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PINHEIRO, Leandro R. Karol e o ressoar do silêncio: inquietações de um pesquisador que foi à escola.

In: ARRUDA, Marina Patricio de; ANDRADE, IzabeL Cristina Feijó de (orgs). Itinerários de prática
docentes. Local: Editora, 2015, p... [ISBN: 978-85-68386-07-1].

Karol e o ressoar do silêncio: inquietações de um pesquisador que foi à escola

Leandro R. Pinheiro
leandropinheiro75@gmail.com
Faculdade de Educação/Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O texto que segue é uma narrativa de encontros e perplexidades experienciados durante


a realização de atividades de pesquisa e de extensão que coordeno, nas dependências de uma
escola pública municipal sediada no bairro Restinga, extremo sul de Porto Alegre/RS. Junto de
meus orientandos de graduação, realizei encontros com educandos da modalidade ‘Educação
de Jovens e Adultos’ (EJA), no turno da noite, com o intuito de promover a produção de ensaios
fotográficos e rodas de conversa sobre seus cotidianos e os temas sobre os quais gostariam de
dialogar.
Tínhamos, então, pelo menos dois propósitos principais. Primeiramente, compreender
como aquelas pessoas vinham construindo suas identidades, destacando suas redes de
pertencimento e sociabilidade no lugar e, além disso, suas tomadas de posição em relação à
escola. Em segundo lugar, era nosso objetivo também que as atividades compartilhadas na
escola se configurassem como dinâmicas reflexivas em que, ao visibilizarem e narrarem seus
cotidianos, os educandos pudessem (re)elaborar suas experiências desde as perguntas de quem
chega e, de certa forma, é “estrangeiro” naquele ambiente.
Nesse sentido, nos limites deste artigo, trago uma breve discussão sobre o caminho
percorrido, destacando, desde a experiência de uma das personagens de nosso trabalho,
questionamentos que nos tomaram como educadores e que são concernentes à relação que os
jovens estabelecem com a instituição escolar (e, mais especificamente, com a EJA) na
atualidade.
Na sequência assim, resumirei os referentes de nossa iniciativa para, em seguida,
apresentar o itinerário biográfico de Karol1, uma das jovens educandas que integraram as

1
O nome atribuído é fictício, com a finalidade de preservar a integridade da educanda.
atividades que promovemos. Integra-se a isto uma problematização do espaço de possíveis de
nossa interlocutora e, em articulação, reflexões sobre os sentidos atribuídos à escola.

1. Os referentes e o percurso
Procurávamos compreender que ‘identidades’ nos comunicavam os educandos,
tomando esta noção como inspiração para interpretar as formas como os sujeitos, entre práticas
e relações cotidianas, produzem e definem suas experiências na interação com o outro. E é bom
frisar, estou trabalhando, aqui, com a identidade produzida ao nível da individuação, conforme
problematizado por Alberto Melucci ao que denomina o “jogo do eu”. A metáfora do jogo está
a nos sinalizar para as mudanças e incertezas vivenciadas por indivíduos interpelados por
escolhas e renuncias, circunstanciados em uma sociedade de intensa circulação de informações
(MELUCCI, 2004).
A identidade é compreendida como um campo no qual o sujeito produz identificações
múltiplas, conforme vetores de reconhecimento e de diferenciação de si em que atuam e
contrastam auto e hetero-definições. Então, para as relações que experenciamos na atualidade,
Melucci (2004) destaca a propensão a uma produção individual e reflexiva das identidades,
ambientadas em contextos que, a uma só vez, são crescentemente urbanos e culturalizados,
tendem ao desencantamento em relação aos “mitos modernos” e dispõem as pessoas a uma
pluralidade de grupos de participação potencial. Nestes termos, o autor menciona que a
“identidade de um eu múltiplo torna-se identização” (p. 65).
Interessa apropriar, aqui, a interpretação de Melucci acerca da propensão reflexiva
atribuída à produção identitária individual. Não se trata de assumi-la a priori, ou mesmo de
reportar diretamente o cenário por ele esboçado às vivências dos sujeitos que viemos a conhecer
no bairro Restinga. Nossa atenção tem se voltado aos itinerários construídos pelos sujeitos e às
formas pelas quais integram disposições para a prática e elaborações reflexivas no trato da
incerteza e do múltiplo, ainda que estes se apresentem mais pela interposição da precariedade
de condições, pela instabilidade dos laços com institucionalidade e/ou na virtualidade das
possibilidades de escolha.
Trata-se de compreender estes sujeitos desde os espaços de ação que partilham e, nestas
arenas, desde as relações sociais que constroem. Assim, estivemos a saber dos cotidianos e de
algumas das táticas dos sujeitos (CERTEAU, 2011) para compreender a reflexividade operadas
por eles, na forma de um auto-confronto com as condições que os circundavam e, além disso,
ao modo de uma construção narrativa de si, ao explicar e justificar escolhas articulando
pertenças que orientavam seus enunciados.
Para tanto, nossas buscas em campo foram organizadas desde uma sequência de
encontros. Íamos quinzenalmente à escola, na Restinga Velha. De março a agosto de 2015,
consolidamos rodas de conversa com quatro educandos2 da Educação de Jovens e Adultos no
turno da noite, quando falamos sobre seus hábitos e rotinas, sobre a circulação no bairro e suas
redes de sociabilidade.
Inicialmente, usamos imagens fotográficas aportadas por nós ou trazidas de casa pelos
educandos, para evocar impressões e memórias. Depois, passamos a um mapeamento dos
espaços que frequentavam, buscando promover discussões sobre suas experiências no bairro e
fora dele. Tais conversas representaram uma introdução ao trabalho que proporíamos aos
educandos: a realização de ensaios fotográficos. Os educandos recebiam câmeras descartáveis
(27 poses) para registrar elementos do cotidiano que desejassem partilhar com os expectadores
de suas fotos em exposição que organizaríamos na sequência, em espaço público do centro da
cidade.
Foram dois ensaios seguidos de rodas de conversa sobre as preferências e renúncias dos
fotógrafos, quando nos apresentavam os percursos e as motivações para registro e, também,
nominavam suas produções. Na primeira edição, definimos tema livre e deixamos que cada
participante trouxesse suas ênfases. Na segunda, delimitamos coletivamente: pedimos que
sugerissem temáticas e afirmaram vários em tom reivindicativo – “educação”, “saúde”,
“cuidado com animais”, “natureza” –; então, sugerimos que estes fossem abarcados no assunto
“Restinga”, o que foi prontamente aceito.
A culminância do trabalho na produção de imagens foi a proposição de que os
educandos fizessem intervenções livres sobre algumas das fotografias feitas nos ensaios.
Orientamo-los a tomarem como inspiração as narrativas que produziram quando nos
apresentavam as fotos nas rodas de conversa ou, então, que projetassem ali seus desejos de
mudança. Foi este um caminho para ampliar as bases de narração, extrapolando o uso da palavra
para comunicar interpretações sobre as realidades que se indiciavam nas imagens.
A apropriação de imagens no processo se deu por pelo menos dois motivos.
Primeiramente, consideramos o apelo contemporâneo da produção de imagens nas elaborações
identitárias, tomando-o por sua contribuição para aproximação com os sujeitos e, também, para
ampliação das possibilidades de evocação de narrativas sobre seus percursos e seus cotidianos.
Em associação a isso, dados os usos culturais das imagens fotográficas, orientadas ao registro

2
Os educandos eram moradores do entorno da instituição: duas mulheres idosas com idade entre 55 e 60 anos,
ambas com extensa trajetória como empregadas domésticas; um jovem de 34 anos que, além de aluno, era monitor
na escola que acolheu nossas atividades; e Karol, a jovem cujo itinerário apresentarei neste texto.
do “digno” de ser visibilizado (MARTINS, 2009), aventamos a hipótese de que o comunicado
desde as fotos poderia ser não só contrastado com informações oriundas de outros motes de
interlocução, como traria um convite enfático para as pessoas se posicionarem reflexivamente
acerca dos cotidianos experenciados, ao escolher o que deixar “em registro” e expor.
As informações construídas nesses diálogos foram complementadas, ainda, por
entrevistas narrativas (JOVCHELOVITCH, 2002) feitas com cada um dos participantes, de
modo a oportunizar aos educandos também a elaboração de percursos biográficos. Efetuamos
também a observação de algumas práticas na escola, durante horários de intervalo de alunos e
de professores. Precisávamos saber mais das dinâmicas do espaço em que realizamos nossas
atividades e, desta forma, fizemos desses momentos uma alternativa para diálogos informais
sobre rotinas e desafios do trabalho naquele lugar. Por fim, realizamos uma entrevista com o
vice-diretor da escola, objetivando obter mais dados sobre a história daquela unidade e sobre
as condições de trabalho da modalidade EJA.
Desde o contraste dos itinerários narrados e destes com os fragmentos que nos chegaram
nas histórias e causos enunciados nas diversas rodas de conversa, procuro narrar, aqui, a
singularidade em um dos percursos biográficos. Antes, porém, passarei a uma contextualização
do lugar de nossas interlocuções.

2. O contexto de nossos encontros


Iniciemos por uma rápida descrição da localidade onde se situa a escola. A Restinga está
localizada no extremo sul do município de Porto Alegre, a aproximadamente 25 km de distância
do centro da cidade. Por conta de políticas tecnocráticas de higienização e de valorização de
áreas urbanas centrais implementadas nos anos 1960, foram removidos para lá contingentes que
residiam nas chamadas vilas de “malocas”, resultantes sobretudo do processo de êxodo rural
iniciado a partir dos anos 1940 (AIGNER, 2012).
Difícil precisar o tamanho atual da população dessa região. Os dados oficiais indicam
que há cerca de 60 mil habitantes (OBSERVAPOA, 2010), mas não estariam computados aí os
residentes em áreas irregulares. Entidades que atuam na localidade costumam trabalhar com
uma estimativa de mais de 150 mil habitantes, o que faria deste o bairro mais populoso de Porto
Alegre. Em que pese as conquistas dos moradores e a notória organização cultural e política
naquela localidade, o bairro ainda carece de melhores serviços públicos e a população ainda
está entre as mais empobrecidas da cidade.
A escola a qual nos referimos está localizada na Restinga Velha. Foi fundada no final
dos anos 1980, sendo que a EJA foi criada por volta de 2000. Os estudantes que a frequentam
são moradores do bairro, oriundos dos arredores da unidade escolar. Atualmente, esta recebe
924 alunos matriculados e conta com um quadro de aproximadamente 80 professores para os
três turnos (manhã, tarde e noite), sendo que este tem se reconfigurado repetidamente, em
função da rotatividade dos docentes, desejosos de um local de trabalho menos suscetíveis a
situações de precariedade e violência3.
A EJA, no período da noite, teve em torno de 150 estudantes matriculados no início do
ano, mas não chegava ao número de 40 os alunos com frequência regular em agosto. Segundo
comentava o vice-diretor, a evasão tem sido bastante elevada no correr dos últimos seis anos e,
em muitos casos, associa-se à necessidade de priorizar as possibilidades de trabalho. Neste
sentido, a relação entre instituição escolar e alunos, aqui, remete-nos à caracterização feita por
Zago (2012) acerca da escolarização nos meios populares, em geral, tensionada pela demanda
precoce por investimento em ocupações remuneradas e, além disso, perpassada por uma
expectativa de que a escola amplie ou qualifique as condições laborais.
Ademais, nos últimos 10 anos, a Educação de Jovens e Adultos dessa escola vem
passando por mudanças no perfil dos estudantes num processo de “juvenilização”, articulando-
se a um processo iniciado já nos anos 1990 no Brasil. Neste cenário, a redução da idade mínima
para conclusão dos ensinos fundamental e médio (18 para 15 anos e 21 para 18 anos,
respectivamente) ambientou um processo de migração interna de jovens que, por um lado,
associa-se as buscas da instituição por regularizar o fluxo escolar dos estudantes ou por
reencaminhar alunos considerados “indisciplinados” e, de outro lado, integra-se à demanda dos
educandos por aceleração da carreira escolar, motivados pelas situações de “fracasso” na escola
regular, pelo constrangimento de estar entre estudantes menores e pelas urgências cotidianas a
que a escolarização não consegue responder (ANDRADE, 2008; SILVA, 2010).
Tal condição tem repercussões no cotidiano institucional. Não raro, os professores e os
alunos adultos da escola onde atuamos manifestavam descontentamento com os
comportamentos dos jovens, denominando-os como “bagunceiros” e “desinteressados”. De
outra parte, as juventudes pareciam requerer espaços para suas formas de sociabilidade e
expressão cultural. Nas ocasiões em que aguardava pelos educandos no pátio, observava as
movimentações do intervalo e a presença massiva de jovens. Ficavam pelo pátio conversando
e comentando o que viam nos celulares. Quando tocava o sinal para que retornassem às salas

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Nas conversas com os educandos, expressava-se o receio pela circulação nas ruas do bairro, em função das
disputas entre os grupos de traficantes e a interdição implícita a registros visuais nas proximidades dos locais onde
estes atuavam.
de aulas, ninguém se movia e era preciso que o vice-diretor se posicionasse a exigir o retorno.
Segundo me contou, esta situação teria se tornado rotina.
Tal situação se aproximava do relatado por Schneider (2013) acerca das dinâmicas de
inclusão/exclusão na EJA. Afirmava ela que as posições relacionais ocupadas por alunos
adultos e jovens na escola associam-se a um modelo cuja ênfase está em reconhecer aquele que
“quer estudar”, articulando apelos por obediência e críticas à indisciplina. Os jovens seriam
associados normalmente a esta, ao passo que os mais velhos teriam assento entre os que desejam
o estudo. “Lugar” e “não-lugar” na escola se estabelecem de maneira relativa, contudo, e um
bom resultado obtido por jovens em uma atividade avaliativa poderia colocar em tensionamento
a hierarquia de reconhecimento. Assim, um cenário de conflitos que vale problematizar não
pela assumpção dos propósitos institucionais, mas pela compreensão do arbitrário e
contingencial de um modelo e da pertinência das buscas operadas pelos sujeitos nos espaços
educacionais.
Nesse sentido, antes de julgar a postura dos jovens alunos, vale identificar que
experiências e que sentidos estão em jogo e podem provocar nossa compreensão.

3. Desde um itinerário, o espaço de possíveis


A composição do grupo de participantes em nosso projeto oscilou bastante durante
nossa imersão. Houve quem iniciasse nas primeiras conversas que desenvolvemos e não
continuou; outros ingressaram no decorrer, mas também não permaneceram. Notamos que o
envolvimento dos estudantes se coadunava à relação estabelecida com a escola. Em meio às
adversidades de seu contexto, deixavam de frequentar a instituição ou ingressavam em
diferentes momentos do período letivo; nosso projeto navegou conforme as oscilações da
frequência escolar.
Contudo, quatro educandos permaneceram a maior parte do tempo, ainda que com
algumas ausências eventuais. Dentre estes, tomarei o caso de um dos jovens com quem
interagimos para narrar seu itinerário biográfico, analisando o cenário de suas práticas, que
nomino por hora “espaço de possíveis”.

3.1 Karol e as perguntas em aberto


Como muitos de seus colegas, Karol morava nas cercanias da escola onde nos
encontrávamos. Residia com tios e um primo, na casa da avó. Frequentava a residência também
seu irmão mais velho, que vivia não muito longe dali. Ingressara na EJA em março de 2015,
aos 19 anos de idade, depois de diversas tentativas sem êxito no ensino fundamental regular.
É possível afirmar que o itinerário biográfico narrado por ela, de forma geral, expunha
um acesso precário a recursos sociais, incluindo-se aí a existência de um arranjo familiar com
acesso vulnerabilizado à renda, moradia e escolarização e o trânsito deste por diferentes espaços
na busca por trabalho, remuneração, ou mesmo de vivências menos conflitivas. Na ocasião da
entrevista, contou-nos que até os cinco ou seis anos teria vivido na Restinga Velha. A primeira
alteração de residência veio por conta de conflitos de seu pai no bairro. Passaram a residir em
Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre, onde foram acolhidos por uma tia. Ficaram
lá por pouco mais de um ano e retornaram à capital, segundo alegou, por conta de novos
conflitos de seu pai.
Passaram a morar no bairro Lomba do Pinheiro, zona leste da capital, também em uma
localidade de periferia. Viviam em terreno de sua avó, cujo uso era compartilhado com outros
parentes, em diferentes casas. Karol voltou a morar na Restinga por um período de
aproximadamente um ano por conta de uma separação temporária dos pais, acompanhando sua
mãe. Depois, retornou com ela à Lomba.
Recentemente, em decorrência de seu ingresso na EJA, a jovem passou a residir na casa
onde a entrevistei. Mas, mesmo antes disso, disse que costumava frequentar bastante o
domicílio de sua avó, de forma que seu itinerário demonstrava reiteradamente que crescera sob
os cuidados de um arranjo familiar extenso, lembrando as dinâmicas familiares e redes de
reciprocidade que Fonseca (2004) refere em relação aos grupos populares.

É que eu, tipo, ficava com o coração na mão. Tipo, gostava de ficar aqui, mas também
queria ficar perto dos meus pais. (Julho/2015)

O cotidiano de Karol estava organizado sobremaneira pelo arranjo familiar. Estudava à


noite e, pela manhã, ela se ocupava de levar e buscar seu primo de sete anos à escola. À tarde,
ajudava a tia e a avó na preparação de alimentos que vendiam. Sua rotina tendia a práticas
usuais entre mulheres, na ocupação com tarefas domésticas e do cuidado, como extensamente
argumenta a literatura da área, contribuindo para formar disposições culturalmente imputadas
ao feminino4 (BRUSCHINI, 2007).
Além de configurar o espaço de atuação predominante de minha interlocutora, a
condição de gênero ambientava a vivência de relativa moratória social (ANDRADE, 2014),

4
Aliás, a manutenção de um quadro de imputação de tarefas iniciado precocemente na socialização compunha
também as trajetórias das demais participantes mulheres do projeto, ambas com mais de 50 anos de idade. Não é
o intuito, aqui, discutir as questões de gênero e as possíveis nuances entre os grupos etários representados. Apenas
desejo realçar a recorrência histórica de uma caracterização socialmente produzida.
dado que permanecia sob proteção de familiares e, a rigor, não tinha precisado enfrentar
individualmente as exigências do mundo do trabalho e/ou da subsistência em incursões externas
ao âmbito doméstico. Vale considerar, ademais, que ela integra a realidade vivenciada pelos
jovens nos últimos anos no país, de redução do envolvimento precoce com trabalho e de
ampliação do tempo dedicado à escolarização (IBASE, 2010).
Karol começou os estudos quando criança, na Lomba do Pinheiro. De maneira explícita,
afirmou que não gostava de ir até a escola. Em sua narrativa, articulava a isso algumas táticas
para evitar a frequência à instituição. As mudanças de residência teriam contribuído para
fragmentar sua escolarização, mas mencionou também que se ausentava muito e isso a teria
feito acumular reprovações, em uma carreira escolar atravessada por intermitência e hesitação.

Eu ficava no colégio, mas não gostava de ir pro colégio. Eu não prestava atenção. Daí
eu ia rodando, rodando e foi indo. Como eu não gostava, eu pegava o ônibus, fazia
uma volta e voltava pra casa e dizia que não tinha aula.
É que agora [na EJA] tem gente na mesma situação que eu. Tipo, parou de estudar,
são já grandes. No colégio, de tarde ou de manhã, tem aquelas coisas das crianças: ah,
já é grande e está nessa série. Tem essa gozação, né.

Na atual escola e na modalidade da EJA, disse se sentir mais à vontade. Todavia, essa
educanda se mostrava uma pessoa bastante tímida durante nossas dinâmicas coletivas e eram
poucas as suas palavras ao longo das conversações. Por algumas semanas, assumiu a função de
monitora na escola no turno da manhã. Porém, deixou a ocupação alegando receio em relação
à agressividade das mães dos alunos que, por ventura, fossem repreendidos. Expressou, certa
feita, uma intenção vacilante de enviar seu currículo a uma loja, mas frisou que não gostaria de
atuar como atendente; preferiria envolver-se com a organização do estoque.
Comentou ser uma pessoa “caseira” e suas atividades, para além da movimentação para
a escola, resumir-se-iam a sair com familiares, indo a festas em que houvesse música sertaneja.
No mais, afirmou fazer uso intenso do celular e da internet, acessando Facebook e Whatsapp
sobretudo. Neste último aspecto, Karol se aproximava das práticas de seus colegas jovens,
conforme observava na escola. Indiciava-se discretamente, também, uma integração à condição
juvenil contemporânea, caracterizada, dentre outros aspectos, pela valoração da sociabilidade e
da fruição artística e musical (CARRANO, 2007).
É, mais o WhatsApp, quando alguém me chama, daí eu respondo. [...] Geralmente
coisas longe, tipo, que tu não sabe. Tipo, tem uma prima tua que tu não vê; daí ela
posta coisas e tu vê como está indo a vida dela, assim [...]
Praticamente eu passo o dia inteiro com os fones de ouvido escutando música. [...].
Às vezes eu já começo de manhã e vou até de tarde, na hora de ir pro colégio. O dia
todo escutando música. A minha vó fica, tipo, mexendo comigo, porque eles falam
comigo e eu não respondo, porque estou ali escutando música.

Apesar da discrição e da timidez, Karol se mostrava uma pessoa vaidosa e fazia questão
de cuidar sua aparência e suas vestimentas antes de sair para as aulas. Sua atenção diária aos
livros, à música, ao celular e à internet, com destaque ao acesso a redes sociais, indiciavam
interesses e um tipo de reflexividade, na mimese mediada pelos artefatos culturais que acessava
e compartilhava em interações virtuais.
O ensaio fotográfico que produziu parece ter sido tributário do que relatei acima. As
fotos foram realizadas na casa onde morava e figuravam principalmente: seus parentes e seus
animais de estimação; os livros que costumava ler, incluindo-se aí exemplares de livros de
Fernando Pessoa e da saga Crepúsculo; e seu celular. Provocada pela oportunidade do registro
imagético, sua fala discreta evocou temas afetivos, destacando aquilo com que se ocupava em
seus dias. Observada como “aluna”, entretanto, parecia predominar o silêncio e as reticências.
Ficavam as perguntas pelo lugar da escola entre os ‘possíveis’ que sua experiência esboça.

4. O silêncio de Karol ou... reflexões sobre os sentidos da escola


A presença de Karol era discreta e ela se dispunha a falar apenas quando solicitada, mas
não poderia perder de vista que, por algum motivo, ela manteve sua frequência, levando até nós
insistentemente o seu silêncio. E, é preciso reconhecer, há o risco de impormos interpretações
quando o outro cala e nos deixa à deriva nas inquietações. Ainda assim, tentarei esboçar, aqui,
a compreensão dos sinais que, segundo entendo, não estavam nas palavras, mas nos gestos e
nas escolhas. Penso que os sentidos da escolarização precisam ser buscados nas experiências
construídas pelos educandos. Embora não configure argumento inovador, parece-nos que
provocações concernentes merecem destaque ainda, especialmente no contexto de
juvenilização retratado antes.
Em meios populares, as motivações verbalizadas para ingressar na EJA têm se associado
a expectativas um tanto práticas, como a de que esta amplie alternativas no mundo do trabalho,
ou que possibilite melhores condições de trânsito pela cidade, mediante domínio de códigos de
leitura/escrita (ANDRADE, 2008; SANTOS, 2003). E podia observar que Karol verbalizava
preocupações em relação aos estudos aludindo suas possibilidades no mundo do trabalho.
Depois de uma trajetória escolar fragmentada por mudanças de residência e por frequência
insuficiente, sem ter concluído o ensino fundamental, a transferência para a EJA pareceu
resultar numa espécie de “segunda chance”, sem os constrangimentos de frequentar o ensino
entre alunos menores.
Se os educandos de sua faixa etária tinham a escola também como espaço de
sociabilidade, Karol tendia a priorizar a rede relacional vinculada a sua família. Se os demais
alunos jovens eram criticados por adultos e professores pela indisciplina, pela infrequência e/ou
pela instrumentalização do vínculo5, ela mantinha frequência com o espaço escolar, dizia sentir-
se à vontade na EJA e frequentava as aulas, em geral, de forma reservada. Porém, embora seja
um comportamento menos desestabilizador da rotina escolar, considero que entre os “ruídos”
daqueles e as reticências desta há relações a serem estabelecidas.
Se os jovens que chegam à escola na atualidade têm na sociabilidade, na fruição artística
e simbólica e na produção-partilha horizontalizada de saberes as ambiências preferenciais de
suas existências e o campo privilegiado para vazão de suas reflexividades; se seus processos de
socialização conquistam relativa autonomia em relação às instituições, com destaque aos
grupos de pares, e a reversibilidade passa a compor seus itinerários desde, entre outros aspectos,
os apelos da circulação intensificada de informações e as instabilidades do mercado de trabalho
(DAYRELL, 2014), é necessário reconhecer que a relação com a escola e com o que pretendem
os professores precisa de problematização.
Dentre as preocupações mais recorrentes entre os jovens na atualidade estariam a
violência (46%), a qualidade da educação (37%) e dificuldades relativas ao emprego (37%)
(IBASE/POLIS, 2010). Poderíamos considerar, a partir daí, que as juventudes atribuem lugar
relevante à escola em suas projeções. Então, a questão relativa ao suposto “desinteresse” dos
alunos (muitas vezes formulada pelos professores), poderia ser provocar a uma interpretação
diferenciada, orientando-nos a perguntas pela forma preferencial de relação com o saber e com
o Outro, a exemplo do que sugere a etimologia da palavra “interesse” (“estar entre”), como
costuma salientar em suas palestras o professor Paulo Carrano. Acredito que, é a necessidade
de protagonismo e/ou implicação com as experiências pessoais que pede lugar quando aqueles
que chegam, e denominamos “alunos”, estão imersos em dinâmicas potencializadoras de
reflexividade.

5
Os professores citavam que haveria alunos interessados em realizar matrícula em função das oportunidades de
trabalho que a exigiam como requisito. Nestas condições, a frequência às aulas era reduzida.
A diversificação (ainda que virtual) dos espaços/grupos de circulação e a
dessincronização dos ritos de passagem dispõem, de outra parte, tensionamentos à elaboração
de projetos de vida (CAMARANO, 2006; DAYRELL, 2014). Como ancorar escolhas quando
as opções não cessam de surgir ou a instabilidade e a incerteza se avizinham? Como fazê-lo se
as referências do mundo adulto parecem frágeis e a juventude parece tomar o horizonte da
idealização na sociedade? Inquietar ou silenciar-se podem ser ambas reverberações do auto-
confronto e do receio dos jovens, ao serem pressionados a caminhar quando o terreno parece
movediço e os anseios e/ou as necessidades exigem voos expeditos. Aí, precisamos ter em
mente as evocações relacionadas à escolarização e à forma de temporalidade de interpõe,
vinculada ao futuro, à transição e ao projeto.
Então, voltando aos diálogos com Karol, suas práticas cotidianas navegavam entre o
instigado pelo desejo, nas sociabilidades e na fruição, e as buscas por segurança,
circunstanciadas no contexto de vulnerabilidade em que vivia e nos apelos sociais por definição
de um projeto. Sua participação em nossa iniciativa indiciava preocupação em concluir a
escolarização, mas as atividades propostas aí pareciam carecer de sentido que não fosse o de
atender uma exigência em muito relacionada ao mundo do trabalho e à subsistência (familiar e
juvenil). O contexto familiar a amparava neste sentido, mas isso não tornava menos incerta a
aposta na carreira escolar e menos difusos os possíveis efeitos da escolarização em seu contexto
de precarização. Pelo contrário, avançar nos estudos não poderia representar um distanciamento
das relações familiares (e da ambiência sócio cultural que a acolhia), na forma como
problematiza Charlot (2002)?
A ausência de sentido parece ser agravada no contexto de vivência de sua situação
juvenil. Se para as pessoas adultas e idosas com quem dialogamos, as “idas e vindas” no
percurso de escolarização eram mencionadas com pesar, assinalando a inculcação do fracasso
inclusive, Karol demonstrava preocupação em cumprir o exigido simplesmente, e seguir com o
que lhe era significativo. Neste sentido, percebia sinais de descentramento da instituição escolar
e as reticências pareciam questões pelo que poderia estar lá.
A escola poderia ser a alternativa para produção de projetos biográficos e para a
experiência de laços de sociabilidade e solidariedade, e não a expressão do arbitrário discursivo
em terreno vulnerabilizado e onde o futuro tem a forma de instabilidade. De uma parte, é
necessário reconhecer que a instituição pouco pode fazer pela educação em terreno em que os
demais direitos são violados sistematicamente; de outra, é preciso observar que a escola, em
que pese a continuidade de sua relevância social, tende a ser mais uma alternativa em itinerários
cujas instâncias de socialização se diversificam.
Há que se seguir em buscas e as palavras de Paulo Carrano podem ser provocadoras:

Talvez seja possível pensar as possíveis reorganizações curriculares não apenas como
estratégias funcionais para favorecer o ensino-aprendizagem, mas como políticas
educativas e culturais que permitam reorganizar espaços e tempos de
compartilhamento de saberes, ampliar a experiência social pública e o direito de todos
às riquezas materiais e espirituais das cidades. Por que não pensar o currículo como
tabuleiro de xadrez, onde algumas peças se movem com alguma previsibilidade e
linearidade e outras peças, como cavalos, reis e rainhas, fazem movimentos
surpreendentes. [...] desafio cotidiano de organização de currículos flexíveis capazes
de comunicar aos sujeitos concretos da EJA, sem que com isso se abdique da busca
de inventariar permanentemente a unidade mínima de saberes em comum que as
escolas devem socializar. (2007, p. 10)

Referências

AIGNER, Carlos. O contexto escolar dialogando com microterritorialidades urbanas:


possibilidades includentes. Terr@Plural, v. 06, n. 02, jul-dez/2012, p. 353-365.

ANDRADE, Sandra. Juventudes e processos de escolarização: uma abordagem cultural


(tese). Porto Alegre: UFRGS, 2008.

. Juventudes, moratória social e gênero: flutuações identárias e(m) histórias


narradas. Educar em Revista, edição especial, 2014, p. 85-99,

BRUSCHINI, Maria. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Cadernos de
Pesquisa, 37(2), p. 537-572, 2007.

CAMARANO, Ana. Transição para a vida adulta ou vida adulta em transição? Rio de
Janeiro: Ipea, 2006.

CARRANO, Paulo. Educação de jovens e adultos e juventude: o desafio de compreender os


sentidos da presença dos jovens na escola da “segunda chance”. Revista Reveja, 2007.

CHARLOT, Bernard. A relação com a escola e o saber nos bairros populares. Perspectiva, v.
20, n especial, jul-dez/2002, p. 17-34.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano – 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2011.
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