser absoluto aparece como fundamento de nossa

existência consciente e dinâmica. Deve-se afirmar a existência de um Ato puro, do

qual participamos, senão toda nossa vida se torna um absurdo, um movimento

ilógico; e, contudo, este movimento exprime uma exigência de lógica e de

coerência.

167
No original: Refuser cette dépendance, d’un être refuser l’ordre même de la finalité. Accepter
cette dêpendance, c’est reconnaitre le principe de causalité en exercice. Car, reconnaitre le
principe de causalité c’est idenquement admettre que la constitution-dans-l’être de la tendace
concréte exige una relation ontologique à une origine existentielle. (DIRVEN, De la forma a L’acte,
p.270)
180

4.11 - O fim último do acontecer intelectual e o destino


sobrenatural

Para Marechal, só Deus pode satisfazer às nossas faculdades

ativas: Deus é nosso último fim. Mas, posto que, em um sentido, Deus é o fim

último de tudo o que existe, é preciso saber como Ele é nosso fim. Do homem,

pois, a Deus, é o fim último, não de uma maneira qualquer, senão objetivamente,

segundo o modo próprio da inteligência e da vontade. A felicidade perfeita deve

consistir, para ele na saturação de suas faculdades superiores por Deus: “A

beatitude significa o bem perfeito da natureza intelectual”168. A nossa inteligência

deseja possuir direta ou indiretamente a Deus mesmo como sua própria forma

intencional; e a nossa vontade, chegada ao término de suas apetições, deve

comprazer-se totalmente nessa posse de Deus.

Desse ponto de vista critico, a conclusão seguinte nos basta pelo

momento a vontade tende para o ato final do intelecto, se bem que é necessário

acrescentar com Santo Tomás: “para o ato do intelecto, que é a beatitude”169.

A felicidade perfeita consisti na intuição do Ser absoluto, e é esta

plenitude intelectual que, em toda hipótese, define o termo objetivo de nossa

atividade. A felicidade perfeita, segundo Santo Tomás, não consiste neste

conhecimento confuso e geral que todo homem tem de Deus.

168
TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.26, a.1 et 2, in c.
169
Ibid., q.26, a.2
181

Não consiste tampouco no conhecimento de Deus obtido por via

de demonstração, já que este conhecimento, analógico, imperfeito e precário,

permanece infinitamente por debaixo da atuação completa do entendimento-

possível. Não buscaremos tampouco nossa felicidade última no conhecimento de

fé, na cognição de Deus, que é pela fé, porque se é verdade que a fé amplia o

objeto acessível a nossa inteligência é necessário reconhecer que constitui, em

outro aspecto, um modo de intelecção mais imperfeito170.

O conhecimento intuitivo do Ser absoluto não nos leva ao engano.

Por isso, Santo Tomás conclui com uma audácia perfeitamente justificada: A

última e perfeita beatitude não pode ser senão visão da divina essência171.

Contudo, o conhecimento intuitivo de Deus, o supremo inteligível, não admite a

interposição de uma representação material. A inteligência mesmo que unida à

sensibilidade garante para nós o patrimônio de outra vida. ‘É impossível que nesta

vida esteja a última felicidade do homem’172.

Portanto, a inteligência infinita, por perfeita que se a suponha,

alcança aqui os limites de sua potência natural de intuição; para subir mais acima

por seu próprio esforço, deveria sobrepassar-se a si mesma. E, sem embargo, seu

desejo profundo não fica satisfeito: “No conhecimento natural que as inteligências

separadas têm a respeito de Deus não descança o desejo natural173”.

E como deve ser esta visão se presume suficientemente pelo que já foi
dito. Pois temos demonstrado que a substância divina não pode ser vista

170
TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentes, III, 39, 40
171
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, q.25, a.3
172
TOMÁS DE AQUINO, Summa contra gentes, III, 48
173
No original: In naturali cognitione quam habent substantiae separatae de Deo non quiescit eorum
naturale desiderium. (Ibid., III, 50)
182

pelo entendimento mediante uma espécie criada. Por isso, é peciso que o
entendimento conheça através da própria essência de Deus, de modo
que em tal visão seja a essência divina a que se conhece e vê também o
meio se conhecer174.

Assim, a última perfeição de nossa inteligência supõe com efeito a

libertação das amarras materiais, por meio de uma condição extrínseca, superior a

nossa natureza, ou seja, uma comunicação ativa do Ser absoluto, que nesse

sentido não exige nada a respeito da criatura teologicamente falando , uma “graça

sobrenatural”175.

A realização do Fim último acaba de aparecer-nos em total

dependência de um fator acerca do qual não temos nenhuma influência, nem

enquanto inteligência para prevê-lo, nem enquanto vontade, para procurá-lo.

Santo Tomás proclama que essa realidade não pode ser

conhecida mais que pela revelação do designo de Deus de comunicar-nos

sobrenaturalmente. Nesse contexto, Santo Tomás com o cuidado de não cair num

fideísmo, afirma que mesmo que só a fé ensine que Deus quer ou não fazer

nossa felicidade sobrenatural, deduzimos legitimamente da disposição e do

dinamismo radical da inteligência e da vontade, a possibilidade absoluta desta

felicidade, isto é, a existência das causas objetivas que fazem possível sua

realização.

174
No original: Modus autem huius visionis satis iam ex dictis, qualis esse debeat, apparet.
Ostensum enim est supra, quod divina substantia non potest videri per intellectum in aliqua specie
creata. Unde oportet, si Dei essentia videatur, quod per ipsammet essentiam divinam intellectus
ipsam videat; ut sic, in tali visione, divina essentia sit et quod videtur et quo videtur. (Ibid., III, 51)
175
MARECHAL, op. cit., p.402
183

Foi provado acima que todo intelecto naturalmente deseja a visão da


substância divina. Um desejo natural, porém, não pode ser vazio.
Qualquer intelecto criado, portanto, pode chegar à visão da substância
divina, não impedindo a inferioridade da natureza.176

Nosso desejo natural da visão de Deus pertence a outro plano.

Não existe, pois, nenhuma incompatibilidade lógica entre a “possibilidade em si”

do fim último, para o qual nos orienta nosso desejo, e a ausência de toda

possibilidade próxima de realizar este fim, rigorosamente sobrenatural, se há um

dom inteiramente livre e gratuito por parte de Deus. E inclusive podemos dizer

mais adiante que tão pouco há, nisto, incompatibilidade moral.

Em Marechal, contudo, esse desejo da visão de Deus é um desejo

natural propriamente dito, visto que a inteligência no seu movimento e

dinamicidade discerne perfeitamente em nós a tendência radical, inelutável dos

desejos superficiais que nos levam à incoerência. Mesmo na atitude de perseguir

a verdade até no erro ou de buscar o bem até no mal, há também a aspiração

incessante da felicidade perfeita, a qual só pode ser encontrada em Deus. O

dinamismo implícito de nossa inteligência nos domina universal e

necessariamente, ainda que nossas interpretações explícitas deste dinamismo de

nossa vontade não dêem garantias177.

176
No original: Supra probatum est quo omnis intellectus naturaliter desiderat divinae substantiae
visionem. Naturale autem desiderium non potest esse iname. Quilibet igitur intellectus creatus
potest pervenire ad divinae substantiae visionem, non impediente inferioritate naturae. (TOMÁS DE
AQUINO, Summa contra gentes, III, 57)
177
Cf. MARECHAL, op. cit., p.406
184

Nesse sentido, Santo Tomás deixa clara a distinção entre a

felicidade única a qual cada um deseja implicitamente e a relativa que se quer

explicitamente ou, mais exatamente, que se deseja querer.

Santo Tomás, portanto, conclui que o impulso natural nos

direciona para a intuição imediata do Ser absoluto; sobrepassando a potência e

ultrapassando a exigência de toda inteligência finita integrada a seus só recursos

naturais. E, sem dúvida, esse impulso radical que lhe faz tender Absoluto não é

concebível sem a possibilidade objetiva, pelo menos remota, de alcançá-lo.

Assim, a possibilidade objetiva, implica duas condições

necessárias: “a existência de um Ser absoluto, capaz de comunicar-se, e a

aptidão de nossa inteligência para receber esta comunicação”178.

178
Cf. Ibid., p.407
185

CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho, tentamos penetrar a doutrina autêntica de

Marechal. Tentamos resgatar o que a caracteriza: uma interpretação particular do

Kantismo, o recurso a um absoluto como horizonte do pensamento, o dinamismo

que sustenta a gênese do conhecimento, a reciprocidade da inteligência e da

vontade, a integração na razão teórica do Ato puro como condição a priori de toda

existência atual e a objetividade real de cada afirmação de objeto.

O objetivo deste trabalho foi mostrar como, na concepção de

Marechal, o Kant histórico ficou sempre fechado num formalismo relativo que se

orientava para um idealismo construtivo. Este formalismo precisava então,

reconhecendo o que ele tinha de válido, ser ultrapassado por um apelo ao ato.

Assim, Marechal entendia, de fato, que para um tomista, a crítica transcendental

devia ser integrada numa concepção existencial, que não pode se entender,

exceto num dinamismo intelectual e então na reflexão sobre a afirmação. Ela

atinge um valor real somente numa retomada do ato.

Marechal procura fundamentos de seu próprio pensamento na

tradição escolástica, onde ele estudou, durante vários anos, com coerência e

solidez. É ela que sempre lhe serve de critério e de referência.

Esta adesão não lhe impõe preconceitos. A corrente escolástica,

no seu conjunto, muitas vezes é assunto de desaprovação pelo fato de se fechar


186

nos seus próprios conceitos e ignorar as tendências modernas. Um tanto quanto

diferente, Marechal interpreta por um aspecto especial do kantismo e do tomismo

a possibilidade de instituir uma crítica para fundar uma metafísica. Suas

perspectivas, sua terminologia, sua maneira de delimitar e de tratar um problema,

são muitas vezes inspiradas nas Críticas. Em suma, no aspecto de seu

pensamento, ele procura ou consente em se deixar modelar pelo kantismo no

fundo do seu pensamento. Ele insere os elementos da crítica transcendental numa

visão pessoal do mundo, sem se concentrar no agnosticismo da obra de Kant e

nem abandonar São Tomás.

Mais flexível, menos dependente de seu meio, Marechal teve a

audácia de abordar Kant com uma real simpatia a fim de reconhecer o que era

válido, e tentou integrá-lo à filosofia tomista. Estudando, em seguida retomando as

obras de Kant, ele viu nele, primeiramente, um crítico, depois um metafísico,

enfim um idealista. E neste sentido, ele mostra como o Absoluto pode se re-

introduzir, afirmando e provando que a existência divina está implicitamente posta

em cada ato da inteligência, e que Deus ocupa um lugar central no nosso

pensamento e nosso agir. O caráter racional desta idéia de Deus: isto é para ele a

prova de sua necessidade, e igualmente de sua continuidade natural com as

aspirações profundas de Kant. Um kantismo fiel a ele mesmo, ao seus próprios

pressupostos, deve encontrar este Absoluto, sem o qual nenhuma objetividade

não é garantida e as prerrogativas essenciais do conhecimento se dissipam num

vago relativismo ou um idealismo subjetivo. Pelo menos neste sentido podemos

dizer que a originalidade de Marechal foi de ter tentado superar o kantismo

unindo-o ao tomismo.
187

Marechal prova que uma crítica transcendental inclui sempre um

apelo aos pressupostos metafísicos; que ela só é totalmente compreensiva e

eficaz num dinamismo reflexivo; e que os problemas metafísicos criados por ela,

se resolvem unicamente no ato, ou seja, na afirmação do ser. Os problemas do

uno e do múltiplo, do contingente e do absoluto, da representação e da

significação, do agnosticismo e da cognoscibilidade metafísica, só tem, segundo

ele, uma solução adequada numa posição atual, que é ao mesmo tempo

idealidade e realidade, consciência e vida. É esta a sua posição firme e definitiva a

qual ele nunca se distanciou: só o ato vital faz a pergunta e pelo próprio fato a

resolve.

Este ato que significa também uma referência ao Ato puro, se

formula no seu pensamento pelos termos: afirmação metafísica e dinamismo

intelectual.

De fato, só acredita-se que uma certa visão pode aprovar a

doutrina de Marechal. Esta visão consiste em procurar, para a ávida e os

problemas que ele oferece uma solução adequada, coerente e o tanto quanto

possível plenamente compreensível; trata-se então de crer na radical

inteligibilidade do real e só considerá-lo em relação a uma inteligência.

Inteligibilidade que, inclusive, não se fecha num racionalismo humano: ela

comporta até mesmo elementos irracionais, ao nível humano, tais como o amor ou

uma condição absoluta inatingível; mas mesmo assim é possível imaginar o

porquê e a necessidade.

Marechal parte de um sistema que se encontrava então no estado

fechado. Ele quebra a sistemática estreita e isto duplamente. Primeiramente se


188

interessa com um esforço sincero de compreensão ao kantismo e a outras

tendências atuais. Em seguida, se aplica em sobressair o elemento dinâmico e

ativo na teoria do ato e da forma. O tomismo escolástico que ele conhecia dava

como explicação metafísica da vida um conjunto de noções abstratas, racionais e

dogmáticas. A crítica kantiana o coloca em contato com uma concepção do

transcendental e do a priori que destrói todo jogo de palavras puramente lógico.

Por conseguinte ele se submete em repensar o sistema recebido numa

perspectiva mais dinâmica. O contato com os textos de São Tomás o fez perceber

então a unidade profunda de todas as faculdades humanas, a ultrapassagem ativa

da representação pela significação, o valor dinâmico do ato na relação ato-

potência.

A teoria do dinamismo intelectual pode ainda fornecer, nesta ótica,

uma resposta a múltiplas questões. Pois se a realidade é um todo inteligível o qual

as partes se unem, sem por isso ser isento de mistérios e de problemas para a

inteligência humana, uma explicação desta realidade, não pode parar no caminho,

mas deve ser empurrada até a fonte de toda inteligibilidade: o Absoluto. Para

enlaçar a totalidade, ela deve partir do Absoluto, principio da existência, e

encontrar o Absoluto, termo de toda tendência. De Absoluto a Absoluto passando

pela matéria pura ela encontra sua coerência na tensão dinâmica que liga o

princípio ao fim.

O a priori e o transcendental se encontram no centro desta

filosofia, pois elucidam, não o condicionamento e o mecanismo do conhecimento

da maneira que Marechal interpreta o pensamento de Kant, mas a unidade vital,

a verdade atual, a plena bondade do ser concreto no lugar e no tempo.


189

Mas, concebendo o a priori e o transcendental como termos que

expressam a referência do ser e do conhecer nas condições existenciais,

Marechal não pode fechar seu pensamento no horizonte restrito de um

humanismo relativo. Ele abre então este horizonte para um Absoluto que se

impõe implicitamente em toda parte. Ele persegue sua investigação além das

potências, além da natureza, além do sujeito e do objeto, até chegar na condição

primordial de toda possibilidade, de toda existência, de todo dado.

Marechal percebe então, uma coincidência entre o ato e a

compreensão, notavelmente no que ele chama de reflexão, e justamente esta

reflexão, revela a necessidade do Ato puro e absoluto.

Se atualmente certas tendências filosóficas se renovam

parcialmente por uma reflexão existencial sobre o esse e o ato da vida concreta do

homem, elas só estão encontrando uma linha inaugurada há vários séculos por

São Tomás. Este tomismo, Marechal não somente o compreendeu e o re-

examinou, mas explicito, adaptado e confrontado com a problemática de seu

tempo. Esta confrontação ficou singularmente atual e manteve seu vigor. Pois as

tendências agnóstica ocupam e defendem posições no mínimo muito discutíveis,

principalmente quando elas querem, numa oposição arbitrária ao Absoluto, Ato

puro envolver a reflexão num conteúdo do relativo humano e se limitar a

experiência existencial excluindo todo ato de discussão. Nestas questões elas

ainda não encontraram todo o valor racional e todo conteúdo teocêntrico da

antropologia tomista. Face a esta rejeição, a doutrina de Marechal afirma e

legitima o direito de se situar na verdade. O ato na sua racionalidade própria e

uma coincidência de sujeito e de objeto no ato do pensar e do querer liberdade


190

não impede de nenhuma maneira uma explicação discursiva e racional. Esta ação

de discutir é uma exigência própria da vida e do espírito.


191

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