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Medicalização da vida: doença, transtornos e saúde mental

Medicalization of life: Disease, Disorders and Mental Health

Medicalización de la vida: Enfermedades, Trastornos y Salud Mental

Nina Isabel Soalheiro


Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/ Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Flavio Sagnori Mota
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Resumo

O artigo aborda o tema da medicalização, partindo de uma contextualização histórica das


concepções de diagnóstico e tratamento do sofrimento mental pela medicina psiquiátrica para
destacar alguns marcos de mudança ao longo do tempo. Retomamos o ideal humanista da
medicina mental e a apropriação da loucura pela razão psiquiátrica para refletir sobre as
sucessivas transformações nos critérios de classificação da psiquiatria e seus efeitos sociais.
Buscando correlações entre passado e presente, procuramos dar evidência ao papel social do
diagnóstico em saúde mental e à multiplicação e difusão das suas categorias – em especial
através do DSM – para refletir sobre uma possível mercantilização do sofrimento psíquico em
um contexto de forte medicalização da sociedade.

Palavras-chave: Medicalização. DSM. Saúde Mental. Psicofármicos.

Abstract

This paper approaches the issue of medicalization, focusing on the historical context of the
politics of diagnosis and treatment of psychiatric medicine and its social effects. We highlight
some milestones of change throughout time: the humanistic origins of mental medicine, the
appropriation of madness by psychiatric reason and the evolution of the classification sys-
tems, especially DSM. Searching for correlations between past and present, the paper gives
evidence to the social role of diagnosis in mental health and the multiplication and dissemina -
tion of psychopathological categories – in particular through the DSM – reflecting on the pos-

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sible commercialization of psychological distress in a context of a strong medicalization pro-
cess of society.
Keywords: Medicalization; DSM; Mental Health; Psychotropics.

Resumen
El artículo aborda el tema de la medicalización, con el enfoque en el contexto histórico de la
política de diagnostico y de tratamiento en la medicina psiquiátrica y sus efectos sociales.
Destacamos algunos hitos de su evolución: los orígenes humanísticos de la medicina mental,
la apropiación de la locura por la razón y la evolución de los sistemas de clasificación psi-
quiátricos, especialmente el DSM. Investigando correlaciones entre el pasado y el presente,
el paper brinda evidencias sobre el rol social del diagnóstico psiquiátrico y de la multiplica-
ción de las categorias psico-patologicas – particularmente el DSM, la propuesta és una refle-
xion con respecto a la posible comercialización del sufrimiento psíquico en el contexto de
fuerte medicalización de la sociedad.
Palabras clave: La Medicalización, DSM, Salud Mental; Psicofármacos.

Introdução usado como referência no contexto


brasileiro de Saúde Mental – ressaltando a
Este artigo aborda o tema da progressiva multiplicação das suas
medicalização no campo da saúde mental, categorias diagnósticas como indicação de
através de uma contextualização histórica uma possível apropriação do sofrimento
das concepções de diagnóstico e psíquico pelo viés da medicalização. Uma
tratamento do sofrimento mental pela discussão voltada para o campo da saúde e
medicina psiquiátrica, destacando o marco saúde mental, no sentido de contribuir para
da apropriação da loucura pela razão uma visão crítica das relações da sociedade
psiquiátrica e seus efeitos sociais. com o sofrimento psíquico ao longo do
Buscamos correlações entre o passado e tempo e a superação de práticas
presente ao resgatar as sucessivas edições medicalizantes.
do Diagnostic and Statistical Manual of O que mobiliza os autores para esta
Mental Disorders (DSM) – manual pesquisa é uma inquietação comum quanto
diagnóstico produzido pela Associação à incidência no campo da saúde mental da
Americana de Psiquiatria (American chamada medicalização da vida, entendida
Psychiatric Association – APA), muito como um processo ativo de tornar

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passíveis de diagnóstico, tratamento e transtornos, naturalizando-os e
prevenção alguns eventos e condições até relacionando-os a males contemporâneos.
então considerados pertinentes e próprios Compartilhamos ainda da
da existência humana. Um fenômeno preocupação de, ao discutirmos a
mobilizado por uma valorização medicalização como um fenômeno
hiperdimensionada na sociedade do saber relacionado a saberes e poderes abusivos,
oriundo e próprio do campo da medicina não deixar de registrar a memória das
psiquiátrica, muitas vezes reificado pelos violências e mortes provocadas pelo
atores envolvidos no campo da Reforma encarceramento de muitas gerações de
Psiquiátrica Brasileira, trazendo pessoas diagnosticadas como doentes
consequências relevantes para o trabalho mentais e tratadas num modelo criado pela
cotidiano. medicina psiquiátrica e sustentado com a
conivência da sociedade (Arbex, 2013).
No ambiente educacional –
Um momento que justificou a indignação
contexto deste trabalho – nunca se ouviu
de Antonin Artaud, quando se dirige à
falar tanto em transtornos de déficit de
psiquiatria do seu tempo, manifestando-se
atenção, cada vez mais precocemente. No
através da sua célebre “Carta aos diretores
campo da saúde mental, a depressão parece
de asilos de loucos”:
nunca ter acometido parcela tão grande da
sociedade, especialmente mulheres. A
Não pensamos em discutir aqui o valor
categoria médica e diagnóstica de
dessa ciência, nem a duvidosa existência
transtorno bipolar, por sua vez, é cada vez das doenças mentais. Porém, para cada
mais usada pelo senso comum. Seja nas cem pretendidas patogenias, onde se

farmácias privadas que se multiplicam nas desencadeia a confusão da matéria e do


espírito, para cada cem classificações,
cidades, seja nas farmácias públicas dentro
onde as mais vagas são também as únicas
do sistema de saúde, nunca se requisitou
utilizáveis, quantas tentativas nobres se
tantos psicofármacos. Além disso, criando contam para conseguir melhor
e propagando notícias ilustradas com compreensão do mundo irreal onde vivem

imagens e dados estatísticos didáticos, a aqueles que vocês encarceraram? (Artaud,


1979, p. 23).
mídia parece veicular a mensagem de que
os transtornos mentais seriam a epidemia
do nosso tempo (Freitas & Amarante, Com todas as dificuldades de
2012; Rabello & Camargo Júnior, 2012). sistematização de sintomatologias
Uma cultura que valoriza supostos psiquiátricas e estabelecimento de

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etiologias neste campo, constatamos um do uso irracional e abusivo de
permanente esforço científico de medicamentos, trazendo-nos questões
evidenciar as psicopatologias como complexas que ultrapassam os limites deste
produtos de alterações fisiológicas e/ou trabalho.
anatômicas. Parte dessa ciência parece vir Interessa-nos aqui contribuir para a
se alinhando com a indústria e a clínica, reflexão no campo da saúde mental sobre
tentando fundamentar efeitos e avalizar uma crescente valorização e
psicofármicos produzidos e hiperdimensionamento na linguagem
comercializados, drogas que trazem corrente e na prática clínica dos manuais
importantes efeitos colaterais: para diagnóstico, que muitas vezes tornam-
reducionismo biológico, supervalorização se o único instrumento para a construção
de processos químicos, medicalização das dos critérios de diagnósticos e tratamento.
subjetividades. Através do exame das sucessivas edições
Uma aliança que produz pílulas com do DSM, procuramos demonstrar a
efeitos nada inofensivos, drogas que progressiva hegemonia de uma visão
prometem performances e felicidade, reducionista que tem sido particularmente
reduzindo-nos a seres cada vez menos responsável pela disseminação dessa
humanos e mais desejantes de um cultura diagnóstica, com consequências
comportamento padronizado e importantes para o nosso trabalho e, no
supostamente normal. Embutido nesta limite, para nossas vidas.
crença estaria o imperativo de que toda Na prática clínica dos médicos
forma de sofrimento e mal-estar deve ser psiquiatras e dos outros profissionais de
evitada e/ou remediada. Nesse contexto, saúde mental é corrente o uso de manuais
apresentadas como uma solução técnica de classificação como o Código
multiplicam-se pílulas e gotas, substâncias Internacional de Doenças (CID), produzido
vendidas como inofensivas, marcas pela Organização Mundial de Saúde/OMS,
originais e genéricas que prometem muito. e o DSM, produzido pela APA. São
Uma tentativa de denegar o caráter manuais diferentes, mutuamente
humano do sofrimento e de eliminação de influenciados e influentes, que fazem a
qualquer tipo de mal-estar, através do uso categorização de grupos diagnósticos,
abusivo de psicofármicos, traço efetivo e listando sintomas, orientações e diretrizes
crescente das culturas ocidentais (Dantas, para a comunicação entre pares e o
2009). Uma medicalização da vida que não tratamento. Apesar da relevância das
se reduziria de modo algum ao fenômeno diferenças entre as origens, instituições

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envolvidas e formas de produção dos dois propício para a medicalização e seus
manuais diagnósticos, esta questão não é subprodutos.
abordada neste trabalho. Priorizamos o Se pensarmos que a relação
exame do DSM em suas sucessivas indivíduo/sociedade estaria submetida a
edições, o qual se torna um influente dispositivos de controle social que, por sua
manual para a psiquiatria atual. vez, envolvem mecanismos de formação
Se usarmos como fonte o próprio de identidade (Berger, 1980), não
portal da APA encontraremos um debate poderíamos pensar o diagnóstico como
público sobre o crescimento progressivo mais um dispositivo de poder e controle
das categorias diagnósticas desde a social? Isso vem sendo debatido no
primeira edição do DSM. As poucas ambiente acadêmico, com ressonância na
categorias iniciais apresentadas nessa sociedade, através de artigos científicos,
edição se multiplicaram ao longo do tempo manifestos e surgimento de movimentos
em centenas de diagnósticos, como sociais de resistência. Exemplo disso são
podemos constatar no recém-lançado os fóruns sobre medicalização da educação
DSM-V. Ao longo do artigo, apoiados em e sociedade (Brasil, 2012) e as estratégias
autores do campo, discutimos esse de luta do movimento antimanicomial
aumento expressivo como uma evidência brasileiro, em especial do movimento de
de um processo ativo de medicalização, no usuários de saúde mental (Soalheiro &
sentido aqui atribuído a ela. Amarante, 2008; Soalheiro, 2012).
Procuramos ressaltar como esse Deste modo, organizamos o estudo
processo passa ao largo da difícil retomando inicialmente o contexto do sur-
demarcação das concepções de normal e gimento da psiquiatria como disciplina
patológico no campo da produção do saber científica e as questões importantes no
científico, incluindo uma deliberada debate da época para a criação das primei-
negação da complexidade das experiências ras nosologias e políticas de tratamento.
de sofrimento e adoecimento psíquico e Em especial a referência de Philippe Pinel
sua natureza muitas vezes refratária aos na França, que com seu tratado médico
enquadres e classificações. Dessa forma, filosófico, lançado ainda em 1800, fundaria
no contexto de uma psicopatologia um modelo que seria replicado no Brasil e
contemporânea, a redução das experiências em outros países (Pinel, 2007). Como res-
de sofrimento psíquico a um sistema salta Portocarrero (2002), o saber psiquiá-
classificatório de transtornos mentais sob trico brasileiro do século XIX é uma repe-
critérios instituídos criaria um campo tição da argumentação dos alienistas fran-

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ceses, tendo o mesmo enfoque classificató- especialmente a sua terceira edição, que
rio para a doença mental, sua etiologia e pode ser identificada como aquela que
terapia. trouxe mudanças precursoras do fenômeno
Para retomar as origens da psiquiatria da medicalização e diretamente
retornamos a Michel Foucault – em espe- relacionadas ao afastamento da psicanálise
cial na sua História da loucura (2005) – e nos anos 1970.
algumas das suas leituras posteriores. Da Percorremos esse caminho para
tese de Foucault destacamos a sua perspec- sistematizar algumas questões atuais em
tiva do saber psiquiátrico como um monó- torno da importância da temática da
logo da razão sobre a loucura: “A constitu- medicalização e suas consequências para o
ição da loucura como doença mental, no nosso trabalho na saúde mental, incluindo
fim do século XVII, atesta um diálogo acadêmicos, gestores, trabalhadores e
rompido [...]. A linguagem da psiquiatria, usuários do sistema de saúde. Articulando
que é o monólogo da razão sobre a loucura, o contexto do nascimento da psiquiatria e
só se pode estabelecer sobre tal silêncio.” sua configuração atual procuramos discutir
(Foucault, 1994, p. 161). Para ele, esta di- uma possível apropriação do sofrimento
visão imposta pela razão científica marca o humano por uma visão mercadológica dos
início do confinamento da loucura sob o diagnósticos e psicofármicos dentro de um
estatuto de doença mental, a partir do qual processo mais geral de medicalização da
se fundaria a psiquiatria e as psicopatolo- vida.
gias.
Em seguida, buscando correlações O contexto de surgimento da medicina
entre passado e presente na configuração mental: humanismo, exclusão e
do papel social da psiquiatria, examinamos apropriação da loucura pela razão
a evolução do DSM como manual psiquiátrica
diagnóstico, resgatando suas sucessivas
versões e marcos de mudança até a versão Como ressaltam Amarante e Torre
atual, apresentada no DSM-V. Desde a sua (2010), podemos pensar que a abordagem
criação, em meados do século XX, este conceitual e prática no tratamento da
manual vem tomando uma dimensão loucura transformada em doença mental foi
progressivamente maior no campo da se modificando ao longo do tempo, até
saúde mental, o que demandaria reflexões chegar à configuração atual. Tais
importantes em torno do lugar social transformações foram acompanhadas por
ocupado pela psiquiatria. Destacamos mudanças no modo de se referir à loucura,

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sendo que, na sequência apontada pelos alienação, particularmente através da obra
autores, o conceito pineliano de “alienação de Philippe Pinel. Dessa forma, o contexto
mental” teria dado espaço ao conceito de de surgimento da medicina mental, cuja
“doença mental” que atualmente teria sido fundação fica para sempre associada à
substituído por “transtorno mental” ou experiência de Pinel no Hospital de Bicêtre
“distúrbio mental” (Amarante, & Torre, na França e o seu também mitológico gesto
2010, p. 151). de libertação dos loucos. Apesar de esta ser
Para compreender melhor essa questão uma tendência também presente em outras
iniciaremos por um retorno à perspectiva experiências contemporâneas como a de
foucaultiana na sua emblemática História William Tuke, na Inglaterra, que
da loucura, obra que, mesmo acusada preconizava “o tratamento humanitário,
justificadamente de não constar nos com instituições pequenas e uma ênfase
arquivos da psiquiatria inspirou inúmeras nas relações entre as pessoas” (Leader,
teses e segue atualizada por novos autores 2013, p. 12), opondo-se às medidas e
a ele filiados (Roudinesco, 1994). Nela técnicas de contenção.
Foucault consagra a mitológica imagem da Para Silveira (2013), desde os mais
nau dos loucos, “estes barcos que levavam remotos tempos, bem antes da medicina
sua carga insana de uma cidade para outra” laica, haveria uma medicina da alma,
(Foucault, 2005, p. 9), retrato da sua tentativas diversas de criação de conceitos,
condição de habitante incômodo. Identifica teorias, remédios e terapias. Inspirados
historicamente a loucura como a herdeira pela dor e o sofrimento, poetas, sofistas,
da lepra, fazendo uma arqueologia da médicos do corpo e filósofos teriam se
exclusão e seus ritos, desde a nau dos ocupado de pensar formas de amenizar o
loucos até o hospital de Pinel. E aponta- peso da existência. Ao propor o termo
nos uma continuidade com a idade “alienação mental”, Pinel teria retomado as
clássica: “Não existe mais a barca, porém o ideias de Hipócrates, onde o alienado
hospital” (idem, p. 42). mental seria um indivíduo que se deixa
Sob essa perspectiva, Foucault analisa dominar por paixões artificiais. Para
a criação dos hospitais gerais na França e o Silveira (2013), a medicina de Hipócrates,
fenômeno da Grande Inter-nação, a partir apesar de falar de sintomas psíquicos
de uma necessidade social. Afirma que o (distúrbios do sono, vícios, medos,
interesse científico pela loucura começaria arrebatamentos, etc.) na verdade busca
somente no final do século XVIII, quando entender as reações fisiológicas desses
a loucura deixa de ser desrazão e se torna sintomas para encontrar explicações

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também fisiológicas para as doenças da lesão fundamental do intelecto e da
alma. vontade que se manifesta no
Mas Amarante e Torre (2010) ressaltam comportamento do paciente” (p. xx);
que Pinel não conseguia se encaixar no comportamentos que servirão de “critério
modelo da medicina do final do século de classificação e diagnóstico, através de
XVIII, baseada na anatomopatologia e na uma ordenação que requer longa e
busca da etiologia da doença através de constante observação” (p. 146). O autor
necropsias. O que o leva a uma psiquiatria acentua que, no seu tratado, Pinel deixa
muito mais voltada à terapia e ao método claro que, “de um modo geral, a causa da
que à etiologia. Nesse contexto, as loucura é a ‘imoralidade’, entendida como
alterações fisiológicas e anatômicas no excesso, exagero ou desvio a serem
sistema nervoso não são vistas como as corrigidos pela mudança de costumes e de
principais causas da alienação mental e, em hábitos” (Pessotti, 1994, p. 156). Por isso,
seus estudos com necropsias, Pinel conclui a sua terapia se tornou indissociável do
que a alienação mental estaria mais ligada asilo e foi denominada de “tratamento
a distúrbios da mente, estando o cérebro na moral”, ao se ocupar de “afecções morais”
maioria dos casos em perfeito e “paixões morais”.
funcionamento (Carvalho, 1995).
Desta forma, o hospital fez-se asilo e a
Para Pinel, “as paixões só poderiam
loucura fez-se doença mental. Nasce aí o
habitar o coração do homem se submetidas
hospital como lócus de saber e poder da
à razão e equilibradas por uma vida
medicina mental, através do gênio de
harmoniosa” e ele acreditava em uma
Pinel. Nesta perspectiva, Castel (1978)
reforma radical do homem através da
enfatiza que o ato fundador de Pinel não
ciência. Um método científico que se daria
teria sido retirar as correntes dos alienados,
“nos hospícios dos alienados onde se pode mas sim o ordenamento do espaço
ser convencido de que a vigilância, a
hospitalar (Castel, 1978, p. 83). Uma nova
ordem regular do serviço, o acordo arquitetura e uma tecnologia se fundem
harmonioso entre todos os objetos de
num dispositivo de tratamento: “A
salubridade e a bem sucedida aplicação dos organização da vida cotidiana é tratamento,
remédios morais” (Pinel, 2007, p. 26)
a submissão às ordens do pessoal é
constituiriam a nova medicina. tratamento, o trabalho é tratamento”
Pessotti (1994) ressalta que, na
(Castel, 1978, p. 92).
concepção teórica de Pinel, a loucura é
entendida como “comprometimento ou

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Assim, a despeito da ausência de indícios lugar na ciência médica (Amarante,
1996, p. 46).
anatomopatológicos e a partir da
concepção humanista do seu tempo, Pinel
cria o Tratamento Moral, que ele mesmo Birman (1978) reafirma que,
define como “a tarefa que se propõe apesar das querelas etiológicas, o que
cumprir”: importava realmente para a psiquiatria era
a terapêutica, porque, afinal, podia-se curar
[...] a distinção correta entre suas
perfeitamente a loucura sem conhecer a
espécies, para não tentar inutilmente ou
sua natureza. E acrescenta que o discurso
conduzir ao acaso o tratamento, [...] fazer
sentir a necessidade de locais adequados da hereditariedade e das causas físicas em
à distribuição metódica desses enfermos geral, pretendendo-se biológico para ser
em suas diversas espécies; colocar em médico, camufla a sua significação
primeiro lugar os cuidados esclarecidos e
primeira que se relaciona com a moral da
filantrópicos da vigilância, e a
sociedade e da família. Ressalta uma
manutenção da mais severa ordem no
serviço [...] reservar para os casos
questão importante para o nosso estudo
extremos e vistos até aqui como quando aponta que, desde a sua origem, a
incuráveis o emprego de certos remédios psiquiatria estará marcada por um conflito
ativos, que, em outras circunstâncias,
entre a biologia e a psicologia, na disputa
poderia resultar supérfluos, nocivos ou
pela positivação empírica da loucura:
temerários (Pinel, 2007, p. 223).

A psiquiatria desde então, durante toda a


Como analisa Amarante (1996),
sua história, é atravessada pelas
Pinel insiste em se afirmar defendendo que interpretações biológicas e psicológicas,
a alienação mental não tem causas físicas, que falam duas linguagens
mas o tratamento incluía estratégias de completamente diversas, que não se
escutam porque não se compreendem, e
sujeição físicas e morais, apresentando
cada uma das tradições não pode
resultados de fato:
entender o apego da outra a formulações
diversas das suas (Birman, 1978, p. 98).

Com o mandato social e o prestígio que


Pinel adquire pelo conjunto de sua obra
Continuando com Birman (1978), o
médico-filosófica e pelos resultados
autor vai demonstrar como a reflexão sobre
terapêuticos objetivos, a medicina mental
vai-se constituindo e consolidando o seu a oposição normal/anormal é uma
preocupação constante do conhecimento

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psiquiátrico, desde seu nascimento e em na prática clínica por profissionais da
toda a sua história, já que remete à sua psiquiatria e do campo da saúde mental.
razão mesma de ser e à sua inserção como Na perspectiva de Matos et al. (2005), esse
prática social. O asilo vai se constituir manual tem a sua importância definida
como lócus principal de intervenção, mas pelo fato de padronizar as nomenclaturas
ele continha em si um ideal de sociedade. das psicopatologias, possibilitando a
Ao isolar para estudar e tratar a loucura, a comunicação entre profissionais; por
medicina psiquiátrica inicia a demarcação permitir estudos estatísticos e auxiliar no
de uma fronteira, cria conceitos diagnóstico descrevendo patologias e
normativos, produzidos por um saber que propondo diretrizes; por apresentar
ao longo do tempo avança na sociedade e aspectos associados à prevalência na
hoje se dissemina no senso comum. Um população; por indicar tratamento
método que segue permanentemente normalmente restrito à psicofarmacologia
atualizado em novos dispositivos de ou à terapia cognitiva comportamental.
diagnóstico e tratamento. Um exemplo Apesar de responder bem às
disso, conforme alerta Rotelli (2008), é a funções internas à psiquiatria designadas a
evidência de que a grande internação dos ele, alguns aspectos deste manual fazem
nossos tempos teria nos idosos o seu com que uma análise crítica do mesmo
principal alvo, com graves consequências venha sendo feita pelo meio acadêmico e
sociais ainda não suficientemente outros segmentos da sociedade envolvidos.
avaliadas. Mas o fato de possuir confiabilidade na
psiquiatria e representar uma ferramenta de
referência não faz com que com que o
O DSM: questões sobre a psiquiatria e a
manual fique restrito à função de um
construção de uma psicopatologia
compêndio do saber psiquiátrico. Acaba
contemporânea
sendo um instrumento adotado pelas
políticas e pelos profissionais de saúde

O Diagnostic and Statistical mental, no extremo, sendo utilizado como

Manual of Mental Disorders, lançado pela uma lista para configuração de

Associação Americana de Psiquiatria e diagnósticos. O que pode levar a uma

conhecido por sua sigla DSM, é um substituição do exercício clínico, da escuta


sistema de classificação de transtornos do paciente e da análise das

mentais que tem sido largamente utilizado particularidades de cada caso. Uma

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questão que, para fins deste estudo, ganha na época em sua maioria psicanalistas. A
relevância. harmonia entre as duas disciplinas era
Desde a sua criação, o DSM é tamanha que o uso do termo psiquiatria
periodicamente revisado, reestruturado, psicanalítica era comum (Matos et al.,
modificado e relançado em sucessivas 2005; Izaguirre, 2011).
edições. A mais recente versão lançada é o Neste contexto, em 1952, foi
DSM-V, que foi precedida pelo DSM-I, lançada a primeira edição do DSM. Antes
DSM-II, DSM-III, DSM-III-R, DSM-IV e disso, era comum cada centro de ensino
DSM-IV-R. As suas sucessivas edições possuir sua própria classificação para
não necessariamente representaram apenas atender a necessidades locais, o que acabou
uma atualização do manual, mas, em produzindo uma diversidade de
determinados momentos, uma nova edição nomenclaturas e sistemas. Por isso, o
trazia grandes mudanças em sua estrutura, lançamento do manual da Associação
abordagens e conceitos. Como um reflexo Americana de Psiquiatria conseguiu
do saber psiquiátrico instituído na América inicialmente corresponder às demandas de
e exportado para outros países, o DSM pesquisas estatísticas e promover um
sempre esteve sincronizado com as consenso terminológico entre clínicos.
mudanças e vertentes hegemônicas no Contava com 106 diagnósticos dispostos
campo do saber científico da psiquiatria e em 130 páginas, que se originaram de seis
saúde mental. Portanto, não pode ser classificações iniciais: mania, melancolia,
entendido separadamente do seu tempo monomania, paralisia, demência e
histórico e contexto. alcoolismo (APA, 1952).
Em torno de meados do século XX, A concepção de doença mental
o deslocamento do eixo do movimento derivada da psicanálise e corrente na época
psicanalítico da Europa para os Estados relacionava a origem das patologias com
Unidos, que ocorreu devido à perseguição reações às adversidades e problemas da
a Freud e seus seguidores pelo nazismo, vida do indivíduo (Mayes & Horwitz,
fez com que a psicanálise exercesse grande 2005). Os termos utilizados nessa edição
influência e prestígio no campo do saber do manual eram evidentemente
psiquiátrico da época (Russo & Venâncio, provenientes da teoria psicanalítica, como
2006). A partir disso, podemos perceber por exemplo, “neurose”, “conflito
reflexos na composição de forças para a neurótico” e “mecanismos de defesa”,
constituição dos integrantes da Associação sendo bastante ressaltada uma oposição
Americana de Psiquiatria (Fendrik, 2011), freudiana clássica entre neurose e psicose.

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Lançado em 1968, o DSM-II foi influência da psicanálise no meio científico
construído a partir da coleta de dados americano, no decorrer da década de 1970.
estatísticos e apresentava agora 182 Os objetivos agora eram outros, os
diagnósticos dispostos em 134 páginas. interesses se voltaram para a formulação
Esta nova edição não representa nenhuma de um saber que fosse mais objetivo,
ruptura com os preceitos anteriores e sim universal e, portanto, mais próximo de um
uma intensificação das influências saber científico, características que a
psicanalíticas. Talvez apenas uma certa psicanálise não possuía e por isso passaria
visão “biopsicossocial” dos transtornos a representar um obstáculo. Na tentativa de
mentais teria evoluído para uma concepção seguir o modelo da medicina, o diagnóstico
de níveis de desorganização psicológica do deixa de ter um papel de certa forma
indivíduo (Russo & Venâncio, 2006). secundário e passa a ser central (Strand,
É importante ressaltar que, tanto no 2011). Por conseguinte, a psiquiatria
DSM-I quanto no DSM-II não havia biológica e sua psicofarmacologia tomam
grande esforço de elaboração da mais espaço no cenário da saúde mental,
classificação diagnóstica, pois os sintomas com mudanças na visão da subjetividade
evidentes eram considerados indícios de humana, e a formação de novos grupos
conflitos interiores que deviam ser identitários. O DSM-III ganha poder de
investigados e tratados. E tais conflitos influência em outros países,
interiores, por sua vez, nunca seriam transformando-se como uma bíblia para
completamente solucionados e tratados aqueles que se ocupavam da prática clínica
sem o entendimento da vida pessoal do em saúde mental, utilizando-o como um
paciente, suas condições e experiências instrumento neutro de conteúdo
(Strand, 2011). generalizável.
Em 1980, foi publicada a terceira Outra indicação de uma crescente
edição do DSM, agora com 262 hegemonia da psiquiatria biológica nas
diagnósticos e 494 páginas, apresentando concepções do DSM-III é a divisão entre
uma variedade de classificações e conteúdo transtornos orgânicos e não orgânicos. As
muito maior que as versões anteriores duas versões anteriores dividiam as
(Mayes & Horwitz, 2005). Essa edição psicopatologias de acordo com a
marca uma grande ruptura com o padrão de psiquiatria clássica, diferenciando-as em
classificação utilizado anteriormente, por orgânicas – aquelas em que a etiologia do
sua vez refletindo um declínio da transtorno consiste em alguma disfunção
observável no cérebro; e não orgânicas –

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aquelas às quais seria atribuída uma reforçando os rumos já apontados
etiologia psíquica, sem alteração anteriormente, além da expansão acelerada
neurológica correspondente. Nessa terceira do seu poder de influência. O DSM-IV foi
edição tal modelo foi parcialmente apresentado em 886 páginas contendo 297
mantido, porém, o manual ressaltava que diagnósticos propostos (APA, 1995).
os transtornos não orgânicos, apesar da Apesar de não trazer mudanças
falta de indícios fisiológicos e anatômicos, significativas em relação aos preceitos do
não seriam independentes do mau DSM-III, é a partir desta edição que o
funcionamento cerebral e teriam sua DSM se consolida como referência para o
origem no sistema nervoso (Russo & aprendizado de psicopatologia na formação
Venâncio, 2006). de profissionais de saúde mental e uso na
Dessa forma, a dimensão prática clínica. Posteriormente, foi
psicanalítica é abandonada e substituída atualizado com uma versão revisada, o
por uma concepção fisicalista, trazendo um DSM-IV-R.
importante reducionismo na visão da Muito recentemente, em 2013, foi
subjetividade humana, o que pode explicar lançada a sua quinta versão, sendo que
a grande polêmica em torno da retirada ou suas supostas inovações propostas para o
manutenção do emblemático conceito campo da classificação diagnóstica têm
psicanalítico de “neurose”. Como a sido alvo de intensos debates e uma grande
presença da psicanálise na cultura polêmica no meio científico. A inclusão de
americana influía nos estilos de vida e novas patologias como “desregulação do
mantinha a crença na psicoterapia como temperamento com disforia”, “síndrome de
tratamento eletivo, após muitos embates risco psicótico”, “desordem hipersexual” –
com representantes dessa nova psiquiatria são exemplos de classificações que
os psicanalistas conseguiram que se designam respectivamente o
mantivesse o termo entre parêntesis comportamento de crianças muito agitadas,
(Mayes & Horwitz, 2005). No entanto, ao comportamentos extravagantes, desejos e
ser lançada a terceira edição revisada – o impulsos sexuais mais acentuados que o
DSM III-R – os parêntesis foram retirados, usual. O que vem sendo apontado como
o termo foi extinto do manual, havendo ao uma evidente patologização de
mesmo tempo uma multiplicação do comportamentos (Freitas & Amarante,
número de diagnósticos. 2012). O lançamento do DSM-V, agora
Na sequência, no ano de 1995, foi com 300 categorias diagnósticas dispostas
lançada a quarta versão do DSM, em 947 páginas (APA, 2013), foi

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precedido de muitas controvérsias e O papel social do diagnóstico e dos
polêmicas no próprio meio científico fármacos
americano, incluindo psiquiatras ligados à
própria APA.
Dessa forma, somos levados a ratificar
Como vimos, o rompimento teórico
– através de um reforço progressivo na
com a psicanálise e a reestruturação
sociedade e nas práticas referendadas por
proposta para o DSM-III estão
saberes médicos – uma compreensão
inegavelmente aliados ao crescimento de
etiológica da doença mental fundada em
uma psiquiatria biologicista, que, por sua
imperfeições genéticas, desequilíbrios
vez, propicia o desenvolvimento de uma
químicos cerebrais e até mesmo em
indústria da psicofarmacologia. O estado
agentes físicos. Assim, os tratamentos
atual reforça a criação e delimitação de um
propostos pretenderiam apenas amenizar
mercado consumidor para as indústrias
os efeitos destas adversidades biológicas
farmacêuticas (Strand, 2011; Russo &
ou livrar-nos de dores existenciais, para as
Venâncio, 2006), que a cada novo
quais não se dá e nem se quer pensar
transtorno passaria a colocar no mercado o
nenhum sentido. Aqui se impõe a reflexão
psicofármico correspondente.
do nosso possível papel social legitimador
O que queremos ressaltar com esse
desse discurso ao prescrever, indicar e/ou
breve histórico comentado é o fato de que
consumir de forma alienada as pílulas da
um manual americano – pensado para os
normalidade desenvolvidas e produzidas
americanos – ganha forte status de saber
em larga escala pela indústria
científico e torna-se referência para
farmacêutica.
médicos psiquiatras e trabalhadores da área
Apesar da ênfase e hegemonia desta
da saúde mental. Estes, por sua vez,
visão, também vem crescendo o espaço
através da influência e papel social que para os seus críticos e os defensores da
exercem na sociedade multiplicariam seus
compreensão da doença mental como um
efeitos, abrindo caminho para a processo multicausal ou mesmo uma
medicalização.
experiência existencial associada a
diversos elementos sociais e históricos de
cada indivíduo. No campo da saúde como
um todo ganha força um retorno à
compreensão mais ampliada do social e da
doença, onde o ideal de saúde e bem-estar

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não seria padronizado (Czeresnia et al., divulgados de intervenções biologicistas
2013), assim como os papéis sociais que muitas vezes apresentadas como
determinam o comportamento desejável inofensivas (Angell, 2007).
dos indivíduos. Retomando Berger (1980), da
mesma forma que há um evidente controle
A doença – assim como a
social operado pelos mais diversos
experiência do sujeito que a vive – pode
dispositivos, haveria também no indivíduo
ser compreendida dentro de um referencial
uma vontade profunda de pertencimento. O
que, além daquele proposto pelo saber
que o leva a procurar assumir o lugar na
científico, também incluiria a dimensão
sociedade destinado a ele, moldando sua
construída pelo senso comum, relações
identidade de acordo com o papel e as
sociais, cultura e ideais de uma sociedade.
ações esperadas dele no espaço social.
Desse ponto de vista, as experiências
Dessa forma, como podemos
psíquicas comportam uma construção
constatar na prática clínica, o diagnóstico
social, sendo variável e ambígua a
torna-se um dado crucial na vida do
delimitação das fronteiras no que diz
paciente, podendo a partir dele adotar
respeito a identificar marcadores e
comportamentos, se enquadrar nas
medidas, por exemplo, da passagem de
limitações esperadas, assumir prognósticos
uma tristeza à depressão, das variações de
dados e novas formas de identidade. O
humor ao transtorno bipolar ou de quando
momento no qual recebem um diagnóstico
a agitação das crianças passaria a ser
produziria impactos na vida dos
considerada transtorno de déficit de
indivíduos, levando-os a mudar a visão de
atenção e hiperatividade (Freitas &
si. Ao receber um diagnóstico de
Amarante, 2012).
transtorno bipolar, por exemplo, o paciente
Se ocorre um
hiperdimensionamento na classificação das passará a ressignificar seus sofrimentos
passados, comportar-se como portador
psicopatologias, é importante
considerarmos também o seu caráter de deste transtorno, consumindo a medicação
recomendada, buscando os tratamentos
produção social sempre acompanhada de
prescrições farmacológicas vinculadas à adequados e identificando-se em um lugar
social destinado ao seu novo grupo.
um mercado que se demonstra
inescrupuloso na comercialização de Ao receber o diagnóstico de algum
transtorno mental identificado, passa a usar
psicotrópicos. Apesar de já haver
suficientes evidências de efeitos não regularmente psicofármicos prescritos,
entrando nas estatísticas das

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psicopatologias, tornando – se um produzindo nos pacientes efeitos de
consumidor do lucrativo mercado das retardamento motor e indiferença
indústrias farmacêuticas, referendado por emocional. Isso a fez ser conhecida como
parte da ciência e por alguns modos de uma espécie de lobotomia química, mas
clínica. não impediu que, a partir dela, a indústria
Como já referido, desde Pinel, a farmacêutica descobrisse que, aliada ao
psiquiatria usa tratamento com fármacos marketing, a produção de psicotrópicos
nos asilos, sendo essencial que os pacientes poderia ser muito lucrativa. Psicofármicos
fossem submetidos a tratamentos que como Imipramina, Ipromiazid,
proporcionassem efeitos observáveis. Meprobomato, e outros, seguiram o mesmo
Podemos tomar como exemplo a morfina e ciclo: descoberta, uso, descoberta de
o ópio que eram empregados no tratamento possíveis efeitos colaterais e desuso
da loucura, sendo as primeiras substâncias (CCHR, 2010).
a serem testadas para estes fins. Também a Angell (2007) vem denunciando em
descoberta de um novo tipo de substância seus estudos um conjunto de relações
assumiu grande importância no tratamento perigosas entre a indústria farmacêutica e o
da doença mental – as anfetaminas. Estas campo da saúde, envolvendo conflitos
foram largamente utilizadas na primeira éticos e corrupção. Denuncia casos
metade do século XX, mas, assim como as envolvendo figuras de autoridade no
drogas anteriores, foram progressivamente ambiente das associações corporativas
abandonadas depois de estudos médicas, de influentes universidades
comprovarem sua alta toxicidade (CCHR, americanas e no meio científico em geral.
2010). Apresenta evidências de influência da
Mas foi só no período pós-guerra indústria farmacêutica nos resultados de
que houve uma aceleração nas pesquisas pesquisas, na clínica médica e na definição
para produção de novos psicotrópicos, de categorias de doenças. O que reafirma a
sendo um marco oficial a descoberta, em importância de enfrentarmos de forma
1952, da clorpromazina, que foi o primeiro mais rigorosa as causas da medicalização e
medicamento antipsicótico. Também suas consequências para o campo da saúde,
conhecida nos Estados Unidos sob o nome em especial da saúde mental.
comercial de Thorazine, a clorpromazina,
que já era utilizada como corante e
antiparasitário para suínos, passa a ser
usada com função de psicofármico,

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Considerações finais A presença de relações limite
envolvendo aspectos éticos e
Parece muito presente em nossa mercadológicos nos levaria a importantes
sociedade uma exigência de bem-estar questionamentos: Quanto do saber
constante, não havendo espaço nem tempo científico seria influenciado por certa
para a dor, sendo todas as adversidades indústria farmacêutica? Qual o sentido de
inerentes à existência decididamente psicofármicos prescritos na saúde serem
evitadas. As novas exigências da vida num propagandeados e vendidos para um
capitalismo globalizado e competitivo grande mercado consumidor? Qual a nossa
colocariam a dor como sentimento responsabilidade enquanto profissionais de
inaceitável. Para Dantas (2009), a saúde dentro desse contexto da
contemporaneidade estaria aderida a uma medicalização?
crença quase absoluta no discurso técnico, A complexidade das questões que
anestesiando-se com substâncias que envolvem as fronteiras entre normal e
prometem muito, desde a perda de peso até patológico, antes negligenciada pelo
a felicidade plena. tratamento fundado no isolamento social,
Neste contexto, o discurso técnico e encontra-se agora novamente negada por
de medicalização assumem um sentido uma concepção simplista e funcional que
mítico, onde a crença num suposto poder engessa o nosso trabalho em codificações e
ilimitado da ciência produziria a convenções. A medicalização dos
medicalização da e na sociedade, uma vez comportamentos e da vida, na contramão
que comportamentos e acontecimentos da de uma lógica da saúde responsável e ética,
vida cotidiana agora se tornariam passíveis subverte o papel do profissional, afeta
de tratamento, cura e prevenção. Uma nossas subjetividades. Uma cultura
visão fantasiosa da realidade, onde a produtora de subjetividades medicalizadas
doença e a necessidade de remédios seriam e que ainda quer fazer-nos crer em uma
permanentemente fabricadas. Os suposta epidemia de transtornos mentais.
psicofármicos, tornados bens de consumo,
passam a serem vistos como uma panaceia
Referências
para todos os males do espírito, suprimindo
as variações de humor, a tristeza, e todo Amarante, P., & Torre, E. H. G. (2010)
tipo de sentimento agora considerados
Medicalização e determinação
inadequados. social dos transtornos mentais: a

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em torno da temática da política e
E-mail: ninasoalheiro@fiocruz.br
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Nina Isabel Soalheiro: Graduada em


Terapia Ocupacional pela Universidade
Federal de Minas Gerais (1985),
especialista em Saúde Mental pela Escola
de Saúde de Minas Gerais (1995), mestra
em Saúde Pública pela Escola Nacional de
Saúde Pública Fundação Oswaldo Cruz

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