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Terratenentes-Mercadores:
tráfico e sociedade em Cabo Verde, 1460 - 1613
2011
ii
Dissertação de Mestrado
Terratenentes-Mercadores:
tráfico e sociedade em Cabo Verde, 1460 - 1613
Rio de Janeiro
Junho de 2011
iii
Terratenentes-Mercadores:
tráfico e sociedade em Cabo Verde, 1460 - 1613
Banca examinadora
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Rio de Janeiro
Junho de 2011
iv
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo apresentar as condições em que se deu o tráfico de
escravos na região da Senegâmbia, ou Alta Guiné, na África Ocidental (compreendida
entre o rio Senegal e a Serra Leoa) a partir do estabelecimento português no arquipélago
de Cabo Verde, onde, em consequência deste comércio, se formou uma sociedade nos
moldes coloniais, nos séculos XV e XVI. Nossa hipótese é de que, em Cabo Verde, a
colonização se deu em função do tráfico de escravos, ou resgate de cativos, como
aparece nas fontes coevas. Portanto, o tráfico de escravos constituía a principal
finalidade da colonização das ilhas neste período, na medida em que a própria produção
econômica das ilhas era voltada para atender as necessidades comerciais do mercado
fornecedor de escravos da Senegâmbia. Ao mesmo tempo, as ilhas serviam de
entreposto de escravos para a exportação para as outras ilhas atlânticas e para a
América. Por supormos que a importância de Cabo Verde, neste negócio escravista
tenha sido maior durante o século XVI, delimitamos o recorte temporal da pesquisa
desde a descoberta do arquipélago até o início do XVII. Neste sentido, estudamos a
constituição de uma elite de terratenentes-mercadores, responsáveis, ao mesmo tempo,
pela produção dos artigos que funcionariam como moeda de troca na costa africana e
pela armação dos navios mercantis para aquelas paragens. O foco da análise incide na
trajetória do mulato natural de Cabo Verde, o Cavaleiro de Cristo de nome André
Álvares de Almada, compreendida como uma plataforma para examinar o
funcionamento da sociedade das ilhas e as conexões de sua elite no mundo Atlântico em
formação.
Rio de Janeiro
Junho de 2011
vi
ABSTRACT
This research aims to present the conditions in which it has been developed the slave
trade in the region of Senegambia, Upper Guinea and in West Africa (between the
Senegal river and Sierra Leone) from the Portuguese settlement in the Cape Verde
archipelago, where, as a result of this trade, has appeared a colonial society in XVth and
XVIth Centuries. Our hypothesis is that in Cape Verde, the colonization was a result
either to the slave trade or to the rescue of captives, as the historical sources indicates.
Therefore, the slave trade was the main purpose of the colonization of these islands
during this period, hence all the economic production of the islands was directed to
attend the commercial necessities of the market which traded slaves from Senegambia.
At the same time, the islands served as a warehouse for slaves for exportation to other
Atlantic islands and to America. Due to the supposition that the importance of Cape
Verde in slavery business has reached its apex during the XVIth Century, we have
delimited the period of this research from the discovery of the archipelago until the
early XVIIth Century. As a consequence, we study the formation of an elite of
landowners and merchants, responsible either for the production of articles that served
as a bargaining coin on the African coast, and for the building of merchant ships to
those regions. Our analysis focuses the trajectory of a mulatto born in Cape Verde, a
Knight of Christ named André Alvares de Almada, understood as a platform to examine
the functioning of society of the islands and the connections of his elite in the formation
of the Atlantic world.
Rio de Janeiro
Junho de 2011
vii
AGRADECIMENTOS
Olhando hoje para o passado, acredito que a história desta pesquisa tenha
começado há muitos anos nas muralhas de Óbidos quando, ainda um menino, escutei da
boca de meu pai, com atenção e encantamento, o relato dos feitos do Rei Alfonso
Henriques na conquista daquela cidade. De lá para cá, meu fascínio pela Expansão
portuguesa tem me levado pelos mais variados caminhos, pelos quais encontrei muitos
novos temas para estudar e pessoas para me aconselhar, ajudar e trocar histórias
comigo.
É chegada, então, a hora de agradecer.
Em primeiro lugar agradeço à minha mãe, Carlota, e ao meu pai, Milton, por
sempre terem estado ao meu lado me apoiando e me guiando quando necessário em
minha trajetória até aqui.
A Naiara, minha companheira nesta jornada, que além de ser um exemplo de
dedicação e afinco em relação ao seu próprio trabalho, tem sido o meu porto seguro e
acalanto nos últimos tempos. Minha chance para amar.
Agradeço também aos meus familiares queridos, núcleo referencial que me
preserva no mundo: meus avós, Milton, Beatriz e Aparecida; meus tios, Paulinho,
Cecília, Antônio, Luciano e Fernando; meus primos, Caio, Pedro, Marcinha e sua linda
filha Carol, além do peralta Pedro Luciano. A Marina, grande amiga eleitora. Ao João
Calafate, meu tio consorte, grande amigo e um apaixonado por Cabo Verde. João foi
desde o início um entusiasta deste projeto e uma boa fonte de informações sobre a
cultura cabo-verdiana. À Conceição, que tem me educado e alimentado todos esses
anos.
Aos meus caros amigos, família que a fortuna me trouxe, Sereno, Flávio,
Bernardo, Emiliano e Léo sem os quais a vida não teria a menor graça, sobre tudo as
tardes de domingo. Aos meus confrades de Santa Teresa, Tonho, Fábio, Felipe e Kaled
um abraço caloroso e a certeza de que a vida é muito mais suave com boa companhia e
alegrias baratas. Meus cumprimentos ao meu amigo Tchalin, incomparável capoeirista e
único camarada cabo-verdiano que tenho; e aos demais camaradas capoeiristas do grupo
Aluandê, principalmente ao Contramestre Célio, pelas incontáveis rodas, papo e arte
que tornaram os últimos anos tão agradáveis.
ix
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................................... 1
Capítulo III – O circuito atlântico de escravos nos séculos XVI e XVII ................ 63
1. A escravidão e o tráfico de cativos na África Ocidental ................................... 64
2. Cabo Verde e o tráfico atlântico ........................................................................ 69
a) A oferta de escravos africanos ..................................................................... 72
b) A procura americana .................................................................................... 76
3. Montagem da economia escravista no Novo Mundo ........................................ 83
4. Considerações finais .......................................................................................... 89
Conclusão ..................................................................................................................... 90
1
COSTA E SILVA, Alberto. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2002. Ver também, do mesmo autor, A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
2
social dos negros e mulatos no Brasil, a partir de novas leituras de nossa história
colonial revendo e rediscutindo conceitos propostos pelo luso-tropicalismo de Gilberto
Freyre, e de sua apropriação pelo salazarismo, a partir de novos paradigmas e
abordagens que demonstram os conflitos, negociações, acertos e, muitas vezes, a
violência das relações entre senhores e escravos.
Ao mesmo tempo em que vemos crescer o interesse por pesquisas referentes à
constituição do tecido social do Brasil Colônia e das relações entre os diversos fios
deste tecido, passamos a compreender a América portuguesa não mais apenas como
uma colônia dependente da metrópole, ou numa relação exclusiva com a mesma.
2
Trabalhos seminais de João Fragoso como o Antigo Regime nos Trópicos e Nas
3
rotas do Império contribuíram para a percepção da história nacional conectada às
diversas partes do Império marítimo português – para usar a expressão cunhada por
Boxer. Estes trabalhos aproximaram muito a produção historiográfica nacional de novos
interlocutores do outro lado do Atlântico incentivando a cooperação entre historiadores
brasileiros e portugueses para o entendimento mais abrangente possível deste mundo
português do qual o Brasil fazia parte.
A América portuguesa é hoje compreendida como parte de um conjunto
heterogêneo de possessões ultramarinas, que tinham sua relação com a metrópole
extremamente influenciadas pelas conjunturas específicas e processos históricos de cada
ocupação. Assim, a noção rígida de uma metrópole centralizadora e uma colônia
obediente dá lugar à percepção das diversas relações de poder entre o centro e a
periferia, na figura de suas elites locais, de acordo com o caráter corporativo de uma
sociedade de Antigo Regime. Para tal, a concepção de monarquia pluricontinental
portuguesa, de Nuno Gonçalo Monteiro,4 se apresenta como fundamental.
Neste sentido, para perceber os elementos que influenciaram na formação da
sociedade escravista colonial em Cabo Verde, pretendi estudar e apresentar nesta
dissertação de mestrado como se organizava política e economicamente o continente
africano próximo ao arquipélago durante o início de sua colonização entre fins do
século XV, ao longo do século XVI e princípios do século XVII. Os esforços para a
compreensão e apresentação de respostas a este problemas estão expostos no primeiro
2
FRAGOSO, BICALHO & GOUVEIA. Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
3
FRAGOSO, João... [et al.], organizadores. Nas Rotas do Império: eixos mercantis e relações sociais
no mundo português. Vitória: Edufes; Lisboa: IICT, 2006.
4
MONTEIRO, CARDIM & SOARES (Coord.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo
Regime. Lisboa: ICS, 2005.
3
5
Sobre isto, ver: SENNA BARCELOS, Christiano José. Subsídios para a História de Cabo Verde e
Guiné. Tipografia da Academia Real de Sciencias de Lisboa, 1899; e BRÁSIO, A. Monumenta
Missionária Africana, 1ª e 2ª Séries. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, publicada entre 1952 e 1968.
6
O lugar social de uma pessoa na sociedade de Antigo Regime era profundamente marcado pela sua
origem familiar. Para se tornar cavaleiro, uma pessoa deveria comprovar sua pureza de sangue, o que
significava atestar não possuir origem judia, negra ou indígena. Porém, o Rei poderia perdoar estes
4
Consciência e Ordem de Sua Majestade. Este precioso documento pôde nos servir para
exemplificar, no capítulo II, como a Coroa precisava relaxar seus estritos padrões sobre
a origem e o reconhecimento dos seus mais valorosos e leis súditos em terras tropicais,
principalmente em África.
Deste modo, com base na trajetória de Almada, foi possível corroborar a tese de
Iva Cabral de que, em Cabo Verde, muitos filhos de fidalgos da Casa Real eram mulatos
e constituíram, a partir de meados do XVI, a elite principal da terra, e foram
reconhecidos pela coroa como tal. 7
Documentos que testemunham a organização demográfica e política das ilhas
bem como a apresentação de suas elites locais através do período estudado também se
encontram na coletânea do Padre Brásio. Neste sentido, a Monumenta Missionaria
Africana constitui o maior fundo documental que sustenta esta dissertação.
No entanto, também encontramos documentação preciosa, muitas vezes para
efeito de comparação nos dois volumes do Corpo Documental da História Geral de
Cabo Verde,8 publicados na década de 1990. Aliás, a própria coleção HGCV,
coordenada por Luís de Albuquerque e Maria Emília Madeira Santos constitui uma das
principais fontes bibliográficas para a realização deste trabalho, tendo em vista a
qualidade da obra e a grande falta de estudos relativos ao arquipélago de Cabo Verde
existentes no Brasil.
O terceiro capítulo da dissertação trata das questões relativas ao tráfico de
escravos e ao estabelecimento de um circuito comercial atlântico de cativos,
comparando os números globais do tráfico no período estudado ao volume de cativos
exportado a partir de Cabo Verde. O objetivo central do capítulo é demonstrar o
crescimento e a importância do arquipélago como entreposto de escravos, assim como
relacionar a sua decadência com a perda de importância no mesmo circuito.
Para tal, foram fundamentais as informações reunidas no banco de dados The
Trans-Atlantic Slave Trade Database,9 de Eltis, Florentino e Richarson. Este banco de
defeitos se julgasse necessário. Sobre isto, ver o dossiê Pureza, raça e hierarquias no Império colonial
português, revista Tempo, volume 15, nº 30, Janeiro-Junho de 2011.
7
CABRAL, Iva. “Elites atlânticas: Ribeira Grande do Cabo Verde (séculos XVI-XVIII)”. In: Actas do
Congresso Internacional ―Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades‖. Lisboa, 2 a 5
de Novembro de 2005.
8
ALBUQUERQUE & MADEIRA SANTOS (Coordenadores). História Geral de Cabo Verde. Volume
I. 2ª edição. Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 2001. Ver também, MADEIRA SANTOS (Coord.). História
Geral de Cabo Verde. Volume II. Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 1995.
9
ELTIS, D.; RICHARDSON, D.; BERHENS, S.; & FLORENTINO, M. The Trans-Atlantic Slave
Trade Database. (www.slavevoyages.com).
5
dados apresenta subsídios para o estudo de cada viagem negreira catalogada para a
América desde 1514 até meados do XIX, além de prover as estimativas mais
verossímeis acerca do volume global do tráfico e de sua progressão cronológica. 10
Com base nestas informações procurei analisar o número de viagens negreiras de
acordo com os locais de procedência e comparar com os resultados para os locais de
destino para saber de onde vinham e para onde iam os escravos africanos ao longo dos
séculos XVI e XVII. O recorte temporal deste trabalho obedece, portanto, os limites
cronológicos entre a descoberta e início da colonização de Cabo Verde e a grande crise
provocada pela sua perda de importância no tráfico atlântico de cativos. A consequência
da decadência de Cabo Verde como protagonista do tráfico transatlântico foi o
abandono do arquipélago pela elite branca de origem reinol, em inícios do século XVII.
Este processo é abordado principalmente nos capítulos um e dois, mas as explicações
para tal fenômeno aparecem claramente nos números apresentados no terceiro capítulo e
na apresentação do volume do comércio cabo-verdiano de acordo com cada período de
sua história.
10
Manolo Florentino utiliza as mesmas fontes para traçar um panorama do tráfico atlântico entre o XVI e
o fim do XVIII. Seu trabalho me foi apresentado pelo próprio após a sua participação em minha banca de
qualificação de mestrado e foi de grande ajuda para a confecção do terceiro capítulo. FLORENTINO,
Manolo. “Aspectos do tráfico negreiro na África ocidental (1500-1800)”. In: GOUVÊA, Fátima &
FRAGOSO, João. O Brasil Colonial, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, no prelo.
6
Capítulo I
O segundo tópico traz uma descrição dos povos da Costa e do contexto sócio-
político da Senegâmbia, ao passo que evidencia as formas de interação entre os
portugueses e cada uma das diferentes sociedades locais. Esta parte do texto se apoia
principalmente no relato do viajante cabo-verdiano André Alvares de Almada, que
escreveu o Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde, em 1594. Mas também
contribuíram para a formação de uma ideia do que era a região os relatos de viajantes
como: o veneziano Alvise de Cadamosto, que explorou os rios da Guiné – Senegal e
Gâmbia, principalmente – em meados do século XV, e a quem alguns autores atribuem
a descoberta do arquipélago de Cabo Verde; do diplomata magrebino Hassan al-
Wazzan, também conhecido pelo nome latino de Johanes Leo Aficanus, ou Leon, o
africano, que viajou através do Saara na primeira metade do século XVI; e alguns outros
relatos como o do inglês Richard Jobson, 1623, o do francês Alexis de Saint-Lo, 1637,
além do relato da viagem do florentino Francesco Carletti, entre 1594 e 1606. 11
Finalmente, a terceira e última seção deste capitulo se dedica a explorar e as
relações comerciais na região da Senegâmbia, com destaque para o tráfico de escravos,
mesmo anterior à chegada dos portugueses. Aqui, os esforços se concentram
principalmente em analisar o papel relevante dos homens de Cabo Verde tanto no
comércio norte-sul entre os reinos da região com no trato com a Europa e assim
encaminhar a discussão que será realizada no próximo capítulo, sobre a sociedade cabo-
verdiana.
11
Infelizmente não pude comparar os relatos de cada um destes viajantes nesta dissertação. Porém,
pretendo fazer isto futuramente numa pesquisa de doutorado.
12
GODINHO, Vitorino Magalhães. O ―Mediterrâneo‖ saariano e as caravanas do ouro: geografia
econômica do Saara Ocidental e Central do IX ao XVI século. São Paulo: Coleção da Revista de
história, 1956.
8
certamente o importante papel desempenhado pela cidade de Ceuta como porto e praça
de comércio para ouro e os escravos que as caravanas traziam desde a cidade de
Timbuctu,13 do outro lado do Deserto do Saara, no Mali, estava entre os fatores
determinantes que levaram D. João I à empresa de sua conquista.
O debate sobre as motivações da Expansão portuguesa e dos descobrimentos que se
seguiram à conquista de Ceuta tem marcado a historiografia sobre o assunto desde
muito tempo. Um dos principais textos de época sobre os quais se debruçaram os
historiadores, Crônica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara,14 originou
duas linhas de interpretação distintas sobre as grandes navegações. Zurara era o cronista
oficial da Coroa portuguesa e buscava em seu documento justificar as ações lusitanas e
enaltecer os heróis de tamanhas façanhas. Principalmente o Infante D. Henrique,
retratado como um grande príncipe cristão, preocupado em procurar portos amigos
Além-mar onde seria mais seguro e lucrativo para comerciar, como o reino do Preste
João. A partir da crônica de Zurara, Jaime Cortesão defendia que os descobrimentos se
deviam à criação de uma classe de mercadores burgueses a serviço de uma mentalidade
nacional extremamente religiosa. Para ele, os objetivos econômicos da Expansão
estariam subordinados aos interesses político-religiosos da destruição do Islã e da
difusão da fé católica. 15 Por outro lado, Veiga Simões sustentava a ideia de que apesar
de argumentos religiosos e o espírito cruzadístico terem servido à Expansão, estes
apenas justificariam o anseio por rendas de uma sociedade em que uma burguesia
mercantil tinha cada vez mais espaço. 16
O historiador britânico Charles Boxer aparentemente conseguiu conciliar as duas
formas de pensamento, em O império marítimo português,17 ao afirmar que fatores
religiosos, econômicos, estratégicos e políticos confluíram para tornar possível a
expansão portuguesa. Vitorino Magalhaes Godinho, em A economia dos
descobrimentos,18 corrobora a ideia de que não se pode atribuir uma única diretriz para
a expansão, mas sim uma convergência entre a necessidade de novas rotas comerciais e
mercados para a burguesia crescente e o desejo da nobreza guerreira por mais
territórios, honras e mercês.
13
Também chamada como Tombouctu, no Mali.
14
ZURARA, Gomes Eanes de. Crônicas dos feitos da Guiné. Lisboa: Agência Geral das Colônias,
1949.
15
GODINHO, Vitorino Magalhães de. A economia dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Livraria
Sá da Costa Editora,1962.
16
ALBUQUERQUE, Luís. Os descobrimentos portugueses. Lisboa: publicações Alfa, 1985.
17
BOXER, C. R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
18
GODINHO. Op. Cit. 1962.
9
19
THOMAZ, Luís Felipe Ribeiro. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994.
20
Breve “Pro Parte Tue” de Julio II, 31 de Janeiro de 1508. In: BRÁSIO, António. Monumenta
Missionária Africana, 2ª série. Volume II. Doc. 12. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1958. Concede
a D. Manuel I utilizar o trabalho dos infiéis, sendo em proveito da propagação da fé católica.
10
21
HESPANHA. A. M. “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes”. In: FRAGOSO, BICALHO & GOUVEIA. Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
11
22
COSTA E SILVA, A. da. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
23
THORNTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004.
13
desde a década de 1440, se trocava tecidos, cavalos e trigo por goma-arábica, ouro e
escravos. A presença cada vez mais frequente dos navegantes portugueses ao sul do
Deserto do Saara na Costa Ocidental africana trouxe duas consequências imediatas para
a região: primeiro, a necessidade dos portugueses de estabelecer um assentamento
seguro para se instalarem e participarem do lucrativo comércio da região – coisa que
encontraram no arquipélago de Cabo Verde; segundo, a chegada dos navios mercantes
lusos fez com que efetivamente parte das caravanas se deslocasse para comerciar com
eles no litoral, mudando a configuração interna dos poderes políticos e econômicos do
continente – principalmente na Senegâmbia, área defronte ao estabelecimento
português.
É curioso notar, como a ocupação dos arquipélagos atlânticos descobertos
durante a exploração do oceano pelas naus portuguesas serviu ao comércio marítimo
assim como os oásis serviam para as caravanas no deserto. Desta maneira, os
portugueses constituíram sua própria rede de amparo ao comércio e à navegação
transoceânica. Além de servirem de esteio aos navios amigos, as fortificações nestes
arquipélagos cumpriam o papel essencial de assegurar para Portugal a primazia do mar
e o monopólio da exploração dos mercados próximos.
24
ALMADA, “Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde dês do Rio de Sanagá até os baixos de
Santa Ana de todas as nações de negros que há na dita costa e de seus costumes, armas, trajos,
juramentos, guerras…”. In: BRÁSIO, António. Monumenta Missionária Africana. 2ª série. Volume III.
Doc. 92. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1964.
25
Idem. Ibidem. Doc. 92.
26
BELTRAN, G. A. The Rivers of Guinea. The Journal of Negro History, Vol. 31, Nº 3, pp. 290-316.
(Jul. 1946). p. 290. “The slave trade did not acquire importance until after the Portuguese navigators
reached Cape Verde and ceased from that time to depend on the Mohammedans to meet their labor
needs”. (tradução minha).
27
BELTRAN, G. A. Historical Background. The Journal of Negro History, Vol. 31, Nº 3, pp. 269-289.
(Jul. 1946). p. 269.
15
Ora, se esta preocupação com as origens dos cativos serve para entender a
América de hoje, acredito que ela é ainda mais importante para o entendimento da
construção do circuito atlântico de tráfico de escravos, durante a qual o arquipélago de
Cabo Verde e seus colonos tiveram participação fundamental como agentes pioneiros e
intermediários. Investigar as origens dos cativos africanos comerciados ao longo do
XVI e princípios do XVII é o mesmo que investigar os limites da atuação dos
comerciantes de Cabo Verde.
O próprio Aguirre Beltrán se refere a Santiago do Cabo Verde como “o mais
importante centro de comércio de escravos no século XVI” e que os “Negros de Cabo
Verde”, ou aqueles que entraram com este nome no México nada mais eram do que os
“Negros da Guiné”,29 trazidos dos “rios da Guiné”, expressão de usada pelo morador e
vizinho de Santiago André Álvares d‟Almada para designar a região entre o Cabo Verde
e a atual Serra Leoa. Aliás, o relato de Almada, Tratado Breve dos Rios de Guiné do
30
Cabo Verde , será nosso mestre de cerimônia para a apresentação desta região, que
em sua maior parte hoje conhecemos por Senegâmbia, e dos povos que nela habitavam.
Em fins do século XVI, Almada é designado procurador pela câmara da Ribeira
Grande de Santiago para advogar junto ao Rei as causas dos vizinhos de Cabo Verde. A
principal queixa dos cabo-verdianos era o abandono de uma região tão produtiva para a
Coroa ibérica – neste momento estava em vigência a União Ibérica, 1580-1640 – diante
das investidas de negociantes de franceses, ingleses e holandeses. Para fortalecer a
presença portuguesa na região, Almada chega a sugerir o investimento na colonização
da Serra Leoa, onde tantos moradores de Cabo Verde haviam se lançado à própria sorte,
em detrimento do investimento na colonização do Brasil. Enfim, para justificar a
validade de suas demandas junto ao rei, este mulato natural do Cabo Verde elabora um
tratado que é uma preciosa descrição da região no período estudado. O tratado está
28
Idem. Ibidem. 269- 270. “it provides the key which discloses to us which African cultures intervened in
the integration of the new-Spanish complex. Negroes not only afforded a biological contribution but,
bearers of culture, they also offered a cultural bearing, the survivals of which are still present in Mexico.
The determination of the origin of these survivals will only be possible when we know the cultures from
which they are derived”. (tradução minha).
29
BELTRÁN, G. A. The Rivers of Guinea. Op. Cit. (Jul. 1946).
30
ALMADA, “Tratado Breve...”. Op. Cit.
16
31
PARK, Mungo. Travels in the interior district of Africa. Realizado sob a direção da African
Association nos anos de 1795, 1796 e 1797. Londres, 1799. p. 195.
17
32
Mapa 3: A Confederação dos Jalofos na 2ª metade do XV
32
Le Jalof dans la moitié du XVe siècle. Tirado de BOULÈGUE, Jean. Le Grand Jolof (XIIIe-XVIe
siècle). Blois - Paris: Façades - Karthala, 1987, p.12.
33
TAUXIER, L. Le noir de Bondoukou. Koulangos-Dyolas-Abrons, Paris, 1921, p. 14. Apud:
BELTRÁN, G. A. The Rivers of Guinea. Op. Cit. (Jul. 1946). p. 294.
18
Segundo o mesmo autor, os jalofos davam extremo valor ao sal, produto que era
trazido desde o rio Gâmbia por mercadores mandingas, o que alimentava o comércio
intra-regional muito antes da chegada dos portugueses. Somente os reis e senhores
jalofos tinham acesso ao sal e em troca davam ouro, escravos e panos finos. Porém,
após a chegada dos portugueses e sua instalação em Cabo Verde, estes últimos tenderam
a substituir os mandingas intermediando o comércio de sal na região. Ao que parece, os
resgates da guiné tornaram os portugueses os principais agentes comerciais locais,
dominando o comercio intra-regional também, além do trato com a Europa e a América.
Sobre os costumes dos jalofos, Almada indica que eles tinham entre seus hábitos se
alimentarem “galinhas pintadas” (hoje chamadas d‟angola), vacas, cabras, lebres,
coelhos e gazelas, além de arroz, milho (maçaroca e branco), gergelim, manteiga, mel e
leite. O que é particularmente interessante notar é que a maior parte destes alimentos foi
introduzida com sucesso nas ilhas do Cabo Verde e passou a fazer parte da alimentação
dos colonos, principalmente o milho.
Sobre as roupas e vestimentas, eram de muito bom algodão, tingido de preto, branco
ou anil. Nos portos do sul, no Wuli, durante muito tempo se comerciou com os
portugueses que intermediavam também o comércio local de couros, marfim, cera,
goma, âmbar e ouro e, sobretudo, escravos.
Ao longo dos séculos XV e XVI, a Confederação dos Jalofos e toda a região
passaram por abalos políticos, econômicos e populacionais motivados pelo desvio das
rotas tradicionais de comércio do interior para o litoral após a chegada dos portugueses.
Este fato concorreu para a mudança das configurações políticas e econômicas internas
da Confederação dos Jalofos, e contribuiu para o seu desmembramento, conforme as
províncias costeiras foram conquistando sua autonomia. A mudança do eixo econômico
fortaleceu principalmente os chefes militares locais, chamados sebbe (ceddo, no
singular), e sua violência arbitrária.
No final do século XVI, portanto, já não havia mais a Confederação dos Jalofos.
Tampouco os portugueses podiam comerciar naquelas paragens. Mas, embora durante o
período que escreve Almada, o rei do Caior, chamado Gudumel tenha expulsado os
portugueses dali para privilegiar o trato com ingleses e franceses, o comércio seguiu nas
mãos dos lançados afro-portugueses que dominavam as rotas mercantis terrestres e dos
rios da região. Homens como, por exemplo, o cristão-novo João Ferreira, natural do
Crato, a quem Almada atribui grande destaque por ter se tornado genro do Grande-Fula.
João era conhecido como Ganagoga, “aquele que fala todas as línguas”, em fula, e,
20
ainda segundo Almada, chegou mesmo a dominar o comércio de marfim na região com
a licença do senhor de Casão – que poderia ser provavelmente o porto de Casão, no
Wuli, ou a cidade de Kasa (ver mapa 3), que empresta seu nome ao rio Casamance –,
Mansa, vale lembrar, era o antigo título do chefe do Mali, significando senhor ou rei
entre muitos dos povos da região. 38
Ao sul de Caior, na margem norte do Gâmbia, aparecem os barbacins e os borçalos
de que nos fala Álvares d‟Almada. Ambos são povos sereres e aparecem em nosso
mapa como sendo os habitantes dos territórios de Sine e Salum, respectivamente. Estes
povos não eram islamizados e com eles viviam muitos lançados.
No final do século XVI, os babarcins estavam divididos entre os súditos do reino do
Gudumel de Caior, ao norte, e os do reino de Borçalo, ao sul. É provável que barbacins
sejam os Berbesi das listas de escravos no México que Gonzalo Aguirre Beltrán
consultou para o seu Tribal origins of slaves in Mexico. Barbacins cultivavam o milho,
o arroz, feijões, tomavam vinho de milho e vinho de Palma. Almada relata que eles
eram animistas, pois cultuavam a lua nova e as grandes árvores eram tidas como
templos onde se sacrificavam animais. Ao lado destes, estava o reino de Borçalo, onde
viviam barbacins, jalofos e mandingas, cada um com um capitão-governador designado
pelo rei.
O rio Gâmbia tinha, em fins do XVI, muitos reinos. Próximo ao reino de Borçalo
estava o reino mandinga de Cantor, vassalo do reino do Gabu, os senhores do rio
Gâmbia. Os habitantes de Cantor, ou Kantora, eram guerreiros bastante belicosos e
atacavam com azagaias extremamente peçonhentas. Não era qualquer navio que podia
subir o rio e tinham que estar sempre atentos à emboscadas, pois os mandingas
construíam fortalezas ao longo dos estreitamentos do rio. Almada destaca também que
ao longo do rio havia mais religiosos muçulmanos do que em qualquer outra parte da
Guiné.
38
ALMADA, “Tratado Breve ...” Op. Cit. Doc. 92.
21
O maior destes religiosos (...) chamam eles (sic) Ale-mane, e trazem anel
39
como Bispo. E todas estas três casas estão na parte Norte do Rio.
Estes religiosos andavam sempre com pequenos livros encadernados e material para
escreverem. E tinham bastante contato com caravanas de outros reinos da região. Os
principais produtos do resgate nesta área são “cavalos, roupa branca da Índia, contaria
da Índia, de Veneza, pano vermelho, papel, cravo, manilhas de cobre (...) e entre todas a
mais estimada é a cola, fruto que se dá na Serra Leoa e seus limites; e vale tanto neste
Rio, que dão tudo a troco dela, assim com roupa, escravos e ouro.”
Em 1578, nesta mesma cidade de Sutuco, no Wuli, à margem do rio Gâmbia (ver
mapa 3) Álvares d‟Almada encontrou as grandes cáfilas.
Provavelmente estas cáfilas vinham do reino Denyanke dos Fulbe, no Senegal, a “terra
do Grande-Fula, pois o tempo de viagem é o mesmo que as cáfilas fulas levavam no
século seguinte para viajar até o sul e comerciar com os ingleses. Este fato provocava
espanto nos franceses que tinham sua companhia de comércio no Senegal.
Em seu tratado, Almada faz menção a relatos na região de uma grande guerra,
cem anos antes do momento em que ele escreve, envolvendo fulas, mandingas e vários
outros povos da região que ainda aparecerão neste tópico, como, por exemplo,
cassangas, bunhuns, buramos e beafares. Esta guerra referida pelo autor foi muito
provavelmente a grande migração de fulas comandados por Kolly Tengela que
revolucionou a Senegâmbia em fins do século XV, que foi seguida pela ascensão do
39
Idem. Ibidem. p. 275.
40
Idem. Ibidem. p. 277.
22
O Gabu era um reino mandinga fundado em fins do século XIII após a migração
deste povo desde o arco-do-Níger. Eles eram tributários do Mansa do Mali, pois
conquistaram e governavam esta terra em nome dele. A organização dos povos da Costa
da Senegâmbia em sua maioria se dava da seguinte forma, como explica Almada sobre
o senhor de Kasa:
Sem embargo deste Rei ser poderoso, dá obediência a um Farim que é entre
eles como imperador, e este a dá a outro que fica por sobre ele, e desta
maneira vão dando obediência uns aos outros até irem dar ao Farim de
Olimansa, digo Mandimança, que é imperador dos negros, donde tomaram
41
este nome os Mandingas, e Casamansa, (...).
Ou seja, os reis a que ele se refere são os chefes locais, encarregados da justiça e
da arrecadação dos tributos a serem passados ao Farim, antiga designação para o
governador mandinga vassalo do Mali. O fato de ainda no final do século XVI, os
senhores de Kasa e do Gabu se intitularem Farim denota a primazia mesmo que
simbólica do Mandimansa, o Imperador do Mali.
41
Idem. Ibidem. p. 298.
42
BOULÈGUE, J. “Présences portugaises et societés societés africaines sur la côte de la „Guinée du Cap-
Vert‟ aux XVIe et XVII siècles”. In: LANG, Jürgen. Cabo Verde: origens de sua sociedade e do seu
crioulo. Tübingen: Günter Narr Verlag. pp. 48-49. “Au sud de la Gambie, (...) la majeure partie de la
région dépendait en príncipe de l‟empire du Mali mais, dès le XVIe siècle, ce n‟était plus qu‟une autorité
de référence qui se diluait à travers de multiples relais. Le Mansa du Mali était representé par quatre
grands farins (faren, chef, em manding)”. Tradução minha.
23
Outro viajante a registrar tal disposição politica e social na região é André Donelha,
em 1615.
Em todas estas terras e nos rios Casamance, Grande, São Domingos até a Serra
Leoa, os vizinhos de Cabo Verde tinham tratos e resgates, andando por toda a parte, se
instalando junto de falupes, buramos, beafares e sapes. Lutando e tentando se impor aos
hostis bijagós, muitas vezes se lançando à própria sorte sem o auxílio nem sequer
autorização da coroa portuguesa. Estes homens foram os pioneiros do comércio e da
colonização europeia na região – por isso eram chamados lançados ou tangomãos –,
asseguraram os investimentos iniciais para suportar o tráfico atlântico e sustentar a
ocupação do Novo Mundo. Claro que nisto muitos obtiveram lucro, não pensavam em
construir um projeto colonial, mas antes fazer fortuna. A forma com fizeram isto é o
nosso próximo assunto.
24
43
GREEN, Tobias. Creolization and jewish presence in Cabo Verde, 1497-1672. Tese de
Doutoramento defendida na Uuniversidade de Birmingham, Inglaterra, julho de 2006.
25
44
BARBOT, John. Description of the Coasts of North and South-Guinea, and of Ethiopia Inferior,
vulgarly Angola, being a new and accurate Account of the Western maritime countries of Africa. In
six books, 1737.
45
ALMADA. Op. Cit. p. 251.
46
Idem. Ibidem.
47
Havia grupos de mercadores mandinga, depois identificados como diulas ou julas. Havia duas redes
principais de mercadores mandingas na região. Uma biafadas-sape, outra bainuk-bak.
26
Mapa 4: A Senegâmbia com a distribuição aproximada dos povos da Costa nos séculos XV e XVI
Entre os rios Cacheu e Geba viviam os buramos (no mapa, aparecem como Brame e
são atualmente chamados pepéis). Hoje esta região constitui o Estado da Guiné-Bissau e
à época de sua independência chegou a formar uma república unida junto com Cabo
Verde. As raízes desta ligação profunda entre os dois países atuais datam do século XVI
quando os vizinhos de Santiago liderados por Manuel Lopes Cardoso se organizaram
27
para construir, às margens do São Domingos, um forte para expulsar os ingleses dali e
assegurar para si o resgate naquele rio.Em fins do XVI, Almada informa que ao lado do
forte havia se formado uma aldeia com 800 habitantes entre brancos e negros. Todos
cristãos. No Tratado Breve, Almada pede que a aldeia, chamada Cacheu, seja alçada à
condição de vila.48
Outros relatos sobre a fundação de Cacheu dão conta de que ali os portugueses e
luso-africanos viviam misturados aos povos autóctones, mas não querendo mais viver
assim e temendo por sua segurança, os brancos fundaram uma aldeia só para eles e
tiveram a proteção das autoridades locais. Tornaram-se então, “danus di tcham”
(derivação em idioma kriol da expressão “donos de chão”, em português). Para isso,
pagavam tributos aos pepéis. A fundação desta fortificação não teve qualquer apoio da
Coroa portuguesa, sustentando-se inteiramente do esforço e da fortuna daqueles que iam
de Cabo Verde para lá traficar e da comunidade de luso-africanos que se formava ao
redor destes.
Para lá, iam feitores e padres desde as ilhas de Cabo Verde – Santiago era, desde
1532, sede do Bispado do Cabo Verde e da Guiné do Cabo Verde – para rezarem missa
e darem confissão aos cristãos que viviam no continente. Almada conta que o rei dos
buramos tinha o costume de assistir à missa, e que
pasmava este rei quando via que o feitor do rio, a quem eles tem em muita
conta, e todos os mais faziam muita conta de um clérigo preto por que em o
vendo se alevantava logo o feitor da cadeira em que estava sentado e lhe
dava, e o mesmo todos faziam. Dizia o rei e mais fidalgos que, sem
embargo daquele homem ser preto como eles, lhes faziam os [portugueses]
tanta honra por que falava com Deus. E o rei ia muito ao forte quando se
49
dizia missa.
Boulègue sustenta que “os luso-africanos que habitavam ao sul do Gâmbia, assim
como os cabo-verdianos que se instalaram temporariamente entre eles, podiam seguir
uma estratégia própria, diferente da de Portugal e da dos poderes africanos”, coisa que
aqueles que haviam se instalado no Caior, como João Ferreira ou Dona Catarina, não
podiam fazer. Diferentemente destes, os “danus di tcham” eram em sua maioria
descendentes de portugueses que se misturavam às comunidades matrilineares banhuns
e pepeis para construírem solidas redes comerciais.
48
ALMADA. Op. Cit. p. 298.
49
ALMADA. Op. Cit. p. 302.
28
50
HAVIK, Peter. “A dinâmica das relações de gênero e parentesco num contexto comercial”. Afro-Ásia,
27 (2002), 79-120.
51
MARK. Peter. ―Portuguese‖ style and Luso-African Identity: precolonial Senegâmbia, sixteenth-
seventeenth centuries. Bloomington: Indiana University Press, 2002. pp. 33-58.
29
Considerações finais
Neste sentido, creio que a grande contribuição deste capítulo é pôr em evidência
como a configuração dos povos da Senegâmbia e da Costa da Guiné se modificou a
partir da chegada dos europeus e como isto influiu na emergência de novos poderes
locais.
Portanto, podemos afirmar que nem a escravidão era estranha aos povos autóctones
antes da chegada dos portugueses, nem o tráfico atlântico se impôs contra a vontade dos
mesmos. Quanto a isto, este capítulo mostrou vários exemplos de cooperação entre
portugueses, franceses, ingleses, luso-africanos e africanos com o intuito de trocar
mercadorias que iam desde a cola, os tecidos, o ouro, até a mercadoria humana, o
escravo.
30
Capítulo II
este, responsável por sua povoação. Em 1466, a Coroa emitiu a Carta de privilégios aos
moradores de Santiago e, em 1472, a Carta de declaração e limitação de privilégios
dos moradores de Santiago. 55
Segundo Barcelos, Afonso V doou, por carta régia de 3 de Dezembro de 1460,
as ilhas de Cabo Verde descobertas por Antônio de Noli em nome do Infante D.
Henrique (Santiago, Fogo, Maio, Boa Vista e Sal) ao seu irmão D. Fernando. Isto se deu
pouco menos de um mês após a morte de D. Henrique em 13 de Novembro daquele
mesmo ano. Dois anos mais tarde, em 19 de Setembro de 1462, o Rei confirma a doação
ao irmão em caráter “perpétuo e irrevogável” não apenas das cinco ilhas descobertas no
tempo de D. Henrique por de Noli, como também das ilhas restantes do arquipélago
(Brava, S. Nicolau, S. Vicente, Santo Antão e Santa Luzia) descobertas em nome de D.
Fernando.56
Desde 1461, provavelmente, a ilha de Santiago foi dividida em duas capitanias:
uma ao sul, entregue a de Noli, que fundou ali a Ribeira Grande; outra ao norte,
chamada dos Alcatrazes e entregue a Diogo Afonso, contador da ilha da Madeira. Não
se tem as cartas régias que criaram as capitanias, porém, o fato é referido na carta de
doação da capitania dos Alcatrazes outorgada a Rodrigo Afonso, sobrinho de Diogo
Afonso, em 9 de Abril de 1473, e ratificada em 1485 e 1496.
Santiago é a maior ilha e com mais recursos hídricos do arquipélago. Consta que
Antônio de Noli, seu irmão Bartolomeu e seu sobrinho Rafael já vinham povoando-a
desde 1461 com alguns genoveses, portugueses do Alentejo e Algarve, e com muitos
negros resgatados na Guiné. Mas é a partir da Carta de privilégios de 1466 (e sua
posterior limitação em 1472) que a ocupação se deu de forma mais efetiva. A dita Carta
concedia aos moradores de Santiago o privilégio, ou exclusivo, do comércio com a
Guiné, entre o rio Senegal e a Serra Leoa. Este direito concedido aos moradores de
Santiago concorreu para que se estabelecesse na ilha uma classe mercantil de
intermediários entre os mercados da Guiné, os contratadores da Península Ibérica
(principalmente Lisboa e Sevilha), as demais ilhas do Atlântico (Canárias e Madeira,
sobretudo) e, posteriormente, as praças americanas (Antilhas, México, Nova Granada,
na atual Colômbia, e norte do Brasil).
55
Idem. Ibidem.
56
SENNA BARCELOS, Christiano José. Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, I, pp. 21.
Tipografia da Academia Real de Sciencias de Lisboa, 1899.
32
Todo este intenso trato contribuiu para o surgimento de portos importantes onde
se instalavam, ainda que provisoriamente, muitos comerciantes (estantes) e marinheiros
(mareantes) reinóis e estrangeiros. O incremento dos resgates fez crescer a cidade da
Ribeira Grande de Santiago, centro da vida política e econômica do arquipélago e,
desde 1533, sede do bispado de Cabo Verde com jurisdição sob toda a Guiné.57
Neste sentido, se por um lado a posição geográfica de Cabo Verde e sua
condição insular, onde os portugueses puderam facilmente estabelecer sua soberania,
proporcionavam ao arquipélago um papel preponderante no mundo Atlântico; foi o
privilégio concedido aos vizinhos de Santiago sobre os resgates da Guiné que tornaram
as ilhas uma peça fundamental no tabuleiro de xadrez da expansão comercial europeia,
nos séculos XVI e XVII.
Neste capítulo veremos como se deu a formação da sociedade colonial em Cabo
Verde, assim como sua vida política e administrativa. Desta forma poderemos
compreender como esta sociedade se apresentava diante de um mundo em rápida
transformação pela navegação e comércio de gêneros e pessoas, ao mesmo tempo
suportando-o e dialogando com ele.
57
A diocese de Cabo Verde foi criada pela bula papal Pro excellenti praeminentia, da chancelaria de
Clemente VII, datada de 31 de Janeiro de 1533, e abrangia além das ilhas do arquipélago, a Costa da
Guiné entre o rio Gâmbia e a Serra Leoa. Ibidem. Vol. II, pp. 249-252.
58
BRÁSIO, A. Monumenta. 2ª série, volume II. Doc. 14, pp. 38-39.
33
59
Idem. 2ª série, volume I. Doc. 56.
60
Idem. Ibidem.
61
Idem. Ibidem.
34
exploração da costa africana para além da Serra Leoa e a expansão. Esta tarefa foi
entregue aos grandes comerciantes de Lisboa com trânsito na corte.
Segundo Aurélio de Oliveira, a associação da Coroa lusitana e da classe
mercantil tornou possível “a garantia e consolidação da independência” portuguesa.
Esta se deu com a “construção do círculo atlântico em sucessivas etapas de alargamento
e consolidação econômica”, permitindo a Portugal resistir “ao esforço tentacular das
Castelas, que entretanto e durante o mesmo período, foram engolindo todas as
construções hispânicas”. Assim, se o “círculo Atlântico construiu-se, consolidou-se e
defendeu-se numa área vital e preferencial como objetivo imediato para os particulares”,
ele era, ao mesmo tempo, “estratégico para a Coroa”. 62
A construção deste Atlântico estratégico a que nos referíamos a pouco se deu então
com a iniciativa e o envolvimento de particulares com seus interesses privados, “sempre
com licença e autorização (...) da Coroa”, mas assumindo “todos os riscos e
consequências da exploração e ocupação dos espaços”.63
Um contrato paradigmático para o estudo do arrendamento das áreas descobertas e a
serem descobertas no Atlântico pela Coroa portuguesa são as Concessões a Fernão
Gomes, entre 1469-1474.
Outros contratos de arrendamento foram realizados posteriormente, os principais
dentre eles foram as Concessões a Fernão Teles e as Concessões a Fernão de Loronha,
ou Fernando de Noronha. Todos eles estabelecendo grandes redes de tráfico no
Atlântico e mobilizando grandes fortunas. Seus contratos seguiram o modelo do
arrendamento a Fernão Gomes.
Os aspectos essenciais do acerto com Fernão Gomes concediam a ele explorar toda
a extensão de costa que viesse a descobrir desde a Serra Leoa ao sul. O arrendatário
ficava obrigado a descobrir 100 léguas por ano, totalizando 500 léguas de costa
descoberta ao fim dos cinco anos de contrato. Nestas terras deveriam ser colocados
padrões pelo arrendatário reivindicando a posse para o rei de Portugal. Para obter tal
regalia teria que pagar 200.000 reais brancos à Coroa. Entretanto, em 1470, a volta do
62
OLIVEIRA. A. “As Concessões mercantis e a construção atlântica portuguesa”. In: Actas do
Congresso Internacional ―Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades‖. Lisboa, 2 a 5
de Novembro de 2005.
63
Idem. Ibidem.
35
64
Monumenta. 2ª série. I . Doc. 65.
65
Fonte: CORTESÃO, Jaime. Os descobrimentos portugueses. Lisboa: Imprensa nacional – Casa da
Moeda, 1990.
36
66
Monumenta. 2ª série, I. Doc. 67.
67
Idem. Ibidem.
37
68
BRÁSIO. A. Monumenta... Op. Cit. 1958.
69
Ver a noção de proprietário-armador apresentada por Maria Emília Madeira Santos e Iva Cabral.
SANTOS, Maria Emília Madeira; & CABRAL, Iva. «O nascer de uma sociedade através do morador-
armador». In: História Geral de Cabo Verde (coord. Luís de ALBUQUERQUE e Maria Emília Madeira
SANTOS), vol. I, Lisboa, Edição conjunta de Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga do
Instituto de Investigação Científica Tropical e da Direcção Geral do Património Cultural de Cabo Verde,
1991.
70
CABRAL, Iva. “Ribeira Grande: vida urbana, gente, mercancia, estagnação”. In História Geral de
Cabo Verde (coord. Maria Emília Madeira SANTOS), vol. II, Lisboa, Edição conjunta de Centro de
Estudos de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica Tropical e da Direcção
Geral do Património Cultural de Cabo Verde, 1995. P.232.
38
Que a origem da população envolvida na expansão era em sua imensa maioria das
camadas mais pobres do povo português, não se tinha grande dúvida. Entretanto a
participação de fidalgos, ainda que da pequena nobreza, na tarefa hercúlea de construir
um sistema atlântico português com o suor do próprio rosto comandando viagens
comerciais e de abastecimento de cativos entre a África, a Península Ibérica e a
América, me parece ser uma grande novidade que espero poder averiguar mais a fundo
numa pesquisa futura.
71
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 225.
39
72
ANTT, Corpo Cronológico, I-12-120, HGCV, Corpo Documental, volume I, p. 221. 22 de maio de
1513. Os vizinhos eram os moradores abastados, proprietários de casas e terrenos no perímetro do
município, somente estes homens possuíam o direito de participar das eleições municipais e servir nos
cargos da câmara. Chama a atenção a distinção entre os vizinhos honrados e brancos e os vizinhos negros.
Até 1546, apenas os vizinhos brancos poderiam servir na câmara, nesta data, porém, um alvará régio
concedeu o mesmo direito aos vizinhos “baços e pretos”. BRÁSIO, A. Monumenta Missionária
Africana, Série II, vol. II, p. 386. Documento nº 117. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1963. Este
assunto será melhor tratado em nosso próximo capítulo quando discutiremos a sociedade cabo-verdiana
no século XVI.
73
BRÁSIO, A. Monumenta Missionária Africana, Série II, vol. III, p. 97. Documento nº 42. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1964.
40
António Correia e Silva montar este quadro demonstrativo das freguesias da ilha de
Santiago e da estimativa de sua população.
Fonte: CORREIA E SILVA. “Espaço, ecologia e economia interna”. In: História Geral de Cabo Verde.
Volume I. 2ª edição. Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 2001.
41
Ainda segundo a mesma autora, a elite de Cabo Verde no XVI mantinha estreita
relação com os reinóis arrendatários dos direitos reais como os quartos e as vintenas de
todas as mercadorias importadas pelos moradores da costa africana, como também dos
dízimos da terra na ilha de Santiago. Esses seriam parceiros preferenciais e grandes
interessados na multiplicação de embarcações armadas na ilha para a costa da Guiné.
Além disto, a primeira elite da Ribeira Grande sempre procurou controlar o poder local,
seja ocupando os cargos concelhios (camarários) ou fazendo eleger para estes cargos
pessoas da sua relação. Apesar desta proeminência local, Iva Cabral ressalta o fato de
que a elite de Cabo Verde no XVI detinha o seu verdadeiro poder através da
comunicação privilegiada que mantinham com o reino. Como, por exemplo, demonstra
a carta do corregedor Pero Guimarães ao Rei quando este diz que “nesta ilha há pessoas
que dizem que se o corregedor que Vossa Alteza a ela mandar não for de suas vontades
que com mui boas testemunhas falsas os farão sair mais que a passo...”.75
Cabe ressaltar que os homens que compunham esta primeira elite, os vizinhos de
Santiago no século XVI, foram para a ilha possivelmente atendendo a um pedido do
Infante D. Fernando, pois eram homens de sua Casa e serviço. A própria Carta de
Doação, de 1466, nos informa a este respeito quando afirma que “a quantos esta minha
carta virem fazemos saber que o Infante Dom Fernando [...], nos enviou dizer como
havera [sic] quatro anos ele começara a povoar a sua ilha de Santigo”.76
74
CABRAL, Iva. “Elites atlânticas: Ribeira Grande do Cabo Verde (séculos XVI-XVIII)”. In: Actas do
Congresso Internacional ―Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades‖. Lisboa, 2 a 5
de Novembro de 2005.
75
ANTT, Corpo Cronológico [CC], I-36-93, de 6 de Maio de 1517.
76
BRÁSIO. Monumenta... Op. Cit. 2ª série.
42
77
Foi esta elite que fundou a cidade da Ribeira Grande e transformou Santiago
no depósito de escravos mais procurado pelos navios negreiros durante o século XVI e
o início do XVII. Os terratenentes-mercadores dominavam o tráfico com o continente e
abasteciam os outros moradores do arquipélago de comida e escravos através de
encomendas feitas aos navios armados por eles. Estes homens também detinham o
controle sobre os principais cargos locais, como ofícios régios e cargos camarários,
utilizando-os para controlar o mercado de escravos, regulando o preço de acordo com
suas próprias expectativas. Em 1549, o Frei Gaspar da Silveira atesta que “não vem
navio da Guiné que velho e menino antes que saia já vem com o preço feito”, razão pela
qual a ilha estaria “muito rica”.78
De passagem por Cabo Verde em fins do XVI, o mercador florentino Francesco
Carletti testemunha que o Atlântico, espaço onde se desenvolvia este comércio seria
sulcado na vertical até Santiago e, então, na horizontal até Cartagena, nas Índias de
Castela. Em Santiago, “os grandes mercadores locais guardavam nas suas fazendas no
interior da ilha parte dos cativos que possuíam para vender. Assim, quando corria a
notícia da chegada de navios negreiros, apressavam-se a organizar mostras e
loteamentos de africanos”. 79
Se analisarmos os dados referentes às viagens negreiras durante o século XVI,
podemos ter uma ideia aproximada do volume do tráfico que passou por Cabo Verde.
Acreditamos que, sendo a América Central espanhola e o Caribe as principais áreas de
desembarque de cativos na América ao longo do período estudado, Cabo Verde seria
um dos principais esteios para a navegação na rota entre as costas africana e americana.
A viagem entre Santiago e Cartagena, por exemplo, durava em média cerca de quarenta
dias. Seria lógico então supor que muitos navios, ainda que não tivesse no arquipélago a
origem de seus carregamentos, fizessem ali uma escala para abastecer-se de água,
mantimentos e quem sabe até de tripulantes antes de cruzar o Atlântico.
O terceiro capítulo desta dissertação é dedicado a analisar o volume, o
funcionamento e as implicações do tráfico de escravos e de Cabo Verde como
entreposto de escravos num cenário internacional. Aqui, neste segundo capítulo, os
77
O primeiro donatário de Cabo Verde foi Antônio de Noli, que recebeu a capitania sul da ilha de
Santiago e ali fundou, juntamente com seu irmão, a cidade da Ribeira Grande.
78
ANTT, Corpo Cronológico, I-83-49, de 9 de Dezembro de 1549, publicado na Monumenta... Op. Cit.
2ª série.
79
TORRÃO, Maria Manuel Ferraz; TEIXEIRA, André. “Negócios de um florentino em Cabo Verde:
descrições e reflexões sobre a sociedade e o tráfico em finais do século XVI”. (p. 9). In: Actas do
Congresso Internacional ―Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades‖. Lisboa, 2 a 5
de Novembro de 2005.
43
80
moradores, nacionais e estrangeiros” . Esta medida contribuiu para a conversão do
capital mercantil para o capital produtivo, quando não, na conversão de mercadores em
terratenentes. Ou seja, acarretou na formação de uma elite de armadores proprietários
81
rurais. Estes homens atuavam no trato com a costa africana e, posteriormente,
reexportavam os escravos para a Europa e as Antilhas. O poder e o prestígio social
frequentemente acompanhavam o seu sucesso econômico. 82
A melhor descrição do poder econômico e social desses moradores-armadores
encontra-se num documento, datado de 1533, que apresenta o perfil de Diogo
83
Gonçalves, um dos primeiros homens negros de Santiago que alcançaram, através de
seu poder econômico e prestígio social, o status de “homem branco”, e que também
86
Sobre isto, ver CARREIRA, António. Cabo Verde – formação e extinção de uma sociedade
escravocrata (1460-1878). Praia: IPC, 2000.
46
87
melhores condições de negociar a vida social. Assim, as estratégias de acordo com
estratégias individuais ou grupais, as pessoas poderiam interferir no seu espaço social e,
conforme o seu sucesso, conquistar uma posição melhor para si e para os seus. 88
As propriedades rurais no inicio da colonização em Cabo Verde eram, em sua
maioria, pequenas domínios.89 Mesmo a partir do século XVI, quando aparecem
terrenos maiores vinculadas em morgadios ou capelas 90 – um sistema de transmissão de
patrimônio de geração para geração que regula a estrutura social e a fundiária na medida
em que são formadas pela reunião de algumas propriedades num conjunto indivisível e
inalienável.91 Pequenas propriedades não necessitam de um grande contingente de
escravos, logo a escravaria em cada fazenda não era muito numerosa, sendo boa parte
dela constituída de ladinos (escravos aculturados, cristãos, na maior parte das vezes
nascidos nas ilhas) e não por boçais (africanos), que em sua maioria eram enviados para
a América.
Assim, a relação entre senhores e escravos em Cabo Verde era muito próxima; o
senhor alforriava seus escravos após algum tempo de serviço, principalmente os
domésticos. Houve casos de senhores que tornavam forros seus escravos feitores, que
exerciam postos de comando e gestão em suas propriedades. Nestes casos a alforria
funcionava como um prêmio pelo bom serviço, um exemplo a ser seguido. Notem bem
que, apesar de se tratar de uma sociedade de Antigo Regime, onde bem ou mal o lugar
de nascimento de cada um deixava uma marca indelével, este não constituía um limite
puro e simples às suas aspirações de liberdade ou ascensão social. Havia, portanto,
mobilidade social.
Outro fator que contribuiu para a aculturação dos cativos foi a concessão de lotes
de terras que permitia ao escravo trabalhar seis dias para o senhor e um para seu próprio
87
Para um bom entendimento do assunto, ver CABRAL, Iva. “Ribeira Grande: vida urbana, gente,
mercadoria e estagnação”. In: MADEIRA SANTOS, Maria Emília (Coord.). História Geral de Cabo
Verde. Volume II. Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 1995.
88
Sobre isto, ver ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. Ver
também BARTH, F. Process and form in social life: selected essays of Fredrik Barth, vol. I. London:
Routledge & Kegan Paul, 1981. Este último título é essencial para a compreensão do conceito de
estratégia.
89
Nas ilhas atlânticas, como em Cabo Verde, a terra era de propriedade da casa de Viseu e da monarquia,
posteriormente, com a elevação desta casa ao trono. As terras eram então doadas aos colonos, mas
poderiam ser tomadas de volta se o monarca assim o quisesse.
90
“André Rodrigues dos Mosquitos, contador real, enriquecido na ilha, vem a comprar várias
propriedades, que posteriormente vincula”. CORREIA E SILVA, A. “Espaço, ecologia...” op. cit. pp.
203.
91
A vinculação de bens foi instituída pela Lei Mental de 1534 para proteger as linhagens de casas nobres
e deveria ser homologada pelo rei.
48
92
ganho e sustento. Contra as sublevações, contestações da ordem e para manter a
disciplina quando os senhores retiravam dos escravos algum direito adquirido, havia
sempre a violência física, castigo para mostrar o caminho que não deveria ser seguido.
Voltaremos a este assunto mais adiante quando tratarmos da questão da
mestiçagem, do papel dos mulatos em na ilha de Santiago e das relações entre senhores
e escravos em Cabo Verde e no mundo Atlântico português.
92
Ver CORREIA E SILVA, António Leão. “A sociedade agrária: gentes das águas: senhores, escravos e
forros”. In: MADEIRA SANTOS, Maria Emília (Coord.). História Geral de Cabo Verde. Volume II.
Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 1995. p. 317.
93
SOARES, Maria João. “Crioulos indómitos” e vadios: identidade e crioulização em Cabo Verde –
séculos XVII-XVII. In: Actas do Congresso Internacional ―Espaço Atlântico de Antigo Regime:
poderes e sociedades‖. Lisboa, 2 a 5 de Novembro de 2005.
49
Este não conseguiu ser recebido na corte, pois chegou em meio a crise sucessória
que levou a União das Coroas Ibéricas. Em 1594, sem ter conseguido ser recebido em
audiência por El-Rey, escreveu o Tratado Breve dos Rios da Guiné do Cabo Verde
para informar Sua Majestade da situação de seus conterrâneos e de suas demandas. Seu
relato rende frutos e o povoamento de Cacheu é reconhecido, tendo sido alçado à
condição de cidade no ano de 1615.
Em 1578, 1598 e 1601, André e/ou seu pai, estiveram resgatando na Guiné. André
chegou mesmo a registrar em seu tratado que encontrou cáfilas de mercadores islâmicos
oriundos do interior do rio Senegal na cidade de Casão, no Wuli, 120 léguas adentro do
rio Gâmbia. E que só não trocou ouro com eles por não possuir, à época, manilhas de
cobre suficientes para a operação comercial. Almada lamentou muito este fato.
André também atuou como capitão de uma companhia de ordenanças na defesa
militar da Ribeira Grande contra ataques de piratas. Este fato atesta a sua posição entre
os principais vizinhos de Santiago, visto que a maior parte dos oficiais destas
companhias pertencia à camada dos proprietários de terra, a mais abastada da ilha. Estes
tinham que arcar com cavalos, escravos e armas. O fato de servirem a sua própria custa
é uma clara demonstração de riqueza, visto que não era prevista qualquer remuneração
para os soldados, nem mesmo para os capitães de ordenanças. 94
No ano de 1614, o filho de André, Verde Dinis Eanes de Afonseca, também mulato
natural do Cabo, e seu pai Ciprião assinam documento da câmara de Santiago pedindo
ao Rei que intervisse no arrendamento dos Asientos e dos resgates, pois estes, por se
dirigirem diretamente as partes da Guiné, não mais passavam por Cabo Verde, nem pela
alfândega da Ribeira Grande.
Sem recolher impostos e sem dinheiro para circular e comprar alimentos para
abastecer seus próprios navios e população, a câmara da Ribeira Grande passou uma
postura, em 1613, autorizando o uso de panos da índia como moeda corrente no
arquipélago. Decisões como esta demonstram o caráter da câmara de julgar os assuntos
e medidas necessários para zelar pelo bem comum.
Dinis Eanes ainda aparece como Juiz da câmara da Ribeira Grande em 1615 e como
postulante a capitania de Cacheu em 1624. Atua na câmara de vereadores até pelo
menos a década de quarenta do século dezessete. A família de Almada pode nos servir
94
BALENO, Ilídio Cabral. “Pressões externas. Reações ao corso e à pirataria”. In. MADEIRA SANTOS,
Maria Emília (Coord.). História Geral de Cabo Verde. Volume II. Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 1995.
pp. 125-188.
51
Casou em
Santiago com uma
mulata
André Mulato Cavaleiro da Faz parte da Eleito procurador 1580-1647
Álvares de natural de Ordem de Cristo Câmara da pelo povo de
Almada Cabo Verde Ribeira Grande Santiago para ir a
Vizinho da cidade (1647) Portugal tratar com
da Ribeira Grande a Coroa o modo
como povoar a
Filho de Ciprião Serra Leoa (1580)
Álvares de
Almada Escreveu o Tratado
Breve dos Rios da
Guiné do Cabo
Verde (1594)
Capitão de uma
Companhia (1598)
Procurador em
Santiago de
moradores reinóis
(1601)
95
Quadro construído a partir de CABRAL, Iva. “Vizinhos da cidade da Ribeira Grande”. In: MADEIRA
SANTOS, Maria Emília (Coord.). História Geral de Cabo Verde. Volume II. Lisboa; Praia: IICT;
INCCV, 1995. Apêndices, pp. 515-516.
52
Pede ao Rei a
Capitania de
Cacheu (1624)
Assina o
assento tomado
na Câmara da
Ribeira Grande
contra os
Jesuítas (1626)
Provedor da
Fazenda Real
em Santiago
(1634)
Assina
documento da
Câmara da
Ribeira Grande
(1639)
53
96
BRÁSIO, A. Monumenta Missionária Africana, Série II, vol. II, p. 386. Documento nº 117. Lisboa:
Agência Geral do Ultramar, 1963.
97
Cf. Monumenta, I Série, vol. I, p. 500. Documentos de 10-8-1520 e 7-8-1528.
98
Vizinho é o termo utilizado na documentação coeva para designar o morador com plenos direitos
políticos em cada localidade. Sendo assim, um vizinho de Cabo Verde é aquele que goza de todos os
privilégios concedidos pela monarquia ao habitante do arquipélago.
99
Resgate é a forma como, no século XVI, chamava-se o tráfico de escravos na região estudada. Isto se
deve a uma justificativa religiosa segundo a qual os portugueses estariam prestando um serviço às almas
dos homens escravizados, resgatando-os do paganismo e das falsas crenças para o contato com a
verdadeira fé, a católica.
54
100
Há dúvidas se esta noção de indivíduo pode ser aplicada a uma sociedade de Antigo Regime. Fragoso
ressalta que a sociedade de Antigo regime era caracterizada pela organização em torno de núcleos
familiares e mesmo de uma família extensa (parentelas fictícias). FRAGOSO, J. O Antigo Regime nos
Trópicos. Op. Cit. No entanto, não creio que o pertencimento a um grupo familiar seja impedimento para
a ação individual.
55
101
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. pp. 21.
102
Id. Ibid. pp. 27.
56
O que vemos na carta dos moradores de Santiago de 1546 pode ser entendido
como um traço deste acontecer, no qual os vizinhos mulatos buscam se diferenciar de
todo o resto de sua sociedade. Construir para si um espaço de legitimidade fora da
103
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. pp.
60.
104
Id. Ibid. pp. 18.
105
Id. Ibid. pp. 49.
57
massa, que está sempre à margem do governo. Ao mesmo tempo, os mulatos de Cabo
Verde atribuem para a sua aptidão aos cargos oficiais uma importância na garantia da
ordem pública e da liderança da comunidade ante a ameaça do desgoverno de escravos
fugidos, marginais à sociedade legal e organizados em quadrilhas.
Temos diante de nós dois exemplos: o dos mulatos de Santiago, que buscam se
individualizar dentro das normas; e os escravos fugidos, que buscam na transgressão das
normas mecanismos de construção de uma norma alternativa; uma sociedade paralela na
quadrilha. Como chegamos a isto e como estudar estes processos nas ciências sociais?
Voltemos à tese de Norbert Elias sobre sociedade para então analisarmos a transgressão
social.
Para Elias, um problema específico da psicologia confere-lhe um papel
importante na análise científica das dimensões cultural e social dos seres humanos. Fato
este que concorre para que a psicologia contribua bastante para a formulação do estudo
da sociedade enquanto rede de relações funcionais entre indivíduos. Assim, cabe à
psicologia por um lado,
106
ELIAS, N. A sociedade ... op. cit. pp. 41.
58
Por exemplo, questões ligadas à esfera econômica, como o monopólio dos bens
de produção, ou a atuação no resgate de cativos nos mercados escravos da Guiné, são
condicionadas à esfera de poder e legitimação, que em último caso estão ligadas ao
monopólio da violência. Assim, diferenciações econômicas dependem de diferenciações
de poder. A tensão entre quem domina a esfera econômica e a esfera de poder, em caso
de não ser o mesmo grupo, gera uma divisão cada vez maior no interior da sociedade e,
consequentemente, mudanças nas suas relações. É possível que os mulatos de Cabo
Verde neste período, por serem o maior contingente populacional e cada vez mais se
tornarem proprietários de terras e dos meios de produção, buscassem uma posição
política condizente com suas demandas econômicas e sociais.
Estes processos de mudança podem dar margens a diferentes espaços de ação
individual, como demonstra Marshall Sahlins ao discutir a importância do indivíduo na
história. Este autor propõe duas circunstâncias diferentes de atuação individual no
processo de mudança histórica: a ação conjuntural, em que o individuo se apresenta
enquanto motivador da história; e a ação sistêmica, em que a estrutura das relações
sociais ou um encadeamento de fatos aparece como principal motivador da mudança
histórica. 107
Simmel também se preocupa com o peso e o significado do indivíduo como tal
na circunstância social. Sobre isto afirma que somente se a sociabilidade não tiver
qualquer finalidade objetiva fora do instante sociável, esta se apoiaria totalmente nas
personalidades. Elias, por sua vez, sustenta que o que caracteriza o lugar de cada
indivíduo na sociedade e a margem de decisão que lhe é acessível depende da estrutura
e da constelação histórica da sociedade na qual ele vive e age. A liberdade de ação de
cada um está de acordo com a função que se exerce na sociedade, “aquilo que
chamamos „poder‟ não passa de uma expressão para designar a extensão especial da
margem individual de ação associada a certas posições sociais”. 108
Sendo assim, toda posição de mando só existe se há quem a reconheça. Se a
posição social define seu grau de individuação e sua margem de ação na história, resta
aos escravos e às camadas camponesas – para alcançar algum tipo de liderança e
margem de ação histórica – abandonar a terra e o convívio da sociedade dominante para
viver à margem, no banditismo, criando suas próprias normas no interior de suas
107
SAHLINS, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2006.
108
ELIAS. A sociedade... op. cit. pp. 50.
59
109
LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 27.
60
110
ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
111
Id. Ibid. pp. 20.
112
Id. Ibid. pp. 27
61
Assim, a relação entre senhor e escravo também seria marcada por diferenciais
de poder fundados não na cor da pele, mas em suas funções, em quem são os
estabelecidos e quem são os outsiders. “Todos os grupos que se distinguiam dos demais
por sua posição e suas funções sociais tornavam-se hereditários, sendo, em princípio,
ainda que nem sempre na prática, inacessíveis aos que não nasciam no seu seio [do
grupo estabelecido]”. 114
Deste modo, podemos chegar a duas conclusões parciais sobre os papéis sociais
de cada uma das personagens – mulatos, escravos fugidos e “pessoas poderosas” – que
se apresentam no documento: (1) todas estas personagens só poderiam atuar dentro da
dinâmica de funcionamento da sociedade, isto é, pelo exercício de uma função dentro da
norma estabelecida; (2) Ao fazerem isto reconheciam suas funções hierarquizadas
dentro da norma e assim atribuíam estigmas às diferenças de funções e grupos. Estes
estigmas eram cada vez mais acentuados na medida em que crescia a tensão por poder
entre os grupos.
Por exemplo, os escravos podem escolher fugir e viver fora da norma, mas só
vão poder interferir na norma à medida em que a aceitam e atuam nela e sobre ela. O
banditismo, a quadrilha, é o não ser. Mas, quando se reconhece o sistema de relações e
se age no interior dele, mesmo que em uma posição inferior, está aberto o caminho da
transformação, das trocas e diferenciações. O caminho da individuação. Este caminho
também leva a uma resposta dos grupos estabelecidos em posições superiores de poder,
à medida que reforçam neles um sentimento de coesão interna e formação de uma
moral, para a proteção de sua posição privilegiada, que estigmatize o outro sempre
como inferior e, cada vez mais, atribuindo a características físicas e morais, diferenças
que são primordialmente sociais.
113
Id. Ibid. pp. 46.
114
Id. Ibid. pp. 47.
62
Cabo Verde do século XVI – assim como todas as sociedades humanas – está
repleto de tensões sociais e lutas por poder. Nestas tensões aparecem indivíduos atuando
junto com outros indivíduos com que se relacionam e formam grupos contra outros
grupos de indivíduos. Não nos foi possível, desta vez, identificar as assinaturas e
perseguir as trajetórias dos mulatos que assinaram a carta de 1546, mas acreditamos que
este é um caminho possível para observarmos, na prática, as imbricadas relações sociais
presentes no processo de expansão portuguesa da época moderna.
Considerações finais
A primeira elite de Cabo Verde era, sobretudo de origem reinol, branca, e com
estreitas ligações com a corte, em Lisboa. Portanto, gozavam de influência política
razoável para defender seus interesses como principais agentes do resgate de cativos na
Senegâmbia.
Capítulo III
Guiné justamente pela associação comercial entre determinados povos e, ou, elites
locais africanas com os europeus.
Para apresentar o cenário geral da formação do circuito atlântico de tráfico de
escravos e o papel de Cabo Verde neste mesmo processo, este capítulo será dividido da
seguinte maneira: o primeiro tópico fará uma breve apresentação da escravidão na
África antes da chegada dos europeus e da demanda das rotas terrestres para abastecer
de cativos o mundo islâmico, a chamada rota das caravanas. O segundo tópico, tratará
da demanda europeia por cativos demonstrando a importância do estabelecimento
português em Cabo Verde como entreposto comercial e ponto de concentração e
redistribuição de cativos para a Península Ibérica, num primeiro momento, e para a
colonização da América, logo após. Por último, discutiremos a procura americana por
escravos enquanto Cabo Verde foi sua principal fonte de abastecimento. Este trabalho
tem seu limite na medida em Cabo Verde deixa de ser protagonista do tráfico no
Atlântico na medida em que emergem o Brasil e os empreendimentos coloniais ingleses,
franceses e holandeses no Caribe.
115
MEILLASSOUX, Claude. Anthropologie de l’esclavage: le ventre de fer et d’argent. Paris: Presses
Universitaires de France, 1996.
65
também o era comércio de escravos. Trabalhos como o de John Fage serviram para
afirmar esta última ideia.116
John Thornton sustenta que principalmente os fatos ocorridos antes de 1680 – ou
seja, o próprio contato e funcionamento do trato dos portugueses e cabo-verdianos nos
rios da Guiné – o que reforça a posição de Fage. Segundo Thornton, a escravidão era
amplamente difundida na África e o comércio atlântico deve ser entendido como
resultado desta escravidão interna. Ele também salienta que, para entender corretamente
o papel da instituição escravidão na África, é preciso perceber que as estruturas sociais
africanas imprimiram à sua escravidão um caráter totalmente distinto do significado que
esta instituição adquiriu na Europa e na América modernas.
Assim, a escravidão não deve ser entendida como um impacto ou imposição externa
a África, mas como algo desenvolvido e encorajado de forma racional pelas sociedades
africanas que participaram do tráfico de cativos. A escravidão africana diferia do
modelo escravista que vigorou na Europa e na América fundamentalmente por se basear
em princípios e sistemas legais totalmente distintos. Na África atlântica os escravos
eram a única forma de propriedade geradora de rendimentos. Como nos sistemas legais
africanos, diferentemente da Europa, a propriedade privada da terra não era a principal
fonte de renda e lucro, por ser esta uma propriedade coletiva, o escravo era a única
propriedade produtiva. Praticamente todas as sociedades agrícolas da África Ocidental
dependiam da escravidão para sua subsistência.
Outro aspecto importante da escravidão africana diz respeito à configuração política
dos reinos locais. Na costa da Guiné, por exemplo, tanto nos reinos islâmicos, quanto
nas linhagens matrilineares, o poder real só conseguia se afirmar sobre as numerosas
descendências reais e complexas redes de parentelas que disputavam o poder apoiando-
se em exércitos de cativos leais. Não raro, o chefe da guarda real, o líder dos escravos
decidia a sucessão para um partido da nobreza ou para o outro. Um caso destes foi
registrado entre os cassangas do rio Casamansa por André Álvares de Almada, em finais
do século XVI:
É costume desta terra que o Rei que entrar no reinado, quando está vago,
seja eleito pelo capitão dos escravos do Rei passado, que ficam sendo da
coroa. E o eleger não é por voto, nem mais cerimônias que aquele a quem o
capitão der obediência que seja Rei, há de ser pessoa que toque à casa real,
irmão, filhos de irmão, filhos do Rei. E o posto que haja muitos herdeiros e
haja mais velho a quem de direito pertença o Reino, é o Rei aquele que
elege o capitão; alguns entram por força das armas. Estes que assim entram
116
FAGE, John D. História da África. Lisboa: Edições 70, 2010.
66
se metem logo nos Paços Reais, e os que entram em paz são obedecidos por
todos.”
Logo, como podemos perceber no relato acima, por vezes os escravos, por não
estarem incluídos nas relações sociais de parentesco envolvidas na sucessão,
desempenhavam um papel de destaque na vida política local, sendo o fiel da balança
que permitia a paz e a continuidade nos reinos costeiros em momentos de transição.
Este papel de destaque certamente também era desempenhado durante os reinados,
sendo os cativos um exercito leal somente ao seu chefe e senhor.
Aliás, este é um aspecto comum às sociedades africana e americana. Por ser o
cativo destituído de suas raízes, de seu pertencimento social, por se tornar propriedade
de seu senhor, o escravo permitia ao seu senhor dispor de grande poder político e status
social, por não depender exclusivamente das suas alianças e parentelas. Claro que, na
mesma medida que um escravo armado fortalecia a posição de uma determinada casa, o
simples fato de carregar armas e defender seu senhor dava ao cativo melhores condições
de negociar e viver no cativeiro.
Segundo Philip Curtin, muitas sociedades da Senegâmbia se dividiam entre
homens livres, castas profissionais e escravos. Manolo Florentino117 afirma que por ser
a escravidão uma estrutura por si só contraditória, já que o escravo é ao mesmo tempo
propriedade e ser humano, esta contradição só pode ser resolvida no plano da ideologia.
Sobre isto, ele identifica, na África Ocidental, duas grandes linguagens do cativeiro com
as seguintes características:
Características da primeira linguagem, que predominava nas regiões islamizadas:
a. Religião como principal fonte de legitimação da escravatura. Não ser
muçulmano tornava os indivíduos passíveis de escravização.
b. Grande parte dos postos da administração estatal era ocupada por cativos,
embora o número destes fosse pequeno em comparação com os escravos que
trabalhavam na agricultura.
c. Escravas podiam se tornar esposas e concubinas. Assim, os filhos destas com
os senhores seriam livres.
d. A emancipação existia como possibilidade concreta e se realizava a partir de
um ato formal do amo.
117
FLORENTINO, Manolo. “Aspectos do tráfico negreiro na África ocidental (1500-1800)”. In:
GOUVÊA, Fátima & FRAGOSO, João. O Brasil Colonial, vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
no prelo.
67
Desert Edge 5%
Retention
Mortality 20%
118
Fonte: MANNING, Patrick. Slavery and African Life: Occidental, Oriental, and African Slave
Trades. New York, Cambridge University Press, 1990.
69
119
Ver MATOS, A. T. (Org.). Nova história da expansão portuguesa — a colonização atlântica. Vol.
III, t. I e II. Lisboa: Estampa, 2005. O Senhorio marítimo foi concedido ao primeiro Duque de Viseu, o
Infante D. Henrique, pelo rei D. João I, seu pai. Quando da ascensão de D. Manoel I ao trono, em 1495, o
senhorio marítimo foi incorporado à casa régia. D. Manoel era filho de D. Fernando, segundo Duque de
Viseu. Voltaremos a este assunto mais adiante.
120
Vizinho é o termo utilizado na documentação coeva para designar o morador com plenos direitos
políticos em cada localidade. Sendo assim, um vizinho de Cabo Verde é aquele que goza de todos os
privilégios concedidos pela monarquia ao habitante do arquipélago.
121
CARREIRA, António, Cabo Verde: formação e extinção de uma sociedade escravocrata (1460-
1878). Praia: IPC, 2000; SENNA BARCELOS, Christiano José. Subsídios para a História de Cabo
Verde e Guiné, I, pp. 21. Tipografia da Academia Real de Sciencias de Lisboa, 1899; Brásio, A.
Monumenta... op.cit.
70
Costa africana foi limitado ao uso de mercadorias produzidas nas ilhas, incentivando
que o tráfico de cativos servisse para a real ocupação do território das ilhas. 122
Paralelamente, a Coroa portuguesa costurou no Tratado de Tordesilhas um
acordo com Castela sobre o direito exclusivo dos portugueses de explorar a Costa da
África. Ao mesmo tempo, Portugal reservava à Coroa a exploração do trato na fortaleza
de Arguim, concedia aos vizinhos de Cabo Verde o comércio desde ali até a Serra Leoa
e arrendava o direito de explorar a Costa da Pimenta em diante rumo ao sul a grandes
comerciantes lisboetas. Nenhum navio deveria se dirigir à Costa africana sem a
autorização expressa da Coroa portuguesa.
Assim, estava reservado aos colonos de Cabo Verde um importante papel no
comércio com a África. Uma vez que a Carta de privilégios lhes concedia o direito de
resgatar na Guiné, os cabo-verdianos podiam agir como intermediários na compra e
exportação de cativos africanos. Este direito contribuiu para que os homens instalados
em Cabo Verde se estabelecessem como únicos representantes da monarquia portuguesa
entre o Cabo Branco e a Serra Leoa. Santiago era a sede do Bispado desde 1532 e desde
muito antes disso se apresentava como ponto culminante de diversas redes comerciais
que se espalhavam pela Guiné.
No capítulo anterior vimos como se formou em Cabo Verde uma sociedade
hierarquizada, extremamente católica e pautada na mesma lógica de Antigo Regime em
vigor em Portugal, mas em que no topo da pirâmide social, ou seja, do poder local
estavam proprietários rurais traficantes de escravos. Homens que produziam panos de
algodão, milho, criavam cavalos, com o único objetivo de armar navios para comerciar
no continente africano próximo. Estes homens eram, na maior parte das vezes, oriundos
da pequena nobreza a serviço da Casa ducal e, ou, pessoas que chegaram às ilhas para
cumprir algum cargo administrativo e se deixaram ficar envolvendo-se no lucrativo
comércio da região.
Ora, se Cabo Verde pôde se viabilizar como espaço colonial e ponto de apoio e
viragem de pessoas, navios e capitais pelo Oceano Atlântico, foi graças ao privilégio
concedido aos seus moradores e, logicamente, à interdição deste mesmo direito a outros
comerciantes.
O privilégio do Resgate da Guiné permitiu a elite cabo-verdiana transformar o
arquipélago no principal entreposto de escravos do Atlântico durante o século XVI.
122
BRÁSIO. Monumenta, 2ª série, I. Doc. nº 67.
71
123
Sobre este assunto, ver: RIVERA, Germán Peralta. El comercio negrero em América Latina, 1595-
1640. Lima: Editorial Universitaria, 2005. Ver também: ALBERTO, Solange .... [et al.]; compiladores,
VELEZ, Diana Bonnett... [et al.]. La Nueva Granada Colonial. Bogotá: Uniandes; CESO, 2005.
124
Esteios, apoios.
125
BRÁSIO, Monumenta. Op cit. Vol 2. Doc. Nº 14. Pág. 38.
126
ELTIS, D.; RICHARDSON, D.; BERHENS, S.; & FLORENTINO, M. The Trans-Atlantic Slave
Trade Database. (www.slavevoyages.com) acessado pela última vez em 13 de março de 2010. Nos
referiremos a esta fonte a partir de agora apenas como TSTD.
72
Tabela 3: Fluxo do tráfico atlântico de escravos embarcados no século XVI de acordo com a região
de origem
Sudeste
Costa Baía África Centro- africano e
Senegâmbia e Serra Costa da Costa dos
do de Ocidental e ilhas do Totais
Bacia Atlântica Leoa Pimenta Escravos
Ouro Biafra St. Helena Oceano
Índico
1501-
57.184 0 0 0 0 2.080 4.862 0 64.126
1550
1551-
90.098 1.405 2.482 0 0 6.379 113.016 0 213.380
1600
% 53 100
Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. (www.slavevoyages.com) acessado pela última vez
em 13 de março de 2010.
127
“Relação de Francisco de Andrade sobre as ilhas de Cabo Verde”. In: BRÁSIO, A. Monumenta... Op.
Cit. 2ª série, vol III, doc 42, pp. 97-107.
128
TORRÃO, Maria Manuel Ferraz; TEIXEIRA, André. “Negócios de um florentino em Cabo Verde:
descrições e reflexões sobre a sociedade e o tráfico em finais do século XVI”. (p. 9). In: Actas do
Congresso Internacional ―Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades‖. Lisboa, 2 a 5
de Novembro de 2005.
74
Tabela 4: Fluxo do tráfico atlântico de escravos embarcados no século XVII de acordo com a região
de origem
Sudeste
África
Senegâmbia africano e
Serra Costa do Costa Baía do Baía de Centro-
e Bacia ilhas do Totais
Leoa Barlavento do Ouro Benim Biafra Ocidental e
Atlântica Oceano
St. Helena
Índico
1601-
54.222 1.372 0 2.497 9.609 36.461 563.388 345 667.893
1650
1651-
81.882 5.471 1.350 106.182 260.204 149.860 571.418 31.370 1.207.738
1700
Totais 283.386 8.248 3.832 108.679 269.813 194.780 1.252.684 31.715 2.153.137
129
Para algumas viagens registradas no TSTD, é possível aferir o tempo de viagem comparando a data de
saída do navio com a data de chegada. O tempo de uma viagem de Cabo Verde a Cartagena, por exemplo,
variava de 40 a 42 dias de translado.
75
Estes dados corroboram nossa opinião de que, durante o século XVI, Cabo
Verde despontou como principal entreposto de escravos do Atlântico, principalmente
por que a região da Senegâmbia e o porto de Santiago eram responsáveis sozinhos por
53% dos escravos exportados por todas as regiões da África.
Durante o século seguinte as posições se inverteriam e Cabo Verde e a
Senegâmbia perdem importância proporcionalmente ao avanço do volume de tráfico da
África Centro-Ocidental. Podemos notar na tabela acima como o volume de tráfico da
África Centro-Ocidental cresce ao longo da segunda metade do XVI para então se
afirmar como a maior região produtora de escravos no século seguinte. O aumento do
volume de resgate de cativos da África Centro-Ocidental coincide com a decadência de
Cabo Verde enquanto principal entreposto de escravos do Atlântico e a ascensão de São
Tomé a esta mesma posição. Isto se deve, em parte, à reconfiguração do tráfico
Atlântico e de mudanças nos destinos dos navios negreiros portugueses.
Tais mudanças podem ser melhor entendidas comparando os dados da oferta de
escravos africanos, de acordo com a região de procedência, com os dados da demanda
de cativos na América, de acordo com as regiões de destino dos negros no Novo
Mundo.
Entretanto, cabe ressaltar, como demonstra o gráfico abaixo, que o tráfico de
escravos na Senegâmbia manteve estáveis os índices de exportação de cativos. O que
fez pender a balança a favor da África Centro-Ocidental como principal fornecedora de
cativos para a América foi a sua densidade demográfica maior e, sobretudo, a
emergência da América portuguesa como o maior mercado importador de cativos.
Gráfico 1: Comparação das exportações das áreas exploradas principalmente a partir de Cabo
Verde e principalmente a partir de São Tomé, nos séculos XVI e XVII
600.000
500.000
400.000
300.000 Senegâmbia e
Bacia Atlântica
200.000
100.000 África Centro-
Ocidental
0
76
b. A procura americana
130
Ivana Elbl estima em 156 mil o número de escravos exportados das costas africanas para a Península
Ibérica e para as ilhas atlânticas entre 1441 e 1521. Philip Curtin sugere que estes valores cheguem
apenas até 78 mil escravos até 1525. Entretanto, poucas foram as viagens para estas localidades que
apareceram em nossa pesquisa no TSTD para viagens entre 1514 e 1613. ELBL, I. “The volume of the
early atlantic slave trade, 1450–1521”. The Journal of African History, 38, pp. 31-75, Cambridge
University Press, 3/1997; CURTIN, P. The atlantic slave trade: a census. Madison: The University of
Wisconsin Press, 1969.
77
Tabela 5: Fluxo do tráfico de escravos embarcados nos séculos XVI e XVII de acordo com a região
de destino
América
Caribe Caribe América Caribe América
Europa do Brasil África Totais
Inglês Francês Holandesa Dinamarquês espanhola
Norte
1501-
637 0 0 0 0 0 63.489 0 0 64.126
1550
% 1 0 0 0 0 0 99 0 0 100
1551-
266 0 0 0 0 0 178.428 34.686 0 213.380
1600
1601-
120 141 34.726 628 0 0 254.362 377.649 267 667.893
1650
1651-
3.519 19.815 370.391 49.728 145.980 22.610 58.939 532.712 4.045 1.207.738
1700
Totais 4.542 19.956 405.117 50.356 145.980 22.610 555.218 945.047 4.312 2.153.137
Fonte: Eltis, David; Richardson, David; Berhens, Stephen; Florentino, Manolo. The trans-atlantic slave
trade database. http://www.slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces
instalavam eram responsáveis diretos pela empresa mercantil que promoveu uma das
maiores transformações econômica, demográfica, e cultural da história da humanidade,
a fundação da América colonial através da migração forçada de milhares de vidas
africanas. No meio disto tudo estava a sociedade cabo-verdiana e seus atores sociais.
131
Mapa III – O espaço econômico Cabo Verde – Costa da Guiné e o comércio intercontinental
131
FERRAZ TORRÃO, Maria Manuel. “Rotas comerciais, agentes econômicos, meios de pagamento”.
In: MADEIRA SANTOS, Maria Emília (Coord.). História Geral de Cabo Verde. Volume II. Lisboa;
Praia: IICT; INCCV, 1995. p. 95.
80
Soy informado que son tan señores desta costa de Guinea, y destas islas,
franceses é ingleses que non son señores los naturales de estar em sus casas,
segun los muchus ecesos que aqui hacen; (...) por donde conviene que
vuostra Majestad sea más señor della, com fuerzas de poderla defender á
132
cualquiera enemigo que quisiese poblalla.
132
BRÁSIO. A. Monumenta Missionária Africana. 2ª Série. Vol. III. Doc. 41. pp. 94. Lisboa: Agencia
Geral do Ultramar, 1964.
133
Os Reis de Portugal do século XVI intitulavam-se “Rei de Portugal e Algarves d‟Aquém e d‟Além
Mar em África, senhor da Guiné...”.
81
efetuadas no porto da Ribeira Grande. Passando os navios ao largo, a cidade não tinha
como arrecadar nem mesmo o suficiente para as suas ordinárias (despesas), que vinham
do erário régio arrecadado na feitoria e alfândega de Cabo Verde.
Além destes fatores, a prevalência de Cacheu, no rio São Domingos, na
Senegâmbia, enquanto feitoria portuguesa responsável pelo trato da Guiné levou a que
mesmo os armadores da ilha passassem a partir diretamente da costa para a Europa ou
América, mudando o caráter de sucessão dos bens fundiários, contribuindo assim,
decisivamente, para o declínio da sociedade mercantil e urbana das ilhas. 134
Como já apontamos anteriormente, surgiu, no século XVI, a vinculação das
135
terras nas ilhas. Muitos foram os casos de morgadios ou capelas constituídas por
moradores ao longo deste período e por todo o século seguinte. A vinculação era uma
forma de manutenção do patrimônio familiar nas mãos de um único herdeiro
administrador (morgado), que ficava, então, encarregado de cumprir as determinações
estipuladas no ato de sua instituição. Há diferenças no caráter de morgadios e capelas,
entretanto o que nos interessa aqui são duas características comuns a essas instituições.
Primeiro, o administrador ficava responsável pela manutenção do conjunto de bens
vinculado, podendo sempre aumentá-lo, mas nunca subtraí-lo de qualquer parte. Depois,
por estabelecer um conjunto de bens inalienável, a vinculação retira do mercado uma
parcela considerável de terras.
A vinculação como artifício jurídico para a proteção de um patrimônio tem
raízes na sociedade medieval tardia portuguesa e não obedece a uma lógica produtiva de
mercado. Pode funcionar como exemplo da economia de Antigo Regime, onde a lógica
de mercado era frequentemente subvertida em prol de elementos estratégicos familiares,
ideológico-religiosos ou de caráter localista de proteção da república, da ordem
estabelecida. A adoção de práticas como a vinculação em Cabo Verde foi absolutamente
contraditória se analisarmos sua utilização de forma teleológica a partir de um ponto de
vista contemporâneo. O estrangulamento produtivo das ilhas provocado pela retirada de
134
Maria Manuel Ferraz Torrão faz minuciosa abordagem da “viragem” do tráfico de Cabo Verde para a
Guiné. FERRAZ TORRÃO, Maria Manuel. “Rotas comerciais, agentes econômicos, meios de
pagamento”. In: MADEIRA SANTOS, Maria Emília (Coord.). História Geral de Cabo Verde. Volume
II. Lisboa; Praia: IICT; INCCV, 1995.
135
Ambos os tipos de vinculação tinham como objetivo a manutenção da propriedade e a reprodução da
família, através de seu conjunto de bens, seu nome e sua honra. Sobre este último aspecto, a diferença
entre morgados e capelas é significativa. As capelas eram instituídas com encargos e obrigações para com
a homenagem às almas do instituidor e seus familiares, gerando onerosas despesas não reprodutivas ao
patrimônio vinculado. Correia e Silva aponta as missas, pensões, esmolas e homenagens aos proprietários
rurais como um fator contributivo para o encarecimento das mercadorias das ilhas. CORREIA E SILVA,
A. “Cabo Verde e a geopolítica...” op. cit. pp. 9.
82
136
Resolução com força de Lei.
83
Neste trabalho nos propomos a estudar Cabo Verde a partir de dois conceitos
chave, são eles o Mundo Atlântico137 e o Império Ultramarino português.138
Acreditamos que tanto um conceito quanto outro são significativos para nos ajudar a
explicar a ocupação das ilhas pelos portugueses. No entanto, para o período e a natureza
do problema que pesquisamos – escravidão e tráfico –, o conceito de mundo Atlântico
pode nos ser muito mais útil para entender a colônia em questão, apesar de também
termos em conta a relação de Cabo Verde com a parte oriental do império português,
sendo importante no apoio para a navegação da carreira das índias, que traziam para a
região os panos orientais tão valorizados no comércio com a África Ocidental. Portanto,
nossa preocupação é muito mais sobre as relações mercantis e culturais que ligavam
cada uma das pontas do tráfico de escravos para formar o chamado Mundo Atlântico.
Nesta parte do hemisfério, o conceito de império português está muito mais
condicionado a um conjunto de práticas e concepções de mundo levadas a cabo pelos
navegadores e comerciantes portugueses do que por um efetivo controle estatal das
ações.
Até aqui, concentramos nossos esforços de análise, principalmente, em uma das
pontas deste mundo atlântico, a África, mas como se organizou a empresa colonial do
outro lado do oceano, na América? Como e onde se estabeleceram as colônias ibéricas
na América com as quais dialogavam Cabo Verde e outras praças africanas? Qual era a
demanda por escravos nestas novas colônias, o que e como produziam? Ou seja, como
se formou o mundo escravista colonial nas duas margens do Atlântico a partir dos
fluxos migratórios e mercantis que os conectavam. São algumas das perguntas que
procuraremos responder aqui, mesmo que provisoriamente.
David Wheat, em sua recente tese de doutorado intitulada The afro-portuguese
maritime world and the foundations of spanish caribbean society, afirma que, no
século XVI e princípios do XVII, o Caribe espanhol foi uma extensão do mundo luso-
africano, notadamente no período da União Ibérica, 1580-1640. Esta relação dava-se em
137
Sobre o mundo Atlântico ver, por exemplo: LOVEJOY, P. A escravidão na África: uma história de
suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; GILROY, P. O Atlântico negro:
modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: UCAM/CEAA, 2001;
THORNTON, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004; entre outros autores que dedicaram suas obras às diferentes conexões entre a Europa, a
África e a América que transformaram o mundo a partir do século XVI.
138
Sobre este conceito, ver BOXER, C. R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
84
larga medida em função do tráfico de escravos para a região, mesmo antes do período
dos Asientos portugueses, 1595-1640. E embora os laços que ligavam Portugal ao
Caribe espanhol tenham diminuído após a Restauração do reino de Portugal em 1640,
traficantes e os escravos da primeira grande onda de imigrantes forçados da África para
a América já haviam se tornado agentes decisivos para a expansão e consolidação da
Era de Ouro das colônias caribenhas espanholas. 139
Ao longo do século XVI, os portos de Veracruz, no Vice-Reino da Nova
Espanha, e Cartagena de las Índias, no Vice-reinado de Nova Granada, tornaram-se os
dois principais portos de entrada de escravos africanos na América espanhola. Ao passo
que a mão de obra indígena diminuía por conta das constantes epidemias que
devastaram a população ameríndia logo no primeiro século de contato com o europeu, e
também teve sua escravização proibida pela coroa espanhola em meados do XVI, ainda
que a lei não fosse respeitada por todos, a importação de mão de obra africana crescia
no Caribe, através da imigração forçada e do trabalho compulsório, ou seja, da
montagem do sistema trans-atlântico de tráfico de escravos.
A tese de Wheat é de fundamental ajuda para o entendimento deste momento da
colonização espanhola na América. Seu trabalho é dividido em quatro capítulos, dos
quais os três primeiros nos interessam diretamente. Cada um deles trata
respectivamente: do mundo marítimo português e o Caribe espanhol; do tráfico
transatlântico para Cartagena entre 1570 e 1640; e do mundo rural das colônias,
analisando as complexas relações entre escravos e colonos que formavam o
campesinato colonial.
Como já demonstramos anteriormente o sistema atlântico do qual Cabo Verde
fazia parte serviu para alimentar as colônias americanas em formação de mão de obra,
no entanto o estudo de Wheat nos mostra como este processo serviu também para
alimentar a América de agentes colonizadores, sejam eles marujos, pilotos, capitães,
negociantes, escravos e libertos que estavam em constante movimento de um lado a
outro do oceano.
As redes interpessoais transatlânticas de comércio estabelecidas por estes
agentes conectavam e formavam o chamado mundo português desde de Luanda até as
Filipinas, passando pelo porto de Veracruz, com bifurcação para as minas de prata do
139
WHEAT, D. The afro-portuguese maritime world and the foundations of spanish caribbean
society, 1570-1640. Dissertation submitted to the Faculty of the Graduate School of Vanderbilt
University in partial fulfillment of the requeriments for the degree in Doctor of Philosophy of History.
Nashvile: agosto de 2009. P. 9.
85
Peru via Cartagena.140 Os homens envolvidos no tráfico traziam para estas áreas, além
de suas conexões mercantis, todo um conhecimento sobre a interação social com os
africanos. Os portugueses desenvolveram no atlântico o idioma da escravidão que
implementaram primeiro no Caribe espanhol e depois na América portuguesa. Muitas
pessoas circulavam entre tripulantes de navios negreiros, contrabandistas e colonos
como representantes comerciais e profissionais liberais, como ourives, por exemplo.
O português Jorge Rodriguez Lisboa navegou diversas vezes para Cartagena,
onde residiu por algum tempo, viajou também para a Nova Espanha e para a ilha de
Cuba, tanto a partir de Cabo Verde quanto de Angola com navios carregados de
escravos, conforme o próprio afirmou em seu pedido de renovação de licença para
navegar para as o Caribe espanhol. Em 1608, de volta a Europa, Lisboa, formou uma
parceria com seu tio Simon Rodrigues de Lisboa para traficar 132 escravos da Guiné
para Cartagena e, em 1611, Jorge Rodrigues recebeu autorização da coroa espanhola
para permanecer no Caribe por mais um ano, graças à recomendação do presidente da
Audiencia do Panamá. 141 Domingo Diaz chegou a Cartagena em um negreiro vindo de
Cabo Verde por volta de 1600, serviu como soldado por aproximadamente treze anos
até montar um pequeno negócio de transporte de roupas e alimentos entre Cartagena e
Maracaibo. Outro navegante, Ignácio de Acosta, chegou em Cartagena vindo de São
Tomé num navio negreiro aos 19 anos em 1627 e três anos mais tarde trabalhava como
ourives na cidade. 142
Ao analisarmos conjuntamente estes fragmentos de histórias pessoais podemos
vislumbrar de que maneira os homens portugueses de diferentes categorias sociais
entravam na sociedade caribenha espanhola carregando sua experiência no mundo
africano através de sua participação no trafico atlântico de escravos.
Estes homens foram diretamente responsáveis pelo incremento espantoso do
tráfico a partir da década de 1570, como mostra a tabela abaixo:
A presença portuguesa foi tão grande quanto diversificada no Caribe espanhol.
Onde havia assentamentos, havia necessidade de cativos. Onde se comprava escravos, lá
estava um traficante português ou luso-africano. A tabela VIII demonstra a diversidade
de portos onde os escravos traficados entre 1514 e 1613 foram desembarcados. Nela,
140
VENTURA, M. da G. A. Portugueses no Peru no tempo da União Ibérica: mobilidade,
cumplicidades e vivências. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.
141
AGI-SF R. 2, nº 84. Consulta sobre “prorrogacion a Jorge Rodrigues Lisboa português por dos anos la
liçençia que tiene para estar em las Yndias”. Madri, 26 de março de 1611.
142
WHEAT, D. Op. cit. pp. 38 e 39.
86
Tabela VII – Relação completa dos destinos dos navios negreiros entre 1514 e 1613
Nº de
Nº de Nº de escravos
Destinos % escravos % %
viagens desembarcados
embarcados
Bahia 3 0,43 528 0,4 480 0,45
Borburata/VEN 8 1,15 824 0,6 670 0,63
Caibarien/CUB 1 0,15 82 0,05 58 0,05
Campeche/MEX 13 1,87 3.194 2,2 2.396 2,3
Caracas 2 0,28 604 0,4 429 0,4
Cartagena 242 34,9 57.397 39,1 41.313 39,1
Cienfuegos 1 0,15 40 0,03 18 0,01
Cuba 2 0,28 162 0,11 115 0,1
Havana 8 1,15 1.438 1 987 1
Hispaniola 1 0,15 300 0,2 312 0,3
Jamaica 16 2,3 3.246 2,2 2.281 2,16
La Guiara 3 0,43 749 0,5 531 0,50
Lisboa 1 0,15 400 0,3 284 0,3
Margarita 4 0,57 703 0,5 502 0,5
Middelburg/HOL 1 0,15 183 0,12 130 0,15
Monte Christi 3 0,43 300 0,2 213 0,20
Nova Espanha 7 1 1.553 1 1.105 1
Pernambuco 4 0,57 785 0,53 702 0,7
Puerto Rico 9 1,3 1.168 0,8 833 0,8
Rio de Janeiro 2 0,28 334 0,23 287 0,3
Rio de la Hacha 9 1,3 974 0,7 684 0,64
San Juan 1 0,15 201 0,13 175 0,16
Santa Marta 1 0,15 256 0,2 163 0,15
Santo Domingo 17 2,45 3.623 2,5 2.677 2,53
Sevilha 1 0,15 120 0,1 85 0,08
Trinidad 1 0,15 544 0,4 470 0,44
Venezuela 2 0,28 429 0,3 304 0,3
Veracruz 79 11,38 19.025 13 13.835 13,1
Vigo 1 0,15 237 0,2 168 0,15
Sem referência
251 36,15 47.041 32 33.339 31,5
de destino
Total 694 100 146.523 100 105.505 100
Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. (www.slavevoyages.com) acessado pela última vez
em 13 de março de 2010.
87
Com estas tabelas, pretendemos demonstrar que as principais áreas que recebiam
escravos eram o México – através de Veracruz – e Cartagena, por onde entravam os
escravos para as plantações de cana-de-açúcar caribenhas e para as minas do Peru. No
entanto, outras áreas como Cuba, Santo Domingo, Margarita, Puerto Rico, Rio de la
Hacha, San Juan e Santa Marta, também contribuíram para o incrível crescimento do
tráfico nas últimas décadas do século XVI e inicio do XVII.
A demanda por escravos na América serviu para suprir as plantations de açúcar
recém criadas e de produção ainda incipiente da Nova Granada e da Nova Espanha e, ao
mesmo tempo, criar novos valores de diferenciação social. Com o advento da sociedade
escravista colonial, a posse de cativos tornou-se fator distintivo de honra e poder.
Muitos senhores de Cartagena e da Cidade do México possuíam escravos armados para
servi-los como um exército particular.
Os negros vindos da Senegâmbia tinham grande valor para este serviço, pois
muitos eram frutos da guerra civil entre os Jalofos e conheciam a arte de combater a
cavalo. Segundo María Elena Martinez, o alcaide del crimen da Audiencia Cidade do
México no início do século XVII, Lopez de Azoca se queixou ao Conselho das Índias
de que muitos indivíduos de status social menor continuamente compravam ofícios e
postos no governo local para obterem permissão de andar na companhia de escravos
armados. 143 Ter escravos reforçava posições de poder.
143
MARTINEZ, M. E. “The black blood of New Spain: Limpieza de Sangre, racial violence, and
gendered power in early colonial Mexico”. The William and Mary Quarterly, Third Series, Vol. 61,
No. 3 (Jul., 2004), pp. 479-520.
88
Por outro lado, da mesma forma que serviam em armas para seus senhores,
legitimando-os, quando estes mesmos escravos se rebelavam utilizavam sua experiência
de vida contra a sua opressão. James Sweet, em seu livro sobre como os escravos
recriaram a África nas Américas, ressalta que “na década de 40 do século XVI, na zona
das Caraíbas espanholas, comunidades Uolofes fugidos combateram com seus antigos
senhores recorrendo aos mesmos conhecimentos de cavalaria que haviam aprendido nas
144
guerras da Senegâmbia”. Martinez também relata que as encostas e planícies entre
Orizaba e Veracruz – uma região de produção de açúcar na Nova Espanha – foram lugar
de distúrbios crônicos itinerantes por partes grupos de escravos fugidos que
periodicamente invadiam cidades e plantações. Ela também chama a atenção para vários
pequenos assentamentos quilombolas nesta região.
Estes assentamentos quilombolas reforçam a tese que Wheat sustenta para o
mundo rural no caribe espanhol retratado no terceiro capitulo de seu trabalho, de que os
negros foram os principais agentes da colonização espanhola no Caribe, atuando,
sobretudo, na agricultura alimentícia para abastecer as cidades do Novo Mundo. Para
ele,
a forte dependência do império espanhol pela agricultura dos trabalhadores
negros para sustentar as cidades portuárias principais, põe em cheque a
noção de que o „homem branco‟ era o principal agente da colonização
européia das Américas. O trabalho agrícola, em Cartagena, Havana, Santo
Domingo, Cidade do Panamá, Jamaica e Porto Rico era associado com as
populações negras rurais; diversas ocupações rurais nessas áreas foram
geralmente associados à produção de culturas pecuária e alimentares, ao
contrário das culturas de exportação como o açúcar. Com modelos de
plantação de açúcar em mente, os historiadores da escravidão colonial nas
Américas, associaram em grande medida o trabalho escravo nas zonas
rurais, com o isolamento, a ignorância e a imobilidade. No entanto, tais
caracterizações são tão imprecisas para africano e populações crioulas
rurais do Caribe quanto o eram para o campesinato europeu do início da era
moderna. Ligados aos centros urbanos e ao mundo exterior, por mares, rios,
baías e rotas terrestres, o Caribe rural era um mundo em constante
movimento, apresentando diversas formas de interação social que as elites
urbanas procuravam controlar, geralmente sem sucesso. A proeminência de
pessoas livres de cor entre os proprietários rurais é talvez o marco mais
significativo da, anteriormente subestimada, complexidade do Caribe
145
rural.
144
SWEET, J. Recriar a África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português, 1440-1770.
Lisboa: Edições 70, 2007. p. 113.
145
WHEAT, Op cit. pp. 11 e 12. “The Spanish empire‟s heavy reliance on black agricultural workers to
sustain key port cities calls into question the notion that “white settlers” were necessarily the principal
agents of European colonization of the Americas. Agricultural labor in Cartagena, Havana, Santo
Domingo, Panama City, Jamaica, and Puerto Rico was associated with rural black populations; diverse
rural occupations in these areas were generally associated with the production of food crops and
livestock, as opposed to export crops such as sugar. With sugar plantation models in mind, historians of
slavery in the colonial Americas have largely equated agricultural slave labor in rural areas with isolation,
ignorance, and immobility. Yet such characterizations are as inaccurate for the Caribbean‟s rural African
89
Considerações finais
A partir do que foi apresentado até aqui, podemos concluir que o século XVI
assistiu a um espantoso crescimento do tráfico de escravos trazidos para a América de
diversas regiões africanas como a Senegâmbia, a Costa dos Escravos e a África Centro-
Ocidental.
A posição central de Cabo Verde nesse cenário de expansão do tráfico atlântico
contribuiu em larga medida para a sua afirmação enquanto entreposto comercial de
escravos entre a África, a Europa e a América. Este fato acarretou na formação nas ilhas
de uma elite de proprietários rurais armadores de navios negreiros para alimentar a
demanda cada vez maior por mão de obra que impulsionou a conquista ibérica da
América e a formação de um mundo colonial atlântico em expansão.
Durante este processo, surgiram tanto nas ilhas africanas quanto na América
novas sociedades, híbridas, que combinavam elementos jurídicos e práticas sociais de
Antigo Regime com valores culturais africanos e mestiços que nasceram do esforço e
acomodação dos agentes sociais envolvidos nesta empreitada de colonização. As trocas
mercantis e culturais levadas a cabo durante as enormes migrações populacionais dos
séculos XVI e XVII propiciaram sociedades, de alguma forma, mais abertas do que as
sociedades europeias e proporcionaram a diversos agentes a possibilidade de ascensão
social.
and Afrocreole populations as they were for early modern European peasantries. Linked to urban centers
and the outside world by coastlines, rivers, inlets, and overland routes, the rural Caribbean was a world of
constant movement, featuring diverse forms of social interaction which urban elites sought to control,
usually unsuccessfully. The prominence of free people of color, including African-born ex-slaves, among
rural landowners is perhaps the most significant marker of the rural Caribbean‟s previously under-
estimated complexity”.
90
Conclusão
146
VENTURA, M. da G. A. Portugueses no Peru no tempo da União Ibérica: mobilidade, cumplicidades
e vivências. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.
91
navegar as ilhas do Caribe espanhol. Em 1608, de volta à Europa, formou uma parceria
com seu tio Simon Rodrigues de Lisboa para traficar 132 escravos da Guiné para
Cartagena e, em 1611, Jorge Rodrigues recebeu autorização da coroa espanhola para
permanecer no Caribe por mais um ano, graças à recomendação do presidente da
Audiencia do Panamá.147 Domingo Diaz chegou a Cartagena em um negreiro vindo de
Cabo Verde por volta de 1600, serviu como soldado por aproximadamente treze anos
até montar um pequeno negócio de transporte de roupas e alimentos entre Cartagena e
Maracaibo. Outro navegante, Ignácio de Acosta, chegou a Cartagena vindo de São
Tomé num navio negreiro aos 19 anos em 1627 e três anos mais tarde trabalhava como
ourives na cidade.148
Ao analisarmos conjuntamente estes fragmentos de histórias pessoais podemos
entrever de que maneira os homens portugueses de diferentes categorias sociais
formaram o Atlântico português a partir de suas experiências com o tráfico, a
escravidão, o catolicismo e a monarquia.
A circulação de pessoas ligadas à monarquia portuguesa pelo Atlântico mostra
com as redes sociais mantinham a unidade dessa Talassocracia, se assim podemos
chamar. Isso foi possível devido a sua estrutura social corporativa, que legitima o poder
local, permitindo, muitas das vezes, a mestiçagem.149
Essas redes sociais estavam assentadas, essencialmente, no comércio de escravos
que vinculava a mão-de-obra à área de produção. Porém, as relações que surgem desse
tráfico de homens são muito mais complexas do que o simples abastecimento de força
humana para as lavouras. Os escravos, principalmente nos arquipélagos de Cabo Verde
e São Tomé e Príncipe, acabam fazendo parte do tecido social e muitos deles, libertos
pelo próprio rei, ou seus descendentes, tornaram-se homens de grande proeminência na
comunidade local, poder esse reconhecido pela própria coroa portuguesa.
147
AGI-SF R. 2, nº 84. Consulta sobre “prorrogacion a Jorge Rodrigues Lisboa português por dos anos la
liçençia que tiene para estar em las Yndias”. Madri, 26 de março de 1611.
148
WHEAT, D. The afro-portuguese maritime world and the foundations of spanish caribbean
society, 1570-1640. Dissertation submitted to the Faculty of the Graduate School of Vanderbilt
University in partial fulfillment of the requeriments for the degree in Doctor of Philosophy of History.
Nashvile: agosto de 2009. pp. 38 e 39.
149
Hebe Mattos considera “a legitimidade e a existência prévia da instituição da escravidão no Império
português como condição básica para o processo de constituição de uma sociedade católica e escravista
no Brasil colonial”. MATTOS, Hebe. “A escravidão moderna nos quadros do Império português: o
Antigo Regime em perspectiva atlântica”. In: O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVII), p. 143. A respeito disto, acreditamos que a mesma chave de leitura
pode ser estendida às ilhas atlânticas portuguesas, como Cabo Verde e São Tomé, por exemplo.
92
Bibliografia