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JAIif~:>AUOOIiIIAR83~-~~~~~5~~
o debate recentemente surgido no país so-
bre os métodos e processos do ensino da
JOSÉ HILDEBRANDO
Ungua Portuguesa está marcado por eviden-
te confusão resultante da ausência de uma
DACANAL
visão social e histórica da questão. IÔnatural
que isto ocorra porque a área possu i arraiga-
da tradição de impermeabilidade à idéia de
ver os fenômenos da linguagem e da língua
como integrantes do todo social. Isto já ocor-
ria com os gramáticos do passado e se acen-
tuou ainda mais com a aceitação e a aplica-
ção simplórias de teorias lingü(sticas impor-
tadas recentemente.

Em Linguagem, poder e ensino da IIngua, o


autor, conhecido ensaísta e professor de Li-
teratura e Língua, procura, de forrTT3 clara,
marcante e não raro cáustica, imprimir uma
nova orientação aos debates sobre o assunto
e colocar as coisas nos seus devidos lugares.
Sua posição sobre as questões que analisa
LINGUAGEM,
poderá ser até rejeitada ou, talvez, tatica-
mente ignorada. Contudo, a partir de agora,
qualquer discussão a respeito dos temas aqui
abordados não poderá fugir, explicita ou im-
PODERE
ENSINO
plicitamente, a um confronto com as idéias
expostas nesta obra.

DA LfNGUA
:2 EDIÇÃ():
Q

lieRCADO {PU ADeRTO


{

SUMARIO

I - COMO SE FOSSE UM PREFACIO. . . . . . . . . . 7


II - A L1NGUA COMO PRODUÇÃO DO HOMEM.. 11 1/
III - A L1NGUA COMO CONVENÇÃO. . . . . . . .. 15 V
IV - A LI'NGUA COMO IMPOSiÇÃO SOCIAL
E HISTORICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 171/
V - A L1NGUA COMO INSTRUMENTO
...
DE PODER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 23
VI-A L1NGUA E AGRAMÁTICA 27'1
VII - A LIBERDADE PELA L1NGUA:
UMA MIRAGEM PEQUENO·BURGUESA ..... 29
VIII - O PORQUE DA CONFUSÃO. . . . . . . . . .. 33
IX - COMO ENSINAR A L1NGUA . . . . . . . . . . .. 37
X - ADENDO - Entrevista ao Jornal JÁ 43
I. COMO SE FOSSE UM PREFACIO ...

Mais uma vez - e contra propósitos feitos, que se de-


sintegram como bolhas de sabão .ao vento - estes textos
surgem no calor da hora e sob a pressão das circunstâncias
momentâneas. Talvez tudo isto, diante das sombras que
somos e da hecatombe nuclear que ronda a espécie, da
morte, da violência, da miséria e da fome que se abate sobre
os revoltados e deserdados deste e de outros continentes,
talvez tudo isto não tenha muita importância. Certamente
não.
Por outra parte, muitos não perdoarão, como a ou-
tros, a audácia de tentar pensar precária e/mas autonoma-
mente. Tenho a certeza, porém, que a história nos será cle-
mente, a nós que, desesperados em meio à selva colonizada
Ao eventual leitor cuja curiosidade tenha sido desper-
e com a fúria própria do instinto, procuramos, por entre o
tada pelos parágrafos anteriores talvez não seja de todo inú-
guinchar de primatas e o grasnar de emplumados, abrir cla-
til remetê-Ia à entrevista anexada ao final, a qual, diversa na
reiras para sobreviver, sem tempo para pavimentar caminhos
forma e no estilo, é a moldura necessária, se bem que pouco
e para gozar do doce ócio do filosofar!
acadêmica, ao que fica no meio.
Afinal, não passa de um último resquício da secunda-
riedade do pensamento dependente julgar que também na
forma há modelos rígidos que não possam ser esquecidos
ou subvertidos impunemente. Do que resulta, não raro, que
a seriedade dos tratados se converta em pose e farsa. Contra
isto, é pr-eciso perceber que os tempos mudaram e que o es-
tigma, e a grandeza, dos que ousaram pensar no espaço da
cultura dependente própria do mundo sernicolonial do con-
tinente sempre foi o tê-lo que fazer por reação. Por reação à
ingenuidade, à estultícia, à vulgaridade, à pretensão e ao
oportunismo. E não demorará muito - aqui ainda não é o
caso - que venha a sê-lo, diretamente, por reação ao poder.
Neste dia então - que não seja o dia da ira! - o passado se-
rá recuperado e os que ainda não o tiverem feito terão que
deixar de pensar por tabela, como papagaios barulhentos,
desmiolados e deslumbrados diante do astuto colonizador.
Neste d ia terá sido transposto definitivamente o abismo
entre a consciência e a natureza circundante, percebido, há
quase um século, por Martí em Nuestra America.
O ensaio que segue tenta ser uma série de reflexões,
um tanto sincopada mas não desorganizada, sobre a lingua-
gem e a língua como fenômenos sociais e históricos. Estas
reflexões não reivindicam qualquer originalidade. Outros já
devem tê-Ias feito, iguais ou semelhantes, e neste caso esta-
vam certos. Pois se não julgo ter sido o único a fazê-Ias, sei
que as fiz por mim próprio ao observar o mundo e ao inves-
tigar-me a mim mesmo. Neste sentido podem ser considera-
das originais. Porque a originalidade não é uma questão de
cronologia mas sim de necessidade. A não ser em patentes
e processos industriais.

9
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11.A LfNGUA COMO PRODUÇÁO DO HOMEM

o homem produz coisas, simples e complexas, com


material idade e sem material idade. Mas nem sempre foi
assim. No começo - e este começo, ao que se presume, ocor-
reu várias vezes, em espaços, tempos e ritmos diversos - o
homem mal se diferenciava dos animais. Como estes, cole-
tava sua comida, servia-se dos abrigos naturais e se reprodu-
zia, sem mesmo dispor de habilidades instintivas de espécies
geneticamente sedimentadas ao longo de incontáveis milê-
, nios - os castores, por exemplo. Mas foi exatamente ill.é!
instabilidade cultural, se assim pode ser chamada, que o
destacou do mundo puramente animal e lhe deu condições
de evoluir e progredir.
Desta forma, ultrapassada a barreira da simples coleta
Para o objetivo perseguido neste ensaio é necessário
de alimentos e dos sinais funcionais elementares - o grito
apenas - e suficiente - provar que, estabelecida a defini-
de dor, de alerta, etc. - o homem começou a usar a nature-
ção, toda palavra é um símbolo no qual a parte material éo
za, reordenando-a. em vez de si mplesmente aceitá-Ia no que
som ou o conjunto dos sons - o chamado siqniticsnte - e a
tinha de útil. A pedra foi quebrada e, assim, melhorada. Os
imaterial a coisa referida - o chamado significado. Como
sinais- funcionais elementares foram diversificados e sof isti-
esta prova é desnecessária por evidente, conclui-se que toda
cados. Da pedra chegou-se ao avião, ao foguete, à nave in-
lingua é um conjunto mais ou menos amplo de s/mbolos so-
terplanetária. Dos sons guturais à língua perfeitamente or-
noros convencionedos. Em outras palavras, srrnbolos cujos
ganizada. Os exemplos poderiam multiplicar-se quase indefi-
sons, em principio, referem-se sempre às mesmas coisas.
nidamente.
Desta forma, o que está na base da função exercida por uma
Em resumo, o homem produziu e produz coisas. Esta
língua em uma comunidade humana é seu caráter de con-
produção engloba desde instrumentos e objetos que pratica-
vençaã.
mente ficam restritos à pura material idade física até mode-
los comportamentais, visões de mundo e construções ma-
temáticas que dela nada possuem (o que não quer dizer que
~Ianão estejam referidas, pelo contr ár io},
Entre estas coisas que o homem produziu e produz
está o s/mboto, que ocupa um lugar específico no espaço
que vai da pura material idade à mais elevada abstração des-
ta. Este lugar específico é conseqüência do fato de ser o
símbolo, por definição e como a própria palavra o indica, I

uma produção humana composta de duas partes distintas e


inseparáveis, sendo uma de natureza material e a outra de
natureza imaterial. Um simbolo, portanto, é formado por
algo t isico (ou material) que carrega consigo ou em si um
sentido não físico (ou imaterial).
Por sua vez, os símbolos podem ser divididos em
simples e complexos, fixos e variáveis, unívocos e plurívo-
cos, etc., segundo a natureza da relação entre as duas partes
que os compõem. Outra divisão poderia ser a que levasse em
conta a importância maior ou menor de uma das partes
componentes. Estas questões não serão tratadas aqui.

1 Do grego "41{3áÀÀw = lançar junto.

12 13
111.A L1Í\JGUA COMO CONVENÇÃO

Toda língua é, por natureza e por evidência, uma


convenção, um acordo entre os membros componentes
de um grupo. Os elementos técnicos que estão na base desta
convenção e, portanto, da própria Iíngua são dois: a capaci-
dade de emitir e captar sons e a capacidade de organizá-Ios
e ordená-tos como símbolos,' isto é, referi-Ios à realidade,
seja esta o próprio fenômeno humano, seja o mundo real
empírico externo ao homem e sobre o qual este age.

, A percepção disto é muito antiga e a lenda biblica da Torre de


Babei é a explicação - de natureza mitica mas nem por isto menos
16gica no sent ido lato do termo - que o desarvorado redator do
Génesis dá para a existência de várias convenções dentro da mesma
espécie.
A capacidade de em itir e captar sons não é exclusiva
dos humanos e, neste sentido, pode-se dizer que cada espé-
cie animal possui uma língua rudimentar, limitada a um
som ou a um conjunto de sons sempre idênticos emitidos
em situações específicas e bem definidas, como nas sensa-
ções de dor, de medo, etc, Esta capacidade também os hu-

r manos a possuem.
por linguagem
uma língua, sendo, portanto,
resultante
O que,
é a capacidade

da união das duas anteriores,


porém, comumente
de organizar
a linguagem
e/ou
se entende
dominar
a nova capacidade
ou seja, a de emitir
e captar sons e a de ordená-Ios como símbolos.
Desta forma, por óbvia inferência, uma Iíngua é o re-
sultado prático do exercício da capacidade humana aqui
denominada linguagem. 2 ~,portanto, uma rematada tolice
dizer que a criança traz dentro de si a língua e que é por
isto que ela aprende a falar. O que a criança possui - como
qualquer indivíduo que aprende uma ou mais de uma língua
-, se não apresentar defeitos nos órgãos emissores e recep-
tores de sons3 e se viver entre humanos que, supostamente,
I
I'
se utilizam de uma língua/é a capacidade de detectar e do- IV. A UNGUA COMO IMPOSiÇÃO SOCIAL
minar esta convenção.l E HISTORICA

Se toda a língua é uma convenção e funciona tecni-


camente como tal, nada melhor do que o esperanto para
exemplificar esta afirmação. Mas. d ir-se-à. o esperanto não é
uma língua. Ou, no melhor dos casos, é uma língua artifi-
cial. Exatamente, e esta é a prova, por evidência, que uma
Iíngua é muito mais do que uma simples convenção. E Ia é
2 Um humano isolado desde a primeira infância não emite mais do produção de um grupo humano e, como tal, está sujeita às
que sons rudimentares e desconexos, mesmo quando adulto. Já um suas vicissitudes. Por isto, o que na prática ocorre é que
animal, por mais tempo que viva entre humanos, jamais aprende a
falar. Um papagaio não fala. Ele apenas emite sons naõ simbólicos. uma língua, sem perder suas características técnicas de con-
Tal performance é que Shakespeare imortalizou, referindo-a ironica- venção, é uma imposição social e histórica.
mente aos humanos, na sua célebre expressão: words, words, words.
3 Desde que, é claro, apresente como normais todas as demais fun- Um indivíduo, ao nascer dentro de determinado gru-
ções vita is. po familiar/social, carrega - supondo-se que nele venha

16
IX

permanecer como membro - a inevitável sina de ter que No sentido amplo porque uma comunidade humana
aprender sua língua. Pode ser, é claro, que não apenas ela. de um espaço e de um tempo determinados não escolhe
Esta, contudo, permanecerá como seu referencial básico livremente sua I(ngua, estando, pelo contrário, condiciona-
sempre que vier a dominar outras. Tal fato é uma imposição da de forma rigorosa e inevitável por um processo no qual
social no sentido lato da expressão. Há outra, porém, que se integra como último elo de uma cadeia mais ou menos
diz respeito a um sentido mais estrito do termo social. longa de eventos. No sentido estrito porque a permanência
Assim, por exemplo, numa sociedade em que - por segmen- e a continuidade de uma língua são fenômenos ligados às es-
tar-se em classes ou grupos mais ou menos rigidamente dife- truturas de poder da referida comunidade - e às transfor-
renciados - coexistirem variantes de uma mesma Iíngua, a mações sofridas por aquelas ao longo do tempo.
passagem de uma classe ou de um grupo considerados infe- A língua dominante é - ou tende a ser - sempre a
riores para uma classe ou grupo considerados superiores só é língua daqueles que detêm o poder econômico, social e po-
permitida àquele indivíduo que dominar antes a variante da Iítico. Contudo, este fenômeno, na prática, apresenta-se em
classe ou grupo superior. formas' bastante complexas, resultantes de características
Por isto, numa sociedade de classes ou grupos rigida- assumidas pelas respectivas comunidades ao longo de sua
mente compartimentados pode ser, a partir de determinada evolução. Um caso clássico é o da Iíngua latina e das que de-
visão ético-polrtica, uma iniqüidade de filisteu humilhar la resultaram ou a substituíram. O latim, instrumento, tanto
uma pessoa ou um aluno por falar ou escrever errado. Mas é quanto as frotas e as legiões, da expansão do Império Ro-
uma iniqüidade muito maior levá-Ios a acreditar que é isto mano, desintegrou-se juntamente com este. Preservado por
que devem continuar fazendo. Porque a primeira atitude é uma reduzidíssima elite, quase que exclusivamente ligada à
e será sempre produto exclusivo da ignorância, da ingenui- Igreja, resistiu por longo tempo mas fossilizou-se como lín-
dade, da irreflexão ou, no pior dos casos, do desprezo do gua, tendo como tal desaparecido junto com a estrutura
fariseu pelo publicano, para usar a parábola evangélica. A político-administrativa do Império, soterrado, ex eequo,
segunda atitude pode ser também apenas isto, mas não ne- pela crise interna e pela avalancha bárbara. Ao final da Idade
cessariamente. Pois nada impede que ela seja politicamente Média, ao se organizarem lentamente os grandes Estados
planejada com o objetivo de usar a língua como arma de nacionais do Ocidente europeu, formam-se também as lín-
barragem a um possível - mesmo que altamente improvável guas até hoje dominantes na região (e nas zonas de expansão
- processo de ascensão na escala social. colonial posterior). Por volta de meados do segundo milênio,
Se por social se entender agora a situação de todo 1. o italiano, o francês, o inglês, o português e o espanhol I

indivíduo que integra um grupo humano num momento de- apresentavam-se definitivamente estruturados, em alguns
terminado e se por histórico se denominar o peso de um casos sobrepondo-se a um número considerável de variantes,
tempo passado, mais ou menos longo, que recai sobre o
grupo e determina ou, pelo menos, influencia suas formas I O alemão, tal como é conhecido hoje, consolidou-se em época
bem posterior, refletindo a dispersão do poder entre os pequenos
de vida, a h'nqua é também uma imposição histórica, tanto
Estados feudais, que sobreviveram praticamente até o final do século
no sentido amplo quanto no sentido estrito da expressão. XI X, sendo unificados a partir da expansão da Prússia, sob Bis-
marck.

18 19
permanecendo praticamente idênticos até hoje. É claro que Os casos da Itália e do Brasil, se bem que com caracte-

não é mera coincidência que tais linguas - ou as variantes rísticas bastante diversas, se assemelham muito e são exem-

delas - tenham sido e sejam aquelas das elites que monta- plares. E rn ambos - no primeiro de maneira mais lenta, no

ram a base das estruturas do poder polrtico e administrativo segundo mais rápida =, a cavaleiro da rápida expansão dos

daqueles Estados nacionais. transportes, da universalização da escolarização e do impac-


Ocorre, porém, que tais elites, à semelhança das do to dos meios de comunicação instantânea, a variante oficial,
Império Romano, desapareceram posteriormente, junto com a qual, até determinado momento, competiam outras,
com seu sistema de poder. Por que, então, Bocaccio, e até se não de direito pelo menos de fato, impõe-se de forma
Dante, Villon, Shakespeare, Camões e Cervantes permane- esmagadora e irreversível. Diante do toscano de Dante, de

cem até hoje inteligiveis para qualquer pessoa que fale a Florença, da Unificação e da RAI e diante do português de

lingua em que eles escreveram? Camões, de D. João VI. do Rio de Janeiro e da TV Globo,

~ aqui que entra o elemento que poderia ser chamado os variados e ricos dialetos do italiano e as variantes caipira

de imposição histórica no sentido estrito da expressão, e em e sertaneja do português tendem, se não a desaparecer defi-

cuja base estão causas como a centralização administrativa, nitivamente, como parece mais provável, pelo menos a re-

a ampliação do número de pessoas letradas e a vulgarização duzir-se drasticamente em importância.

- via invenção da imprensa - do livro. Tais elementos,


acrescidos, a partir do séc. XVIII, dos avanços cientificos e
tecnológicos e da conseqüente complexidade das estruturas
econômicas, sociais e polrticas. levaram a que determinadas
lmquas, como as acima citadas, permanecessem, pela força
da constante reprodução oral e, principalmente, escrita,
quase idênticas ao longo dos séculos, tornando-se uma ver-
dadeira imposição histórica e mantendo-se praticamente
imutáveis em suas estruturas fundamentais."
O fato de ser a língua uma imposição social e históri-
ca se evidencia de forma muito clara em nações lingüistica-
mente heterogêneas e que, a partir de determinado momen-
to e num processo de grande rapidez, se homogeneizam pela
expansão de um centro irradiador que passa a impor sua va-
riante, seu dialeto ou, até, em alguns casos, sua lrnqua.:'

2 Esta barreira que a realidade econômica, social e poh'tica represen-


ta para as mudanças em uma Ilngua pode ser claramente percebida
nas diferenças, não raro existentes, entre o que os gramáticos, mio-
~emente, chamam de h'nqua culta e I(ngua coloquial.
Podendo, em situações especrf icas. ser até mesmo uma imposição
poh'tica direta. O caso da comunidade basca na Espanha franquista é
um exemplo extremamente adequado, além de ser muito recente.

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20

~
v. A LlNGUA COMO
INSTRUMENTO DE PODER

A língua não é apenas sinal e reflexo das estruturas de


uma sociedade e da evolução desta ao longo do tempo. Ela
é também um instrumento de dominação e de exercício do
poder. Não por nada a elite ateniense do séc. V a.C. e,
posteriormente, a classe dirigente romana davam tanta im-
portância à retórica, ou oratória, a arte de fazer discursos e
de convencer. Não por nada também o perfeito domínio da
língua e das leis através dos cursos de Direito representavam
o estágio indispensável para a carreira política no Brasil pré-
industrial controlado pelas elites agrárias do Império e da
República Velha.
Por que isto? Porque a Iíngua, por sua própria nature-
za, é o veículo através do qual circulam a informação e o
"Que culpa cabe a Demóstenes se o poder de uma di-
conhecimento, além de ser a forma mais simples de alguém vindade qualquer, ou dos fados, ou a imper/cie dos
demonstrar que os possui. Mesmo que esta demonstração, capitães, ou a maldade dos traidores, ou o concurso
às vezes, possa não passar de um blefe;' ela adquire funcio- de todas estas adversidades, falsearam tudo, até sobre-
nalidade num meio em que a informação e o conhecimento vir a desgraça?"
sejam propriedade de um grupo restrito de indivíduos.
E exclama, numa dramática confissão de impotência
Disto decorre, naturalmente, um fato óbvio: quanto maior
que atravessa os séculos como símbolo da inanidade da pa-
for o número de indivíduos de uma sociedade que dispuse-
lavra, por mais que tenha senti~o e por mais que tenha o
rem da informação e do conhecimento, menor será o poder
direito a seu lado, diante da força, a ultima ratio do poder:
da palavra, quer dizer, da língua como instrumento de ação
política e de controle social. ~ por isto que quando a pala- "Nos assuntos em que eu derrotava os embaixadores
vra se aproxima do limite da total ineficiência o termo pela palavra, Felipe, precipitando-se, anulava minhas
retórica adquire o sentido de palavrório, conjunto de pala- vitórias com as armas!"
vras sem função.
o que mais haveria a acrescentar sobre a Iíngua como
De outra parte, como foi visto, mesmo quando ade-
instrumento de poder e sobre os seus limites?
quada à realidade, a palavra - ou a Iíngua como instrumen-
Como afirma 'vVerner Jaeger em Paideia e como, aliás,
to de ação - tem por limites, intranspon [veis, o poder de
o percebe claramente o próprio Dernóstenes.? a polis grega
mando e o poder econômico, para não falar no caso em que
chegara ao ponto extremo de suas possibilidades e, enquan-
os mesmos se explicitem diretamente através do poder de
to tendia ao ocaso, no horizonte oposto nascia a estrela dos
coação ffsica, ou seja, armada. Disto temos na oratória oci-
grandes Estados nacionais do Mediterrâneo. A palavra in-
dental um clássico e insuperável exemplo naquela obra ma-
cend iária de Demóstenes não perdera o sentido. Ela fora,
gistral de Demóstenes que se chama A oração da coroa. En-
simplesmente, atropelada pela história, materializada na es-
frentando as acusações maldosas de seus adversários, que
pada de Felipe e de Alexandre.
não lhe perdoavam o ter-se oposto vigorosamente, com seus
discursos candentes, à dominação macedônia sobre Atenas
e sobre toda a Grécia, o grande orador grego do séc. IV a.C.
pergunta, patético:
2 "Quem há entre os helenos e os bárbaros que ignore que, com
1 Talvez não seja fora de propósito lembrar aqui um curioso fenô- muita satisfação da parte dos tebanos e daqueles lacedernõnios, já
meno que se registra no Brasil das últimas décadas: alguns polrticos antes poderosos, assim como da parte do rei da Pérsia, teria sido
fizeram carreira aplicando a tática infalfvel de manter a boca fecha- facultada a Atenas a posse do que quisesse e a conservação do que
da. Este fato pode ser motivo de riso, sem dúvida. Mas é inegável possuía, sob a condição de se adaptar à discrição de outrem e de lhe
que tais indivíduos são suficientemente hábeis para perceber sua li- ceder a hegemonia sobre os gregos? Mas isto não estava, como é
mitação, preferindo usar exclusivamente a máquina partidária e ad- natural, nos costumes pátr ios dos atenienses; não lhe era tolerável;
ministrativa para alcançar seus objetivos, sem correr, assim, o risco nem a sua rndole. nem ninguém poderia jamais, em tempo algum,
de tropeçar na defasagem entre sua ignorância, de um lado, e a in- persuadir a Cidade que, aderindo aos poderosos, se submetesse a um
formação e o conhecimento do público, de outro. cômodo servilismo." (Tradução, como no caso das demais citações.
de Adelino Capistrano},

24
25
VI. A LlNGUA E A GRAMÁTICA

A gramática é o levantamento sistematizado, feito a


posteriori, das normas que regem determinada língua, nor-
mas estas que dizem respeito à escrita (ortografia). aos sons
(fonética), à forma das palavras (morfologia), às ligações en-
tre elas (sintaxe) e ao sentido das mesmas (semântica).
Pela própria definição e pela origem da palavra! fica
evidente que a gramática só pode existir como tal quando a
língua em questão pertence a uma cultura letrada, isto é, a
uma comunidade que use a escrita e faça dela uma das for-
mas de comunicação entre seus membros, ao lado da forma
oral. Não que em uma cultura oral, isto é, uma sociedade

! Do grego 'KGjJJJ.u = letra.


em que a escrita não exista ou tenha reduzida importância,
não haja uma gramática no sentido lato do termo. Esta exis-
te, necessariamente, pois a existência de normas básicas mí-
nimas é o próprio fundamento desta convenção que se cha-
ma túiqu«.
No entanto, a gramática no sentido estrito pressupõe
a escrita e, mais ainda, certa sedimentação e certa estratifi-
cação sociais. Em outros termos, pressupõe uma estrutura de
poder mais ou menos definida na qual as normas do escre-
ver - e do falar - tenham curso forçado. Não por nada - e
esta é uma evidência histórica - as gramáticas surgem quan-
do as respectivas comunidades - sociedades, nações, Esta-
dos ou como se qu iser chamá-Ias - atingem um grau eleva-
do de centralização adm inistrativa e pol ítica, em outros ter-
mos, uma significativa concentração de poder nas mãos de
um grupo que, por suposto, fala a //ngua correta. E a impõe
aos demais.
Por isto mesmo não procede, mesmo em se tratando de
uma Iíngua viva, a distinção entre gramática normativa e gra-
mática descritiva. Esta distinção é um sofisma resultante de VII. A LIBERDADE PELA LlNGUA:
um pressuposto idealista implícito: o de que um indivíduo UMA MIRAGEM PEQUENO-BURGUESA
tem a liberdade de falar e escrever como quiser. Isto é uma
falsidade evidente e quem afirma tal coisa só pode ser um
ingênuo ou um insano. E para prová-Io basta submeter-se a Se o qualificativo pequeno-burguês for aplicado àque-
qualquer concurso ou observar como são sancionados nega- le indivíduo que, numa sociedade de classes, ocupa uma po-
tivamente e desprezados os que falam errado. sição intermediária e um tanto indefinida, que o impede de
Expor as normas que regem uma língua ou impô-Ias delimitar com rigor seus interesses e de perceber com ade-
são, portanto, atos por sua natureza idênticos. A única dife- quação a realidade da qual é parte, então pode-se afirmar
rença que pode existir é que no primeiro caso a forma de im- que não passa de uma miragem pequeno-burguesa - ou
posição é mais sutil. A imposição, porém, é a mesma. Afinal, a c/asse-média, como se diria com mais precisão hoje - a teo-
Iíngua não é apenas - com perdão pela redundância - um fe- ria de que o suposto direito que um indivíduo tem de alte-
nômeno lingüístico, que, em condições determinadas e espe- rar a seu bel-prazer a Iíngua que fala caracteriza um ato de
cíficas, pode sofrer transformações segundo leis próprias (me- liberdade.
nor esforço, imitação,
bém e essencialmente,
padronizacâo.etc.).
um fenômeno
Uma língua é, tam-
social e pol ítico.
I
I
~ próprio da, visão pequeno-burguesa, na sua intrín-
seca incapacidade de entender o mundo, apelar para o

28
mesmo quando exercida através da fala ou da escrita, pres-
irracionalismo, tomar os efeitos pelas causas e a aparência
supõe bem mais do que inócuas alterações gramaticais. Pres-
pela realidade. No caso da teoria da liberdade pela língua
supõe o controle da informação, a posse do conhecimento
trata-se de uma típica posição pequeno-burguesa que toma
a nuvem por Juno. e, claro que não por último, o respaldo do poder, seja este
Na verdade, o que ocorre é que em épocas de rápi- de caráter diretamente pol (tlco, seja, como pode ser em
das e profundas transformações econômicas e sociais a Iín- nossa sociedade, de natureza apenas(!) econômica. Porque o
gua de uma comunidade sempre enfrenta um certo processo poder de mando e o poder econômico são os limites do
de defasagem - em particular na semântica, com menos in- poder da linguagem - e da língua como instrumento de
tensidade na sintaxe - em relação à realidade, defasagem ação.
que se explicita na incapacidade revelada pela linguagem em Para evitar confusões e mal entendidos, não é fora de
referir o real, pois em tal situação os sons passam a carregar propósito lembrar aqui, em breve digressão, que as afirma-
sentidos de coisas antigas que desapareceram, não tendo, ções acima dizem respeito somente à produção de caráter
por outro lado, sido ainda criados - ou, mais comumente, analítico e não à que se enquadra na área do que vulgar-
adequados - sons novos para novas coisas surgidas. Assim, mente se chama de arte. Esta, por sua própria natureza, não
pode-se dizer, a língua começa a ranger e durante certo tem- pode ser julgada pela maior ou menor capacidade de forne-
po difunde-se um mal-estar generalizado no setor, como cer decalques do real. Não é raro, aliás, que concepções
ocorreu na década de 1920 no Brasil e como ocorre hoje, equivocadas - do ponto de vista lógico, histórico, etc. - es-
para não citar o caso também caracterfstico dos anos que se' tejam na base de produções artísticas excepcionais. Como
seguiram à Revolução de Outubro na Rússia. também não é raro que épocas de defasagem entre os sons
Em momentos como estes, a visão pequeno-burguesa, significantes e o mundo significado, como as antes citadas,
incapaz de entender a língua como um fenômeno social e se caracterizem por serem momentos extremamente criado-
histórico e de desvendar os mecanismos que regem a socie- res em termos artísticos. Do que, mais uma vez, o Brasil da
dade como um todo, se excita e se torna, ela própria, refle- década de 1920 e a Rússia pós-revolucionária são exemplos
xo das transformações ocorridas. Contudo, inconsciente adequados.
disto, por suposto, toma os efeitos pelas causas e passa a
pregar a transformação do mundo ... pela linguagem - ou
pela língua em si =, imitando os que, em outras eras, prega-
vam a transformação do mundo pela arte engajada. I
E assim nasce a ilusão de que alterando uma regência
verbal ou trocando uma forma pronominal direta por uma
oblíqua se pode conquistar a liberdade! Mas a liberdade,

I Dacanal, José Hildebrando. Arte engajada, ópio do pequeno-bur-


guês em crise. I n: Dependéncis, cultura e literatura. São Paulo, Áti-
ca,1978.

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VIII. O PORQUE DA CONFUSÃO

Dependendo do ponto de vista, pode-se julgar lamentá-


vel, pelo baixo nrvel técnico e pela desorientação, ou sim-
plesmente divertido, por perfunctório, o renovado, e acalo-
rado, debate sobre questões como língua, gramática, etc.
Tal atitude, porém, não explica o porquê da confusão rei-
nante, cujas causas são remotas e próximas. Antes de anali-
sá-Ias fazem-se necessárias, para evitar que a confusão se
torne ainda maior, duas observações.
Em primeiro lugar, diante dos graves problemas polf-
ticos, sociais e econômicos enfrentados pelo Brasil, e pelo
continente, tais discussões são de importância, no mínimo
secundária, se é que têm alguma. Em segundo, as editoras
_ uma atividade empresarial em alta num país que se
moderniza e no qual se universalizarn a alfabetização e a a atividade catequética, fosse na sala de aula, a atividade
escolarização - e os autores I possuem o maior interesse em pedagógica, formadora, por sua vez, dos filhos das elites e
alimentar o debate, sobre qualquer assunto, pois seu objeti- dos quadros da própria Igreja. Assim fechava-se o círculo e
vo é acumular capital em cima de modismos, seja no setor o papel de ambos, portanto, imbricava-se intimamente.
do livro convencional, relativamente pouco importante, seja Afinal, o que os unia podia não ser muito mas era tudo:
no setor do livro didático, que é o negócio mais rendoso, o fato de pertencerem ao reduzido grupo de pessoas alfabe-
principalmente quando se torna rapidamente obsoleto. tizadas e escolarizadas em uma sociedade agrária e pré-in-
Numa economia de livre mercado não há como fugir a isto, dustrial, na qual a língua era o instrumento privilegiado do
se bem que na área didática o governo se verá obrigado a to- exercício do poder e da dominação social.
mar medidas drásticas, mais cedo ou mais tarde, já que a Num país que, a partir das primeiras décadas do séc.
mesma é social e politicamente muito sensível. XX, começou a transformar-se aceleradamente, passando de
À parte, portanto, a relativa desimportância do tema agrário a urbano-industrial, a questão da língua - e da gra-
e os interesses econôm icos e comerciais que em torno dele mática - teria que colocar-se. Já na década de 1920 ela
circulam, por que a controvérsia e a confusão? surge de forma violenta com Mário e Oswald de Andrade, os
Observemos de início que os gramáticos brasileiros do quais propõem, em direções diversas mas sempre em oposi-
passado dividiam-se, por sua origem, basicamente em dois çãp ao passado, reformulações ortográficas, morfológicas e
grupos: ou eram de formação leiga, e representavam um seg- sintáticas do português. Mais tarde, por volta de 1950, a
mento dos letrados tradícionais.? ou pertenciam aos qua- obra de João Guimarães Rosa - profundamente marcada
dros da Igreja Católica. Esta constatação em si não significa pela variante sertaneja - faz com que o debate renasça. Em
nada. Vista historicamente é importantíssima, pois explica ambos os casos, porém, fosse por isolados no tempo e no es-
porque era inevitável que assim fosse. Para o gramático leigo paço, fosse por quase que exclusivamente restritos ao cam-
- via de regra procedente de uma família da classe dirigente po da literatura, a questão dos gramáticos e da gramática
- a língua a ser policiada era aquela das elites, para as quais não veio diretamente à tona.
ela funcionava como instrumento de poder pol ítico e sinal O debate atual parece ser produto do novo ciclo de
de superioridade social. Para o gramático integrante dos transformações vivido pelo 'pais nos últimos quinze ou vinte
quadros da Igreja, a língua das elites - e, portanto, sua gra- anos. Diante do processo de rápida modernização social e
mática - era instrumento de sobrevivência, fosse no púlpito, da universalização da escolarização, a justificação teórica da
gramática tradicional - simples codificação a posteriori das
normas da língua das classes dirigentes - se revela frágil. E
1 Certa vez uma aluna perguntou-me porque eu escrevia livros tão os gramáticos, confusos, se perdem em meio à poeira, ora
fininhos (e tão bar atinhosl]. Na ocasião, não soube o que responder. vendo as árvores em vez da floresta, ora não vendo absolu-
Pensando bem, deve ser porque, por mais que considere isto uma de-
ficiência, sou completamente inábil para engrossar meus livros com tamente nada. Por quê?
besteiras e minha conta bancária com direitos autorais. Porque o elemento a-histórico que sustenta a gramá-
2 Sobre a função e a visão dos letrados v. Dacanal, José Hildebran-
tica trad icional - a absolutização de uma variante específica
do. A Literatura Brasileira no séc. XX - notas para uma leitura pro-
veitosa. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984.

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de um grupo social específico no tempo e no espaço - rui
diante da evidência da existência de outras variantes e,
portanto, de outras normas (nem corretas nem cultas, é
claro ... ) e do fato de que a própria variante dom inante
pode sofrer eventualmente algumas transformações, mesmo
que de reduzida importância. Ora, como tanto a visão dos
letrados tradicionais, que moldara o gramático de formação
leiga, como a visão da Igreja Católica, que moldara o
gramático de formação eclesiástica, caracterizavam-se pela
completa ausência da noção de história (como processo
evolutivo) e de suciedade (como conjunto de classes sociais
diferenciadas), a confusão torna-se generalizada.
Sem condições, portanto, de valer-se dos argumenta
auctoritatis - Camões escreveu assim, Machado de Assis
também, etc. - que eram o fundamento teórico sobre o
qual se assentava sua função, e sem condições, por sua visão
a-histórica e a-social, de relativizá-Ios, os gramáticos tradi-
cionais ficam como que de olhos esbugalhados diante do
abismo em que desaparece o seu papel social e pedagógico
tal como era entendido no passado. Se a isto se acrescentar
IX- COMO ENSINAR A UNGUA
o aparecimento de esdrúxulas teorias gramaticais e lingüísti-
cas importadas, nas quais muitos julgaram e julgam ver a
tábua de salvação que Ihes permita continuar dizendo algo
Aquilo que os manuais tradicionais de pedagogia e
supostamente coerente ou, pelo menos, que Ihes permita
didática denominam processo de ensino-aprendizagem é
impressionar o auditório e os leitores, não é difícil entender
visto quase sempre de uma perspectiva idealista, não referi-
porque o pandemônio generalizou-se.
da à realidade econômica, social, política e cultural. Um
Pandemônio que promete continuar por muito tem-
contra-senso elementar, cuja fortuna e difusão resultam da
po, pois a área é reconhecidamente impermeável à idéia de
ignorância pura e simples ou, mais comumente, da necessi-
ver a língua como um fenômeno social e histórico.
dade ideológica, implícita ou explícita, de ignorar o mundo
concreto. Por tal razão, teorizar sobre o ensino da I(ngua
em um país como o Brasil, que apresenta brutais disparida-
des sociais e culturais, é um risco evidente. Corrê-Io não é
minha pretensão aqui. As observações que seguem devem
ser vistas, portanto, como generalidades que apenas adqui-
rirão - ou não - sentido no quadro amplo da realidade

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concreta histórica e política. Creio, porém, que, pelas idéias sem dúvida, de um ponto de vista pequeno-burguês. De
expostas e pelas posições assumidas até aqui, me seja per- qualquer forma, altamente eficiente. Por outro lado, tam-
mitido fazê-Ias. bém já vi, num colégio de elite, alunos permanecerem insen-
Considerado o que foi visto nos capítulos anteriores e síveis a qualquer método, além de procurarem, por todos os
estabelecido o pressuposto de que na área do ensino da Iín- meios, ridicularizar o professor. Mas há que reconhecer: es-
gua o objetivo será sempre o de levar o aluno a falar e escre- tes, mesmo que de forma mal educada e fascistóide, tam-
ver seu idioma segundo as normas socialmente aceitas, pou- bém estavam sendo coerentes. Já possuíam tudo, econômi-
co há a dizer além de obviedades evidentes para o bom sen- ca e socialmente falando. Em conseqüência, não precisavam
so comum. Este, contudo, é tão raro que mal não fará, se do professor, a não ser como serviçal. Na implacável lógica
não fizer bem nem tiver qualquer resultado, retomar alguns do poder, por eles aplicada instintivamente, afinal, para que
princípios básicos que - dadas as condições sociais mínimas é que existem os serviçais? ...
- deveriam nortear a ação pedagógica no setor.
Três são os fatores fundamentais a serem considera- 2. O meio cultural
dos: a realidade sócio-econômica, o meio cultural e o nível ~ um princípio elementar do bom senso pedagógico
de escolarização. que o aprendizado se dá a partir do mundo do aluno. Tal
princípio é válido, antes de tudo e principalmente, no caso
1. A realidade sócio-econômica do ensino da língua. Não que o aluno tenha que ficar restri-
Em primeiro lugar, seja no aprendizado da lfnqua ou to e limitado a seu mundo, bem pelo contrário. Mas é a par-
de qualquer outra coisa, o aluno precisa estar razoavelmente tir dele que deverá ampliar sua informação e seu conheci-
bem alimentado. Sabe-se que este não é o caso, infelizmen- mento. Por isto, os temas abordados e os textos uti Iizados
te, de grande parte do alunato brasileiro de 1? grau, por devem estar, de alguma forma, relacionados com o meio em
exemplo. Em segundo, o aluno deve dispor dos recursos que vive. Neste sentido, por exemplo, pode ser considerado
mínimos em material escolar, o que também representa um pouco ortodoxo mas não deixa de ser viável e eficiente usar
problema seri íssimo no país, até mesmo no terceiro grau. De textos da crônica policial ou capítulos de uma novela como
qualquer forma, com quadro negro, giz, papel e lápis é pos- material inicial de trabalho. Da mesma forma, é absurdo tra-
sível, com um pouco de boa vontade, fazer verdadeiros mi- tar de temas urbanos no meio rural ou despejar - como vi
lagres no ensino da língua. Já vi alunos quase miseráveis - "recentíssimas" teorias lingüísticas chegadas do exterior
apresentarem resultados surpreendentes com a aplicação sobre alunos de uma Faculdade do interior recém-saídos da
dos tradicionalíssimos métodos do ditado, da cópia e da dis- roça! Isto sem levar em conta a discutlvel inteligibilidade de
cussão de textos - de jornais e revistas - que tratavam, por tais teorias mesmo para mentes mais sofisticadas intelectual-
suposto, de temas mais ou menos próximos da realidade em mente!
~
que viviam. Qual era o seqredo? Simplesmente, além do res-
peito, a tática de mostrar-Ihes que aprender a falar e a escre- 3. O nível de escolarização
ver direito era fundamental para sua sobrevivência futura, pa- Abstraída a família como base do aprendizado das
ra conseguir um emprego, etc. Uma pedagogia conservadora, formas correntes de falar e escrever e considerada uma

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situação mais ou menos normal em termos da relação faixa
teorias lingüísticas à parte, neste estágio a gramática dita
etária/nível de escolarização, talvez não seja totalmente
tradicional presta um serviço inestimável.
incorreto estabelecer três faixas principais no que diz res-
Finalmente, na terceira faixa, o aluno de Letras deve
peito a técnicas de ensino (ou de acompanhamento, se al-
ser levado a dominar e a analisar a língua em todos os seus
guém, mais crítico, argumentar que tal palavra é por demais
ruveis.' a estudá-Ia Como fenômeno histórico-social e a vê-
impositiva e pretensiosa):
Ia como seu futuro instrumento de trabalho. Sobre isto não
até a qu inta ou sexta série do 1? grau
há por que se alongar, pois o que poderia ser dito já o foi,
da sexta ou sétima série do 1? grau até o final do
neste e nos capítulos anteriores. De qualquer forma, nunca
2? grau
é demais repetir que teorias esdrúxulas, nacionais ou impor-
nas Faculdades de Letras
tadas, devem ficar na lata de lixo, de onde nunca deveriam
Parece ser pacífico que na primeira faixa o aprendiza-
ter saído.
do da I(nqua se processará fundamentalmente por assimila-
Encerrando e resumindo tudo em poucas palavras: no
ção, sem complicações teóricas de qualquer tipo. Através da
aprendizado da língua, em todas as situações e em todos os
leitura e da d iscussão de textos adequados que despertem
níveis, deve ser aplicado o mais antigo, o mais moderno e o
seu interesse e lhe dêem elementos para a prática da escrita,
mais eficiente dos métodos, o método de fazer falar, fazer
o aluno deve ser induzido a familiarizar-se com as normas
ler e fazer escrever. O mais é conversa fiada de ignorantes
do - como diziam os antigos .9ramáticos - bem falar e bem
e incompetentes.
escrever, isto é, com as normas da Iíngua socialmente aceita.
Tudo isto nada mais é do que simples e antiqu íssimo bom
senso cuja eficiência já foi tantas vezes comprovada que não
precisa sê-Io mais uma vez. Ao contrário de métodos "mo-
dernos", cuja eficiência nunca foi comprovada e, portanto,
nem merecem ser discutidos.
Na segunda faixa, mantidas a prática da leitura, da
discussão e da escrita, ao processo de ensino devem ser agre-
gados, necessariamente, dois novos elementos, um de cará-
ter técn ico e outro de caráter pedagógico amplo. Do ponto
de vista técnico, se não for essencial é, pelo menos, alta-
mente produtiva a introdução de conceitos básicos de mor-
fologia e sintaxe e a análise da estrutura lógica da frase, do
período e da composição. Do ponto de vista pedagógico, o
aluno deverá dispor, na medida do possível, da liberdade de
escolher os textos e os temas sobre os quais vai trabalhar.
1 Observados os limites do bom senso. Semântica, por exemplo, não
Modismos teóricos, arvorezinhas ininteligíveis e obtusas
se aprende teoricamente mas na prática, quer dizer, lendo textos de
todas as épocas, de todas as áreas e de todos os ruveis.

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x. ADENDO
Entrevista ao Jornal JA 1

JÁ - Há muitos anos você está bastante afastado da


vida intelectual da cidade, não tem dado entrevistas e nem
escreve. Por que aceitou agora falar a JÁ?
José Hildebrando Dacanal - Vamos por partes. Tudo
a seu tempo. De fato, andei e ando meio afastado. Sabe,
filhos, negócios, compromissos profissionais e, em última
instância, os interesses pessoais determinam que se escolha
isto ou aquilo. Agora, contudo, se juntaram uma série de
coincidências, que, quero deixar bem claro, nada têm a ver
com a entrevista de um colega meu no número anterior.

1 Porto A legre, nO 1, outubro de 1985.


na, é claro. Agora, para ser entendido, vou tentar fazer com
Pelo contrário, há anos venho me irritando com os que
que esta indignação - no que estou bem acompanhado,
chamo de pretensos novos gramáticas. Os meus alunos sa-
pois o redator do Eclesiestes, há cerca de três mil anos
bem disto. Não se trata de uma ou duas pessoas, nada a ver.
atrás, já dizia, segundo a versão dos Septuaginta: Stu/torum
I: uma teoria que há muito está no ar. Inclusive, faz vários
infinitus est numerus! - vou fazer com Que esta indignação,
anos que esbocei um livrinho que deveria chamar-se Lingua-
repito, seja sufocada em benefício da lógica e da organiza-
gem, poder e ensino da ttnçue. Pelas injunções citadas acima,
ção. Assim, tentarei esboçar em umas poucas linhas o con-
o ensaio não avançou muito e é possível que não avance ...
teúdo do citado livro, Que talvez jamais venha a ser publica-
JÁ - Mas, afinal, por que agora?
do. Antes, porém, solicito compreensão pela nâo-explicita-
JHD - Está bem, porque surgiu este jornai aí interes-
ção rigorosa dos conceitos utilizados - neste espaço impos-
sado nestes assuntos e porque o assunto é de meu interesse.
sível - e pela forma extremamente condensada, quase tele-
Veja, nas Faculdades de Letras de todo o país, principal-
gráfica, com que as idéias serão apresentadas.
mente nas disciplinas de Lingüística, estão circulando estas
JÁ - Ainda bem, olha o espaço ...
teorias a que me referi. Inclusive aqui. A minha atividade
JHD - Partamos de um pressuposto fundamental,
profissional é a de professor de Literatura Brasileira. De
que no meu projeto de livro está na metade do caminho de
acordo com um método testado há algum tempo - ele não
uma longa série de raciocínios e que aqui passarei a conside-
chega a ser recente, tanto que na pedagogia do Ocidente
rar como uma evidência. Este pressuposto é o seguinte: uma
remonta, pelo menos, ao séc. IV antes de Cristo! - não dou
língua é e só existe primordialmente como uma convenção,
muito valor a aulas expositivas. Procuro fazer ler, pensar,
um acordo entre membros de um grupo, um acordo em cuja
discutir e escrever organizada e corretamente ...
base estão dois elementos técnicos, que são a capacidade de
JÁ - Corretamente, o que é corretamente?
emitir e captar sons, que não é exclusiva dos humanos, ea
JHD - Espera, é aí que bate o ponto. No semestre
capacidade de orqanizá-los como símbolos, isto é, referi-Ios
passado corrigi cerca de 400 dissertações. I: claro que para
à realidade, ao mundo circundante. Uma língua é, portanto,
tanto sou pago mas, mesmo assim, estaria eu sendo ignoran-
em princípio, uma convenção de um grupo, como o são os
te ou incompetente ao fazer isto, na linha de uma pedago-
sinais de trânsito (em princ/pio, anote, pois este problema
gia abonada por quase dois milênios e meio? I: o que afir-
terá desdobramentos a seguir, se houver espaço). Mas esta
mam os pretensos novos gramáticas, segundo os quais meu
convenção é fruto de um processo, digamos,. democrático?
trabalho de sanção é inútil e até prejudicial. Coitados, eles
Teoricamente, sim, se imaginássemos que qualquer grupo de
ouviram cantar o galo e não sabem onde.
indivíduos com o mesmo poder econômico e social pudesse,
JÁ - Como, não estou entendendo?!
a qualquer momento, criar uma língua. E pode. Mas, na prá-
JHD - Desculpe, estou antecipando. ~ que o limite
tica, o que ocorre é que esta convenção que se chama l/nçue
da suportabilidade da estultícia humana é aquele ponto
se torna uma imposição, A língua é uma imposição histórica
abaixo do qual o estulto passa por sábio, o sábio por estul-
e social, apesar de funcionar tecnicamente como uma con-
to, o incompetente por competente, o competente por in-
venção. Isto são obviedades e se eu passar por inteligente ao
competente. Observe que as teorias dos pretensos novos gra·
dizê-Ias credite isto ao meio ... Em resumo, os pretensos
máticas colocam em xeque meu trabalho. t o Que me indig-

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novos gramáticas, coitados, ouviram cantar o galo e não a administração do Estado a partir da expulsão dos mouros?

sabem onde. Andam como baratas tontas. Pois é claro, Ou que o nosso dito código urbano culto seja a variante da

lingüisticamente não há certo ou errado, não pode haver ... administração de D. João VI e do Império e não a variante

JÁ - Como? Você está se contradizendo ... caipira paulista ou a sertaneja? Obviedades, obviedadesL Os
JHD - Calma, calma. Lingüisticamente não há certo ou pretensos novos gramáticas são uns ingênuos, não tanto por
errado porque, estabelecida a convenção, esta, por definição, atacarem a gramática, simples levantamento a posteriori das
está correta. A variante caipira - hoje em extinção - do por- regras da variante utilizada pelas classes dirigentes, mas prin-
tuguês estava ou está tão correta como a variante dita CU/t.1
cipalmente por não verem a lingua como um fenômeno in-

Na variante caipira dizia-se ou diz-se: eu fazia, nóis fazia, etc.. tegrante da evolução histórica e das estruturas de poder de

sem flexão. Aliás, no inglês também: I teke, we teke, etc. Em uma sociedade. E: aí que eles se perdem, caindo, por sua
miopia histórica, numa contradictio in terminis tão elemen-
termos lingüísticos, isto é, considerada a língua primordial e
tar que até se tornam divertidos. Você não vê como atacam
abstratamente como uma convenção, tudo está certo.
Contudo, a Iíngua só funciona como uma convenção. a gramática utilizando o mais escorreito e castiço portu-

Mas ela não é simplesmente isto. Ela é um fenômeno social guês?! E: claro, eles podem ser burros mas não são loucos,
e histórico. E por isto falar como um caipira está socialmente não querem passar por marginais sociais, por isto usam rigo-

errado e falar inglês está certo ... Quer dizer, não estou fa- rosamente a variante dita culta. Obtusos e confusos na teo-

zendo ironias, estou me referindo ao fato de tanto a varian- ria gramatical e lingüística, os pretensos novos gramáticas

te caipira como o inglês não terem a flexão. Enfim, sacia/- são muito coerentes na prática social: eles devem pensar - e
mente há certo ou errado. E quem determina o que está com razão - que se não usarem a variante dita culta não te-
certo ou errado? Ora, elementar: a língua (ou variante) do- rão autoridade para dizerem o que dizem ... Não é fantásti-
minante co? É divertidíssimo! Bem mais coerentes em todos os sen-
,em uma época é a Iíngua (ou variante) da classe do-
minante naquela época. Resumindo esta seqüência um tidos são os defensores da gramática tradicional. Estes apli-
pouco desordenada de raciocínios: toda língua é, por defi- cam os argumenta euctoritetis e fim de papo ...
nição, uma convenção imposta pela classe ou grupo sócio- JÁ - Mas como é que se chegou a esta confusão to-
economicamente dominante ... da?
JÁ - Espera aí, isto é radical ... JHD - Boa pergunta. A história é longa e eu abordei
JHD - Você o disse bem, radical, no sentido de pri- o assunto genericamente em um ensaio publicado pela Mer-
mordial, elementar, básico. Ou, como prefiro, óbvio. Ou cado Aberto e intitulado A literatura brasileira no século
você acha que é mera coincidência que a Iíngua francesa Xx. Resumidamente, esta confusão é resultado de duas coi-

seja a variante da Ile-de-France, onde, por volta dos séc. sas. Em primeiro lugar, das profundas modificações que afe-

XIII/XIV nasceu o Estado nacional francês? Ou será acaso taram a sociedade brasileira nos últimos, digamos, vinte

que o italiano oficial seja o toscano, a região em que fica F 10- anos, em todos os setores. Em segundo, da função que os

rença, a pérola do Renascimento em termos econômicos, letrados - e entre eles os gramáticos - exerciam na socie-

sociais, polític.os e culturais? Ou que o espanhol de hoje seja dade brasileira do passado e da formação que Ihes era pró-
pria, formação esta muito ou completamente limitada em
a variante dos pequenos reinos sobre os quais se estruturou

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termos de informação histórica e de percepção social. Sem
JÁ - Neste seu projeto de livro uma parte do título
poder me prolongar sobre este assunto, eu diria que a rapi-
fala em "ensino da lfnqua". Como você ensinaria portu-
dez das mudanças tomou de surpresa os letrados, os quais,
guês?
sem nenhuma visão histórica, ficaram desarvorados. Não
JHD - Ensinaria, não! Ensino! Já fui especificamente
costumo usar meias palavras nem dizer o que não penso.
professor de Ungua Portuguesa e continuo sendo na práti-
Por isto me sinto em liberdade para afirmar que, apesar de
ca. Como ensino? Do que foi dito se pode deduzir tudo:
achar que certas idéias suas são extremamente contraditó-
procurando mostrar que a I(ngua é um fenômeno histórico-
rias e logicamente insustentáveis, admiro o prof. Luft por-
social ligado às estruturas de classe e levando o aluno a com-
que ele ousa pensar, arrisca avançar. E le foi meu professor
preender que ele precisa, necessariamente, por uma questão
e nunca me criou problemas. Mas pedagógica e tecnicamen-
de sobrevivência econômica, dominar o chamado código ur-
te minha posição é outra, completamente outra. Pol itica-
bano culto. Aliás, se eu fosse partidário da teoria conspira-
mente não sei. Quanto a mim, por ora sou um pequeno pro-
tiva da história e se os pretensos novos gramáticos tivessem
prietário independente e posso me dar ao luxo de dizer o
alguma noção do que seja história e de como funciona a
que penso. As pessoas não gostam disso. Eu entendo. É que
sociedade eu diria que eles estão tentando impedir que,
eu muito cedo aprendi que no nosso sistema só tem um rru-
mesmo por acaso, integrantes dos grupos sociais inferiores-
nimo de liberdade quem tem um mínimo de posses. Apren-
consigam romper as barreiras de classe. Evidentemente, ne-
di e tirei as conseqüências ...
nhuma das hipóteses é verdadeira, principalmente a segun-
JÁ - Você está passando a outro assunto, sua vida
da. Tenho a impressão de que os pretensos novos gramáti-
não interessa ...
cos aplicam rigorosamente o preceito evangélico segundo o
JHD - Como não interessa? Isto revela a sua miopia
qual a mão direita não deve saber o que faz a esquerda.
histórica. Claro que a minha posição social interessa. Eu
Aliás, pelo que sei, alguns deles nem devem distinguir a di-
posso pensar de forma independente e dizer o que penso
reita da esquerda. Voltando ao ensino: de que é que precisa
porque pertenço a um grupo social muito específico, os pe-
um aluno pobre ou quase pobre do primeiro ou segundo
quenos proprietários imigrantes independentes, muitos dos
grau? Em primeiro lugar de comida, é claro. Em segundo,
quais na terceira ou quarta geração ascenderam socialmente
de educação básica: aprender a fazer contas, a pensar orga-
de forma rápida no Rio Grande do Sul. Por variados cami-
nizadamente e a escrever segundo as normas do dito código
nhos e em vários setores, desde o intelectual até o das redes
urbano culto. E isto que lhe garantirá no futuro um empre-
de supermercados e empórios comerciais. Eu, por exemplo,
go e lhe dará, talvez, a capacidade de defender seus interes-
só pude estudar porque existiam os antigos seminários da
ses_ E claro que, pedagogicamente, este aprendizado não
Igreja Católica, à qual os camponeses italianos estavam inti-
pode ser imposto pelo professor de forma autoritária e com
mamente ligados. E claro que hoje a situação mudou e mui-
desprezo pelas formas de falar do aluno. Já tive experiência
tos descendentes de imigrantes engrossam as favelas das
nisto. Há que fazer com que ele se interesse pela leitura, por
grándes cidades. Este sim é outro assunto. Mas eu queria,
escrever, por discutir, o que o levará, automaticamente, a
antes de terminar, atacar também os pseudolingüistas, para
escrever e a falar segundo as normas correntes e socialmente
ser justo com todos ...
exigidas. E claro - mais uma destas estranhas coincidências!

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- que os filhos dos ricos, dos intelectuais e até dos preten- servem ... À primeira vista uma afirmação deste tipo pode
sos novos gramáticos - neste último caso apesar dos pais! - parecer fruto de um distúrbio mental momentâneo ou, caso
não têm este problema. Coerente, não? clínico mais grave, de uma malformação neuronal congêni-
JÁ - ~, visto deste ângulo ... ta. Mas não é! Surpreendente, não?! Trata-se apenas da uti-
JHD - Como "visto deste ângulo"? Ora, em termos lização simplória e colonizada de teorias que possuem uma
pedagógicos e técnicos este é o único ângulo. Claro que eu funcionalidade específica no contexto em que surgiram,
sei que a questão é de vontade pol ítica e que seria uma funcionalidade e contexto desconhecidos por quem as papa-
grande ingenuidade pensar que as classes médias intelectua- gueia. E aí entra a terceira história, que me permitiu montar

lizadas e bem remuneradas venham a defender interesses um quebra-cabeças que há anos me incomodava e para o

outros que não os delas. Dominação sempre existiu e sem- qual eu não encontrava explicação lógica. Você sabe onde

pre existirá. Mas o que eleva meu nível de adrenalina no nasceram as "modernas" teor.ias lingüísticas norte-america-

sangue é ver conservadores ignorantes, como o são os pre- nas? Não? Nem eu sabia. Eu as achava estranhíssimas mas
tensos novos gramáticos, botando banca de liberais e pro- nunca me tinha preocupado com sua origem. Foi um pro-
gressistas. ~ também o caso de alguns teóricos de literatura fessor de Lingüística, aliás, este sim parece que muito bem
infantil. E as crianças vão atrás. As grandes, entenda-se. Por informado, que me deu a chave para decodificar a mensa-
tudo isto, é muito mais saudável cuidar das minhas vacas. gem, como dizem os papagaios. Tais teorias nasceram num
Estou chegando lá ... departamento do serviço de espionagem da Marinha norte-
JÁ - Isto aí vai dar rolo ... Bem, para terminar, o americana, ou coisa parecida, no qual Noam Chomsky, an-
que você tem contra os lingüistas? tes de se tornar o pacifista e o grande analista pol ítico que

JHD - Contra os lingüistas, não. Contra ospseudolin- é, trabalhou. Claro, aí me deu o estalo. Id iota eu por não

güistas. Contra os lingüistas, apesar de achar que, como em ter feito a ligação antes! Está percebendo? Qualquer pessoa

literatura, há pouca coisa a dizer que não tenha sido dita, minimamente familiarizada com álgebra e análise combina-

nada tenho. Contra os pseudolingüistas que papagueiam tória sabe de duas coisas: um código secreto é tanto mais

teorias importadas sem saber o que dizem, sim. Vou lhe difícil de ser decifrado quanto maior for o número de sinais

contar umas histórias. que o compõem e, segundo, cada um destes sinais tem que

Para tentar elevar o n (vel de discussão na área, há ser un ívoco. Por outro lado, todo cód igo secreto tem uma

muito tempo costumo perguntar às pessoas, em aula e fora chave e esta chave, que lhe dá valor, é também seu ponto
frágil. Se ela não existir, o código é indecifrável e, portanto,
dela, para que serve, em primeiro lugar, o estudo de línguas til
inútil. Se ela existe, então pode ser encontrada e a mensa-
e de lingüística nos Estados Unidos e na URSS. E respondo:
gem é decodificada (note como estes dois últimos substan-
para formar técnicos para a CIA, a NSA e a KGB. Riem-se
tivos que empreguei fazem parte destas "modernas" teorias
de mim com o riso alvar da ingorância. Que Deus os proteja,
lingüísticas!). Resumo: nos serviços de espionagem é funda-
como protege aos pequeninos e aos pobres de espírito! Esta
mental - para cifrar e decifrar - reduzir uma Iíngua, quan-
é a primeira história. Agora a segunda. Conheci um profes-
do empregada em código, às suas estruturas sintáticas ele-
sor de l.inqürstica que ensinava sua disciplina com exemplos
mentares. Tanto para montar códigos quanto para decifrar
em inglês porque, dizia ele, os exemplos do português não

50 51
.t

os do inimigo, sempre através de jogos combinatórios cons-


tantes. ~ um jogo de gato e rato que a rapidez de processa-
mento dos computadores tornou frenético. Não sou muito OUTROS TfrULOS DA SERIE REVISÃO"

entendido no assunto d KG B deve sê-lol - mas dá para


perceber por que aquele professor não sofria de distúrbio HISTÓRIA DO RIO GRANDE DO SUL
mental ao afirmar que Lingüística só se pode ensinar em in- Sandra Jatahy Pesavento
glês (e em russo, acrescentaria eu!)? Na verdade, neste caso 2 A LITERATURA NO RIO GRANDE DO SUL
não se está mais lidando com o inglês de Shakespeare ou de Regina Zilberman

Faulkner nem com o russo de Dostoyevsky ou Tolstoi mas 3 HISTÓRIA DO BRASIL CONTEMPORÃNEO
Lu iz Roberto Lopez
sim com análise combinatória, com álgebra. Naturalmente,
4 HISTÓRIA DO BRASIL COLONIAL
nem o inglês de Shakespeare 00 de Faulkner nem qualquer #
Luiz Roberto Lopez
outra Iíngua, com suas quase infin itas nuances semânticas
5 CINEMA BRASI LEI RO
e construções sintáticas, se adapta às "modernas" teorias Hélio Nascimento
lingüísticas ... Mas disto o professor nunca tinha ouvido t6 CONTO BRASI LEI RO CONTEMPORÃNEO
falar! Antonio Hohlfeldt
"'"
Bem, vou parar por aqui antes que me convidem para 7 O ROMANCE DE 30
trabalhar no SN I. Devem estar precisando de gente compe- José Hildebrando Dacanal
tente lá. O Paulo Francis estes dias escreveu na Folha de 8 HISTÓRIA DO BRASI L IMPERIAL
São Paulo - não sei se é verdade, mas ele escreveu - que o Luiz Roberto Lopez
Itamarati utiliza há anos o mesmo código para enviar men- 9 O ESCRAVISMO BRASILEIRO
Décio F reitas
sagens diplomáticas e comerciais. Parece piada, pois qual-
quer neófito na área sabe que hoje, dada a quase instanta- 10 ESPAÇO & SOCIEDADE NO R. G. DO SUL
Igor A. G. Moreira e Rogério H. da Costa
neidade do processo de análise em computador, um código
11 HISTÓRIA DO SÉCULO XX
secreto só pode ser usado uma vez. Na segunda o inimigo
Luiz Roberto Lopez
já terá a chave.
12 EUA X AMÉRICA LATINA: as etapas da dominação
Interessante, não? Como você vê, há muito mais coi- Voltaire Schillin9
sas entre o céu e a terra do que pensam nossos pretensos 131 - A LITERATURA BRASILEIRA NO SÉCULO XX
novos gramáticos e nossos pseudolingüistas. Espero que eles - notas para uma leitura proveitosa
decodifiquem minha mensagem ... '" José H ildebrando Dacanal

JÁ - Piadista ... 14 - A REVOLUÇÃO NA CHINA


- Colonialismo / maoísmo / revisionismo
JHD - Eu não. Eles!
Voltaire Schilling
15 - LITERATURA GREGA
Donaldo Schüler
16 - O TENENTISMO
Nelson Werneck Sodré

52
SBRIE NOVAS PERSPECfIVAS

I
I. Leitura em crise na escola
- as alternativas do professor
17 - O BANDO DOSOUATRO (Vários)
2. A estrutura do autoritarismo brasileiro
- A industrialização no sudeste asiático
Samuel Sérgio Salinas
, (José Antonio Giusti Tavares)
3. A produção cultural para a criança
(Vários)
18 - ANL: IDEOLOGIA & AÇÃO 4. Escravos e senhores-de-escravos
Leila M. G. Hernandes (Décio Freitas)
5. Leitura & realidade brasileira
1~ - LINGUAGEM PODER E ENSINO DA LlNGUA (Ezequiel Theodoro da Silva)
José Hildebrando Dacanal 6. Invasão da catedral:
literatura e ensino em debate
20 PORTUGAL: DO FASCISMO À REVOLUÇÃO (Lígia Chiappini M. Leite)
José Paulo Netto 7. Raça & cor na literatura brasileira
(David Brookshaw)
21 HISTÓRIA DA AM~RICA LATINA 8. Atualidade de Monteiro Lobato
Luiz Roberto Lopez - uma revisão crítica
(Vários)
22 O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO 9. Metodologia e prática do ensino da
Otto Alcides Ohlweiler lín~ua portuguesa
(Varios)
23 A LITERATURA EM SANTA CATARINA 10. Materialismo histórico e crise
Janete Gaspar Machado contemporânea
(Otto Alcides Ohlweiler)
24 O MOVIMENTO PALESTINO li. Lingüística aplicada ao ensino
Mustafa Yazbek de português
(Varios)
25 BREVE HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO 12. Palmares: a guerra dos escravos
Mario Maestri (Décio Freitas)
13. Nordeste - a urbanização do
2~ A INTENTONA COMUNISTA subdesenvolvimento
Nelson Werneck Sodré (Walncy Moraes Sarmento)
14. A educação nacional
27 GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DO (José Verissimo)
CAPITALISMO NO CAMPO BRASILEIRO 15. Ensino e literatura no 2? grau:
Jacob Gorender problemas & perspectivas
(Letícia Malard)
2a) - LlTERATURA.E HISTÓRIA NO BRASIL 16. Comunicação e transição democrática
CONTEMPORANEO (Vários)
17. Metodologia do ensino de ciências
Nelson Werneck Sodré (Georg Hennig)
29 - A FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA 18. Literatura infanto-juvenil
um gênero polêmico
NO BRASIL
(Vários)
José Antonio Segatto 19. A escolarização do leitor:
a didática da destruição da leitura
~ - A PONTUAÇÃO - Teoria e prática (Lilian Lopes Martin da Silva)
José Hildebrando Dacanal 20. Teorias poéticas do Romantismo
(Luíza Lobo)
31 - HISTÓRIA DA ÁFRICA NEGRA 2 I. Alfabetização sem be-a-bá
PRÉ-COLONIAL (Maria Tereza L. Cardoso e Dolorcs Machado)
Mário Maestri 22. Ideologia, educação & repressão no Brasil
pós-64
(Nize M. Campos Pellanda)

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