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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
CURSO DE MESTRADO

URBANA LEGIÃO
consumo e contestação no rock brasileiro
nos anos 80

PAULO MARCONDES FERREIRA SOARES

Dissertação apresentada para obtenção do grau de mestre


em sociologia sob a orientação da Profa Dra. Silke Weber.

Recife, outubro de 1994


DEDICATÓRIA

Gostaria de dedicar este trabalho aos meus filhos Naiana, Caio, Marília e André. Com
muito amor.

Aos meus pais. Grande força.

Aos meus irmãos. Com alguns deles eu vivo uma verdadeira onda sonora.

A Gabriela, companheira, “todo amor que houver nesta vida”.

A Clélia, novos caminhos.

A Henrique e Marcelo, parceiros.

A Jorge, o amigo.

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AGRADECIMENTOS

• Agradecimentos especiais vão para os professores Roberto Mota e Silke Weber que, em

momentos distintos, estiveram na orientação da presente dissertação. Prof. Roberto

acompanhou desde o início, sempre atenciosamente, cada etapa do desenvolvimento do

trabalho. A ele sou muito grato. A Profa Silke, de um modo entusiástico, mesmo antes de se

tornar minha orientadora, muito me encorajou na procura de um roteiro crítico e coerente

para este estudo. Nossas discussões sempre foram estimulantes. Suas pontuações no

tocante às conclusões finais da pesquisa foram precisas e preciosas. A ela só tenho a

agradecer.

• Um agradecimento muito especial vai, também, para o Prof. Jorge Ventura. Colega e

amigo que, desde a primeira hora, se mostrou um interlocutor informado e de uma singular

sensibilidade crítica. A ele vai todo meu apreço e carinho.

• Aos meus professores do curso de mestrado.

• Às funcionárias Albenise e Lucinha.

• Meus agradecimentos a Aíla, que por horas e horas esteve às voltas com a digitação de

parte substancial deste trabalho.

• Um grande número de pessoas é merecedor de agradecimentos. Gostaria de deixar a elas

meu o reconhecimento, sem a obrigação de nomeá-las. Assim, poupo-me das injustas

omissões.

• Ao CNPq e a CAPES, pela concessão de bolsa de estudo.

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Escribir rock no se considera adecuado
en un curriculum vitae académico;
“Sociologia” es un insulto
para los escritores de rock
Simon Frith

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RESUMO

Este estudo busca contribuir para o debate que identifique elementos favoráveis a

processos emancipatórios na comunicação. Assim, traçou-se um quadro de teorias que

encontram-se orientadas para aqueles processos. Procurou-se investigar tais fatores no

interior de uma cultura jovem, em características por ela assumida no Brasil recentemente,

quando da abertura política e de uma maior expansão de uma cultura de consumo. É aí que

se vai entender a importância dos media entre nós; sendo o fenômeno do rock, grande ex-

plosão de público nos anos 80, o objeto específico de investigação aqui.

Trata-se de investigar o ponto em que as letras do rock expressam uma crítica do

cotidiano, e em que medida tal discurso estabelece mediações com o mundo de representa-

ções da cultura juvenil; sobretudo, em formas que aí assumem um caráter de negação dos

valores do establishment. Assim, procura-se afirmar dada direção em que certas manifes-

tações deste gênero musical são potencialmente operadoras daquele veio emancipador.

Com efeito, a análise realizada indica, no rock, um texto cuja crítica do cotidiano

tanto se encontra em elementos de ceticismo e resignação, quanto em formas utópicas e

desejantes de mudança, mesmo como discurso fragmentário e caótico; percebendo-se uma

tensão entre ambos os aspectos num mesmo texto. Processos de desterritorialização e exo-

gamia cultural vividos pela juventude no cotidiano atual, apresentam-se, em suas media-

ções, de modo manifesto na produção do rock tomado aqui como referência.

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SUMÁRIO

Resumo 05

Introdução 07

Capítulo I - Tópicos de uma Teoria Social Crítica da Comunicação em Massa 11


1.1 Sobre o Desencantamento do Mundo, o Simulacro e o Caráter Afirmativo
da Cultura na Teoria Crítica da Sociedade de Consumo 12
1.2 Elementos de uma Teoria Crítico-Emancipatória da Comunicação:
Reprodutibilidade, Espontaneidade e Processos de Mediação 21
1.3 Em Torno de um Debate Sobre a Crise da Modernidade e Sobre o
Surgimento da Pós-Modernidade 52

Capítulo II - Caracterizações: Rock, Juventude e Vida Urbana 62


2.1 Aspectos Sociais da Canção de Grande Circulação
(Em Particular do Rock) 63
2.2 Elementos da Cultura Juvenil 82
2.3 Dimensões da Urbanização na Contemporaneidade 97

Capítulo III - Sobre o Método: Pontos de Orientação a uma Análise das


Letras do Rock Brasileiro 115

Capítulo IV - Figuras Urbanas do Cotidiano: Caos, Resignação e Crítica


no Discurso do Rock Nacional - Anos 80 143
4.1 Presença do Rock no Brasil 145
4.2 As Letras do Discurso 166

Conclusão 215

Bibliografia 219

Discografia Citada 225

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INTRODUÇÃO

O caminho percorrido no presente estudo diz respeito à análise do discurso das

letras de música do rock brasileiro dos anos 80, a partir da consideração de certos

elementos que nele traduzem a mediação de um determinado olhar passível de uma

prefiguração do cotidiano urbano brasileiro atual. Na medida em que não se possa atribuir a

esse determinado discurso a característica de uma unidade como um movimento ou

programa estético-musical, visto não haver esta dimensão ou propósito no tocante às

manifestações desse rock no Brasil; pode-se, no entanto, falar de uma perspectiva

convergente, até certo modo, em relação àqueles elementos de representação de certas

imagens configuradoras do nosso cotidiano.

Acrescente-se a isso, o fato de que tais elementos não emprestam ao rock apenas as

mediações críticas de um horizonte social e político do presente mundo; devendo ser pen-

sado, sobretudo, no sentido de como essa forma crítica atua por um discurso aqui apreen-

dido como característico de uma cultura jovem, tal como se poderá encontrar posto no

desenvolvimento deste trabalho: tratando-se, assim, de um discurso cuja forma se apresenta

de um modo amplamente fragmentário e contraditório, e que tende a expressar um universo

de representações bem apropriado ao que estará sendo vislumbrado como expressão de uma

linguagem jovem e adolescente. Notadamente, em seus aspectos relativos aos problemas de

construção da identidade e de um maior descompromisso e, mesmo, de uma disposição à

negação de valores do establishment, ao menos em certo segmento desta categoria de

cultura jovem.

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Desta perspectiva, e como objetivo básico deste estudo, procurou-se identificar aí,

em meio a um discurso caótico e, por vezes, cético e resignado no que se refere às manifes-

tações relacionadas à crise de identidade e aos conflitos com a ordem social estabelecida, a

elaboração de um discurso de negação, desejante de mudanças (tanto em nível individual

quanto social), que possa conter uma forma crítica capaz de ser potencializadora de um veio

emancipador neste produto da comunicação de massa, na própria medida em que uma tal

instância possa inspirar "utopias" de mudanças, face ao status quo dominante, no âmbito de

um segmento social jovem que, por formas de predisposição (Prokop), se sente identificado

com esse discurso e, mesmo, nele representado.

A partir disso, consumo e contestação assumem uma função problematizadora cen-

tral para este estudo, em particular, no que se refere ao fato de que, no âmbito das atuais

sociedades urbano-industriais, o conjunto das manifestações culturais encontra-se altamente

permeado de uma esfera de produção da cultura comercial. Nesse sentido, o caráter

ambíguo assumido por aquele binômio passa a exigir uma investigação que leve em consi-

deração a existência de um elo mediador que possibilite a expressão da crítica social e da

linguagem estético-artística no interior do processo comercial de produção cultural: expres-

são crítica essa que pode contemplar tanto o que Becker tipificou como sendo a categoria

dos "Inconformistas" (do ponto de vista do mundo dos artistas), quanto o que Jameson

especificou como "hermenêutica utópica" (da parte do público fruidor), como se verá adi-

ante. Aliás, esse fica sendo um aspecto importante na orientação de uma apreensão de

imagens dialéticas do cotidiano, que possa ser apresentada como potencializadora daquele

veio emancipador na comunicação de massa: aqui delimitada em termos do rock brasileiro

recente.

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O primeiro capítulo procura levantar uma discussão a propósito de uma formaliza-

ção de tópicos concernentes ao que se poderia denominar por teoria social crítica da co-

municação, com especial interesse para os aspectos dessa teoria que apontam para contex-

tos crítico-emancipatórios no interior da comunicação de massa. Sendo assim, considera-se

por teoria crítica algo mais amplo do que o que representaria o debate inicial da Escola de

Frankfurt, tomando-se por tal a discussão posterior que tem nesta escola o seu ponto de

referência e diálogo críticos: incluindo-se, aí, alguns pontos do debate sobre questões rela-

tivas à crise da modernidade e ao surgimento de uma pós-modernidade.

No capítulo segundo, elabora-se uma caracterização de três aspectos importantes

para o entendimento do universo temático formulado por este estudo: são as especificações,

em linhas gerais, do que aqui se está entendendo por canção de consumo, por juventude e

por cotidiano urbano. O entrecruzamento destes aspectos torna-se de crucial importância

para o entendimento do que venha a ser configurado como cultura juvenil em sua relação

com a cultura comercial capitalista.

O capítulo terceiro trata mais das questões metodológicas relacionadas à análise das

letras de música do rock, tomando a análise de discurso em seu aspecto mais sócio-político,

diga-se assim, como "produto histórico-social", do que em seu campo mais estritamente

lingüístico. Para isso, buscou-se seguir um roteiro de análise que, inspirado na configuração

benjaminiana das imagens dialéticas, no dialogismo do processo cultural em Bakhtin e na

dimensão identificada por Jameson de um inconsciente político no campo do discurso que

deve ser investigado em termos da coexistência contraditória de imagens sígnicas,

possibilitasse caracterizar, no discurso das letras, uma constelação de elementos

apresentados como um modelo de desagregação, negação ou ruptura face a muitos dos

valores sociais estabelecidos. Seriam eles, expressamente, os elementos de independência

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pessoal (autonomia), liberação sexual, negação da família e desobediência civil, pensados

mais em termos do grau em que eles se articulam entre si e a outros não claramente

manifestos no contexto do texto.

O quarto capítulo encontra-se dividido em dois sub-itens: a) a presença do rock no

Brasil e b) as letras do discurso. No primeiro caso, trata-se de uma breve apresentação das

manifestações do rock no Brasil desde seus primeiros momentos até sua movimentação

recente, particularmente até a virada da década de 80 para 90. A rigor, não se procurou ir

além de uma descrição concisa do fenômeno, correndo-se mesmo o risco de se cometer

omissões graves quanto a figuração de episódios e nomes necessários a uma mais abran-

gente história do rock no Brasil. O segundo caso constitui, propriamente, a análise das le-

tras de música do rock segundo procedimento definido ao longo do capítulo terceiro: aqui,

procurou-se levantar exemplos no sentido de se apresentar um quadro crítico do cotidiano

urbano em termos das mediações entre discurso poético e processo social, de modo que se

possa apreender nesse quadro aquela dada dimensão potencialmente emancipatória da co-

municação de massa. Concluindo-se afirmativamente nesse sentido.

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Capítulo Primeiro

Tópicos de uma Teoria Social Crítica da Comunicação em Massa

Como é sabido os conceitos de comunicação de massa e de indústria cultural datam

da primeira metade deste século, apresentando questões distintas na abordagem de fenô-

menos contíguos, a saber: os fenômenos condicionantes à produção, difusão e consumo de

elementos artístico-culturais nas sociedades de características urbano-industriais capitalis-

tas.

O conceito de comunicação de massa, desenvolvido nos EUA, apresenta a cultura

de massa como o produto difundido pelos mass media, tendo como objeto central de estudo

a própria mensagem - medida para se identificar o alcance possível dos meios de co-

municação e sua importância sobre o comportamento do público, bem como, o lastro de sua

influência política e o nível em que se apresenta a cultura de massa. Por outro lado,

recusando a idéia de uma cultura de massa, posto que seria mais adequado se falar em cul-

tura para as massas, Adorno e Horkheimer (l985) elaboraram o conceito de indústria cultu-

ral, uma vez que na sociedade de mercado, cuja base de produção é industrial, também a

cultura passa a se processar nesse circuito, como mercadoria fetichizada, ainda que goze de

autonomia.

11
1.1. Sobre o Desencantamento do mundo, o Simulacro e o Caráter afirmativo da
cultura na teoria crítica da sociedade de consumo

Partindo de uma visão pessimista da racionalidade universalizante e mistificadora

da sociedade contemporânea e desse seu “regressivo” processo fetichizador, os autores vão

considerar que todo traço de manifestação cultural acaba por ser absorvido pela esfera do

consumo, caindo assim no esquema industrial - ainda que, no caso particular da arte, con-

siga-se manter o caráter ambíguo que caracteriza a sua própria natureza. Em todo caso, tal

processo de absorção finda por apresentar os produtos culturais como mercadorias que,

pelo mecanismo da sedução/fetichização, mostra-se de uma maneira altamente integrada

pelo sistema da moda. Nesse sentido, não apenas os elementos reificadores da ordem esta-

belecida, mas, inclusive, as formas de contestação da ordem são, para Adorno e

Horkheimer, rapidamente absorvidas, apaziguadas e transformadas em mercadorias de cir-

culação no mercado da indústria cultural. Pelo que se pode perceber, dois são os conceitos

clássicos que influenciaram a análise desenvolvida por estes autores: a crítica do fetichismo

da mercadoria em Marx e o conceito de racionalização em Weber.

Aliás, pode-se afirmar que a direção tomada pelo conjunto dos trabalhos de alguns

dos elementos da Escola de Frankfurt - a exemplo de Adorno, Horkheimer e Marcuse -,

encontra-se nitidamente marcada pela crítica à razão instrumental e seu consequente desen-

cantamento do mundo (Ortiz, 1986:44; e Freitag, 1986:34-5), a partir da qual se articula o

conceito de fetichismo da arte, como no caso mais específico de Adorno e Horkheimer

(idem). Duas passagens do seu texto sobre a indústria cultural é revelador disso:

“os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. O


fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de repro-

12
dução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para
a satisfação de necessidades iguais. (...) o que se diz é que o terreno no qual a técnica
conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes
exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da pró-
pria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma”
(p.114; grifei).

E prossegue:

“o consumidor torna-se a ideologia da indústria da diversão, de cujas instituições não


consegue escapar. (...) tudo é percebido do ponto de vista da possibilidade de servir
para outra coisa, por mais vaga que seja a percepção dessa coisa. Tudo só tem valor
na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo. O
valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação
social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte - torna-se seu
único valor de uso, a única qualidade que elas desfrutam. É assim que o caráter mer-
cantil da arte se desfaz ao se realizar completamente. Ela é um gênero de mercado-
rias, preparadas, computadas, assimiladas à produção industrial, compráveis e fungí-
veis, mas a arte como um gênero de mercadorias, que vivia de ser vendida e, no en-
tanto, de ser invendível, torna-se algo hipocritamente invendível, tão logo o negócio
deixa de ser meramente sua intenção e passa a ser seu único princípio” (p.148).

Contudo, é bom não esquecer, os autores afirmam uma dimensão ambivalente da

cultura, que tem na arte e nos processos estéticos, as características mais apropriadas dos

mecanismos de transcendência do real, da realidade apresentada pela unificação e padroni-

zação da vida social na sociedade industrial.

Com efeito, para eles, particularmente o Adorno de Teoria Estética e, mesmo,

Marcuse, uma vez que a racionalidade técnica operada no âmbito das sociedades contem-

porâneas é a própria práxis que suprime a diversidade e a diferenciação sociais; pode-se

entender porque, tendo libertado os homens de seus caracteres emocionais e místicos, o

Iluminismo os escravizou a uma outra forma de mistificação: a razão - que, no capitalismo,

os subjuga à dominação econômica, privando-os de autonomia, de crítica e de potência

insurgente frente o establishment. Sendo assim, a expressão da estética artística, na medida

em que opera um discurso de fuga e quebra daquela realidade unificadora, é potencialmente

revolucionária, por possibilitar utopias que reinstauram a dialética realidade-ilusão (ainda

13
que Adorno insista na questão da fetichização recuperadora da indústria cultural) (Adorno,

1982). Aliás, o próprio conceito de arte de Adorno segue a clássica distinção da cultura em

níveis. Para ele, um dos problemas centrais da indústria cultural é que a padronização que

ela promove integra domínios há muito separados: a arte superior e a arte inferior - inclu-

sive com prejuízo de ambas (idem, 1986:92-3). Assim a autonomia da obra de arte, que

nunca existiu de uma “forma pura” e sempre sofreu “conexões causais”, vê-se suplantada

pela indústria cultural (p.93).

Com efeito, o que Adorno e Horkheimer procuram afirmar, substancialmente, é que

as produções artístico-culturais e estéticas sob a forma tecnológica da indústria cultural,

assumem o estatuto de mercadorias:

“a cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei
da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se
pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a publicidade. Quanto mais des-
tituída de sentido esta parece ser no regime do monopólio, mais todo-poderosa ela se
torna. Os motivos são marcadamente econômicos. Quanto maior é a certeza de que se
poderia viver sem toda essa indústria cultural, maior a saturação e a apatia que ela
não pode deixar de produzir entre os consumidores” (Adorno e Horkheimer, 1985:
151).

E, noutra passagem: “as produções do espírito no estilo da indústria cultural não são

mais também mercadorias, mas o são integralmente” (Adorno, 1986:93-4).

Mas o interessante na crítica que apresenta a cultura como mercadoria paradoxal,

comparando-a a publicidade, é o fato de os produtos da indústria cultural não se encontra-

rem na imediaticidade de sua venda e do seu lucro; visto que a indústria cultural, como o

relações públicas em que se transformou, não precisa manter relações com “produtos ou

objetos de vendas particulares”: ela é o espaço publicitário dos produtos e de si mesma

(idem, 1986:94). Em todo caso, a motivação do lucro parece ser o ponto fixo do próprio

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capitalismo e, portanto, da indústria cultural. Para o autor, toda a configuração do novo que

aí se induz, não passa de uma dimensão epidérmica ou de indumentária do sempre igual e

da repetição (p.94).

Adorno distingue o conceito de técnica na indústria cultural, daquele usado para as

obras de arte. No primeiro caso, a técnica diz respeito a aspectos de produção e reprodução

mecânica, como elementos extra-artísticos; sem qualquer preocupação quanto as de-

terminações que “a objetividade dessas técnicas implica para a forma intra-artística, mas

também sem respeitar a lei formal da autonomia estética” (p.95). Ainda sobre as considera-

ções a respeito da técnica, Benjamin (1980) parece refletir de modo mais dialético, por não

separar rigidamente a técnica na indústria cultural da técnica da arte: para ele não há apenas

reprodução técnica da obra de arte, mas a mudança de percepção pelo público fruidor - a

esse respeito se falará mais adiante.

A posição “sem concessões” (Cohn, 1990:18) de Adorno o leva a identificar, na

indústria cultural, não apenas a ideologia do conformismo em substituição à consciência:

que promete enganosamente as satisfações que não podem ser satisfeitas, e resolve aparen-

temente os problemas que não podem ser por ela resolvidos; para o autor, o objetivo central

da indústria cultural é o de submeter os homens à condição de dependêcia e servidão, como

massa passiva (Adorno, 1986:99).

Por outro lado, para o Marcuse de A Dimensão Estética (naquele sentido ainda da

arte como ponto de fuga da dialética realidade-ilusão), a arte parece gozar de uma ca-

racterística curiosa nas sociedades atuais, posto que pode apresentar-se como uma expres-

são positiva da alienação, pela negação que em última instância invoca à realidade padroni-

zada, anuladora da subjetividade. “Certamente, as ‘estruturas econômicas’ afirmam-se a si

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próprias. Determinam o valor de uso (e, com ele, o valor de troca) das obras, mas não o que

elas são e o que dizem”. Assim, firma mais uma vez Marcuse:

“é verdade que a forma estética desvia a arte da realidade da luta de classes - da rea-
lidade pura e simplesmente. A forma estética constitui a autonomia da arte relativa-
mente ao ‘dado’ . No entanto, esta dissociação não produz uma ‘falsa consciência’ ou
mera ilusão, mas, antes, uma contraconsciência: a negação do pensamento realístico-
conformista” (Marcuse, s/d:41).

Noutro momento, criticando o aspecto amorfo da linguagem tradicional, que parece

não mais conseguir comunicar o que caracteriza o mundo atual, Marcuse vai analisar o

caráter afirmativo da cultura e da arte naquilo que ela expressa de negação, de recusa num

mundo repressivo e totalitário. Lançando esperanças de que as forças de contestação advi-

riam de toda a espécie social de lumpen, e não necessariamente do proletariado como classe

econômica, Marcuse vai afirmar que a arte, como a linguagem do nosso tempo,

“descobre que existem coisas: coisas e não meros fragmentos e partes da matéria para
serem manipulados e usados arbritariamente, mas ‘coisas em si’: coisas que ‘pedem’
algo, que sofrem e que se rendem ao domínio da forma, o que vale dizer, coisas que
são intrinsecamente ‘estéticas’’’ (Marcuse, 1978:249).

E sentencia:

“se o desenvolvimento da consciência e da inconsciência nos conduz a ver coisas que


não víamos ou que não são permitidas de ver, falar e ouvir uma linguagem que não
ouvimos e não falamos ou que não são permitidas de ouvir e de falar, e se este de-
senvolvimento agora afeta a própria forma da própria arte - então a arte, com toda sua
força afirmativa, operaria como parte do poder liberador do negativo e ajudaria a
libertar o inconsciente e o consciente mutilados, que solidificam o Establishment
repressivo. Acredito que a arte hoje cumpre esta tarefa mais consciente e metodica-
mente do que nunca” (idem, p.256).

Levantando-se a questão da possibilidade de sobrevivência da arte nos tempos atu-

ais, em que o “caráter totalitário” da sociedade afluente tende a absorver inclusive as ativi-

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dades não conformistas, anulando a arte “como comunicação e representação de um mundo

outro que o do establishment”, Marcuse vai afirmar

“que a crise atual da arte faz simplesmente parte da crise geral da oposição política e
moral à nossa sociedade, de sua inabilidade em definir, nomear e comunicar as metas
da oposição a uma sociedade que afinal de contas, entrega suas mercadorias” (idem,
p.246).

Para o autor, é central o conceito de “imaginação como faculdade cognitiva” a fim

de se construir uma linguagem nova e revolucionária da arte, que possibilite a transcen-

dência e ruptura com o “feitiço do establishment”. Só na medida em que ela não participe

de qualquer forma de establishment, inclusive do que Marcuse denomina de “establishment

revolucionário”, é que a arte pode alcançar a dimensão revolucionária interna de sua pró-

pria linguagem: em que “a linguagem da imaginação permanece linguagem de desafio, de

acusação e protesto” (p.247). Aliás, é nesse sentido que, para ele, a arte assume atualmente

a sua posição política: como uma forma de “antiarte do absurdo, da destruição, da desor-

dem, da negação” (p.248).

Mas, talvez, o ponto central a que Marcuse queira chegar nisso tudo, seja o de re-

fletir a possibilidade de a arte negar-se ao sistema dos valores estabelecidos da sociedade

atual (fundados na esteira da repressão, exploração e mistificação), na direção de uma

“experiência possível” de novos valores que possibilite o surgimento da “energia sensual e

apaziguante dos instintos vitais”, capaz de subjugar “os instintos agressivos, repressivos e

de exploração” (p.249). Na realidade, a emergência da sensibilidade e a liberação do

domínio da forma sensível se caracterizam, para o autor, como a própria finalidade da obra

de arte: em que a linguagem da arte fala de um universo imaginariamente realizado por

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imagens, “sem nunca ser capaz de alcançá-lo” e em que “a razão e a verdade da arte foram

definidos e validados pela própria irrealidade e inexistência de seu objetivo” (idem).

É nesse sentido da liberação da percepção e da sensibilidade que Marcuse vai se

referir à potencialidade transformadora da arte; mas, não no sentido estrito de uma “arte

política” das teorias marxistas do reflexo (que o autor aponta como conceito

“monstruoso”). Não podendo realizar por si mesma este nível estrito de transformação, a

arte, como “forma de imaginação”, como tecnologia e técnica, seria uma importante forma

de construção de valores estéticos não agressivos, necessários à “emergência de uma nova

racionalidade na construção de uma sociedade livre, isto é, a emergência de novos modos e

de novas metas do próprio progresso técnico” (p.251).

Por certo, não faltam críticas ao esquema marcuseano do caráter afirmativo da cul-

tura. Em sua apresentação crítica ao citado texto do autor, Lima afirma haver “uma imagem

simplista de o que seria a sociedade de fato humanizada” (Lima, 1978:243). Trata-se da

recorrência que Marcuse faz à psicanálise, em que inverte a análise freudiana do caráter

repressivo às pulsões sexuais e ao instinto agressivo indômitos, para favorecer a uma inter-

pretação que apresenta a restrição ao prazer como transformação da própria natureza do

prazer. Assim, se em Freud mais prazer havia nas pulsões indômitas; em Marcuse mais pra-

zer existe na humanização dos instintos, o que refletiria a sua maturidade e humanização,

na perspectiva de uma nova sensibilidade.

O problema, contudo, estaria na forma de organização social da cultura capitalista,

que vai da deserotização do corpo e restrição da sexualidade à genitalidade procriativa em

seus primordios, até um maior relaxamento dos tabus sexuais atualmente (sem que isto, em

todo caso, represente a livre manifestação do princípio do prazer). Ao contrário, para

Marcuse, a maior capacidade de controle global por uma autoridade social - com a diminu-

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ição da função repressora da autoridade paterna e com a ampliação da autoridade social da

administração pública e privada - ainda tem levado os indivíduos a um princípio de des-

sublimação repressiva: em que a sexualidade se manifesta como princípio de desempenho

econômico, onde toda ação sexual se dá despojada de sentimentos e, portanto sem a libera-

ção do Eros: ponto crucial para uma cultura humanizadora dos instintos agressivos e onde o

princípio do prazer se sobreponha ao repressivo princípio da realidade (Marcuse, 1968; e

Mantega, 1979:11-34).

Ainda assim, apesar da acusação de ter elaborado uma tese simplista e de ter caído

numa “concepção do mundo essencialmente romântica e irracionalista” (Coutinho, 1990:

189), não se pode descurar a importância de Marcuse em sua análise do caráter afirmativo

da cultura e sua contribuição para a formulação de uma teoria crítica da comunicação

emancipatória.

Noutra perspectiva, Baudrillard, em diversos estudos sobre a sociedade de consumo,

forjou um conceito não menos importante, embora distinto, do que foi apresentado por

Adorno e Horkheimer a propósito da cultura no seio da indústria cultural. Trata-se da idéia

da cultura como simulacro. Para o autor, teríamos chegado a um estágio de coisas em que

tudo parece ter perdido a sua idéia original, sua essência e valor. Onde “as coisas con-

tinuam numa indiferença total a seu próprio conteúdo” (Baudrillard, 1990).

Se os frankfurtianos desenvolveram o conceito de fetichismo da mercadoria apli-

cado à cultura, com Baudrillard, observa-se um primeiro momento de uma análise estrutu-

ral do valor, no caso, do valor-signo: espécie de gênese formal do simulacro. Valor-signo

seria um valor socialmente atribuído de prestígio, identificado na “marca” incorporada do

objeto de consumo: sendo assim, o valor-signo existe sem a prerrogativa de ser valor de

uso. Para o autor, a forma atual do valor deve mesmo ser orientada pela lógica do valor-

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signo, como fundamento de transmutação dos valores de uso e de troca, já que a considera

como a lógica da atualidade na sociedade de consumo (Melo, 1988:72).

Com efeito, o conceito de valor-signo experimenta o desafio de apresentar a questão

do valor para além de uma condição do trabalho, levando em conta toda uma dimensão do

valor, como código simulacional e definidor do caráter diferencial do prestígio: enquanto

prestação social do consumo ostentatório. Atualmente, contudo, em que a confiança de

Baudrillard na possibilidade de resistência ao domínio do signo parece se reduzir ainda

mais, de forma até dramática, o simulacro se apresenta por um outro domínio do valor: o

valor-fractal. Se o valor-signo se caracterizava pela prestação social do prestígio e

hierarquia da diferenciação social do consumo; o valor-fractal é o valor irradiado em todas

as direções, epidemia de valor, metástase do valor, de proliferação e de dispersão aleatória:

que seria o esquema peculiar de nossa cultura hoje. Para o autor, o estágio fractal da cul-

tura, é de ordem viral e de comutação, onde nada desaparece pelo fim ou pela morte, mas

pela proliferação, contaminação, saturação, transparência, exaustão e extermínio; enfim,

por uma epidemia de simulação: onde não há mais revolução, mas circunvolução, involu-

ção do valor (Baudrillard, 1990).

Com efeito, deve-se considerar que, para Baudrillard, tudo isto é sintoma do fenô-

meno atual das sociedades de consumo; e que, portanto, tende a assumir características

globais no tocante às sociedades atuais, inclusive aquelas de economia dependente. Aliás,

uma das primeiras críticas feitas por Baudrillard em relação ao problema do consumo, é a

do pressuposto da necessária relação entre consumo e abundância. O que há, de fato, para

ele, é uma hierarquia de acesso aos bens de consumo, calcada que está numa diferenciação

estrutural de apropriação do excedente - garantidora de uma penúria estrutural.

20
Assim sendo, a óptica do consumo diferencia os indivíduos num sistema de signos

em sua totalidade, e não por critérios de necessidade, por exemplo. A rigor, o consumo não

advém da abundância ou do igualitarismo, mas da concentração urbano-industrial e seu

produtivismo, no próprio espaço das desigualdades sociais. Nestes termos, a indústria do

consumo parece ter na aglomeração urbana sua principal aliada na formação dos elementos

de diferenciação social. E tal explicação é válida para países de subdesenvolvimento indus-

trializado como o nosso (Baudrillard, 1987).

Por fim, o ataque central de Baudrillard vai ser desferido contra a noção de que os

MCM possuem um potencial libertador ou democrático intrínseco que seja bloqueado ou

suprimido pelos grupos dominantes ou interesses em cujas mãos se encontram. Para

Baudrillard, o código funciona pela negação da resposta ou da troca na comunicação de

massa. Assim, o autor ataca a crença de que o papel da esquerda é assumir o controle des-

ses veículos. Para ele, simplesmente não é possível tomar a forma desses meios e mudar o

seu conteúdo para bons propósitos, visto que o código é a própria opressão (Baudrillard,

1990). Em contraposição a esta comunicação sintetizada, Baudrillard propõe seu ideal de

troca livre e imediata, em que a separação hierárquica entre transmissor e receptor se torna

uma responsividade mútua e uma responsabilidade discursiva num diálogo espontâneo: são

apenas nas atividades discursivas de rua que o autor vai encontrar, romanticamente, a forma

da troca.

1.2. Elementos de uma Teoria Crítico-Emancipatória da Comunicação:


Reprodutibilidade, Espontaneidade e Processos de Mediação.

Em dimensão oposta, mais sintonizada com a idéia de uma teoria crítico-emancipa-

tória da comunicação, Enzensberger critica o limitado alcance do conceito de indústria cul-

21
tural e vê, na noção de indústria da consciência, o centro da questão. Para ele, a dinâmica

essencial da indústria cultural reside nos veículos comunicativos, que não são mais que ca-

nais através dos quais se reproduz e induz elementos da consciência. Elementos, esses, cuja

dinâmica essencial se encontra numa indústria da consciência. Para o autor, indústria da

consciência passa a ser o elemento significativo e essencial da comunicação, aquilo que se

veicula e que comunica na sociedade em termos de significação cultural. Nesse sentido, a

indústria da consciência transcende a indústria cultural, já que não é produzido por ela

(embora a tenha como pressuposto tecnológico), mas apenas reproduzido, em seu processo

de mediação. Por definição, a indústria da consciência é a indústria do produto imaterial:

não se produzem bens, mas opiniões, preconceitos, juízos, conteúdos da consciência - seria

o caso do que é reproduzido pelo rádio e pela TV. Diferentemente, com o livro, o disco, a

fita cassete etc., ainda se reproduz algo que é materializado: mas trata-se apenas de um

substrato material, bastente voláteis com a maturidade técnica crescente (Enzensberger,

1985:77-85).

Em sua análise, Enzensberger tem como pressuposto histórico as sociedades de

capitalismo avançado, em que uma classe de serviços nessas sociedades gozaria de sua he-

gemonia cultural. Arguto crítico do capitalismo, o autor também diverge da esquerda tra-

dicional, em busca de alternativas para a crítica dos fenômenos sociais e políticos. Assim,

procura estabelecer novos parâmetros para a utilização dos MCM com objetivos políticos:

aqui voltados tanto para a organização popular, quanto para a expressão de idéias das

chamadas minorias (feministas, ecologistas, etc.). Para o autor, os MCM, especialmente os

eletrônicos, possuem um forte potencial emancipador que pode agir na consciência das

massas - seja pela possibilidade de “participação maciça em um processo produtivo social e

socializado, cujos meios práticos se encontram nas mãos da própria massa”; seja porque tal

22
possibilidade existe pela “força mobilizadora” que os MCM possuem e que, se utilizada,

garantiria autenticidade aos media (Idem, 1979).

Para Enzensberger, as sociedades industrializadas necessitam do livre intercâmbio

de informações, inclusive as que podem ameaçar o poder do sistema: visto que tais condi-

ções geram uma ambivalência nos MCM, possibilitando o desencadeamento de suas

“potencialidades emancipadoras”. Partindo do que apresenta como uma teoria marxista dos

MCM, o autor vai acusar certos conceitos utilizados na crítica marxista da comunicação de

serem puros slogans ou fetiches: seria o caso de conceitos como o de “manipulação” e o de

“indústria cultural”.

Por fim, ao contrário do que pensa Baudrillard, se o fenômeno que envolve os MCM

na sociedade industrial é o fenômeno da indústria da consciência (através do qual,

circunscrito no interior das ambigüidades dos MCM, pode ser possível influir na consciên-

cia das massas de maneiras diferentes, dependendo da forma como os MCM são usados e o

seu tipo de mensagem), importa sim a ação dos intelectuais.

Para o autor, consciência e capacidade de decisão não são direitos abstratos apenas,

são algo contraditoriamente produzido pela indústria da consciência: e a contradição é que,

para dominar as forças sociais, é necessário despertá-las. E como isto leva a massa a uma

forma de participação, isto pode voltar-se contra aqueles a cujo serviço está submetido.

Com efeito, por não se poder sustar tal processo, há aí momentos contraditórios necessários

que ameaçam ou afetam a tarefa de estabilização das relações de poder existentes. O

reconhecimento desta ambigüidade é primordial a qualquer crítica à indústria da consciên-

cia, bem como, dos seus produtores: os intelectuais. Tais indivíduos não dispõem do apa-

rato industrial, e não têm aí uma relação unívoca, mas ambígua. Enzensberger chama aten-

ção para o fato de que as energias primárias não são comunicadas pelos mandantes, mas

23
pelos seus autores: a um só tempo parceiros e adversários das massas. Assim, ele fala da

necessidade de entrar no jogo perigoso dos MCM, o que nos exige novos conhecimentos e

vigilância contra pressões. E diz, sobre o novo papel social do intelectual, que ele é

“voluntária ou involutariamente, consciente ou inconscientemente (...) cúmplice de


uma indústria cuja sorte dele depende como a dele depende dela, e cuja missão atual -
a consolidação do poder estabelecido - é incompatível com a sua”. Assim,
“independente de como se conduza, ele não está apostando, nesse jogo, apenas aquilo
que lhe pertence” (Enzensberger, 1985:85).

Bem anteriormente à análise desenvolvida por Enzensberger, Benjamin já havia

apontado para o caráter emancipatório da estética e da arte também num contexto de alta

reprodutibilidade técnica como o do capitalismo. Em seu estudo A obra de arte na época de

suas técnicas de reprodução, Benjamin vai afirmar uma mudança significativa no estatuto

da própria obra de arte, agora submetida essencialmente ao processo de reprodução, que é a

da perda do seu caráter de autenticidade. Para o autor, isto se deve ao fato de que, sob efeito

da reprodução, o tradicional como autêntico tem seu testemunho histórico abalado, visto

que a duração material do evento produzido perde seu elo original: o que leva à liquidação

da tradição e à atualização do próprio evento. Na verdade, o processo de reprodução na

obra de arte vai afetar em cheio a sua aura. O significado da aura artística está relacionado

ao valor cultual presente na obra de arte tradicional. Com a alta reprodutibilidade técnica do

capitalismo, o que se deu foi a passagem do valor da obra como objeto de culto (que torna

distante o que está próximo), para o valor da obra como realidade exibível (tornando

próximo mesmo o que se encontra distante). Para Benjamin, tais transformações históricas

do processo de reprodução, ocasionaram mudanças de percepção e de sentimento no âmbito

da sensibilidade humana (Benjamin, 1980).

24
Quando se fala de reprodução, o que vem à mente é a condição de autenticidade da

obra, o seu hic et nunc. E Benjamin coloca a questão quando afirma que “a própria noção

de autenticidade não tem sentido para uma reprodução, seja técnica ou não” (Idem, p.7). No

entanto, duas caractarísticas da reprodutibilidade devem ser notadas: uma diz respeito à

autoridade requerida pelo original, quando da reprodução do objeto feita pela “mão do

homem e, em princípio, considerada como uma falsificação”; a outra, em que isso não

ocorre, concerne à reprodução técnica, apresentando-se pelo caráter revolucionário das

transformações ocorridas. A ela, segundo o autor, dois motivos se apresentam: a indepen-

dência da reprodução técnica frente ao original e a possibilidade da “reprodução de situa-

ções” dificilmente encontráveis no original (Idem, p.7). Seja como for, o que aqui se desva-

loriza é o hic et nunc do original, o que favorece ao declínio da aura da obra de arte.

Como principal exemplo dessa situação, Benjamin aponta o caso da fotografia e do

cinema. Tanto por aquela capacidade que tais linguagens têm de “ressaltar aspectos do

original que escapam ao olho”, quanto pela referida possibilidade de “situações” em cujo

contexto o original não seria encontrado - e isto é válido para o disco e, atualmente, para o

vídeo, permitindo em todos os casos uma “maior aproximação da obra ao espectador e ao

ouvinte” (Idem, p.7). Aliás, com relação à primeira característica, Benjamin ressalta que o

aspecto verdadeiramente revolucionário da fotografia e do cinema como técnicas de repro-

dução foi a descoberta de um inconsciente óptico. Apesar de longa, caberia citar essa pas-

sagem:

“Fica bem claro, em consequência, que a natureza que fala à câmara é completamente
diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem
age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente. Se é banal analisar,
pelo menos globalmente, a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza
de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em

25
bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos
quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte
razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos
diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmara, com todos os seus
recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas
extensões do campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e suas reduções. Ela
nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, assim como a
psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo” (Benjamin, 1980:23).

Para o autor, o caráter de um comportamento progressista está, além disso, associ-

ado à relação que pode ser estabelecida entre o prazer do espectador e a experiência vivida.

“As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa


com relação à arte. Muito retrógrada face a um Picasso, essa massa torna-se bastante
progressista diante de um Chaplin, por exemplo. O caráter de um comportamento
progressista cinge-se a que o prazer do espectador e a correspondente experiência
vivida ligam-se, de maneira direta e íntima, à atitude do aficionado. Essa ligação tem
uma determinada importância social” (Idem, p.21).

Benjamin refere-se ao caráter coletivo do cinema, que exerce determinação sobre as

reações individuais, levando o público a não separar “crítica de fruição”. Em apoio a essas

afirmações, Benjamin vai estabelecer comparação entre o cinema e a pintura, em que esta

última parece não ter a pretenção de ser contemplada “por mais de um espectador ou, então,

por pequeno número deles” (Idem, p.21). Segundo ele, uma diminuição da significação

social da arte se dá quando, no público, “espírito crítico” e “sentimento de fruição” se sepa-

ram: passando-se a desfrutar acriticamente das convenções e reagindo-se a qualquer tipo de

inovação. E sentencia Benjamin:

“Ora, é exatamente contrário à própria essência da pintura que ela se possa oferecer a
uma receptividade coletiva, (...) A mudança que interveio com relação a isso traduz o
conflito peculiar, dentro do qual a pintura se encontra engajada, devido às técnicas de
reprodução aplicadas à imagem. Poder-se-ia tentar apresentá-la às massas nos museus
e nas exposições, porém as massas não poderiam, elas mesmas, nem organizar nem
controlar a sua própria acolhida. Por isso, exatamente, o mesmo público que em

26
presença de um filme burlesco reage de maneira progressiva viria a acolher o surrea-
lismo com espírito reacionário” (Idem, p.21).

Mas Benjamin não dedicou seus estudos exclusivamente ao cinema, como se sabe.

Num importante conjunto de ensaios, reunidos em torno de um projeto ambicioso, o seu

Trabalho das passagens, Benjamin também vai se dedicar à situação da poesia, por exem-

plo, na epóca de Baudelaire; e às próprias transformações ocorridas, sob o signo da mo-

dernidade, nas passagens e galerias parisienses. Duas situações são dignas de destaque para

o interesse do que se quer esboçar aqui. A primeira diz respeito à configuração do interieur

como o momento em que se dá a separação entre o espaço privado e o lugar de trabalho. O

interieur, como universo característico da nova residência do homem privado, se apresenta

assim como a expressão por excelência do espaço burguês. É nele que o homem privado vai

ter sustentadas as suas ilusões:

“Esta necessidade é tanto mais aguda quanto menos ele cogita estender os seus cálcu-
los comerciais às suas reflexões sociais. Reprime ambas ao confirmar o seu pequeno
mundo privado. (...) O seu salon é um camarote no teatro do mundo” (Benjamin,
1985:37).

Com efeito, assim como o escritório se apresenta em seu realismo como “o centro

de gravidade do existencial”, assim o interieur se mostra como refúgio, como lugar

“esvaziado de realidade”. Benjamin afirma: “O interior da residência é o refúgio da arte. O

colecionador é o verdadeiro habitante desse interior” (Idem, p.38). Ao que parece, o autor

chama a atenção para o fato de que, aí, passa a haver uma espécie de retorno à aura: mas

não pela significação de culto anteriormente referida, e, sim, pela transfiguração de valor

por que passam os bens - o colecionador retira dos objetos, pela posse, o seu caráter de

27
mercadorias; mas, ao invés de restituir-lhes valor de uso, os impregna de puro “valor afe-

tivo”.

“O interior não é apenas o universo do homem privado, mas também o seu estojo.
Habitar significa deixar rastros. No interior, eles são acentuados. Colchas e coberto-
res, fronhas e estojos em que os objetos de uso cotidiano imprimam a sua marca são
imaginados em grande quantidade. Também os rastros do morador ficam impressos
no interior. Daí nasce a história de detetive, que persegue esses rastros” (Idem, p.38).

O contraponto a esse mundo interior e a esse homem privado, Benjamin vai encon-

trar na poesia de Baudelaire. Para ele, é com Baudelaire que Paris se torna, pela primeira

vez, objeto de poesia lírica. Uma poesia que se vale do alegórico e que, melancolicamente,

olha a cidade por uma dimensão de estranhamento. Uma poesia que se traduz pelo olhar do

flâneur - um dos tipos sociais identificados por Benjamin no tocante a existência na mo-

dernidade. Ao que parece, o flâneur representa um tipo social cuja forma de vida encontra

seu limiar tanto na cidade grande quanto na classe burguesa, mas sem que esteja a elas

subjugada. Com efeito, a multidão se expressa como o espaço asilar do flâneur, sua resi-

dência, sua fantasmagoria. O flâneur se representa, ainda, no tipo intelectual marcado pelo

mercado, mercado para o qual a flânerie se torna “útil à venda de mercadorias” (Idem, p.

39).

Contudo, a condição do flâneur é bastante ambivalente: no interior da multidão, a

passagem se lhe apresenta tanto como espaço exibível, quanto como refúgio - aí, o flâneur

vive situações como as de mercadoria, de vagabundo, de proscrito; aí, ainda, ele vivencia

empaticamente a satisfação da compra pelos fregueses, bem como, tem como referência as

tabernas (onde se refugia dos credores) e a prostituta (misto de mercadoria e vendedora).

28
Em dois momentos os escritos de Benjamin expressam de maneira rica essa situação. Diz o

autor:

“A passagem ocupa uma posição intermediária entre a rua e o interior de uma resi-
dência (...) A rua se torna moradia para o flâneur, que está tão em casa entre as fa-
chadas das casas quanto o burguês entre as suas quatro paredes. As reluzentes placas
esmaltadas das firmas são, para ele, uma decoração de parede tão boa - ou até melhor
- quanto para o burguês uma pintura a óleo no salão; paredes são o púlpito em que ele
apóia o seu caderninho de notas; bancas de jornal são as suas bibliotecas e os terraços
dos cafés são as sacadas de onde, após cumprido o trabalho, ele contempla a sua
casa” (Idem, p.67).

Noutro momento, afirma Benjamin:

“A multidão não é só o asilo mais recente do proscrito; é também o mais recente nar-
cótico do abandonado. O flâneur é um abandonado na multidão. Nisso ele comparti-
lha da situação da mercadoria. Tal peculiaridade não lhe é consciente. Mas nem por
isso age menos nele. Prazerosamente ela o invade como um narcótico, que pode
compensá-lo por muitas humilhações. A ebriedade a que o flâneur se entrega é a da
mercadoria rodeada e levada pela torrente dos fregueses (...) A empatia é, contudo, a
natureza dessa ebriedade a que o flâneur se entrega na multidão” (Idem, p.82).

A atualidade desses trabalhos se deve à possibilidade de se tê-los como referência

ao desenvolvimento de estudos sobre o nomadismo presente na cultura juvenil. Importante

exemplo disso têm sido as recentes análises elaboradas por Canevacci a respeito da comu-

nicação urbana e visual: em que o autor se vale, entre outras, das contribuições de

Benjamin.

Partindo de um conceito de cultura emergente, com o qual define “os modelos cul-

turais, os estilos de vida e as técnicas de comportamento inovadoras”, Canevacci vê nas

tecnologias e centros propulsores de mudança, assim como, na descoberta de modelos de

inovação, a estratégia de compreensão da cultura do vencedor; além de um novo objeto de

estudos da antropologia das sociedades complexas: particularmente, aqui, na medida em

que se oriente para o seguimento da tendência hegemônica da cultura atual: a comunicação

29
visual reprodutível (Canevacci, 1990:7-9). Ademais, o autor caracteriza a emergente cul-

tura, na complexidade social de uma ecologia visual, por ser esta marcada de um cunho

“universalizante, ambivalente e paradoxal”, que desmontou o clássico método comparativo

da antropologia: assim, ao passo que a cultura complexa vive o seu processo dissolvente de

modelos na modernidade, assiste-se à necessidade de formulação de uma antroplogia da

dissolvência.

Com efeito, uma antropologia da dissolvência deve voltar sua pesquisa para o cru-

zamento da mudança social com a complexidade social e com a comunicação visual, visto

que esta última é hoje o centro tanto das contradições, quanto das vinculações na cultura

contemporânea como um todo, traçando assim um novo projeto de aculturação planetária:

em que o caráter ecológico da cultura visual, é bom que se diga, não se encontra vinculado

ao ambiente natural, mas ao ambiente visual, como ordem simbólica, da cultura atual (p.10-

11).

Pelo que já ficou evidenciado, a comunicação visual reprodutível (CVR) tem uma

dimensão supranacional na cultura atual, tendo os media sofrido uma “dilatação transcultu-

ral” com o avanço das novas técnicas de produção e recepção. Para Canevacci, o objeto

visual venceu atualmente a “esfera pública da indústria cultural”, as “defesas domésticas” e

as próprias “identidades psíquicas” particulares (p.12). Outrossim, o autor afirma a exis-

tência de um modelo ideológico originário dos próprios objetos e coisas, das mercadorias

da tecnologia ocidental, uma ideologia que “fala” através de um conjunto de mensagens

que tanto se mostram indiferentes e contraditórias, quanto exaltam “indireta e silenciosa-

mente o triunfo do ocidente”. Trata-se de uma ideologia ventriloquista:

30
“nesse novo modelo, as mercadorias visuais emanam dos seus interiora: as ideolo-
gias-mercadoria tornam-se um concentrado de música, moda, técnicas do corpo e
tecnologias cotidianas, de paisagens urbanas e de capacidades perceptivas. Em sín-
tese, a imagem visual faz-se visão do mundo sem nenhuma necessidade de mediações
externas e explícitas, mas com plena e espontânea autonomia” (p.14).

O tipo ventriloquista da ideologia hoje, na perspectiva de Canevacci, parece se as-

semelhar, em diversos momentos, com a visão do simulacro em Baudrillard, como vimos;

por outro lado, não me parece estar tão distante do conceito adorniano derivado de Marx do

fetichismo na cultura: já que “os objetos” hoje “falam”, cada vez mais, “sozinhos” e “com

animada interioridade”.

Seja como for, Canevacci está mais interessado em definir as características da cul-

tura atual como cultura do consumo. Para ele, a cultura do consumo provocou transforma-

ções sensíveis na ordem simbólica, no modelo de vida, e no enriquecimento da esfera pri-

vada: sendo que as mensagens corporais assumem a condição central da difusão da cultura

do consumo na vida cotidiana. A centralização de todo o interesse em torno do corpo, numa

espécie de voyerismo consumista, é o que fundamenta a troca de mercadorias como que

configurando a troca de imagens e experiências corporais na cultura hoje. Também

Canevacci define a cultura do consumo por sua grande diferenciação dos signos; sendo que

ao invés de um “conformismo passivo” na escolha dos produtos, os indivíduos são levados

a ler a diferença dos signos e representações de tais produtos:

“as distinções de classe e das várias frações de classe, além das diversas subculturas,
em vez de enfraquecer-se, se reforçam e se complicam: novos ´minissímbolos’ devem
ser descobertos para manter as diferenças, e o corpo serve perfeitamente para isso”
(p.131).

Em sua constelação urbana, cabe destacar que a cultura hoje se apresenta tanto pela

característica de um sincretismo cultural, quanto pela forma dupla de um visual-scape e de

31
um vídeo-scape. No primeiro caso, o autor chama a atenção para a existência de uma

“exogamia cultural” nas atuais formas de vida metropolitanas, em que os cruzamentos não

se dão unicamente do centro para a periferia, mas, inclusive, em sentido contrário; no se-

gundo, trata-se da especificação do elemento propriamente irreprodutível do panorama

visual do ambiente cultural urbano, de um lado, e, de outro, do espaço reprodutível da co-

municação visual, respectivamente. Por outros termos, pode-se afirmar que, enquanto o

vídeo-scape é a própria expressão da comunicação visual reprodutível, o visual-scape se

aproxima, com certa distinção do hic et nunc identificado por Benjamin, ou seja, do estado

aurático.

Pelo que se pode perceber, a cultura visual é aqui apresentada como integradora da

cultura de massa tradicional e, ao mesmo tempo, como “síntese imperfeita” dos níveis ou

forma dupla que liga os “mass media tecnicamente reprodutíveis” à “irreprodutibilidade ao

vivo”. Nestes termos, o autor procura, do ângulo da

“antropologia visual aplicada às sociedades complexas (...) repensar o conceito de


cultura, com particular atenção à relação entre o passado, mesmo o mais arcaico, e o
presente, mesmo o mais avançado, entre a expansão de sistemas reprodutíveis e a
‘ressurreição’ de formas auráticas” (p.135).

Ainda na perspectiva da teoria crítica, convém apresentar de forma breve, alguns

dos aspectos importantes à obra de Prokop. Segundo Marcondes Filho, a abordagem ana-

lítica desse autor vai além de uma análise do MCM como objeto do conhecimento, organi-

zado em termos da divisão do trabalho; ela abrange o âmbito da organização psíquica do

conhecimento e da fantasia, das garantias do Estado de Bem-estar Social, dos mecanismos

de defesa que os sujeitos empregam frente às necessidades e do papel da abstração da troca,

na organização do conhecimento, que dá forma ao pensamento contemporâneo a partir da

32
“moeda” do dinamismo formal, como equivalente geral, substitutivas das formas

espontâneas das experiências concretas. Por certo, isto representa mais que uma crítica

puramente ideológica do produto cultural, pois o toma pelo caráter fetichista da mercadoria

na esfera da produção cultural, na perpectiva da liberação daquela espontaneidade, re-

primida pela “moeda” da abstração da troca (Marcondes Fo in Prokop, 1986:16).

Em Prokop, os MCM são apresentados como disciplinadores do controle social.

Partindo das teses da Escola de Frankfurt, particularmente Adorno e Marcuse, o autor vê

que, sob condições monopolistas, a reificação que abstrai o valor de uso se dá já na produ-

ção, eliminando a possibilidade de seu valor de uso específico. Prokop vê uma ligação es-

treita entre tais instituições monopolísticas com o disciplinamento psíquico (reforço do

princípio da realidade). Sua ruptura só ocupa espaço se tomarmos o seu conceito de espon-

taneidade (regressão produtiva a “experiências primárias”) (Idem, p.17).

Com efeito, é nesse sentido que Prokop tenta formular uma teoria emancipatória da

cultura: cujo objetivo é a “investigação das forças que inibem a emancipação”. Devendo,

portanto, “desenvolver estruturas que promovam a diluição do positivismo resignado” que

se tem manifestado nos indivíduos (Marcondes Fo in Prokop, 1986:11). Prokop refere-se

particularmente aos fatores da integração e despolitização das massas pelo realismo de re-

flexo e abstração da troca na cultura capitalista.

Partindo do debate sobre a organização da esfera pública no capitalismo avançado,

Prokop assinala a integração e despolitização dos membros sociais, facilitada pelas estra-

tégias de legitimação do Estado, através das políticas do Estado de Bem-estar. Por outro

lado, acentua o autor, mesmo nas sociedades complexas existem “experiências primárias”

que atuam como contraste àquela forma dominante de legitimação.

33
“A estrutura precária, formal, de legitimação das estratégias do Bem-estar é constan-
temente ameaçada pelo fato de que colocações apolíticas sobre necessidades, desejos
e objetivos qualitativamente determinados se transformam em ações e poderiam, no
seu ‘efeito’ exemplar, impor, praticamente, um contraconceito de eficácia alternativo,
marcado por um caráter mais racional. Estas necessidades contrastam tanto mais com
a forma dominante de legitimação das necessidades, quanto mais puderem apoiar-se
em tais experiências primárias, resultantes de outros contextos de interação” (Prokop,
1986:115).

Na verdade, o que o autor deseja aqui é problematizar o conceito de esfera pública;

mais particularmente, nos termos da esfera pública burguesa. Para o autor, este conceito

goza de uma grande limitação, pelo fato de só apresentar a esfera pública pelo seu caráter

institucional e organizado de “liberdade formal dos sujeitos”: “o encontro (real ou fictício)

de pessoas livres para a discussão de questões de interesse geral” (p.104). Para Prokop, é

necessário identificar as formas de manifestação da esfera pública não-organizada e que

traduzem níveis de manifestação diferenciados no tocante aos elementos culturais que

compõem a dimensão institucional. Partindo das contribuições de Negt e Kluge (1985), que

definem a existência de uma esfera pública operária no interior de uma organização social

dominada pela esfera pública burguesa, em que o problema estrutural dessas esferas é a

formação de uma ideologia de blocos, Prokop vai se valer desse debate para identificar aí

tanto a “delimitação sectária”, quanto a potencialidade emancipatória, a partir do que

localiza a dinâmica das experiências primárias por necessidades espontâneas.

Por esfera pública não-organizada, Prokop está delimitando o agenciamento

(inicialmente espontâneo) “do público, das massas, das pequenas empresas, das pequenas

associações, dos artistas, dos jornalistas”; mas,

“igualmente as manifestações públicas de um bairro operário (...) são esferas públicas


proletárias: formas de movimentação do proletariado. A este tipo de expressões pú-
blicas pertence também (...) a atividade pública de compras das donas-de-casa, (...) as

34
street corner societes (clubes de esquinas) de jovens (...), as formas de sociabilidade,
como Simmel (...) os caracterizava” (p.105-6).

Contudo, adverte o autor, é um erro cair numa idealização pura e simples do po-

tencial produtivo das manifestações dessas associações, visto que elas também se encon-

tram condicionadas pelos mecanismos da estrutura social dominante: a própria esfera pú-

blica burguesa - em cujas formas de organização muitas vezes se apoiam. Com efeito, estar

atento para este fenômeno não exclui a necessidade de se investigar os tais potenciais pro-

dutivos daquelas manifestações.

Creio que seja conveniente expor aqui uma passagem lapidar do autor na caracteri-

zação da esfera pública não-organizada, quando diz:

“as esferas públicas não-organizadas (ou por longo tempo não-organizadas) do pú-
blico, das massas, das pequenas empresas, das pequenas associações, dos artistas, dos
jornalistas contrapõem tanto à ficção e à oportunidade da razão pública como às
formas atuais institucionais da comunicação persuasiva uma outra qualidade institu-
cional: a ocupação produtiva com o objeto. Um interesse artesanal, só aí existente,
pode manifestar-se produtivamente: na articulação e na utilização dos acontecimen-
tos, das experiências, das necessidades e dos interesses, ou seja, um interesse na
apropriação viva em vez da ocorrida no mercado da legitimação. Seu potencial pro-
dutivo são as capacidades artísticas e artesanais, a reflexão jornalística, as capacida-
des críticas do público” (p.110-11).

Como se pode perceber, a caracterização de duas instâncias da esfera pública, or-

ganizada e não-organizada, e o particular interesse para com a investigação da segunda, no

tocante às potencialidades produtivas emancipatórias frente ao “mercado da legitimação”

monopolizado pela primeira (esfera pública burguesa), se apresenta como um avanço em

relação à concepção reificadora, e sociologicamente funcional, da crítica que atribui um

total êxito da organização de uma esfera pública despolitizada (na esteira do capitalismo

regulado) em que a garantia de ordem, com a crise de legitimação, se dá pela criação de um

35
hedonismo privado de consumo e lazer, num contexto do Estado de Bem-estar: cabendo,

assim, ao Estado Capitalista as funções únicas e essenciais de formação do consenso e in-

tegração sociais (Swingewood, 1978:64-77). A acusação da existência de uma categoria

reificante em uma crítica deste gênero se deve ao fato de ela não considerar suficientemente

o processo das mediações ideológicas e de valores dos diversos grupos ou classes sociais;

caindo na formulação pessimista de uma “teoria conspiratória” (Idem, p. 64), como pode

ser observado no principal legado da Escola de Frankfurt - basicamente Adorno e

Horkheimer e, mesmo, Marcuse e Habermas.

Outrossim, ainda que por outros termos, a tese de uma esfera pública não-organi-

zada (ideologia de blocos), não se encontra tão distanciada das formulações derivadas do

pensamento gramsciano de um processo de hegemonia e contra-hegemonia de classes na

sociedade. Em ambos os casos, aliás, a tendência é romper com o clássico modelo conser-

vador e totalitário de conceituação das massas como um todo amorfo que supera as dife-

renciações sociais de grupo ou classe - como uma categoria que passa justamente a ser

analisada como um elemento que dilui as formas do próprio conteúdo social: refiro-me,

para o contexto específico deste trabalho, à ênfase dada em termos de uma forma absoluta

com que se tem assumido certos “conceitos-fetiche” como os de “disfunção narcotizante”,

“indústria cultural”, “dessublimação repressiva”, “simulacro”. Tratam-se de atribuições

muito distintas das formulações que aqui mais interessam ao presente estudo, mais imbuído

que está em identificar uma concepção do fenômeno cultural em termos de suas mediações:

é o caso da reprodutibilidade e das imagens dialéticas em Benjamin; da indústria da cons-

ciência e da posição específica do intelectual no seu interior, em Enzensberger; das exo-

gamias ou sincretismo culturais em Canevacci; das mediações entre processos de instrução,

fortalecimento da sociedade civil e democratização da cultura em Swingewood, como se

36
verá adiante; e, por fim, das formas de esfera pública não burguesa e das necessidades es-

pontâneas motivadoras das experiências primárias em Prokop.

Assim, retornando a este autor, podemos afirmar, com ele, que mesmo os MCM

podem incorporar modelos de comunicação emancipadora e formas de comunicação ade-

quadas ao desenvolvimento de forças produtivas esteticamente libertadas, chegando mesmo

à defesa ocasional daquela libertação real. Para essa afirmação, o autor lança mão da noção

de “espontaneidade”, notadamente o que vai caracterizar por “espontaneidade produtiva”.

A espontaneidade produtiva resulta das experiências primárias e necessidades espontâneas.

Na sociedade de massa, a contrapartida à espontaneidade produtiva é, justamente, a

“espontaneidade integrada”. Sob um mercado monopolista, a espontaneidade produtiva

sofre um processo de desarticulação que a reduz à condição de integrada. Investigar tais

questões é o objetivo do autor rumo a uma teoria emancipatória. Com efeito, isto o põe

como uma das referências centrais para o presente trabalho.

Na tentativa de formular uma teoria emancipatória do processo de comunicação, o

autor toma ainda de empréstimo da psicanálise algumas noções necessárias à configuração

de um quadro explicativo das experiências primárias que seriam impulsionadoras da espon-

taneidade produtiva. Partindo das interpretações freudianas da fantasia e dos estudos de

Marcuse que remontam à díade princípio de prazer vs. princípio de realidade

(desempenho), Prokop vai afirmar que também os fenômenos estéticos representam estru-

turas de experiência e necessidades de outros contextos de interação e de tempo, sobrepos-

tos na estrutura dos produtos da cultura de massa.

Em todo caso, desejos e necessidades pulsivas sofrem a confrontação conflitiva com

o princípio de realidade e do desempenho; visto que este, como representação da ordem

vigente da estrutura social, atua coercitivamente no controle dos desejos pulsivos, que

37
passam por objetivações. Assim é que a atividade consciente da fantasia resulta do conflito

dos desejos pulsivos e determinados pelas experiências da primeira infância e de como o

ego os conciliam com exigências do mundo social. Com efeito, a atividade da fantasia, que

acompanha os mecanismos de defesa do ego contra os desejos pulsivos, pode se autonomi-

zar em estruturas de caráter. Controlados pelo princípio da realidade, os desejos mostram-se

abstratos, não-específicos, só se satisfazendo na fantasia.

Ainda assim, seguindo os passos de Benjamin, o autor fala de como as experiências

dos indivíduos se transformam em imagens e, potencialmente, em conhecimento: os

desejos reprimidos regressam ao pré-consciente e, potencialmente, se reforçam em certos

fenômenos estéticos. Há, aí, possibilidade de reflexão dos desejos e necessidades através da

estrutura de um produto estético, quando este sobrepõe às estruturas de interação existentes,

as estruturas derivadas da espontaneidade e da agressividade: que se encontram reprimidas

e incapazes de atuar, mas que conhecem manifestações de sentimentos livres íntegros. Por

outras palavras, o que isto diz da fantasia é que à abstração regressiva, composta de signos

de felicidade (integração/conformismo), contrapõe-se uma regressão produtiva, que é a

negação daqueles signos (emancipação); e que, socialmente falando, é na esfera pública

não-organizada que o seu espaço potencial de emancipação pode se configurar.

Por outro lado, Prokop não está isento de constatações mais pessimistas em sua

crítica dos MCM sob monopólio. Para ele, a compreensão das modernas instituições de

lazer resultaria de uma investigação das condições econômico-políticas específicas, da

forma especial de mercado, como necessidades estruturais. Disso pode resultar o estendi-

mento da alternativa entre conhecimento espontâneo (organizado de forma progressiva) e

fantasia abstrata (regressiva) (Prokop, 1986:129-30).

38
Valendo-se de elementos de uma teoria dos meios generalizados a partir de Parsons

e sua concepção da ação social como troca nos mercados econômico-político-sociais, o

autor vai tomar a moeda, pelo caráter formal de sua expressão de troca, como o aspecto

estrutural relevante para a análise da cultura de massa. Segundo o autor, este aspecto estru-

tural descrito por Parsons em sua analogia da moeda vem significar, enquanto abstração de

troca no sistema de comunicação de massas, a relação entre conteúdos culturais

“pluralistas” e a recepção generalizada: em que o entretenimento é a forma assumida da

moeda para a permutabilidade entre produtores e público (p.132). Entretenimento, assim

posto, passa a ser concebido como o meio que, na consciência dos membros sociais

(público), qual o “uso” da moeda, assume a forma de uma estrutura abstrata receptivo-ge-

neralizada de expectativas (Idem). Para Prokop, o desfrute das instituições que incorporam

a abstração da troca implica num recalque dos aspectos relacionados aos desejos e necessi-

dades; assim, no lazer dirigido, organizado a partir daquelas instituições de mercado, cria-

se um equivalente espiritual ao asseguramento material: à garantia de consumo, corres-

ponde a garantia da defesa, na área específica do lazer, contra necessidades incômodas - é

claro, isto é mais válido para receptores predispostos ao tipo específico desta forma do

consumo, em que o entretenimento generalizado é o correspondente dos próprios desejos e

se apresentam como mecanismo de defesa contra aqueles impulsos e necessidades incontro-

ladas: mas, “os meios de comunicação possuem pouca influência sobre os receptores não-

predispostos” (p.135). Por fim, variedade formal e pluralismo garantem ao entretenimento

generalizado a adoção de elementos formais do jogo e do prazer, atendendo às necessidades

e desejos dos indivíduos em formas infanto-regressivas. Isto porque apesar de o

entretenimento generalizado ser ‘formalizável’, ‘descaracterizável’, é mundialmente con-

versível em ‘satisfação dos desejos’, visto que o princípio de realidade (desempenho), re-

39
calca a fantasia individual na direção daquelas formas infanto-regressivas: que realizam

supostamente tais desejos (p.140). Para o autor, ainda, a fragilidade das necessidades es-

pontâneas ante sua própria formalização e abstração encontra-se no poder e na violência

transmitidos pelo princípio de realidade historicamente constituído como “suportes sociais

de dominação”: sendo ela reforçada por objetivações formalizadas e abstratificadas, que

existem de forma calculada em condições de monopólio, que as descaracterizam e remetem

de volta, regressivamente, à sua existência infantil e isolada, em lugar de apontar-lhes o

“caminho do conhecimento e da ação” (Idem).

Contudo, Prokop afirma que a causa estrutural de os MCM não alterarem as posi-

ções fundamentais nos indivíduos, alterando-os apenas em fenômenos marginais, reside

justamente neste aspecto das objetivações formalizadas e abstratificadas do princípio de

realidade. Por outro lado, quando o asseguramento da variedade formal deixa de ser

“perfeita” e a “base de legitimação” do meio, garantidora da estabilidade e da disciplina

psíquica, se destrói, “a disposição de resistir às aspirações de felicidade” que ameaçam o

equilíbrio confronta-se com sua própria causa, e com o medo do fracasso ante o princípio

de desempenho e de não conseguir a realização da vida - quando isso ocorre, aí se pode

praticar aquela potencialidade emancipadora (p.138-41).

Nestes termos, espontaneidade implica, para se transformar em emancipação, um

entendimento teórico dos mecanismos sociais e econômicos pelas massas - não como

“ciência livre de valores”, mas da “vivência partidária” (daquela esfera pública não-organi-

zada): desde que possam contar com experiências específicas dadas de reivindicações parti-

culares de uso e prática daqueles a quem se voltar; caso contrário, não há forma cultural

emancipatória (p.146).

40
Procurando acentuar criticamente a dimensão histórica de um processo de demo-

cratização da cultura e comunicação no ocidente; e partindo de uma total recusa dos termos

da teoria da cultura de massa, tal como formulada pelo funcionalismo, pela teoria crítica e

por um marxismo antihistoricista, Swingewood (1978) vai nos apresentar um modelo de

análise que se mostra de grande valia na desmitologização do “fenômeno massa”. Aliás,

convém observar suas palavras contidas no último parágrafo de conclusão do já referido

ensaio:

“Os mitos sociais são, politicamente, esquerdistas e reacionários e sua função social é
conservar as estruturas de dominação representadas por uma classe dirigente ou por
um estrato burocrático. No mito, a história se evapora; a realidade é definida em ter-
mos da ideologia dominante, como uma estrutura pré-estabelecida de leis e tendên-
cias objetivas. Assim como o mito aniquila a história, também aniquila a práxis. Se a
cultura é o meio pelo qual o homem afirma sua humanidade e seus fins e aspirações
de liberdade e dignidade, o conceito e a teoria da cultura de massa são sua negação.
Como mito, legitima a dominação democrática e totalitária burguesa; como teoria, é
vazia, ideológica e desprezível” (Swingewood, 1978:101).

Cabe-nos, aqui, dentro de certos limites, apresentar alguns aspectos relativos à in-

terpretação do fenômeno pelo autor, bem como, de sua crítica. Para o âmbito de uma teoria

crítica, um dos principais pontos a que Swingewood se contrapõe é o do modelo de

sociedade capitalista como sociedade de massas, elaborado em torno das teorias centrais da

Escola de Frankfurt; notadamente, no que se refere ao debate sobre a crise de legitimação

da esfera pública e o consequente enfraquecimento ou declínio das instituições civis. Com

efeito, a questão central a que o autor quer chegar é a da consideração de que o conceito de

esfera pública pelos teóricos de Frankfurt se apresenta como rejeição ou contrapartida ao

conceito de hegemonia em Gramsci.

41
Surgido na era do capitalismo liberal, o conceito de esfera pública expressa a esfera

de indivíduos particulares reunidos num órgão público, orientado para as garantias do di-

reito de representação, liberdade de expressão e de reunião e eficácia da opinião pública,

podendo mesmo se contrapor à própria autoridade pública: a autoridade pública era deba-

tida nos meios utilizados pela esfera pública (Habermas apud Swingewood, p.66). Assim,

para a Escola de Frankfurt (Habermas, mas anteriormente, Adorno, Horkheimer e Marcuse)

a emergência da sociedade administrada do capitalismo planificado, com o fim do

“capitalismo liberal auto-regulado do século XIX”, possibilitou uma profunda crise de legi-

timação e o declínio da esfera pública burguesa: agora o Estado moderno é visto pela ótica

de um acentuado domínio sobre a sociedade civil e pela eliminação de qualquer nível de

autonomia possível do indivíduo, que “fica esmagado pelo peso de um aparato administra-

tivo maciço” (Swingewood, 1978:66). Na verdade, a isto o autor vai caracterizar como

sendo mais uma abordagem do modelo totalitário, próximo de uma “teoria conspiratória”.

Para Swingewood, grande parte dos teóricos marxistas contemporâneos têm assimi-

lado este modelo de esfera pública como princípio de análise, seguindo assim o itinerário

de uma “teoria da sociedade de massa e de ‘indústria da cultura’”, tal como traçada pelos

membros da Escola de Frankfurt - como consequência disso, observa-se uma tendência à

rejeição do modelo gramsciano de hegemonia e sua distinção entre instituições privadas e

públicas, a favor de um argumento que funde sociedade civil e sociedade política. Mas o

autor nos adverte:

“A teorização da Escola de Frankfurt da noção burguesa de esfera pública e a teoria


de hegemonia de Gramsci podem ser vistas como duas soluções relacionadas, porém,
distintas, da questão da legitimidade em sociedades caracterizadas pelo conflito de
classes e pelas instituições da democracia de massa” (Idem).

42
O exemplo histórico disso é que se pode apontar a burguesia como a única classe

dominante que fortalece a sociedade civil; claro, na luta para reforçar o seu domínio, mas,

prioritariamente, pelo consentimento e pela hegemonia: “a essência da dominação bur-

guesa” é encontrada “em sua autoridade hegemônica sobre a esfera privada” (p.65-66).

O autor faz a defesa do conceito de sociedade como a estrutura dialética de níveis

distintos, mas, relacionados. Para ele, a formação social do capitalismo segue a dinâmica de

um desenvolvimento desequilibrado impulsionador de uma estrutura altamente complexa e

diferenciada no nível de sua produção e dos fatores de organização e ideológicos. Por outro

lado, critica o estruturalismo de Althusser dos agentes sociais passivos (agidos) e faz uma

defesa da análise da hegemonia como processo de mediação ideológica. Numa acepção de

ideologia que lembra o conceito de dialogismo em Bakhtin (como se poderá ver noutro

momento), afirma o autor:

“A ideologia é uma força vital que funde os diversos extratos conflitantes do capita-
lismo numa unidade social e histórica, um instrumento flexível e dinâmico de
dominação de classe, mas um instrumento que, se não fizesse sentido algum em
relação às experiências cotidianas da classe operária ou se não se relacionasse com
elas, não teria qualquer função de legitimação” (p.68-69).

Nesse sentido, não se pode aceitar a idéia da ideologia como falsa consciência por

meio da qual a classe dominante legitima o seu domínio (Idem).

Sendo a formação social movida por um desenvolvimento desequilibrado e estando

marcada por níveis estruturais inter-relacionados, disso resulta que, nem as instituições

culturais são um mero reflexo das instituições econômicas, nem é a ideologia algo de for-

mação monolítica. Sendo assim, pode-se dizer que há, nas instituições culturais, um pro-

cesso de duas etapas da mediação cultural, em que os MCM transformam ideologia hege-

43
mônica e criam, simultaneamente, ideologia sob a forma do prático-teórico: transformando,

pois, a ideologia em conceitos acessíveis à consciência popular - sendo que esta estrutura é,

justamente, ainda mais mediatizada pelas instituições e associações sociais. Recusando,

todavia, a concepção da unidirecionalidade da “manipulação cultural” como o papel dos

MCM “na transformção da ideologia burguesa formal em formas de consciência prático-

teórica popular no contexto do capitalismo moderno”, o autor vai ressaltar o fato de que

“não existem efeitos não mediados de formas culturais” (p.70-1).

Para o autor, “não são os meios de comunicação de massa que mantêm o capita-

lismo contemporâneo”, a sociedade civil é que o mantem. Para ele, o fato de os MCM terem

que refletir certa existência de um consenso no interior de uma sociedade civil com

hegemonia burguesa, não deve implicar numa função de doutrina deliberada desses meios.

Segundo pensa, o funcionamento dos MCM no capitalismo ocidental tem um sentido de

definição dos “limites dos problemas dentro de uma dada situação”, que cria, assim, “um

sentido de abertura” e certa “imparcialidade”: não por uma neutralidade, mas por uma certa

autonomia enquanto meio. É, pois, dentro de uma sociedade civil fortalecida tanto quanto

seja possível, que os MCM se apresentam como formadores de “um grande processo de

mediação cultural” (p.72).

A saber, o autor vai criticar a visão, indicada por Habermas, de que a esfera pública

no capitalismo liberal estava regida, sem crise de legitimação, por um polipólio e com um

Estado não-político, enquanto, no capitalimo atual, sua crise tem gerado um maior controle

e intervenção do Estado, sob a forma de um monopólio: dando margem ao surgimento de

uma esfera política pública despolitizadora cuja garantia da ordem se processa por um as-

seguramento do hedonismo privado de consumo e lazer (como já se fez referência anteri-

44
ormente). Para ele, esse conceito habermasiano de um sistema capitalista auto-regulado

pela esfera pública sem a intervenção do Estado é historicamente sem validade:

“porque o Estado capitalista do século XIX integrou, deliberadamente, a classe


operária, com reformas educacionais, a extensão da franquia e, no início do século
XX, com a introdução das medidas de Bem-estar Social, progressos que ajudaram o
crescimento da sociedade civil”.

Sem falar que

“o papel do Estado na acumulação de capital nunca foi neutro (...) o imperialismo do


século XIX fazia parte, integralmente, do capitalismo europeu e, principalmente na
Alemanha e na França, era firmemente controlado pelo Estado” (p.74).

Para o autor, a verdadeira crise de legitimidade do capitalismo moderno deve ser

encontrada no interior de um processo que leve em consideração fatos como: o de que “a

dominação de classe capitalista sobreviveu através das instituições do movimento traba-

lhista, dos governos social-democratas e do envolvimento dos sindicatos nas decisões do

governo” (a hegemonia burguesa necessitou historicamente da criação de uma “sociedade

civil forte”, que possibilitou, ao mesmo tempo, a criação de “instituições alternativas e

opostas”); o de que a forma hegemônica do capitalismo sobre a sociedade civil se mantem

pelas ideologias em transformação e pela dinâmica do seu modo de produção; e, por fim, o

de que a legitimidade ideológica hoje é mais problemática tanto pelo aparecimento de um

movimento operário forte, quanto pelo surgimento de uma verdadeira democratização da

cultura, característico do capitalismo atual - democratização essa relacionada com as con-

sequências políticas da alfabetização e do consumo em massa: em termos de uma dialética

moderna.

Com efeito, a imagem terrorífica ou apocalíptica da sociedade e cultura de massa

está assentada, assim, num elitismo cultural (ora progressista, ora conservador), baseado na

45
idéia equivocada e reificadora de que a cultura, em níveis distintos, em algum momento da

sociedade, teria gozado de um a priori ontológicamente identificável nas suas formas distin-

tas de cultura superior e cultura inferior: tais teses não fazem mais do que romantizar e

descaracterizar historicamente o passado. Pode-se dizer que o conceito de níveis de cultura

está mais profundamente marcado de uma “análise moral” das estruturas culturais, do que

por um conceito como processo de mediação a partir de uma base material e de relações

sociais de produção. Por certo, reconhecer isto não impõe a adoção de um modelo de

“ajuste automático e mecânico entre mudança econômica e desenvolvimento cultural” feito

pelos teóricos dos “níveis de cultura”:

“A mudança é desequilibrada e contraditória, como sugere o conceito de formação


social como uma totalidade de níveis estruturais parcialmente autônomos em relação
à estrutura econômica. (...) Toda a questão da democratização da cultura só pode ser
analisada em termos de suas determinações e de seu desenvolvimento histórico espe-
cífico, principalmente da relação existente entre a alfabetização e os hábitos de leitura
e a formação da consciência e da ação humanas” (p.81).

Para Swingewood, é no capitalismo monopolista de hoje que vamos encontrar o

verdadeiro avanço do processo de democratização da cultura; justamente pelas implicações

políticas, entre outras, do processo de alfabetização.

De acordo com o autor, uma sociedade com um alto índice de alfabetização é uma

sociedade com consciência do seu passado e com noção do presente como história, em

cujos membros se desenvolvem um raciocínio analítico. Nestes termos, fica claro que o

interesse do autor é o de constatar que o acesso à educação e cultura ajuda a elevar o padrão

cultural dos indivíduos sociais e viabiliza sua participação política. Para ele, consciência e

alfabetização são de importância fundamental para uma teoria da cultura de massa; nas cul-

turas alfabetizadas, a forma inicialmente dominante de comunicação é a dos registros escri-

46
tos, posto que a alfabetização generalizada é “o pré-requisito para qualquer cultura genui-

namente democrática”: dado que quaisquer fatores de consciência dos indivíduos consigo

mesmos e com seus grupos de conflitos e interesses, bem como, com a totalidade do

mundo, passam pelas mediações com o conhecimento e suas bases históricas - há, assim,

uma inseparabilidade da individualidade com a ação e com a alfabetização (p.83).

A importância deste fator é tal, que se pode atestar que, já no século XIX na Europa,

ao passo que se desenvolviam diversos elementos da cultura burguesa, crescia também o

enorme desejo dos setores mais consequentes do proletariado de se alfabetizar; tanta força

isto assumiu, que levou setores dominantes a manifestarem preocupação para com as

ameaças que poderiam sofrer com o advento de uma educação universal (p.84).

Pelo que foi dito até aqui, pode-se afirmar que a cultura burguesa tendeu, como o

processo abrangente desencadeado no ocidente da democratização político-representativa, a

gozar de um significativo nível de autonomia em relação aos próprios setores dominantes.

Posto que cada vez mais se liga à cultura comercial “como produto dos mesmos processos

econômicos”. No entanto, caso exista uma cultura de massa, seu florescimento inicial é

observado, pelo autor, como ligado muito mais à integração da classe média à cultura co-

mercial burguesa já no século passado, do que por uma integração dos setores operários:

“não era o proletariado urbano que consumia periódicos, (...) mas um novo estrato de
empregados de escritório, administrativos e profissionais” (p.89).

A matriz básica de todo processo cultural no capitalismo é a própria forma assumida

pela cultura comercial. A ela se liga todo um complexo de reprodução cultural que tanto

atinge os elementos de uma cultura, digamos assim, “alta”, quanto “popular”. Aliás, este

fato leva Swingewood a fazer referências a uma cultura democrática burguesa e a distinguir

47
cultura folclórica de cultura popular - já que esta última tem estado baseada “num conceito

de massa e num modo de produção de mercadorias organizado em torno de uma divisão de

trabalho e da reprodução mecânica dos objetos culturais” (p.90). Por outras palavras, pode-

se identificar cultura popular neste contexto, como cultura operária urbana, que se utiliza

desde os aspectos do cotidiano urbano até os elementos das tradições populares,

reproduzida no interior daquilo que se convencionou chamar de cultura de massa: aí se

pode apreender uma profusão de códigos em larga medida sensacionalistas, resignados,

mas, também contestatórios. No tocante à cultura democrática burguesa, o autor está se

referindo a todo um circuito de reprodução que abrange toda uma multiplicidade dos assim

chamados níveis culturais: envolvendo aí os produtos culturais historicamente restritos às

camadas ou classes sociais “educadas”. Para o autor, a criação de um sistema de comuni-

cações “rico e diversificado” no interior da formação social capitalista, deriva sobremaneira

de todo um conjunto de avanços daquilo que constitui a base de toda cultura: a relação entre

as próprias comunicações, a tecnologia e a ciência - e isto tem possibilitado, por um maior

acesso aos MCM, um aumento significativo nos níveis de instrução das diversas camadas

sociais.

Mas o autor constata o fato de que “a universalidade potencial da cultura democrá-

tica burguesa continua sem ser atingida” (Idem): há, por certo, uma forte hierarquia no

acesso aos produtos, embora o desenvolvimento da reprodução mecânica em larga escala

tenha democratizado ainda mais a cultura. Com o desenvolvimento da reprodução mecânica

em larga escala os produtos culturais caracterizados como de “alta cultura” atingiram um

grau de difusão e uma audiência nunca antes existente: e é insustentável, como salienta

Swingewood, o argumento de um “rebaixamento” dos padrôes culturais ocasionado pela

reprodutibilidade em massa. E exemplifica:

48
“se a Ilíada é vendida na mesma livraria de uma estação ferroviária ao lado de um li-
vro de Harold Robins, isto não altera a qualidade da Ilíada ou a reação do leitor a ela;
e uma sinfonia de Beethoven continua sendo uma sinfonia de Beethoven inde-
pendentemente de ser vendida num supermercado ou numa casa de música ‘de quali-
dade’” (p.19).

Claro, o autor está se referindo aos processos de reprodução técnica e de difusão

desses produtos e não às possíveis alterações estilísticas que modifiquem substancialmente

as versões originais das citadas obras: ainda assim, tais modificações não representam, pura

e simplesmente, formas de um necessário aviltamento das obras; elas podem ocorrer com

critérios que não comprometam as qualidades estéticas das mesmas.

Quanto à questão da reprodutibilidade em massa, o autor vai encontrar aí um im-

portante processo de mediação entre o consumo e a assimilação social dos produtos da

chamada “alta cultura” e a sua produção e reprodução mecânica. Por outro lado, ele lembra

que o problema de “alta” e “baixa” cultura assenta no “mito” de que as massas, “com

hábitos homogêneos de consumo” e “‘baixos’ padrões culturais, exigem uma cultura popu-

lar uniforme”. Para ele, “a história da cultura capitalista em todas as suas formas revela

claramente que os estratos educados e cultos acompanharam as massas lado a lado na exi-

gência de entretenimento e diversão” (Idem): sendo impossível fazer nítida distinção, a

nível de consumo, entre “alta” e “baixa” cultura.

Por outro lado, assim como os mecanismos reprodutíveis da comunicação conduzi-

ram ao processo de democratização das linguagens artísticas, na medida exata em que pas-

saram a só refletir cada vez mais as “forças de mercado” e “ideologias associadas ao capi-

talismo”; assim, também, tenderam, em muito, a assumir as formas antidemocráticas de

defesa do establishment. Contudo, Swingewood fala de certa ineficácia da cultura co-

49
mercial na “introdução de mudanças significativas nos valores sociais e políticos” das clas-

ses sociais, visto que se pode falar de tendências ao reforço de pressupostos ideológicos

pelos MCM, mas nunca de um evidente elo causal entre cultura produzida em massa e

consciência popular: isto pode ser observado no fato destas classes, notadamente a operária

(e de muito dos grupos das chamadas minorías), manterem suas afiliações de classes e de

outras formas de associação, bem como, de terem a consciência da desigualdade de uma

sociedade de classes e de exclusões na participação do consumo. Mesmo assim, parece

resultar numa tentativa bem sucedida, nos termos do mercado capitalista, o processo de

integração de todos os estratos sociais numa base comum e universal da cultura comercial

burguesa expandida (p.92).

Uma crítica fundamental do autor é desferida contra os mecanismos de interpretação

da teoria da cultura de massa pelos primeiros frankfurtianos, quando passam de forma

automática de “uma análise estética e intrínseca da cultura comercial (...) para seus efeitos

supostos sobre o comportamento e a consciência de massa”: pressuposto que é bem mais o

da concepção da existência de uma sociedade atomizada. Para ele, tal concepção tem um

forte caráter “tradicionalista”, é “mal” trabalhada e comportamentalista. Além do mais, está

implícito nesse tipo de teoria uma visão do indivíduo como agente passivo frente aos

“estímulos ou ‘mensagens’ culturais” dos MCM. Segundo pensa Swingewood, essa forma

de abordagem não leva em conta o fato de que, a excessão de sociedades politicamente

totalitárias, os MCM funcionam a partir de uma “ligação complexa de fatores e influências

mediadoras, de modo que o próprio objeto cultural é captado, compreendido e assimilado

pela influência de grupos de ‘iguais’” - tais como família e outrais instituições sociais

(p.94-5).

50
Finalizando, as próprias palavras do autor se encarregam de dar o tom ao núcleo

central desta questão: “não é uma questão de hegemonia de cima (que não é, absoluta-

mente, hegemonia, mas dominação direta), mas da relação entre estas instituições e práticas

privadas da sociedade civil e os pressupostos ideológicos da própria cultura popular” pro-

duzida em massa.

“A possibilidade de seus efeitos serem mínimos não deve disfarçar o fato de que, a
nível da consciência popular (distinta da consciência de classe ou de classe revolucio-
nária), os produtos da cultura popular capitalista refletem, muitas vezes de modo dis-
torcido e ambíguo, a estrutura conservadora: mas, conforme argumentamos (...), a
consciência popular não é uma estrutura unitária, mas complexa e contraditória, di-
nâmica e não estática. E é nesse sentido extremamente limitado que a cultura popular
capitalista funciona como um modo de integração social e de controle social” (p.95).

Ademais, enquanto críticos como os da Escola de Frankfurt só vêem os fatores da

tecnologia e da industrialização como condutores de um declínio cultural (por estes se en-

contrarem no interior de um processo fetichizador movido por uma racionalidade instru-

mental), deixam, em contrapartida, de considerarem que, pelo menos a nível da acessibili-

dade das massas ou do público, isto também tem possibilitado uma grande vitalidade cultu-

ral: ao invés de uma desintegração do público, tem-se assistido, “sob a influência da má-

quina”, a uma diversificação e complexificação de hábitos (a exogamia cultural de que nos

fala Canevacci), como alguns dos “processos que tornam cada vez mais indistinta” ou ine-

xistente “a linha (...) entre cultura ‘alta’, ‘média’ e ‘baixa’”: como os críticos de Frankfurt e

outros tanto se empenham em traçar (p.96).

O desenvolvimento da formação social capitalista, detentor de “níveis e estruturas

complexas” dos quais fazem parte as comunicações e seus meios de difusão cultural mo-

dernos, deve implicar, como pensa Swingewood, em “tendências coletivistas” e na obvie-

51
dade do “nivelamento cultural” aí presente. Em todo caso, lembra o autor, tendências cole-

tivistas implicadas na democratização da cultura tornam a “alta” cultura em algo de vasta

acessibilidade (como já foi dito) pelo público: ainda que, em realidade, isto permaneça

muito limitado ou institucionalmente fechado. Segundo pensa, “o ideal de uma cultura de-

mocrática universal baseada na participação ativa de todos (...) é incompatível com o capi-

talismo”, assentado que está “na crença no governo das elites cuja sabedoria ‘superior’”, de

dominação, “subjulga as ‘massas passivas’” (Idem. Aspeei.).

E o que é mais importante, ainda, o autor levanta a tese de que “o mito de massa é

um alicerce tão necessário à legitimidade do capitalismo moderno quanto o mito de uma

cultura de massa universal, igualitária e socialmente integradora”. Mostrando que “a cultura

é mais do que os produtos da produção em massa”, mas uma “práxis” pela qual os homens

moldam e humanizam o mundo social, o autor vai encontrar apenas no socialismo com uma

sociedade civil forte, a “promessa” da possibilidade de uma cultura verdadeiramente

democrática - em que a legitimidade seja fruto de uma “participação plena, democrática” e

historicamente construída. Mas, assinala, dentro das condições históricas do próprio

capitalismo e sua cultura comercial, não devemos esquecer que “os elementos hedonistas e

lúdicos da cultura são tão importantes quanto os intelectuais” (Idem, grifei).

1.3. Em Torno de um Debate Sobre a Crise Atual da Modernidade e Sobre o


Surgimento da Pós-Modernidade.

Um último aspecto a ser considerado, diz respeito à questão da cultura no contexto

da atualidade. Trata-se do debate sobre a existência ou não de uma fase sucessora da era

moderna: a pós-modernidade. Ou, por outras palavras, da identificação de elementos de

continuidade e/ou de descontinuidade entre os aspectos configuradores da esfera cultural no

52
auge do capitalismo moderno e os aspectos formadores da lógica cultural da atual soci-

edade de consumo no capitalismo tardio (Jameson in Kaplan, 1993). Algumas característi-

cas gerais desse período poderiam ser identificadas, entre outros pontos: pela emergência

da sociedade dos serviços (portanto, relacionada à idéia de uma sociedade pós-industrial);

pela avalanche das informações, chegando mesmo a quase um limite de saturação; pela

crescente presença dos mass media na esfera da vida coletiva e, mesmo, privada dos cida-

dãos; na configuração do mundo à condição do virtualismo (hiperrealismo); e num aumento

da capacidade técnica de produção, reprodução e acumulação de informações, bem como,

no dinamismo e na velocidade com que se dá o surgimento e a obsolescência tecnológica

das mesmas; por fim, na nova condição vivida pelos indivíduos face aos produtos culturais,

no sentido de uma maior possibilidade de intervenção, criação e emissão de novos códigos

e mensagens - deixando eles de se constituir em meros receptores.

Para alguns, a amplitude tomada em termos da acessibilidade das massas aos produ-

tos tecnológicos e culturais da high tech, somado ao nível de instabilidade e insegurança ao

qual o indivíduo é levado a viver (sitiado pela violência nas cidades, questões ambientais,

ameaça de pane nos sistemas eletrônicos, epidemias como a AIDS, etc.), teria traçado um

quadro cultural de uma sociedade marcada pelo consumismo hedonista, como estratégia de

sobrevivência do EU, orientado para um narcisismo patológico, em que indivíduos descon-

fiados de sua própria capacidade, se tornam mais “frágeis e dependentes” (Lasch, 1986).

Outros, ainda, advogam que essa situação possibilitou um estado de desesperança e

de descrença frente a ideologias, que passaram a ser vistas como discursos redundantes e

sem sentido. Não só no campo intelectual, mas, inclusive, no campo artístico, parece domi-

nar um estéril esteticismo. A falta de perspectiva quanto a algo novo, a sensação de um

esgotamento completo das energias criativas e das condições alternativas para o surgimento

53
de novas injunções estéticas, teóricas e ideológicas marca o teor forte de uma cultura

pessimista-niilista.

Assim, para certos críticos do pós-moderno, a cultura atual resulta numa expressão

do pastiche (onde não há originalidade e sim cópia e revivência do passado, num clima

profundamente nostágico), do simulacro (virtualismo hiperreal em troca de uma realidade

que parece frustrar os mais candentes desejos dos indivíduos), de uma cultura multimídia.

Se seguirmos o horizonte do debate assumido por Jameson (op. cit.), vamos encon-

trar uma importante crítica completamente tomada de perplexidade. Começaria já pela

conclusão do autor, quando este se pergunta sobre o valor crítico da arte mais recente: para

ele, se é consenso de que o modernismo parece ter funcionado contra a sua sociedade; se,

no caso do pós-modernismo, parece haver uma repetição ou reforço ou reprodução da

lógica do capitalismo de consumo; a questão, a saber, é se há maneiras de resistência a essa

lógica pelo pós-modernismo, se é possível afirmar o seu funcionamento contra a sua socie-

dade: de que haja nele e em seu momento social algo próximo ao que caracterizou o mo-

dernismo em seus primórdios. E o autor deixa em aberto a sua indagação (p.43-4). Para ele,

só é possível demonstrar a estreita relação entre o novo momento do capitalismo tardio e o

pós-modernismo e de como este último expressa formalmente aspectos e fundamentos da

lógica do primeiro, na medida em que essa crítica se possa valer de um grande tema, como

o do “sentimento do desaparecimento da história”: ou de como a sociedade contemporânea

parece ter perdido a “capacidade de reter seu próprio passado” - vivendo um “presente

perpétuo e uma perpétua mudança” obliteradora do “tipo de tradições” preservadas por

“formações sociais anteriores” (Idem).

Para Jameson, o pós-modernismo revela um momento-espaço de mutação ainda não

acompanhada por nossa percepção. Isto pelo fato de nossa percepção estar formada ainda

54
sob os matizes do que ele denomina modernismo canônico. Contudo, o autor procura deixar

algumas pistas do que pode ser revelado de um momento pós-moderno, distinto do que terá

sido a modernidade: o autor segue, pois, uma linha comparativa. Para ele, a modernidade se

baseou na “invenção de um estilo pessoal e privado”: sua estética liga-se a uma “concepção

de um eu e de uma identidade privada únicos” e singulares - a partir da ideologia do

individualismo burguês. Com o declínio desta ideologia, a modernidade cede espaço ao

pós-modernismo. Sendo assim, a “morte do sujeito” compõe o novo elemento

caracterizador desta pós-modernidade. Ademais, se há alguma unidade do pós-modernismo,

ela advém do próprio modernismo a que ele se contrapõe. Aliás, segundo a afirmação de

Jameson, o que tem caracterizado o pós-modernismo é a forma como ele se volta contra o

establishment formado em torno do modernismo que parece ter-se canonizado.

Assim sendo, falar de pós-modernidade implica fazer uso de “um conceito periodi-

zante, cuja função é correlacionar a emergência de novos aspectos formais da cultura com a

emergência de um novo tipo de vida social e com uma nova ordem econômica” (p.27). Um

importante elemento denunciador dessa transformação parece ser o do esmaecimento tanto

de “algumas fronteiras ou separações fundamentais”, como no caso das antigas distinções

teóricas entre “alta cultura” e “cultura de massa” ou “popular”; quanto “das antigas

categorias de gênero e discurso”: em que desaparece o campo academicamente delimitado

das antigas disciplinas, em favor de uma teoria “que é todas ou nenhuma dessas coisas ao

mesmo tempo” (p.26-7). Na sociedade de consumo, que é a forma característica do capita-

lismo tardio, a estética configuradora da pós-modernidade parece ser aquela em que os

signos se liberam da “função de referir-se ao mundo” (Connor, 1992:45), tal como era a

forma na modernidade (aqui vale salientar a aproximação deste pensamento de Jameson e o

55
“simulacro” de Baudrillard): disto resulta que a “experiência” pós-moderna é a do pastiche,

intimamente relacionado à moda nostálgica (Idem).

Se a modernidade estava dominada pela paródia, como forma singularizada de uma

imitação cômico-irônica excentricamente contraposta a uma linguagem normatizada e do-

minante na época; na pós-modernidade, o pastiche parece assumir a forma de uma imitação

desmotivada, aparentemente neutra e sem o impulso satírico da sensibilidade que identifica

algo (“a linguagem normal”) a que se contrapor. Sendo assim, o que resta à pós-moderni-

dade é a impregnação da “moda nostálgica” e do “fracasso” do estético, da arte, do novo

etc.: isto tudo quer dizer de como a pós-modernidade, não podendo mais inventar “novos

estilos e mundos” (posto que todo o poder de invenção já se encontraria completamente

esgotado desde a experiência da modernidade em seu processo individualizante e de singu-

laridades), cai numa vasta esfera da pastichização dos “estilos mortos”, de um “museu

imaginário” (p.31). Assim é que o pastiche foi apresentado como a revivência de uma tota-

lidade do passado e das sensações e formas dos objetos de arte do passado pela pós-mo-

dernidade. Mas essa incapacidade de formular representações estéticas de nossa experiência

atual se mostra como uma séria “acusação contra o capitalismo de consumo”: por não se

saber lidar com o próprio tempo e a própria história, procede-se pela esteriotipação de um

passado que se torna longíquo.

Ao lado disso, uma

“mutação do espaço - o hiperespaço pós-moderno - finalmente conseguiu transceder a


capacidade do corpo humano individual de se localizar, de organizar perceptivamente
seu meio imediato, e de mapear cognitivamente sua posição num mundo externo
mapeável” (p.39).

“[E] esse alarmante ponto de desarticulação entre o corpo e seu meio ambiente cons-
truído (...) pode figurar, ele próprio, como símbolo e análogo do dilema ainda mais
agudo que é a incapacidade de nossa mente, pelo menos na atualidade, de mapear a

56
grande rede global multinacional e descentralizada das comunicações em que nos
vemos apanhados como sujeitos individuais” (Idem).

Voltando-se à indagação em aberto de Jameson, crê-se que toda a sua reflexão re-

vela um grande esforço para localizar o momento de uma vocação utópica em todo o sen-

tido recém reificado da pós-modernidade (1992:57).

Contudo, críticos como Foster (1989) e Huyssen (1991) fazem a distinção entre um

pós-modernismo acrítico e um pós-modernismo crítico. No pós-modernismo acrítico,

assiste-se à restauração da aura suntuária da obra de arte, ao resgate da nostalgia antimo-

dernista, o estabelecimento de uma confusão de códigos, enfim, todos aqueles aspectos

acima apontados. Em contrapartida, o pós-modernismo crítico se apresentaria, particular-

mente, pela manifestação de formas radicais de reconhecimento da alteridade: em termos

étnicos, de gênero, ético-estéticos, ecológicos.

Nesse sentido, o pós-modernismo crítico seria uma ruptura com a modernidade por

criticar nela a presença do mesmo ideário contido no pensamento relacionado à noção de

modernização social e industrial, ideologicamente marcante no positivismo, no evolucio-

nismo clássico e em muitas das subseqüentes teorias do desenvolvimento econômico. Em

contraposição a Habermas (1987), o pós-modernismo crítico se negaria, assim, à necessi-

dade de se completar o projeto (“inacabado”) da modernidade, à necessidade de se cair na

irracionalidade e, também, à necessidade de se perseguir um telos. E isso teria aberto um

novo leque de possibilidades criativas atuais (Huyssen, 1991).

Para Huyssen, aliás, pode-se falar de quatro fenômenos constitutivos da pós-mo-

dernidade crítica: 1) crítica ao viés imperialista da cultura modernista, marcada pelo ideário

de uma modernização desenfreada; 2) existência de mudanças nas atitudes culturais e da

estrutura social a partir do movimento feminista e dos diversos movimentos de minorias; 3)

57
surgimento das preocupações com as questões de meio-ambiente, como ampla crítica da

modernidade e da sua ideologia da modernização, atingindo desde as “subculturas” polí-

tico-regionais até chegar as várias formas de arte; 4) o despertar de uma consciência de

outras culturas, não-ocidentais, e conseqüente retorno ao étnico (Idem, p. 77-8).

Ainda segundo Huyssen, ao contrário do que afirma Jameson, o pós-moderno se

nega à “morte do sujeito”, afirmando uma subjetividade livre das amarras do

individualismo burguês (Idem, p.73-80): visto que a questão da constituição da

subjetividade por códigos, textos e imagens no pós-moderno se apresenta como uma

questão histórica, no sentido da idéia da “produção da subjetividade” tal como se encontra

em Guattari, conforme se apresentará noutro momento.

Tudo isso inviabiliza, como crê Huyssen, falar de continuidade entre modernidade e

pós-modernidade, visto que mesmo a modernidade crítico-negativa do marxismo, como de

resto, todo o modernismo crítico, estiveram marcados pela ideologia iluminista do pro-

gresso e da modernização. Com efeito, estaria a pós-modernidade voltada essencialmente

para uma outra forma de concepção do mundo: a do cotidiano - espaço de contestação e de

ação que inclui o lugar de trabalho e o Estado, mas sem se limitar a estes. Mas isto não tem

impedido a que teóricos do pós-modernismo crítico, como Soja (1993), se utilizem

amplamente do pensamento situacionista ou do cotidiano, valendo-se, inclusive, de um

autor marxista como Lefebvre - sendo, ele próprio, marxista.

Em todo caso, o recado essencial fica dado pelo próprio Huyssen e, também, por

Jameson: a questão que se impôe, hoje, é menos a da adesão fácil ou da condenação abrupta

de um momento pós-moderno; e, mais, a da procura de matizes que nos permitam melhor

situar a complexidade dos problemas culturais por nós vivenciados e de suas mediações

58
com os demais processos do todo social que caracterizam o presente estágio da sociedade

capitalista de consumo.

Por outro lado, uma posição menos apaixonada da questão pode revelar o momento

atual como contínuo e descontínuo em relação à modernidade: com relação à lógica geral

do capitalismo, ele não processa uma ruptura como a que se deu entre capitalismo e

feudalismo - vivendo, portanto, uma continuidade; com relação ao estágio atual de uma

cultura do consumo, ele se apresenta como uma nova etapa da sociedade, totalmente pa-

roxista em relação à extensão da própria cultura capitalista, chegando mesmo a se definir na

forma de um processo de mundialização configurador de uma ainda maior complexidade de

sua cultura urbana, nos termos da cidade-mundo - apresentando, assim, uma desconti-

nuidade interna à própria lógica capitalista de mercado: que, certamente, vende objetos que

se encontram cada vez mais regidos por imagens de um mundo de significantes, embora

não possa suplantar o cotidiano como história. Dito isto, talvez fosse conveniente apre-

sentar a pós-modernidade como a característica básica da tensão existente entre continui-

dade e descontinuidade da própria modernidade; sendo, pois, o modelo assumido pela mo-

dernidade em sua fase atual: na perspectiva dada por Paz (1984) da modernidade como

tradição da ruptura.

Se tomarmos em consideração as idéias lançadas pelo autor na busca de uma melhor

caracterização da modernidade, teremos dado um passo decisivo na direção dos aspectos

mais gerais desse fenômeno. Defendendo a idéia da modernidade como um conceito

exclusivamente ocidental, que não aparece em nenhuma outra civilização, motivado que é

pela crença da sociedade cristã medieval em um “tempo histórico como um processo finito,

sucessivo e irreversível”, onde, uma vez esgotado, “reinará um presente eterno”, Paz assi-

nala: “É claro que a idéia de modernidade somente poderia nascer dentro desta concepção

59
(...); é claro, também, que só poderia nascer como uma crítica da eternidade cristã” (p.43-

4). Nesse sentido, caracteriza-se a modernidade pela sua oposição à noção cristã de eterni-

dade:

“a modernidade é sinônimo de crítica e se identifica com a mudança; não é afirmação


de um princípio intemporal mas, o desdobrar da razão crítica que, sem cessar, se in-
terroga, se examina e se destrói para renascer novamente (...) No passado, a crítica
tinha como objetivo atingir a verdade; na idade moderna, a verdade é crítica” (p.47).

Nesse sentido, Paz lança uma questão que pretende ser o aspecto central da mo-

dernidade: “se a modernidade é a cisão da sociedade cristã e se a razão crítica, como fun-

damento, é permanente cisão de si mesma, como nos curarmos da cisão sem negarmos a

nós mesmos e negar nosso fundamento? como resolver em unidade a contradição sem su-

primí-la?” (Idem). Assim, é que o autor incorpora à sua teoria a noção da modernidade

como tradição da ruptura. Com efeito, a ambigüidade desta terminologia expressa bem o

caráter essencial da modernidade; com ela, inaugura-se um modo de “tradição” peculiar,

que difere estruturalmente do conceito habitual de tradição: enquanto este último aponta

para os elementos de continuidade, dando uma idéia de unidade entre o passado e o pre-

sente; aquele outro modo de se pensar a tradição remete-nos ao fenômeno de pluralidade,

de heterogeneidade da cultura, em que se dá a ruptura tanto em referência ao passado,

quanto em relação ao próprio presente. “Em muitas de suas obras mais violentas e carac-

terísticas - penso nessa tradição que vai dos românticos aos surrealistas - a literatura mo-

derna é uma apaixonada negação da modernidade” (p.53.).

Sendo assim, convém finalizar este apêndice a propósito da modernidade como a

tradição da ruptura, transcrevendo, em toda a sua extenção, um trecho lapidar de Paz a este

respeito:

60
“A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qual-
quer que seja esta; porém desaloja-a para, um instante após, ceder lugar a outra tra-
dição, que, por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A moderni-
dade nunca é ela mesma: é sempre outra. O moderno não é caracterizado unicamente
por sua novidade, mas por sua heterogeneidade. Tradição heterogênea ou do hetero-
gêneo, a modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a
mesma, a modernidade é sempre diferente. A primeira postula a unidade entre o pas-
sado e o hoje; a segunda, não satisfeita em ressaltar as diferenças entre ambas, afirma
que esse passado não é único, mas sim plural. Tradição do moderno: heterogenei-
dade, pluralidade de passados, estranheza radical. Nem o moderno é a continuidade
do passado no presente, nem o hoje é filho do ontem: são sua ruptura, sua negação.
O moderno é auto-suficiente: cada vez que aparece, funda a sua própria tradição”
(p.18.Grifei).

Pelo que se pode ver essa problemática, bem como, de forma bastante distinta,

aquela levada a efeito por Foster e Huyssen, parecem ser as posições que melhor situam o

entendimento dos problemas culturais da atualidade; devendo figurar como pontos de refe-

rência a serem considerados neste trabalho, no tocante ao debate atual em relação ao estado

da cultura e à idéia de sua configuração como cultura pós-moderna.

61
Capítulo Segundo

Caracterizações: Rock, Juventude e Vida Urbana.

O sentido das caracterizações neste capítulo diz respeito ao fato de que, aqui, não se

seguirá a uma abordagem rigorosamente sistemática de uma sociologia do rock, da

juventude e do urbanismo. Ao contrário, pretende-se partir de alguns elementos

configuradores da problemática do rock (como expressão cultural), da juventude (como

segmento social) e da urbanização (como o processo dominante da forma da organização

social atual, engendrado pela dinâmica dos sistemas produtivos da formação social

capitalista). Nesse sentido, apenas se fará menção a alguns pontos pertinentes à

caracterização estético-cultural do rock; sem, contudo, aprofundá-lo. Por se encontrar, em

sua história, intimamente imbricado às manifestações juvenis na sociedade contemporânea,

deve-se igualmente voltar a atenção para o que tem caracterizado, em linhas gerais, os

“tipos” do segmento social jovem. Por fim, tanto a juventude quanto a expressão musical

do rock só podem ser entendidos, se relacionados ao fenômeno talvez mais significativo da

organização social sob o capitalismo: a urbanização. É nessa direção, portanto, a do

entrecruzamento destes três aspectos, que se dará o entendimento de certo discurso do rock

brasileiro como expressão mediada de um perfil de “figuras” do nosso cotidiano urbano,

perfil este expresso em níveis de representação social em larga medida concernentes a

certas formas de manifestações levadas a efeito por grupos de jovens. No que se segue, será

feita a apresentação em separado de cada ítem; mas, unicamente, como forma de enfatizar

certos aspectos mais particulares de cada um - embora seu entendimento deva relacioná-los

de modo mais aproximado.

62
2.1. Aspectos Sociais da Canção de Grande Circulação (Em Particular do Rock)

Esteticamente falando, a canção se encontra associada a propriedades físicas de

sonoridade, que atuam fisiologicamente sobre o corpo. Particularmente com relação ao

rock, esta talvez seja a principal chave para o seu entendimento enquanto modalidade mu-

sical. Pela ênfase em sua materialidade sonora, o rock deveria ser entendido como estilo

que atinge mais o campo das sensações corpóreas e emocionais, do que a esfera da racio-

nalidade. Uma crítica musical efetiva seguiria o entendimento desta correspondência entre a

música e o movimento corpóreo, e toda a dimensão de suas sensações.

Em seus “Prolegômenos a uma estética do rock”, Baugh (1994) identifica a exis-

tência de uma especificidade estética da linguagem do rock cuja orientação difere opositi-

vamente ao que se configura como uma estética tradicional da música. Assim, enquanto a

estética tradicional se vê voltada às questões relativas à composição e à forma; o rock, para

o autor, se voltaria basicamente para a matéria. Sem querer adotar o princípio da estética

tradicional da separação entre forma e matéria (conteúdo), Baugh vai usar o termo matéria

no sentido de como as propriedades sonoras atingem o ouvinte e, consequentemente, como

ele a sente.

“A materialidade do tom, ou mais precisamente, da performance dos tons, é apenas


um dos elementos materiais importantes no rock. Os dois outros são altura e ritmo.
Mas, quando se trata de rock, os dois são mais sentidos pelo corpo do que julgados
pela mente, e o uso adequado de ambos é crucial para o sucesso de uma performance
de rock, um sucesso que é julgado pelas sensações que a música produz no corpo do
ouvinte. O fato de que o rock procure despertar e expressar sensações transforma-se
frequentemente em acusação dirigida contra ele, como se provocar a sensação fosse
algo ‘baixo’ ou indigno de verdadeira beleza musical. Mas a alternativa é olhar para
as propriedades materiais do rock, ou para aquelas propriedades relacionadas às sen-
sações corporais que ele provoca, como a chave para os próprios critérios de exce-
lência musical do rock” (Baugh, 1994:16).

63
A confrontação feita por Baugh dos dois níveis da expressão estético-musical é

reveladora de uma matriz importante para uma compreensão despreconceituosa da canção

rock. Por outro lado, seu valor se encontra no fato de identificar os postulados teóricos de

que partem os críticos da estética clássica. Referindo-se a Kant e ao kantismo, o autor vai

demonstrar como ficou dicotomizado, nessa orientação estética da música, a representação

do “belo” em relação à sensação do apenas “agradável”. O primeiro se dá como “objeto de

um juízo capaz de requerer validade universal” (p.17); ao passo que ao segundo não se

reconhece o mesmo tipo de propriedade, ficando, pois, excluído de qualquer consideração

substancial. O autor fala, ainda, que tais considerações da forma e da composição na esté-

tica clássica encontram-se presentes não só nos clássicos, como também na crítica mais

contemporânea que vai de um Adorno até os jornais de hoje. Aliás, Adorno chega a ser

acusado de submeter à forma até mesmo as propriedades materiais da música.

A rigor, tomar este itinerário crítico para a análise do rock significa, no mínimo,

adotar preconceitos que se hão de erigir como barreira intransponível ao entendimento

daquela matéria musical. Isto porque,

“uma estética do rock julga a beleza musical por seus efeitos sobre o corpo, e desse
modo encontra-se essencialmente voltada para a ‘matéria’ da música. Isso faz com
que a beleza na música do rock seja em certa medida uma questão pessoal e subje-
tiva; na medida em que você avalia uma peça baseado na maneira pela qual ela lhe
afeta, você não pode exigir que outros que são afetados de modo diferente concordem
com sua afirmativa. Mas isso não significa que os padrões do rock são pura e
simplesmente uma questão de gosto individual. Há certas qualidades que uma peça de
rock deve ter para ser boa, embora ouvintes informados possam discordar quanto ao
fato de uma determinada peça de música possuir tais qualidades. Em todo caso, essas
qualidades são mais materiais do que formais, e estão baseadas em padrões de
avaliação da performance, mais do que na composição” (p.20).

64
O ritmo seria uma das qualidades de performance de mais fácil identificação no

rock; e, ainda que ele se encontre na estética clássica, goza de um caráter de formalização

tal que não atinge a mesma visceralidade e o mesmo somatismo contidos no rock. Seu

ritmo não pode ser medido por um “tempo correto” e a batida ou ritmo dependem de seus

efeitos sobre o corpo. Por outro lado, mudanças ocorridas em seu processo, fizeram ressal-

tar outros elementos de performance do rock: por exemplo, a voz (que é menos um fenô-

meno de virtuosismo e mais de performance interpretativa) e instrumentos como a guitarra

(assumindo modos de expressão inicialmente vinculados à voz). Outro elemento da per-

formance, dos mais criticados, é o do volume ou altura, mas que pode ser importante veí-

culo de expressão, atuando por todo o corpo e não apenas no ouvido.

“Ritmo, a própria expressividade das notas, a altura: esses são três elementos mate-
riais, corporais do rock que poderiam, como espero, constituir sua essência e formar a
base de uma genuína estética do rock”, [que] “requer uma emancipação do corpo,
uma emancipação da heteronomia. Tal emancipação também é requerida pelas muitas
formas de música centradas na voz e na dança, mais do que na composição e no livre
julgamento pela mente da beleza formal. De fato, a preocupação com a beleza formal
é adequada apenas a um fragmento muito pequeno da música do mundo” (p.23).

Ainda que o autor não dedique atenção à problemática da letra de música, suas

considerações estéticas são muito importantes no sentido de delinear um quadro geral dos

elementos presentes em qualquer crítica substancial do rock. Isto não retira da letra de

música sua qualidade de performance no rock e na canção em geral. Apenas o autor procura

as questões de materialidade sonora, referindo-se, de passagem, à complexidade da

articulação letra-música no rock. Sobre esta questão se voltará adiante.

Considerando-se que não se vai tratar aqui dos elementos estéticos do rock, tais

colocações se fizeram necessárias a fim de melhor se situar a problemática da relação rock

65
e juventude: entre outras coisas, a forma arrebatadora da materialidade sonora, talvez seja o

elemento principal da persistência do rock (em suas múltiplas variações de som, ritmo e

discurso), como modalidade musical da cultura juvenil.

Aliás, esta vizinhança mantida entre a cultura juvenil e o rock, como produto co-

mercial que é, nos obrigaria a refletir não apenas os elementos últimos de uma sociologia

da juventude, mas, também, de uma sociologia do rock: que deveria se manter em estreita

relação com a primeira. Por certo, não se vai traçar aqui o programa de uma sociologia do

rock, que é matéria de interesse para um outro momento; devendo-se, isto sim, não mais do

que situar o rock como manifestação da cultura urbana, altamente mediado dos problemas

da formação social capitalista e, aí engendrados, dos problemas enfrentados pela juventude

como expressão de crise.

No que se refere ao debate geral sobre a canção comercial, pode-se presenciar ainda

uma significativa discordância a que chegaram muitas análises sociologicamente aplicadas

ao estudo daquela modalidade musical, no que pese aos efeitos sociais por ela causados.

Nesse sentido, vamos encontrar uma visão profundamente pessimista do fenômeno, que vê

no processo de fetichização da canção a existência de um círculo vicioso que se fecha numa

devastadora regressão da audição e consequente conformismo e passividade por parte do

ouvinte - essa idéia tem a sua mais ardorosa defesa na crítica que Adorno faz ao que ele

próprio denomina de “a música ligeira”, referindo-se ao alto grau de produção, circulação e

consumo por que passa essa canção, o que não lhe permite qualquer inovação senão aquela

de ordem funcional ao próprio mercado de sua circulação (in Benjamin et al., op. cit.,

p.165-91).

Por outro lado, entretanto, vê-se surgir uma perspectiva menos elitista de aborda-

gem, e que tenta ver que não é suficiente reduzir toda a explicação dos mecanismos relati-

66
vos à canção de consumo (e, de resto, de grande parte dos produtos da indústria cultural) ao

puro critério das relações industriais e comerciais - sendo necessário tentar ir além dessa

colocação, pelo exame das suas funções não apenas econômicas, mas também sócio-cultu-

rais: deixando os problemas de caráter estético para uma outra ordem de abordagem, aquela

que ambiciona um maior entendimento da própria economia interna da organização musical

(Luthe, 1971).

Reportando-se àquela primeira tendência, de orientação pessimista quanto à inter-

pretação dos vários aspectos da canção de consumo, veja-se o que pensa Adorno a esse

respeito, quando analisa a “moda sem tempo” do fenômeno do jazz. Tomando por base a

perspectiva da comercialização, verifica que sob o jogo da profissionalização, as bandas do

jazz representam nada mais que a suavização de toda rebeldia oriunda daquele movimento

original, suavização essa caracterizada pela repetição das fórmulas que, na melhor das hi-

póteses, leva o público ouvinte ao conformismo de aceitação de formas utilizadas e repeti-

das que, embora assumindo a aparência da “irrupção de uma natureza primitiva e sem

freios”, sucumbe ante às exigências de “obediência” às regras do jogo da canção comercial

que visa indubitavelmente o sucesso. Com efeito, a nota crítica do que se observa neste

momento, não é puramente a da existência de uma radicalidade original que se padroniza

no jazz, num processo harmonizador, pela ação mercantil das empresas da indústria cultu-

ral; indo além, Adorno mostra-se intrigado com o próprio fato de que o jazz parece se es-

forçar para não perder o seu “caráter de moda” (Adorno, 1969).

Sendo que, em sua abordagem, o autor tende não apenas a abraçar uma perspectiva

de análise que se faz valer do repertório da psicopatologia: quando, ao afirmar que “ao

gesto da rebelião se associou sempre no jazz a disposição a uma cega obediência”, o faz

comparando-a ao “tipo sadomasoquista, que se subleva contra a figura paterna, mas conti-

67
nua a adorá-la secretamente, quer imitá-lo e desfrutar, ainda que em última instância a odi-

ada submissão” (p.50); como também, não deixa de chamar atenção para o fato de que no

jazz, pelo aspecto facilitador da comercialização, opera-se uma rígida limitação estética em

sua modalidade musical: quando assinala que “do mesmo modo que nenhuma peça de jazz

conhece história (no sentido musical), do mesmo modo que seus elementos são por assim

dizer desmontáveis, sem que a nenhum compasso se siga uma lógica de desenvolvimento,

assim também essa moda sem tempo converte-se em símbolo de uma sociedade congelada

segundo um plano (p.53) - limitação essa, segundo pensa, presenciada no próprio sentido

estandardizado da “improvização espontânea” que só reflete, na realidade, o grau em que

tal esforço vem escamotear o verdadeiro sentido de algo que foi estudado e preparado com

o cuidado mecânico da precisão.

Contudo, o ponto central a que Adorno se liga na interpretação da canção de con-

sumo é, em última instância, o da esfera das relações mercantis processada no seu bojo. O

da fetichização a que o produto artístico, pela sua fixação e adaptação permanente ao já

conhecido e corriqueiro do mundo cotidiano, deixa de sê-lo, submetendo-se à condição

mercadológica do sistema de troca do mercado, perdendo assim qualquer característica

autônoma possível que a estética, por suas leis próprias, parece relativamente propiciar

como categoria essencial imanente a toda expressão artística. “O monopólio do jazz se

apoia na exclusividade da oferta e na prepotência econômica que há por trás desta” (in

Benjamin et al., op. cit., p.59).

Ao que parece, Adorno se fixa no campo apenas da percepção do processo de pro-

dução industrial capitalista dos produtos culturais: visto que isto será o único ponto a partir

do qual ele vai orientar toda a sua análise dos efeitos da comunicação em circuito comer-

cial. Nesse sentido, o autor tende a uma perspectiva intransigente que soa bem mais uma

68
posição unilateral e mecânica daquele processo e, portanto, pouco dialética, em nome da

qual fala. Trata-se, por certo, da figuração de todo um legado da estética musical clássica de

que falava Baugh. É, neste âmbito, que se pode entender a posição do autor, quando toma

este exemplo do jazz. Particularmente em relação ao elemento da improvisação, que não

passaria de uma simulação do improviso, já que seguiria regras - honestamente, não se pode

atribuir grande incoerência em se ter certas regras e convenções a partir das quais se

improvise: aliás, todo improviso não está absolutamente isento de regras e convenções.

E embora a canção de massa seja produzida no âmbito do que o autor chama de

indústria cultural, o que deve nos levar a uma reflexão sobre a indústria do disco (e da can-

ção) e a toda série de condicionamentos daí advindos, é necessário lembrar que a canção

em si precede em muito ao próprio processo industrial da sociedade, como também, à

própria sociedade capitalista. Com efeito, isto deve nos obrigar a pensar a existência dos

outros elementos constitutivos da estrutura da canção ou que, pelo menos, a ela se liga.

Assim, segundo Edgar Morin, haveria um caráter multidimensional na canção, indo da sua

própria dimensão interna (a quase indissociabilidade da música e da letra; o que a

diferencia da música “pura”), até às suas relações quase sem fronteiras com outras

linguagens de expressão artística (como a dança e a representação teatral), inclusive no caso

das canções que entram no circuito industrial-comercial, voltadas ao consumo massivo

(Morin, 1973). Contudo, o que se tenta demonstrar é que, pela análise pura e simples dos

processos industriais da canção não se pode ter uma compreensão mais que parcial do

fenômeno, negligenciando-se desta forma outros aspectos que lhe são caracteríticos, e que

leva a se estudar essa forma musical não apenas pela óptica de sua imbricação com a

sociedade de consumo; mas, indo além, pela constatação de que determinadas

manifestações musicais operam um certo movimento que tende a vinculá-las a um tipo

69
mais ou menos específico de público, ampliando a complexidade de suas análises, pela

urgência de um estudo que remeta, entre outras coisas, a uma sociologia dos grupos

(diferenciados de forma plural por diversas categorias interpretativas): este seria, entre

outros, o caso da canção rock.

Neste ponto, deve-se chamar atenção para o fato de que não se pode estudar uma

determinada modalidade musical, sem que se leve em conta o universo material e sócio-

cultural do seu público, ainda que não se possa estabelecer uma demarcação rigorosa deste;

sendo assim, no que pese às considerações sobre o mecanismo da produção e circulação da

canção pela indústria do disco, é de fundamental importância deter alguma atenção sobre o

comportamento do público em relação a um tipo ou modalidade musical dado, por mais que

este comportamento esteja condicionado pelas investidas promocionais que as empresas da

indústria do disco assumam. Com isto, quer-se afirmar que não é o suficiente o in-

vestimento promocional para que se obtenha necessariamente uma resposta favorável do

público indiscriminadamente, embora não se tenha a intenção de negar a força efetiva que a

publicidade exerce sobre o seu público.

Caso alguém estivesse interessado em especular, mesmo sem realizar uma pesquisa

mais cuidadosa, poderia afirmar que a música “brega” (música popularesca, surgida como

diluição da jovem guarda - conforme encarte “Guia do Rock” da revista Bizz) tende a

atingir mais frequentemente o público de baixa renda das camadas periféricas urbanas, que

parece constituir o seu principal mercado. Em todo caso, só para saírmos de afirmações

fortuitas e pouco acertadas, poderíamos lembrar que estudos sociológicos sobre o fenômeno

musical do rock, atestam que o seu público dominante é configurado, principalmente, por

grupos de jovens, notadamente aqueles que vivem no espaço urbano das grandes cidades

(Frith, 1978).

70
Diante deste quadro, para além do mecanismo da produção, circulação e consumo

que a indústria do disco (e da canção) engendra, torna-se necessário um estudo das condi-

ções sociais que um determinado público apresenta em face do tipo específico de produto

musical predominantemente consumido por ele. Quer seja, entre outros, com base em cate-

gorias que reflitam as condições de ocupação do espaço; quer seja com base na configura-

ção das classes sociais; quer seja pelo estudo atento do comportamento de grupos etários.

Podendo haver ainda, é claro, o que muitas vezes ocorre, a combinação de mais de uma

dessas categorias.

Isto posto, viu-se que trabalhar os problemas relativos à canção de consumo não

implica, unicamente, em se levar em consideração uma sociologia da indústria do disco e

sua configuração na sociedade de consumo; é igualmente necessário estudar as formas que

suas relações econômicas e sócio-culturais assumem no interior de uma dada sociedade. Ou

seja, na fronteira de uma “sociologia do disco”, deve-se assinalar os conhecimentos produ-

zidos pelas demais sociologias aplicadas; isto é, conhecimentos elaborados no âmbito da

sociologia urbana, da juventude, da família; como, por exemplo, no caso do rock.

Significativamente, tais considerações parecem fazer parte das preocupações cen-

trais da segunda vertente de abordagem dos fenômenos da canção de massa, a que se aludiu

anteriormente. Qual seja, a de considerar a importância das funções não apenas econômicas

mas, inclusive, sócio-culturais do tipo de canção que se quer aqui analisar.

Embora o interesse deste trabalho esteja orientado principalmente para a análise de

discurso das “letras” de uma das modalidades da canção de consumo, como é o caso do

rock, torna-se impossível não mencionar as contribuições apresentadas pelas teorias que

versam sobre um conjunto de elementos constitutivos da indústria do disco: assim, convém

destacar ainda alguns pontos concernentes a uma “sociologia” da canção de consumo ou,

71
como quer Luthe, que pelo menos leve à “investigação social empírica” desse fenômeno

(Luthe, op. cit., p.161).

E é esse autor, aliás, quem traz alguma contribuição a um estudo da canção e da

indústria do disco. Partindo da necessidade de situar essa problemática no contexto da co-

municação de massa, e sua indústria cultural, Luthe chega a traçar algumas das principais

caracteríticas fundamentais distintivas do disco; que tanto aproxima, quanto distancia este

produto de outros fenômenos de expressão daquela indústria, a saber: primeiramente, pode-

se falar que o disco não traz um condicionamento maior quanto a um lugar específico à

recepção do seu conteúdo, ponto que o aproxima relativamente ao rádio e à TV, mas não ao

cinema; em segundo lugar, não parece haver por parte do disco, nenhuma imposição de

tempo para o seu ouvinte, o que o distancia do rádio, da TV e do cinema, embora o apro-

xime da leitura; uma terceira característica do disco, é a que possibilita a sua audição por

várias vezes sucessivas, podendo acontecer o mesmo com o livro, em mais de um momento

assumindo características analógicas ao disco; por fim, uma quarta característica apresen-

tada pelo estudo de Luthe, a propósito da música gravada, é a que diz respeito às necessi-

dades exteriores que se impõem à audição do disco, contrariamente ao que acontece com

outras linguagens dos meios de comunicação, que é a sua dependência mantida tanto em

relação ao rádio e a TV, quanto aos aparelhos de som estereofônicos e o próprio desen-

volvimento da indústria eletrônica (fundamentais à institucionalização do disco enquanto

meio de comunicação de massa) (p.161-3).

Em todo caso, as mesmas características hora apresentadas sobre o disco, parecem

insidir sobre a realidade da fita cassete gravada. Por fim também não se encontram muito

distanciadas desta situação, as características constituintes da fita de vídeo-cassete.

72
“Consignemos, a este respecto, que para definir en su conjunto los medios de comu-
nicación de masas también podemos utilizar um criterio basado en sus elementos co-
munes: producción masiva, difusión masiva y caráter masivo - pero no necesaria-
mente sincronizado - del consumo. No obstante, el estudio de las caracteríticas fun-
damentales del disco podría suscitar un replanteo de la discusión terminológica sobre
el concepto de comunicación de masas o de grandes medios de información” (p.162).

Um outro aspecto que não se pode deixar de ressaltar, é que um estudo da indústria

do disco não pesa apenas sobre a análise das condições do consumo do disco exclusiva-

mente; devendo-se considerar as relações que este mantém com as outras esferas do con-

sumo, bem como, com os caracteres essenciais envolvidos na produção. Com efeito, não

são as qualidades unicamente subjetivas que um autor imprime a uma canção, que vai per

se garantir o seu sucesso; antes, no âmbito da indústria do disco, são os mecanismos de

produção e de tecnização da canção, aliados ao seu processo de difusão, que vão condicio-

nar muito do gosto público e da sua assimilação daquele produto transformado em hit

(canção de grande difusão nas paradas) - e, ainda que não se possa cair no reducionismo de

se conceber todo esse aparato industrial-comercial como sendo a única e absoluta forma de

garantia do sucesso da canção, como já se chamou anteriormente a atenção, não resta dú-

vida que a sua estruturação vai, em última instância, configurar em muito a “fabricação do

sucesso”.

A fabricação de um disco não implica num custo exorbitante, se se tem em mente os

lucros que o seu consumo possibilitará; isso para não falar de que basta a gravação original

de apenas uma fita, para que se tenha gerada as condições de sua alta reprodução técnica no

disco. Por outro lado, a indústria do disco sofre o mesmo processo de qualquer outra

empresa capitalista, fora os elementos de sua peculiaridade. Assim, tanto deve ter uma

equipe técnica altamente especializada para sua especialidade (como produtor executivo,

diretor artístico, engenheiros de som e mixagem e outros), como ter contratos exclusivos

73
com artistas de sucesso, sendo esses dois aspectos os que talvez mais encareçam a

produção.

Não obstante isso, a indústria do disco mantém estreita relação, para além de sua

mera produção-comercialização discográfica, com os ramos da indústria eletrônica e da

moda principalmente (ela mesma se caracterizando como indústria da moda), em suas di-

versas áreas da atividade industrial (Corrêa, 1989): é o caso da indústria e do mercado de

roupas, para se ficar apenas com um exemplo; uma vez que o cantor de sucesso também

assume uma função publicitária ante o grande público. Por sua vez, os astros dos hits ten-

dem a assumir formas de representação, cuja dimensão cênica só enfatiza e assume a força

da interpretação a que a canção é submetida. Veja-se, com efeito, o que diz Michael

Busilmeier analisando o problema da “indústria da consciência” na Alemanha (de resto,

não muito distante das manifestações existentes nas sociedades ditas ocidentais):

“os stars apresentados são, em geral, puras cópias de um tipo padronizado, sem
identidade. Até a linha da cintura, são principalmente os jovens, príncipes de conto de
fadas, com olhos parados, românticos; abaixo da linha dos quadris eles oferecem -
agitando-se mecanicamente - o sexo trivial. A aparência sexual e a excitação jovem
são colocados agressivamente a serviço da exploração do capital. O incitado prazer de
assistir, cuja real satisfação pelo MCM fica frustrada, torna o espectador sedento ao
invés de satisfeito e obriga-o à compra e ao consumo sempre renovados da aparência
sexual na forma de mercadorias. De forma estrutural impulsiva reforça-se através
disso um voyeurismo geral. Os textos das canções encobrem parcialmente, com uma
interioridade estereotipadas, a lascividade da sexualidade objetificada e exposta”
(Busilmeier in Marcondes Fo, 1985:60).

Duvidando da possibilidade de levantar questionamentos sobre a diferença de con-

teúdos dos diversos produtos dos meios de comunicação de massa, Bulsilmeier prefere ver

que os hits aí produzidos tendem a assumir a representação de um excelente “meio ideoló-

gico de repressão”. Onde até mesmo as forças de negação da sociedade de consumo servem

74
apenas para fortalecer o próprio consumo, provavelmente o consumo dos discos que

contrapõem um discurso anti-consumista a essa sociedade - servindo apenas para explorar e

usar aquele que se designa como público consumidor desse produto. Com isso o autor tende

a se aproximar bastante do pessimismo Adorniano: que vê em todo produto da indústria

cultural, mesmo aquele que alimenta um discurso de negação da sociedade de consumo, o

puro mecanismo de reificação que fetichiza tudo (até mesmo o protesto) em mercadoria,

fechando o círculo (da produção-circulação-consumo) apaziguador a que se referia o autor.

Em todo caso, a menos que se queira cair numa abordagem unilateral do problema,

atribuindo-lhe uma dimensão meta-social (o que seria um “erro” teórico reificador), é ne-

cessário levantar algumas considerações sobre o fenômeno da negação e crítica da socie-

dade de consumo e seus possíveis desdobramentos. Assim, pode-se considerar que no que a

indústria cultural produz a padronização nas expressões artísticas, necessita, pelo seu alto

mecanismo de comercialização, de estabelecer um mercado diversificado e plural. Abrindo-

se, desta forma, a toda dinâmica das manifestações culturais que, embora “adaptadas” ao

seu sistema padrão, podem estabelecer a crítica do próprio mecanismo da alienação reifica-

dora da mercadoria e assumir, também, uma função “emancipadora” sobre determinados

processos e valores sociais. Pois estará provocando um distanciamento crítico do cotidiano

(ver Lefebvre no capítulo seguinte), de suas antigas relações de produção (simbólica) de

valores e comportamentos, tornando presente a consciência de “desejos e utopias” (como se

verá a seguir e no capítulo 4) e, neste caso, criando novas condições de produção de valores

e comportamentos. Evidentemente, tais condições têm um caráter apenas parcial e

potencial, até porque frequentemente inacabadas.

Por fim, uma coisa é pensar a estruturação lógica do valor de troca da mercadoria,

que absorve as formas mais radicais de contestação, transformando-as em mercadorias; a

75
outra é reconhecer que, ainda que tais manifestações virem produtos apaziguados do con-

sumo, seria redutor acusar seus “criadores”, quando assumem uma função dessacralizadora

ou contestadora de valores da sociedade de consumo, de simples adeptos daquela lógica,

embora convivam de dentro desta questão.

Se o capitalismo absorve muito das formas de oposição contra ele surgido, absor-

vendo principalmente as manifestações que dependem de difusão ou expressão pelos meios

mercantis de comunicação, isso não nega que, apesar do processo de fetichização aí sofrido,

deva-se reconhecer a sua potencialidade contestadora e mesmo emancipadora original,

ainda que não permanecendo imune ao processo - pois que, embora assuma o estatuto de

mercadoria, harmonizadora e padronizada, não se elimina de todo o seu caráter diferen-

ciador, crítico-emancipador, porque problematizador da técnica, das convenções, dos valo-

res (como se poderá ver a seguir com Becker): não fosse isso, as superestruturas sociais

nem manifestariam reação ante determinadas ações que parecem acentuar no imaginário do

público fruidor uma certa tendência à “desobediência civil”. (A título de exemplo, o fim da

censura no Brasil não se deveu aos empresários da cultura nem ao Estado, mas à pressão da

sociedade civil pela redemocratização; e as artes tiveram muita importância nisto.)

Sem desconhecer o caráter reificador das mercadorias simbólicas da indústria cultu-

ral, estabelecido segundo a lógica dos valores de troca, Prokop (1986:83-4) parece acenar

para uma outra ordem de problemas, existentes no interior do processo da comunicação de

massa (como se viu anteriormente) - tendendo assim a abrir o círculo novamente: enten-

dendo que a representação é um dos fundamentos essenciais dos meios de comunicação de

massa, sem a qual não se consegue manter relação com o público (e isso é tanto mais válido

para o cantor de massa), o autor não se limita, contudo, a essa pura e simples constatação.

76
Indo além, e querendo acentuar o grau de superficialidade e técnica daquelas repre-

sentações, que se fundamentam segundo a lógica da oferta de bens (culturais) consumíveis

pelo grande público, Prokop afirma que só pelo desenvolvimento das contradições presen-

tes no interior da própria mercadoria, pela sua diferenciação entre o “existir natural” e o

“valor de troca”, é que se pode trazer à baila o caráter das ideologias sociais (de domina-

ção) - sendo que isso se processaria no interior do próprio meio de comunicação de massa,

conforme ele desenvolve no seu texto sobre o “perfeito cantor de sucesso”.

Assim, o perfeito cantor de sucesso “não se apresenta como beleza natural”, única

forma para que “crie relação com o telespectador”. Nesse caso, toda a sua “capacidade de

sentir” sofre um processo diluidor, transformando-se em aspectos puramente formais de

representação de “papéis” (pelo domínio de todo jogo cênico interpretativo - do engraçado

ao agressivo e patético). Assim, o perfeito cantor de sucesso “constrói a imagem de sensi-

bilidade na cabeça dos telespectadores, fascinados pela combinação desses elementos”

(p.83).

No entanto, ao perfeito cantor de sucesso impõe-se o exato domínio de suas técni-

cas, pelas quais se relaciona com o público. Servindo a sua voz mais de recursos de repre-

sentação, que de domínio do telespectador. E acrescenta o autor:

“ele ocupa-se com seu efeito concentradamente. O Star constrói a sensibilidade por
meio do trabalho intensivo com aquele objeto, com o corpo perfeito da mercadoria,
cuja imagem ele precisa fazer aparecer na cabeça do telespectador. (...) O trabalho do
Star consiste em, por meio de uma corporalidade desfeita, conduzir os telespectado-
res ao prazer nos valores de troca, passando por todos os altos e baixos da identifica-
ção” (p.84).

Com efeito, pode-se assinalar que a crítica desenvolvida por Prokop traz uma pro-

blematização que traduz um deslocamento complexo na análise dos elementos constitutivos

77
da indústria do disco: a mudança de foco de abordagem desse objeto, não centrando as suas

preocupações diretamente na interpretação de aspectos relativos à canção de consumo,

preferindo encontrar os pontos formadores da estrutura do “superstar”, por ele caracterizado

como o cantor (perfeito) de sucesso.

Nesse sentido, o autor entende que o trabalho intensivo das técnicas de representa-

ção, pelo perfeito cantor de sucesso, representa a sua “alternativa” mais essencial. Mais

ainda que a própria canção, pois tal alternativa “consiste no desenvolvimento de meios de

produção para a arte”; o Star, por seus recursos técnicos e estéticos, antagoniza a diferen-

ciação puramente da mercadoria, conforme se apresenta acima, pela tematização do

“caráter do valor de troca dos Leitmotiv”. E é assim que, como o quer demonstrar Prokop,

ele pode “ultrapassar as puras representações (do cantar, da dança, dos papéis e temas),

deixar seu papel e caracterizá-lo como algo montado, que possa interpretar utopias e tornar

claras as racionalizações”. Ou ainda:

“a montagem da sensibilidade e da expressão, contrastada com aquilo que é falsa-


mente afirmado, é um meio para tornar a ideologia social perceptível e visualizável
ao espectador, que exerce um acompanhamento competente, e para tornar conscientes
desejos e utopias; para refleti-las. O perfeito cantor de sucessos pratica um meio
emancipador” (p.84).

Por fim, deve-se considerar ainda um outro fator, relacionado ao campo da produ-

ção artística. Seguindo os passos de Becker, na sua configuração dos “mundos artísticos” e

seus “tipos sociais”, é-se levado à acatar a idéia de que há mundos da arte e que são consti-

tuídos por um “conjunto de pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e

objetos definidos por esse mesmo mundo como arte” (Becker, 1977).

78
Em linhas gerais, Becker assinala o fato de que o entendimento da arte resultante da

ação coletiva implica na consideração de uma cooperação como ação coordenada para a

relização do trabalho: que impõe um roteiro de pesquisa que deve estabelecer todo o con-

junto possível de relações dos “tipos de pessoas cuja ação contribui para o resultado obtido”

(Idem, p.11). Tais tipos vão desde os que concebem o trabalho, passando pelos que o

executam, fornecem materiais, recursos e equipamentos necessários, até chegar ao público

e à crítica. Com efeito, isto sugere a consideração tanto de um conjunto convencional de

concepções da prática do grupo, quanto da existência de vários mundos coexistindo em

conflito ou em cooperação.

Por referência aos tipos de artistas concebidos pelo autor, pode-se, apenas de pas-

sagem, aqui apresentar duas das três categorias por ele elaboradas: são a dos “Profissionais

Integrados” e a dos “Inconformistas”. Em geral, o profissional integrado pode ser caracte-

rizado como o artista “canônico”, seguidor de todas as convenções dominantes em seu

mundo, onde tudo está previamente definido e esperado, sem que haja quase violação das

expectativas tanto dos produtores quanto do público.

Em contrapartida, os inconformistas podem ser caracterizados como artistas que,

embora “formados” a partir das convenções dominantes dos mundos artísticos, seguindo

mesmo algumas dessas convenções, podem ser considerados “desviantes” no que se refere

a uma série dessas mesmas convenções. Sendo assim, ainda que possam ser integrados ao

mundo artístico canônico num momento posterior, são capazes de violar muitas das expec-

tativas existentes naquele mundo: devendo sua possível futura integração se processar,

também, a partir das mudanças ocorridas nas convenções do mundo artístico (Idem, p.15).

Isto posto, e reafirmando-se o aspecto anteriormente proposto, qual seja, o da aná-

lise da canção de consumo não apenas pelo caráter industrial-comercial da indústria do

79
disco, mas, também, e substancialmente, pelas condições sócio-culturais que apresenta e

pelas modalidades que expressa; vai-se encontrar, além de uma grande diversidade na

abordagem do fenômeno em questão, uma não menor variedade de categorias a serem es-

tudadas. Pelo que ficou visto, pode-se adotar uma ou mais categorias para análise de um

único objeto em apreço. Tome-se por base a análise das características econômicas da can-

ção de consumo (objeto de que se está falando); ou, ainda, num sentido amplo, o funda-

mento do comportamento social dos grupos (ou de determinado grupo específico). Não

bastasse isso, é perfeitamente possível querer abraçar uma categoria especial; bem como,

optar pela análise da canção stricto sensu, ou dos mecanismos da produção discográfica,

para não falar da investigação exclusiva do “perfil” do público ouvinte ou da “posição”

social assumida pelo intérprete (ou grupo de intérpretes); por fim, um estudo pode incorpo-

rar e correlacionar algumas dessas categorias em interação.

No caso estrito deste trabalho, vamos interrelacionar duas categorias para a análise

de uma das modalidades da canção de consumo: a da música Rock. Como já foi dito, por

ser um fenômeno musical intimamente ligado aos processos urbanos das sociedades capita-

listas nas últimas décadas e por estar, por outro lado, irremediávelmente associado aos

grupos jovens, não se pode falar de Rock (muito menos de uma Sociologia de Rock), sem

se levar em conta problemas concernentes ao estudo da juventude e da urbanidade.

Com efeito, a presente investigação traz algumas limitações auto-impostas em fun-

ção da abrangência do campo a que se quer estudar. A primeira, diz respeito ao fato de este

estudo se voltar exclusivamente para a análise do discurso das letras (veja-se capítulo 4); a

segunda se refere à delimitação do período que aqui interessa: os anos 80. Período, digamos

assim, de um ressurgimento do rock no Brasil (a este respeito, também, ver capítulo 4, onde

se tratará sucintamente da presença do rock no Brasil e sua configuração na década de 80).

80
Por enquanto, apenas uma caracterização rápida do rock em geral seria necessário para

justificar o presente interesse pela matéria: a da configuração, nele entranhada, de uma cada

vez mais acentuada presença de “figuras” do cotidiano urbano das metrópoles. Assim,

ainda que a música rock se tenha manifestado, quase sempre em sua própria história, como

um dos canais de expressão de rebeldia da juventude dos centros urbano-industriais é, no

final dos anos 70, com o movimento punk, que isto parece se acentuar.

Se nos anos 60 a tônica era, no rock e na contracultura, o chamamento ao campo, à

evasão da sociedade tecnoburocrática e, em consequência, principalmente na virada da

década, a busca de uma música sofisticada, progressiva e instrumental, ainda baseada no

psicodelismo hippie; com os punks, na segunda metade da década de 70, pode-se encontrar

um violento despertar do velho “ideal”, um acordar para a brutalidade das cidades, para as

sutis e declaradas ameaças que sobre elas existem, sem que se queira delas fugir, ao con-

trário, impregnando-se de sua realidade de metrópole:

“a música rock será simplesmente a música do presente, uma música moderna, a mú-
sica do mundo das máquinas, dos computadores. Os instrumentos eletrônicos não
servirão mais para projetar o ouvinte numa grande viagem cósmica no futuro: eles
manifestam, ao contrário, barulhentamente sua presença obsedante, opressiva, que-
brando as melodias, deformando a voz humana ou, mesmo, sintetizando-a, desenvol-
vendo os ritmos mecânicos, lancinantes, frios” (Maurice, 1978),

elementos esses conjugadores de uma narrativa da vida cotidiana dos centros urbanos, hoje,

e de sua juventude nas sociedades de massa.

Isto posto, contestação e consumo vão representar aqui duas categorias mutuamente

excludentes de conceitos que, todavia, parecem se apresentar por uma contradição

mediatizada. Por consumo, considera-se todo processo que se apresenta pelo grau de in-

tegração e adesão ao sistema de valores socialmente dominantes, passíveis de identificação

81
na própria ordem dos discursos: em contrapartida, considerando-se certos fatores que se

apresentam como elementos de referência à descontinuidade, ruptura e negação daquele

sistema, analisar-se-á o que se deverá denominar por contestação: aliás, este é o aspecto

central de interesse deste trabalho.

2.2. Elementos da Cultura Juvenil

No filme Absolute Beginners, de Julien Temple, um empresário da mídia diz, em

dois momentos, referindo-se à adolescência, que ela é a “nova classe econômica” e que é

uma coisa criada pelos americanos. No que pese o tom redutor destas afirmações, ele nos

obriga à constatação de que, tal como tem sido estudada hoje pelas ciências sociais, a ado-

lescência é um fenômeno da juventude própria das sociedades urbano-industriais surgidas

com o advento do capitalismo.

O estágio pelo qual passa a juventude nestas sociedades contemporâneas se carac-

teriza, pode-se dizer, por um maior prolongamento do tempo de transição entre um período

de infância e uma etapa subsequente: a fase adulta. A isso que se está chamando de situação

transitória, identifica-se um longo percurso de estudo, preparação, amadurecimento

emocional, rumo à “entrada na vida” do mundo adulto, para usar uma expressão de

Lapassade (1968). Para alguns autores, este longo período que marca a juventude e ado-

lescência da época atual se dá assentado num conjunto complexo de opções, nem sempre

harmônicas entre si, em termos das orientações que exercem sobre os jovens, levando-os a

encontrar dificuldades quanto ao próprio processo de sua definição como adultos (Coleman

e Husén, 1985:23).

82
De um ponto de vista da psicologia social, a idéia de “crise” da juventude como

crise de identidade encontra-se discutida por Erikson (1976): Ele vê na “confirmação mútua

do indivíduo e da comunidade, no sentido de que a sociedade reconhece o indivíduo jovem

como portador de novas energias e de que o indivíduo assim confirmado reconhece a

sociedade como um processo vivo que tanto inspira honra como exige confiança”, a força

jovem do “ego emergente” (p.242). Para o autor, uma diversidade de identidades

“possíveis” intensifica e torna mais complexo e problemático o “sentimento de identidade”,

que torna possível descrever o “perigo fundamental desta idade” como “confusão de iden-

tidade” (p.247). Para ele, na mente dos jovens as pessoas são representadas, embora não se

possa definir, senão ideologicamente, o que as pessoas admiradas significam para eles: “o

jovem ama e odeia nas pessoas o que elas ‘representam’ e escolhe-as para um encontro

significativo...” (p.247-9). O processo de seleção dos “indivíduos significativos” pode in-

corporar virtualidades (escolaridade, profissão) e filiações (religião, ideologias); assim

como os métodos desta seleção de “heróis” envolvem tanto um nível de “amenidade e ini-

mizade banais até o jogo perigoso nas fronteiras da sanidade e da legalidade” (p.249).

Num trecho lapidar a propósito deste processo da formação de identidade, o autor

afirma que:

“se, na adolescência humana esse campo de manifestação é alternadamente de con-


formismo devotado ou de extrema divergência, de renovada dedicação ou de rebelião,
devemos recordar a necessidade humana de reagir (e de reagir intensamente na
juventude) à diversidade de condições. No contexto da evolução psicossocial, pode-
mos atribuir um significado de grande alcance ao individualista idiossincrático e ao
rebelde, assim como ao conformista, se bem que sob diferentes condições históricas.
Pois o individualismo salutar e o desviacionismo dedicado contêm uma indignação ao
serviço de uma globalidade que tem de ser restaurada, sem o que a evolução psicos-
social estaria condenada. Assim, a adaptação humana tem os seus leais dissidentes,
seus rebeldes, os que recusam ajustar-se ao que frequentemente se chama, com um

83
mau emprego apologético e fatalista de uma outrora boa fase, ‘a condição humana’”
(p.249-50).

Numa perspectiva mais propriamente sociológica, Mannheim (1980) vai apresentar

a questão em termos de reciprocidade entre juventude e sociedade; ou seja, da “natureza

concreta da sociedade em que a juventude se encontra e à qual esta terá que oferecer sua

contribuição” (p.47). Para o autor, a juventude faz parte dos “recursos latentes” dispostos

na sociedade e dos quais depende sua mobilização revitalizadora (p.49).

As sociedades contemporâneas revelam alto dinamismo propulsor de mudanças, em

que as reservas latentes da juventude se mostram como essenciais a tal processo. Para

Mannheim, independentemente da direção político-ideológica, tais fatores da mudança so-

cial requerem cada vez mais um determinado nível de manifestação daquelas reservas,

reveladoras de grande disponibilidade e cooperação:

“aceita esta verdade, a função específica da mocidade é a de um agente revitalizante;


é uma espécie de reserva que só se põe em evidência quando essa revitalização for
necessária para ajustamento a circunstâncias em rápida mudança ou completamente
novas” (p.50).

Contudo, muito dessas reservas podem permanecer latentes, sem uso ou expressão.

Com efeito, o autor chama a atenção para a necessidade de determinado nível de processo

integrador destas potencialidades, de modo a mobilizar sentimentos, ações, pensamentos

que, de atividade aleatória e casual, assumem “funções sociais”:

“somente através de formas específicas de integração as reservas latentes podem ser


mobilizadas e integradas produtivamente na sociedade. Ao tratar da significação da
juventude para a sociedade, é igualmente importante indagar qual é a natureza do
potencial que a juventude representa e quais as formas de integração por cujo inter-
médio essa reserva pode ser transformada em função” (p.51).

84
Mas é preciso não cair numa pressuposição de que a juventude é, por sua própria

natureza, progressista. Visto que movimentos tanto progressistas quanto retrógrados podem

orientar movimentos de juventude - aliás, a atualização desta afirmação feita por Mannheim

pode muito bem ser constatada em estudos recentes sobre os atuais movimentos de jovens

racistas: veja-se a este respeito, mais para o caso de São Paulo, o estudo desenvolvido por

Costa (1993) sobre os carecas de subúrbio.

Afirmar o caráter de “agente revitalizador” da juventude face ao mundo social, im-

põe atribuir de forma clara “os elementos da adolescência que, se mobilizados e integrados,

auxiliam a sociedade a dar uma nova saída” (p.51). Para Mannheim, o elemento de maior

importância desta caracterização da juventude é o fato de ela, além do seu “espírito de

aventura”, não se encontrar em total envolvimento com o establishment. A questão decisiva

no tocante à puberdade é a da entrada na vida pública, que assume alto relevo na mo-

dernidade, quando ela se vê diante do “caos das valorações antagônicas”: nisso reside os

elementos de consciência de conflito e de conseqüente perplexidade “do espírito inexperi-

ente”. Fato relevante, para o autor, é que os conflitos chegam à juventude, na modernidade,

vindos de fora, principalmente.

Interessante ver, neste ponto, aonde o autor quer chegar. Para ele, a juventude não é

naturalmente progressista ou conservadora, mas uma “potencialidade pronta a qualquer

nova oportunidade”. Tendo vivido até então no espaço familiar, suas atitudes são orientadas

pelas “tradições emocionais e intelectuais ali predominantes”; só, a partir da puberdade,

começando a se abrir a outras redes sociais: como a comunidade e esferas da vida pública.

Ainda sem ‘interesses adquiridos’”, tudo parece assumir uma forma desafiadora:

85
“o adolescente não está apenas biologicamente em um estado de fermentação, mas
sociologicamente penetra em um novo mundo em que os hábitos, costumes e siste-
mas de valores são diferentes dos que até aí conheceram (...) por isso, essa penetração
vinda de fora torna a juventude especialmente apta a simpatizar com movimentos
sociais dinâmicos que, por razões bem diferentes das suas, estão insatisfeitas com o
estado de coisas existentes” (p.52-3).

Sociologicamente, Mannheim advoga ser a condição de “estranho” do jovem o fator

mais importante de sua receptividade e mutabilidade: ser jovem é ser um homem marginal,

estranho de diversa forma ao grupo. Claro que se trata apenas de uma potencialidade,

dependente das “influências orientadoras e diretoras” que vem de fora mobilizá-la e inte-

grá-la a um movimento ou, mesmo, suprimí-la. Resumindo sua análise global, o autor diz:

“a juventude é parte importante das reservas latentes que se acham presentes em toda
sociedade. Dependerá da estrutura social que essas reservas (e quais delas, se as hou-
ver) sejam mobilizadas e integradas em uma função. O fator especial que torna o
adolescente o elemento mais importante para a nova arrancada de uma sociedade é
ele não aceitar como natural a ordem estabelecida nem possuir interesses adquiridos
de ordem econômica ou espiritual. Finalmente, as sociedades estáticas ou de lenta
mudança dispensam a mobilização e integração desses recursos; elas até se mostrarão
ansiosas para suprimir essas potencialidades, ao passo que uma sociedade dinâmica
está fadada a mais cedo ou mais tarde apelar para esses recursos latentes e, em muitos
casos, organizá-los efetivamente” (p.53).

Ao que parece, uma das questões concernentes aos problemas vividos pela juven-

tude nas sociedades contemporâneas, diz respeito ao caráter ambivalente de sua condição

nestas sociedades. Para Lapassade, não de pode configurar a manifestação juvenil como

“revolucionária nem como uma delinquência tradicional” na medida em que, não tendo

estabelecida alguma relação produtiva com o mundo do trabalho, o jovem manifesta um

maior descompromisso com o ordenamento interno da sociedade em que se insere e sua

consequente codificação; assim, embora possa apresentar uma tendência à destruição ou

negação destes códigos, o jovem tem, não obstante, estes mesmos códigos como referência.

86
Para o autor, não se compreende os meios característicos de expressão utilizados pelos

jovens. Desse modo, partindo da contribuição da psicologia social, percebe que a crise se

instaura no adolescente no momento em que este se vê confrontado ao ambiente social.

“O adolescente descobre o mundo como o destino do homem: entrar na vida é des-


cobrir que não se pode deixar de dar resposta, qualquer que seja a resposta, ao fato de
estar situado numa cultura, num sexo, num sistema social” (Lapassade, 1973).

Segundo pensa, a crise se expressa deste modo, sendo a rebeldia uma derivação

desse problema.

Continuando o raciocínio, o autor afirma que as manifestações da crise da juventude

assumem, por vezes um caráter “deliberadamente destruidor”, já que através delas não se

busca o proveito, mas a destruição ou negação da sociedade. Nesse sentido, Lapassade faz

uma aproximação com as sabotagens no trabalho, levadas a efeito pelos trabalhadores: estas

constituíram a resposta operária a uma situação “frustrante” de exploração e opressão -

diferente da resposta por outros meios de luta. Em todo caso, isto se traduz como “oposição

permanente à organização social da produção” (Idem). Para ele, este exemplo serve para a

revolta juvenil:

“a vontade de destruição não é lúdica nem pura explosão da agressividade, como


conflitos de maturação, nem revolta dirigida contra adultos. É a vontade de destruir a
ordem social que não encontra outros meios de expressão” (Idem).

Sendo assim, o niilismo que Nietzsche apresentava como característico da crise de

valores da sociedade contemporânea passa a ser um dos elementos fundamentais para se

compreender “a revolta sem causa” da juventude; seu sentido revelaria a contradição social

não percebida e, neste caso, não elaborada.

87
Talvez esteja aí colocado o caráter de reelaboração que pode ser identificado nas

manifestações juvenis. Diante de um mundo ordenado, os jovens não apenas expressam a

sua negação, mas o reelaboram com as alternativas (quaisquer que sejam) criadas a partir

do que passam a afirmar. Para Lapassade, mais uma vez, a juventude é o momento onde a

existência dos conflitos se desenvolve agudamente, posto que aí se processa o

“terreno de uma sensibilidade particular às contradições que dominam o mundo mo-


derno. Tal sensibilidade se manifesta no momento em que a adesão ‘adulta’ ao
mundo não está efetivada” (Idem).

Trata-se de um momento de “explosão para fora” da experiência que é vivida na

realidade; e essa manifestação é tão mais direta, segundo o autor, quanto mais a sociedade

não possui os meios de vinculação do jovem a ela, pela participação efetiva na produção e

no consumo. Para Lapassade, este seria o sentido “oculto” e mesmo “a causa” da revolta

dos jovens divergentes.

Ainda que não conceba a existência concreta de um conflito de gerações, Foracchi

enfatiza a existência de um extraordinário potencial crítico da juventude, que lhe é facul-

tado pela ausência de um compromisso firmado, por exemplo, a nível profissional. Com

efeito, também os adultos vivem em “estado de perplexidade” ante a sociedade em crise,

que não consegue solucionar os problemas gerados no interior do seu próprio processo. Se,

em todo caso, é na juventude que se vai encontrar, contemporaneamente, a exteriorização

de um comportamento rebelde, isto se deve, para a autora, ao fato de o indivíduo na

sociedade de massa estar basicamente voltado para as “avaliações puramente externas”

(Foracchi, 1983).

88
Neste caso, um dos aspectos que envolve a geração jovem, sobretudo se não se

encontra comprometida com a esfera do trabalho, é o problema do consumo. De fato, se

admitirmos que a classe social do jovem está definida em função de sua origem familiar,

não estando em nada associada a outras categorias, o caráter de sua rebeldia apresenta-se na

forma de uma “revolução permitida”, suficientemente controlada. Foracchi, contudo,

afirma que isso não implica a inexistência de uma “violência potencial”, nem a impossibili-

dade de implementar mudanças, operadas muitas vezes na esteira do desejo.

Ao que parece, pelo menos no plano simbólico da produção cultural e no plano

propriamente concreto do comportamento, pode-se perceber tanto a presença ativa de certa

violência, quanto a vigência de mudanças, ao menos numa esfera nitidamente exteriorizada

- ora como recusa essencial à rotinização, ora pela crítica aos padrões de comportamento

vigentes e/ou tradicionais. Assim, acentua mais uma vez Foracchi: “o cotidiano (...)

desmente essa afirmação de ser inofensivo o movimento da juventude”. E complementa,

“alguma coisa está acontecendo e a noção de ordem está também sendo submetida a

revisão” (Idem).

Mas, inclusive no plano simbólico da produção cultural, vê-se surgir uma variedade

grande de manifestações cujo potencial transgressivo aponta para a questão do comporta-

mento divergente. Ou seja, se dá no âmbito do que certa literatura sociológica denominou

de “desvio”. A saber, em todos os aspectos em que se apresenta, o comportamento diver-

gente e/ou desviante traduz uma instância de transgressão às formas de controle dadas pelo

ordenamento social vigente. Evidentemente que haveria o “desvio” reificador dos valores

dominantes e o que atuaria segundo uma perspectiva de desintegração, ao menos no plano

simbólico, daqueles valores, cuja ação apresenta sempre características de mudança. Por

exemplo, todo crime e contravenção da máfia parece manter-se sob a orientação do código

89
vigente (conservando em princípios o que transgride na prática): e, de alguma forma, certa

rebeldia juvenil pode se apresentar segundo essa performance ou conservadoramente;

contudo, em grande medida, muito do caráter rebelde do comportamento juvenil tende a

demonstrar uma orientação negadora de tais códigos (ainda que mantenha na prática o que

naga em princípios). Daí que, mesmo quando estudos do comportamento desviante nos

remetem a situações em que o elemento divergente encontra momento mais apropriado ou

consentido para transgredir, assumindo assim uma postura em consonância com o sistema

que o limita, ainda assim, tais estudos não negam os traços de ruptura contidos nessa

transgressão.

Talvez seja apropriado citar, mais uma vez, Lapassade quando afirma:

“na sociedade contemporânea (...) não há mais (...) iniciação, e o desvio dos jovens
exprime a recusa do mundo dito ‘adulto’. Mas, os adultos podem ver, nessas
‘iniciações’ modernas (...), a ‘fúria de viver’ o mostra (...), a imagem de sua socie-
dade”. E complementa: “é essa a causa escondida da revolta. Uma revolta que só
toma forma do niilismo por causa do ponto de conflito a que chegou nossa socie-
dade”.

No que finaliza:

“os jovens revoltados tornaram-se indiferentes, se não hostis, ao mundo que os espera
e que lhes pede para serem adultos. Sua revolta está, indubitavelmente, num impasse.
Seu sentido não é por isso menos essencial ao mundo hodierno. Pode-se ver aí,
efetivamente, uma contestação fundamental da forma do adulto, anunciadora do seu
declínio” (Idem).

Um outro aspecto importante sobre o estudo da juventude hoje, diz respeito às ten-

sões que o jovem vive quanto às contradições entre o “universo da rua” e o familiar, no que

este transmite “de sua autoridade, é claro, mas também dos espaços que (...) organiza e dos

modelos que atribui” (Lafont, 1985). Nesse sentido, afirma Lafont, enquanto espaço

“sentimentalizado”, o universo familiar deixa de ser concebido, pelo próprio jovem, como o

90
local apropriado à sua socialização - no que pese aí poder ser encontrado um grau mais

substantivo de apoio e conforto contra a situação encontrada no mundo de “fora”. No

mundo da rua, não há maior conforto e a vida não é “regrada nem regular”, mas feita de

“longos períodos de inatividade e de tédio”, “entrecortados por aventuras e excessos”

(Idem, p.198).

Muito embora se possa resistir a excessivas generalizações quanto ao que venha

constituir o comportamento jovem, acredita-se ser possível refletir sobre a possibilidade de

se identificar uma polarização entre o universo familiar e o universo da rua. Nesse sentido,

há como refletir que, colocada para além do ambiente familiar e da escola (sob certo as-

pecto, uma extensão do ambiente familiar), a rua tem se mostrado como um lugar de socia-

lização altamente requerido por esse grupo de jovens. Pode-se entender essa escolha, aliás,

como a resultante de uma contradição. De um lado, uma sociedade de princípios extrema-

mente consumistas impõe a todos a participação no consumo como meio de afirmação da

própria identidade - ficando a condição de cidadão subsumida pela de consumidor. Por

outro lado, a não abertura aos jovens de canais de participação regulados - numa fase em

que esse passa mais comumente a questionar valores amplamente relacionados aos proces-

sos de sua afirmação como ser (sexualidade, profissão, escola, etc.) - tem afirmado o espaço

da rua como expressão alternativa de sua socialização. Assim, ainda que o estudo de Lafont

aborde questões do jovem existente num outro contexto, não parece se distanciar muito do

que revelam estudos mais recentes: veja-se o caso dos office boys, categoria de jovens

trabalhadores, num estudo aplicado à realidade de São Paulo, em que muitos destes jovens

têm se orientado segundo um conjunto de valores altamente conflitivos (aspirações ao

consumo e à posse de bens - vestuário, casa própria, poupança; confusão entre tempo de

trabalho e tempo de lazer - as brincadeiras com os fliperamas estão presentes mesmo no

91
horário de expediente; discriminação diferenciadora entre eles e os “jovens que ‘não pen-

sam em estudar, em trabalhar, em nada’”: os roqueiros, em particular, os metaleiros e os

punks), mas, sobretudo, em que o espaço da rua tem se mostrado como o “balizador” de

toda a formação profissional e cultural dessa etapa de socialização daqueles jovens na vida

cotidiana da grande metrópole (Ramos e Borelli, 1985:92-108).

Por certo toda essa digressão sobre problemas da juventude nas sociedades con-

temporâneas não dá conta da complexidade que o quadro apresenta quando se parte para

estudos aplicados à situações específicas. A rigor, não se fez até aqui mais do que traçar

alguns pontos muito gerais sobre as possíveis causas da crise da juventude: questões relati-

vas à construção de identidade, problemas da transição para o mundo adulto, maior des-

compromisso com os valores estabelecidos e do mundo do trabalho, entre outros aspectos.

Aliás, o que poderia ser dito é que não se elaborou nestas páginas, propriamente, um co-

mentário efetivo sobre a sociologia da juventude; longe disto, buscou-se não mais do que

privilegiar algumas páginas do que se poderia denominar de sociologia da contestação ju-

venil: ou seja, dos estudos que têm dado maior atenção à correlação entre crise e fatores de

contestação. Tal opção aqui seguida se deve ao fato de esta abordagem melhor se adequar

aos objetivos do trabalho, no sentido de identificar o potencial de contestação manifesta no

discurso do rock, tal como será definida adiante, como algo que é compartilhado por de-

terminada parcela de jovens que, num estudo mais detalhado, poderia ser identificada como

favorável àquele fator contestação, por exemplo.

De passagem, só para se ter uma maior clareza em relação ao que acaba de se afir-

mar, tome-se como referência uma pesquisa da McCann-Erickson do Brasil, em que se

traça um rápido perfil de segmentação sócio-psicológica do jovem brasileiro atual. Eviden-

temente, trata-se de uma pesquisa do setor de propaganda, muito mais interessada em traçar

92
o que se poderia caracterizar como um perfil do jovem consumidor; contudo, em nada isto

diminui a validade e qualidade dos resultados obtidos pela pesquisa, que foi montada a

partir de uma elaboração tanto quantitativa quanto qualitativa dos instrumentos de investi-

gação. A partir da conjunção de diversas variáveis, distribuídas como fatores das dimensões

de integração vs. contestação e de modernidade vs. conservadorismo, que passam por

vários cruzamentos, a pesquisa revela a existência de cinco grupos tipificados em função de

uma maior ou menor presença daqueles fatores de integração, contestação, modernidade,

conservadorismo. Com efeito, os grupos estão assim definidos como integrados,

conservadores, modernos, contestadores e independentes. Esta classificação especifica a

variação do índice de integração dos grupos de jovens em relação aos valores sociais do

status quo. Como se pode antever, só para ficarmos com um destes grupos, de maior inte-

resse para o presente trabalho, o grupo dos contestadores são os que registram “os menores

índices de integração” (McCann-Erickson Brasil, 1984:7). Em termos de classe social, a

pesquisa revela que os grupos de integrados estão compostos por jovens pertencentes ao

que caracterizam como classe “C”, ao passo que os contestadores, na outra ponta, gozariam

de uma “condição sócio-econômica e cultural” privilegiada. Em outras palavras, a pesquisa

identifica que quanto mais baixo o nível sócio-econômico e cultural, maior con-

servadorismo e integração/assimilação dos valores do establishment; enquanto um maior

privilégio sócio-econômico é revelador de uma atitude mais crítica e desagregada daqueles

valores. Ao longo de cinco páginas, vários são os fatores apresentados de contestação;

caberia, aqui, talvez, apenas citar a conclusão deste ítem pela pesquisa:

“para resumir, podemos dizer que os traços que se mostraram mais visíveis no perfil
psicológico do pequeno grupo contestador são a superioridade, a diferenciação e a
crítica pessimista. Sua posição no nosso gráfico é oposta à do grupo integrado. O

93
integrado, na sua difícil condição de vida, acredita apenas que ainda não atingiu o
melhor do mundo em que vive, enquanto que o contestador, mesmo no sua favorecida
situação material, tem consciência de que este mesmo mundo não poderá satisfazer às
suas exigências” (p.31).

Ora, por tudo o que foi visto, pensar o problema da juventude e da cultura juvenil na

sociedade contemporânea implica refletir sobre questões tais como ruptura e continuidade

em relação à ordem social estabelecida dos valores. Nessa direção, pode-se identificar um

conjunto de códigos transgressivos em relação aos valores e padrões socialmente aceitos,

códigos estes elaborados no âmbito de setores das camadas mais jovens da sociedade,

parecendo indicar a marca de um forte desejo e aptidão à mudança social.

É isso que leva à idéia de que o potencial contestador do rock como fenômeno uni-

versal, em face aos valores estabelecidos, é um dos outros aspectos mais centrais na manu-

tenção da atualidade deste gênero musical como expressão da cultura jovem. Sendo assim,

o rock não vai apenas fazer parte do jogo comercial do entretenimento pelo entretenimento,

mas vai estar associado a práticas cujo princípio transgressor deseja alterar a ordem das

coisas estabelecidas ou mantenedoras do sistema social vigente.

Por fim, apenas para melhor situar o ponto a que se quer chegar, vale a pena tomar,

ainda, a referência ao pensamento de Morin com relaçaõ à cultura adolescente no âmbito da

cultura de massa. Assim, concebendo a cultura de massas como algo que se metamorfoseia

pelo seu próprio “policentrismo”, correspondente à sociedade que a produz, Morin também

vai chamar a atenção para o caráter ambivalente da cultura em circuito de produção

industrial. Identificando o processo cultural a partir de sua correspondência com a so-

ciedade que a produz, o autor vai perceber, aí, em referência a Marx, tratar-se do processo

de uma “longa e complexa dialética histórica que desenvolve o individualismo moderno no

quadro burguês” (Morin, 1977:112).

94
Para Morin, ao mesmo tempo em que o sistema industrial traz a “ideologia eufórica

e os espetáculos de evasão” para integração deste individualismo: ao mesmo tempo, tal

individualismo, particularmente pela “intermediação da intelligentsia (...) insatisfeita no

ciclo de produção da indústria cultural, apresenta seus problemas e também os de sua

própria crise” (Idem, p.112). Nessa perspectiva, o autor atinge um ponto fundamental para

explicação do que se pode chamar de princípios “desintegradores” e de “descontinuidade”

em relação a modelos hegemônicos do sistema social. É o que se pode tirar da afirmação

que faz de que “no plano da cultura adolescente (...) há um conflito dialético entre os

fermentos críticos ou de desintegração e as enzimas de integração” (Idem, p.113).

Nesse sentido, é que o autor vai introduzir as noções de tendência e contratendên-

cia, quando da interpretação da problemática adolescente nesta segunda metade do século.

Para ele, a natureza desta relação deve ser procurada “do lado de uma reflexão sobre o

acontecimento e sobre a mudança social”:

“desde suas origens, esta subcultura é fundamentalmente ambivalente em face da


cultura de massas. Uma estrutura ambivalente conduz, por um lado, ao consumo
‘estético-lúdico’ e à fruição individualista da civilização burguesa; mas ela contém,
ao mesmo tempo, os ‘fermentos’ de uma não-adesão a este mundo adulto que traem o
tédio burocrático, a repetição, a mentira, a morte” (Idem, p.133).

Neste segundo caso, “os valores e tendências adotadas” devem ser identificadas nas

manifestações culturais reveladoras das “reservas da infância (espontaneidade, jogo)”

(Idem, p.135). Nisto, em parte, aproximando-se do que se viu em Prokop no primeiro capí-

tulo.

Finalmente, um ponto que se deve reforçar, mais uma vez, é o da problemática da

relação entre juventude e certos traços da cultura na contemporaneidade. Falar de cultura

95
juvenil não implica afirmar a unidade conceitual do termo como se pode perceber. Ao con-

trário, os estudos desenvolvidos no âmbito da juventude têm apresentado um quadro de

questões para o qual não existe mesmo um maior entendimento ou concordância entre os

especialistas.

No entanto, um conjunto de problemas sociais vivenciados pelos jovens tem sido

apresentado, pela literatura concernente, menos pelo seu caráter singular na vida hodierna

das sociedades e, muito mais, pela forma e proporção assumidas no interior do próprio

processo. Acusações sobre o caráter de inadaptação dos jovens ao universo adulto da vida

social, seu comportamento a um só tempo gregário e divergente frente a regularidades do

mundo coletivo, a produção e o consumo de símbolos que lhes são próprios, é o que vem

motivar muitas das abordagens que tomam por objeto a questão do comportamento juvenil.

Em se tratando de considerar a existência de uma cultura juvenil, pode-se ainda

detectar o fato da existência de três fases não claramente distintas do processo. Inicial-

mente, vai-se encontrar um tipo de manifestação mais original e espontâneo de temas

oriundos dos grupos adolescentes, muitas vezes marcado de particularismos e sem um nível

de abrangência maior, ainda que nos quadros da organização urbano-industrial. Em se-

guida, e adotada apenas por certas correntes da indústria cultural, é possível afirmar a

existência de um processo de absorção secundária e parcial daqueles temas, que retornam

agora na forma de mercadoria destinada ao consumo dos grupos jovens. Por fim, observa-

se que tal situação evoluiu para uma total incorporação dos símbolos juvenis pela cultura

das massas, reorientando inclusive suas formas anteriores de comunicação (Burgelin, 1981:

147-66).

Como observa Burgelin, entretanto, não é fácil distinguir as três referidas fases;

sobretudo, se se considerar o fato de que os adolescentes não representam apenas o nasce-

96
douro da cultura juvenil, eles são também uma camada consumidora de cultura massificada.

Em todo caso, a principal afirmação de uma cultura juvenil é a de que grupos de

adolescentes se afiguram mesmo como a origem e a criatividade social, sendo capazes de

inspirar, por vezes, “utopias” emancipatórias que se identificam a elementos com princí-

pios desintegradores e de descontinuidade em relação a modelos hegemônicos do sistema

social.

2.3. Dimensões da Urbanização na Contemporaneidade

Não é o caso aqui de se proceder à elaboração de uma visão exaustiva ou sistemá-

tica do processo de urbanização. Longe de tal perspectiva, procurar-se-á não mais que

apenas indicar, de modo parcial e esquemático, certos aspectos relevados por modelos de

teoria social a propósito do espaço urbano. Além do mais, o maior objetivo deste trabalho

não é o de fomentar um debate sobre as teorias sociais da urbanização, mas, sim, de tentar

se valer de algumas dessas contribuições, a fim de que se possa criar mecanismos que via-

bilizem a identificação de determinados elementos do discurso sobre/na e da cidade na so-

ciedade atual - levando em conta que um tal discurso deve ser configurado como um campo

de representção significativa amplamente mediada por injunções econômicas, políticas,

sócio-culturais e históricas, entre outras, e que se encontram claramente manifestas ou

ocultadas no âmbito do cotidiano urbano daquelas cidades. Especialmente, neste caso, não

se trata, pois, de descrever o urbano tal como se ele se mostrasse em uma cotidianidade per

se; mas de observar como ele pode ser identificado enquanto discurso, a partir das repre-

sentações elaboradas como mediações e/ou dialogismo de uma multiplicidade de fatores,

vozes e imagens que se entrecruzam em seu cotidiano. No caso, aqui, trata-se de como o

97
rock elabora um certo discurso cujos fragmentos criam determinadas imagens do urbano e

do contemporâneo na cidade - imagens essas que mantêm níveis sensíveis de mediação

com um mundo “juvenil” de representações contraditórias, como se pode observar.

Particularmente, interessa apreender uma certa dimensão crítica e conflitiva do cotidiano

urbano naquelas imagens e representações (como se buscará empreender no último

capítulo).

No que se refere à teoria social e à crítica da urbanização, convém identificar certas

tendências a considerá-lo como uma entidade per se, de um lado, ou como espaço interde-

pendente e contextual de processos econômicos, políticos, sócio-culturais e históricos, de

outro. No primeiro caso, trata-se das abordagens que têm no urbano por si só o elemento

determinante sobre todo o processo da vida social. É o que se pode depreender das investi-

gações levadas a efeito pelos teóricos da Escola de Chicago. Influenciados pela idéia

darwinista dos processos naturais da luta pela sobrevivência e pela descoberta freudiana das

pulsões, teóricos da Escola desenvolvem um determinado nível de investigação das “áreas

naturais” do fenômeno da urbanização, que ficou conhecido como a teoria do “enfoque

ecológico”. Num primeiro ponto deste enfoque, o processo econômico da troca tende a ser

concebido não tanto como produto social que é, mas como resultado de uma luta exclusiva

de sobrevivência dos indivíduos, nos moldes daqueles processos naturais da ecologia

animal. No segundo, o enfoque recai sobre as características da natureza humana e de seus

instintos naturais: aqui as investigações voltam seus interesses para a identificação das

maneiras como o comportamento humano tende a reagir em face das mudanças ocorridas

na moderna configuração do meio urbano - mais detidamente em relação às formas de

comportamento desviante de indivíduos e grupos (em particular com relação ao conjunto de

98
influências sofridas pelos imigrantes e com a consequente quebra de seus laços com os

padrões culturais de origem).

Um outro nível das investigações orientadas pela Escola diz respeito à consideração

dos padrões de comportamento e da comunidade de valores sociais engendrados no âmbito

do fenômeno urbano como modo de vida, e que marcam profundamente o conjunto dos

processos sociais, de suas relações e estruturas (Dickens, 1989; Oliven, 1974 e 1984;

Giddens, 1984; e Velho, 1979). Só de passagem, caberia notar como Wirth vai caracterizar

o urbanismo como a determinação do modo de vida atual das cidades. Para ele, “um dos

fatos mais notáveis dos tempos modernos”, que provocou mudanças significativas em

“todas as fases da vida social”, é “a urbanização do mundo” (Velho, 1979:112). Para ele,

uma teoria sobre o urbano deveria partir de um conjunto de proposições sociológicas cen-

trais ao entendimento do fenômeno, tais como, o tamanho, a densidade e a heterogeneidade

da população, sendo que estas três características fundamentais se apresentam de modo

relativamente permanente no modo de vida das cidades, ocasionados pela urbanização.

Numa síntese importante de seu modelo, o autor assinala que

“o urbanismo como um modo de vida característico pode ser abordado empirica-


mente de três perspectivas interrelacionadas: 1) como uma estrutura física consistindo
uma base de população, uma tecnologia e uma ordem ecológica; 2) como um sistema
de organização social envolvendo uma estrutura social característica, uma série de
instituições sociais e um modelo típico de relações sociais; 3) como um conjunto de
atitudes de idéias e uma constelação de personalidades dedicadas a formas típicas do
comportamento coletivo e sujeitas a mecanismos característicos de controle social”
(Idem, p.107).

Como acentua Oliven (1984), a ênfase de Wirth sobre o urbanismo o levou à for-

mulação de “uma teoria sociológica e sócio-psicológica” daquele fenômeno, por ele con-

99
cebido como “uma variável explicativa” que “afeta a vida social”, aqui vista como

“variável dependente” (p.21).

Para Wirth, ainda, o modo de vida urbano apresenta-se em seus traços característi-

cos, pela “substituição de contatos primários por secundários”, pelo “enfraquecimento dos

laços de parentesco” e pelo “declínio do significado social da família”, pelo

“desaparecimento da vizinhança” e pela “corrosão da base tradicional da solidariedade so-

cial” (p.109). Essas características teriam, para o autor, uma abrangência extensiva a todo o

fenômeno urbano, que não se limita à circunscrição do espaço citadino, visto que sua

influência extrapolaria até outras áreas. Para o autor, uma descrição do modo de vida ur-

bano baseado em tais premissas não esgota, por certo, a compreensão da totalidade deste

modo de vida, mas cumpre suas finalidades sociológicas (p.113).

As críticas formuladas a este modelo contestam, justamente, entre outros aspectos, o

fato de ele se atribuir uma aplicabilidade geral; o fato de tomar, exclusivamente, as carac-

terísticas das próprias cidades como descrição do fenômeno urbano em geral, sem uma

articulação com os processos sociais amplos da sociedade da qual faz parte: uma vez que a

cidade se mostra como instituição constituinte da sociedade e, ao mesmo tempo, influência

decisiva sobre todas as instituições sociais, sua abordagem deve se pautar por aquele nível

de articulação e não por uma atribuição per se de suas características; finalmente, o fato de

se orientar tanto por um modelo naturalístico em sua abordagem do nível “biótico” ou

ecológico, quanto por uma concepção de mudança social a partir de um modelo dicotômico

que apreende os processos sociais pelo contraste sistemático entre o tradicional e o

moderno ou entre o rural e o urbano - tendência, aliás, que goza de grande influência em

parte significativa da abordagem clássica das ciências sociais: com Tönnies e sua concep-

ção da passagem evolutiva do estágio da “comunidade” para o da “sociedade”; com

100
Durkheim em sua formulação do modelo explicativo da divisão do trabalho social, causa

fundamental da passagem de um estado de “solidariedade mecânica” para um outro, de

“solidariedade orgânica”; ou, ainda, com Simmel e seu contraste na apresentação do inte-

lecto do tipo metropolitano em relação ao do tipo rural, em que o primeiro encontra-se

completamente exposto a uma multiplicidade de informações, e cujo aparelho psíquico

estaria dominado pela impessoalidade e por uma subjetividade pessoal alta, pela calculabili-

dade e pela atitude blasé - espécie de equivalente geral que embota o poder de discriminar

os objetos e coisas, devido ao fato de estes se encontrarem destituídos de substância em seu

“significado e valores diferenciais” (Velho, 1979:16); também esta dicotomia entre a

comunidade e a sociedade encontra-se presente no conceito de racionalização em Weber, só

que marcada por um conjunto de causas econômicas, políticas e sociais, e por

“circunstâncias e forças históricas” que condicionaram o desenvolvimento da cidade - neste

caso, a cidade se constituiria como variável dependente em que, embora seja um pressu-

posto ao surgimento do capitalismo, dele depende o seu posterior desenvolvimento (Oliven,

1984:15).

Esta perspectiva de encarar a cidade como variável dependente e contextual se en-

contra largamente acentuada no pensamento marxista, que a vê como o espaço de conver-

gência de interesses, lutas e processos sociais e ideológicos diversos, mediados por instân-

cias sócio-políticas, econômicas, históricas. No que se segue, procurar-se-á desenvolver

alguns aspectos desta visão, particularmente no que se refere à análise da vida cotidiana e

do urbano em Lefebvre, bem como, na retomada de alguns aspectos das “imagens dialéti-

cas” em Benjamin, já vistos no primeiro capítulo. Seguindo-se a isso, tomar-se-á como

referência algumas questões recentes tanto da abordagem semiótica, que procura apreender

a cidade como imagem e como linguagem, cujo discurso se configura como representação

101
do cotidiano em suas múltiplas injunções; quanto do debate a propósito do quadro corrente

de globalização do capitalismo e de mundialização da cultura, configurador de um processo

que se traduziria como a “cidade-mundo”, por toda a complexidade espaço-temporal das

nossas atuais sociedades. (Aliás, estes serão os principais pontos de orientação na tentativa

de apreender determinado registro ou imagem crítica do cotidiano urbano, contidos em

manifestações do discurso do rock brasileiro a partir dos anos 80 - discurso este que, se-

gundo entendimento aqui, se apresenta por uma lógica de representação largamente com-

partilhada por segmentos da juventude.)

Seguindo os passos de Lefebvre (1978a: 207), pode-se afirmar, com ele, que o es-

tudo dos fatores urbanos não deve ser rigorosamente orientado senão em termos especifi-

camente sociológicos. Partindo de uma crítica marxista dos fatores da industrialização, o

autor se aproxima do urbano como tempo e espaço necessários à análise da modernidade.

Com efeito, o que aqui importa aludir é que, pensar o urbano, no âmbito da modernidade, é

vinculá-lo ao caráter abrangente da sociedade em seu conjunto.

Neste sentido, o autor apresenta o advento de industrialização como algo que vai

fortemente condicionar o processo de urbanização que se tem assistido desde a formação do

capitalismo. No que pese lembrar que a cidade data de momentos muito anteriores ao

fenômeno da industrialização e do capitalismo, convém dizer que, para o autor, o processo

de urbanização é a própria característica de tecido social em que a cidade antiga se vê

transformada na atualidade. Por outras palavras, a investigação do fenômeno da industriali-

zação é o próprio ponto de partida para uma exposição adequada do problema da urbani-

zação (1978b: 17). Aliás, diga-se de passagem, sua tese afirma que a industrialização não é

apenas o ponto de partida para a reflexão da cidade moderna mas, inclusive, para reflexão

de nossa época atual. Sendo assim, duas categorias dão uma orientação mais objetiva aos

102
seus estudos, a saber: a de “indutor” e a de “induzido”. Assim, partindo de sua colocação,

poderíamos situar como fenômeno indutor, o processo da industrialização; ao passo que os

induzidos podem ser relacionados aos problemas do crescimento e do planejamento, aos

aspectos concernentes à cidade e seu desenvolvimento, bem como, no que toca às questões

relativas ao lazer e à cultura (Idem). Com efeito, o pressuposto do processo da industriali-

zação como categoria necessária à análise do fenômeno urbano e da época atual é, pode-se

observar, o elemento que aproxima Lefebvre da análise da mercadoria em Marx; tanto

mais, quanto seu estudo da vida cotidiana se orienta no sentido de uma crítica efetiva da

sociedade burocrática de consumo dirigido (1991:77-119).

O ponto central de que vai partir Lefebvre é o da categoria da reprodução das rela-

ções sociais. Com efeito, numa sociedade regida pelo consumo de mercadorias, o próprio

ciclo que opera a reprodução dos meios de produção tenderá a reproduzir as relações so-

ciais de produção em dadas condições, pelo menos enquanto não se criam as condições

necessárias ao processo de transição de um a outro tipo de formação social. Com isso, o que

se pode observar é que o autor se aproxima de uma análise do cotidiano pela investigação

da problemática da reprodução das relações sociais. Ora, o cotidiano é, em Lefebvre, “o

solo sobre que se erigem as grandes arquiteturas da política e da sociedade” (1978c). Para

ele, é o cotidiano a própria base (o solo) em que o capitalismo contemporâneo vai se

estabelecer. Conservando-se mesmo numa instância determinada do político e não apenas

do econômico em seu geral.

Partindo, pois, da análise crítica do cotidiano vivido na sociedade burocrática de

consumo dirigido, feita com base no conceito de reprodução das relações sociais, Lefebvre

vai estabelecer conexões entre aquela análise crítica do cotidiano e a de outros fenômenos,

como é o caso do urbano, do economismo, do lazer e da cultura etc. Nestes termos, só uma

103
crítica do cotidiano vai possibilitar uma teoria da cotidianidade, no seu modo de ver tão

necessário aos estudos da sociologia urbana. Sendo assim, a teoria da cotidianidade vai se

configurar como mecanismo de entendimento de um quadro de coisas que pode favorecer a

criação das condições necessárias para se romper o ciclo ou bloqueio próprio que o

cotidiano apresenta em sua base essencial, qual seja, a da reprodução das relações sociais -

tal como Marx procede na sua crítica do fetichismo da mercadoria. Outrossim, mesmo

correndo o risco de uma citação demasiadamente extensiva, convém chamar atenção para

uma passagem importante do autor, quando da sua formulação dessa problemática. Para

ele,

“...o cotidiano torna-se objeto de todos os cuidados: domínio da organização, espaço-


tempo da auto-regulação voluntária e planificada. Bem cuidado, ele tende a constituir
um sistema com um bloqueio próprio (produção-consumo-produção). Ao se delinear
as necessidades, procura-se prevê-las; encurrala-se o desejo. Isso substituiria as auto-
regulações espontâneas e cegas do período da concorrência. A cotidianidade se
tornaria assim, a curto prazo, o sistema único, o sistema perfeito, dissimulado sob os
outros que o pensamento sistemático e a ação estruturante visam. Nesse sentido, a
cotidianidade seria o principal produto da sociedade dita organizada, ou de consumo
dirigido, assim como a sua moldura, a Modernidade. Se o círculo não consegue
fechar-se, não é por falta de vontade nem de inteligência estratégica: é porque
‘alguma coisa’ de irredutível se opõe. O desejo estaria aquém dessa realidade (ou
abaixo dela)? Estariam além dela e abaixo a Razão (dialética) ou a Cidade, o Urbano?
Para quebrar o círculo vicioso e infernal, para impedir que se feche, é necessária nada
menos que a conquista da cotidianidade, por uma série de ações - investimentos, as-
saltos, transformações - que também devem ser conduzidas de acordo com uma es-
tratégia. Somente o futuro dirá se nós (os que quiserem) reencontraremos assim a
unidade entre a linguagem e a vida real, entre a ação que muda a vida e o reconheci-
mento”.

“Essa tese coerente e lógica abre-se ao mesmo tempo para uma ação prática. No iní-
cio, contudo, ela supõe um ato, ou melhor, um pensamento-ato. Para conceber o co-
tidiano, para tomar em consideração a teoria da contidianidade, algumas considera-
ções preliminares: primeiro fazer um estágio, viver nela - em seguida rejeitá-la e to-
mar uma distância crítica. A ausência dessa dupla condição torna impossível a com-
preensão e suscita os mal-entendidos. A partir deste ponto, o discurso sobre o cotidi-
ano dirige-se a surdos, dos quais os piores são aqueles que não querem ouvir”
(1991:82).

104
Em outras palavras, Lefebvre vai afirmar que uma maior compreensão da vida co-

tidiana só pode se dá mediante uma aproximação entre filosofia e cotidiano, como forma de

superação da dissociação existente entre o conhecimento filosófico e a visão comum de

mundo. Entretanto, uma tal compreensão não pode se efetivar sem que se proceda por um

distanciamento crítico. Ora, não se pode apenas contemplar o cotidiano, é necessário cri-

ticá-lo. É, nesse sentido, que se pode desvendar as suas ideologias, as suas relações sociais

dadas (inclusive e, sobretudo, as de produção), bem como, a possibilidade de produção de

suas “novas” relações sociais. Só assim é possível ter uma real compreensão (ainda que

inacabada) do cotidiano, em todo o conjunto de valores, comportamentos e idéias nele

produzidos.

Em linhas gerais, as teses sobre a cidade e o urbano em Lefebvre vão além da

constatação de que o problema do urbano está estreitamente ligado ao processo da indus-

trialização capitalista e de seu caráter tipificador da vida moderna; aliás, é o espaço urbano

aqui onde se dá a própria forma e expressão burocrático-moderna da vida cotidiana na so-

ciedade atual. Nesse sentido, o autor vai orientar sua visão sobre a sociedade no mundo de

hoje em termos de sociedade urbana; tratando de evocar uma série de problemas claramente

visíveis no conjunto das sociedades ocidentais - e não apenas as de industrialização

avançada, ainda que sua análise se detenha basicamente nestas.

Um outro aspecto importante em seus escritos, é o caráter prospectivo com que vê a

conquista de um quadro determinado de questões que aponte para a solução dos graves

problemas da urbanização. Guiado, como vimos, de uma perspectiva do marxismo,

Lefebvre vai apontar para um projeto futuro de cidade em que um socialismo, como crê,

pelo fato mesmo de que “os objetivos tomados da mera industrialização estão em vias de

105
superação e de transformação” (1978b:150), possa ser concebido como “produção orien-

tada para necessidades sociais e, por conseguinte, para as necessidades da sociedade ur-

bana” (Idem) - com efeito, esta é a hipótese estratégica formulada pelo autor.

Assim sendo, a cidade futura seria a inversão da que hoje identificamos como carac-

terística. Para o autor, o que atualmente se busca é o estabelecimento de estruturas mais

estáveis e de equilíbrio, submetidas à maior sistematização e ao poder vigente. Com efeito,

o que isso configura é a estratégia de obsolescência dos bens de consumo, bem como, do

espaço urbano como espaço mercantilizado, sujeito às modas, à sua perpetuação como

“cidade efêmera”. Nestes termos, a cidade no capitalismo se apresenta como o centro de

todo o consumo, orientada que está pelo “duplo caráter da centralidade capitalista: lugar de

consumo e consumo de lugar” (Idem). Aqui, convém mostrar o que caracteriza esta dupli-

cidade. Densificação do comércio num centro determinado, com forte atração para a circu-

lação de produtos raros e de luxo, bem como, para a predileção por áreas já identificadas

como tradicionalmente ocupadas para tais fins, são alguns dos aspectos que melhor de-

monstram que em tais situações o consumidor não consome apenas produtos, mas espaço

também. Para Lefebvre, tais espaços repletos de objetos e de modos de consumo são, ainda,

a própria razão para a reunião de pessoas, “terreno de encontro” (Idem, p.154).

Mas o que Lefebvre mais se empenha em apontar é o fato de que, numa fase de

neocapitalismo, o próprio “centro de consumo” é superposto pelo “centro de decisão”. E há

ainda uma questão que assume um caráter eminentemente político. Para o autor, neste atual

estado de coisas, já não são objetos ou pessoas que sofrem uma tal centralização, mas um

conjunto de informações e conhecimentos que logo nos remete a uma outra característica

de centralidade, a de esfera cultural: na medida em que também sofre os processos de

institucionalização e burocratização próprios da sociedade urbana. Por sua vez, reside no

106
lúdico ainda a possibilidade da renovação, da invenção criativa. Em todo caso, no âmbito

de uma sociedade de consumo dirigido, vamos identificar a coexistência e, mesmo, a sub-

missão do espaço lúdico (e do ócio, com a categoria de tempo que lhe é necessária) aos

espaços da troca, da circulação e do político-cultural. Ainda assim, o autor comenta:

“a centralidade lúdica tem implicações: restituir o sentido da obra que a arte e a filo-
sofia aportaram; conceder prioridade ao tempo sobre espaço, sem esquecer que o
tempo se inscreve e escreve no espaço; pôr apropriação acima da dominação” (Idem,
p.156).

Apesar disso, Lefebvre reconhece que, na sociedade urbana aqui configurada, há um

processo contínuo que se opera por uma patologia social, uma espécie de esquizofrenia

protegida por um tipo de racionalidade e cientificidade que transfere para o plano quantita-

tivo da calculabilidade o caráter qualitativo do espaço lúdico e cultural: assim, é que o

“espaço esquizofrênico” ganha ares de universalidade no pensamento atual da sociedade de

consumo, onde a “poesia da vida” se transfigura em “prosa de mundo”; nisso se aproxi-

mando da concepção weberiana de racionalização.

Por fim, a saída apontada por Lefebvre, rumo à cidade futura, procura no espaço

lúdico e da esfera cultural a dimensão qualitativa dos contrastes. Com efeito, o que importa

aqui não é a superação das diferenciações históricas instituídas em espaços qualitativos.

Contrariamente, estes espaços tendem a se articular de forma a que o quantitativo seja so-

bre-determinado pelo qualitativo. Para o autor, “a estes espaços cabe aplicar princípios

formalizados de diferenças e de articulação, de superposição nos contrastes. Os espaços

sociais assim concebidos se aderem a tempos e ritmos sociais que passam a primeiro plano”

(Idem, p.157). É nesse sentido, que o autor aponta para o aspecto lúdico como o elemento

vital da recuperação desta “verdade do tempo urbano”. É, portanto, na direção de um res-

107
gate do “homo-ludens”, que o autor vai tentar construir a utopia de uma sociedade urbana

futura, descrevendo uma imagem da “cidade futura” na mesma perspectiva da utopia socia-

lista.

Por outro lado, uma crítica que se pode fazer ao autor, é a de, por vezes, estabelecer

um discurso mais eminentemente filosófico e especulativo, do que propriamente socio-

lógico; ainda que, contudo, procure demonstrar a emergência de um estudo do cotidiano e

de sua existência no vivido. Assim é que, em muitos momentos, vamos encontrar uma ima-

gem notadamente utópica de uma sociedade urbana futura.

Em todo caso, mesmo nessas passagens, e cabe aqui esta ressalva, o autor frisa a

necessidade de se orientar por aquele “núcleo gerador” da centralidade lúdica a fim de se

ter uma idéia mais substantiva do mundo contemporâneo; caso contrário,

“até então, as transformações permanecerão na superfície, no nível dos signos e do


consumo dos signos, da linguagem e da metalinguagem (discursos em segundo grau,
discursos sobre discursos precedentes)” (1978b:168).

Ainda que Lefebvre, neste momento, dirija sua atenção para a classe trabalhadora,

como a única camada do tecido social a saber e ter o desejo de jogar, ou, provavelmente, a

ter o jogo em toda a sua dimensão espontânea, para além de suas lutas e reivindicações de

natureza basicamente político-econômica; é também possível identificar, na segmentação

social da juventude, nas suas “reservas da infância (espontaneidade, jogo)” de que fala

Morin, no tipo de manifestação mais original e espontâneo de temas oriundos dos grupos

adolescentes em Burgelin, na “regressão produtiva” de Prokop e no espaço da rua de

Lafont, por exemplo, aquela supremacia da qualidade lúdica, sua centralidade como ex-

pressão no jogo. Para Lefebvre, a necessidade de verificar uma tal dimensão do lúdico no

108
interior da vida cotidiana, é ir mais fundo que uma mera consideração do seu uso econô-

mico, visto que é, até mesmo, no centro urbano que se “aporta às pessoas da cidade movi-

mento, improvisação, possibilidade e encontro”. No que o autor exclama: “é o ‘teatro es-

pontâneo’ ou não é nada” (Idem, p.157).

Neste sentido interessa retomar a referência ao contraponto que Benjamin faz entre

o flâneur e o “homem privado” na Paris do século XIX. Como vimos, este é um possuidor e

colecionador de objetos e habitante do interieur, constitutivo do espaço burguês; ao passo

que o primeiro é um ocioso que se dedica a perambular pelas ruas da cidade, observando-a

descobrindo-a, ao mesmo tempo em que se descobre a si mesmo (Ferrara, 1993:246).

Enquanto o homem privado encontra-se envolvido com o mundo da produção, o flâneur

transita entre as mercadorias, como um especialista de preços. Sua imagem, inspirada em

Baudelaire, se aproxima de certos traços contidos nas figuras do detetive, do escritor, do

boêmio, do vagabundo. A multidão não é para o flâneur apenas um lugar de refúgio; como

observador da multidão, ele sente em sua sensibilidade o despertar de uma “sagacidade

criminalístca” (Benjamin, 1985:70). Essa sagacidade é, em muito, o que o transforma em

artista ou em literato; e o bulevar é o espaço que lhe desperta a curiosidade para “qualquer

evento interessante, de um jogo de palavras ou de um boato” (p.59). A boemia é o que lhe

dá itinerário político, em que sua consciência toma a forma de uma “metafísica do

provocador” (p.46). No flâneur, as situações do escritor-detetive e de todo o conjunto de

suas atividades dependem essencialmente de sua condição de ociosidade e de

vagabundagem: “ocioso, caminhava como se fosse uma personalidade: assim era o seu

protesto contra a divisão do trabalho, que transforma as pessoas em especialistas. Assim ele

também protestava contra a operosidade e a eficiência” (p.81).

109
Segundo Ferrara (op.cit.), as mudanças ocorridas no processo de industrialização do

século XIX ainda teriam permitido ao “olhar narrativo do flâneur” o aprisionamento da

emergente cidade moderna. Mas a “velocidade eletrônica não verbal” de hoje impôs um

ritmo de transformações que impediria o tempo necessário ao “retorno prazeroso do flâneur

na sua aprendizagem urbana que submetia a sensação do espaço à duração de uma

experiência”. A referência que a autora faz ao flâneur em nada coincide com um sintoma de

nostalgia; seu objetivo é “questionar os parâmetros de nossa experiência urbana cotidiana e

verificar as possibilidades” daquela “aprendizagem” (p.246).

Afinal, para além das questões sócio-econômicas, como se tinha indicado no início,

as cidades estão desenhadas por imagens que revelam suas “máscaras”, suas representações

configuradoras do cotidiano urbano como linguagem:

“as imagens urbanas despertam a nossa percepção na medida em que marcam o ce-
nário cultural da nossa rotina e a identificam como urbana (...) uma atmosfera que
assinala um modo de vida e certo tipo de relações sociais” (p.201).

A partir da contribuição da semiótica, a autora vai definir um modo de apreender a

cidade através da linguagem, que a revela por representação mediadora dela. Para Ferrara,

justifica o desenvolvimento de estudos que tenham na linguagem um “modo específico de

produzir informação, ou seja, uma representação, um modo de ser que substitui e concretiza

o complexo econômico e social responsável pelo fenômeno urbano”, visto que “as ca-

racterísticas culturais” concretizam “a cidade enquanto império fervilhante de signos” (p.

201-2).

E por mais que a linguagem urbana, enquanto imagem e representação da cidade,

não traduza à exaustão os aspectos sócio-econômicos desta, ao menos parcialmente denota

110
alguns destes aspectos: “conhece-se o fenômeno urbano através da linguagem que o repre-

senta e constitui a mediação necesária para a sua percepção: não pensamos o urbano senão

através dos seus signos” (p.202). Inclusive as próprias transformações nos níveis sócio-

econômicos produzem na cidade “marcas ou sinais que contam uma história não verbal

pontilhada de imagens, de máscaras, que têm como significado o conjunto de valores, usos,

hábitos, desejos e crenças que nutriam, através dos tempos, o cotidiano dos homens”

(Idem). Neste ponto a autora se aproxima das “imagens dialéticas” em Benjamin, na passa-

gem em que este reconhece cada época como visualizadora da seguinte e, portanto, mar-

cada pelas visualizações do passado, e onde cada texto ou documento encerra um “gesto

semântico”; assim como, para a autora, as imagens ou representações “sedimentam a cidade

enquanto império fervilhante de signos” (sobre este ponto em Benjamin, ver capítulo

seguinte).

Este é o caso, também, de Canevacci (op.cit.), que procede por uma apropriação

crítica das “imagens” benjaminianas. Para ele, Adorno tem razão nas ressalvas que faz à

Benjamin, quando o adverte dos riscos de um evolucionismo unilinear no trato utópico do

futuro (p.151). Em todo caso, o autor afirma que a referência a Benjamin se deve ao fato de

este demonstrar uma grande sensibilidade antropológica para identificar e, mesmo, rela-

cionar não apenas os produtos vultosos da cultura mas, inclusive, um conjunto de

“constelações micrológicas sobre os costumes, o modo de viver e de agir, tais como o

colecionador, as multidões, o flâneur, a rua, a moda, as nouveautés, as caricaturas, os pa-

noramas, as passages” (p.150). Em seu modo, Canevacci usa o conceito de imagem dialé-

tica como “constelação objetiva”; “modo de percepção de fetiches, fantasmagorias e ilu-

sões”; e modelo de reprodução”. Respectivamente: em que o social é a sua própria repre-

sentação; em que o processo de percepção se dá na consciência coletiva e individual; por

111
fim, no interior da antropologia da cultura visual, em que um modelo favoreça o cruza-

mento entre o passado e o presente (p.152).

Em si, nenhuma dessas três “imagens” apresentadas “geram uma força liberatória

ou regressiva no cruzamento” dos mundos “mítico”, “positivo” e “futuro”. Elas seriam

“indicadores empíricos” que delineam a cultura difundida pela “forma-metrópole” elevada

“ao grau de auto-representação carregada de sentido” (p.152). É nesse sentido, precisa-

mente, que o autor vai pensar o conceito de cultura com atenção para o passado (até o mais

arcaico) e para o presente (incluindo o mais avançado), compreendendo a tensão entre o

reprodutível e o irreprodutível. Se, como foi visto no primeiro capítulo, a cultura emer-

gente, como cultura visual urbana, encontra-se permeada de sincretismos, na forma de uma

exogamia cultural (e não apenas do centro para a periferia, mas, inclusive, desta para

aquele), deve-se de fato concluir, com o autor, por um certo caráter de “aculturação plane-

tária” nas atuais configurações urbano-industriais.

Em sua análise do capitalismo mundial integrado (CMI), Guattari faz referência a

existência de “um processo geral de desterritorialização”: que existiria por um duplo mo-

vimento - de “extensão geográfica” e de “expansão sobre si próprio” (Guattari, 1981: 211).

Para o autor, o CMI não se caracteriza hoje por uma forma centrada de poder de decisão,

mas, sim, policentrada. Sua tendência, por certo, é a de submeter todo processo de produ-

ção político-econômica, bem como, sócio-cultural, às suas “estruturas de produção” e

“formações de poder”, que o leva a integrar “numerosos sistemas maquínicos e semióticos

ao trabalho humano” (Idem, p.212). Procurando estabelecer uma constante e tensa relação

entre o que denomina de molar e molecular (ou seja, entre as semióticas globais e seus

agenciamentos maquínicos e a produção da subjetividade e agenciamentos do desejo), o

autor empenha-se em demonstrar que a “multicentragem” e as “técnicas de integração”

112
presentes no processo de desterritorialização da atual “segmentação do socius”, não diz

respeito exclusivamente aos aspectos econômicos mas, inclusive, àqueles de caráter indivi-

dual e “mais inconscientes da vida social, sem que seja possível estabelecer uma ordem de

causalidade unívoca entre os níveis planetários e os níveis moleculares” (Idem, p.216).

Atualmente, sob o fenômeno da desterritorialização, seria inócuo refletir as questões

de segmentarização sob a óptica exclusiva das dicotomias primeiro mundo vs. terceiro

mundo ou capitalismo vs. socialismo. Para Guattari, a fim de “manter a consistência da

força coletiva de trabalho em escala mundial”, coexistem hoje áreas de primeiro mundo em

regiões de subdesenvolvimento, assim como, áreas de terceiro mundo em lugares altamente

desenvolvidos (Idem, p.216). E se esse processo de segmentarização deve ser buscado

agora no interior do espaço urbano; é, com efeito, nesse contexto desterritorializado de uma

cidade com característica mundial (a cidade-mundo a que se refere Guattari), que vai se dar

todo processo de produção da subjetividade. Ainda uma vez, isto não implica num processo

de homogeneização que leve à liquidação do conflito e da diversidade; releva apenas o fato

de que, na “cidade-mundo”, as peculiaridades e singularidades se encontram fortemente

perpetradas pelas semióticas globais do CMI (Guattari, 1992:169-78).

Todavia, é bom não esquecer, Guattari não tende a afirmar um sentido necessaria-

mente emancipador da produção da subjetividade. Para ele, ela pode ser trabalhada tanto na

direção de processos revolucionários, quanto no sentido de uma conservadora

“reterritorialização” da subjetividade (Guattari, 1992:13). E, mesmo no caso de minorias

progressistas, se não houver, em suas lutas, a implicação de uma constante tensão entre o

molar e o molecular, sua tendência é a de se configurar como gueto, dificultando os pro-

cessos de uma mudança social emancipadora (Guattari, 1981:222).

113
Com efeito, a dar crédito a tais idéias, não seria difícil imaginar haver maior grau de

identificação e representação entre, por exemplo, um jovem funqueiro do subúrbio carioca

e um jovem do Harlem nova-iorquino, do que entre aquele e um jovem carioca da zona sul.

Sob certo aspecto, isto pode ser identificado no estudo feito por Vianna no seu livro O

Mundo Funk Carioca (1988).

Aliás, para se finalizar esta questão com elementos mais concretos, pode-se chamar

atenção para o fato de que, analisando o processo de uma consolidação da modernização da

sociedade brasileira, particularmente com relação ao mercado de bens simbólicos, Ortiz

(1988) vai identificar uma situação que, em muito, se aproxima das noções acima esboça-

das de uma “desterritorialização” nas sociedades atuais. Para o autor, o ajustamento do

produto cultural brasileiro aos padrões do mercado internacional, não implicou uma maior

submissão ou dependência da cultura brasileira à cultura estrangeira. Ao contrário do que

seria a previsão de todo um debate anterior, quase sempre orientado pela noção de uma

necessidade de defesa do nacional-popular, Ortiz vai demonstrar como as estatísticas têm

revelado um crescimento significativo da produção cultural brasileira em diversas áreas -

tanto em nível do mercado interno, quanto em relação à concorrência e projeção no

mercado internacional: setor discográfico, de impressos e, em particular, televisivo. É tal a

importância deste fato, que o autor aponta para um deslocamento da antiga problemática da

“defesa do nacional-popular”, para os termos atuais de uma “exportação do ‘internacional-

popular’” (p.205).

114
Capítulo Terceiro

Sobre o Método: Pontos de Orientação a uma

Análise das Letras do Rock Brasileiro

O presente estudo tem uma limitação clara quanto ao trato com o seu objeto de pes-

quisa: a canção discográfica. Trata-se do fato de apenas analisar a letra de música sem dedi-

car igual atenção aos demais componentes da canção. Diversos estudiosos apontam para a

necessidade de se estabelecer uma relação íntima entre melodia, letra e ruído sonoro. Para

eles, essa tríade é fundamental para que se tenha maior compreensão de cada uma das

partes, bem como do todo da canção. A exigência de um estudo com essas características é

tal, que Perrone (1988) se refere à letra de música como literatura de performance. Diz o

autor: “seja qual for o enfoque - artístico, musical, antropológico ou literário - será necessá-

rio que se leve em conta as características musicais de uma canção juntamente com os

significados verbais ou funções culturais para que se possa verificar a ação complementar

que há entre a música e o texto” (Idem, p.11).

Entretanto, isto não invalida o tipo de estudo que aqui se fará, visto que frente às

dificuldades de real domínio da linguagem e semiótica propriamente musicais, restaria o

trabalho sobre o discurso literário.

Escreve Perrone:

“Uma letra pode ser um belo poema mesmo tendo sido destinada a ser cantada. Mas
é, em primeiro lugar, um texto integrado a uma composição musical, e os julgamen-
tos básicos devem ser calcados na audição para incluir a dimensão sonora no âmbito
da análise. Mas se, independentemente da música, o texto de uma canção é literal-
mente rico, não há nenhuma razão para não se considerar seus méritos literários. a
leitura da letra de uma canção pode provocar impressões diferentes das que provoca
sua audição, mas tal leitura é válida se claramente definida como uma leitura. O que

115
deve ser evitado é reduzir uma canção a um texto impresso e, a partir dele, emitir jul-
gamentos literários negativos” (Idem, p.14).

Ciente disso, ainda que procurando fazer referência aos aspectos musicais e aos ruí-

dos sonoros, deve-se reforçar que se vai, aqui, praticar mais um estudo sociológico do dis-

curso literário do que uma sociologia da música, com a análise de suas tecnicabilidades,

como advoga Adorno (Benjamin et al., 1980:259-68).

Outrossim, não se negligenciou o fato de que qualquer estudo básico no âmbito de

cultura e comunicação de massa, deve envolver ao menos três pólos principais para a sua

melhor adequação: autor-obra-público (isto para não se falar da própria mídia como produ-

tora/reprodutora e difusora dos produtos culturais). No entanto, embora se esteja atento a

este processo, pretende-se dedicar atenção quase exclusiva a um resultado parcial do que se

poderia chamar de “produto final” da obra (no caso, a letra da canção de rock). Assim,

demais aspectos como produtor-autor-público, estarão presentes nas considerações feitas,

mas, mais a partir de referências a estudos já amplamente difundidos sobre a produção dis-

cográfica, sociologia da música, sociologia da juventude, por exemplo.

O procedimento metodológico tomado seguiu o roteiro de uma análise de certas

letras de música do rock brasileiro a partir da última década, difundidas por algumas das

bandas que mais têm figurado nas paradas de sucesso desde então. Com efeito, o objetivo

central do trabalho é o se observar, no âmbito da sociedade de consumo, como se compor-

tam determinados elementos de contestação dos valores socialmente estabelecidos, mani-

festos na forma de uma recusa, negação ou ruptura face ao sistema dominante, a partir de

processos referentes cujas mediações se localizam na própria dinâmica das experiências

vividas no cotidiano urbano de nossas cidades, sendo que qualquer consideração sobre este

116
discurso, deve levar em conta o fato de que ele se configura justamente num produto cultu-

ral caracteristicamente orientado para o consumo (aquele gênero musical do rock).

A partir da indicação das preferências musicais por leitores da revista Bizz, de

agosto de 1985 ao ano de 1992, divulgadas na seção “Parada do leitor”, em que estes reve-

lam à revista os “últimos discos” comprados, fez-se um levantamento da frequência das

bandas do rock nacional. Por sua vez, este levantamento da frequência serviu, prioritaria-

mente, para que fosse possível obter uma lista das dez bandas mais citadas, a fim de se ob-

servar em que medida haveria, em meio a um amplo conjunto de elementos de representa-

ções do campo simbólico, a tendência a uma certa constelação de aspectos referenciais à

crise do cotidiano e que se manifestasse na forma de negação do establishment; constela-

ção esta pensada em termos de configurações que parecem estabelecer mediações com o

que se caracterizou, noutro momento, como universo de representações do mundo jovem.

Em todo caso, não houve pretenção de limitar o trabalho a apenas os grupos mais

freqüêntes àquela seção das preferências do leitor (embora este fator tenha tido sua impor-

tância na escolha). Primeiro, porque ela tende a nem sempre coincidir com o que revelam

outras fontes na própria revista: como é o caso da “Parada” dos DJ, que revelam as bandas

com as músicas mais executadas, bem como, da “Parada” das lojas, que revelam as bandas

com mais vendagem de discos; segundo, porque, uma vez identificada uma tal constelação

de elementos de representação crítica do cotidiano no discurso desse rock, no sentido da-

quelas mediações com o universo juvenil, pensou-se em proceder por uma seleção das le-

tras das músicas de algumas das bandas do período, a partir de sua pertinência e identifica-

ção para com aquele universo: da contestação aos valores do establishment.

Com efeito, se a tônica essencial aqui deve ser a de voltar a atenção para o quadro

de um perfil crítico do cotidiano urbano, possibilitou-se assim a presença, neste trabalho,

117
de músicas de outros grupos que não apenas os que figuraram sua maior frequência na re-

ferida “Parada do Leitor”; que, volta-se a dizer, serviu mais como itinerário a uma identifi-

cação das tendências àquelas configurações críticas de um mundo de representações soci-

ais.

Em praticamente todos os números da revista Bizz, lançados no período acima de-

limitado, pode-se constatar, entre os dez maiores índices de freqüência dos títulos nacio-

nais, a presença de treze nomes do rock surgido nos anos 80: embora o período compre-

endido revele um total de 30 bandas nacionais citadas na seção. Dentre os nomes de maior

freqüência, encontram-se: Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso, Engenheiros do

Hawaii, RPM, Capital Inicial, Ira!, Ultraje a Rigor, Barão Vermelho, Kid Abelha, Plebe

Rude, Lobão e Cazuza. Imediatamente após estes, surgem os nomes da banda baiana Ca-

misa de Vênus, Marina, Lulu Santos entre outros.

Após a audição das músicas de todos os discos das referidas bandas, chegou-se a

constatar, em muito do discurso das letras do rock, uma importante presença de elementos

críticos do cotidiano urbano na sociedade brasileira, segundo um ideário de negação e/ou

insatisfação quanto ao quadro de valores socialmente estabelecidos: tão importante à con-

figuração do que se pretende aqui investigar; ou seja, a possibilidade de se identificar certa

dimensão em que um tal discurso apresente elementos capazes de levar a uma hermenêu-

tica utópica, quer dizer, que possa inspirar utopias que, no plano simbólico, traduzir-se-iam

por uma potencialidade crítico-emancipatória no âmbito da comunicação de massa

(conforme se está procurando apresentar ao longo deste trabalho).

Com efeito, de um conjunto de aspectos que povoam a constelação de elementos

críticos do cotidiano, pode-se observar nas letras uma significativa presença da insatisfação

e da recusa, em nuances diversos, para com o quadro recente da esfera política e do Estado

118
na nossa sociedade, e seu comprometimento dos fatores de construção da cidadania e dos

processos ético-democráticos, bem como, com o recrudescimento da violência institucio-

nalizada e de como tudo isso se dá em nível difuso no cotidiano social. Ao lado destes as-

pectos, particularmente no tocante à violência, um outro ítem se faz bastante presente no

discurso do rock: diz respeito aos problemas de marginalidade, pobreza e ao que se pode

caracterizar como a “fala” dos excluídos. Ainda ligado a estes aspectos, tem-se referência

às condições de crise, dependência econômica e miséria social; sociedade de consumo, la-

zer e ócio na vida moderna; desemprego, trabalho e rotina; e de como tudo isso se processa

no cotidiano social. Outro importante fator, relaciona-se a formas de críticas dos padrões

hegemônicos do comportamento social em geral, ligados a questões da sexualidade e do

amor, da solidão, do conflito adolescente/adulto, da vida burguesa e dos modismos do con-

sumo, por exemplo.

Todavia, não se irá definir as letras em função de cada um desses elementos; ao

contrário, eles devem figurar como “pano de fundo” referente à constelação de elementos

críticos dos valores e representações do status quo, a partir da qual as letras estabelecem

mediação e referência, ora enfatizando mais um que outro elemento. Ademais, o que se

busca é identificar o grau em que eles se articulam entre si e a outros elementos não clara-

mente manifestos, no contexto do texto, no sentido de formar um quadro de referência

favoráveis à contestação daquele status quo dominante, apresentando assim um anseio e um

ideário de mudança (expresso no descontentamento com o quadro vigente das condições de

vida pessoal e social).

Orientando-se pelo que ficou exposto, pode-se constatar, no presente estudo, a

referência aos trabalhos de, por exemplo, Hanói-Hanói e Fausto Fawcett, que quase não são

citados na “Parada do Leitor”, mas que constam de referência em outras fontes que melhor

119
atestam a extensão de sua audiência: Fawcett, por exemplo, foi revelação nacional em 1987

na escolha dos próprios leitores da Bizz; ao passo que o trabalho de grupos como RPM,

Engenheiros do Hawaii e Paralamas do Sucesso, grandes fenômenos de público, não

gozaram de referência adequada.

Isto se deve ao fato de aqui se seguir, uma vez exposto a um vasto repertório de

letras das bandas do rock em estudo (e, agora, não apenas as presentes na “Parada do Lei-

tor”), o roteiro de construção da análise a partir do que se poderia caracterizar como uma

seleção aparentemente aleatória das letras do discurso, e que siga o princípio de uma cola-

gem ou de um mosaico, na forma benjaminiana das citações e das imagens dialéticas, no

tocante à crítica do cotidiano urbano brasileiro, configurada em termos das mediações com

o universo de representações do mundo adolescente e jovem: discurso fragmentário e caó-

tico, resignação vs. crítica utópica, nomadismo, desterritorialização etc. (como se verá adi-

ante); por outro lado, isto não significa a adoção ou eliminação de textos em função de

preferências pessoais, visto que, se em mais de uma letra identifica-se formas de represen-

tação de várias situações em que se pode apreender certa dimensão crítica de aspectos do

cotidiano, inclusive de aspectos aqui não relevados, teve-se que se proceder, apenas, para se

atender ao espaço que o presente estudo dispõe, por uma limitação necessária da exposição

do material a ser utilizado. Com efeito, as letras de música escolhidas devem, assim,

encontrarem-se imbricadas ao já apontado universo contestatório de valores e representa-

ções do establishment, mesmo quando se apresenta, outrossim, por certos aspectos de re-

signação: ambos os quais são aspectos que terão melhor referência no desenvolvimento

deste trabalho. Das 40 letras citadas integralmente ou por fragmentos neste estudo, algumas

assumem um caráter claramente ilustrativo do que se está apresentando, ao passo que a

maioria passa por um processo mais detido de interpretação.

120
Todo elemento do discurso é passível de inferências que levam à identificação de

aspectos contidos ou representados em sua unidade. Para Bakhtin, por exemplo, todo

“signo” é marcadamente ideológico, o que implica dizer que “possui um significado e re-

mete para algo situado fora de si mesmo” (Bakhtin, 1981). Nesse sentido, não pode haver

ideologia sem signo e, portanto, à palavra não haveria qualquer sentido possível caso não

fosse preenchida de “qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, reli-

giosa” (Idem).

Ainda sobre esta questão, há um ou dois parágrafos em que Williams (1992:26), no

tópico sobre ideologia, trabalha dois sentidos importantes para a análise cultural: a concep-

ção de ideologia como “crenças formais e conscientes de uma classe ou de outro grupo so-

cial” e a concepção de ideologia como “a visão de mundo ou perspectiva geral caracterís-

tica de uma classe ou outro grupo social”.

No primeiro, trata-se de princípios ou posições gerais ou, até, dogmas; no segundo,

além de incluir as crenças formais e conscientes (primeiramente), inclui “atitudes, hábitos e

sentimentos menos conscientes e menos articulados” ou, mesmo, “pressupostos, posturas e

compromissos inconscientes” (Idem).

Para o autor, o primeiro tópico é um caminho válido, mas, não suficiente para a aná-

lise cultural; sendo necessário que a análise se estenda em dois sentidos: primeiro, para “a

área dos sentimentos, atitudes e compromissos” que são os aspectos menos conscientes ou

inconscientes menos palpável; mas que são, bem mais amplo ainda, os que revelam a cul-

tura em mudança face aquilo que, como crenças formais e conscientes, aparentam perdurar.

Assim, em mediação ao que chama de “coloração global vívida” (crenças formais e consci-

entes), há uma “prática social concreta” (cotidiana, difusa, menos consciente, inconsciente),

“culturalmente específica” e “analiticamente indispensável” (Idem).

121
O segundo sentido da análise cultural, o autor o encontra na necessidade de um pro-

cedimento analítico que se estenda até a “área manifesta da produção cultural” que, pela

“natureza de suas formas”, não é exclusivamente apenas expressão das “crenças formais e

conscientes” - visto que além da filosofia, religião, teoria econômica, teoria política ou di-

reito, também é teatro, ficção, poesia, pintura: que também atuam por formas menos cons-

cientes e inconscientes que se expressam como sentimentos, pressupostos, compromissos

(idem).

Já anteriormente a tais formulações por Williams, Benjamin (1985) havia apresen-

tado alguns elementos essenciais à sua configuração de um método da história. Para o au-

tor, adotar o método da história implica tomar o cotidiano a partir das manifestações das

experiências do presente, que tanto se encontram marcadas por “ecos de vozes” de um

passado por vezes silenciado, quanto se apresentam interpenetradas do devir utópico: em

configurações que nos remetem a processos que vão desde as “construções duradouras” até

as “modas fugazes”. Outrossim, tais configurações podem ser emancipatórias ou voltadas

para a mudança ou, simplesmente, cética ou retrógradas (reacionárias). Em determinada

passagem, Benjamin elabora uma síntese fundamental do seu método da história quando

diz:

“à forma de um meio de construção que, no começo, ainda é dominada pela do modo


antigo (Marx), correspondem imagens na consciência coletiva em que o novo se in-
terpenetra com o antigo. Essas imagens são imagens do desejo e, nelas, a coletividade
procura tanto superar quanto transfigurar as carências do produto social, bem como as
deficiências da ordem social da produção. Além disso, nessas imagens desiderativas
aparece a enfática aspiração de se distinguir do antiquado - mas isto quer dizer: do
passado recente. Tais tendências fazem retroagir até o passado remoto a fantasia ima-
gética impulsionada pelo novo. No sonho em que ante os olhos de cada época aparece
em imagens aquela que a seguirá, esta última comparece conjugada a elementos de
proto-história, ou seja, a elementos de uma sociedade sem classes. Depositadas no in-
consciente da coletividade, tais experiências, interpenetradas pelo novo, geram a

122
utopia que deixa o seu rastro em mil configurações de vida, desde construções
duradouras até modas fugazes” (idem, p.32).

Com efeito, é partindo destas colocações que Benjamin chega à idéia da escrita lite-

rária e da obra de arte como o “gesto semântico”, que, por sua vez, é a configuração do

“gesto político”: aqui traduzido como o “inconsciente do texto” (Kothe in Benjamin, 1985:

20).

Um pouco nessa direção, ainda que com um nível de elaboração relativamente mais

complexo, Jameson (1992) introduz a noção de interpretação textual do discurso pela esfera

do impensé, nondit; ou seja, pelo seu “lado avesso”, não claramente revelado, pelo seu in-

consciente político (idem, p.44). Para o autor, o tipo de hermenêutica que aqui se projeta

vai se distinguir dos demais, justamente, por tentar detectar os traços narrativos reveladores

do inconsciente político do texto, na medida em que prima por trazer à sua superfície toda a

sua realidade historicamente reprimida e ocultada. Nesse sentido, o autor nega-se às formas

de interpretação que separam “textos culturais que são sociais e políticos” dos “que não o

são” (idem, p.18). Para ele, esse tipo de procedimento reforça o

“hiato estrutural, experimental e conceitual entre o público e o privado, o social e o


psicológico, ou o político e o poético, entre a História ou a sociedade e o `individual’
(...) que mutila nossa existência enquanto sujeitos individuais e paralisa nosso pensa-
mento com relação ao tempo e à mudança, da mesma forma que, certamente, nos ali-
ena da própria fala”.

E conclui:

“imaginar que já existe, à salvo da onipresença da História e da implacável influência


social, um reino de liberdade (...) só significa o fortalecimento do controle da Neces-
sidade sobre todas as zonas cegas em que o sujeito individual procura refugio, na
busca de um projeto de salvação puramente individual e meramente psicológico”.

123
No que sentencia: “A única libertação efetiva desse controle começa com o reco-

nhecimento de que nada existe que não seja social e histórico - na verdade, de que tudo é,

‘em última análise’, político” (idem). Com efeito, este reconhecimento se apresenta como a

própria chave do inconsciente político, que conduz, por uma diversidade de percursos, à

interpretação dos produtos e artefatos culturais como “atos socialmente simbólicos”.

Partindo da crítica marxista como pré-condição semântica de inteligibilidade dos

textos, o autor vai apresentar três molduras concêntricas que marcam uma ampliação do

sentido social do texto. Nestes termos, o autor procura estabelecer correlação entre os

distintos horizontes semânticos e seus momentos distintos do processo de interpretação

(idem, p.68-9).

No primeiro horizonte, o “texto” é algo coincidente com a obra/expressão indivi-

dual; sendo que a diferença entre o discurso e a interpretação é que a obra é apreendida, no

segundo caso, como ato simbólico. No segundo horizonte, o “texto” se transforma até in-

cluir a ordem social, que são os grandes discursos de classe, tornando-se ideologema

(“menor unidade inteligível dos discursos coletivos essencialmente antagônicos das classes

sociais”). Finalmente, no terceiro horizonte, paixões e valores são relativizados pelo hori-

zonte máximo da história humana e por suas posições no modo de produção; dando-se, aí,

uma transformação final tanto do texto individual, quanto dos seus ideologemas, transfor-

mação que o autor vai caracterizar como ideologia da forma.

Para Jameson, os artefatos culturais gozam de um “inquebrantável poder de distor-

ção ideológica” que permanece até nas configurações de sua restauração utópica (p. 307).

Aliás, nesse sentido, o autor vai desde o início afirmar que a própria interpretação da forma

estética ou narrativa (especialmente nos termos do primeiro horizonte) deve apreendê-la

como ato ideológico e mítico, “com a função de inventar ‘soluções’ imaginárias ou formais

124
para contradições insolúveis”, de modo que tal interpretação possa seguir o roteiro de uma

proposição interpretativa da identificação de um inconsciente político: nessa perspectiva,

deve-se ver os textos da História como o “pensée sauvage político-histórico”, ou seja, como

o inconsciente político dos “nossos artefatos culturais”: “das instituições literárias do alto

modernismo até os produtos da cultura de massa” (p.72-3). O fato de ser “não-narrativa” e

de ser “não-representável” em si mesma caracteriza a História como o próprio inconsciente

político do texto - sendo, por sua vez, acessível somente na medida em que é textualizada,

ou seja, (re)escrita, (re)construída (p.75).

E assim como a literatura se encontra permeada do inconsciente político, devendo

ser lida como mediação simbólica sobre o destino da comunidade (p.64); também a reescri-

tura do texto individual se dá em termos do diálogo antagônico de vozes de classe (p.78).

Para o autor, a apreensão dos ideologemas, relativos ao segundo horizonte, são de funda-

mental importância para a operação de restauração e reescritura de um horizonte essenci-

almente dialógico ou de classe das formas narrativas (p.80):

“Tal reconstrução está de acordo com a reafirmação da existência de culturas margi-


nalizadas ou em oposição em nosso próprio tempo e com a reaudição das vozes
opositoras das culturas negras ou étnicas, das literaturas feminina e gay, da arte fol-
clórica ‘naïve’ ou marginalizada. Porém, mais uma vez, a afirmação dessas vozes
culturais não-hegemônicas continua ineficaz se for limitada à perspectiva meramente
‘sociológica’ da redescoberta pluralista de outros grupos sociais isolados: apenas uma
reescritura definitiva dessas expressões em termos de suas estratégias essencialmente
polêmicas e subversivas devolve-lhes o seu devido lugar no sistema dialógico das
classes sociais” (p.78).

E do mesmo modo que se pode falar em reescrituras das vozes culturais não-hege-

mônicas, também se deve falar nas reescrituras das vozes hegemônicas e de como elas

muitas vezes se (re)textualizam pelas reapropriações e padronizações das fontes vitais dos

125
processos culturais não hegemonizados (notadamente, com a forte intervenção de uma

“mídia de uma classe média hegemônica”) (p.79).

Partindo de um historicismo radical que toma a história no “campo último” e no

“limite intranscendível de nossa compreensão em geral e de nossas interpretações textuais

em particular” (p.91), o autor vai caracterizar a coexistência de modos de produção sobre-

postos que supera o falso problema das determinações “em última instância”. Trata-se do

momento que engloba tanto o “ato simbólico” mais individualizado, quanto a dialogicidade

do discurso de classes dos horizontes anteriores, num “campo de forças”, o do terceiro

horizonte, que revela a multiplicidade coexistente dos “sistemas de signos” dos modos de

produção sobrepostos: arcaicos e novos; econômicos, sexuais, políticos, sociais, etc. Nestes

termos, uma ideologia da forma, como espaço de mensagens sígnicas contraditórias

coexistentes tanto no “processo artístico”, quanto na “formação social geral”, vai apreender

desde os fatores ideológicos aos impulsos utópicos dos artefatos culturais (p.90-1).

Apoiando-se na idéia dos “impulsos utópicos” de Bloch e no esquema mannheimi-

ano do binômio ideologia-utopia, Jameson vai criticar as teorias manipulatórias da cultura

no marxismo, afirmando que enquanto a função de um texto da cultura de massa pode ser

vista como “troca compensatória” da passividade, apenas criando em si uma “estratégia de

persuasão retórica” com “incentivos à adesão ideológica” pelo MCM, a afirmação de uma

“hermenêutica utópica” deve considerar que, embora tal estratégia proceda pela forma es-

púria daqueles incentivos, finda por “despertar” na interioridade do próprio texto, aquilo

que procura justamente silenciar; e, sendo assim, revela o quanto mantém de uma estreita

relação com os “impulsos utópicos” do observador, como processo que pode apresentar

caracteres emancipatórios na comunicação de massa, mesmo em suas formas mais

126
“degradadas”, visto que as mais cruas formas de manipulação “dependem das mais antigas

expectativas utópicas da humanidade” (p.297).

Na apresentação final de sua proposição metodológica, o autor defende a necessi-

dade, para a leitura e interpretação críticas, de se articular uma “hermenêutica marxista ne-

gativa”, para a análise propriamente ideológica dos textos culturais, com uma

“hermenêutica marxista positiva”, para a “decifração dos impulsos utópicos” daqueles tex-

tos ideológicos. E adverte:

“Se as nuances mannheimianas desta perspectiva dupla - ideologia e utopia - perma-


necem suficientemente ativas para oferecer ruído na comunicação e interferência con-
ceitual, então devem ser propostas formulações alternativas, em que uma análise ins-
trumental é coordenada com uma leitura coletivo-associativa ou comunal da cultura,
ou em que um método funcional para a descrição dos textos culturais é articulado
com um método antecipatório” (p.304).

Enfim, o que o autor procura afirmar, já no início do seu trabalho, é que partirá da

consideração da interpretação como “ato essencialmente alegórico, que consiste em se re-

escrever um determinado texto em termos de um código interpretativo específico” (idem,

p.10); nisso coincidindo com Benjamin, que parte de um semelhante pressuposto, quando

procura dimensionar o “gesto semântico” do texto como narrativa alegórica - em que “cada

época pensa a seguinte”, estando também marcada pelo “modo antigo”, como foi visto.

Nisso, ainda, coincidindo com Bakhtin, que trata a narrativa textual-sígnica da obra

artística como ideológica e, portanto, alegórica: na medida em que os elementos culturais e

textuais presentes no discurso são apreendidos segundo a óptica do dialogismo, categoria

cara ao autor.

Em seus estudos sobre Dostoiévski, Rabelais, a teoria do romance, Bakhtin vai se-

guir a formulação da análise do discurso por sua categoria dialógica, num contexto cultural

127
altamente heterogêneo e plural, o que o leva a concebê-lo como um discurso “polifônico”,

que se expressa, muitas vezes, na forma de uma carnavalização:

“O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento


social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes,
tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não
pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diá-
logo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se apro-
xima desse objeto”.

E mais:

“A concepção do seu objeto, por parte do discurso, é um ato complexo: qualquer ob-
jeto ‘desacreditado’ e ‘contestado’ é aclarado por um lado e, por outro, é obscurecido
pelas opiniões sociais multidiscursivas e pelo discurso de outrem dirigido sobre ele. É
neste jogo complexo de claro-escuro que penetra o discurso, impregnando-se dele,
limitando suas próprias facetas semânticas e estilísticas. A concepção do objeto pelo
discurso é complicada pela ‘interação dialógica’ do objeto com os diversos momentos
da sua conscientização e de seu desacreditamento sócio-verbal. A representação lite-
rária, a ‘imagem’ do objeto, pode penetrar neste jogo dialógico de intenções verbais
que se encontram e se encadeiam nele; ela pode não abafá-las, mas, ao contrário,
ativá-las e organizá-las” (Bakhtin, 1993:86-7).

Como vimos, nenhum enunciado pode ser apreendido como uma forma pura, natu-

ral ou radicalmente original, posto que as condições de sua própria percepção é dependente

da maneira como ele interage e se insere na multidiscursividade dos vários sistemas sócio-

culturais, nas épocas ou tempos históricos da cultura, nas diferenciações de classes e grupos

sociais, na especificação dos níveis culturais, nas configurações espaciais, bem como, na

concreção de suas mais claras ou mais ocultas manifestações “textuais”, verbais e não-ver-

bais (Lopes, 1993:81-106; Stam in Kaplan, op. cit., p.149-84).

Nesse sentido, a dialogicidade do discurso é própria de toda a produção de artefatos

culturais, apreendidos não em si mesmo, mas como mecanismo dinâmico de múltiplas

situações e contextos: que informam a dimensão plural do enunciado. Também as línguas

128
se apresentam como conjunto multifacetário: elas são “mesclas nunca inteiramente resolvi-

das e homogeneizadas de dialetos, socioletos, jargões, normas e registros diversos” - dessa

“multidiscursividade da língua” é que vai derivar a “multitextualidade do discurso” (Lopes,

p.91). O sentido de toda obra é, assim, atribuído de “uma construção dialógica” (Idem).

Cada novo ato interpretativo ou leitura compõe, ao mesmo tempo, um novo sentido do

texto; assim como cada texto absorve e transforma um outro, constituindo-se no novo

enunciado que submete o anterior à condição de “enunciação enunciada” (Idem). A enunci-

ação se constitui na unidade diferenciada da língua, que é sempre a expressão do diálogo

social. Este aspecto caracteriza o processo da comunicação como, também, exercício dialó-

gico e, portanto, ideológico (p.96).

Da noção do dialogismo, Bakhtin chega à idéia do discurso polifônico, que está as-

sociada à forma como numa dimensão textual verbal ou não-verbal, artística ou sociológica

pode coexistir uma multiplicidade de vozes não harmônicas, autônomas, disjuntas e, por-

tanto, profundamente marcada de uma heteroglossia. Nesse sentido, a polifonia aponta para

os aspectos vividos dos conflitos sociais no quadro de processos estruturais complexos que

não permitem confundir simples pluralismo harmonioso com heteroglossia dialógica.

Importante, aqui, observar-se a lúcida distinção feita por Stam (in Kaplan op. cit.) a

propósito da visão relacional do dialogismo em Bakhtin em contraposição e uma pseudo-

polifonia própria de um pluralismo harmonioso e liberal. Diz o autor:

“essa visão, profundamente relacional, diferencia o pensamento de Bakhtin de um


inócuo pluralismo liberal, e o faz em diversos sentidos. Primeiro, Bakhtin considera
todos os enunciados e discursos em relação aos efeitos deformadores do poder. Se-
gundo, ele não prega uma pseudo-igualdade de pontos de vista; suas simpatias vão,
antes, claramente para o ponto de vista não-oficial, para os marginalizados, os opri-
midos, os periféricos. Terceiro, enquanto o pluralismo é adicional e ‘tolerante’ -
‘permite’ que mais uma voz se acrescente à corrente central -, a visão de Bakhtin é

129
polifônica e celebratória. Qualquer ato de troca verbal ou cultural, para Bakhtin, deixa
ambos os interlocutores modificados” (p.166-67).

A noção de carnavalização parece estar relacionada a um conjunto de elementos que

revelam uma característica muito mais radical ou paroxista dos fenômenos do dialogismo e

da polifonia. Segundo Lopes (1993), Bakhtin define carnavalização quando a disjunção

polifônica das vozes assume a forma de uma oposição total das partes: apresentando-se,

inclusive, um como a inversão paródica do outro (p.99-102). O uso deste conceito tem a ver

com a aplicação, para os campos da estética e da arte, dos modelos de transgressividade

(face aos processos normativos do comportamento social) presentes nas festividades

populares desde a idade média, e “que oferecem ao povo um breve ingresso numa esfera

simbólica de liberdade utópica” (Stam in Kaplan, op. cit., p.170).

Aliás, para Stam, a validade de uma tal noção para os estudos da comunicação de

massa parece ser total. Caso se queira seguir os passos de Bakhtin, pode-se aplicar a noção

do diálogo na comunicação de massa como a que tratará do processo polifônico e de carna-

valização do próprio discurso midiático. A saber, a polifonia dos discursos não se dá apenas

no sentido do discurso das classes sociais, ou seja, no sentido de que as massas estariam

dispersas em classes; mas, inclusive, em relação ao discurso dos próprios produtos veicula-

dos pela mídia, que está longe de ser aqui interpretado de forma monolítica (Idem, 1992).

Assim, tanto do ponto de vista das massas, quanto dos produtos culturais veiculados

pelos MCM (que têm por trás de si os seus produtores - que não são, entre si, necessaria-

mente partidários de uma mesma visão de mundo; além do que não deve haver, aí, um valor

ideológico que se expresse por um total consenso), o discurso da multiplicidade de vozes se

configura como reescrituras que se manifestam como fenômenos culturais, o que vai carac-

130
terizar o diálogo polifônico como existindo na própria estrutura do processo comunicativo e

da vida cotidiana.

A rigor, o que se quer enfatizar é que, dentro da unidade global da comunicação

como código compartilhado, o diálogo do discurso das classes é essencialmente antagônico,

no sentido de que há dois ou mais discursos que se opõem e que são, por isso mesmo, car-

navalizados em seu “pluralismo heterogêneo e explosivo” (Jameson, 1992:77).

Assim, no discurso contestatório dos produtos culturais (particularmente, aqui, da

música de rock), os códigos-mestres comuns da família, do Estado, da religião, da escola

etc., enfim, do establishment; tornam-se o “locus” em que suas “formulações dominantes”

como valores hegemônicos passam, assim, por aquelas reapropriações e modificações po-

lêmicas (Idem).

Por outro lado, não se trata de cair numa visão simplista do fenômeno. Uma coisa é

tomar como referência a análise dos produtos culturais as festividades carnavalescas como

uma polifonia cultural altamente dinâmica, como se pontuou acima, em que se destrói ou se

inverte simbólica e momentaneamente todos os padrões e regras sociais, todas as normas e

papéis, numa lógica cuja vigência é a norma do mundo de ponta-cabeça; e outra coisa é

tecer uma observação crítica sobre os diversos nuances destes mesmos produtos culturais:

dos seus aspectos mais transgressivos às suas expressões mais conservadoras ou retrógra-

das.

Por querer refletir as contribuições de Bakhtin para a crítica de esquerda hoje, como

possibilidade de se escapar às visões manipulatórias ou de um ceticismo inócuo, Stam não

apenas advoga a possibilidade do uso dos conceitos bakhtinianos para a crítica da cultura de

massa, como chama a atenção para o seu uso crítico, de modo a não cair num “ludismo

131
vazio, que discerne elementos redentores até mesmo: nas mais degradadas produções e

atividades culturais” (Stam in Kaplan, op. cit., p.172).

Em uma passagem importante, Stam lembra que há uma grande diversidade de

idéias inter-relacionadas que o conceito bakhtiniano de carnavalização sugere, ainda que

nem todas tenham “igual utilidade para a crítica de esquerda”. São elas:

“1) uma valorização de Eros e da força vital (que atrai uma esquerda reichiana), como
atualização dos antigos mitos de Orfeu e Dionísio; 2) a idéia, mais importante para a
esquerda em geral, de inversão social e subversão contra-hegemônica do poder
estabelecido; 3) a idéia, atraente para os pós-estruturalistas, da ‘alegre relatividade’ e
da ambivalência e ambigüidade próprias do rosto de Jano; 4) a noção do carnaval
como transindividual e oceânico (que atrai, ambiguamente, tanto a esquerda quanto a
direita); e 5) o conceito de carnaval como ‘espaço do sagrado’ e o ‘tempo entre pa-
rênteses’ (que atrai os de inclinação religiosa)” (p.171).

No que pese o esquematismo com que Stam apresenta sua crítica, o item segundo é

o que assume particular importância para o presente estudo, por estar em estreita ligação

com o debate da mediações. Por outro lado, deve-se chamar atenção para o fato de que a

análise bakhtiniana mantém estreita relação com o esquema jamesoniano do terceiro hori-

zonte, o da ideologia da forma, pelo menos na direção dada por Stam para a análise da

cultura de massa. Criticando o que denomina por “atitude esquizofrênica” de uma “austera

esquerda super-egóica”, o autor pondera a necessidade das “interpretações antecipatórias,

que deve tratar os meios de comunicação de massa como preditores inadvertidos de possí-

veis condições futuras da vida social”. E argumenta:

“uma análise bakhtiniana da cultura popular e de massa elaboraria a lógica social de


nossos desejos pessoais e coletivos, desmistificando as estruturas políticas e ideológi-
cas que canalizam nossos desejos em direções opressivas. Apelaria para as aspirações
profundamente enraizadas, mas socialmente frustradas - para novas formas prazero-
sas de trabalho, para a solidariedade, a festividade, a comunhão (...). Ciente da dupla

132
ação da ideologia e da utopia, ela proporia um duplo movimento de celebração e crí-
tica. Atenta ao peso inerte do sistema e do poder, também veria aberturas para sua
subversão (...). [Numa] “crítica cultural que não impossibilite nem o riso nem o prin-
cípio do prazer” (p.181-82).

A opção então aqui seguida para adoção de um modelo de interpretação e de análise

de discurso tem, como ficou dito, nos referenciais já mencionados do “gesto semântico”, do

“diálogo” e do “inconsciente político”, o roteiro essencial para uma concepção do discurso

como “produto histórico-social” (Orlandi, 1987:99). Nestes termos, pensar o discurso do

cotidiano implica concebê-lo como um processo em que o social e o histórico são

coincidentes; além disso, implica pensar que tanto o discurso quanto o cotidiano só se mo-

dificam pela ação dos indivíduos em processo de interação - no caso do discurso, pela dia-

lógica das vozes da formação social. Ademais, a heterogeneidade dos discursos se dá atra-

vés daquelas reescrituras dos fenômenos culturais, na própria medida em que é “a língua

individual concreta” a que processa toda a heterogeneidade semântica da linguagem

(linguagem que se expressa como o próprio corpo do discurso). Para Orlandi, há dois sen-

tidos dessa heterogeneidade: “a) porque apresenta vários subsistemas; b) porque cada fa-

lante dispõe, até certo ponto, de vários subsistemas” (Idem, p.101). A exemplo disto, pode-

se fazer referência às “subculturas” transgressivas dos chamados grupos de minorias (que

podem, aliás, se expressar por formas progressivas ou regressivas).

O ponto a que se quer chegar, após esta longa introdução, é o da consideração de

certos elementos definidores de um quadro geral da análise de discurso; não descartando,

pela natureza deste trabalho, a alusão a aspectos da sociolinguística, como no parágrafo

anterior.

Como fica evidenciado nas tentativas de definição da análise de discurso, não se

trata de proceder pelo seu uso complementar, adicional, extensivo ou secundário em relação

133
a outros níveis de análise: o lingüístico, o sociológico, o histórico. Ao contrário, a análise

de discurso revela em sua própria realidade toda a dimensão de um campo disciplinar de

apreensão do discurso, de modo a se constituir, ela própria, na esfera autônoma de um

conhecimento que entrecruza outras formas do saber sobre a linguagem e sua exterioridade:

“a AD se constitui nesse intervalo, entre a lingüística e essas outras ciências, justa-


mente na região das questões que dizem respeito à relação da linguagem (objeto lin-
güístico) com a sua exterioridade (objeto histórico) (Idem, 1990:27).

Assim, o relacionamento da análise de discurso com a lingüística e com as ciências

sociais e humanas tem levado a uma modificação crítica de muitos dos fundamentos destas:

ou porque a análise de discurso não se presta à neutralidade técnica do seu uso, ou porque

não coloca o discurso como submetido ao lingüístico (p.26). Nesse sentido, os aspectos

lingüísticos se apresentam como não mais do que “traços” ou “pistas” dos “processos dis-

cursivos” (Idem, 1989:32); ao passo que os fatores políticos e ideológicos do sentido passa-

ram a se constituir num dos objetos centrais da análise de discurso desde o seu surgimento.

Seguindo Pêcheux, o entrecruzamento de áreas do conhecimento como as do mate-

rialismo histórico, da lingüística e da teoria do discurso é o que forma bem o quadro episte-

mológico da análise de discurso como análise não subjetiva do sentido: as preocupações

com uma “teoria das formações sociais e suas transformações, aí compreendida a teoria da

ideologia”; uma “teoria ao mesmo tempo dos mecanismos sintáticos e dos processos de

enunciação”; e uma “teoria da determinação histórica dos sentidos” - já que “a linguagem é

sentido” (Idem, 1987:108-09; e 1990:29). Com efeito, a configuração de uma “semântica

discursiva” é o fundamento científico de uma análise dos “processos característicos de uma

134
formação discursiva, que deve dar conta da articulação entre o processo de produção de um

discurso e as condições em que ele é produzido” (1987:109).

Crítico do processo, tal como é apresentado por Pêcheux, da relação entre a análise

de discurso lingüístico e outros campos do conhecimento, Possenti (1988) vai afirmar

(partindo da formulação de Granger de que “a experiência supõe sujeitos, e os sujeitos não

são espelhos”) que o argumento que supõe o materialismo histórico, contendo em si uma

teoria da ideologia, como uma das regiões do conhecimento formadoras do quadro episte-

mológico de uma teoria da análise de discurso implica em

“orientar esta teoria em dois sentidos: A) para uma certa interpretação preferencial
dos dados a serem submetidos à análise e B) para uma seleção quase automática de
um corpus preferencial, que não oferece a priori a garantia de conter dados lingüísti-
cos de todos os tipos, que garantiriam a generalização dos resultados para todo e
qualquer discurso. O corpus privilegiado será o dos discursos políticos”.

E conclui:

“nada impede que se considerem outros discursos do ponto de vista do materialismo


ou da ideologia, mas nem sempre será fácil determinar neles marcas de classe (no
sentido marxista) ou marcas de ideologia suficientes para se constituírem em elemen-
tos explicadores do discurso” (p.25).

Trata-se, evidentemente, de uma crítica que assume bem mais a perspectiva do

campo lingüístico, visto que o autor procura nela ressaltar o fato de que, a partir de formu-

lações como as de Pêcheux, coube à lingüística toda uma série de modificações orientadas

pelas solicitações exteriores ao seu campo de conhecimento:

“se é verdade que a lingüística em geral se ressente da vizinhança excessiva da


linguagem com outros campos, imagine-se o problema da análise do discurso. Em
certas formulações da análise do discurso chega-se a conferir aos domínios ligados à
linguagem exatamente o mesmo papel que o da linguagem (quando não maior)”
(p.24; ver p.18).

135
Para o autor, a única maneira de tratar a teoria da ideologia como uma das chaves

principais do discurso, seria pela promoção de uma articulação íntima entre ideologia e lin-

guagem, em que ideologia e representação assumiriam uma única e mesma forma - quando,

na verdade, ideologia é uma forma de representação: se ideologia e representação são uma

mesma coisa, retruca, então deve-se tautologicamente constatar que todas as línguas são

ideológicas e, portanto, não tem mais a mesma importância o “papel explicativo das ideolo-

gias” (p.26). Segundo pensa, é muito significativo poder se servir de modo produtivo do

conceito de ideologia “em relação à linguagem”, mas só quando se reserva o seu uso para a

“análise de discursos em que o papel da ideologia é relevante para explicar fatos que não

são de todo e qualquer discurso” (p.27-8).

Como saída, o autor propõe um esquema em dois elementos para se formular um

quadro epistemológico básico da análise de discurso: um seria fixo, uma teoria lingüística,

o outro variável, uma teoria auxiliar (do campo não-linguístico mas pertinente à análise de

certas variantes de discurso) (p.30).

Contudo, é justamente a relação entre ideologia e linguagem que Orlandi (1990) vai

apontar como o núcleo central da questão: aliás, é nesse sentido ainda que se pode apreen-

der qualquer dimensão do que se falava a propósito do gesto semântico, do inconsciente

político e do dialogismo. Mostrando que a análise de discurso não pode ser concebida como

“um instrumento ‘neutro’”, dado que se reconhece a “espessura semântica da própria lin-

guagem”, mas não como um mero instrumento ou aplicação com a função de dar legitimi-

dade à ciência. Trata-se de um modelo que, ao ser usado, transforma tanto os pressupostos e

conceitos teóricos iniciais, quanto as conseqüências analíticas últimas. Para a autora, a

própria historicidade

136
“é a historicidade do texto (...) sua discursividade (sua determinação histórica) que
não é mero reflexo do fora mas se constitui já na própria tessitura da materialidade
lingüística. Trata-se, por sua vez, de pensar a materialidade do sentido e do sujeito,
seus modos de constituição histórica.” (p.29).

O ponto que Orlandi quer reforçar é justamente o da “concepção discursiva da lin-

guagem”: que não se apresenta sob a forma de “instrumento de comunicação de significa-

ções” existindo fora da linguagem (p.28); ao contrário, é a própria relação entre o sujeito da

linguagem e o sujeito da ideologia que a autora vai caracterizar como de ordem sinto-

mática: pois é a ideologia a materialidade específica do discurso, e o discurso, a materiali-

dade específica da linguagem (p.28-9). Numa síntese coerente com a definição dada por

Pêcheux à análise de discurso, diz Orlandi:

“a análise do discurso procura estabelecer essa relação de forma mais imanente, con-
siderando as condições de produção (exterioridade, processo histórico-social) como
constitutivas do discurso” (1987:111. Grifei).

Proceder pela análise de discurso implica em atentar a uma estreita interrelação

entre análise e o corpus da análise, em que “analisar é dizer o que pertence ou não a um

corpus determinado” (...) e, “inversamente, dizer o que pertence ou não a um corpus já é

decidir acerca de propriedades discursivas” (1989:31). “Teoricamente, a análise de discurso

trabalha com a seguinte relação: objeto empírico, objeto específico (de análise) e objeto

teórico (as sistematicidades discursivas, ‘o’ discurso)” (p.32). Deve-se ressaltar, ainda, que

na análise de discurso a exaustividade é “vertical” e em profundidade, levando, portanto, “a

conseqüências teóricas relevantes”, não tratando “os dados como meras ilustrações” (p.32).

137
Assim, o discurso não é fechado em si, mas “um processo discursivo do qual se podem

recortar e analisar estados diferentes” (p.32).

Para se delimitar um corpus da análise deve-se dar ênfase aos critérios teóricos (e

não aos empírico-positivistas). De forma que a exaustividade não está relacionada ao

“material lingüístico empírico (textos) em si”, ligando-se, isto sim, aos “objetivos e à temá-

tica”. A organização do material deve seguir “um princípio teórico discursivo” segundo o

qual não há relação automática ou de biunivocidade entre “o lingüístico e o discursivo”,

entre “marcas lingüísticas e os processos discursivos de que são o traço” (p.32).

A pertinência dos conceitos e da garantia de “parâmetros metodológicos” que o

sustentem, de modo a não permitir uma leitura subjetiva dos dados, é de fundamental im-

portância para os objetivos da análise frente a “um fato discursivo” dado: “o que se exige é

essa sustentação teórica (e metodológica) e a compatibilidade entre o recorte dos dados

com os objetivos a que a análise se propõe” (p.33).

Nesse sentido, a operacionalização aqui seguida optou por uma abordagem qualita-

tiva do discurso visando estabelecer certa afinidade de determinado discurso juvenil com a

contestação, a partir da identificação deste referente naqueles que talvez sejam os produtos

culturais de maior grau de fruição por parte das camadas sociais jovens, o rock; ou seja,

procurou-se apreender aí como se processa, nos termos das mediações, a figuração entre o

universo do mundo juvenil predominante nas sociedades de consumo e, no interior deste

universo, o caráter de sua vertente mais tendente à contestação do status quo dominante em

tais sociedades, como resultado do processo de integração e participação no consumo (bem

como, de sua exclusão), de parte dessa categoria social jovem, tal como anteriormente

definida. Com efeito, buscou-se identificar a representação de um dito discurso ao mesmo

tempo “contestador” e “jovem” (no sentido aqui de um maior descompromisso com um

138
ethos dominante), justamente, a partir do estudo desses referentes, volta-se a enfatizar, no

discurso de um determinado produto comercial. Privilegia-se nestas letras de música do

rock brasileiro a aproximação feita entre as imagens críticas do cotidiano urbano das socie-

dades de consumo e os princípios desintegradores participantes da configuração de um

imaginário da juventude de hoje.

Uma última nota para um melhor esclarecimento do procedimento aqui adotado diz

respeito aos aspectos mencionados no início do capítulo: trata-se da consideração metodo-

lógica do uso das letras da música do rock. Com efeito, não se trata aqui de relevar o valor

“poético” ou “literário” dessas letras, ainda que destacar o valor poético de compositores

como Arnaldo Antunes, Júlio Barroso, Cazuza, Fausto Fawcett, Herbert Vianna, Renato

Russo, entre outros seja tarefa de grande magnitude; ao contrário, tomou-se a direção de

uma investigação que privilegia, particularmente, os chamados componentes extra-linguís-

ticos do discurso: como fica evidenciado pela adoção, aqui expressa, dos referenciais de

uma linguagem político-ideológica configuradora de um modelo de desagregação ou nega-

ção (reunidos na categoria contestação), e que se encontram elaborados como discurso de

um produto cultural altamente integrado ao circuito comercial: a linguagem musical do

rock (sob a categoria consumo).

Seguindo Favaretto (1979:96), embora em outro contexto, pode-se fazer referência à

existência de um duplo aspecto a ser analisado no produto cultural comercial (e que se

encontra plenamente configurado no circuito do rock brasileiro de grande circulação nos

anos 80): primeiramente, o fato de que a observação ou apreensão de uma expressão ou

conteúdo político-social do rock só se torna possível se mediatizada pelos fatores mercado-

lógicos; em segundo lugar que, pela própria natureza do que foi identificado no primeiro

aspecto, o produto do rock terá necessariamente ligações com o social - seja quando se faz

139
referência à contundência crítica de suas letras (fator cuja relevância se encontra mediati-

zada no pano de fundo da insatisfação social, das frustrações e desencantamento frente às

“energias utópicas”, mas, também, paradoxalmente, nos “impulsos utópicos” desejantes de

mudanças); seja pelo fato de ter este produto logrado sucesso estupendo (em parte movido

por uma dimensão dialógica com caracteres amplos do imaginário de seu público consumi-

dor jovem, central para este debate, em parte pelas características altamente influentes do

processo de abertura e democratização política e de um ainda maior nível de expansão de

uma cultura do consumo na sociedade brasileira: e, certamente, por uma confluência e me-

diação de ambos estes elementos). Nesse sentido é que não há uma intransponível incom-

patibilidade entre “emprego de técnicas” industriais de produção/reprodução culturais e

“crítica da sociedade” (Idem).

Num sentido aproximado, em termos do discurso de contestação aqui tipificado

pelas já acima mencionadas categorias, poder-se-ia, ainda, ter como referência o que

Sant’Anna (1980) apresenta como “poéticas do descentramento”, em particular no ponto

em que, fazendo eco a Foucault, diz serem elas:

“representadas pela mimese inconsciente ou interior e pela paródia (...). Em termos gerais a
linguagem aí presente é a do outro, ‘daquilo que para uma cultura é a um tempo interior e
estranho’. É uma linguagem de exclusão e de excluídos” (p.20-21).

Esta categoria foi recentemente utilizada por Cesar (1993) em seu estudo compara-

tivo das canções de Bob Dylan e Chico Buarque. Com efeito, é justamente a tensão entre,

primeiro, os aspectos integradores do consumo e, segundo, os fatores de descentramento

(ou de negação e de desagregação) face ao establishment, que aqui interessa mais especifi-

camente, como ficou dito. Mas, sobretudo, na medida em que os fatores do segundo “tipo”

140
revelem um discurso de “exclusão”, será pensado nos termos de qual perfil crítico que es-

tará sendo emprestado, pelo rock, a propósito do cotidiano da cidade-mundo contemporâ-

nea. É o que se tentará identificar, de modo quase etnográfico, nas letras que se seguem.

Desse modo, a análise das letras processou-se, principalmente, pela identificação de

uma poeticidade cujo ângulo de representação política parece combinar as manifestações

contestatórias de múltiplos aspectos da vida urbana na sociedade brasileira atual (e, mesmo,

das sociedades em âmbito mundial), a características de um discurso juvenil: ambíguo,

contraditório e fragmentário, de impulsividade crítica e de caráter anárquico e direto, ainda

que, por vezes, encontre-se marcado de um tom resignatório; enfim, uma “antilinguagem”

no tocante a uma recodificação da linguagem comum (Rector, 1994: 23-5). A combinação

destas dimensões mostrou-se essencial para a construção de um “mosaico” demonstrativo

das letras, central à configuração de um roteiro passível de revelar em um dado conjunto,

processos do cotidiano em sua representação crítica figurada nos discursos dessas letras.

Sendo assim, em outras palavras, uma vez identificados os grupos de ampla audiência de

público, bem como, o vasto conjunto do repertório de suas músicas, procedeu-se à escolha

de certas letras, tanto pelo grau em que estas demonstram atender a formas críticas de re-

presentação do cotidiano urbano brasileiro, a partir das configurações do universo de um

discurso juvenil, quanto pelo fato de serem elas representativas de um conjunto de 30 gru-

pos do rock de maior projeção comercial e de público, na década de 80, segundo uma das

fontes de indicação desse fenômeno, a dos leitores: validando, assim, a afirmação, já feita,

de uma tendência significativa no rock brasileiro aqui estudado na direção de uma crítica do

cotidiano social nos termos das representações do mundo da juventude, capaz de po-

tencializar interpretações passíveis de gerar impulsos utópicos no tocante a seu público

fruidor.

141
Entre as bandas que tiveram suas músicas citadas neste trabalho, constam: Titãs,

Legião Urbana, Barão Vermelho (Cazuza), Hanói-Hanói, Lobão, Fausto Fawcett, Ultraje a

Rigor, Capital Inicial, Plebe Rude, Biquini Cavadão e Ira! No caso de Cazuza, será consi-

derada a sua produção fora do Barão Vermelho; já Lobão e Fawcett, embora seus trabalhos

sejam predominantemente solo, estão sendo classificados na mesma categoria de banda.

Das 40 letras que constam deste trabalho, selecionadas de um total de mais de 150 músicas

constantes da discografia citada, 30 passaram por uma análise mais específica de

identificação de elementos de um discurso crítico-negador de valores do establishment; tais

letras correspondem a certas produções das bandas acima citadas, em particular aquelas

produções surgidas a partir de meados da década de 80: período em que, como se verá mais

adiante, parece haver uma maior contundência crítica frente ao processo vivido pelqa

sociedade brasileira quanto à crise econômica e às frustrações no campo da política. Com

efeito, tanto a escolha delimitada das bandas, quanto a delimitação de suas músicas, partiu

da observação, em ambos os casos, do grau de sua maior pertinência quanto à elaboração

de um discurso revelador de um forte processo de mediação na apreensão crítica da reali-

dade social: inclusive no que se refere às ambiguidades do discurso quanto a fatores ora

utópicos, ora resignados em sua crítica da diversidade de aspectos vividos no cotidiano da

sociedade brasileira contemporânea.

142
Capítulo 4

Figuras Urbanas do Cotidiano:

caos, resignação e crítica no discurso do rock nacional - anos 80

Este trabalho pretende se voltar para a análise de certas formas de representação

crítica do contexto social vivido no cotidiano brasileiro, a partir da interpretação de algu-

mas de suas configurações nas letras do rock nacional dos anos 80. Outrossim, deve-se

assinalar ainda que tais representações são aqui concebidas como mediações de uma cons-

telação ampla de valores que parece fazer parte do conjunto do imaginário da juventude

neste período. Ademais, embora o presente estudo não tenha dedicado qualquer atenção às

formas de recepção ou fruição daqueles produtos culturais por parte do público jovem, o

que demandaria uma outra ordem de investigação distinta do que está sendo proposto aqui,

a afirmação de um processo de mediação entre elementos característicos do discurso do

rock acima delimitado e certas formas de representação social mais tipicamente configura-

doras de um universo de práticas e valores juvenis, procura se respaldar na discussão levada

a efeito nos capítulos anteriores: em primeiro lugar, com respeito ao caráter ambivalente e

polissêmico da cultura comercial ou de massa, que lhe possibilita convivência com

manifestações de contratendência (como foi visto); em segundo, de como isto pode, sim-

bólica e potencialmente, despertar “impulsos utópicos”, na forma do dialogismo e de um

inconsciente político do discurso; por fim, no tocante a certos traços característicos do que

se passou a denominar de cultura juvenil, em particular no que se refere ao quadro de uma

cultura mundial de consumo e das condições de produção da subjetividade neste contexto,

fortemente marcado de um processo de desterritorialização e de aculturação planetária, con-

forme orientação dada anteriormente.

143
Outro aspecto importante, quanto à afirmação de uma relação de pertinência entre

aquele discurso do rock e certas formas de representação social da juventude brasileira dos

anos 80, uma vez que não se está concebendo os MCM de forma monolítica e unilateral, diz

também respeito ao fato de ser este segmento jovem o que compõe o grande público da-

quilo que pode ser caracterizado como o maior fenômeno comercial em conjunto já obtido

pelas manifestações do rock no Brasil. Como já se disse, o critério inicial para a escolha das

bandas foi, prioritariamente, embora não exclusivamente, o de sua figuração na Parada do

Leitor da revista Bizz - que, de resto, confirma o que é revelado por outras fontes de infor-

mação sobre os hits de sucesso. Contudo deve ficar claro, desde o início, que só neste ponto

é que se procurou fazer alguma referência aos aspectos mercadológicos do fenômeno

musical do rock. Visto que se está tratando, neste estudo, de se pensar alguns elementos do

discurso e não dos processos de mercado do rock.

E embora se vá cuidar, com exclusividade, do rock na década de 80, convém consi-

derar o fato de que não se está tratando este fenômeno musical como seguindo a orientação

de um movimento estético mais definido. Ao contrário, desde a sua formação e onde quer

que se tenha manifestado, o rock tem sido marcado por uma grande variedade de estilos,

com ramificações diversas, muitas vezes distintas entre si; mas, também, por uma série de

fusões, que é o que tem dado prosseguimento ao forte dinamismo deste gênero musical.

Ainda mais por ele se encontrar, em sua multiformidade, associado a certas “bandeiras”

ideologicamente representativas de certos valores compartilhados por uma pluralidade de

grupos e/ou movimentos juvenis; quando não surgem diretamente destes grupos. Conforme

ficou definido, tomou-se apenas o procedimento da análise das letras, abstraindo-se às

questões propriamente de estética musical.

144
Por outro lado, talvez seja conveniente lembrar que são bem anteriores as manifes-

tações em que se pode notar a influência deste gênero na movimentação musical brasileira.

Assim, ainda que de modo arbitrário, conciso e essencialmente descritivo, pode-se classifi-

car as principais etapas do rock no Brasil na seguinte ordem: a pré-jovem guarda, a jovem

guarda, o tropicalismo, o período de emergência do rock fundido a estilos regionais e das

bandas do rock pauleira e progressivo e, por fim, a grande explosão do “novo” rock brasi-

leiro nos anos 80.

4.1. Presença do rock no Brasil

As primeiras manifestações do rock no Brasil se dão já na década de 50, período do

seu surgimento nos EUA. O Brasil vivia sob o signo da modernização, inspirado na arran-

cada desenvolvimentista de JK, com o seu lema dos “50 anos em 5”. O avanço industrial de

São Paulo, a construção de Brasília, as grandes transformações urbanas no país, são alguns

dos motivos de certo clima de euforia então reinante. Ao mesmo tempo, o surgimento da

televisão já denotava um novo ingrediente à expansão dos MCM no Brasil. No plano musi-

cal, além das primeiras manifestações do rock, este período vai assistir ao surgimento da

bossa nova, um dos mais significativos movimentos estético-musicais em todos os tempos

no país.

Na verdade, sob este quadro de modernidade, o país assiste ao processo de uma

mais rápida urbanização de seus vários segmentos sociais - em particular, ao crescimento

das classes médias: potencialmente o setor que corresponderia à expansão em novos pa-

drões do consumo de bens duráveis que então se acelerava, e isso incluía o consumo dos

produtos culturais comerciais (por exemplo, com a expansão do mercado e da produção de

145
discos). Ao mesmo tempo que assimilavam novos valores e hábitos incorporados a partir de

tais transformações, estes setores ainda compartiam uma moral fortemente tradicionalista

no tocante aos padrões de organização da família e, em particular, com relação à moral

sexual - ver, a propósito, Medeiros (1984).

Quanto à chegada do rock no Brasil, pode-se afirmar que foi no cinema que ele

encontrou seu primeiro e principal meio de difusão em massa. O filme Rock Around the

Clock, lançado aqui em meados dos anos 50, tem sido apontado como o marco inicial de

influência de toda uma manifestação subsequente de cultura jovem no Brasil. A dificuldade

inicial de difusão do rock em efervescência nos EUA, já que os primeiros hits deste gênero

não haviam sido gravados em gravadoras de grande porte, levou a que os produtores brasi-

leiros gravassem outras versões (ainda em inglês) de algumas das canções que haviam ob-

tido maior sucesso: é o caso da canção homônima ao já referido filme, em que a interpreta-

ção de Bill Haley é substituída pela de Nora Ney; e esse será o caso, também, de outros

artistas como, por exemplo, Cauby Peixoto. O ano de 1959 é, contudo, aquele em que Cely

Campello lança a sua versão em português da música Stupid Cupid, de Neil Sedaka e Gre-

enfield, obtendo grande sucesso e abrindo maior espaço para o rock no Brasil. Agora, não

se trata de simples covers do rock americano, na forma como o fez Nora Ney; tratava-se,

isto sim, de versões em português daquelas músicas: que fez crescer a participação de uma

personagem muito importante neste período e no subsequente - o autor das versões, espécie

de letrista que fazia para o português as adaptações de hits originalmente cantados em lín-

gua estrangeira, como no caso do conhecidíssimo Fred Jorge.

Após o sucesso de Cely Campello com Estúpido Cupido, é a vez de outros nomes se

projetarem no cenário musical: Sérgio Murilo, Demétrius, Tony Campello e outros. Este é o

momento de maior aproximação de identidade entre os cantores desse rock no Brasil e o

146
público jovem; visto que Nora Ney, por exemplo, estava mais para o que se identificava

como o grupo de intérpretes da MPB mais tradicional. Em sua maioria, as canções eram

versões ingênuas, marcada de forte romantismo e tímida rebeldia: tudo ao sabor de certa

aura de Brasil moderno, cujo entusiasmo se inspirava no american way of life do pós-

guerra - este é, aliás, um período de grande presença, entre nós, dos produtos culturais

americanos, particularmente do cinema, todos cheios de pré-figurações do status quo reve-

lador do estilo de vida americano.

Após a saída de cena de Cely Campello, que troca a carreira de cantora por um ca-

samento, esta primeira fase do rock no Brasil declina, após ter estado no ar em programas

de rádio e TV, um dos quais os irmãos Campello comandavam a apresentação. Este é, par-

ticularmente, o momento de grande efervescência da bossa nova.

Passado um breve período de silêncio (com a exceção de algumas vozes isoladas),

será a vez do surgimento de uma outra fase da presença de manifestações do rock no Brasil:

trata-se da chegada da jovem guarda.

O Brasil amarga seus primeiros instantes de ditadura militar, e uma remanescência

daquela fase inicial do rock ainda ecoa na voz de Ronnie Cord com Rua Augusta. Também

neste momento, vai se delineando uma nova safra de cantores que, ainda marcada pelo rock

dos anos 50, já incorpora toda uma influência do que surgia, no plano internacional, no

início da década de 60 em matéria de rock, em seguida àquela explosão inicial nos EUA:

trata-se, em particular, do fenômeno dos Beatles. Em 1965 um programa de televisão vai ao

ar, comandado por três jovens, e se torna o marco principal deste novo momento: é o pro-

grama jovem guarda da Record.

Com a expansão de um mercado consumidor jovem, emergente desde a fase ante-

rior, os empresários decidem investir ainda mais em uma cultura juvenil de consumo, e o

147
programa faz grande sucesso. Os pilotos do jovem guarda são Roberto Carlos, batizado

como o “rei da juventude”, o “tremendão” Erasmo Carlos e a “ternurinha” Wanderléia.

Após um rápido e fracassado namoro com a bossa nova, gravando a música João e

Maria, em que parecia imitar João Gilberto, Roberto Carlos começa a emplacar o sucesso

com as músicas Splish, Splash, Calhambeque, Parei na contramão. O programa chega a

galgar grande sucesso. E o período da jovem guarda assiste ao aparecimento de um número

bem significativo de novos cantores.

As composições tanto revelavam a influência dos anos 50 e do nascente rock inglês

(particularmente, os Beatles), quanto as do samba-canção e do bolero. Grande parte das

músicas comportava ainda as versões dos hits do rock internacional, conservando-se nesta

fase a figura oculta do letrista das versões, embora já fosse maior o número de canções de

compositores nacionais: de longe, o exemplo mais importante é o da dupla Roberto e

Erasmo. Em sua predominância, as letras das músicas revelavam uma forma ainda branda

de rebeldia que, embora desprovida de uma crítica social mais ampla, ou da referência ao

sexo ou às drogas, estava basicamente orientada para a afirmação de certos comportamen-

tos que, potencialmente, transgrediam ao moralismo vigente em relação àqueles mesmos

componentes. Ainda que marcado de muito convencionalismo, narrando episódios amoro-

sos como o namoro de portão, por exemplo, as canções sugeriam situações nem sempre em

total acordo com tais convenções: a exemplo do beijo em público ou da afirmação de que o

casamento não é um bom “papo”. De resto, de um ponto de vista do visual, a rebeldia se

expressava nas gírias, nos cabelos, nas roupas (à moda dos Beatles).

No plano cultural mais amplo, o Brasil vivia certa polarização entre o que se consi-

derava como arte engajada e o que era visto como arte meramente de consumo. O público

universitário e a intelligentsia do país acusava, por isso mesmo, a jovem guarda de aliena-

148
ção e de capitulação à cultura imperialista; advogando para si a continuidade de uma arte de

engajamento político que refletisse uma forma de resistência à ditadura militar. Em con-

traposição, inclusive, ao jazzismo da primeira fase da bossa nova, e em total rivalidade para

com a jovem guarda, surge o que ficou conhecido como “canção de protesto”, considerada

como a que melhor atendia aos princípios da arte conscientizadora e a que mais represen-

tava a autêntica MPB.

A síntese do quadro musical brasileiro naquele momento, segundo a visão predomi-

nante de uma esquerda ortodoxa, era a seguinte: de um lado, estavam os “alienados” da

jovem guarda; de outro, os “bem pensantes” da MPB.

Se os anos JK representaram a principal arrancada industrialista e modernizante

desde as mudanças ocorridas a partir de 1930; a ditadura militar significava, neste campo,

uma aceleração da modernização do país em ritmo de autoritarismo. Em especial com rela-

ção ao avanço das comunicações, constata-se que este é o momento de seu maior grau de

expansão. Ideologicamente, ainda são hegemônicos, no seio da intelectualidade, os princí-

pios do nacional-popular na cultura. Ao que tudo indica, a MPB vivia uma contradição que

não conseguia superar: a do convívio da crítica social em mediação com o processo das

inovações técnicas e das possibilidades industriais e de mercado que favoreciam, àquela

altura, ao avanço da cultura comercial no Brasil - do qual inevitavelmente faziam parte.

Nesse sentido, a tropicália parece indicar outra solução para esta questão:

“o trabalho dos tropicalistas não fazia distinção, assim, entre o emprego das técnicas,
tornadas possíveis pela situação industrial e o envolvimento comercial e a crítica da
sociedade e da produção artística. Não lhes era possível apropriar-se dos recursos
eletrônicos e, ao mesmo tempo, separar-se do sistema de produção que lhes oferecia
esses recursos” (Favaretto, op. cit., p.98).

149
A chegada dos festivais da MPB coincide com o subsequente declínio da jovem

guarda e com a ascensão do movimento tropicalista, que leva a efeito, de modo muito mais

complexo e radical, alguns dos elementos estéticos de consumo já contidos na jovem

guarda: sem, contudo, aderir a um puro esteticismo ou comercialismo e, na verdade, sem

reconhecer, também, a dicotomia criada entre política e estética e entre cultura engajada e

cultura comercial - dicotomia a qual o discurso militante se encerrava. Como vimos, a me-

diação desses e de outros elementos vai representar um processo altamente fecundo para

qualquer atividade da produção cultural brasileira a partir de então - notadamente, em ter-

mos do circuito da cultura comercial.

Recusando folclorizar o próprio subdesenvolvimento (como expresso na conhecida

frase de Caetano Veloso); incorporando o que há de mais sofisticado em termos técnicos de

produção; fundindo estilos que vão do iê, iê, iê da jovem guarda ao pop mais arrojado dos

Beatles de “Sgt. Pepper’s” e à cafonice de Coração Materno de Vicente Celestino, pas-

sando pelas inovações da bossa nova; mantendo ligações com as referências advindas de

outras linguagens artísticas como o cinema (Goddard, Glauber), o teatro (o Oficina), as

artes plásticas (Oiticica); a tropicália fez emergir uma situação absolutamente inusitada no

cenário musical do Brasil àquela altura. Segundo a denominação de Caetano Veloso, a tro-

picália seria uma neoantropofagia (referência à idéia oswaldiana de antropofagia, da deglu-

tição de todas as influências culturais e da gestação de uma síntese crítica de seus elemen-

tos).

A postura musical heterodoxa da tropicália não pôs apenas esse movimento em uma

posição alternativa entre a MPB e a jovem guarda; como, indo além disso, o levou a superar

a fronteira entre o erudito e o popular e a se encaminhar pelo experimentalismo sonoro (a

presença do maestro Rogério Duprat no movimento foi algo de grande importância nesse

150
sentido); mas, inclusive, a elaborar uma letra que combinava crítica social, curtição (ver

Favaretto, op.cit.), paródia (no sentido da carnavalização em Bakhtin) e experimentalismo

(com forte influência da bricolage e dos experimentos da poesia concreta).

Essa múltipla combinação de elementos colocou os tropicalistas em situação de

confronto seja com relação ao pensamento militante e de esquerda, que não assimilou a sua

problematização das mediações entre contestação e consumo; seja com relação à direita,

que não via com bons olhos a sua postura provocativa em relação aos padrões de compor-

tamento, além de sua atitude politicamente anárquica. O exemplo disso é o do famoso epi-

sódio do Tuca, em 68, no III Festival Internacional da Canção, quando, agredido, Caetano

faz um discurso contundente contra um público universitário violentamente histérico, bem

como, contra a conjuntura política do país. A certa altura do seu discurso, assinalando a

falsa dicotomia entre o político e o estético, Caetano diz: “se vocês forem em política como

são em estética, estamos feitos”. Pouco tempo após esse episódio, é a vez de o programa

tropicalista Divino Maravilhoso ser censurado e retirado do ar e, em seguida, de Caetano e

Gil serem presos e viverem o exílio em Londres.

No final deste mesmo ano de 1968, o Brasil vai ser o palco de um maior endureci-

mento do regime político, com a decretação do AI-5 e o fechamento do Congresso. O Ato

Institucional Nº 5 dava amplos poderes ao presidente, inclusive, o de suspender os direitos

de cidadania de qualquer brasileiro - tudo isso regido pela Lei de Segurança Nacional. Daí

seguiu-se um longo período de prisões, torturas, assassinatos, cassações, exílio, desapareci-

mentos. Na esfera sócio-cultural, opera-se uma drástica limitação do acesso de artistas,

intelectuais e políticos aos meios de expressão, gerando uma grave situação de crise inte-

lectual e artística e impondo-lhes o exílio ou auto-exílio.

151
Em termos musicais, a saída de cena dos tropicalistas deixou, contudo, espaço

aberto para o rock nacional, através do seu principal representante: o grupo Mutantes. No

que se refere ao rock, os Mutantes representam a experiência mais importante e pioneira

daquele período - na verdade, dito em melhor termo, os Mutantes, que já participavam com

os tropicalistas de toda aquela agitação, não podem ser considerados como apêndice ou

apoio do movimento. Inicialmente convidado para acompanhar Gilberto Gil em Domingo

no Parque, o grupo logo vai ser confundido com o movimento subsequente da tropicália,

participando ativamente de todo o processo: tanto das gravações dos tropicalistas, quanto

gravando músicas deles. A rigor, ao passo que os Mutantes sofriam de uma grande influ-

ência do ideário tropicalista, também contribuíam com o movimento ao destacar o estilo

anárquico de sua rebeldia.

Não é exagero afirmar que são os Mutantes o divisor de águas que abre caminho a

uma experiência musicalmente mais consistente em todo o processo da produção do rock

no Brasil até então, chegando mesmo a divisar esteticamente as manifestações do rock entre

o antes da tropicália e o depois. Além dos Mutantes, contudo, toda uma tendência musical

no Brasil vai ocorrer no pós-tropicalismo, inclusive com uma significativa ressonância do

movimento de contracultura: o desbunde. Do grupo da tropicália, vão fazer parte deste des-

bunde o poeta Torquato Neto, um dos ideólogos daquele movimento, e Gal Costa, com

discos como “Gal Fa-Tal”. Ao lado de Torquato Neto, vão figurar poetas como Waly Sa-

lomão, Rogério Duarte e outros, pioneiros de uma linguagem experimental, fragmentária,

coloquial, que inauguraria o que ficou conhecido como a poesia dos anos 70 (poesia de

mimeógrafo, marginal, alternativa, etc.): em que irão, também, se sobressair os nomes de

Chacal, Bernardo Vilhena, Chico Alvim, Cacaso, Eduardo Carneiro entre outros.

152
De fato, o grau de fechamento político que o Brasil se encontrava na virada dos

anos 70, com uma forte presença da intervenção do Estado no processo de agenciamento

cultural: seja a nível estatal ou privado, inclusive com o recrudescimento da censura, levou

a que poetas, jornalistas, intelectuais e artistas em geral, optassem por formas alternativas

de expressão. Daí a proliferação de jornais, revistas e circuitos alternativos de cinema, tea-

tro, música. Será, em parte, nesses circuitos, que surgirá uma leva significativa de grupos

de rock que, ao lado de algumas experiências bem sucedidas de mercado, imprimirão a

história do rock dos anos 70 no Brasil - tão relevante isso que, convém lembrar, algumas

das figuras mais importantes do rock atual, compositores e letristas, tiveram seu início jus-

tamente no rock e na poesia alternativa dos anos 70.

Na trilha aberta pelos Mutantes, vê-se surgir um número bastante significativo de

grupos de rock, a maioria dos quais, até, permaneciam no underground, sem qualquer apoio

da mídia e gozando de um grande alheamento por parte do grande público. Duas

características dominam as manifestações do rock no Brasil naquele momento. Numa,

pode-se observar a predominância de bandas que parecem seguir mais fielmente o cardápio

servido pelas grandes tendências do rock internacional: particularmente, com relação ao

progressive rock e ao heavy metal, com bandas como Genesis, Yes, Pink Floyd, Led

Zeppelin, Rolling Stones e Emerson, Lake and Palmer, por exemplo - esse era o caso de

grupos como os Mutantes (em sua nova trajetória), O Terço, Vímana, O Som Nosso de

Cada Dia, Made in Brazil e muitos outros, alguns dos quais sequer chegariam a ter um re-

gistro de seu trabalho em vinil. Um aspecto desses grupos era a velocidade com que sur-

giam e logo desapareciam de cena. Poucas bandas, como o heavy Made in Brazil ou como o

Joelho de Porco, que desenvolvia uma linha debochada de crítica do cotidiano, emplacaram

os anos 80.

153
Outra característica importante a atestar a presença do rock no Brasil é a dos grupos

que procediam pela fusão do rock a diversos estilos de características mais locais e/ou

regionais; alguns, mesmo, mantendo uma grande proximidade com a MPB. É o caso do

rock rural de Sá, Rodrix e Guarabira, onde se fundia o rock com um tipo de ritmo mais

caipira; é o caso, também, dos Novos Baianos, que tinham um nível bem mais sofisticado

de mistura de estilos: onde arranjos que envolviam a utilização de guitarras e cavaquinhos,

além dos teclados, embalavam a fusão do rock a ritmos como o samba, o frevo, o choro; é o

caso, ainda, da fusão de estilos musicais nordestinos com elementos do rock: no disco

censurado do Ave Sangria, liderado por Marco Polo, no disco “Vivo!” de Alceu Valença,

nos primeiros trabalhos de Ednardo e do Pessoal do Ceará. Numa linha de fusão do rock

com a MPB, que reunia ingredientes bem mais próximos do que fora a experiência tropica-

lista, encontram-se os experimentos de vanguarda e do underground de artistas como

Walter Franco, Tom Zé (que teve importante presença no tropicalismo), Jards Macalé,

Jorge Mautner e Luiz Melodia - que, em todo caso, não tinham o apoio necessário da mídia.

Numa fulgurante mas fugaz trajetória, fundindo estilos da MPB e dos ritmos latinos

aos do rock, encontra-se o fenômeno comercial mais significativo da época neste campo da

expressão musical: os Secos & Molhados. Também para Rita Lee, ex-Mutantes que já vi-

nha percorrendo carreira solo, o lançamento do disco “Fruto Proibido” será o momento de

sua decolagem e consagração diante do grande público; consagração que tomará uma di-

mensão ainda maior com o disco “Rita Lee”, do final da década de 70 - maior êxito comer-

cial da cantora até então: trata-se de um disco que difere bastante dos seus trabalhos ante-

riores, pela sua ênfase num pop mais descartável, sob a influência dos embalos pasteuriza-

dos da música de estilo discotheque. Aliás, do ângulo de sua carreira solo, Rita já se havia

inscrito na história do rock no Brasil, com alguns dos mais importantes resultados musicais

154
da discografia nacional desse gênero: com destaque para o LP “Atrás do Porto Tem uma

Cidade”.

Um outro trabalho singular será desenvolvido por Raul Seixas: mais fiel ao rock

primitivo, pode-se observar em Raul a fusão do rock a baladas e a elementos da MPB, tudo

isso regado por uma grande dosagem de elementos psicodélicos e do esoterismo; notada-

mente, em sua parceria com Paulo Coelho - que já havia feito parceria com Rita Lee. De

longe, Raul parece ser o cantor de rock que mais enfrenta problemas com a censura nesse

período - além de esoterismo, suas letras se compõem de punjante crítica da realidade brasi-

leira e do comportamento social: a começar pelo seu primeiro grande sucesso com a música

Ouro de Tolo, por exemplo. Contudo, tais obstáculos não o impedem de obter sucesso

frente ao grande público: inclusive com relação ao público jovem dos anos 80. Aliás, tanto

Raul Seixas quanto Rita Lee têm mantido sucesso de público até hoje e, mesmo depois de

sua morte, o “Raul Rock Club” talvez permaneça sendo o maior fã clube de um cantor

brasileiro de rock.

Como já se fez referência, os MCM no Brasil lograram ter, nas últimas décadas, a

sua mais significativa e vertiginosa expansão, pondo o país entre os principais mercados de

consumo e produção de bens simbólicos. Deve-se isso, particularmente, aos grandes inves-

timentos promovidos pelo regime militar na área das telecomunicações, possibilitando uma

grande expansão da indústria eletrônica entre nós. Como acentua Miceli (1984),

“a expansão recente da indústria cultural brasileira coincide com a vigência do regime


autoritário instituído em 1964, dele se beneficiando diretamente através dos maciços
investimentos governamentais no setor de telecomunicações que, por sua vez, impul-
sionou o crescimento da indústria eletrônica” (p.9).

155
O autor observa a tendência a que áreas que possibilitam grandes retornos de capital

passem ao controle das grandes empresas privadas formadoras da indústria cultural; ca-

bendo ao Estado dar maior prioridade (embora, não exclusivamente), às ações de conserva-

ção e proteção do “acervo histórico e artístico-nacional”, bem como, aos “gêneros e eventos

culturais” que não conseguem sobreviver pela exclusiva operação de mercado, dependendo

dos subsídios do governo (p.3). Apesar disso, o autor não deixa de considerar que a inicia-

tiva privada também tem apoiado consideravelmente, a partir dos anos 80, “as atividades

culturais no Brasil” (com o financiamento nas áreas do livro, do disco, do espetáculo, do

teatro, da dança, das artes plásticas etc.). No que se refere, contudo, à presença do capital

estrangeiro em todos os setores da indústria cultural brasileira, o autor atesta que:

“A proporção crescente da produção nacional em quase todos os ramos da indústria


cultural, aferida quer em termos dos indicadores de circulação, vendas e audiência,
quer em termos de faturamento, não encontra paralelo quanto ao vulto do investi-
mento externo nessa mesma indústria” (p.11).

Só para ter um exemplo, entre as dez maiores empresas do setor fonográfico no

Brasil, cinco estão afiliadas aos grandes empreendimentos multinacionais da indústria do

disco, com um domínio sobre 70% das vendas no “mercado interno do ramo” (idem).

Com o crescimento desse setor fonográfico, que configura a sua consolidação, a

segunda metade dos anos 70 é palco, de um lado, da hegemonia dos já consagrados nomes

da MPB emergidos dos festivais da canção desde os anos 60, assim como, das baladas ro-

mânticas de cantores como Fagner, Joana, Simone. De outro lado, assiste-se à grande difu-

são de um tipo de variação do funk, música negra americana, que ficou conhecida como

disco-music ou discotheque. Divulgada a partir dos EUA, este gênero fez sucesso em todo o

156
mundo, tendo sua principal difusão em massa no Brasil com a música Saturday Night Fever

do Bee Gees para filme homônimo.

Paralelo a isso, vê-se surgir toda uma movimentação de música negra no Brasil for-

temente influenciada pela grande difusão da soul music americana entre nós. No Rio de

Janeiro, este acontecimento assume quase que a forma de um movimento, dada a grande

adesão do público na ida aos bailes do que foi denominado de Black Rio. Aliás, esse movi-

mento foi essencial para a divulgação dos trabalhos de artistas como Tim Maia, Luiz Melo-

dia, Jorge Ben, Cassiano e outros. Uma característica musical do Black Rio era a fusão de

elementos da Soul music com ritmos do samba, do funk e, até, ritmos caribeños.

Os desdobramentos desse movimento culminaram com o que hoje se pode caracte-

rizar como bailes funk: agora com características completamente distintas do que foi o

Black Rio (ver a respeito Vianna, op.cit.).

Apesar disso, o final da década de 70 vai, também, ser o espaço de expressão da

produção musical independente no Brasil, assim como, da emergência de um ressonante,

embora ainda incipiente, movimento punk no país (particularmente, em São Paulo). A pro-

dução musical independente no Brasil é um capítulo importante na história da música brasi-

leira da época, tendo já sido alvo de análises específicas, como é o caso do estudo feito por

Vaz (1988). Aqui, interessa apenas fazer menção ao conjunto de trabalhos realizados em

torno do selo independente “Lira Paulistana”, em especial com relação àqueles que incor-

poraram criticamente à linguagem musical, um conjunto de elementos que se configuram

como instâncias de mediação de processos sócio-culturais da vida cotidiana das sociedades

contemporâneas. Os ingredientes dessa mistura são: humor, deboche, crítica anárquica às

formas de poderes e aos modelos de representação dominantes na sociedade; uso da lingua-

gem dos media, como os quadrinhos e os programas radiofônicos de crônica policial ; refe-

157
rência à musica negra urbana e exploração crítica do discurso divergente e marginal como

representação e atribuição de voz ao indivíduo marcado por processos de exclusão; por fim,

experimentação e fusão de vários estilos e formas musicais e poéticas mais tradicionais ou

de base mais erudita. Com efeito, não se trata esse fenômeno de um grupo homogêneo ou

de um movimento estético-musical mais unificado. Na realidade, seus trabalhos são

bastante distintos entre si, sendo que as características acima especificadas, não visaram

discriminar sua maior ou menor presença nesse ou naquele trabalho; mas, tão somente,

informar o universo componente daquela produção musical em conjunto. Os principais

nomes desse “grupo paulista” são: Arrigo Barnabé (e sua banda “Sabor de Veneno”), Ita-

mar Assumpção (com a banda “Isca de Polícia”) e os grupos Rumo, Premeditando o Bre-

que e Língua de Trapo. Já nos anos 80 a “lira” vincula seu selo a uma empresa fonográfica

de grande porte. Por outro lado, ainda, alguns desses artistas se vincularam a grandes gra-

vadoras, enquanto outros permaneceram com as produções independentes ou oscilantes

entre este tipo de produção e o dos grandes empreendimentos comerciais.

Mas um outro elemento que vai marcar completamente o rock no Brasil dos anos

80, é a ressonância do movimento punk e das tendências subsequentes do new wave inter-

nacionais (esta última é uma expressão criada pelos empresários do disco com fins merca-

dológicos e de configuração de um rock mais sofisticado e ameno em substituição ao punk,

que reagiu com a sua radical no wave - conforme encarte Guia do Rock da Revista Bizz).

Entre nós, apesar de incipiente, as primeiras manifestações do punk se iniciam já no final da

década de 70, pouco tempo após seu surgimento na Inglaterra. Contudo, no âmbito da

música, o ano de 1982 parece ser o marco inicial para a divulgação do trabalho das primei-

ras bandas surgidas desde 78 em São Paulo: o primeiro disco punk, reunindo as bandas

Olho Seco, Inocentes e Cólera, é lançado como produção independente pelo selo “Punk

158
Rock”. Trata-se do disco “Grito Suburbano”. Daí se seguiu a toda uma proliferação de

bandas de estilo punk, além de festivais cujo objetivo era uma maior divulgação dos traba-

lhos e de conhecimento das bandas. Lixomania, Garotos Podres, Voluntários da Pátria,

Mercenárias e outros são os nomes das novas bandas - das quais um bom número figurará

no cenário do rock da década de 80. Sendo esse o caso, inclusive, de bandas que acederam

ao grande circuito da mídia como os grupos Ira e Ultraje à Rigor, por exemplo.

Tanto no caso da produção independente da vanguarda paulista, quanto no caso dos

punks, pode-se falar que houve um significativo alheamento dos MCM num primeiro mo-

mento. De fato, o espaço inicial de ambas as tendências se configurava em termos basica-

mente alternativos ou underground. Por outro lado, o ano de 1982 é de importância fun-

damental para a conquista de espaço na mídia. Ao que tudo indica, aqueles circuitos alter-

nativos dos independentes e dos punks tinham tanto permanecido no undergroud quanto

tinham conquistado uma importante adesão por parte de uma sensível parcela do público

jovem. Particularmente, no caso do punks, tratava-se, ainda, de vencer toda uma onda de

manifestações de intolerância por parte dos “guardiães” da moralidade pública, por parte do

establishment.

Em todo caso, já era possível observar a criação de certos espaços no âmbito da

grande mídia. Um deles seria o MPB-Shell, do qual participaram alguns dos representantes

dos “novos” direcionamentos tomados pela música mais sintonizada com o que foi aqui

caracterizado por cultura juvenil: por exemplo, com a participação no festival de nomes

como Arrigo Barnabé, Eduardo Dusek e Gang 90 & Absurdetes. Outro seria o caso da

programação da rádio FM Fluminense, que passa a divulgar os primeiros trabalhos do que

viria a ser caracterizado como rock dos anos 80 (como, por exemplo, o hit do Rádio Táxi

Dentro do Coração). Outro, ainda, seria o de espaços um pouco mais alternativos, como no

159
caso do Circo Voador e seu vinil “Rock Voador”, coletânea de 1982. É a partir de tais es-

paços que as “novas” manifestações do rock começam a ganhar status de grande circuito da

mídia, com os primeiros hits nas paradas e a corrida das gravadoras no sentido da desco-

berta de novas bandas.

O caminho aberto com Perdidos na Selva, pela Gang 90 & Absurdetes do DJ Júlio

Barroso, com seu estilo new wave, marcará predominantemente o momento inicial da

grande explosão do rock brasileiro na década de 80. Talvez seja no Rio de Janeiro onde isso

se torna mais visível; sobretudo, com o grande estouro de Você não soube me amar, o pri-

meiro hit da Blitz. A partir daí, será a vez de Kid Abelha e Abóboras Selvagens, Ritchie,

Lulu Santos, Sempre Livre, Barão Vermelho, Lobão e outros, como os Paralamas do Su-

cesso, originária de Brasília. Em São Paulo, a banda Magazine de Kid Vinil emplaca com

um hit que narra o cotidiano de um Office Boy na música Sou Boy, seguido do grande su-

cesso do Ultraje à Rigor, com a música Inútil. De um ponto de vista da crítica, as posições

sobre o fenômeno são heterogêneas, indo do deslumbramento à negação completa. No pri-

meiro caso, atesta-se que, finalmente, algo de novo havia surgido no cenário musical após

um longo período de hegemonia dos “astros consagrados da MPB”, que aparentemente

teriam declinado em criatividade e produtividade. No segundo, afirma-se que o fenômeno

não passa de mais uma “febre” comercial de pura redundância que nos remeteria a um perí-

odo de new iê, iê, iê, de nova jovem guarda.

No plano sócio-político e econômico, o Brasil vivia um de seus momentos de maior

contradição e incerteza. De um lado, agravara-se drasticamente o quadro de crise econô-

mica do país, cuja ponta do iceberg remonta à recessão a nível mundial iniciada nos idos de

74 e ao programa de modernização autoritária levada a efeito pelo regime militar, em que o

tipo associado e dependente de desenvolvimento reflete a tônica do modelo econômico. Por

160
ser um programa baseado na contração de empréstimos no exterior, cuja meta era construir

a imagem de Brasil-potência, essa situação vai levar o país a enfrentar o problema de ter a

maior dívida tanto externa quanto interna em toda a sua história. Tanto mais quando o

quadro de recessão mundial leva os países credores a restringirem as cotas de investimento

e a forçarem o resgate da dívida e todos os seus dividendos (com pagamento de juros sobre

a dívida). Tudo isso gerou o que os economistas consideram como a “década perdida” em

relação aos anos 80.

Toda essa situação contribuiria para o isolamento político das forças que continua-

vam a apoiar o regime militar e para um aumento da mobilização da sociedade civil e de

suas forças de expressão e luta em diversos setores de sua representação. Nestes termos é

que toda a década de 80 será palco do processo de redemocratização iniciado com a aber-

tura política e a promulgação da anistia na segunda metade dos anos 70 e com as eleições

diretas para governador já no início dos 80. A campanha pelas “Diretas-Já” para Presidente

da República e por uma Assembléia Nacional Constituinte, a muito reivindicadas, levam o

país a uma transição para o regime civil, pela via indireta do Colégio Eleitoral. Transição

essa que desembocará numa nova Constituição e, em seguida, na primeira eleição direta

para Presidente depois dos anos de vigência do período militar: respectivamente em 1988 e

1989.

A crise econômica e político-institucional desse período tende a recrudescer com as

frustradas tentativas de regulação da economia através dos sucessivos planos econômicos,

iniciados com o Cruzado, e da onda de corrupção política que veio à tona através da grande

imprensa e de MCM como a televisão. Em contrapartida, se ampliam e se pluralizam as

forças de representação política de esquerda, que gozam de uma importante adesão de parte

da juventude; que muito contribuiu para o avanço dos movimentos de minorias, de meio-

161
ambiente, de democratização do país e do ensino, por exemplo - mesmo que o movimento

estudantil secundário e universitário atravessasse, como ainda hoje, graves problemas inter-

nos de representação política.

É nesse sentido que, no plano musical, conforme já se assinalou, a grande explosão

do rock no período pode ser analisada para além dos critérios de mercadologia; podendo ser

apreendido em termos das formas mediadas de representação dos discursos - que estão

longe de atender a um único itinerário estético-político (como foi dito), mas que, no interior

de uma multiplicidade de formas, nos possibilitam identificar elementos de um discurso

contratendente e de negação dos valores do establishment: configurando assim a represen-

tação de um dado perfil crítico do cotidiano urbano brasileiro, expresso em termos de medi-

ações do que foi situado anteriormente na forma de uma cultura e discurso juvenis; ou seja,

em termos de certas formas e tendências assumidas pela juventude nas sociedade urbano-

industriais capitalistas, no sentido de uma crise condizente com problemas relativos à cons-

trução da identidade, à transição para o mundo adulto, a um maior descompromisso com os

valores estabelecidos da ordem social (ver capítulos anteriores a este respeito).

É nesse sentido, ainda, que procurar-se-á aqui trabalhar com a produção do rock

surgida a partir de meados dos anos 80, quando esse estilo musical sofre grande modifica-

ção tanto no plano do discurso, quanto no âmbito empresarial. Neste último caso, a realiza-

ção do “Rock in Rio” pode ser apontado como um exemplo demonstrativo de que o rock

brasileiro havia dado sinais de ampla vitalidade e aceitação por parte do público jovem, no-

tadamente com a figuração de algumas bandas nacionais ao lado dos mega-stars internacio-

nais; levando a uma multiplicação e descentralização das bandas para além do eixo Rio-São

Paulo. É o caso de Brasília, com bandas como Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude;

é o caso, também, do Rio Grande do Sul, com os Engenheiros do Hawaii, DeFalla e Repli-

162
cantes; e da Bahia, com o Camisa de Vênus - só para ficar com alguns exemplos. Mas é o

caso, ainda, do apoio empresarial a uma proliferação de bandas em São Paulo, Rio e demais

capitais. Algumas dessas bandas surgiram, mesmo, bem anteriormente à sua consagração

no mercado do disco: antes da formação do Legião Urbana e do Capital Inicial, por

exemplo, alguns de seus membros compunham, já em 78, a extinta banda Aborto Elétrico;

ao passo que o grupo Ira! de São Paulo representa uma das mais antigas formações do

“novo” rock. Com efeito, esse é o quadro que vê surgir e se afirmar outros grupos como

Titãs, Metrô, Biquini Cavadão e muitos outros, como o RPM, de longe o maior sucesso de

público já obtido pelo rock nacional em todos os tempos.

No que se refere a mudanças no plano do discurso, pode-se perceber uma maior

contundência crítica das letras no tocante à crise de valores e de legitimação nas sociedades

atuais e, em particular, na sociedade brasileira daquele momento, com o agravamento dos

problemas sociais e econômicos e de representação política já acima aludidos. Assim é que,

nas formas mediadas de representação do discurso, pode-se identificar no rock brasileiro

uma das mais significativas formas de expressão e crítica da juventude à realidade nacional

do período. Veja-se, nesse sentido, o que demonstram as canções Desordem de Sergio

Britto, Marcelo Fromer e Charles Gavin para o lp “Jesus não tem dentes no país dos ban-

guelas” do Titãs e Veraneio Vascaína de Flávio Lemos e Renato Russo, gravada no disco

“Capital Inicial” da banda homônima. Na primeira, o cotidiano se apresenta como uma rea-

lidade caótica e de ordem opressiva, em que o Estado se apresenta como o espaço de circu-

lação das elites governantes e em que os cidadãos não têm respeitada a sua cidadania.

Ademais, as instituições sociais são apresentadas como que se encontrando em colapso, só

restando à população desorganizada enquanto sociedade civil ações espontaneístas que, em

si, não contribuem para uma mudança do quadro geral:

163
Os presos fogem do presídio,
imagens na televisão.
Mais uma briga de torcidas,
acaba tudo em confusão.
A multidão enfurecida
queimou os carros da polícia.
Os preços fogem do controle,
mas que loucura esta nação!
Não é tentar o suicídio
querer andar na contramão?
Quem quer manter a ordem?
Quem quer criar desordem?
Não sei se existe mais justiça,
nem quando é pelas próprias mãos.
População enlouquecida,
começa então o linchamento.
Não sei se tudo vai arder
como algum líquido inflamável,
o que mais pode acontecer
num país pobre e miserável?
E ainda pode se encontrar
quem acredite no futuro...
Quem quer manter a ordem?
Quem quer criar desordem?
É seu dever manter a ordem,
é seu dever de cidadão,
mas o que é criar desordem,
quem é que diz o que é ou não?
São sempre os mesmos governantes,
os mesmos que lucraram antes.
Os sindicatos fazem greve
porque ninguém é consultado,
pois tudo tem que virar óleo
pra por na máquina do Estado.
Quem quer manter a ordem?
Quem quer criar desordem?

Em Veraneio Vascaína, também a falta de cidadania e a violência institucionalizada

do aparato policial no cotidiano da população é criticada, no que pese a referência na mú-

sica à existência de uma relação entre pobreza e criminalidade, particularmente entre aque-

les que, como diz o verso, “nascem com instinto assassino”:

164
Cuidado, pessoal, lá vem vindo a veraneio
toda pintada de preto, branco, cinza e vermelho
com números do lado, e dentro dois ou três tarados
assassinos armados, uniformizados
veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Porque pobre quando nasce com instinto assassino
sabe o que vai ser quando crescer desde menino
ladrão para roubar ou marginal para matar
“Papai, eu quero ser policial quando crescer”
Se eles vêm com fogo em cima é melhor sair da frente
tanto faz, ninguém se importa se você é inocente
com uma arma na mão eu boto fogo no país
e não vai ter problema, eu sei, estou do lado da lei.

Com efeito, o mais importante para o propósito desse trabalho é que: 1) esses as-

pectos apontam para o fato de que não se trata aqui de uma simples reprodução dos mode-

los importados, mas da manifestação específica das características de um perfil próprio da-

quele produto cultural no Brasil atual; 2) que a potencialidade crítica expressa no fenômeno

em pauta tem se manifestado apesar das formas de padronização por que passa esse mesmo

produto, visto que também se encontra alinhado ao amplo processo comercial de consumo

da lógica da cultura industrial. Com efeito, o que se quer é chamar a atenção para o fato de

que tal mediação crítica da realidade só pode ser elaborada nesse contexto, no âmbito das

próprias mediações que essa música rock estabelece com os processos técnicos, industriais

e comerciais de sua produção e circulação - não podendo, pois, ser completamente anulada

ou negligenciada a título da acusação de pertencer a um mero fenômeno de moda. Cabe,

isso sim, uma mais atenta observação sobre as formas de representação do referente cotidi-

ano aí expresso; conforme tentar-se-á exemplificar no quadro a seguir das letras seleciona-

das.

165
4.2. As Letras do Discurso

A cidade produz o destino da humanidade.


(Guattari)

Um dos objetivos centrais deste trabalho, é o de captar uma narrativa do urbano pela

música do rock, como já foi largamente esclarecido. Sendo o rock uma das produções cul-

turais que mais se apresenta como representação do universo simbólico e do modus vivendi

jovem e adolescente, mostra-se ele, também, como uma das manifestações artísticas em que

o fenômeno urbano se expressa como referente central. Por certo, um tal propósito não

representa qualquer novidade em relação ao espaço a que está circunscrito. De modos dis-

tintos em ênfases e abordagens, um sem número de estudos já se fez em termos das ima-

gens e representações do urbano no discurso poético e literário. Nesse sentido, o dado sin-

gular do que se deve buscar aqui é o de apreensão das imagens e representações críticas do

cotidiano urbano, na forma de um modus vivendi adolescente e de sua representação en-

quanto discurso juvenil na sociedade brasileira das últimas décadas e de seu ingresso no

fenômeno global de consumo em nível de capitalismo mundializado. Aliás, é bom que se

diga, quando se fala em representação juvenil do cotidiano urbano brasileiro, leva-se em

conta tanto os referentes mais específicos e localizados desse urbano, quanto aqueles de um

caráter mais desterritorializado, em que espaço-tempo não se definem de modo preciso:

tendo como referência a própria totalidade e simultaneidade do mundo e de sua existência

nele. Exemplo disto pode ser encontrado nos seguintes versos de Música Urbana 2 de Re-

nato Russo para o disco “Dois” do Legião Urbana:

Em cima dos telhados as antenas de TV tocam música urbana,


nas ruas os mendigos com esparadrapos podres
cantam música urbana,

166
motocicletas querendo atenção às três da manhã –
é só música urbana.
Os PM’s armados e as tropas de choque vomitam música urbana
e nas escolas as crianças aprendem a repetir a música urbana.
Nos bares os viciados sempre tentam conseguir a música urbana.
O vento forte seco e sujo em cantos de concreto
parece música urbana
e a matilha de crianças sujas no meio da rua –
música urbana.
E nos pontos de ônibus estão todos ali: música urbana.
Os uniformes
os cartazes
os cinemas
e os lares
nas favelas
coberturas
quase todos os lugares.
e mais uma criança nasceu.
não há mentiras nem verdades aqui
só há música urbana.

Embora a questão inicialmente levantada neste deste trabalho se refira à questão de

que há um discurso em parte desta manifestação musical que aponta para um veio emanci-

pador - por assumir um diálogo contratendente (Morin, op.cit.) e de descentramento

(Sant’Anna, op.cit.), negador do establishment e descodificador de valores hegemonica-

mente expressivos -, o presente estudo se dará por satisfeito na medida em que já apresente

alguns elementos delineadores de um certo perfil ou panorama do cotidiano urbano, de sua

representação como referente narrado por aquele tipo de música que, na forma como se

expressa e como se pode apreendê-la, demonstra ter uma relativa sintonia com o que se

denominou acima como universo adolescente e jovem. Sendo assim, será sob o signo das

imagens dialéticas de Benjamin, que se irá traçar um roteiro de modo a perseguir o cotidi-

ano em sua representação nos discursos das letras do rock.

Ademais, como ficou evidenciado no capítulo segundo, tem-se consciência dos ris-

cos de formalização de um possível “mundo” jovem e adolescente que não leve em conta

167
todo um conjunto de processos heterogêneos por que passam os indivíduos nas sociedades

complexas. Mas não se está querendo, portanto, ter como ponto de partida a especificidade

de um tipo nitidamente delimitado de juventude na sociedade contemporânea. Assim, em-

bora seja válido falar da existência de um período próprio dessa segmentação social em ter-

mos de caracteres psico-biológicos, por exemplo, considera-se ainda como de uma maior

validade e de mais extrema necessidade, aqui, abordar o problema dentro de certo contexto

histórico; ou seja, relativamente às condições sociais da juventude no mundo.

Aliás, é justamente a partir deste procedimento que se poderá chegar, em meio à

multiplicidade e heterogeneidade de processos, a algum ponto de generalização do tipo

adolescente e jovem e de seu “universo”. Em outras palavras, a identificação de certos tra-

ços mais freqüentemente encontrados na segmentação social da juventude, que digam res-

peito às mudanças por eles vividas de um ponto de vista especificamente etário, não pode

ser suficientemente explicada se apenas admitirmos os problemas apresentados por uma

ordem estritamente psico-biológica, não dedicando suficiente atenção para com os aspectos

de característica antropo-sociológica (conforme já se fez referência). Assim, analisar as ca-

racterísticas de uma “crise” de adolescência implica em identificá-la como algo próprio das

sociedades contemporâneas: relembre-se a passagem do filme Absolute Beginners, em que

se afirma ser a adolescência a “nova classe econômica”.

Nesse sentido, cabe investigar como determinados elementos próprios das socieda-

des atuais têm se apresentado e se manifestado na configuração do que se poderia denomi-

nar de universo cultural da juventude, ainda que sejam elementos identificáveis em âmbito

mais global de ordem econômica e político-social das sociedades contemporâneas. De um

modo um tanto arbitrário, tais elementos podem ser identificados como: nomadismo, des-

territorialização e globalização da cidade-mundo; sociedade de consumo e sua configura-

168
ção básica em uma cultura do simulacro e do pastiche; narcisismo, comportamento blasé e

exogamia cultural. Pode-se identificar a representação de alguns desses elementos em, por

exemplo, Silvia Pfeifer de Fausto Fawcett e Marcelo de Alexandre e em Disneylândia de

Arnaldo Antunes para o Titãs. A propósito, observe-se respectivamente como Fawcett ex-

plora os elementos do simulacro e do narcisismo de um mundo ilusório construído no

plano do desejo, enquanto Antunes enfatiza os traços de um mundo completamente dester-

ritorializado e sem mais fronteiras. Observe-se as letras:

Copacabana foi transformada num supergueto de capitalismo exacerbado/ um


território paralelo à Sarney, off-off Moreira/ um vácuo financeiro industrial
dominado por gigantescas empresas transnacionais/ e gigantescas empresas
armamentistas brasileiras./ Copacabana tá repleta de telões passando
gigantescas imagens de tudo/ no meio da vertigem audio-visual os habitantes do
supergueto capitalista costumam concentrar seu olhar no maior telão do mundo
onde ininterruptas imagens da mais bela/ e sofisticada das manequins. a
manequim número um. SILVIA PFEIFER/ e o que sentem os habitantes de um
supergueto capitalista?/ de tanto ver o mundo ser transformado em imagem/ de
tanto ver a vida ser transformada em show de realidade patrocinada eles já não
sabem/ o que é o que não é real,/ não sabem se seus sentimentos são seus mesmo
ou se são ficção de personalidade./ Bombardeados pelo delírio das ficções
comerciais e não comerciais eles vivem envolvidos com/ mundos que só existem
no desejo./ Pra eles o invisível já é uma coisa muito vulgar, o transcendental já é
algo tão banal devido/ às excessivas fotos, vídeos, filmes sobre a antimatéria,
sobre os espectros microscópios. De-/ vido às excessivas imagens divulgadoras do
invisível. E quando o invisível já é algo muito vul-/ gar, quando o transcendental
já é uma coisa tão banal que emoção espiritual resta pros ha-/ bitantes de um
supergueto capitalista cujos olhos estão magnetizados pela excessiva presen-/ ça
de gigantescos televisores?/ A última emoção espiritual é a fascinação.
Fascinação por imagens cada vez mais artificiais,/ imagens que os façam pensar
em mundos não humanos, universos paralelos./ E quem são as heroínas dessa
fascinação espiritual? As manequins das revistas de moda mais/ sofisticadas.
Incorpóreas ladies. Garotas de fisionomia etérea. Mestras da sedução calculada./
No meio da vertigem audio-visual os habitantes de um supergueto capitalista
concentram/ seu olhar no rosto da mais bela e sofisticada das manequins. A
manequim número um./ Mundos não-humanos/ universos paralelos/ fascinação
espiritual/ mundos que só existem no desejo./ SILVIA PFEIFER

169
A situação narrada pela música toma a forma de uma sociedade no futuro, ainda que

a narrativa esteja no presente. Trata-se de um mundo regido pela imagem, em que a ficção

parece substituir a realidade num absoluto simulacro e em que o próprio invisível e trans-

cendental já se apresenta como banais: não restando, pois, qualquer “emoção espiritual”

para os habitantes do mundo da narrativa, a não ser a fascinação que os levam a viver

“mundos que só existem no desejo”. Mundos artificiais transmitidos por telões gigantescos,

em que as manequins das sofisticadas revistas de moda assumem a função de heroínas da

“fascinação espiritual”: em sua forma “incorpórea” e de “fisionomia etérea” - “mestras da

sedução calculada”. É nesse mundo, em que a vida se transforma em show de realidade

patrocinada, que todos voltam os olhos para a manequim número um: Silvia Pfeifer. O lu-

gar descrito pela narrativa encontra-se dominado por gigantescas empresas transnacionais e

armamentistas nacionais, “um vácuo financeiro industrial” caracterizado como “supergueto

de capitalismo exacerbado”: trata-se de Copacabana, que se encontra superlativisada à di-

mensão de mundo.

Uma característica dessa canção é o fato de ela ser falada e não cantada, assumindo

a música uma aparência de fundo, com sua figuração basicamente eletrônica e de sonori-

dade espacial: como nas trilhas sonoras de filmes de ficção sobre a exploração do universo

cósmico. Inclusive, em sua crítica a um cotidiano dominado pela tecnologia, a letra confi-

gura a imagem de um mundo pós-moderno em que, tal como em Blade Runner, o caçador

de andróides (de Ridley Scott), gigantescos telões compõem o cenário citadino. Aliás, um

universo de simulacros, tecnologias, fenômenos poltergeist, povoado de amantes, vedetes,

manequins, andróides, marginais, homens comuns etc., envolvidos em situações cotidianas

que envolvem o sexo e o crime, parece ser a tônica do trabalho “Império dos Sentidos” de

Fausto Fawcett e Robôs Efêmeros - numa linguagem em que predomina um realismo fan-

170
tástico onde um futuro imaginário se precipita como representação crítica do mundo cotidi-

ano. É o que pode ser observado, ainda, nos fragmentos seguintes de algumas das outras

músicas desse disco:

Noite estrelada, uma loura condenada dirige sua Ferrari vermelha à beira de um
abismo/ canadense./ Noite estrelada, uma loura condenada dirige sua Ferrari
vermelha equipada com antena pa-/ rabólica. Ela gira o dial da TV MUNDIAL:
imagens americanas, imagens sul-americanas, ima-/ gens européias, imagens
africanas, imagens asiáticas, imagens oceânicas, imagens antárticas./ Ela
abandona as imagens mundiais e vira o rostinho pra esquerda observando o
Oceano/ Pacífico, um território marítimo reservado para inofensivos testes
bélicos da OTAN. Futuros/ foguetes intercontinentais explodem pacificamente
no horizonte pacífico./ Cabeleira loura entremeada por tranças de poliuretano
vermelho, boca carnuda ideal pra/ batom forte, escorpião tatuado na base da
espinha, coxas de quem faz jazz imensos olhos/ azuis. (...)/ Viviane Vancouver é a
mais famosa fotógrafa hiperrealista do mundo. Usou toda rara sensibilidade
sádica pra transformar atentados terroristas, crimes passionais, desastres
ecológi-/ cos, catástrofes industriais, conflitos de rua, acidentes cirúrgicos nas
mais terríveis naturezas-/ mortas que nenhum pintor jamais ousou transar. Essa
loura de sensualidade over sente, é ator-/ mentada por uma nostalgia da matéria
bruta da qual o homem e a mulher são os acidentes/ mais famosos. As revistas
mundiais pagam milhares de dólares para ter as fotos de Viviane/ Vancouver
publicadas em alto relêvo. Mas o FBI descobriu que Viviane estava se
excedendo/ na sua fissura por naturezas-mortas. Estava pagando pessoas pra
mutilar, matar, se matar,/ explodir lugares. (...)
(Facada leite-moça, Fausto Fawcett e Carlos Laufer.)
Debaixo do bairro japonês/ nos porões da Liberdade/ entre pântanos de esmalte
e lixeiras de sucata cosméticas (...)/ um piloto de rallies subterrâneos vai
trepando (...)/ com uma narcótica andróide nissei (...)/ com a bateria no fim (...)
(Andróide nissei, Fawcett e Laufer.)
Um mecânico negão eletricista sai na noite de São Paulo provocando
Poltergeists/ com micro-Atari,/ micro-computer/ micro-tv fora do ar (...)
(Santa Clara Poltergeist, Fawcett e Laufer.)

Em Disneylândia, a simultaneidade das situações e dos acontecimentos toma a

forma de uma consciência de mundo cosmopolita, em que tempo-espaço se encontram

completamente relativizados; uma “mega-sociedade”, como na expressão de Ortiz (1993),

em que “um estrato social desterritorializado” emerge “ao lado das realidades nacionais e

171
de classe” (p.291). Também com Guattari (1992), como já se viu antes, pode-se perceber

esse sentido das cidades como “mega-máquinas” produtoras de subjetividade individual e

coletiva no CMI (vide epígrafe acima). Em ambos os autores, esse processo de desterrito-

rialização põe em questão a noção de centro, dando margem a se pensar numa formação

social e econômica atuais de base muito mais policentrada. Aliás, é em sua crítica às formas

de produção de subjetividade atuais que Guattari vai estabelecer a correlação entre o pro-

cesso de desterritorialização do ser humano contemporâneo e a forma nômade dos tipos de

subjetividade atuais, em que “tudo circula (...) e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-

se, permanecer no lugar” (p.169). Para Ortiz, ainda, “uma cultura mundo” exige uma rede-

finição de tempo e espaço como “categorias indissociáveis” que são, onde sua tendência à

desterritorialização requer a unidade mundial como “território que transcende as partes que

o constituem” (idem). Construída sob uma forma que lembra um informe noticiário, a letra

Disneylândia pode muito bem ilustrar o texto de Ortiz que, diga-se de passagem, utiliza

exemplos explicativos do processo atual de “mega-sociedade” que poderiam compor aquela

letra. Sendo assim, discurso científico e discurso ficcional encontram-se totalmente

coincidentes. Num de seus exemplos, Ortiz demonstra que

“um carro esporte da Mazda é desenhado na Califórnia, financiado por Tóquio, o


protótipo é criado em Worthing (Inglaterra) e a montagem é feita nos Estados Unidos
e México, usando componentes eletrônicos inventados em New Jersey, fabricados no
Japão” (p.288).

Construção semelhante de imagens pode-se extrair da música Disneylândia, con-

forme se vê no que segue:

172
Filho de imigrantes russos casado na Argentina/ com uma pintora judia, casou-
se pela segunda/ vez com uma princesa africana no México./ Música hindu
contrabandeada por ciganos/ poloneses faz sucesso no interior da Bolívia./
Zebras africanas e cangurus australianos no/ zoológico de Londres./ Múmias
egípcias e artefatos íncas no museu de/ Nova York./ Lanternas japonesas e
chicletes americanos nos/ bazares coreanos de São Paulo./ Imagens de um vulcão
nas Filipinas passam na/ rede de televisão em Moçambique/ Armênios
naturalizados no Chile procuram/ familiares na Etiópia./ Casas pré-fabricadas
canadenses feitas com/ madeira colombiana./ Multinacionais japonesas instalam
empresas/ em Hong-Kong e produzem com matéria prima/ brasileira para
competir no mercado americano./ Literatura grega adaptada para crianças/
chinesas da comunidade européia./ Relógios suíços falsificados no Paraguay/
vendidos por camelôs no bairro mexicano de Los Angeles./ Turista francesa
fotografada semi-nua com o/ namorado árabe na Baixada Fluminense./ Filmes
italianos dublados em inglês com/ legendas em espanhol nos cinemas da
Turquia./ Pilhas americanas alimentam eletrodomésticos/ ingleses na Nova
Guiné./ Gasolina árabe alimenta automóveis americanos/ na África do Sul./
Pizza italiana alimenta italianos na Itália./ Crianças iraquianas fugidas da
guerra não/ obtém visto no consulado americano do Egito/ para entrarem na
Disneylândia.

Como já se deixou claro noutro lugar, acredita-se que se possa estabelecer alguma

relação dialógica entre elementos da vida cotidiana narrados por certo discurso da letra do

rock (elementos esses aqui arbitrados como característicos das sociedades atuais, mais con-

cretamente, de sua malha urbana), e o que certo número de pesquisas sobre adolescência e

juventude apresentam como pontos dominantes e convergentes de um perfil e representação

do espaço e tempo atuais, configuradores de um olhar sobre o mundo, no imaginário e na

vida cotidiana destes adolescentes e jovens - em outras palavras, o que se quer afirmar é a

existência de uma semântica convergente entre as manifestações de certos aspectos

enunciativos do universo pensante do adolescente e certo discurso poético do “produto” em

pauta neste estudo.

Na medida em que se possa identificar este diálogo, bem como, caracterizar a sua

natureza pela negatividade e ruptura para com os valores do establishment (negatividade e

ruptura aqui entendidas como instâncias desejantes de emancipação), volta-se a afirmar, o

173
presente trabalho se dá como tendo atingido sua meta: visto que, assim, se mostra como

indicador de uma representação dialógica entre elementos enunciados pela letra de uma

canção de consumo (o rock) e o que se apresenta como uma espécie de cartografia dese-

jante do universo adolescente e jovem, e o próprio imaginário adolescente e jovem tal como

anteriormente apreendido.

Se seguirmos os passos de Swingewood (op.cit.), que chama a atenção para os pro-

cessos de fortalecimento da sociedade civil como condição necessária no sentido da demo-

cratização da cultura e da participação social, pode-se considerar que esta óptica serve para

ilustrar o fato deste estudo ter, na grande explosão do rock no Brasil dos anos 80, notada-

mente, em sua versão mais nitidamente marcada de um discurso orientado para uma diver-

sidade de aspectos e problemas predominantemente vividos em nosso cotidiano urbano, o

seu centro de interesse. Por seu turno, necessário se faz esclarecer que, quando se fala em

crítica do cotidiano urbano e de sua representação no discurso das letras, configurada em

termos das mediações que opera no âmbito do imaginário e da linguagem juvenis, tem-se

atenção especial para a forma como se manifesta neste discurso o que se caracterizou como

uma constelação de aspectos e problemas vividos no espaço e tempo do urbano. Desta

feita, dos nomes do rock nacional aqui tomados como referência para estudo, poder-se-ia

partir para uma classificação do que seriam versões sobre o amor, sobre o comportamento

social padrão, sobre política etc. Em lugar disso, contudo, partiu-se para a identificação, nas

letras do rock, de um discurso cujas mediações parecem configurar um mundo juvenil de

representações políticas no cotidiano: suas utopias e desencantamentos - onde sexualidade,

família ou outros aspectos encontram-se secundarizados em relação a um aspecto primeiro

ou horizonte de um “estar no mundo” político - seja ele anárquico-existencialista, populista,

pessimista ou utópico -, capaz de denotar formas ou nuances da referida constelação de

174
elementos críticos de representação social. Pelo que se pode ver, a complexidade do

fenômeno do rock no Brasil da década de 80, que não deve ser reduzida a pura merca-

dologia, pode, também, ser traduzido a partir da questão de este gênero musical manter

certa relação e não alheamento entre os aspectos enunciados em seu discurso e os processos

de expansão da participação da sociedade civil no conjunto da sociedade brasileira naquele

momento, com suas lutas pela redemocratização do país e por mudanças mais efetivas nos

cenários social e político: inclusive com relação a fatores identificados a processos éticos.

Aliás, o procedimento da escolha das letras de música esteve orientado, principalmente, por

este último fator - ainda que se tenha identificado, ao lado de potencialidades utópicas

desejantes de mudanças, formas desencantadas e pessimistas que, em certo sentido, pode

estar associada às frustrações vividas por aquelas mesmas motivações de luta (como já se

fez referência anteriormente).

Um dos primeiros hits do rock neste período é uma crítica debochada da falta de

cidadania do povo brasileiro que não podia se fazer representar, e em cujo discurso parece

se afirmar o que se pretende negar: que somos um povo inútil, que necessita das tutelas

oficiais; ou que somos incompetentes, como o demonstraria a diversidade de questões as

quais não conseguimos solucionar. Claro que, como todo texto poético, trata-se de um dis-

curso ambíguo, ainda mais por sua característica irônica. Inclusive, com os problemas, esté-

tica e propositadamente postos, de ordem gramatical, como a música é apresentada. Trata-

se da versão de um dos principais grupos de rock do período, o Ultraje à Rigor, para quem

o líder Roger escreveu a música Inútil:

A gente não sabemos escolher presidente


a gente não sabemos tomar conta da gente
a gente não sabemos nem escovar os dentes

175
e vivem pensando que nós é indigente
inútil, a gente somos inútil.
A gente faz carro e não sabe guiar
a gente faz trilho e não tem trem pra botar
a gente faz filho e não consegue criar
a gente pede grana e não consegue pagar
inútil, a gente somos inútil.
A gente faz música e não consegue gravar
a gente escreve livro e não consegue publicar
a gente escreve peça e não consegue encenar
a gente joga bola e não consegue ganhar
inútil, a gente somos inútil.

Numa entonação nada debochada de crítica aos problemas de construção de uma

sociedade mais ética e democrática, encontra-se a música Que País é Este, escrita por

Russo desde o ano de 1978, quando fazia parte da extinta banda Aborto Elétrico, de Brasí-

lia. A música só foi gravada em 87, no terceiro disco do Legião Urbana, uma coletânea do

que não havia sido gravado nos trabalhos anteriores da banda. Trata-se de um discurso

indignado, cujo título é uma referência à famosa frase de Francelino Pereira, então repre-

sentante governista da ditadura militar, e que foi bastante ironizada pelos jornais alternati-

vos de esquerda e anárquicos na época - por ser um governista o formulador de uma tal

frase sobre o caos, em última instância, engendrado pelas políticas de Brasil-potência leva-

das a efeito nos anos de governo militar. Diz a canção:

Nas favelas, no Senado


sujeira pra todo lado
ninguém respeita a Constituição
mas todos acreditam no futuro da nação
que país é este
no Amazonas, no Araguaia, na Baixada Fluminense
Mato grosso, nas Geraes e no Nordeste tudo em paz
na morte eu descanso mas o sangue anda solto
manchando os papéis, documentos fiés
ao descanso do patrão
que país é este

176
Terceiro Mundo se for
piada no exterior
mas o Brasil vai ficar rico
vamos faturar um milhão
quando vendermos todas as almas
dos nossos índios em um leilão.
Que país é este.

A certa altura do release sobre esta música, que consta no encarte do disco, se diz

que ela

“nunca foi gravada antes porque havia a esperança de que algo iria realmente mudar
no país, tornando-se a música então totalmente obsoleta. Isto não aconteceu e ainda é
possível se fazer a pergunta do título, sem erros. Jimmy Page dizia que o bom do rock
é que não se aprende na escola. Outros atacam: ‘para ser roqueiro basta pendurar uma
guitarra no pescoço e sair por aí, fazendo a música mais primária do mundo’. Oras,
mas é este mesmo o espírito da coisa! O ataque continua: ‘o rock é isso mesmo, um
bate-estaca, a coisa mais elementar que existe, mais primitiva, menos inventiva que
pode acontecer. O rock não é novidade, é uma imposição, é uma ditadura. É um
sistema estético com a intenção de embotar a cabeça do jovem. Sim, pois se você fica
com aquele bate-estaca o dia inteiro na cabeça, você se esquece da realidade que o
cerca, das coisas realmente importantes’. Dois apartes aqui. Realmente o rock não
pode ser novidade já que é uma forma musical que nasceu em 1955, tem mais de
trinta anos portanto. Bate-estaca ou não, juvenil ou não, preste atenção à letra de ‘Que
País é Este’. Não nos parece coisa de quem se esquece da realidade que o cerca.
Comparar o rock com ditadura? Que país é este? Quem é Jimmy Page?”

Também duas outras canções podem ser apresentadas como algo situado nesta di-

mensão da crítica ética à insolvência política e moral do país. Interessante notar que este

tipo de discurso vai ter sua principal ascendência a partir do recrudescimento da crise polí-

tica e econômica do país e do conseqüente processo de frustração daí advindo. Em grande

parte, são discursos pessimistas e sem perspectiva aparente, que findam por assumir a

forma de um discurso dos excluídos: só que de uma perspectiva ambígua, em que ora se

está identificado com o “bandido” ou “desviante”, para o qual não parece haver saída; ora

com os cidadãos excluídos de qualquer forma de participação, para quem as promessas de

177
mudança assumiram a forma de um desencantamento do mundo, após situações como a

derrota das “Diretas-Já” e do caráter sem precedentes da crise econômica e de representa-

ção política, com os exemplos de corrupção na esfera do próprio Estado e de instâncias

afins. Também aqui, se pode identificar um tipo de discurso completamente indignado e

cético, e que assume uma identidade ou identificação com o mundo da marginália e do

underground. Veja-se o caso, embora distinto em sua forma de tratar a situação, das can-

ções Brasil (de Cazuza, Israel e Romero) e Plic-Plic (de Brandão e Paes):

Não me convidaram
pra essa festa pobre
que os homens armaram
pra me convencer
a pagar sem ver
toda essa droga
que já vem malhada
antes d’eu nascer
não me ofereceram
nem um cigarro
fiquei na porta
estacionando os carros
não me elegeram
chefe de nada
o meu cartão de crédito
é uma navalha
Brasil
mostra a tua cara
quero ver quem paga
pra gente ficar assim
Brasil
qual é o teu negócio
o nome do teu sócio
confia em mim.
Não me sortearam a garota do Fantástico
não me subornaram
será que é o meu fim
ver TV a cores
na taba de um índio
programada pra só dizer sim
grande pátria desimportante

178
em nenhum instante
eu vou te trair.

A música Brasil vai revelar a existência clara de dois mundos: aquele integrado aos

valores do establishment e o dos excluídos - em que o excluído revela uma consciência na

qual, ao mesmo tempo em que denuncia um tal processo de segregação social, assume

formas e valores do banditismo como recurso crítico para ironizar tanto a “vida bandida”

dos excluídos, quanto a prática do banditismo oficial de uma política fisiológica.

Respectivamente, nas passagens em que se diz: “o meu cartão de crédito/ é uma navalha” e

“não me subornaram/ será que é meu fim”. Neste último caso, fazendo-se referência a uma

prática corriqueira no tipo de organização fisiológica do nosso Estado burocrático-

patrimonialista. Outro aspecto da ironia passada pelo autor, é o que se refere ao patriotismo,

onde a voz do excluído exige do país que se apresente de modo mais transparente

politicamente, de forma mais democrática; quando finaliza com os versos que diz: “grande

pátria desimportante/ em nenhum instante/ eu vou te trair”.

Em Plic-Plic, gravação do Hanói-Hanói, o caos urbano é o próprio palco em que a

personagem do excluído transita. Diferente do que ocorre em Brasil, em que a voz do ex-

cluído é posta na voz do intérprete; em Plic-Plic, o intérprete apenas narra a situação de

exclusão vivida pela personagem. Personagem contraditória que em si muito revela o qua-

dro de crise social vivida pela sociedade como um todo. Diz a canção:

Você quer ser bom rapaz, mas ninguém te leva a sério


se virar um “marginal” querem te ver no cemitério.
se for preso tá ferrado; vai dançar na mão dos “hôme”:
se correr eles te pegam, se ficar eles te comem. Se aplique!!!
Você vive de biscate; não se toca que tá mal: teu salário vem do bicho que faz
carnaval.
Sindicatos não entendem teu trabalho realista.

179
Teu suor tá num baralho: isca de polícia!
Já tentou ser operário, mas foi logo demitido
(acidentes de trabalho são assuntos proibidos)
se virar um comunista, não te aceitam no partido; quem não gosta do trabalho
se pirar, vira bandido - se aplique!!!
A comida custa cara... desemprego é normal;
na escola não tem vaga; não tem hospital!
Você culpa todo mundo, mas não sabe fazer nada.
A preguiça te perturba como uma piada.
Teu salário é uma merreca, o teu trampo é prá leão;
tua vida muito brega tá cheia de confusão
todo dia pensa em greve, toda noite toma um porre,
teu país tá numa “bad” e qualquer dia você morre! Se aplique!!!
Você grita por diretas; depois vota num careta:
a política te agrada como uma punheta.
Você age como bicho; vive numas de que é fera;
mal nutrido e deprimido nem a droga te acelera.
E com toda malandragem, o teu cheque não tem fundo.
Prá você não há jeton, nem chalé no Lago Sul.
Se tivesse educação tua vida tava a mil;
tua fome tinha nome; tua guerra era civil - se aplique!!!

A pluralidade de situações de exclusão vividas singularmente pela personagem,

serve muito mais para situá-la como personagem múltipla de uma realidade polifônica. É

nesse sentido que a personagem é apresentada ora como biscateiro ou contraventor, ora

como operário ou malandro e avesso ao trabalho; sendo, ainda, politicamente equivocado -

“você grita por diretas; depois vota num careta” -, apático - “a política te agrada como uma

punheta” -, mas, também, militante incompreendido - “sindicatos não entendem teu traba-

lho realista” ou “se virar um comunista, não te aceitam no partido”. O cotidiano vivido na

música é essencialmente caótico: com desemprego, alta dos preços dos produtos básicos,

ausência de assistência escolar e hospitalar, baixos salários, etc. Restando, assim, como

ponto de fuga, o porre, a droga: a personagem pensa em greve, mas, se aplica. Também a

existência de outro mundo, o dos privilégios, é mostrado pela música, quando se refere ao

sistema de moradia e do recebimento de jetons a que tem direito a elite política de Brasília -

180
e, dos quais, a personagem encontra-se excluída. Mas tudo isso se encontra associado à au-

sência de cidadania vivida pela personagem; onde, do contrário, sua realidade seria outra. É

o que a música leva a intuir quando afirma: “Se tivesse educação tua vida tava a mil; tua

fome tinha nome; tua guerra era civil”. Mas, sem isso, “se aplique!!!”

Com efeito, crê-se não se está exagerando o aspecto relacionado a fatores que tra-

duzem elementos críticos com implicações de questões ligadas ao mundo de uma ética so-

cial; visto que se está ciente de que isto não pode ser afirmado enfaticamente de um forma

generalizada. E, é claro que tem enorme importância os fatores de mercado e comercializa-

ção, que tendem a multiplicar em mil a reprodução do modelo que “deu certo” - aliás, digno

de nota é a ironia dos versos de Léo Jaime em sua versão a Rock’n’roll (rock and roll mu-

sic) de Chuck Berry, quando canta:

Ano passado eu cantava tango/ no retrasado eu era o rei do mambo/ mas o


patrão agora deu um toque/ se quer emprego tem que cantar rock.

Em todo caso, já se afirmou que o objetivo deste ensaio é ir além da afirmação tau-

tológica de que interesses econômicos estão no centro da cultura comercial capitalista. E,

diga-se de passagem, uma vez mais, a abertura política e a expansão de uma cultura do con-

sumo no Brasil são, por sua vez, amplamente favoráveis à recente explosão do rock no país.

Outrossim, claro está que em nenhum momento se pretendeu afirmar a existência, no rock,

de um discurso contínuo, coerente e que não apresente contradições no que se refere aos

processos ético-ideológicos configuradores de uma racionalidade sobre o mundo. Ao con-

trário, pretende-se afirmar tratar-se aí de um discurso multiforme, fragmentário, caótico,

descontínuo; marcados de contrapontos em imagens dialéticas em que, ao mesmo tempo

em que se afirma um universo utópico desejante, cai-se numa completa desesperança e de-

181
sencantamento do mundo, para dele fugir com acentuada ênfase no presente como espe-

rança possível a um existir: a partir disso, o cotidiano das ruas se apresenta como parâmetro

único da própria existência do mundo presente, em que projeções de um mundo futuro co-

abitam com a descrença no futuro. Assim, existencialismo hedonista e anarquismo se com-

põem como elementos nitidamente norteadores do discurso das letras do rock; sendo, por

excelência, uma forte componente do mundo das representações do imaginário juvenil hoje.

Dois dos exemplos mais lapidares das mediações desse processo no discurso do rock, em

que se assume a já aludida característica de um nomadismo no cotidiano, ora manifesto em

sua forma gregária, ora como exercício da solidão, encontra-se nas músicas Nós de Frejat e

Cazuza para o LP “Maior Abandonado” do Barão Vermelho e Música Urbana de Flávio e

Felipe Lemos, Russo e Pretorius, gravada no LP “Capital Inicial” da banda homônima.

Veja-se como isso se dá nas respectivas músicas; em certo sentido, tradutoras de uma

característica do nosso atual flâneur:

Mas não é só isso


o dia também morre e é lindo
quando o sol dá a alma
prá noite que vem
alma vermelha, que eu vi
vê, são tantas histórias
que ainda temos que armar
que ainda temos que amar
por enquanto cantamos
somos belos, bêbados cometas
sempre em bandos de quinze, vinte
tomamos cerveja, e queremos carinho
e sonhamos sozinhos
e olhamos as estrelas prevendo o futuro
que não chega
não, não é só pensar no fim
nas profecias
é pensar que um dia
sob algum luar

182
vou te mandar um recado
baby, um reggae bem gingado
alucinado de amor
amassado num guardanapo
prá rirmos dos loucos, sábios e mendigos
e dos palhaços noturnos
o sal da terra ainda arde e pulsa
aqui neste instante
e olhamos a lua, e babamos nos muros
cheios de desejo.

A provisoriedade do tempo é algo constante em muitas das canções do rock nacio-

nal deste período. Da mesma forma em que se afirma a juventude e toda uma existência a

ser vivida, tem-se consciência de sua transitoriedade e finitude. A título de exemplo, pode-

se identificar a efetiva presença da categoria “tempo” em diversas composições de Cazuza

e Renato Russo: como é o caso de Ritual, música de Frejat e Cazuza (“prá que sonhar/ a

vida é bela e cruel despida/ tão desprevenida e exata/ que um dia acaba”); como também,

de Tempo Perdido de Renato Russo (“todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo

que passou/ mas tenho muito tempo: temos todo tempo do mundo (...)/ somos tão jovens”).

Ao que parece, ainda, a noção de tempo é o que provoca a derrocada utópica, ameaçando o

desejo, que se reafirma num realismo cotidiano sem ilusões e de consciência fragmentada.

Isto também pode ser visto em Música Urbana:

Contra todos e contra ninguém


o vento quase sempre nunca tanto diz
estou só esperando o que vai acontecer
tenho pedras nos sapatos
onde os carros estão estacionados
andando por ruas quase escuras
os carros passam
as ruas têm cheiro de gasolina e óleo diesel
por toda plataforma
você não vê a torre
tudo errado mas tudo bem
tudo quase sempre como eu quis

183
sai da minha frente que agora eu quero ver
não me importam os seus atos
eu não sou mais um desesperado
se eu ando por ruas quase escuras
as ruas passam.

Ademais, a forma do discurso pode, por vezes, assumir uma característica de com-

portamento cuja negação de valores cruciais do establishment é feita a partir da afirmação

de aspectos e práticas do próprio status quo de um mundo burguês. Trata-se, pois, de um

tipo específico de fenômeno que finda por afirmar uma insatisfação não claramente identifi-

cada (talvez seja com o mundo consumista da família), a qual corresponderia uma violência

em despropósito: em que os símbolos do status quo vividos são detonados por uma fúria

dominada de um sentimento destrutivo, que tende a afirmar o caráter de uma personalidade

autoritária reificadora da própria ordem de violência dominante do sistema social: neste

caso, a negação do establishment se faz com o uso das próprias armas e lógica de violência

do sistema estabelecido. Solidão e psicopatia seriam, assim, os ingredientes que exemplifi-

cariam esse tipo de coisas na música Psicopata do mesmo disco do Capital Inicial, como se

pode ler:

Papai morreu
mamãe também
estou sozinho
não tenho ninguém
essa vida me maltrata
estou virando um psicopata
quebrei as janelas
da minha casa
eu rasguei a roupa
da empregada
esta vida me maltrata
estou virando um psicopata
quero soltar bombas no Congresso
eu fumo Hollywood para o meu sucesso

184
sempre assisto à Rede Globo
com uma arma na mão
se aparece Francisco Cuoco
adeus televisão.

Em outro sentido, pode-se identificar no discurso do rock tanto o anseio de uma

mudança social ou, mesmo, individual; quanto a demonstração de uma apatia, decepção,

cansaço ou descrença para com os ideais de mudança, assumindo-se, pois, um discurso

basicamente individualista e desesperançado. Tomando-se como referência, inicialmente,

este último aspecto, uma canção do rock traduz-se no exemplo mais claro disso. É o caso de

Ideologia de Frejat e Cazuza:

Meu partido
é um coração partido
e as ilusões estão todas perdidas
os meus sonhos
foram todos vendidos
tão barato que eu nem acredito
que aquele garoto que ia mudar o mundo
freqüenta agora as festas do “Grand Monde”
meus heróis morreram de overdose
meus inimigos estão no poder
ideologia
eu quero uma pra viver
o meu prazer
agora é risco de vida
meu sex and drugs não tem nenhum rock’n roll
eu vou pagar a conta do analista
pra nunca mais ter que saber quem eu sou
pois aquele garoto que ia mudar o mundo
agora assiste a tudo em cima do muro.

A música revela um completo ceticismo em relação a qualquer princípio de constru-

ção utópica no mundo contemporâneo à situação da música, em que não há mais ilusões e

os sonhos foram vendidos, ou seja, traídos, absorvidos ou integrados ao establishment.

185
Numa época assim desencantada, o conformismo e o pessimismo parece se generalizar,

produzindo assim a forma do individualismo atual. Descrente de alguma possibilidade de

construção utópica ou de um amplo e, ainda, significativo projeto ou narrativa para a hu-

manidade, este tipo de pensamento tem na “ideologia” a configuração de um conceito ins-

trumental que possa atribuir, em todo caso, um significado para a vida. Agora, o mundo

enunciado encontra-se povoado de signos cujos significantes não mais possuem significa-

dos; e aqueles que tentaram algo, amargaram o peso de suas investidas, pagando muito caro

por isso: com os heróis mortos por overdose, resta apenas a constatação do controle do po-

der pelos inimigos. Num estado total de desânimo com relação a idéia de “mudar o

mundo”, fica-se acomodado ao puro hedonismo e frivolidade das festas e/ou à neutralidade

de se manter “em cima do muro”. e, mesmo em relação à satisfação e ao prazer, paira a

ameaça de destruição do desejo em tempos de AIDS.

Apatia, tédio, monotonia de vida, também fazem parte do cotidiano narrado pela

música Tédio, composta por Bruno, Sheik, Miguel e Álvaro para o Biquini Cavadão, no LP

“Cidades em Torrente”:

Sabe esses dias em que horas dizem nada?


e você nem troca o pijama, preferia estar na cama
o dia, a monotonia tomou conta de mim
é o tédio, cortando os meus programas esperando meu fim
sentado no meu quarto
o tempo voa
lá fora a vida passa,
e eu aqui à toa
eu já tentei de tudo mas não tenho remédio
pra livrar-me desse tédio
vejo um programa que não me satisfaz
leio um jornal que é de ontem, pois pra mim tanto faz
já tive esse problema, sei que o tédio é sempre assim
se tudo piorar, não sei do que sou capaz
tédio, não tenho um programa

186
tédio, esse é o meu drama
o que corrói é o tédio
um dia eu fico sério
me atiro desse prédio.

Contudo, no tocante a um discurso tendente à manifestação de um anseio de mu-

dança, expresso, em sua multiformidade, como instância negadora dos valores do esta-

blishment, pode-se dispor de um quadro bastante significativo ao dimensionamento de um

perfil crítico do cotidiano urbano brasileiro, em seu já aludido processo de expansão de

uma cultura do consumo: a partir dos projetos de modernização que tiveram, no período

militar, sua versão mais intensificada e autoritária. É, neste momento, que se pretende to-

mar com maior ênfase a referência a uma constelação de valores e representações com a

qual as letras estabelecem mediação e referência. A rigor, uma tal constelação pode ser

identificada em várias formas de representação do discurso: em que, mesmo em suas carac-

terísticas de maior apatia e ceticismo, onde parece não mais se manifestar um universo de-

sejante de situações orientadoras de processos de mudança, tais elementos se fazem presen-

tes. Mesmo, aqui, ainda que por subtração, na medida em que não se deposita uma maior

crença no futuro, uma tal constelação pode ser observada em seu aspecto de negação do

establishment; ainda que o faça em termos cinicamente individualista e, em sua maioria,

autocomplacente: fundado num nadismo inoperante, que faz do hedonismo consumista ou

dirigido o último reduto de um projeto pessoal de vida; cuja saída será a de uma “ideologia”

(um sentido) pra viver.

Por outro lado, o aspecto particular de interesse deste estudo é o de identificar a

existência da tendência a se pautar pelo itinerário crítico do cotidiano, orientando-se por

princípios que delineiam sentimentos e idéias identificados com anseios e aspirações à mu-

dança do quadro geral do sistema estabelecido: promovendo-se, assim, um discurso de des-

187
centramento ou contratendente, cujas representações são capazes de elaborar imagens,

como “campo de forças”, no sentido do “terceiro horizonte” jamesoniano; ou seja, do hori-

zonte revelador da multiplicidade e coexistência dos “sistemas de signos” dos diversos mo-

dos de produção sobrepostos (arcaicos e novos; econômicos, sexuais, políticos, sociais, en-

tre outros). O pressuposto básico disso é que tais imagens dialéticas podem demandar

“interpretações antecipatórias”, movidas de “impulsos utópicos” que, no sentido bakhtini-

ano de carnavalização, parecem ser capazes de operar tanto “inversão social” e “subversão”

de processos hegemônicos do establishment, quanto “ambivalência e ambigüidade

próprias” (como se viu no capítulo anterior). Nestes termos, dos sistemas de signos

coexistentes (Jameson), das imagens dialéticas do cotidiano (Benjamin) e da heteroglossia

do discurso (dialogismo em Bakhtin), é que se quer apreender a crítica do cotidiano urbano

brasileiro em algumas das produções musicais do rock nos anos 80, como possibilidade de

se afirmar aí a prática (também, embora, não exclusivamente) de um veio emancipador

(Prokop) naquilo que concerne ao âmbito da própria cultura comercial: elo mediador de

todo processo da produção cultural na contemporaneidade (esteja ela orientada para a

reificação ou crítica dos valores do status quo dominante; ou, mesmo, em formas de dis-

curso fragmentário que incorporam, ambiguamente, um e outro fatores). Aliás, convém

ilustrar o aspecto dessa coexistência de imagens e vozes do discurso, nas letras de Fanzine,

de Arnaldo Brandão e Tavinho Paes, para o disco homônimo do Hanói-Hanói, e Racio

Símio, de Marcelo Fromer, Nando Reis e Arnaldo Antunes, para o lp “Õ Blésq Blom” do

Titãs. Em Fanzine, cujo título (neologismo de fan e magazine) faz referência a publicações

de tipo artesanal que circulam entre fãs, assume-se uma forte conotação anárquica do de-

sejo, desde a construção fragmentária dos seus versos até o próprio nonsense que eles

apresentam em muitos dos enunciados. Após referência à música Televisão do Titãs (que

188
diz, em seu primeiro verso: “A televisão me deixou burro, muito burro demais”) e ao fa-

moso livro de Baudelaire, este rock apresenta o fanzine como o espaço de uma nova lin-

guagem atualmente. Veja-se o que diz a letra:

Ninguém fica burro demais só porque viu tv.


As flores do mal são cogumelos de neon glacê.
A juventude tem um tempo certo pra se corromper.
O anarquismo é o anjo-da-guarda de todo prazer.
E tome zine, zine, zine (em papel xerox):
o futuro é preto-e-branco e todo branco, preto pode ter.
E tome zine, zine, zine (em papel xerox)
vem do fanzine, o novo papo; a nova onda; novo ABC!!!
A camisinha anti-aids fez a deusa vênus virar punk
o cantor de yê-yê-yê comportado é um cafajeste junk...
chegou a hora do alimento ser todo natural
os vermes da terra, apreciam um corpo legal!
E tome zine...
No país da Xuxa, os vampiros usam fio-dental...
A ditadura justifica o bem, praticando o mal...
Um dia, as palavras não vão, deslizar pela boca...
A utopia vai ser a loucura de um guru pôrra-loca.
E tome zine...
Desejo quando não se arrisca é provocação...
A liberdade faz gato e sapato da proibição!!!
A beleza dá a volta ao mundo e a chuva cai...
Meu amor cabe em 3 versos de um hay-kay:
e tome zine!

Em Racio Símio, jogo de palavras que tanto faz referência ao uso da razão quanto à

forma craniana do macaco, tem-se uma letra de base experimental construída rigorosamente

a partir da formação de “frases feitas” (alterando-as em seus enunciados) - algumas das

quais são ditos populares ou, mesmo, trechos de canção popular e slogans publicitários:

com efeito, o que se obtém dessa música é igualmente um discurso marcado de uma

pluralidade de vozes, capazes de alterar completamente o senso em que muito dessas frases

se encontram no seu uso comum. Cantam os versos:

189
O anão tem um carro com rodas gigantes
Dois elefantes incomodam muito mais
Só os mortos não reclamam
Os brutos também mamam
Mamãe eu quero mamar
Eu não tenho onde morar
Moro aonde não mora ninguém
Quem tem grana que dê a quem não tem
Raciosímio
Quem esporra sempre alcança
Com Maná adubando dá
Ninguém joga dominó sozinho
É dos carecas que elas gostam mais
A soma dos catetos é o quadrado da hipotenusa
Nem tudo que se tem se usa
Raciosímio
Os cavalheiros sabem jogar damas
Os prisioneiros podem jogar xadrez
Só os chatos não disfarçam
Os sonhos despedaçam
A razão é sempre do freguês
Eu não tenho onde morar
Moro aonde não mora ninguém
Quem come prego sabe o cu que tem
raciosímio.

Nesse sentido, não é demais reforçar a questão fundamental para este trabalho, no

que se refere à circunscrição do seu estudo a apenas o rock explosivo dos anos 80: o fato de

que, quando se afirma a existência de um “diálogo” crítico em parte da produção desse rock

com o debate, as aspirações, as lutas pela democratização da sociedade (e da cultura), quer-

se afirmar que tanto do ponto de vista da música, quanto da sociedade (particularmente,

aqui, de sua juventude), tais imagens e processos de representação se encontram ampla-

mente coadunados com a emergência de uma sociedade de consumo ou de cultura do con-

sumo, onde abertura política e democratização da sociedade não implicam apenas no anseio

190
à volta ao Estado de Direito, mas, inclusive, a uma completa abertura à participação no con-

sumo.

Com efeito, contestação e consumo implicam, ainda, na exigência de uma reflexão

que procure identificar como as formas de protesto e de luta aqui mediatizadas parecem se

ligar, mesmo, a uma dialética que aponta para o fato de que, assim como a luta política pela

democratização se deu no bojo de uma sociedade de cultura predominantemente e he-

gemonicamente urbana e de consumo, condicionantes pois da própria ação e concepção

políticas; assim, também, a expansão da própria participação no consumo e de uma cultura

urbana massiva necessitou de um nível determinado de participação política por parte dos

agentes sociais urbanos em diversos níveis de representação e da organização da sociedade

civil.

Isto posto, pode-se melhor compreender porque: se, por um lado, a abertura política

e a vertiginosa expansão de uma cultura do consumo no Brasil foram amplamente favorá-

veis ao surgimento e à explosão de um “novo” segmento da manifestação do rock no país,

como já se fez alusão; por outro, as frustrações no âmbito da esfera política e com o recru-

descimento da crise econômica, que gerou um quadro recessivo obstaculizador das condi-

ções de consumo real, possibilitou uma maior abertura, nos MCM, a uma crítica direta, agu-

çada, desabusada e quase sem metáforas na linguagem desse rock no Brasil, inclusive,

numa perspectiva de negação do sistema social tal como ficou configurado anteriormente

fazer parte de uma cultura juvenil, na forma de uma ruptura com o establishment social -

notadamente, isso fica evidenciado a partir de meados da década de 80, com a ampliação do

quadro de insatisfações surgidas como sintoma agudo da crise social naquele momento;

período em que, ao contrário de outros segmentos culturais, o rock vive seu primeiro

191
grande boom comercial, com um nítido domínio do mercado e com uma vasta proliferação

de bandas.

Neste período, pode-se identificar uma ampla incidência no discurso das letras para

a crítica, entre outras, da falência e autoritarismo das instituições do Estado e demais insti-

tuições sociais (família, escola, igreja). No bojo dessa crítica, surge, também, uma crítica

dos valores e do comportamento social difuso em relação ao amor, ao sexo, às drogas etc.;

da violência urbana; da ordem social em geral. No que diz respeito a este último aspecto,

pode-se ilustrar com os versos de Gritos na multidão, de Edgard Scandurra para o lp

“Vivendo e não aprendendo” do Ira! Nas duas últimas estrofes, se canta:

Estou desempregado, estou desgovernado


a fome me faz mal, estou passando mal
mas vou entrar na luta, ou então cair na rua
já vejo a poluição, está ficando perto
este é o coração da máquina do esperto
e aqui estou então, não estou sozinho não
é mais de 1 milhão, ninguém mais pensa em vão
existe confusão
gritos na multidão
é o fim da convenção
gritos na multidão
pobre de ti, irmão!

Tal como foi dito, o teor da crítica no rock assume tanto a forma de um puro ceti-

cismo, quanto a característica de uma crítica potencializadora de um anseio de mudança.

Entre esses pontos assim polarizados, há uma gradação significativa de situações que não

permitem a distinção clara daqueles pólos: tornando o discurso do rock acentuadamente

ambíguo, fragmentário, contraditório; apenas permitindo uma breve aproximação de sua

interpretação em termos de uma maior ênfase em uma ou outra tendência. Independente

disso, os elementos acima e anteriormente identificados como configuradores de uma cons-

192
telação de valores e representações negadores do status quo dominante, são, neste contexto,

pensados em termos de sua tendência a praticar um veio emancipador, em particular,

quando se apresenta por aquela disposição ou anseio à mudança da ordem social estabele-

cida (bem como, pela afirmação de uma postura ou valores assumidos, alternativamente, às

formas opressivas e autoritárias das práticas e valores sociais dominantes). Fica claro, as-

sim, que esses elementos estão sendo observados no interior de um discurso fragmentário,

cujo elo de mediação se configura no âmbito de uma ambígua cultura juvenil e de um coti-

diano caótico, conforme já se pode perceber nas letras acima interpretadas.

Em termos de sua referência às instituições do Estado, pode-se perceber uma mul-

tiplicidade de formas de representação crítica no discurso das letras. Para este momento,

bastaria lembrar algumas dessas formas, no que se refere à desobediência civil, ao anar-

quismo, à violência, ao autoritarismo e aos fenômenos burocráticos. Dentre os discursos

mais representativos de uma visão anárquica e da desobediência civil encontram-se, respec-

tivamente, os das músicas Lugar Nenhum (de Antunes, Gavin, Fromer, Britto e Bellotto),

gravado pelo Titãs no LP “Jesus não tem dentes no país dos banguelas” e Geração Coca-

Cola (de Russo), para o primeiro LP do Legião. Veja-se a seguir:

Não sou brasileiro


não sou estrangeiro
não sou de nenhum lugar,
sou de lugar nenhum
não sou de São Paulo, não sou japonês.
Não sou carioca, não sou português
não sou de Brasília, não sou do Brasil.
Nenhuma pátria me pariu.
Eu não tô nem aí.
Eu não tô nem aqui.

193
Uma das características desse discurso pode ser identificada em seu propósito em se

afirmar a recusa aos sentimentos patrióticos; auto-afirmando-se, assim, um expatriamento

total da “mãe-pátria”. Aliás, essa recusa parece ter, em seus versos finais, uma certa preten-

são em estabelecer uma associação das representações “pátria”, “mãe” e “prostituta”, na

passagem que diz: “nenhuma pátria me pariu” - revelando-se, nitidamente, como uma

paráfrase a uma forma de xingamento popular. Em Geração Coca-Cola pode-se ver uma

forma de desobediência civil, quando se afirma a completa alteração das regras do jogo, em

que agora toda uma “geração”, crescida e amadurecida, dá o “troco” em contraposição ao

que dela se esperava como “futuro da nação”. Observe-se a letra:

Quando nascemos fomos programados


a receber o que vocês nos empurraram
com os enlatados dos U.S.A., de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
comercial e industrial
mas agora chegou nossa vez –
vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.
Somos os filhos da Revolução
somos burgueses sem religião
nós somos o futuro da nação
geração coca-cola
depois de vinte anos na escola
não é difícil aprender
todas as manhas do seu jogo sujo
não é assim que tem que ser?
vamos fazer nosso dever de casa
e aí então, vocês vão ver
suas crianças derrubando reis
fazer comédia no cinema com as suas leis.

A expressão “geração coca-cola” faz alusão a uma situação social vivida no Brasil

nas últimas décadas, cuja característica maior diz respeito ao desenvolvimento de um mo-

delo de crescimento econômico que tanto se valeu de um modelo político-autoritário,

194
quanto de um modelo cívico, de longe, apartado das questões envolvidas em qualquer pro-

cesso de construção da cidadania. É, assim, num sistema social de cidadania “amputada”,

que vai se dá toda uma configuração da expansão do consumo como projeto político da

ditadura militar pós-64: período em que crescem os “filhos da Revolução”, tão imbuídos de

um materialismo burguês, fundado na “nova” ética de um hedonismo consumista, que já

constituem, mesmo, uma geração de indivíduos, símbolo desse processo, a “geração coca-

cola”. O passo à “desobediência” encontra-se no fato de que, embora programada instru-

mentalmente para o consumo, esta “geração” também se apresentaria por um desvirtua-

mento daqueles propósitos iniciais: “cuspindo” de volta o “lixo” recebido e “derrubando

reis” - imagens que, no plano simbólico, prefiguram um quadro de representação de anseios

à alteração da ordem social.

Com respeito ao hiato existente entre cidadão e consumidor na sociedade brasileira,

fruto do projeto autoritário de ampliação do consumo no país recentemente, Santos (1987)

vai afirmar que, ao contrário do que poderia ocorrer num real processo democrático, em

que todo cidadão se reconhece como portador de prerrogativas sociais fundamentais, esse

modelo econômico de expansão do consumo tendeu a subordinar o modelo cívico aos seus

próprios desmandos: “Numa democracia verdadeira, é o modelo econômico que se subor-

dina ao modelo cívico. Devemos partir do cidadão para a economia e não da economia para

o cidadão” (p.5).

Não bastasse isso, o autor vai demonstrar que, mesmo atualmente, a crise econô-

mica e as investidas neoliberais no Brasil só têm “conduzido a certos retrocessos em maté-

ria de conquistas sociais e políticas”. De cidadania completamente “amputada” num pri-

meiro momento, chega-se aos termos atuais de uma “cidadania atrofiada”, em que os indi-

víduos não se apresentam como cidadãos, mas como consumidores usuários: sendo que,

195
como tais, exercitam uma cidadania amplamente estratificada e desigual, entendida aqui

mais pelo fator “riqueza” que pelo princípio dos “direitos essenciais” de “homens livres”

(Haguette apud Santos, op.cit., p.12). E diz, mais uma vez, o autor em relação ao processo

brasileiro:

“Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos


como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante
e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico deli-
rante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das esco-
las, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares
dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma
filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos
finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instru-
mento da buscada ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se um consumidor,
que aceita ser chamado de usuário (p.12-3).

Em consumo, música da banda Plebe Rude para o lp “Nunca fomos tão brasileiros”,

pode-se constatar esse hiato entre cidadão e consumidor, quando diz a letra:

Comprei uma coca


cadê o sorriso?
gastei dinheiro
e fiquei liso
cale a boca e consuma
cale a boca e consuma
você não tem o direito de duvidar
comprei de tudo
a prestação
o SPC
é o meu caixão
cale a boca e consuma
cale a boca e consuma
você não tem o direito de duvidar
consumidor que não reclama
paga filé e come banana
cale a boca e consuma
cale a boca e consuma
você não tem o direito de duvidar.

196
Fazendo eco ao debate levado a efeito por teóricos como Lefebvre, Baudrillard,

Heller, Mészaros, a propósito de uma sociedade dirigida ao consumo, o autor vai contrapor

a imagem de cidadão à de consumidor, mostrando que o indivíduo cidadão é um

“consumidor imperfeito”, porque insubmisso aos desmandos do mercado; ao passo que o

indivíduo que não exerce a sua cidadania se apresenta como “o consumidor mais-que-per-

feito”, pela razão oposta à do primeiro caso. É o que diz o autor em uma passagem de suma

importância:

“O consumo, sem dúvida, tem sua própria força ideológica e material. Às vezes, po-
rém, contra ele, pode-se erguer a força do consumidor. Mas, ainda aqui, é necessário
que ele seja um verdadeiro cidadão para que o exercício de sua individualidade possa
ter eficácia. Onde o indivíduo é também cidadão, pode desafiar os mandamentos do
mercado, tornando-se um consumidor imperfeito, porque insubmisso a certas regras
impostas de fora dele mesmo. Onde não há o cidadão, há o consumidor mais-que-
perfeito. É o nosso caso” (p.41).

Em Esse mundo que eu vivo, de Lobão e Vilhena (LP “Vida Bandida”) e Comida de

Antunes, Fromer e Britto (LP “Jesus não tem dentes no país dos banguelas”), pode-se

observar, respectivamente, tanto a indignação quanto à falta de escrúpulos de uma socie-

dade de mercado que tudo expõe à venda; quanto à reivindicação coletiva, expressa na fi-

gura “a gente”, do respeito a uma mais ampla satisfação das necessidades, que não se res-

tringe à comida, à bebida, ao dinheiro: posto que também se tem necessidade da arte, da

diversão, do prazer. No primeiro caso, se diz:

Pelo inverno nas cidades


eu assisto as transformações
pelos quartos nos hotéis
nos anúncios, nas televisões

197
vendem crimes
vendem inveja
vendem tudo
até ilusões
estão brincando
eu não acredito
penso em tudo
até em revoluções
nos verões pela cidade
eu assisto as evoluções
nas escolas desta vida
nas quadras nas concentrações
eu sei que tudo é possível
é nesse mundo que eu vivo
no outono pelas cidades
eu assisto as demolições
destróem casas
implodem edifícios
não é difícil
pra quem não tem emoções
vendem crises
vendem misérias
vendem tudo em mil prestações
estão brincando,
eu não acredito
penso em tudo até em revoluções.

E, no segundo caso:

Bebida é água
comida é pasto. você tem sede de que?
você tem fome de que?
A gente não quer só comida,
a gente quer comida, diversão e arte.
A gente não quer só comida,
a gente quer saída para qualquer parte.
A gente não quer só comida,
a gente quer bebida, diversão, balé.
A gente não quer só comida,
a gente quer a vida como a vida quer.
A gente não quer só comer,
a gente quer comer e quer fazer amor.
A gente não quer só comer,
a gente quer prazer pra aliviar a dor.
A gente não quer só dinheiro,

198
a gente quer dinheiro e felicidade.
A gente não quer só dinheiro,
a gente quer inteiro e não pela metade.

Uma nota a mais a respeito do uso do binômio consumo e contestação no estudo do

rock brasileiro deve considerar que ele visa exprimir o sentido de um elo mediador entre os

processos de participação na política e de participação no consumo, configurado no con-

texto de uma “mega-sociedade” de globalização econômica e de cultura mundializada

(como já se propôs a partir de Ortiz e Guattari); inclusive, nestes termos, no tocante à crise

atual da modernidade e sua caracterização em uma cultura e política pós-modernas. Aliás, é

bom que se enfatize a forma contraditória, fragmentária, multiforme com que se pode

apreender as representações no discurso do rock brasileiro recente, como já foi apresentado

no início deste capítulo, mantém muito das características do que se ponderou aqui como

pós-modernidade, em particular, como pós-modernidade crítica (Foster e Huyssen):

conflito entre impulsos utópicos e descrença no futuro; criticidade, niilismo, anarco-exis-

tencialismo etc. O retrato melancólico disso pode ser visto em Revanche de Lobão e Vi-

lhena, para o LP “O rock errou”:

Eu sei que já faz muito tempo


que a gente volta aos princípios
tentando acertar o passo
usando mil artifícios
mas sempre alguém tenta um salto
e a gente é que paga por isso
Fugimos pras grandes cidades
bichos do mato em busca do mito
de uma nova sociedade
escravos de um novo rito
mas se tudo deu errado
quem é que vai pagar por isso?
Eu não quero mais nenhuma chance
eu não quero mais revanche

199
A favela é a nova senzala
correntes da velha tribo
e a sala é a nova cela
prisioneiros nas grades do vídeo
e se o sol ainda nasce quadrado
e a gente ainda paga por isso
eu não quero mais nenhuma chance
eu não quero mais revanche
Um café, um cigarro, um trago
tudo isso não é vício
são companheiros da solidão
mas isso foi só no início
hoje em dia somos todos escravos
quem é que vai pagar por isso?

É visível a crítica à idéia de progresso da modernidade, que teria nos escravizado

em seus rituais de busca do mito de uma sociedade renovada pela técnica, que se espelha

nas grandes cidades, espaço de excelência do consumo: em que nos tornamos “prisioneiros

nas grades do vídeo” que “transforma” salas de estar em uma nova cela. E apesar de tudo,

do progresso material, permanecem claras as desigualdades sociais da “velha tribo”, sendo

a favela a nova expressão da senzala. E frente a este quadro geral, só nos restaria a solidão,

da qual “somos todos escravos” hoje. Mas, frente à dimensão dessa grande engrenagem, em

que “bodes expiatórios” pagam o preço da manutenção do establishment, e num tom de-

sencantado e, em parte, relativamente resignado, diz o refrão da música: “Eu não quero

mais nenhuma chance/ eu não quero mais revanche”.

Também com a característica de uma crítica desolada em relação aos progressos da

modernidade, particularmente no que se refere à sociedade capitalista de mercado e às ca-

racterísticas de nossa civilização técnica, destacam-se duas canções do LP “Cabeça Dinos-

sauro”: são, respectivamente, Bichos Escrotos (de Antunes, Britto e Reis) e Homem Pri-

mata (de Britto, Fromer, Reis e Pessoa). Na primeira canção, à polaridade civilização vs.

barbárie ou, também, mundo ordenado vs. submundo, criou-se, paralelamente, a polaridade

200
entre dois tipos de classificação das figuras animais: a dos animais domesticados e a dos

animais infecto-perniciosos, como se pode ver na letra:

Bichos
saiam dos lixos.
Baratas,
me deixem ver suas patas.
Ratos,
entrem nos sapatos
do cidadão civilizado.
Pulgas,
que habitam minhas rugas.
Oncinha pintada,
zebrinha listrada,
coelhinho peludo,
vão se foder!
Porque aqui na face da terra
só bicho escroto é que vai ter!
Bichos escrotos, saiam dos esgotos.
Bichos escrotos, venham enfeitar
meu lar,
meu jantar,
meu nobre paladar.

Em Homem Primata, passa-se a imagem de que, sob o capitalismo, o homem não

pode se libertar de sua brutal condição de um mero predador especulativo e acumulador de

bens que, capaz de destruir violentamente o meio-ambiente e o próprio espaço que ele

constrói, encontra-se regido pela ética individualista de um mundo cruel em que cada um

deve se voltar para si mesmo, com prévia consciência de que Deus está contra todos. Neste

contexto, o homem civilizado é um homem da barbárie, não tendo ainda se libertado de sua

pré-história. Diz a música:

Desde os primórdios
até hoje em dia
o homem ainda faz

201
o que o macaco fazia
eu não trabalhava, eu não sabia
que o homem criava e também destruía
homem primata/ capitalismo selvagem
ôôô
Eu aprendi
a vida é um jogo
cada um por si
e Deus contra todos
você vai morrer e não vai pro céu
é bom aprender, a vida é cruel
Eu me perdi na selva de pedra
eu me perdi, eu me perdi.
I’m a cave man
A young man
I fight with my hands
with my hands
I am a jungle man, a monkey man
concrete jungle!

Com relação a outros elementos da constelação a que se pode fazer referência, no

sentido de sua contraposição aos valores do establishment, percebe-se que eles se encon-

tram, entre outros aspectos não relevados aqui, relacionados entre si e em sintonia com a

disposição geral do universo de representações de um “estar no mundo” político contido no

quadro ambíguo e fragmentário do discurso poético ora em destaque: no tocante, parti-

cularmente, ao dimensionamento de uma consciência e visão de mundos atuais que, de um

lado, tanto possibilita a afirmação da existência do elo mediador ou de um diálogo entre o

rock (como uma expressão da cultura urbana) e certos elementos próprios do mundo de

representações juvenil (caracterizadores de uma cultura jovem, na qual o rock se tem inclu-

ído); quanto, de outro lado, como já se disse, também é capaz de afirmar a existência po-

tencial de uma dimensão crítico-emancipatória em certa tendência das manifestações do

discurso daquele produto cultural. A importância, ainda, deste tipo de investigação de uma

dimensão crítico-emancipatória do discurso, cuja proposição faz eco ao que Jameson de-

202
fende como sendo a articulação de uma hermenêutica negativa com uma hermenêutica

positiva (vide capítulo anterior), necessária à leitura e interpretação críticas, apoia-se, tam-

bém, e fundamentalmente, na consideração dada por Swingewood (op. cit.) às mediações

relacionadas aos fatores de consciência dos indivíduos na sociedade: de que a consciência

do indivíduo em relação ao todo é mediada pelo conhecimento produzido (p.83). A rigor,

isto se apresenta como o aspecto central de preocupação do presente estudo. E, mesmo

quando se sabe que o discurso do rock, assim como muito do mundo de representações da

cultura juvenil, se apresentam como mediação (com potencial crítico) dos aspectos multifa-

cetados do cotidiano, de forma fragmentária, ambígua e, mesmo, caótica, nos termos de

uma caracterização da cultura pós-moderna; ainda assim, a postulação de uma dimensão

crítico-emancipatória desse discurso não deixa de ter pertinência caso seja considerado os

termos do que Foster (op. cit.) e Huyssen (op. cit.) propuseram como fazendo parte de uma

pós-modernidade crítica.

Com referência à família, duas músicas se destacam de um modo exemplar: Família

(de Antunes e Belloto), gravado no disco “Cabeça Dinossauro” e Só as mães são felizes (de

Frejat e Cazuza), que consta do LP “Exagerado” de Cazuza. Em seu aspecto geral, ambas

as canções procedem por um discurso que opõe o universo regrado da família (na

concepção que se tem dela como espaço de garantia de uma base emocional necessária à

produção da subjetividade de seus membros) ao do mundo da rua (visto como lugar de

desafios, de crueldades, de obstáculos a serem vencidos). Disso resulta que o universo

familiar é tido, na concepção elaborada por esse discurso, como acentuadamente limitado e

que não permite aos indivíduos ampliar o conjunto de suas experiências, nem, ao menos,

dar vazão ao jogo multifário de suas emoções. Nesse sentido, e contraditoriamente, a famí-

lia é apresentada como espaço de rotina, de castração e de neurose; onde, em lugar de fa-

203
vorecer uma base de apoio emocional dos indivíduos, capitula-os como ponto de fuga e de

aprisionamento pelo qual eles se protegem das ameaças do mundo externo. Isto pode ser

visto ironicamente nas imagens formadas pelos versos da música Família:

Família, família
papai, mamãe, titia
família, família,
almoça junto todo dia,
nunca perde essa mania.
Mas quando a filha quer fugir de casa
precisa descolar um ganha-pão
filha de família se não casa
papai, mamãe, não dão nenhum tostão.
Família ê
família á
família.
Família, família
vovô, vovó, sobrinha.
Família, família
janta junto todo dia,
nunca perde essa mania.
Mas quando o nené fica doente
procura uma farmácia de plantão
o choro do nené é estridente
assim não dá pra ver televisão.
Família ê
família á
família.
Família, família
cachorro, gato, galinha.
Família, família,
vive junto todo dia,
nunca perde essa mania.
A mãe morre de medo de barata
o pai vive com medo de ladrão
jogaram inseticida pela casa
botaram um cadeado no portão.
Família ê
família á
família.

204
Numa forma diferente de apresentação do universo acomodado da família, a música

Só as mães são felizes estrutura seu discurso, não pela apresentação da família, mas pela

configuração do mundo da rua, do qual a família, aqui expressa na figura materna, seria o

contraponto. Aliás, essa música apresenta em seu discurso um caráter fortemente edipiano,

montado na forma de um tipo acusativo, em que os heróis, apresentados no início, com-

põem toda uma constelação de cultura rebelde no ocidente. Veja-se como isso se dá:

Você nunca varou


a Duvivier às cinco
nem levou um susto
saindo do Val Improviso
era quase meio dia
no lado escuro da vida
nunca viu Lou Reed
“Walkin’on the wild side”
nem Melodia transviado
rezando pelo Estácio
nunca viu Allen Ginsberg
pagando um michê no Alaska
nem Rimbaud pelas tantas
negociando escravas brancas
você nunca ouviu falar em maldição
nunca viu um milagre
nunca chorou sozinha num banheiro sujo
nem nunca quis ver a face de Deus.
Já freqüentei grandes festas
nos endereços mais quentes
tomei champagne e cicuta
com comentários inteligentes
mais tristes que os de uma puta
no Barbarella às quinze prás sete
reparou como os velhos
vão perdendo a esperança
com seus bichinhos de estimação e plantas
já viveram tudo
e sabem que a vida é bela
reparou na inocência cruel das criancinhas
com seus comentários desconcertantes
adivinham tudo
e sabem que a vida é bela

205
você nunca sonhou
ser currada por animais
nem transou com cadáveres
nunca traiu o teu melhor amigo
nem quis comer a sua mãe
só as mães são felizes.

No tocante à sexualidade, também duas canções são aqui demonstrativas da tensão

entre liberação e recalque tanto da sexualidade quanto de sentimentos envolvidos nesta

esfera: são elas Rádio Blá, de Lobão e Arnaldo Brandão (gravada por Lobão e pelo Hanói-

Hanói) e A Dança, de Dado Villa-Lobos, Russo e Bonfá (gravada no primeiro LP do Le-

gião). Em Rádio Blá, pode-se identificar uma crítica do comportamento sexual dentro do

espírito do que Marcuse chamou de dessublimação repressiva (ver capítulo primeiro).

Mentiras, jogos de sedução, usados como forma de manipulação, recalque dos desejos: são

os principais aspectos de acusação do tipo de comportamento da personagem feminina a

que se refere a letra - vivendo-se, assim, uma dimensão afetiva altamente conflitiva e neu-

rotizante no processo (processo, esse, que não se confunde, em nenhum aspecto, com o

feminismo ou com qualquer processo de uma manifestação real liberação sexual). Diz a

canção:

Ela adora me fazer de otário


para entre amigas
ter o que falar
é a onda da paixão paranóica
praticando sexo
como jogo de azar
uma noite ela me disse
quero me apaixonar
como quem pede desculpas a si mesmo
a paixão não tem nada a ver com a vontade
quando bate é o alarme de um louco desejo
não dá para controlar,
não dá/ não dá pra planejar

206
eu ligo o rádio
e blá, blá
eu te amo
Sua vida burguesa é um romance
um roteiro de intrigas
pra Felini filmar
cercada de drogas, de amigos inúteis
ninguém pensaria que ela quer namorar
reconheço que ela me deixa inseguro
sou louco por ela e não sei o que falar
o que eu quero é que ela quebre a minha rotina
que fique comigo e deseje me amar.

Em A Dança, uma verdadeira constelação de elementos encontra a sua prefiguração

crítica: vida moderna e materialismo burguês compõem um mundo de preconceito,

machismo, manipulação de sentimentos, solidão, hipocrisia; ao lado de drogas, idéias equi-

vocadas, rebeldia consentida:

Não sei o que é direito


só vejo preconceito
e a sua roupa nova
é só uma roupa nova
você não tem idéias
p’rá acompanhar a moda
tratando as meninas
como se fossem lixo
ou então espécie rara
só a você pertence
ou então espécie rara
que você não respeita
ou então espécie rara
que é só um objeto
p’rá usar e jogar fora
depois de ter prazer.
Você é tão moderno
se acha tão moderno
mas é igual a seus pais
é só questão de idade
passando dessa fase
tanto fez e tanto faz.
Você com as suas drogas

207
e as suas teorias
e a sua rebeldia
e a sua solidão
vive com seus excessos
mas não tem mais dinheiro
p’rá comprar outra fuga
sair de casa então
então é outra festa
é outra sexta-feira
que se dane o futuro
você tem a vida inteira
você é tão esperto
você está tão certo
mas você nunca dançou
com ódio de verdade.
Você é tão esperto
você está tão certo
que você nunca vai errar
mas a vida deixa marcas
tenha cuidado
se um dia você dançar.
Nós somos tão modernos
só não somos sinceros
nos escondemos mais e mais
é só questão de idade
passando dessa fase
tanto fez e tanto faz.
Você é tão esperto
você está tão certo
que você nunca vai errar
mas a vida deixa marcas
tenha cuidado
se um dia você dançar.

Várias letras do rock no período estudado apresentam um discurso que, em diversas

situações, exprimem representações que procuram afirmar um determinado grau de auto-

nomia pessoal. Isto pode ser observado em músicas de praticamente todas as bandas de

rock. Em Baader-Meinhof Blues do Legião Urbana (Villa-Lobos, Russo e Bonfá, lp

“Legião Urbana”) se canta: “Não estatize meus sentimentos/ p’ra seu governo,/ o meu Es-

tado é independente”. Em Rebelde sem Causa, de autoria de Roger para o lp “Nós vamos

208
invadir sua praia”, da banda Ultraje a Rigor, observa-se a questão da autonomia posta num

tom bastante peculiar à banda, o do deboche. A situação apresentada na música é a de um

jovem vivendo uma condição bastante singular: aquela em que um quadro geral de mate-

rialismo consumista, tão presente nas aspirações da maioria da juventude nas sociedades de

consumo atuais, inclusive com a completa colaboração e compreensão dos pais, leva este

jovem a se queixar de que nestas condições de harmonia e consumo, não vai poder crescer,

amadurecer, enfim, criar uma identidade própria. Alguns versos desta música já bastam

para se ter uma dimensão de sua crítica irônica:

Meus dois pais me tratam muito bem (...)


Meus dois pais me dão muito carinho (...)
Meus dois pais me compreendem totalmente (...)
Meus dois pais me dão apoio moral (...)
Minha mãe ainda me deu essa guitarra
ela acha bom que o filho caia na farra
E o meu carro foi meu pai que me deu
filho homem tem que ter um carro seu (...)
Me dão dinheiro pra eu gastar com a mulherada
Eu realmente não preciso mais de nada
Meus pais não querem, que eu fique legal
Meus pais não querem, que eu seja um cara normal
não vai dar, assim não vai dar
Como é que eu vou crescer sem ter com quem me revoltar (...)
Pra eu amadurecer sem ter com quem me rebelar (...)

Uma das letras mais significativas nesse sentido, da autonomia pessoal, é a da mú-

sica O tempo não para, de Brandão e Cazuza (lp “Fanzine” do Hanói-Hanói” e “O tempo

não pára” de Cazuza), onde se traduz uma multiplicidade de sentimentos contraditórios,

habitando um mesmo universo: em que, por exemplo, ao passo que se demonstra sinais de

cansaço pra lutar, nega-se a condição de derrotado. E, ao mesmo tempo, ainda, a posição de

independência ou autonomia pessoal é afirmado através da voz do excluído, na forma

209
como já foi acima apresentado no exemplo de outras canções. Outrossim, um discurso me-

lancólico e cético empresta um tom nitidamente anárquico-existencialista à crítica do esta-

blishment e de um cotidiano de simulacros: em que o futuro parece repetir o passado e o

mundo se mostra como um “museu de grandes novidades”. Veja-se o que diz a música:

Disparo contra o sol


sou forte, sou por acaso
minha metralhadora cheia de mágoas
eu sou um cara
cansado de correr
na direção contrária
sem pódium de chegada ou beijo
de namorada
eu sou mais um cara
mas se você achar
que eu estou derrotado
saiba que eu ainda estou rolando os dados
porque o tempo não pára
dias sim, dias não
eu vou sobrevivendo
sem um arranhão
da caridade de quem
me detesta
a tua piscina está cheia de ratos
suas idéias não correspondem aos fatos
o tempo não pára
eu vejo o futuro repetir o passado
eu vejo um museu de grandes novidades
o tempo não pára
Eu não tenho data pra comemorar
às vezes, os meus dias são de par em par
procurando agulha no palheiro
nas noites de frio é melhor nem nascer
nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer
e assim nos tornamos brasileiros
te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro
transformam um país inteiro num puteiro
pois assim se ganha mais dinheiro.

210
Outra canção que parece afirmar, de modo significativo, um discurso revelador da

independência pessoal (autonomia) é Nunca existiu o pecado, de Frejat e Goffi, para o LP

“Carnaval” da banda Barão Vermelho. Pode-se tomar o forte teor existencialista da letra,

onde se observa a presença nítida da categoria tempo, através da qual se identificam os

elementos da tradição, do preconceito e da repressão à sexualidade e à liberdade de expres-

são. Nesse quadro de aspectos definidores do establishment, enuncia-se que a saída é pôr-se

à margem “desse mundo escuro e sujo”, afirmando a coragem de amar e da não admissão

da existência de pecados. Também marcado de um tom melancólico, atesta-se que a

humanidade encontra-se menos utópica, menos delirante; e que não aprendeu, sequer, as

questões básicas para um existir mais liberto. Por isso, se denuncia o grande vício da espe-

rança, e o cuidado necessário frente as suas traições; mas, logo se afirma que não se deve

deixar dominar pelas decepções a se enfrentar. É o que se pode observar abaixo:

A rapidez velha do tempo


revive inquisições fatais
o mesmo ciclo de revoltas
e preconceitos sexuais
hum!
por mais liberdade que eu anseie
esbarro em repressões fascistas
mas tô à margem disso tudo
desse mundo escuro e sujo
não tenho medo de amar
pra mim nunca existiu o pecado
não
essa vida é uma só
nesse buraco negro eu não caio
a esperança é um grande vício
cuidado com suas traições
e não deixe de cuspir no lixo
o gosto amargo das decepções
não tenho medo de amar
pra mim nunca existiu o pecado
não

211
essa vida é uma só
nesse buraco negro eu não caio
a humanidade está um porre a menos
não aprendeu a respirar
quebrou prá esquina errada
e avançou os sinais.

Finalmente, a título apenas de ilustração da existência de um discurso contraten-

dente nas manifestações do rock, atualmente, no Brasil da década de 90, pode-se fazer re-

ferência ao desenvolvimento de muitos dos trabalhos levados a efeito tanto pelas veteranas

bandas dos anos 80, que já sobrevivem a uma década de grande sucesso de público (Titãs,

Paralamas do sucesso, Legião Urbana, Lobão e outras); quanto pelo surgimento de novos

nomes no cenário musical do rock - aliás, com trabalhos bastante singulares no tocante à

fusão de estilos e às características do discurso utilizado nas letras. Nesse sentido, poder-se-

ia destacar dois importantes exemplos da experiência musical recente no Brasil envolvendo

elementos do rock: Gabriel, o pensador e Chico Science. Evidentemente, um estudo mais

adequado das tendências recentes, demandaria um esforço tal de suas configurações atuais,

que em muito fugiria aos objetivos iniciais do presente trabalho. Por certo, muitos dos

aspectos aqui apresentados a respeito do rock da década de 80, podem ser observados como

características do processo atual; contudo, há um novo contexto de aspectos que exigiria a

atenção para com “novos” elementos em muito necessários à análise do rock dos anos 90. E

isto levaria a um outro trabalho, diferente daquele a que aqui se propôs.

Sendo assim, em termos de ilustração apenas dos desdobramentos atuais do rock no

Brasil, fica-se aqui com a citação de um hit recente de uma das mais importantes bandas

surgidas desde a década de 80: Legião Urbana. Trata-se da canção Perfeição composta por

Dado Villa-Lobos, Russo e Bonfá, gravada no disco “O descobrimento do Brasil”. Se se

tomar atenção para o quadro acima prefigurado daquele discurso contratendente, pode-se

212
fazer alusão à existência nessa música de algumas das características anteriormente apre-

sentadas neste estudo. Nesse sentido, abstraindo-se de qualquer esforço de interpretação

dos elementos potencialmente crítico-negadores do establishment contidos na letra de Per-

feição, e apenas enfatizando que se tome atenção para com os elementos que compõem

toda a constelação de valores configuradores do que se considerou como um mundo de

representações manifesto tendencialmente no que está sendo chamado de cultura juvenil; e

que se expressa por mediações em formas de manifestações artísticas, como no caso do

rock, veja-se o que diz a canção:

1./ Vamos celebrar a estupidez humana/ A estupidez de todas as nações/ O meu


país e sua corja de assassinos/ Covardes, estupradores e ladrões/ Vamos celebrar
a estupidez do povo/ Nossa polícia e televisão/ Vamos celebrar nosso governo/ E
nosso Estado que não é nação/ Celebrar a juventude sem escola/ As crianças
mortas/ Celebrar nossa desunião/ Vamos celebrar Eros e Thanatos/ Persephone
e Hades/ Vamos celebrar nossa tristeza/ Vamos celebrar nossa vaidade./ 2./
Vamos comemorar como idiotas/ A cada fevereiro e feriado/ Todos os mortos
nas estradas/ Os mortos por falta de hospitais/ Vamos celebrar nossa justiça/ A
ganância e a difamação/ Vamos celebrar os preconceitos/ O voto dos
analfabetos/ Comemorar a água podre/ E todos os impostos/ Queimadas,
mentiras e seqüestros/ Nosso castelo de cartas marcadas/ O trabalho escravo/
Nosso pequeno universo/ Toda hipocrisia e toda afetação/ Todo roubo e toda a
indiferença/ Vamos celebrar epidemias:/ É a festa da torcida campeã./ 3./ Vamos
celebrar a fome/ Não ter a quem ouvir/ Não ter a quem amar/ Vamos alimentar
o que é maldade/ Vamos machucar um coração/ Vamos celebrar nossa bandeira/
Nosso passado de absurdos gloriosos/ Tudo que é gratuito e feio/ Tudo que é
normal/ Vamos cantar junto o Hino Nacional/ (A lágrima é verdadeira)/ Vamos
celebrar nossa saudade/ E comemorar a nossa solidão./ 4./ Vamos festejar a
inveja/ A intolerância e a incompreensão/ Vamos festejar a violência/ E esquecer
a nossa gente/ Que trabalhou honestamente a vida inteira/ E agora não tem mais
direito a nada/ Vamos celebrar a aberração/ De toda a nossa falta de bom senso/
Nosso descaso por educação/ Vamos celebrar o horror/ De tudo isso - com festa,
velório e caixão/ Está tudo morto e enterrado/ Já que também podemos celebrar/
A estupidez de quem cantou esta canção/ 5./ Venha, meu coração está com
pressa/ Quando a esperança está dispersa/ Só a verdade me liberta/ Chega de
maldade e ilusão./ Venha, o amor tem sempre a porta aberta/ E vem chegando a
primavera -/ Nosso futuro recomeça:/ Venha, que o que vem é perfeição.

213
Por certo, as interpretações elaboradas aqui não têm qualquer propósito de esgotar

as várias possibilidades de análise do universo de representações das letras do rock brasi-

leiro. Longe disso, pretendeu-se não mais que apresentar um quadro bastante limitado de

elementos daquele universo; que, todavia, pudesse ser favorável à identificação de certa

dimensão crítico-emancipatória no discurso do rock: apreendido neste estudo em termos de

sua configuração crítica com o processo das mediações estabelecido, como se disse, tanto

no âmbito da cultura jovem, quanto de aspectos da vida cotidiana.

Outrossim, tem-se consciência de que o vasto repertório do rock brasileiro é capaz

de oferecer um quadro muito mais amplo de elementos de representação como exemplo

para análises diversas e que se teve de proceder por uma significativa redução do mesmo;

além da omissão de nomes e trabalhos que figuram por sua enorme importância no cenário

musical do rock no Brasil.

De algum modo, não houve mesmo interesse em se assumir, de forma categórica,

uma conclusão definitiva do processo; mas, sim, de apreendê-la no âmbito de sua própria

parcialidade e transitoriedade. De resto, acredita-se ser as letras aqui apresentadas repre-

sentativas de certa tendência do discurso do rock ora em evidência; tendo, por isso mesmo,

validade e coerência a referida parcialidade de suas conclusões. Com efeito, é por se consi-

derar tais ponderações, que se pretendeu finalizar este capítulo com os últimos versos de

Música Urbana 2, quando se canta:

Não há mentiras nem verdades aqui/ só há música urbana.

214
CONCLUSÃO

Sob o aspecto de que os MCM não são expressões totais e monolíticas da manifes-

tação simbólica, e que tais meios só produzem a partir das mediações que mantém com o

processo social dinâmico, reproduzindo e transmitindo representações sociais que se confi-

guram no âmbito da vida cotidiana e de suas prefigurações no tocante às classes e grupos

sociais; aqui pensados nos termos de um dialogismo heteroglóssico e de uma exogamia

cultural - como já se viu assinalado, respectivamente, em Bakhtin e Canevacci -, bem

como, das imagens dialéticas como "gesto" semântico-político do texto e do inconsciente

político na dimensão do "horizonte" social de uma "hermenêutica utópica" que se caracte-

riza como ideologia da forma (campo de imagens sígnicas contraditórias coexistentes) -

como em Benjamin e Jameson -, considera-se que a veiculação ou programação de deter-

minada manifestação ou produção cultural se faz, também, como extensão a certas formas

de expressão culturais que podem se encontrar prioritariamente vinculadas a determinados

grupos ou a padrões culturais de determinados grupos não necessariamente hegemônicos:

inclusive, de grupos em princípio marginalizados (evidentemente, considerando-se o fato

de que o que passa pelos MCM sofre um dado nível de reelaboração, administração e pro-

gramação).

Por mais que, uma vez reelaborados pelos MCM, os produtos culturais sofram a

operação do que Baudrillard chama de simulacro e a Escola de Frankfurt caracteriza como

integração, a aceitação incondicional de tais formulações implica cair numa perspectiva

unilateral e monolítica dos media; não refletindo, assim, a dimensão em que as próprias

transformações e dinamismo dos produtos culturais aí reelaborados e veiculados não podem

ser apreendidos apenas em termos mercadológicos mas, fundamentalmente, em consi-

215
deração àquele elo mediador que se estabelece entre a dinâmica e expressão culturais e os

processos de inovação técnica, de produção industrial e de circulação no âmbito da cultura

comercial nas sociedades urbano-industriais capitalistas. Devendo-se, nesse sentido, refletir

a potencialidade do dialogismo e exogamia culturais atuais como instância que marca os

MCM como expressão de uma multiformidade que se caracteriza e se manifesta, inclusive,

na própria padronização que tais meios logram operar.

Com efeito, aquilo que os MCM disseminam no conjunto amplo da sociedade, mais

especificamente, no caso das sociedades urbano-industriais, é algo elaborado a partir da

própria tecitura desse espaço-tempo. Nesse sentido, é entre a própria multiface do processo

social (tanto em seus elementos mais claramente visíveis no cotidiano, quanto naqueles não

facilmente percebidos em seus interstícios) e sua apropriação, reelaboração, distorção, mas,

também, revelação e expressão mediadas pelos MCM e, também, pela reação, aceitação,

indiferença do público no conjunto social, que se vai encontrar o referido diálogo: e não

entre canal transmissor e mecânico, de um lado, e indivíduo platéia (ouvinte ou espectador),

de outro. Para escapar à pura tautologia de se afirmar que não há imediaticidade e

espontaneidade no diálogo emissor-receptor nos media, deve-se perceber que o diálogo

possível encontra-se posto em outra dimensão: a dos valores e representações sociais cujo

processo de mediação homogeneiza e/ou diferencia, de um ponto de vista da formação

social, indivíduos, grupos e classes sociais, por um lado; assim como, por outro lado, da

perspectiva da elaboração dos produtos culturais veiculados pelos MCM, deve-se afirmar

que estes se mostram, essencialmente, como mediações do próprio processo social, em sua

grande diversidade; mesmo em suas formas padronizadas de cultura comercial.

Partindo desse pressuposto é que se tomou como referência as idéias tanto de

"indústria da consciência" (Enzensberger), no tocante aos produtores culturais, quanto de

216
"esfera pública não-organizada" e de "regressão produtiva", como manifestação de espon-

taneidade das massas (Prokop); como também, da acepção de que a consciência da relação

do indivíduo com o todo encontra-se mediada pelo conhecimento e pelo saber que se sis-

tematiza (Swingewood). Aliás, convém lembrar a passagem em que Swingewood (op. cit.)

afirma que não são os MCM que mantêm o capitalismo, mas a própria sociedade civil é que

o faz, em meio às próprias crises de legitimação do Estado capitalista (p.73): por isso, é

imperioso, para o autor, a discussão a propósito da inseparabilidade entre individualidade,

ação e alfabetização, como se viu.

Isto posto, o procedimento adotado neste estudo assumiu a perspectiva de uma

análise do discurso do rock nos anos 80 no Brasil (particularmente, a partir de 85), onde se

buscou apreender formas de representação do cotidiano urbano brasileiro, tomando-se

como referência os aspectos que concernem aos fenômenos de desterritorialização e mun-

dialização cultural no capitalismo atual. Evidentemente, tais discursos não compõem uma

unidade específica e coerente do conjunto das representações sociais no cotidiano; tratando-

se, isso sim, de um discurso altamente contraditório e fragmentário.

No que pese a forma acentuada destas características, vislumbrou-se a identificação

de um universo ou constelação de elementos que povoariam aquela forma de discurso em

sua crítica do cotidiano, e que se configuraria nos termos do elo mediador com o que se

poderia denominar, a partir da literatura pertinente ao assunto, de cultura jovem ou mundo

das representações da juventude. Por outro lado, partiu-se do reconhecimento de que

qualquer produto cultural hoje, no que se refere ao circuito da cultura urbana, encontra-se

mediado por processos técnicos e de produção que envolvem, necessariamente, a sua rela-

ção com os fatores comerciais da cultura produzida no âmbito dos MCM: por isso a opção

por um produto e um momento que envolvem a sua grande aceitação de mercado.

217
Nesse sentido, ainda, é que se tem a idéia de que, embora fragmentária e contradi-

tória, as representações de imagens do cotidiano têm operado, entre outros aspectos, uma

potencialidade crítico-emancipatória no interior desse meio massivo de comunicação, nos

termos do que foi apresentado anteriormente como uma teoria social crítica da comunica-

ção como veio emancipador; na medida em que, por vezes, estabelece uma crítica negativa

ou mesmo negadora dos valores sociais do establishment, capaz de inspirar "impulsos

utópicos" (na forma jamesoniana de uma "hermenêutica utópica), ainda que contraditoria-

mente isto se dê, também, marcado por formas desencantadas de observação do cotidiano.

Por fim, deve ficar claro que o que se procurou elaborar aqui foi uma discussão a

propósito de processos mediados de representação crítica em referência ao cotidiano urbano

brasileiro nas letras do rock nos anos 80, representação esta configurada no presente

trabalho como passível de operar uma potencialidade crítico-emancipatória no âmbito deste

produto da comunicação massiva. Não se trata, pois, de uma discussão a respeito da recep-

ção ou consumo do texto; mas, longe disso, de um esforço de investigação a propósito do

poder do texto: como elaboração mediada de imagens críticas do mundo social.

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