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“ENTÃO ELAS SE LEMBRARAM

DAS PALAVRAS DELE”: MEMÓRIA


E RELAÇÕES DE PODER
NOS CRISTIANISMOS ORIGINÁRIOS

IVONI RICHTER REIMER

Resumo: o artigo analisa tradições bíblicas sobre a ressurreição de Jesus e o seu


anúncio apostólico com o referencial da memória e em perspectiva de
gênero. Buscando interpretar o passado e (re)significar o presente, essas
tradições transmitem a Boa Nova da ressurreição e refletem complexas
relações de poder, situadas num campo sociorreligioso perpassado por cul-
turas androcêntrico-patriarcais. Na História da Igreja, o que se impôs
foi a interpretação e o modelo dogmático androcêntricos, que invisibilizaram
o apostolado de mulheres, obstruindo o direito delas ao ministério pasto-
ral ordenado. O estudo desafia a rever as tradições e as relações de poder
construídas nelas e a partir delas.

Palavras-chave: ressurreição, apostolado, memória, relações de poder, gênero

ABRINDO PORTAS – UM TEXTO-MEMÓRIA

O texto de Lucas 24,1-12 transmite uma hierofania vivenciada por


mulheres: Maria Madalena, Joana, Maria de Tiago e outras vêem os
‘anjos do Senhor’ que lhes falam da ressurreição de Jesus. Por tratar-
se de uma experiência visionária com subseqüente envio e anúncio
apostólicos, este texto está permeado de um fascinante poder de rela-
ção com o Sagrado. Além disto, ele faz parte de uma tradição de
espiritualidade e liderança de mulheres no seguimento de Jesus. Esta
tradição faz parte de nossa herança sociorreligiosa, e esta herança é
simultaneamente expressão de nosso poder e do esquecimento, ao
qual mulheres foram relegadas nestes milênios de história.
Por isto, é importante resgatar também essa tradição. E ela começa pelo
resgate da memória. Memória que foi acessada por aquelas mulheres
através de uma experiência visionária.

Mas no primeiro dia da semana, alta madrugada, foram elas ao túmulo,


levando os aromas que haviam preparado. E encontrara a pedra removida
do sepulcro; mas, ao entrarem, não acharam o corpo do Senhor Jesus.
Aconteceu que, perplexas a esse respeito, apareceram-lhes dois homens
com vestes resplandecentes. Estando elas possuídas de temos, baixando os
olhos para o chão, eles lhes falaram: Por que buscais entre os mortos ao
que vive? Ele não está aqui, mas ressuscitou. Lembrai-vos, como vos falou,
estando ainda na Galiléia, quando disse: Importa que o Filho do Homem
seja entregue nas mãos de pecadores, e seja crucificado, e ressuscite no
terceiro dia. Então, elas se lembraram das palavras dele. E, voltando do
túmulo, anunciaram todas estas coisas aos Onze e a todas as demais
pessoas que estavam com eles. Eram Maria Madalena, Joana e Maria de
Tiago; também as demais que estavam com elas confirmaram estas coisas
aos apóstolos (Lc 24,1-10).

Essas mulheres estavam superando o medo – legítimo por causa das conse-
qüências da pena de morte também para familiares e amigos(as) de
gente crucificada1 – ao se colocarem a caminho do sepulcro. Agora
elas são recolocadas no lugar onde sempre estiveram junto a Jesus e
seu ministério: são portadoras da Boa Nova, apóstolas dos apóstolos,
mulheres em meio às construções das relações de poder sociorreligioso.
Com o referencial da memória e em perspectiva de gênero, quero revisitar
esta tradição fundante da igreja judeu-cristã. Analiso o texto de 1 Cor
15,3-8 como o relato escrito mais antigo sobre a ressurreição de Jesus
Cristo e os textos evangélicos que testemunham sobre o mesmo tema.
Aponto para diferenças e conflitos na transmissão e na elaboração des-
ta tradição, presentes não apenas nos próprios textos bíblicos, mas também
e talvez especialmente na história interpretativa e em sua aplicação
dogmática. Com isto, foco dois objetivos: evidenciar processos de
silenciamento e exclusão de mulheres não apenas das tradições ‘mítico-
literárias’ mais antigas, mas conseqüentemente, de ministérios eclesiais
ordenados, exclusão esta presente até hoje ainda em algumas igrejas;

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demonstrar que a memória é força construtora também para alternati-
vas de vivência e organização da experiência religiosa.

ADENTRANDO NA CASA – ALGUNS DADOS


INTRODUTÓRIOS

Schüssler Fiorenza (1992), uma das pioneiras na hermenêutica bíblica femi-


nista, afirmava que as mulheres são mencionadas no Novo Testamento
particularmente em duas situações específicas: quando elas apresen-
tam uma exceção ou um problema. A partir daí tem-se inúmeros estu-
dos e pesquisas que buscam resgatar tanto a presença e participação de
mulheres nos cristianismos originários quanto compreender os pro-
cessos de exclusão de mulheres desta mesma participação. Assim, Ale-
xandre (1990) nos apresenta um resumo desta participação e exclusão
a partir de textos do Novo Testamento.
Estes textos se nos apresentam também como fonte de pesquisa e investiga-
ção sobre vida de mulheres no século I d.C. A partir deles, podemos
dizer que – para a época em questão, quando mulheres praticamente
estão ausentes nos escritos – são muitas as mulheres mencionadas
com nome; maiores ainda são as passagens que as mencionam sem
nome. E outras tantas, nas quais elas aparecem de forma implícita,
em meio a grupos e multidões. Seguindo o raciocínio de Schüssler
Fiorenza, ou os problemas eram muitos ou a participação de mulhe-
res não figurava tanto como exceção... Afinal, o quadro que se apresenta
mostra que mulheres fazem parte da multidão, estão ativas na rua,
nas casas, na sinagoga e no templo. São esposas, mães, viúvas e celi-
batárias. São mulheres judias, gregas, egípcias, asiáticas, macedônias...
São artesãs, comerciantes; confeccionam perfumes, roupas, tendas;
são profetisas, diáconas, missionárias, discípulas, apóstolas; são di-
vindades femininas, hereges, santas e prostitutas... enfim, por intermédio
de textos do Novo Testamento, temos uma ampla exposição das
multifacetárias situações e condições de vida de mulheres daquele
tempo. Aqui, fazemos um recorte pelas vias do fenômeno religioso,
pois é por causa de sua adesão e prática religiosa que estas mulheres
são mencionadas no Novo Testamento, de forma positiva ou negati-
va. As demais informações sobre vida cotidiana, profissão e aspectos
socioculturais estão relacionadas com este interesse primeiro.

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De acordo com Alexandre (1990), os textos do Novo Testamento demons-
tram que há um conflito profundo entre dois modelos de participa-
ção de mulheres nos cristianismos originários: um que rompe com
paradigmas socioculturais e religiosos de dependência, subordinação
e desqualificação de mulheres e outro que se adapta, reformula e tal-
vez até aprofunde estes paradigmas (Gl 3,28; 1 Tim 2,11-15). Este
conflito apontaria para um processo gradativo de institucionalização
da igreja e simultânea exclusão de mulheres do exercício das funções
eclesiásticas. Alexandre (1990) compartilha, assim, da mesma visão
de Schüssler Fiorenza (1992) e outras teólogas feministas.
Concordo em muito com a abordagem e a perspectiva dessas autoras. Penso,
contudo, que a questão é mais complexa. Lendo os textos – com a
metodologia exegética e os recursos do método histórico-crítico – e
considerando o processo de seu surgimento, transmissão, escrita, com-
pilação e recepção, bem como sua inserção no contexto sociopolítico,
é possível aferir que este conflito também já existia nos princípios... e
que o ideal utópico de construção de novos paradigmas nunca deixou
de existir! Como percebo isto? Primeiro, porque temos textos mais
antigos (década de 50 do século I) que, paralelamente à afirmação da
liderança de mulheres na diaconia, no apostolado, na missão e no en-
sino, já apresentam um discurso que interdita esta liderança (1 Co 11
e 14; Rm 16)2 e, segundo, porque também há textos mais recentes
(década de 80-90) que afirmam e aprovam esta participação, ao passo
que outros a interditam (Lc 8,1-3; At 9; 18; 1 Tim 2). Além disso,
temos textos que provêm de uma mesma época e região que abordam
as mesmas temáticas, mas em perspectiva, orientações e inclusive (!)
gêneros literários diferentes (cartas, evangelhos, atos): alguns interdi-
tam totalmente a participação das mulheres, outros, apresentam-nas
em diferentes funções religioso-eclesiais.
Aqui, é preciso considerar que cada gênero literário tem não apenas uma
linguagem, uma dinâmica e um discurso próprios, mas também ob-
jetivos distintos. As Cartas são escritos dirigidos a uma comunidade
específica para tratar de um problema específico, para cuja solução
o(s) autor(es) quer(em) exercer influência – são escritos circunstanciais.
Já os Evangelhos e os Atos se propõem a escrever a história do evan-
gelho de Jesus, após ‘acurada investigação e ordenação dos dados da
pesquisa bibliográfica e de campo’ (Lc 1,1-3; At 1,1). Assim, obser-
vamos que os evangelhos foram escritos na mesma época de algumas

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cartas, e ambos apresentam formas e conteúdos bastante distintos
acerca da participação de mulheres nos ministérios eclesiais e na vida
cotidiana (anos 80).
Os Evangelhos, narrando sobre o movimento de Jesus, refiguram não ape-
nas imaginariamente aquele passado propondo-se como a “verdade
do ocorrido” (PESAVENTO, 2004), mas contemplam e refletem
problemas atuais nas comunidades, querendo intervir nos rumos dos
acontecimentos: interpretam o presente, relendo o passado. Na mesma
época e na mesma região há duas fortes tendências político-eclesiais:
uma vem representada por Cl 3,18-4,1, Ef 5,22-6,9 e 1 Pe 2,13-3,7,
afirmando a subordinação às autoridades governamentais estabelecidas, a
manutenção da ordem escravagista, a submissão das mulheres aos
maridos e a sua exclusão de funções eclesiais; outra vem representada
por Mc 14-16, Mt 27-28, Lc 8,1-3, 23-24 e Jo 19-21, insistindo em
destacar o protagonismo de mulheres no primeiro e decisivo teste-
munho e anúncio apostólico da morte e da ressurreição de Jesus,
afirmando, neste momento, a sua pertença ao movimento desde o
início na Galiléia!
Para visualizar um pouco este complexo processo aqui rapidamente abor-
dado, proponho-me a adentrar numa pequena seleção de textos so-
bre a temática do apostolado. Trata-se de textos-chave para a construção
de identidade por meio do registro da memória. Enquanto texto-
escrito e texto-interpretado, eles estão revestidos de poder, porque
tratam da autoridade apostólica, necessária para a transmissão do
evangelho; junto com isto, eles tangem o imaginário religioso de uma
época, transmitido para outras épocas mediante um corpo canônico-
doutrinário. É importante considerar isto, porque o imaginário com-
porta “crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de
identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e dife-
renças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzin-
do a coesão ou o conflito” (PESAVENTO, 2004, p. 43).
A base constitutiva da identidade cristã é a confissão de que Jesus de Nazaré
é o Messias de Deus, que viveu colocando sinais do Reino de Deus,
foi julgado e condenado pela acusação “rei dos judeus” (crime majestático
da jurisdição romana), morreu na cruz e ressuscitou dentre os mor-
tos. Cruz e ressurreição tornam-se marcas representativas da identi-
dade cristã. O que garantiu isso foram o testemunho e o anúncio
apostólicos. Apóstola é uma pessoa escolhida e incumbida de realizar

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uma ordem expressa de quem o escolheu. Quem são, então, testemu-
nhas e apóstolos da ressurreição de Jesus?
Abordo, em primeiro lugar, o texto mais antigo desta tradição judeu-cristã: 1
Cor 15,3-8. Aqui, o apóstolo Paulo, por volta do ano 53, transmite o
que ele mesmo recebeu da tradição: que Cristo morreu, foi sepultado e
ressuscitou dentre os mortos no terceiro dia, e apareceu a Pedro, aos
doze apóstolos, a quinhentos irmãos, a Tiago, a todos os apóstolos, e
depois ao próprio Paulo, o ‘menor’ dos apóstolos. Assim, temos signi-
ficativa representação de testemunhas para a ressurreição de Jesus, e é
isto que testifica, autentica e legitima esta afirmação-experiência3.
Para quem está mais ou menos familiarizado com a tradição e os textos
bíblicos, este texto de Paulo imediatamente causa estranhamento: as
mulheres estão ausentes da ‘lista’ das aparições de Jesus ressuscitado!
No máximo, elas podem estar ‘subsumidas’ entre os ‘irmãos’ e os
‘quinhetos... Em contraposição, todos os relatos evangélicos sobre
cruz, morte e ressurreição de Jesus explicitam a presença, a experiên-
cia visionária e o testemunho de mulheres como discípulas e apóstolas!
Aqui, elas são inclusive apóstolas dos apóstolos, tendo sido incumbi-
das pelo (anjo do) ressurreto a anunciarem a Boa Nova da ressurrei-
ção aos Doze (Onze). Esta tradição do apostolado das mulheres, aliás,
tem longa duração e adentra até o século IV4. Essas mulheres têm
nome: Maria Madalena, Maria, a de José, Maria, a de Tiago, Salomé,
Joana, além de muitas outras mulheres sem-nome! No final do sécu-
lo I, os evangelhos rememoram a participação e o protagonismo des-
sas mulheres. Se é assim, por que Paulo não as menciona? Será que
estamos diante de uma contradição entre os textos do Novo Testa-
mento? Em todo o caso, está aí um indício para a necessária aborda-
gem intertextual de tradições bíblicas e doutrinárias.
Neste momento, penso ser importante refletirmos sobre o referencial da
memória na construção e transmissão de textos bíblicos.

CONHECENDO A CASA – TEXTOS BÍBLICOS COMO


MEMÓRIA

Em diferentes áreas epistemológicas, a memória tem sido resgatada como


importante referencial de (re)construção de história. Entende-se que
ela, transmitida de forma oral e escrita, faz parte de nossa herança

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sociocultural. Esse referencial tornou-se importante também para a
análise de textos bíblicos. Assim, entender que as narrativas evan-
gélicas não são simplesmente um ‘ditado’ do Espírito Santo para
homens inspirados, mas um processo de seleção e organização de
material traditivo – memórias presentes na vida de comunidades –
tem se mostrado como uma conquista no processo exegético e
interpretativo. Tal abordagem permite que transpareça a multiplicidade
ao invés da uniformidade, indícios de heterodoxia ainda presentes
em textos canonizados5. Neste sentido, penso que não são apenas
outros fragmentos de evangelhos apócrifos que possibilitam uma
melhor compreensão sobre conturbados e conflituosos inícios de
organização de comunidades cristãs de diversas mat(r)izes em seus
processos de afirmação de identidade. Os próprios evangelhos
canônicos também o fazem.
Em se tratando de memória, pode-se considerar que ela é força poderosa,
mesmo não sendo exata. Não é exata, porque as pessoas podem
esquecer algum detalhe de um acontecimento; a memória pode so-
frer interferências; as informações e vivências não foram todas
armazenadas, são seletivas; o processo de organização e escrita do
material transmitido também é seletivo... Por isto, junto com a
memória, igualmente a ação construtiva é força poderosa. Esta ação
construtiva da memória quer entender o motivo e o significado dos
acontecimentos. Além disto, há o fenômeno do esquecimento, também
presente nas dinâmicas e vicissitudes da memória. Diante de desas-
tres, informações podem ser ‘deletadas’, seja através de interferências
de outros meios informativos, de sobreposição de outras experiên-
cias ou imagens que se seguem ou através da simples necessidade de
sobrevivência 6. A memória, sendo vital, também é parcial.
Pressupondo que os evangelhos são fruto de vivência, transmissão, seleção,
organização e escrita de memórias de primeiras comunidades cristãs,
torna-se “muito difícil obter uma narrativa completamente não ten-
denciosa, portanto exata, de um desastre por parte de seus sobrevi-
ventes” (CHEVITARESE, 2005, p.1416), sendo que, aqui, o “desastre”
foi a morte de Jesus na cruz. Também experiências pós-evento, que
está sendo lembrado, podem interferir na memória através de incor-
poração ou subtração de detalhes, buscando uma explicitação de motivos
e significados. Neste processo, “as experiências demonstram, porém,
que os itens periféricos são mais sujeitos às mudanças do que os cen-

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trais ou salientes” (CHEVITARESE, 2005, p.1417). A meu ver,
também importa perguntar quem define os critérios desta centralidade...
Em todo o caso, no que se refere a textos evangélicos, penso que esta
indicação pode coadunar-se com a análise sinótica: as semelhanças
indicariam para as experiências centrais ou o evento fundante co-
mum a todo o material traditivo que foi transmitido nos mais diver-
sos espaços geo-culturais durante certo período temporal, e as diferenças
remeteriam para as incorporações ou subtrações de informações e
interpretações ocorridas nas diferentes comunidades7. No caso dos
evangelhos, o evento central ou fundante é a resssurreição, e seu teste-
munho e anúncio são realizados pelas mulheres apóstolas. Sobre isto,
todos os relatos evangélicos concordam! Além disto, é necessário ob-
servar que a memória evangélica escrita nos remete simultaneamente a
vários e diferentes contextos vitais: ao contexto de Jesus e de seu movi-
mento, bem como ao contexto das releituras e ressignificações comu-
nitárias.
Sem cair em ceticismos, talvez possamos dizer como Saramago que estes
textos são “memórias de memórias, vestígios de outras memórias,
memória da memória primordial. Vivemos no meio de nossa me-
mória, como um caleidoscópio, os pedacinhos são os mesmos, mas
mudam” (SARAMAGO apud TELES VERAS, 2006, p. 1). Por isto,
metodologicamente, é importante que uma memória seja colocada
em diálogo com outras abordagens e explicitações de memória
acerca do mesmo evento (intertextualidade). Poderemos ter, então,
uma peça-mosaico reconstruída a partir de muitos e diferentes frag-
mentos de memória. Assim, formular/formatar ou acessar memória
é um exercício metodológico-hermenêutico, é (re)invenção de sig-
nificados que buscam reconstruir partes do passado, objetivando
significar o presente.
Nesta (re)invenção de significados, real e imaginário se entrecruzam, se en-
contram e conflituam entre si:

O real é sempre o referente da construção imaginária do mundo, mas


não é o seu reflexo ou cópia. O imaginário é composto de um fio terra,
que remete às coisas, prosaicas ou não, do cotidiano da vida dos homens
[sic!], mas comporta também utopias e elaborações mentais que figuram
ou pensam sobre coisas que, concretamente, não existem. Há um lado do
imaginário que se reporta à vida, mas outro que se reporta ao sonho, e

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ambos os lados são construtores do que chamamos de real. (PESAVENTO,
2004, p. 47).

Na força construtiva da memória, este sonho-utopia vai sendo transforma-


do ora pelo esquecimento, ora pela supressão ou pelo acréscimo, talvez
porque o grupo que acessa ou formata a memória queira entender,
interpretar e transmitir o que se viveu: “a memória, ao contrário do
que as pessoas pensam, não recorda. Ela vai interpretar o que se viveu
ou o que se pensa ter recordado. O homem [sic!] recorda simples-
mente o que a memória quer. Ela é autônoma em relação a nós” (PIÑON
apud TELES VERAS, 2006, p. 1).
Essa autonomia é o que talvez tenha sido praticada por pessoas e grupos
judeu-cristãos no século I. Afinal, encontramo-nos diante de dife-
rentes narrativas que querem interpretar o passado, refigurando-o
imaginariamente. Este imaginário é uma “representação que orga-
niza os traços deixados pelo passado e se propõe como sendo a ver-
dade do acontecido” (PESAVENTO, 2004, p. 50). Diante do dilema
de fontes-narrativas que propõem ‘verdades’ distintas sobre o mes-
mo evento, cabe uma análise que possibilite a construção de uma
versão verossímil, plausível daquilo que pode ter sido, consideran-
do os diferentes contextos e realidades, bem como os distintos ob-
jetivos dos textos.
A memória que está na base desses textos é a existência de um movimento
religioso de renovação intrajudaico, liderado por Jesus de Nazaré, o
qual atuava como taumaturgo e milagreiro itinerante, ensinava nas
sinagogas e no templo, congregando em torno de si um grupo de
discípulos e discípulas. Essa memória está registrada fragmentaria-
mente nos evangelhos, mas não nas cartas de Paulo, porque ele se
interessa mais pelo querigma, pelo anúncio do Evangelho de Cristo,
e não pelo ‘Jesus histórico’, que ele mesmo não chegou a conhecer.
Essa constatação, porém, não desqualifica o apostolado e as contri-
buições específicas de Paulo na sua missão.
A partir do referencial da memória, podemos entender os evangelhos como
uma organização multiforme de memórias orais e escritas agregadas
ou subtraídas a outras memórias num processo reconstrutivo de he-
ranças pessoais e grupais, com objetivo de, entre outros, construir e/
ou garantir referência de identidade. Esta identidade deve ter sido
afirmada, no momento da escrita (a partir dos anos 70 até o final do

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século I), em sentido bifocal para garantir a sobrevivência de grupos
social e numericamente minoritários: externamente era necessário traçar
um perfil em relação ao sistema romano de dominação e interna-
mente destacava-se a pertença a um movimento de renovação
intrajudaico que aos poucos e por questões históricas precisa cons-
truir sua própria identidade8. Neste momento de crise – também
com tendências hierarquizantes e patriarcais no seio de comunidades
cristãs9 –, os evangelhos querem formular a relevância do seguimen-
to de Jesus neste novo contexto e (re)formatar a vida praxiológico-
organizativa em comunidades, apontando para as origens da fé no
Messias Jesus de Nazaré.

VARRENDO A CASA – DIVERSIDADE DE TRADIÇÕES


E RELAÇÕES DE PODER

Farei, aqui, uma primeira ‘varredura’ de textos que falam da ressurreição


de Jesus através da informação sobre a aparição respectivamente
sobre a visão do (anjo do) ressurreto. Como vimos, o texto mais
antigo que testemunha sobre a ressurreição de Cristo é 1 Co 15,3-
8, cujo argumento e critério para testificar a ressurreição é a expe-
riência visionária que pessoas tiveram com o próprio ressurreto.
O verbo utilizado é horáo, “ver”, que aparece quatro vezes (15,5.6.7.8)
na forma passiva para informar que “ele foi visto”/”apareceu”. Já
comentei que, nesta mais antiga tradição escrita, as mulheres foram
silenciadas e invisibilizadas.
Uma segunda ‘varredura’, neste caso intertextual, enfoca os relatos evan-
gélicos sobre o mesmo tema. Aqui igualmente encontraremos o
verbo horáo (e duas vezes seu correlato theoréo) para testificar a
ressurreição de Jesus. Além disto, é usado também outro termo
técnico para aparição divina (faino/faneróo). O que muda é a
menção de alguns outros sujeitos. Vejamos, em ordem cronoló-
gica, a escrita no Quadro 1.

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Quadro 1: Ressurreição de Jesus

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Esses dados expressam claramente que mulheres e homens viram o (anjo
do) Cristo ressuscitado10. A experiência visionária, no imaginário re-
ligioso judaico e judeu-cristão, é uma poderosa força construtora de
legitimidade e autoridade proféticas e apostólicas, manifestando-se
após o evento fundante da ressurreição também nas práticas litúrgicas
das comunidades11. O fenômeno visionário é característica religiosa,
cuja manifestação é ver Deus ou seu anjo face a face (Nm 12,8; Gn
46,2): Deus apareceu a Abraão, Isaque, Jacó e Moisés. No Novo Tes-
tamento, este fenômeno se concentra em Jesus, o Cristo, ou em an-
jos, a iniciar pelos relatos da ressurreição, que “ressaltam especialmente
que o Cristo ressurreto é visível” e que este encontro leva “à fé, à
dedicação, ao testemunho e ao envio” (DAHN, 2000, p. 2597). Tra-
ta-se da revelação do Cristo e de seu reconhecimento por quem vivencia
o fenômeno visionário.
A perícope de Mc 16,1-8 pertence ao gênero literário chamado angelofania
e apresenta uma aparição de anjo nos moldes do Antigo Testamento
(GNILKA, 1989). Sua função seria, aqui, historicizar um aconteci-
mento apocalíptico. Observando as narrativas da ressurreição de Je-
sus, percebemos que as narrativas sinóticas entrecruzam informações
sobre a visão das mulheres: elas vêem anjos e elas vêem o Senhor
ressurreto! Na teologia, porém, tentou-se minimizar a aparição e a
visão dos anjos em relação à visão do ressurreto, porque este teria
aparecido somente aos apóstolos. Por isto, deve-se destacar dois pro-
blemas na história da interpretação: a exclusão das mulheres, às quais
o anjo e o ressurreto aparecem e falam, da experiência visionária que
deve acontecer na Galiléia: “ali vós O vereis!” (Mc 16,7; Mt 28,7); a
relativização da angelofania, o que, no mínimo, é desconcertante e
certamente conduz a erros interpretativos. Não é possível contrapor
a aparição do anjo à aparição do Cristo ressurreto, visto que o(s)
anjo(s) sempre aparece(m) na função de angelus interpres e estão dire-
tamente vinculados a quem representam (BULTMANN apud
DREWERMANN, 1990).
Na análise do termo técnico horáo e dos correlatos acima arrolados para a
experiência visionária do ressurreto, é necessário interpretar as passa-
gens arroladas à luz de textos visionário-proféticos e apocalípticos do
Antigo Testamento e do judaísmo posterior (KREMER, 1992). Nes-
te sentido, não se trata apenas de um termo formal para uma revela-
ção, mas também de uma fórmula de legitimação da autoridade por

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parte de quem vive esta experiência. Com a escolha destes verbos, os
textos indicam que as comunidades no final do século I transcreviam
para o Cristo ressurreto uma poderosa característica de Javé, que é se
tornar visível, e que simultaneamente incluíam mulheres e homens
nesta tradição visionária. Na continuidade da tradição visionária do
Antigo Testamento, encontram-se, portanto, Maria Madalena, Joana,
Maria de Tiago, Salomé... Pedro, Tiago, Paulo..., que estão lado a
lado com Abraão, Isaque, Jacó e Moisés.
Apesar destas evidências, é preciso observar criticamente as conseqüências
que alguns estudiosos tiram da análise do termo técnico horáo. Note-
se também que, por estarem publicados em importantes e divulgados
Dicionários Bíblico-Teológicos, estes estudos são acessíveis a qual-
quer pessoa, particularmente estudantes de Teologia, que facilmente
os reproduzem em suas práticas intelectuais e pastorais. Com isto,
encontramo-nos dentro da história interpretativa. Ora, estudiosos
afirmam que essa experiência visionária em relação ao ressurreto está
impregnada pela legitimação da autoridade apostólica, mas explici-
tamente reduzem essa legitimação aos apóstolos Pedro/Cefas e Paulo
(KREMER, 1992). Em momento algum Dahn e Kremer mencio-
nam as mulheres, muito menos a sua outorgada autoridade, oriunda
da visão e do envio! Também comentaristas excluem mulheres da
experiência visionária que deverá acontecer na Galiléia (Mc 16,7):
“Os discípulos e Pedro são ‘realmente’ testemunhas da ressurreição
de Jesus, que vêem o ressurreto e que devem anunciá-lo” (GNILKA,
1989, p. 343, minha tradução e meu grifo).
Assim, a ‘concorrência apostólica’ não se dá apenas entre Maria Madalena e
Pedro (nos textos canônicos e apócrifos), mas também entre Maria
Madalena e Paulo, que se autodenomina ‘apóstolo’, mas silencia em
relação ao apostolado de Maria Madalena, de Joana, Maria de Tiago...
Comparando-se 1 Co 15,3-8 com as narrativas evangélicas da ressur-
reição, pode-se perceber que a tradição paulina tem um forte objeti-
vo dogmático-apologético (DREWERMANN, 1990), e por isto
também teve primazia na tradição interpretativa e doutrinária da Igreja.
Como vimos, esta concorrência em torno da primazia apostólica já
se fazia presente nos textos bíblicos. A diferença é que, então, as dis-
tintas tradições ainda sobreviviam paralelamente (SCHÜSSLER
FIORENZA, 1992), enquanto, no decorrer da história eclesiástica,
as tradições petrina e paulina sobrepujaram as tradições do apostolado

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de Maria Madalena, Salomé, Maria de Tiago, Joana! O resultado deste
processo foi a lenta, gradativa e incisiva exclusão das mulheres do
apostolado e conseqüentemente, de ministérios eclesiais ordenados,
o que perdura até hoje em algumas igrejas.
Vimos que este processo teve início ainda no século I. Para demonstrá-lo,
podemos arrolar ainda o texto de At 1,15-26, que narra sobre o processo
de substituição de Judas para a recomposição do número doze para o
grupo de apóstolos. Este processo é encabeçado por Pedro. Os critérios
para a substituição de Judas são claros: ser homem (anér – sexo
masculino); ter acompanhado Jesus desde o início de seu ministério
na Galiléia; ser testemunha da resssurreição. Fica evidente que, para
mulheres, o critério androcêntrico anula os outros dois que permitiriam
a participação delas, agora na ‘concorrência’ pelo apostolado! Elas,
apóstolas dos apóstolos, são agora excluídas deste ministério e, portanto,
das esferas de poder já na igreja incipiente pelo fato de serem mulheres!
Este critério androcêntrico canonizado, que é misógino e que contraria
a sexualmente indistinta experiência religiosa, é que se impôs na História
da Igreja e das mulheres.
Nos jogos da memória, enfim, a que se impôs foi a androcêntrico-patriar-
cal de viés hierárquico-dogmático defensor da “sã doutrina”, para a
qual função de mulher é permanecer calada, submissa, procriar e
cuidar das crianças e do marido, além de aprender em silêncio: dis-
so dependeria a salvação das mulheres (1 Tim 2,11-15). As demais
memórias continuaram emergindo sempre quando acessadas por
grupos e movimentos de resistência socioeclesiais, na tentativa de
resgatar heranças e tradições outras, nas quais pudessem se ver sus-
tentados e encorajados. E assim continuam vivas até hoje.

REORGANIZAR A CASA – IDENTIDADES E ALTERIDADES

A ‘casa’ que acabamos de visitar, vasculhar e varrer está marcada pelo evento
fundante da vida, morte e ressurreição de Jesus. Esta ‘casa’ está marcada
também pela experiência religiosa de mulheres e homens discípulos(as)
deste Jesus. Esta experiência não é predeterminada ou (de)limitada
por questões de gênero, o que constatamos através da experiência
visionária e apostólica das mulheres. No movimento de Jesus, esta
experiência religiosa vem marcada pela diversidade que foi sendo

, Goiânia, v. 4, n. 2, p. 347-366, jul./dez. 2006 360


substituída pela homogeneidade das expressões doutrinárias. Este
processo de homogeneização está presente nas cartas dêutero-paulinas
e pastorais, por exemplo, da qual a liderança masculina se torna ex-
pressão única e soberana.
Visto a partir da construção simbólica de sentido que busca organizar um
sistema de relações a partir da noção de pertencimento, o que aqui se
reflete é um problema de relações de poder em torno da identidade
religiosa, que se configura também como espaço de liderança no
movimento de Jesus e nas comunidades cristãs originárias. A identidade
apresenta um “capital simbólico de valoração positiva” (PESAVENTO,
2004, p. 91), atraindo adesão e respondendo às necessidades humanas
mais profundas, a fim de que a pessoa possa adaptar-se e ser reconhecida
socialmente. Além disto, a identidade, enquanto construção imaginária
de sentido, também responde à necessidade de acreditar em algo positivo,
bom, libertador. Ora, a identidade de mulheres e homens no movimento
de Jesus é profundamente religiosa, ancorada em seus conhecimentos
escriturísticos e em sua vivência da espiritualidade; tem, portanto,
um ‘capital simbólico positivo’, a partir do qual pautam sua ação e
participação neste movimento. Da construção da identidade, no entanto,
fazem parte também a percepção e a constatação da diferença. Esta
constatação não é problema, mas necessidade num processo dialógico
nesta construção. Quando, porém, esta alteridade não é ou deixa de
ser respeitada e reconhecida num processo de reciprocidade, acontece
uma dinâmica de estranhamento, distância e até negação. Neste caso,
trata-se de uma “modalidade perversa da alteridade” (PESAVENTO,
2004, p. 92) que conduz à rejeição e à exclusão, presentes também
nos textos e nas tradições que acabamos de (re)visitar.
O tempo da escrita dos evangelhos é de múltiplos conflitos de identidade
que se expressam em relação ao judaísmo que sobreviveu após os
anos 70; ao sistema de dominação romano para o qual a igreja era
religio ilícita; às diferentes tradições que circulam pelas comunida-
des, autorizando e legitimando divergentes maneiras de organização
eclesial e sociofamiliar. Na medida em que grupos e autoridades ecle-
siásticas, já nos anos 80, negavam a alteridade através da dinâmica da
‘heretização’, não sobravam muitas alternativas para mulheres líderes
ou outras pessoas que se encontravam na tradição do apostolado de
mulheres: submetiam-se às regras androcêntricas de organização hie-
rárquico-patriarcal que foram sendo construídas ou redefinidas, ou,

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como pessoas e grupos excluídos, buscavam articular novas formas
de expressar sua identidade religiosa ante o sistema dos ‘incluídos’
que as rejeita. É assim que, desde muito cedo, existem diferentes for-
mas de grupos se organizarem como igreja. Ao lado da ‘igreja dos
homens’ existe também a ‘igreja das mulheres’, que sobrevive no mí-
nimo até o século IV12.
Memórias geralmente são acessadas em situação de redefinições em meio a
conflitos e busca por alternativas. Para as mulheres discípulas de Je-
sus, que após a morte de Jesus encontravam-se com medo e abando-
nadas, a memória das palavras de Jesus – que se tornaram corpo em
sua práxis – foi reavivada através da experiência visionária. Como
memória escrita, ela foi acessada e registrada num tempo em que as
relações eclesiais já estavam sendo perpassadas por argumentos e ela-
borações androcêntrico-patriarcais (anos 90). Dela nós herdamos a
certeza de que mulheres e homens vivenciaram a experiência visioná-
ria do ressurreto. Dela, porém, nós também herdamos a certeza de
que, no sepulcro, o anjo e o Senhor ressuscitado aparecem apenas às
mulheres, e com elas falam. Trata-se de uma hierofania que, no fenô-
meno religioso, é classificado pela manifestação do que é tremendum
et fascinans. É nesta hierofania que igualmente apenas as mulheres rece-
bem a incumbência de anunciarem a ressurreição aos demais discípulos(as)!
No envio que recebem e no anúncio que realizam, elas são identificadas
como apóstolas.
Recordar disto desafia a rever as relações de poder que são construídas em
torno da experiência religiosa e suas tradições. Recordar disto anima
a resistir diante de poderes hierárquico-patriarcais, exclusivos e sobe-
ranos, na articulação de alternativas para expressão da religiosidade,
bem como na criação de espaços de solidariedade para com pessoas
que não encontram espaço em seu ‘território sagrado’. E para não
dizer que não busquei por ‘outras’ falas de homens:

Agora ele [Paulo] cita testemunhas oculares [da ressurreição...]. Entretanto,


ele não fornece uma lista completa, pois omite as mulheres. Portanto, quando
diz que antes de todos apareceu a Pedro, devemos entender que ele [Pedro]
é o primeiro entre os homens, de modo que a afirmação de Marcos
(16.9) de que Jesus apareceu primeiro a Maria não é de forma alguma
inconsistente (CALVINO, 1996, p. 450).
Pouco considerado por muitas introduções à literatura do cristianismo

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primitivo e pelas reconstruções das primeiras comunidades cristãs no primeiro
século é o paradoxo de que aquela seita judaica [...] nasceu do relato de
visões de camponeses galileus e, na sua mais antiga versão, nasceu de
relatos de visões de mulheres camponesas galiléias [...] (Mc 16,1-5)”
(NOGUERIA, 2005, p. 13).

A palavra decisiva do cristianismo para o mundo é especificamente uma


mensagem de mulheres. Somente elas são capazes e dignas de ver e tornar
visível a vitória da vida sobre a morte (DREWERMANN, 1990, p.
699, minha tradução).

Notas
1
Tácitus, Annalen VI, 19 descreve o ‘ritual’ da crucificação, referindo-se ao tempo de
Tibério, o qual “ordenou matar todas as pessoas que estavam presas por terem sido
acusadas de participar de uma conspiração junto com Seiano. Havia ali um monte
de cadáveres, de ambos os sexos, de todas as idades, ilustres e ignorantes. [...] Não se
permitia que parentes e pessoas amigas se aproximassem para pranteá-los, nem para
observá-los por mais tempo. [...] os guardas tinham de permanecer junto aos cadáve-
res até que estivessem apodrecidos e fossem arrastados para dentro do rio Tibre. [...]
Anulado estava qualquer sentimento de comunhão por causa do poder do medo, e
na mesma medida em que crescia o horror também diminuía a compaixão“ (tradu-
zido por mim). Veja outros comentários em Schottroff (1995, p. 39-82).
2
Veja o estudo aprofundado destes textos na dissertação de Matos (2004), principal-
mente p. 90-136.
3
Lamentavelmente não nos é informado de onde e de quem Paulo recebeu esta tradi-
ção, mas com certeza foi oriunda de grupos judeu-cristãos com os quais Paulo se
relacionou após a sua ‘conversão’ no caminho a Damasco, onde permaneceu com os
discípulos(as) por algum tempo (At 9,1-25).
4
Maiores informações a respeito, veja dissertação de Guizzo (2005).
5
Esta multiplicidade de percepção e de discurso é observada e analisada também pela
metodologia exegético-semiótica no que diz respeito à ‘discursivização’ da morte de
Jesus. Veja Genest (1998, p. 104-7).
6
Este processo pode ser analisado exegeticamente pela Crítica Textual, que estuda e
avalia as diferentes transmissões escritas do mesmo evento ou discurso por meio de
vários manuscritos de origens geopolíticas e de épocas distintas.
7
Sobre a questão sinótica e sua relevância para a interpretação, veja Wegner (1998,
p. 122-164).
8
Sobre questões históricas e construção de identidade própria após o ano 80, veja
Richard (1997, p. 7-9); Pesavento (2004, p. 89-98).
9
Lembre-se, aqui, que os evangelhos são compilados paralelamente ou em oposição

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às tendências de grupos cristãos representados pelas cartas deuteropaulinas e pastorais,
que também objetivavam a exclusão de mulheres dos ministérios eclesiais, conforme
mencionado.
10
Uma análise sinótica mais acurada evidencia algumas ‘suturas’ em memórias
retrabalhadas. Veja, por exemplo, Mt 28,17 na comparação com Mc 16,7: há uma
redução de “lá vós vereis”, que inclui as mulheres, para o número dos Onze que
viram Jesus na Galiléia.
11
Sobre a importância do fenômeno visionário enquanto processo fundamental para
o desenvolvimento da memória de Jesus de Nazaré que se torna o Cristo, veja Nogeira
2005, p. 14-6). O artigo, no entanto, enfoca mais a literatura apocalíptica.
12
A expressão ‘igreja das mulheres’ foi cunhada por Schüssler Fiorenza, e ela não a
restringe à participação e liderança de mulheres, mas nela mulheres não são excluídas
de participação plena.

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365 , Goiânia, v. 4, n. 2, p. 347-366, jul./dez. 2006


Abstract: the article analyzes biblical traditions about Jesus’ resurrection and
his apostolical announcement with the memory referential and in the
gender perspective. Trying to understand the past and (re)give meaning
to the present, these traditions pass the Good News of resurrection and
reflect complex power structures, based on a social-religious camp full of
androcentric-patriarcal cultures. In the History of the Church, the
interpretation and the dogmatic model assumed was androcentric, which
turn invisible the female apostles, standing on the way of their rights to
the pastoral ministry. This study challenge us to think again about the
traditions and the power relationships constructed on them and by them.

Key words: resurrection, apostles, memory, power relationships, gender, 1 Cor


15, Mc 16

IVONI RICHTER REIMER


Professora Doutora no Programa de Mestrado e Doutorado em Ciên-cias da Reli-
gião da Universidade Católica de Goiás. Teóloga luterana. E-mail: ivonirr@terra.com.br

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