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“Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que te faça
particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus dons, tu os desveles,
conquistes e possuas por ti mesmo. Natureza definida de outras espécies em
leis por mim estabelecidas. Mas tu, a que nenhum confim delimita, por teu
próprio arbítrio, entre as mãos daquele que te colocou, tu te defines a ti
mesmo. Te pus no mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que
contém o mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de
que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil
escultor, descubra tua própria forma...”
Para todos aqueles que crêem. (Os que não crêem, merecem-se.)
Início pela primeira vez, fim de março de 1.998 – Término Junho de 2.000.
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ELE está no meio de nós
Introdução
(Cântico Hassídico)
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grego) iriam, certamente, ganhar um discreto motel de luxo das imediações da
Avenida JK, onde passariam mais uma noitade de amor e luxúria inesquecível.
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marido pato de todos os jeitos e posições). Para ele, no entanto, estranhamente
tudo aquilo era apenas mais uma mera fuga. Não passava de um deleite de
ocasião, um desfrute que apenas somava no contexto lógico-sequencial que
vivenciava. Nem era mais tão importante assim. Talvez uma mera e
fisiológica trivial oxigenação de cadarços íntimos. Ultimamente e, sem fazer
alarde, sendo discreto ao seu jeito, para não dar na vista; para não estimular
acirramentos de ânimos ou pôr desconfianças em arranjos pecuniários de
meio, estava com alguns problemas ainda não inteiramente decodificados
numa sintonia fina de seu interior algo transido. Não problemas financeiros,
pois tinha crédito internacional e outro montante em grandioso valor que
arrancava do governo corrupto até as vísceras, por competente tráfico de
influência de amigos e alta podridão que entrevava o executivo municipal sob
a guarida da quadrilha de um turco ladrão e sua máfia neoliberal da Capital
Paulista, tornando a cidade de tantos contrastes sociais um verdadeiro esgoto a
céu aberto, com mais de dez mil mendigos e outros graves problemas de falta
de sensibilidade administrativa estatal e noções primárias de humanismo
cívico. Coisa de Terceiro Mundo mesmo.
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criando uma espécie de impasse tragicômico. Era o Ser Humano entre o caos e
o nada, quase que um simples Eco sem saída.
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Existir a que será que se destina?
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morte da primeira mulher de sua vida, a Professora-Doutora Carolina Fé, sua
primeira namorada desde a saída de sua aldeia nativa de Itararé – amor a
primeira vista - seria livre e poderia alçar vôos maiores.
Mas, afinal, que vôo é esse que nos leva para dentro de nós?
Como o sol, a loucura tem sua própria órbita. A mente sensível que se abre
para uma idéia, pois estranha que seja, jamais voltará ao seu tamanho
originariamente crível. Era o caso dele. Mas ele mal sabia o que sabia.
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Só compreendia, só entendia de saber que era um nó gótico no
mais íntimo de si. Estava perdido e não sabia por quê. Era bom mas não sabia
para quem. Era ser humano e não sabia exatamente o quê de exato e completo
era Ser inteiramente isso. Ou o que fazer disso. Há males que vêm pra bem?
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interfone o conhecido e gentil paroara Adalberto, encarregado das chaves e
dos préstimos costumeiros de rotina diária.
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acreditou. Então haviam os sensíveis que davam um pouco de si pelos
desafortunados? Que lição e tanto! Por um momento chocou-se. Levou um
susto com o que sentira do que vira!
LÁ ESTAVAM ELES!.
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Depois variara momentos, caíra nas redes do mundo, nas entranhas pouco
éticas do lucro fácil. E os desacertos do mundo não fazem bem à toda alma
humana. Criam ranço e certos disparates em fluxos de inconsciências por
traumas mal resolvidos. Quem é marcado pela fome, pelo abandono, pela
injustiça, sabe o peso disso. O medo de se perder é eterno. E ele mudara
muito. Mas não mudou tudo a ponto de secar inteiramente o Dom que
possuía, no mais íntimo gomo de um favo de si. Se bem que ,de uns tempos à
esta parte, era só um Ser Humano bem atrofiado pelo volume de negócios e
grana alta. Luxo, riqueza, poder. Que mal isso pode fazer ao homem. Riquezas
injustas? São Lucas falou disso nos Evangelhos. Riquezas impunes? O
intelectual Millôr Fernandes tinha escrito algo a respeito. Falácias de
intelectuais que gostavam de pobres?. O país era um caldeirão de
descamisados. Nem só por isso, mas o buraco da agulha se tornara menor, e o
camelo do esquecimento social cristão criara carcovas de irrazões e medos de
limites racionais.
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-Vou descer. Até qualquer dia desses, meu bom rapaz.
-O sr. virá tomar seu uísque amanhã, antes do almoço,
como de praxe há mais de dez anos?
-Nunca mais! Nunca mais! Boa Noite, Ariovaldo. Desculpe
alguma coisa, por favor. Tenho que ir-me...
Tinha visto uma luz no fim do túnel e tinha que se preparar para
ir ao encontro dela. Era um “chamado”?
E a seguiria até os últimos dias de sua vida, que até então tinha
sido entregue à mesmice trivial de coisas pífias, ignóbeis, vis, nulas.
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UM
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Agora via tudo com olhares novos e limpos, puros, sadios. Sabia o que queria.
E ai de uma mulher que queira impedir um homem de ser o que ele é, quando
ele descobre algum segredo, algum mistério, alguma sagração de exposta
grandeza sensorial íntima exacerbada.
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Enquanto a esposa xucra para o seu nível cultural e de intelecto privilegiado,
nervosamente ligava o rádio e caçava no controle remoto adjunto ao volante
esportivo o dial de uma estação de FM com música brega-chique, ele
continuava olhando as ruas úmidas e entregues à fauna mista, entre ratos
humanos, baratas de lixões e toda sorte de gentinha, vultos imóveis entre
sombras, a ralé. Os miseráveis. A noite ia ser longa. Ele perdera o tesão pelas
coisas terrestres. Lá fora, aqui e ali, via tudo novamente. Sim, lá estavam
ELES. Sob a cobertura de precária lona encardida talvez roubada de um rueiro
carro de hot-dog, dormiam outras pessoas sem eira nem beira. Párias – a
escória. Parecia mais uma família de migrantes, levas de fugidos do nordeste,
por causa do modelo econômico agrário-exportador que facilitava o sucesso
da região sudeste, principalmente São Paulo.
Reparou que a esposa tinha acendido um cigarro de cravo indiano que pregava
adorar. Ele continuou como se sabiamente rendido em si. Se assuntando.
Medindo os sentimentos revisitados. O som de uma dançante música pop
espanhola enchia o ambiente seguro do veículo. Perto do sujo Largo da Batata,
no bairro de Pinheiros, viu uns coitados dormindo em bancos de praças
precárias, cobertos com jornais e por cima sacos preto de lixo disfarçando os
rejeitos humanos sob a marota garoa paulistana. Segurou o ímpeto para não
revelar-se, estragando tudo.
Conteve-se para não acordar aqueles seres humanos – sim, seres humanos! – e
levá-los para um hotel, pagar-lhes um mês de cama e comida e coragem, dar-
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lhes identidade de serventia, abraça-los como irmãos. Por ele levaria até sua
ostensivamente rica mansão no nobre bairro do Morumbi, ali pertinho.
Olhou para a Dagmar Marlene e ela parecia feliz, cantarolando o refrão
repetitivo da musiquinha chata, demodê, apesar de rotulada de tecno-pop. Viu
novamente: Distribuíam comida para um catador de lixo de rua, que dormia
com um cachorro sarnento sob seu carrinho de madeira cheio de lixo. Tinha
achado seu farol norteador.
Iria tomar uma ducha na piscina quente, depois tentaria assistir um filme de
terror na tevê a cabo. Não gostava quando seu maridão emburrava. Ele vinha
tendo essas esquisitices agora. Teria outra? Chegou a pensar nessa hipótese.
Mas ela era boa de cama e sugava-o de um jeito, que não sobraria nada para
ninguém. E depois, também contava com a hipótese de que ele mal-e-mal
duraria uns vinte anos se tanto – se precisasse ela mesma o envenenaria aos
poucos - quando então ela ficaria livre com a fortuna que lhe caberia, e assim,
poderia cair fora, ir morar em Londres, arrumar parceiro jovem, ser feliz. Mal
sabia ela que nunca sairia do lugar que estava, e esse era o problema. Para
qualquer lugar que fosse, drogas, viagens, aventuras sexuais, teria que se levar
consigo. E sua vida desregulada era a sua própria cruz de exato tamanho.
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Paulo de Tarso estava aprendendo depressa a lição daquela noite especial. Não
titubeou um só segundo. Tinha descoberto a cura da dor de sua existência,
deduziu sonhador. Sabia o que queria agora.
Dirigiu-se ao escritório central da casa, uma saleta de seis por seis, piso de
lambris de peroba-brava, quatro metros de altura, com uma janela dando para
a piscina em formato de losango, onde começou a formatar atendimentos
jurídicos e formais de sua legitimidade adquirida naquela noite e começo de
madrugada, quando deixaria resíduos de pertencimentos nos atos legais,
peremptórios, preparando-se para deixar de ser, para sempre, o que até então
fora, entre mitos boçais pelos quais até inutilmente lutara em vão, pois nada
daquilo valia a pena, no apurado final de todo um viver medíocre. Seu
balancete era que vivera em vão, usurpando do Caixa Dois da vida. Como não
pudera compreender isso? Mas não era tarde demais. Quem somos? Existe
uma natureza perversa no humano, ou também somos um produto histórico
com capacidade de auto-regeneração?
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DOIS
-Mas o sr. não tinha reunião com aquele Vereador médico do Butantã e aquele
Secretário de Finanças da Prefeitura, para entregar a propina do que eles
exigem para dar o Habite-se do Condomínio 31 de Março?
-Isso não tem importância agora, querida. Nada mais tem. Vou sair dos
negócios para não mais voltar. Tudo acabado. Por favor, encaminhe também
para o Escritório da Dra Ana Laura Cedrez e do Dr. Danúbio Spínola os
papéis que estão nessa pasta rosa aí em cima de sua escrivaninha. A pasta
verde mande pro Gerente de Pessoal. O arquivo encaminhe pro Mestre de
Obras.
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-O sr. viu passarinho verde, brincou a secretária, suspeitando que alguma coisa
não ia bem – estava estranhando – Era uma velhota na casa dos cinqüenta
anos, que fora chefe de pessoal por décadas na empresa e para ali fora
deslocada para servi-lo de perto, até que por sugestão própria da nova esposa
do dono, não querendo correr risco de ser substituída por igual cria.
-Você não vai acreditar, Maria, mas eu vi muito mais do que isso. Vou largar
tudo. Vou sair de circulação. Vou cair fora enquanto é tempo, enquanto posso.
-O sr. está com alguma doença grave? Os negócios não vão bem? Algum
problema com a CPI da Corrupção da Câmara Municipal atingindo seus
negócios? A propina pra Policia Federal da Alfândega do Aeroporto de
Cumbica foi pouca? – Ela sabia do que falava. Se ela abrisse o bico, por saber
o que sabia, teria que pedir ajuda do Serviço de Proteção à Testemunha.
Caçou de tentar ouvir a resposta, captar a justificativa.
-Deus do céu. Se eu não o conhecesse por vinte anos, diria que o sr. ou está
ficando louco, ou está para morrer... Quem sabe levou um choque total.
-De tudo um pouco, querida. Ligue pro meu filho primogênito, o Celso Felipe.
Trouxe uns papéis de casa. Você pode digitar pra mim? Ao lê-los você vai
compreender um pouco mais a mudança que mexe com minhas estruturas.
Não sou o mesmo de ontem. Mas sou eu mesmo em mim. Não seria mais o
mesmo nunca. Não vou almoçar no La France desta vez. Cancele o ritual todo.
Vou ficar despachando daqui. Daqui a uns dias você vai ficar livre de mim
para sempre.
-Credo – Deusolivre e guarde! Não fale assim, Paulinho!. Onde já se viu isso?
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Quando queria ser gentil e mais íntima, quando via o patrão chateado ou com
problemas, Maria Teresa com educada confiança respeitosa o chamava assim,
propositalmente, de Paulinho.
-Dr. Paulo o sr. está misterioso. O que é que, afinal, está acontecendo com o
sr? Estou ficando preocupada...
-Você nem pode imaginar meu bem – Dr. Paulo de Tarso a tratara de “meu
bem” quando queria ser doce, polido e gentil, mais do que costumeiramente o
era, em que pese nunca se deixasse fisgar por ser íntimo total de empregados.
Chorou como uma criança escondida de si. Chorou por todos os órfãos,
viúvas, pobres e renegados do mundo. Chorou como nunca chorara em sua
vida. Tinha o coração aberto apesar de pisado; tinha a mente entrevada mas a
se limpar, oxigenando-se: tinha a alma aberta mas com fissuras que buscavam
consertos terminais.
Agora era um outro. Sentia que era. Tinha que o ser. Que o bom Deus o
ajudasse. Nunca pensou tanto em Deus como nas últimas horas. Pensara mais
em Deus naquele bendito final de semana com insônia acirrada do que a vida
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toda de mais de meio século entregue ao nada, ao confinamento trivial do
funesto, do hediondo, do ridículo. Tinha sido assim um depauperado, apesar
das etiquetas, das aparências
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TRÊS
Foi uma reviravolta geral no cenário todo. Parecia que um circo existencial
estava pegando fogo. Seu telefone estava grampeado de alguma maneira? As
paredes têm ouvido?
Os telefones tocaram a tarde toda, até a entrada da noite fria de outono. Eram
retornos de transtornos previsíveis. Tudo para ela era novo, ao mesmo tempo
que previsível.
Nunca sabia tão bem o que queria e como conseguir dar o primeiro e
importante passo decisivo. Estava tão resoluto, decidido e determinado – que
sempre o fora, de certa forma – que até disse um baita palavrão cabeludo
(aprendido nos jogos de tranca num clube rural de Itararé), quando a patroa
chata ligara pedindo aumento do limite de crédito em um dos sete cartões, pois
tinha que operar o cãozinho podlle de uma seqüela reumática no fêmur, oiis o
pobre animalzinho de pedeigree caíra ao atacar rueiros gatos vadios no quintal
florido da mansão.
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bem chorar. E iria chorar muito nos próximos dias. Iria sofrer muito,
compreendeu, finalmente. Teria que enfrentar um mundo novo, ponderou.
Saberia ser forte. Era exatamente isso o que mais queria. Para isso valeria a
pena consumir seus dias terminais na tábua de carne da terra. Para isso valeria
jogar tudo para o alto e dar um salto de qualidade de vida intima. Que Deus o
ajudasse.
Ela estava rica. Podia largar aquele trabalho estressante, cuidar do problema
mal resolvido da angina. Ma nem podia compreender direito e inteiro a
bendita situação. Tudo aquilo dava-lhe nos nervos. Na verdade estava pisando
em ovos. Parecia não caber em si. Seu espírito criara asas de contentamento
imedido. Sentia que, de feliz, podia ter o risco de um ataque de felicidade
arrebentando o elástico curto do coração doente, em polvorosa, quase
arrebentando de impetuoso alumbramento.
Ele avisou que iria sair – nunca fizera isso antes, nunca avisava de nada, não
era obrigado e nem de costume – e inteirou-a de que talvez não voltasse o dia
seguinte, nem na outra semana, como corresse as coisas talvez nunca mais
voltasse. Ela quase correu atrás dele, ajoelhando-se aos seus pés, beijando-lhe
as mãos branquelas, em pranto que enrolavam palavras de agradecimento. Ele
não disse sim e nem não. Nem era de seu feitio. Guardou-se feliz. Saiu
rapidinho pelo elevador de serviços mesmo, não sem antes dizer, meio alegre,
meio esquisito, gesticulando diferente, para o coletivo em geral: -Sejam
felizes!
Sejam felizes?
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Quase que o segurança Nestor Leonel, um verdadeiro guarda-roupa pardo e
armado até os dentes, seguiu-o, com medo de que o seu chefe saísse sozinho
assim sem mais nem menos, àquela hora, que estivesse sob ameaça velada de
seqüestro ou vivesse algum problema, talvez um pagamento de resgate
emergencial, talvez refém de alguma situação, um possível constrangimento
da curriola insuportável do Partido Liberal querendo mais verbas para gasto
eleitoreiro e as montadas arapucas para engodo de um drenado exercício
democrático. Em Sampa, para muitos ricaços, a vida era uma espécie de
cativeiro, enquanto para os pobres era um curral de estrume burguês.
Mal ele sabia, pobre coitado, que o dr. Paulo de Tarso Trigueiro, como o
próprio apóstolo no caminho de Damasco, estava cego. Mas era cego de
TANTO VER. E que tinha sido precariamente resgatado do meio deles, pois,
ao seu jeito, seu sentir, seu lado sensorial e sensitivo, quase escondido
paranormal desde a militância da primeira infância; tão recalcado em cifras,
estatísticas e números, entre tantos inócuos PHDeuses, tinha sido de novo
escolhido e tirado do meio de lobos e lobys.
Resgatado?
Quando Dagmar Marlene, entojada e cheia de tédio numa mansão fria e sem
barulho de atividades sociais ou coquetéis concorridos que adorava, bocejando
de falta do que fazer, ligou para o escritório de seu doutor e escravo sexual,
foi avisada que o patrão tinha saído á pé, tendo doado os três belos carros
importados para uma obra de caridade que assistia crianças com síndrome de
dow, e uns cheques de lambuja pra APAE de Itararé. Tudo fofoca de uma
telefonista sem palpas na língua e sua olheira propositalmente colocada ali na
firma. Não entendeu bulhufas. Pior foi quando veio um conhecido e posudo
Corretor de Imóveis pessoalmente colocar uma enorme placa de Vende-se na
porta da mansão.
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Depois raciocinou, ensimesmada. O que estava acontecendo, afinal, pensou,
depois que caiu a ficha do raciocínio. O mundo estava acabando?
Não era muito de pensar quando estava segura de si, era dona de um homem
poderoso. Só enxergava mais que um palmo adiante do nariz, quando vinha-
lhe a lembrança dos dias ruins, ocasião em que a sexualidade varria escrúpulos
e então ela dava o mais de si, sem medir conseqüência, remorso ou atitude
lícita.
Naquela noite o Dr. Paulo de Tarso não voltou para casa. Aliás, nunca mais
voltou. Sua casa era o lugar que fizesse ser. Sua casa era o planeta água inteiro
pregado no varal do universo. Aliás, não voltou a ser o mesmo. Podia ser visto
feito um missionário improvisado distribuindo comidas para pobres,
cobertores para famílias de rua, afetos lânguidos, verdadeiros e demorados
para crianças perdidas dos faróis poluídos. Ainda encaminhou algumas
pessoas carentes, ouviu problemas incríveis, deu telefonemas a cobrar para seu
escritório, recomendando receitas rápidas, internações urgentes, viagens
necessárias, caixões de defuntos, ajudas caras e tudo mais. Estava começando
a pegar no breu, pôr as mãos na massa, arregaçar as mangas e fazer sua parte
como cidadão consciente, cristão, como Ser e como Humano
A roupa do corpo começou a ficar ruim, claro, começou a ficar mal cheirosa.
Os sapatos de couro alemão logo revelaram-se gastos, a barba cerrada já
branqueando por fazer, a falta de asseio básico. Eram passos sérios de
apendizados primitivos, essenciais. Passou a dormir na rua, onde se
encaixasse, onde lhe coubesse o destino de um humilde estar perene. Um vão,
um pedaço de calçada, um cantinho pra chamar de seu. Depois de ter deixado
todo mundo forrado em grana, depois de ter doado alta soma para a Santa
Casa de Misericórdia de Itararé, depois de destinar bolsas de estudos para
parentes pobres, depois de sair com a roupa do corpo e só com o dinheiro nas
algibeiras (que logo gastou ou doou) para estar com os miseráveis, dormir
com eles, viver com eles, ser do rol deles, pertencer-lhes de corpo e alma, de
mente e coração, de espírito e dentro de uma esperança-andaime deles.
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Compreendia que um defunto dominava a sociedade: o “defunto” do trabalho.
Não era apenas uma crise social passageira. Entendia que a sociedade
capitalista amoralmente especulativa-acumulativa e agiota dominada pelo
trabalho tinha alcançado seu limite máximo, absoluto. Na sequência de um
neoliberalismo globalizador e da revolução microeletrônica, a produção de
riqueza se desvinculara cada vez mais da força humana e sua chamada mais
valia. Quem, nessa sociedade não conseguisse mais vender sua força de
trabalho – capacitação, idade, importações supérfluas, planos econômicos
inumanos – era considerado um traste, um bagaço, um nada. E estaria sendo
jogado no aterro sanitário social, onde sobreviviam os restos de seres,
denominados de excluídos sociais, de descamisados, de “trecheiros”, segundo
sociólogos.
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QUATRO
Ruas essas que, sem notar, sem fazer estatística de desumanidade (não
interessam a eleitoreiros planos econômicos do FMI que só valorizam
ocasionais compras de iogurtes e dentaduras e desprezam códigos éticos de
civilidade urbana de nível sócial próximo do incrível e extraordinário), num
daqueles dias frios de outono daquele abril qualquer, recebera mais um pobre
coitado. Só que este, por incrível que possa parecer, fora por decisão própria,
por livre e espontânea vontade, por interação íntima, se é que isso fosse
possível, se todos fossem capaz de entender tamanho ato de entrega, de
coragem-dínamo, de próprio punho incrivelmente humano. Mendigou, sim,
pois já nada mais tinha de si, a não ser as mãos murchas e com nódoas de
sobrevivência oferecendo-se em amparo e ajuda, quando era necessário. E
sempre era útil, ao seu jeito cândido. Ajudar um leproso, comprar pão para
uma criança seca, impedir que trombadinhas achacassem um velhote, ajudar
um aleijado a atrevessar um perigo sinal quebrado no trânsito caótico, jurar
mentiras, inventar o inexistente, parecer-se com os inválidos, os abandonados,
os fracos e oprimidos, os bem-aventurados do Sermão da Montanha.
Era pau pra toda obra. Tudo o que conquistara na vida louca e sem nexo,
doara, ou para quem merecia, para centros de caridade, de sua aldeia natal
inclusive, Itararé, ou para quem eventualmente era de direito imperioso e
legal, tentando, também assim, reparar erros, desvios de percurso ou de
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conduta, indenizando, valorando, crendo-se revestido de fé e pura idoneidade
revisitada. O que lhe tinha rendido de seu, pertencia agora a muitos
necessitados, de toda ordem. O resto, era só sua perenal entrega de vida.
Aceitara estar com os fracos e oprimidos, ser da parte deles, viver até os
últimos dias para eles. Era uma decisão que pertencia aos sábios ou aos
deuses? Eram os pequeninos que recebiam um companheiro buscando calço
para empreita de seara nova, feito mais um lírio no campo
Tudo tinha um preço. Até sua caixa da papelão – para dormir nela com outros
pobres coitados – teve que comprar. Era uma espécie de “trecheiro” de rua.
Numa certa “Rua Fábia” (um código? uma senha?) uns tipos montavam
doentes falsos (com feridas de velas ou isopor derretido) para viadutos e
terminais. Eram os falsos necessitados. Uma perna sangrando era falsa, uma
gangrena de bife seco era mentira, umas varizes em alto relevo eram estéticas
perfeitas visando a piedade coletiva, alheia. Doenças de grosso calibre
manifestas em percursos concorridos eram criadas com estilo e nojo latente.
Só que Paulo queria caminhar com os mendigos, tomar de sopas de igrejas
evangélicas, de centros espíritas de caridades, de catedrais com pastorais de
diáconos sensíveis, de ajudas voluntárias bancadas com estima pelo Padre
Lancelloti, um verdadeiro “pai de rua” dos pobres coitados.
Queria receber o pão minguado de algumas almas caridosas, estar com a ralé
do inumano e decrépito capitalismo selvagem brasileirinho. Daria testemunho
de si. Queria encontrar Deus onde ele estava, no meio dos homens lazarentos,
não nas alturas palaciais ou catedráticas de esnobismos pomposos por séculos
ou insensibilidades generalizadas no vício da história de contrastes sociais do
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país. E para isso teria que beber do amargo cálice da vida. Tudo um dia iria
transbordar, e ele então morreria, seria recolhido. Mas não tinha medo da
morte agora. Iria comer o pão que o diabo amassou? Para isso teria que descer
ao mais baixinho chão, às profundezas do abismo social, até ser então
escolhido pelo chamado, e assim habitar a grandiosidade divina para todo o
sempre. Era esse o propósito de ser mais um na cruz da espécie.
UM CORDEIRO DE DEUS.
Conhecera esse lado doce do sucesso, por sorte ou carta do destino, medindo
depois tudo com o triste, o escabroso, o inócuo, o vazio. Tivera tudo na vida.
Agora, de novo mas de uma maneira limpa e aceitadora, sem azedumes,
sobrevivia no triste estágio de não ter nada e isso lhe bastava. Viveria cada
minuto pelo minuto. E habitaria inteiramente cada segundo de sua existência
sendo de pleno direito um Ser. O resto de seu tempo na habitação coletiva da
terra, entregava nas mãos de Deus e sua infinita misericórdia. Seria um lírio
no campo, esperando a guarida de quem, acima de si, na orquestra natural do
meio, o ornasse de sustância primordial.
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Tinha que ser assim. Era assim que queria encontrar o seu caminho, a sua
lenda pessoal. O céu por testemunha. Daria documento inteiro de sua vida
dessa maneira. Com uns pares de cadernos espirais, para rebocar o esboço do
tempo demorado entre o tédio e a imperfeição de pares, começou
graciosamente a escrever seu despojo, seu furtivo muro de lamentações (que
era a existência). Conheceu cafetões, autoridades corruptas, fiscais dementes,
prostitutas com rezas prontas, viciados pedindo Deus, doentes sem cura,
traficantes com estrutura, contrabandistas informais, tudo no confeito do
dezelo social de um estado privado com máscara de público para enganar a
gregos e baianos.
Mas também sabia reagir, preciso fosse. Principalmente da vez que foi atacado
por um louco e o colocara no seu devido lugar, depois de uns necessários
sopapos para se fazer respeitar e ser entendido. Queria ser, de própria escolha,
um miserável entre comuns. Não um saco de pancadas. Lembrou-se,
finalmente e em tão estranho e precário estar, que sempre fora atacado por
loucos, a vida toda. Sempre fora procurado por pobres e aloprados pedintes,
como se tivesse cara de salvador da pátria, salvador da arcaica lavoura da
sobrevivência entrevada. Mesmo enquanto construia sua riqueza quase sem
repouso e sono completo, poupando, se matando de trabalhar e estudar, com
ajuda da namorada de adolescência e juventude, andando no meio de uma
multidão sem contagem, era inexplicavelmente e de forma imperativa
interpelado por pedintes e aloprados a lhe implorarem um zelo maior, a lhe
cobrarem benesses, como se ele, num gesto, pudesse transformar a escória
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social da terra em gente feliz, como se ele fosse um anjo semeando caridade
por atacado, tivesse essa premissa no seu carma.
E ele sempre ajudava mesmo no pouco que tinha, quando tinha. Era seu
jeitinho. Já era seu mistér?. Parecia já ser um indicativo de sua missão que ali,
finalmente, aceitara no mais íntimo de si. Como São Paulo, o apóstolo, ele
serviria à Deus, pregaria o evangelho de Cristo com suas palavras de meio,
mais, com o livro aberto de sua vida: a caridade. Viveria por aqueles seres.
Em pouco tempo era mesmo fisicamente parecido com um deles. Em pouco
tempo era respeitado e conhecido por eles como um igual. E o adoravam por
não ter tristeza completa no servir-se., como se fosse um elo luzidio na
corrente suja e fétida da escória rueira.
Antes, era um farol, um lume. A rua sabe seu destino cruel, mas sabe seu
território marginal de reconhecimento mútuo. Quando passava com carinho
sua marmita de arroz e ovo frito para um menos afortunado. Quando
prestativo tirava de um cobertor ganho de uma beata e dava à um novo rejeito
social se entrincheirando entre pares. Quando, dos míseros trocados que
recebia de adjutório, não comprava algo somente para si, mas o que desse um
pouco para todos: bananas, bolachas, pães, balas, água pura, remédios. Tinha
sido assediado por mendigas assanhadas, mas polidamente rejeitava.
Não tinha interesse em prazeres da carne. Vivia um outro tempo agora. Seu
existir tendia a criar tessitura interior. Abraçara seu novo mundo não como um
desatinado em busca de respostas prontas, não um novo esotérico tantã em
final de século a ler livros e livros sem ser nada na prática, mas aquele que ia à
fonte do que era ser serviçal de Deus.
Não levava imagem, cruz, cantoria, toga ou liturgia explícita. Levava só seus
braços largos, sua força de estímulo e trabalho, seu empenho, seu
conhecimento, suas orações positivas e emocionantes. Salvou pobretões de
serem explorados por minorias sem escrúpulos, sorrateiramente anotou placas
de carros de policiais violentos da Rota, aprontou denúncias com nome falso e
endereço fictício visando indicar soluções, chegou a ser roubado no pouco que
tinha por um teens drogados, certa feita apanhou de um outro irmão de rua por
tomar-lhe o espaço como se houvesse um dono no dezelo do trato com as
causas sociais, mas restringiu-se, comedido, aceitou tudo. Fazia parte do
encontrar-se. Fazia parte daquele mundo cão e tentava sublimar-se com
denodo e enlevo espiritual.
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Sabia que se morresse ali, por uma boa causa, viveria melhor nos braços de
Deus do que no altar social onde estivera se perdendo antes. Se morresse na
rua, seria enterrado como indigente e isso lhe bastava para estar aceito aos
olhos de Deus.
Se Deus era dos fracos e oprimidos, queria estar perfeitamente entre eles, para
assim ser finalmente selecionado, e ser escolhido, ser parte do rebanho de
Deus, estar no redil celestial dele. Na rua ouvia todo tipo de conversa, mas não
era um pagão ou um pervertido, tampouco um agnóstico ou um
neocarismático de embuste. Era alguém que tinha tudo e não aceitara esse
tudo que de nada lhe valera intimamente. Pois, aceitando não conter nada,
estaria pronto, limpo e puro para ser o pote da verdadeira fé, estaria pertinho
de Deus, pois Deus estava com cada ser humilde, e assim, poderia reconhecê-
Lo, um dia; talvez um dia o encontrasse entre eles, pobres mortais, para então
poder dizer de como o sentira dias, meses, anos antes, quando ao olhar de
cima para baixo, vira o que vira. Mas, afinal, o que ele vira?
Um sinal dos tempos. Uma presença que em si batera cartão e dissera: -Eu
estou no meio de vós. Eis que presto venho. Volte para si mesmo e depois
volte para mim antes que eu volte...
Mas, compreendeu, já vira a face de Deus quando saíra para jantar numa
madrugada e tinha sido fisgado pela contemplação.
31
CINCO
32
trabalho, para que fosse a médio e longo prazo permitido reconstruir a
identidade nacional, para que, finalmente, fosse “descoberto” o Brasil,
fundado um Brasil depois de 500 anos de exploração, de roubo, de predações
de todo tipo. As instituições estavam fragmentadas. A sociedade reclamava
que suas autoridades não eram santas, mas eram todos representativos de uma
sociedade também não santa. Era preciso consciência histórica para fazer
todos compreenderam que a unidade não podia anular a diversidade, impondo
o pensamento único.
De qualquer maneira, foi entrevistado certa feita, sem querer, de passagem por
um viaduto, por um polêmico programa de tevê sensacionalista e inócuo. Mas
falara muito pouco e rasteiro, para não dar na vista. Aleijara-se de Ser? Os
dentes estava apodrecendo. Sentiu-uma fisgada feito cólica abaixo da barriga e
supôs que estaria com alguma hérnia, quando não com uma virose incômoda.
Porque uma diarréia já o assaltara, depois de uma acidez por causa de restos
de alimentos vencidos, além de intoxicações de todo tipo, já revelada na
epiderme virulenta. Mas aceitara aquilo também. Fazia parte da entrega.
Viveria entre ratos, entre monturos de lixo, entre esgotos, encostado entre
cortiços, ruelas, becos, guetos. Era um marginal agora, ora.
33
perguntando. Será o impossível? Seria algum escritório de detetive a procurá-
lo de todas as maneiras? Estava assustado, inseguro, medindo situações,
consequências e limites espaciais, inclusive para fuga desesperada.
Ouviu choros baixos, conversas vindo do lado externo. Parecia que, ligado ao
aparelho, ao mexer-se ou se denunciar tecnicamente acordado, recém
desperto, chamara de alguma forma a atenção para si. Era a tecnologia cara de
bem montado aparato hospitalar, ao contrário do que tinham os hospitais
públicos e suas filas como se caminhos para matadouros.
Era só um pesadelo.
34
SEIS
-Pai, o que o sr. fez de sua vida? O senhor quer nos matar de vergonha, é?
Pelo amor de Deus! Eu não acredito! Ai meu deus do céu!
-Pai, não é possível? O sr. está ficando louco? O quê está acontecendo? Onde
já se viu isso agora? Isso não pode estar acontecendo com nossa família!
-Vô, o que houve com o sr?. Por favor, fale conosco. Sonhei que o senhor
tinha virado lunático de carteirinha. O pai está fulo por causa disso.
-Pai, a imprensa inteira está lá fora. O psiquiatra ficou de vir hoje! O Dr. Israel
foi acionado num Congresso da Geórgia, Estados Unidos. Ficou de fretar um
bimotor e vir vê-lo. Está trazendo remédio testado num laboratório espacial da
Nasa.
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-Pai, o terapeuta recomendado pela Dra. Cidú ficou de passar aqui, junto com
os Diretores Social do Rotary e do Lions Club. Ligaram do Clube de
Pinheiros, da Gazeta Mercantil e da Rádio CBN Notícias. Um bando querendo
saber como o sr. foi encontrado, se foi sequestro, como o sr. acabou um
mendigo, se o sr. está de miolo mole ou se foi pagamento de promessa à Santa
Edwiges ou Santo Expedito, como correram alguns boatos marotos a respeito,
numa famosa revista de fofocas socais.
-Que vergonha, papai. O quê foi que deu no sr? Quase morremos de
preocupação. Tive que cancelar meu estágio em Haward. Será o impossível?
Paulo de Tarso não disse uma só palavra. Não precisava. Não queria nunca
falar mais com eles. Não queria estar do lado deles ou no meio deles. Tinha
outra oferta de vida. Era outro para sempre. Podia sentir isso dentro de si.
Vira, ouvira, descobrira - aceitara a rua da amargura para purgar-se e
preparar-se para estar no reino dos céus. Aquilo tudo ali de luxo e confeito
social era enfeite, vaidade, espetáculo, circo-horror-show, destempero, falta de
senbilidade plural, comunitária. Não tinha nada mais a ver consigo. Era um
estranho entre os seus descendentes de sangue? Depois de conhecer a triste
rua da amargura, sentiu-se um estranho no ninho. O luxo, a riqueza, tinha um
cheiro rançoso de mofo, de formol, de arrogância, de poses sem escrúpulos, de
lucro fóssil, de arremedos de seres. Fantoches, era o que via. Era o que
realmente todos eles eram. E tinha sido um por tempos, também. Pensou na
primeira e legítima esposa. Esta sim uma dama de primeira grandeza. Tinha
certeza de que ela aprovaria sua decisão; talvez o acompanhasse solícita e
eficaz nessa empreita a caminho dos braços de um Deus-Criador. Teve urdida
piedade de seu clã, um por um, como bem os mediu acostumados a enfeites,
poses, espetáculos sociais jogos de cena, maracutaias, embustes financeiros,
arapucas com verniz de parte atrelada de uma mídia tendenciosa. Teve muita
pena. Quase arrependeu-se de os haver semeado na tábua de carne da vida.
Era o legado genético de sua miséria íntima?
Mas não podia fugir do lugar que estava. Pensou mas remediou-se. Sofreu
perguntas, abraços, toques, gestos, injeções, recados, punções, inflitrações,
pingos de suor, lágrima e sangue próprio. Sofreu transfusão, lavagem,
curetagens. Mas era como se tudo aquilo ali não lhe dissesse respeito, como
aquilo tudo não fosse com ele; como se fosse alheio às formalidades de ser um
homem e sua circunstância. Compreendeu perfeitamente que para ele aquilo
tudo era passageiro, reles, trivial. Logo estaria de volta para os seus
verdadeiros irmãos. Era um estranho em sua própria familia.
36
Ficou dias rendido ali, nunca respondendo nada, mal-e-mal tomando uma sopa
rica em vitamina e carbohidratos, fechado em si, como se caça e caçador de
seu próprio rumo. Antena ligada. Sem pregar direito o olho viciado em cair
fora, escapulir, sondar o devir para um anoitecer perto. Sondando.
Desanuviando o espirito atribulado de refém do circo-horror-show que sua
estadia provocara. Não atendeu telefonemas, emissoras de rádio, repórteres
com perguntas tolas ou jonalistas de tevê querendo um furo de reportagem,
mal grunhia um boanoitar inteiro, mal defecava quando imperiosamente
inevitável, e só tomava remédio porque vinha com agulhas e não tinha como
estapear, defender-se. Apenas grunhia, rompendo o silêncio de sua dor
terminal. Mas não era um homem de aceitar jugo ou vara. Saberia a hora de
sair-se de si. Avaliava o pulso crucial desse momento que montaria de forjar.
37
Anos 60
Como não respondeu nada e à ninguém, foi dado como meio esquizofrênico,
fora de órbita. Um caso perdido. Demência e senilidade precoce, rotularam
uns. Até remédios possantes para esse fito de cura receitaram. Recomendaram
terapias alternativas, estrangeiros livros de auto-ajuda, tratamentos de choque,
“viagens” de regressão a vidas passadas, homeopáticos arranjos florais,
periféricos centros de macumba, sais arimáticos, viagem à um Hospital
Geriátrico de Genebra tão freqüentado por empresários comprometidos com a
realidade da cobrança do tempo e cheio de decadentes artistas ultrapassados
ou em fim de carreira. Aceitou esse diagnóstico como se fosse um véu, uma
bruma de honra. Mas como não tinha mais nada de bem ou de posses – os
38
filhos pagavam os caríssimos tratamentos – mal teve um momento de
ocasional e oportuna chance, caçou o velho pente vermelho de plástico, um
lenço lavado com cavalos negros bordados em alto relevo, um par de chinelos
cor de abóbora – a Enfermeira Chefe ao dar-lhe obrigatório banho fora
descuidada - sua única nova roupa de grife nova comprada pelos parentes
nervosos, deu um jeito serelepe de parecer encorajado a ver o sol que
serpenteava lá fora, fingindo passeio distraído vagou corredores de
lavadíssimo mármore branco que cheirava a limpeza recente, disfarçou a
roupa esquisita que estava larga pois não tinha sido provada e nem lhe
assentara bem pois estava meio esquálido, entrou em lugares inacessíveis a
pacientes como ele, disfarçou nódoas de intenções, escondeu-se em
almoxarifados e lavados comunitários de funcionários de terceiro escalão,
depois a oportunidade deu uma chance brusca e ele lepidamente como um guri
de Itararé caçando sarna pra se coçar pulou a janela do primeiro andar da
clínica sediada no bairro do Brooklin. Fugiu.
Poderiam achá-lo de novo. Sim, era isso. Poderiam caçá-lo como a um bicho
doentio. Da próxima vez – repugnou-se a pensar que houvesse outra chance de
ser pego - então seria internado talvez num sanatório fora do eixo Rio-São
Paulo, teriam-no com camisa de força e tudo, talvez num asilo de débeis e
imprestáveis, quando então nem pudesse mais ser o que era, ou sequer cumprir
a missão para a qual fora chamado e aceitara responder, se propondo a passar
por aquilo tudo, servindo ao próximo e amando-o como se à si mesmo.
Tinha que mudar as coisas. Fazer suas próprias regras. As normas ele sempre
as quebrara, quer com determinação, opinião própria, suborno, status ou
violência. Não deixara de ser muito pobre, para ser muito rico, por acaso.
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ficaram seguros e ricamente satisfeitos. Como ele era adorado pelos amigos,
pela família, fora difícil achá-lo de novo, mas ele sabia fugir. Que lugar é o
esconderijo perfeito do nada?
Onde poderia ser útil e ao mesmo tempo ler sobre alguma coisa eu e lhe
preenchesse um vazio? Queria ler sobre tudo. Mistérios, filosofias, historias,
física quântica, Idade Média, Religiões, tudo. Queria saber do lado
Muçulmano, Islâmico, Judeu, Budista e tudo mais, de ver o mundo. O homem,
afinal, não era esse imenso ponto de interrogação pendurado à beira do abismo
de sua insegurança existencial?
Pois, ao invés de correr o risco de ser pego de novo, sedado e até sendo
inconvenientemente trancafiado num hospício até bater as botas, ganhou
rumo, à pé, com um novo peregrinar, em busca de uma ocasional reclusão que
se lhe permitisse servir a Deus mesmo que numa duvidosa forma de religião
ou campanário, além de o ajudar na recuperação física e preenchimento
espiritual, mas, pelo menos ali, ao seu modo, seu jeito, seu gosto, tentaria de
novo oportunamente ganhar as ruas e ajudar os pobres, com sopa, com
agasalhos, com remédios, com a palavra de Deus. Era uma decisão nova em
estágio seguinte de sua busca de si mesmo.
40
SETE
Pois foi ali que um dia, um sr. de nome Paulo aportou com calça blues de grife
larga para o seu número, sandália havaiana cor-de-rosa (era de uma enfermeira
desprevenida que saíra fumar fora do quarto), a roupa de cima uma espécie de
camisa de pijama em listras de branco e azul-celeste.
41
predador de uma onça pintada meio morta de fome a atacar o farto galinheiro
dos freis meio obesos de tanto se empanturrar de comidas com banha de porco
e falta do que mais fazer de bruto, pesado e útil.
Uma estradinha maleixa saía da beira da represa. Para chegar até esse início de
picada, só conseguindo carona com um pescador de bote inflável, ou,
alugando uma lancha para esse propósito ali no pier da represava. Pois Paulo
conseguiu uma carona com um boy que ia buscar o pai que cevava a bebericar
aguardente com losna numa ilha de areia próxima, onde se deleitava tomando
pinga macerada de ervas e pescando antes da mudança de lua quando a ceva
era mais fácil e a pesca régia e farta. Pois ali desceu o tipo estranho que mais
parecia um pedinte, um coitado doente, como intuiu o rapaz viciado em Coca
Cola diet com seu walk-mam cheio de musiquetas idiotas e cabeça vazia de
boas intenções a respeito da curiosidade que lhe atiçava o páreo do momento.
Mal o curioso Paulo desceu na espécie de chácara de ermitões, foi notado com
carinho, de longe, por um irmão, o esclerosado e doce Frei Joshua (ali os
internos escolhiam um novo nome, se quisessem) sempre de mente aberta,
instinto aguçado, coração abatido mas espírito de luz irradiando fim de vida
próxima. Quando chegaram outros internos, quando viram que o tipo
estranhamente não tinha sido anunciado por carta ou pelo precário
radioamador movido por bateria, chamaram o Monsenhor Frei Lázaro, o
superior mandatário ali entre eles, que veio saber de que curioso ocasional se
tratava, ou se era mais um perdido a se escorar ali.
Não haviam muitos à luz do dia nas imediações. O local recebia ladrões
noturnos, visitas inoportunas, pescadores bêbados perdidos, náufragos que se
salvavam por um milagre das profundezas da represa, ou mesmo alguma
autoridade religiosa trazendo um novo irmão querendo servir à Igreja (à
Cristo?), ou mesmo vinham em busca de dados clericais importantes, alguma
reportagem mística, ou mesmo algum remédio artesanal caseiro, quando não
gostosos licores, frutas sem química, ervas raras, legumes todos puros que
algum Cardeal, com saudade da terra caipira ou remota de origem, mandava
buscar com sua lancha possante ou mesmo com um helicóptero da Santa
Madre Igreja. O carismático Papa Dom Paulo Segundo, para ali fora certa feita
de noite, escondido da mídia, à sorrelfa, beijar os murchos pés dos
Capuchinhos Descalços, quando recebeu de presente mel silvestre de abelha-
tiê, licor de melissa cruzada com hortelã, rapadura de mandioca-brava, bagres
defumados e curtidos em salgo grosso e uma cruz média feita em cera de nó
de pinho, onde o rosto torto (e deformado pela veia e corte do entalhe) de
42
Jesus Cristo Crucificado tinha o rasgo de dor mais triste que qualquer ser
humano vira em arte neorococó. Não era identificado o escultor talentoso
entre eles, pois tudo pertencia à Cristo, disse o Monsenhor, feliz com o
sentimento de aceitação tão pungente e agradecida, de tão importante
autoridade da igreja.
Esperou pelo menos meia hora, como se fosse parte da natureza em paz,
quando viu aquele velho todo calvo, algo obeso, barriga saliente, descalço e de
pés grandes e chatos a pisarem a mal cuidada grama verde, entre jacintos sem
cuidado, vestido com um macacão marrom escuro que tinha uma touca, tudo
de um pano grosso, na verdade um hábito costumeiro ali, mais um cajado de
vara meio torta na mão direita, um crucifixo de arame farpado preso ao largo
peito peludo como se de um montanhês arfando por causa de ar rarefeito
caçando a ovelha perdida do redil dos céus.
Mal viu o idoso dirigir-se à si, quase pisando margaridas do brejo, restando-se
sem caminho de retorno (a lancha tinha se ido há tempo), os cães pararam de
latir no tropel todo, a ferroadas dos porvinhas de beira d’água calaram o
violino doloroso, e Paulo levantou-se sorriso completo nos olhos esbanjando
expectativa de felicidade pretendida, cuidando que aquele servo especial de
Deus lhe abrisse uma outra porta de necessária solidão sacrificial que fosse,
para que ali pudesse estudar as coisas de Deus e dar testemunho de sua busca,
em seu precário estado de necessidade.
43
-Esse rio está cada vez mais poluído. E a cada dia piora mais seu estado. Que
tristeza me dá vê-lo assim desse jeito imprestável!
Nem entendeu direito como aquilo soou, de improviso, sem pensar, sem mais
nem menos. Era Deus pondo lenha na fervura de uma maduração de encontro
e diálogo? Sondou essa hipótese.
-Se não chover hoje, chove amanhã. As chuvas abençoam os teréns de terra
vermelha. São os desígnios do Criador.
-Com sol ou com chuva, toda a terra louva ao sr.- disse Paulo, como se fosse
só um rebatedor de íntima voz do Espírito Santo o guiando na fervura do
encontro tão delicado.
-O sr. não foi convidado mas precisa ser benvindo. Temos essa fama de
agradar a todos que batem à nossa porta. Na casa do Pai há muitas moradas.
-Tantos são convidados para a ceia do Senhor, mas muito nem chegam a
atravessar os riscos de uma travessia para tentar. Paulo respondeu isso e, por
algum motivo, incomodou-se daquele diálogo sem eira nem beira.
44
-Esse é um lugar de retiro, de privações, de escolhidos a dedo. Não é para
qualquer um...
-O dedo de Deus toca o coração por dentro?. O dedo de Deus toca no mais
íntimo e inimaginável de nós?
O Monsenhor brincou um pouco com o cajado, fez umas firulas com aquela
pedaço de pau envernizado de suor, depois deu, finalmente, tom de
formalidade central e peremptória ao inusitado encontro:
-Vim buscar paz, irmão. E também tenho um pouco dela. Vim buscar
conhecimento de Deus, pois só tenho conhecimento do mundo vil. Vim buscar
luz para meu espírito, pois sempre vivi por invirtudes. Vim buscar a benção
para a minha alma, que quer a salvação, pois eu sou um nada na cumbuca do
nada mundo. Vim pedir leito, pão, fermento, sal, corote de fé e ainda dar-me
de serventia. Nada tenho para oferecer a não ser minha vida hoje feita uma
cumbuca vazia. Tampouco nem posso pagar, mas sei que posso ser de alguma
valia física...
O monsenhor serenamente ouviu aquilo por uns minutos. Quando Paulo parou
de falar, após dar o nome e se dizer um antigo mendigo, morador de rua, agora
um pedinte da graça de Deus. O religioso, macaco velho, viajado – mas
sentindo ali uma aura de luz, uma energia santa na voz, um halo diferente –
encorajador ao seu jeito, replicou cândido e já meio implicante:
-O sr. Paulo fala bem para ser só o que diz que é. Mas isso não importa.
Temos leite e pão, vinho e pão, água e pão, amor e pão, Deus e pão. O quê o
amigo deseja o meio de nós? Fique à vontade.
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Paulo não esperava aquela espécie de interrogatório esquisito e fora de
propósito. Não fazia sentido mas era ao mesmo tempo gratificante e
engraçado. Uma toleima? Calou fundo a pergunta, e deixou que a resposta
viesse como um pacote pronto do mais fundo de si:
Quantos dias o amigo quer ficar, porque veio realmente e quanto quer de
estadia, qual o mistério que o trouxe com a mudança de tempo – o sol parecia
vestir um pulôver escuro de nuvem, relâmpagos parecia ferroar de flashs do
Criador mirando a terra - São Pedro parecia estar mudando os móveis de
lugar. Um vento de chuva varreu as árvores que parecia bater palmas para
aquele destino de encontro. Salvas anunciando tempestade?
Por várias horas, aquela noite, à beira de um fogão de lenha sempre mantido
aceso por grimpas de pinheiros e lenha verde a crepitar o ranço do fogo, quase
cem capuchinhos, todos com o rosto coberto menos a face frontal, ouviram a
história daquele Paulo que, invertendo o papel do maior pregador dos
evangelhos de Cristo, queria vir ali para ser o Irmão Saulo, e assim achar seu
caminho. Espírito, alma e coração, precisavam da engenhosidade de Deus.
Explicou que, como Santo Agostinho, entendia que Deus falava com ele por
meio de sinais. E que era uma linguagem individual que requeria muita fé,
sentido tácito de compreensão e observação acentuada contínua, requerendo
até certa disciplina e radar sensorial para ser totalmente absorvida como
deveria. E ele tivera, para construção de sua alma, quatro forças invisíveis, o
amor, a morte, o poder e o tempo. E o tempo era seu fermento ali, até porque
compreendia que o Criador julgava a árvore pelos frutos, não pelas raízes. E
ele estava começando a criar seus brotos de nova floração.
Quando terminou, ninguém bateu palmas, claro – e era uma história e tanto –
mas o Monsenhor disse Aleluia e todos disseram um ensaiado Amém
uníssono, fizeram depressinha o sinal de cruz e, depois, em ordeira fila
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indiana se dispersaram, caminho dos aposentos quentes, com certeza de que
aquela história era sobre o mais belo “chamamento” divino que ouviram.
Estavam impressionados.
Pois dormiu como um bebê-cavalo. Parece até que desmaiou seu pesado corpo
feito um pacote de culpas.
47
Acordou assustado – tinha baba no lábio inferior, remelas como goma arábica
seca abaixo dos olhos e uma vontade enorme de fazer xixi – com os
alvissareiros e curiosos irmãos de meio brincando com seu estado mal
assentado ali, cara de boi lambido, disse um, Soneca, comentou outro,
aludindo a um personagem anão da história da Branca de Neve. Paulo
levantou e bondiou alegremente a todos. Todos responderam mas um deles,
assomou-se, se adiantando, quando apresentou-se:
-Sou o Irmão Leonel, só quero ser Frei, não padre. Vamos tomar banho ou o
sr. prefere ir direto pro café quente com pão quente de torresmo e manteiga
caseira?.
-Tenho que tomar banho, mas não tenho sabão e só tenho essa muda de roupa
que trago comigo. Eu mal tenho à mim mesmo, confessou, rendido às
evidências.
-Já acordou o homem que veio com a chuva? Bom-dia, servo noviço. O
Senhor esteja convosco. Está um belo dia hoje. O sol já mostrou sua crista
límpida.
Agora Paulo, ou melhor, o Irmão Saulo, não estava inspirado nem tocado por
obra do Espírito Santo de Deus. Mas não perdeu o estilo e disse:
48
-Bom-dia Monsenhor Recolhedor de Flores para Deus. Toda graça de cor é
obra divina. Que a paz esteja conosco para sempre. Todos entenderam
perfeitamente que ali estava alguém especial.
-0-
49
OITO
Para cada um dos noventa e oito internos mais alguns serviçais leigos, contado
com o Monsenhor, havia uma própria captação inerente e entendimento
peculiar da “história” do Irmão Saulo.
Ele contara, sem reservas, a sua vida, os seus sucessos, os seus descaminhos,
as suas ousadias, tudo isso em rápidas pinceladas. No entanto, na parte que
contara o que vira do alto do edifício, montara sua versão limite para passar
adiante, de que vira, entre as almas caridosas que atendiam os carentes,
distribuindo comida, sopas, roupas, cobertores, vitaminas, Anjos “alados de
luzes” como se fossem eles que estimulassem, de alguma maneira, aquele
serviço de caridade e humanismo aos abandonado de toda sorte..
Não, essa parte o irmão Saulo pulou. Eles não compreenderiam como ele. Eles
não estariam preparados? Precaveu-se em guardar sua versão estimulada pela
sensibilidade extrema então redesperta, depois que fora atrofiada pelo lucro,
pelo poder, pelo status quo institucionalizado sem ética. O que contara, sem
mentir, lhe bastara por enquanto. Se pudesse – e acreditava piamente nesse
hipótese – um dia contaria tudo e inteiro. Talvez num livro. Iria esrever um
com tantos arscunhos-despojos diários, tantas anotações garatujadas às
pressas? Talvez saíssem pelo mundo pregando a boa-nova. Talvez
glorificassem à Deus, talvez comunicassem ao Papa, talvez fossem em busca
do que ele vira, tentando um contato imediato, tentando benvidá-los à terra,
tentando fazê-los crer que contavam com a bendita volta, que o homem valia a
pena, que alguns se escolheram ser escolhidos e, fiéis filhos de Deus, dariam
testemunho da fé, dariam testemunho de vida, fariam acertos, talvez até se
encarregassem – quisessem ELES – os apresentariam às autoridades, seriam
50
elos de ligação e, então, graças à Deus, o mundo inteiro se converteria, seria
todo um planeta cristão, arrebatado nos ares, bilhões se ajoelhando à presença
angelical e sublimes deles , e então – e esse seria um outro grande milagre – o
mundo inteiro estaria salvo do limbo, convertido, o mundo inteiro estaria
resgatado, o mundo inteiro seria o Paraíso!. Todos por Deus?
Não, Paulo de Tarso não contou tudo e de forma completa. Sabia que não era
hora ainda. Podia compreender bem isso. Era muito saber que mal continha
inteiramente em si, mas, macaco velho na tábua de carne da grande lição que é
a Viagem de Existir, compreendeu que teria uma situação apropriada, um
momento positivo e definitivo para tudo isso. Precisava “limar” muito bem em
si, o que vira. Para que tudo coubesse dentro de si. E então poderia adaptar
tamanho ver à limitada compreensão da miserável e finita espécie humana e,
decodificada em palavras de uma hermenêutica entendível, então, em prosa
narrativa ou poesia prosaica, em versos, salmos, cânticos ou louvação, diria
aos seus irmãos da espécie o novo destino do homem. A nova saga angelical
da espécie humana. Tudo a seu tempo.
Diria ao mundo a sua versão pura e abrangente do que vira. E isso abalaria os
pilares do universo. E isso tocaria o coração mais rude, mais bruto, mais seco.
Porque a graça de Deus é milhões de vezes mais forte do que o corte de um
imenso e potente diamante-nuclear. E isso precisaria ser elaborado com jeito,
com prudência, com importância.
No entanto, por outro lado, cada interno seminarista ali, tinha certamente a sua
própria interpretação peculiar da pessoa exata do noviço. Para alguns era só
mais uma historia como tantas outras. Para alguns desconfiados, um mero
burguês querendo salvar a pele. Para outros, mais serenos, um santo que se
escondera em cargo, diploma e grana feito um imposto PHDeus.
Havia um tipo que se destacava dos demais, pela cara grande, nariz grande,
olhos grandes, cabelos oxigenados, jeito de animal querendo adiar o bote,
gestual molenga de maricas recalcado, que, pelo jeito, não tinha ido muito
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com a inoportuna notoriedade dele, não tinha ido com a fachada do invasor
do reduto. O nome dele era Walter Bello.
O que pouco a pouco iria aprender, na sua breve estada ali, Paulo ou Saulo, foi
registrando na medida do possível em seus cadernos. Era a Soma. Como um
ritual, toda ponta de noite, com um lápis preto número dois, escrevia e
contava, registrando, arrolando. Registrava tudo que fosse importante. Era
essa a sua missão? Sim, o mundo saberia, por intermédio de um livro, se fosse
possível, a partir de tudo o que relatasse – a partir do que vira – que o mundo
tão em pecado, tão triste, tão violento, amoral e injusto, tinha grandes chances
de escapar de uma hecatombe, de uma explosão vinda do espaço, de uma nova
Guerra Mundial.
O amor de Deus era infinitamente maior que o monturo dos pescados até
histórico dos insensíveis humanos. Tinha que registrar tudo. Iria registrar. Só
esperava não encontrar inimigos, não ser tripudiado, não sofrer o crivo
precípuo de um sistema e seus meandros, seus totens.
Pois ele contaria, custasse o que custasse. Sua vida era ser arauto de fé e dizer
ao mundo de que a Esperança era o verdadeiro sinal de inteligência da Vida.
Aquele dia ainda ouviu atento (e tocado por um noviço como ele) tirar uma
canção de Ivan Lins no violão, que era um sinal divino de sagração dentro do
mais íntimo de si. A música dizia: “Depende de nós/Quem já foi ou ainda é
criança/Que acredita ou tem esperança/Quem faz tudo para um mundo
melhor/Depende de nós/Que o circo esteja armado/Que o palhaço esteja
engraçado/Que o riso esteja no ar/Sem que a gente precise sonhar/Que os
versos cantem os galhos/Que as folhas bebam os orvalhos/Que o sol
descortine mais uma manhã/Depende de nós/Se esse mundo ainda tem
jeito/Apesar do que o homem tem feito/Se a vida sobreviverá...”
-0-
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NOVE
Quarto com quatro beliches de até três camas. Pessoas de meia idade,
maduros. Uns e outros se cuidando: pensar plural-comunitário.
53
filósofos (da igreja), diáconos, freis, presbíteros, mas principalmente e quase
na sua maioria PADRES. Ou ficarem para sempre Capuchinhos reclusos no
bem-bom cômodo do mosteiro bancado com fundos da Ordem dos
Franciscanos, uma sede com ramo para a América Pobre com domicilio na
cidade de Paula, na Itália
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espanhol, inglês, aramaico, italiano, latim, hebraico, noções de grego e árabe,
iídiche (não entendeu por que) e, é claro, português, na maioria gramática,
redação e literatura em todas as suas fases, da fase colonial ao pós-moderno.
55
cujus. Os parentes recebiam dez salários mínimos a título de ajuda-de-custo e
indenização pela serventia do familiar oferecido à causa dos Evangelhos, da
Fé, de Deus.
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Suicidas? – Um (inexplicado – arquivo sumido – autoridades
subornadas – era um usuário de cocaína que ali se refugiara, diziam uns com
voz baixa, na surdina, por baixo dos panos das aparências)
Café amargo (açúcar cristal ralo), pão artesanal (às vezes pão de
lingüiça ou torresmo), mais manteiga caseira feita com leite fresco, de cabra
ou vaca, que criavam para consumo.
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DÁDIVAS
-Tempo de casa
-Puxar o saco
-Primeiro prato (a servir-se – comia-se bem e melhor, nãos os refugos
finais de um picadinho movido a salitre coletivo)
-Direito a expedir uma carta por mês (as demais, uma por ano, no Natal
ou Ano Novo, só. Ou em situações excepcionais.)
-Escolher o time (capitão): futebol, cozinheiro, faxineiro, colhedor,
extrativista. Os mais craques, apesar de algo obesos, valiam ouro, eram
disputados em porfias especiais ou sorteios concoridos para campeonatos
internos
-Dirigir o ritual litúrgico da missa diária, matinal
-Cota extra-dia de Licor de Jabuticaba (pode dispor o que quiser, até
reserva para consumo íntimo, próprio, em quarto particular com todos os
arranjos do melhor que tinha), inclusive para venda, troca, presente, tráfico
para fora do lugar, cessão.
-2 Cobertores, 2 lápis, 2 colchões, chinelos especiais: direito aberto de
uso para entretimento do Rádio-Amador
-Podia trazer parentes e amigos (curiosos tratados como príncipes – mas
ninguém jamais vinha ou se propusera a vir ver aquilo tudo, pois estar ali, para
pessoas janotas e boçais era quase que um castigo, não um prêmio de
aventura, e viam o convite com desdenha, humilhação.
-Raspar toda a cabeça (sinal de limpeza, dignidade, sabedoria, grandeza
aos olhos de Deus também)
-Direito a uso do Telescópio do Mirante do lugar
-Direito a voto extra em decisões que envolvessem o grupo, ou
exigissem um voto minerva final para decisões cabais
-Direito a viagens anuais ao Vaticano, depois de cada ano de mérito.
58
MORTES:
(Diário de Bordo – Data ilegível/borrada, talvez por café e-ou chá com
mancha/nódoa de licor de jabuticaba)
.
**** -
59
E os poemas, arrolados nos cadernos como se butins recolhidos da rua, por
intermédio de seu espírito criativo e acessado por sofrências e sensibilidades
revisitadas à flor da pele, verdadeiros resgates de vida:
Tolo, eu respondi
-Sou eu – E limpei os pés
Pois eu amadureci
E voltei a ouvir tua voz:
-0-
-01)=VIVEIROS
60
são tantos os canteiros
que venho semeando
pelas lavras do caminho
-0-
61
-03)=HAVIA UM TEMPO
-0-
62
DEZ
Por que as igrejas inventavam regras, dogmas, normas, cassinos, se Cristo era
outra coisa? Por que o Império Romano valera-se de um Cristianismo de
63
Igreja para dominar os pagãos, atrair fiéis? Por que a Igreja criara a triste
Inquisição, depois apoiara o Nazi-facismo, abandonara a África à própria
sorte, mais: o FBI confirmara que Banco Ambrosiano era um ramo da Máfia
mano-negra da Sicília. Isso era a Santa Igreja? Claro que não tinha sido coisa
do Brasil, mas da história da velha Europa. Mas tudo era dúvida. Era a pessoa
certa no lugar errado?
Era um cristão à moda antiga, como um último romântico. Sentiu-se algo fora
de uma realidade que deveria ser divinal pela presença do “amor ao próximo”
Queria orações mas com preces politizadas (todo homem não é um animal
político? - como dizia o filósofo Sócrates; tudo na vida não é mesmo política?
- como pregou Bertold Brecht?.) Queria preces com obras, com os religiosos
verdadeiros pegando no breu para produzirem mudanças, pondo a mão na
massa para mudar estruturas oligárquicas, acumulativo capitalismo inumano,
visando alcançar objetivos lícitos e imediatos em favor da maioria da
população pobre e oprimida, a gama maior da população mundial, vivendo na
miséria absoluta. Captou que os seminaristas noviços eram moles, frágeis,
ovelhas de certa forma tosqueadas, e mais queriam sombra e água fresca, não
arregaçar as mangas e se juntarem a favelados, sem terra, sem tetos, sem
empregos. Sem Amor.
64
Amor aos coitados, era chamado de Santo. Mas quando ensinava os coitados a
pensar (e se mobilizarem, votando melhor, agindo criticamente, argüindo por
direitos até mesmo Constitucionais ou humanitários) era tachado até por
membros de parte da diocese alienada (ou comprometida com coronéis do
arbítrio ou arautos da mesmice vulgar) de “Comunista”. Também lembrou-se
de ter conhecido o Padre Lancelotti, aquele sim, um verdadeiro mensageiro de
Deus, um homem de muita fé e inquestionável prática cristã de caridade. Um
homem de ação. Um humanista de valor. Pois, brincando, os irmãos do Padre
Júlio Lancelotti, o chamavam de “Madre Teresa” de Batina, pois envolvia-se
com as crianças com Aids depositadas em repartições públicas, um homem da
rua, um padre de rua, um servo de Deus de rua.
Era seguro de si, mas não estava inteiramente satisfeito. Estava mal
completado ali. Tinha que avaliar melhor, medir a situação toda
Ali tudo era muito cômodo. Calmo e, paradoxalmente, no seu entender crítico,
vazio demais. Era tranqüilo apesar de, de certa forma inútil como fito
precípuo, primordial de Soma. Queria movimento por justiça social,
mobilização da maioria da população. Ali não fazia muito sentido. Aquela boa
turma retida a só caprichosamente rezar ali, se fosse para uma das favelas do
alto da Serra do Mar, perto do gaseoduto que subia de Cubatão, seria muito
mais humana e cristã, ajudando, construindo, dizendo de Cristo e mostrando
obras feitas com as mãos de todos, leigos e pastores. Estava errado? Como
Cristão sabia que não estava.
Precisava passar sua delicada opinião crítica para o Conselho que reinava ali,
que regia o local.
Ombudsman?
-0-
65
ONZE
Deixou nas mãos do Criador do mundo, o passo seguinte. Sua vida tinha sido
assim: ele a conduzira com suas próprias mãos, passo a passo, e agora, ali, lhe
dizia respeito de espiritualidade e humanismo. Queria morrer fazendo o bem,
não ganhando milhões e torrando em cassinos, cruzeiros, bastidores políticos
de corrupto liberais e obras inúteis, superfaturadas e mais totens de mídia para
um grupo de ladrões e corruptos com trânsito municipal, estadual, federal e
internacional, regido pelo maior corrupto do Brasil, o turco corrupto
66
maquiando o estilo político- eleitoreiro com o mote sem-vergonha do, “rouba,
mas DIZ QUE FAZ!”
Pois, e isso era o mais incrível – jamais esqueceria a visão de 360 graus do
momento quase que de várias dimensões:
Sim, Anjos enormes, quase dois metros de altura, com magníficas asas
sinuosas em prata-neon luzente que pendiam das omoplatas até quase abaixo
da parte traseira dos joelhos, em tons lilases que refletiam como se um fulgor
de gás palpável, um esplendor divinal. Pareciam estarem a supervisionar a
caridade ali notória, como se estivessem, de alguma forma também, na mente,
nas mãos, nas intenções daquelas pessoas meigas e práticas. Sim, eram Anjos.
Pareciam membros de uma orquestra, mentores de alguma mudança que
imperiosamente se fazia necessária.
Mais não era uns quantos apenas. Sim, eram vários, muitíssimos, aqui e ali,
onde alguém ajudava alguém, um anjo acendia-se presente, com sua
magnitude, talvez auditando valores humanos, talvez registrando a presença
de Deus no mais íntimo de cada um. E ele vira – vira e sentira – o que aqueles
anjos ali na verdade representavam de implícito até.
67
Sendo uma falange deles, aqui e ali, deveria haver uma missão própria,
antecipando alguma coisa?. Seria? E foi isso que seu sensorial captou inteiro,
cabal e completo. Evacuação? A Igreja arrebatada nos ares?
O que mais sentira totalmente - tinha até medo de pensar - lembrar-se, para
não conspurcar com a blasfêmia de seu novo sentir edificante. Era muito para
conter-se em si. Tinha que administrar bem AQUILO QUE SABIA, para que
purgasse em si, não o demonstrasse tresloucado.
Enquanto isso, na soma ao que lhe tinha sido Revelado (só ele entendia
aquilo), seu destino era decidido numa sala a duzentos metros dali.
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Seria expulso?
Seus estudos bem adiantados valeriam alguma coisa, para o caso de querer
voltar ou prosseguir os estudos bíblicos num outro local? Ou, se precisasse
trabalhar, poderia lecionar Teologia, Filosofia?
69
DOZE
Seus avós caboclos por parte de pai, velhos arigós, ao venderem uns bens,
umas terras no distante sul do Paraná, deram parte a um filho e parte a um
sobrinho e primo-irmão do filho único, criado em família por causa da morte
precoce dos pai deles, num acidente ferroviário lados do Porto Paranaguá,
litoral do Paraná. Um, logo pegou o quantum herdado e saiu de casa, em busca
de seu destino. Nunca mais foi visto e nem deu notícias. Desapareceu.
O outro, meio manteiga derretido, caseiro, restou-se por ali em Itararé mesmo,
vendendo bananas num boteco que alugou em ponto de embarque e
desembarque de jardineiras que faziam trajetos rurais.
Pois esse sr. com o dote de partilha, muito trabalhador e poupador, depois
ainda recebendo a herança dos pais, ficou muito rico, casou-se, tornou-se
empresário, pouco ligando para igreja mas freqüentando-a por um desencargo
de consciência (nunca se sabe o dia de amanhã), e, poupando cada vez mais,
passando-se à pão e água, além de quizilento e unha de fome, mão de vaca e
miseravelmente recluso socialmente, em décadas ficou ainda muito mais rico,
casou, divorciou-se, casou-se outra vez, perdeu a mulher, ficou viúvo. E numa
das tantas aventuras extraconjugais, entre um casamento e outro, ele nascera
de uma empregadinha da empresa comercial do pai que era a sua mãe jovem e
algo inocente, filho bastardo desse empresário rico, só que nunca reconhecido
de papel oficial pelo pai, chutando essa enganada caixa de supermercado que
fora seduzido com a promessa de um anel, uma promoção, uma viagem.
70
segurando no seu lugar, intimidada que foi para não abrir o bico, não dar com
a língua nos dentes, ficar na sua.
Era o Paulo Banana que ia, carrinho de mão enferrujado, de bar em bar, de
casa em casa, de rua em rua, gritando sua mercadoria, seu preço, suas
qualidades – pintadinhas, amarelinhas, caturras – com dez ou doze horas de
trabalho, mais poupanças (tinha a quem puxar pelo lado do genitor), ajudando
à mãe que continuara solteira e infeliz depois dele, a sobreviver. Tivera uma
infância difícil. Sua mãe dissera que passara fome com ele na barriga. Depois
ela sentira a fome na primeira infância também. Então ele teria que ser forte. E
ele o seria. Sentia que poderia enfrentar a barra pesada que era o verbo Viver.
Só quem passa fome uma vez na vida, e tem um mínimo de brio, de vergonha,
de caráter e de determinação, pode compreender inteiro o baixio rés do chão
da miserabilidade, da finitude humana. Não há sensações no esquecimento.
Tendo pego a mochila que lhe deram de presente por gratidão de companhia,
uns trocados para as passagens e um lanche gordo e suculento numa sacola
encardida de juta, o Irmão Saulo (fora autorizado a manter o nome de fé), mal
71
entrou num ônibus intermunicipal sentido da periferia de São :Paulo, lado
contrário à saída da Anchieta, lados do acesso à serra do Mar, no ônibus
sacolejante foi relembrando seu passado como se um retrato fiel de sua
galhardia, sem perder a ternura jamais, sem perder as raízes, os símbolos de
origem, o quem, certamente, o levaram a avaliar melhor a vida, e tomar as
atitudes que tomara de corpo aberto.
Foi quando, rapidamente e a grosso modo, sem querer até, viu uma placa, lado
de uma estradela de terra branca, sentido de um matagal em aclive, que dizia:
Precisa-se de caseiro. E havia uma seta, indicando o lugar de subida, sentido
do local de procura e necessidade, mais um número de portão e também um
telefone para contato. Era um aviso? Tocou-se.
72
De como Deus o vinha preparando. Como não reparara antes? Da vez que,
passando fome – quando chegara em São Paulo, a título de pedir dispensa do
exército por ser pé chato e também arrimo de família, filho único – foi
interpelado por uma senhora idosa que, mal sabendo seu nome, mal se
identificando, deu-lhe uma cópia da chave, dizendo: Você está passando fome,
pode ir comer lá em casa todo meio-dia. O quê Deus fazia acontecer, sempre,
em sua vida?
Nunca soube o nome da mulher. Quando melhorou de vida, e quis ir lhe levar
um presente, conversar inteiro com ela, sabê-la, foi que soube por terceiros
que tinha se mudado e, no novo endereço que dera de procurar, um vizinho
dissera que, ela mal mudara, teria morrido de um ataque de asma crônica. Aí
então disseram, o que mal sabiam da vizinha nova, o nome: Dona Maria.
De outra feita, morando numa pensão no Bixiga, indo jantar tarde da noite,
fora avisado (intuição?) que iria ser assaltado. Cuidou-se. Pois se livrara,
fazendo um novo percurso extraordinariamente maior. Tinha tanta história de
estranhos diminutos “milagres” para contar, que, trabalhando sempre,
estudando muito – nas férias, nos feriados, nos finais de ano – foi poupando
até fazer os cursos regulares em escola pública à noite, cursos complementares
e cursinhos em escola particular, depois de alguns anos e vários vestibulares
ruins conseguira a sorte de entrar na Universidade de São Paulo, a famosa
USP.
Pois casou-se com a moça meio encalhada mas idônea, amiga, prestativa e
séria. Ela ajudou-o Tinha poupado grande parte da herança materna falecida à
poucos anos, juntos guardaram mais grana, até que finalmente, com a
concessão estimada do velho patrão já entrando em idade e sem herdeiros,
compraram parte da firma, Paulo finalmente dera um final de vida digno à
mãe (o pai que o renegara era riquíssimo empresário dono de vários pontos
73
comerciais, latifúndios e imóveis na região de Itararé), a esposa com a partilha
da herança recebida do pai que morreu anos depois partiu para um doutorado
na USP eu era seu sonho, sua lenda pessoal, dera lhe filhos corretos e
perfeitos, todos varões, largando-o como sócio majoritário na empresa pois
confiava nele e queria fazer carreira acadêmica que tinha sido sempre seu
sonho e agora o realizaria com ajuda do marido de boa índole, um caipira
oriundo de Itararé, cidade que conhecia de viagens turísticas com amigos do
Diretório Acadêmico de quando fizera curso em escola particular.
Pois ele vira o que vira – OS ANJOS, OS ANJOS! – e soubera identificar tudo
isso, de forma abrangente e maravilhosamente divinal.
Pois aceitara a missão que captou no íntimo e ali estava. Mal ouviu um
cachorro latir no mato, viu o número e a plaquinha indicativa, entre hibiscos
murchos: Chácara das Rosas, Número 333, Bairro das Virtudes. Viu um
campônio magro e velho carpindo perto de uma cerca verde. Bateu palmas. O
cachorro latiu alto. Umas árvores de acácias amarelas sopraram acenos ao
sabor de um alísio primaveril. Um sabiá de peito marrom comia grãos no
estrume largo de uma vaca que pastava pertinho. Um rio murmurava sua
sanfona lânguida nas imediações.
74
O velhote veio vindo e Irmão Saulo sentiu a presença de Deus ali. Sem
entender porque, lembrou-se alhures de um colega de seminário, o mais
afeminado de todos, cabelos louros, oxigenados, sorriso maroto, que parecia
temer-no. Ouviu comentários que o tal tipo de nome Walter Bello volta e meia
blasfemava entre pares absortos em trabalhos árduos, que Deus era Mãe.
Não entendeu o que o fato desprezível ligara com a paz que trazia em si.
Parecia uma revelação de que aquele louro era o pecado, o mal em pessoa.
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O caseiro era crente e não via com bons olhos os reclusos homens barbados do
convento a pouco mais de dez quilômetros, sentido serra do mar.
-Abandonei o Mosteiro, disse Saulo. Aquilo soou como se pela voz do alísio
que beliscou o espaço derredor.
Isso fazia sentido. Isso mexeu com a simpatia nova do velhote fechado de
nome Aarão.
-Vamos lá dentro, tomar uma água fresca da bica, conversar sobre o emprego,
os afazeres, disse o caseiro velho que estava aposentado e só morava ali de
favor, mas já não dava muito no couro da empreita completa pretendia pelo
dono do lugar, cujo terreno quase dava certinho um alqueire de terras
devolutas, parte legalizada de forma bem suspeita, parte com mata virgem
protegida pelo IBAMA, parte com criações, plantios, hortas e tudo mais.
Saulo compreendeu que, nas horas vagas, dissimulando se fosse preciso, iria
levar alguma coisa para casebres próximos, fazer preces, ajudar a rebocarem
humildes e precários barracos, aceitar denúncias verídicas, fazer vistorias
como meio paramédico (aprendera depressa, tinha interesse), aprontar
denuncias e rastreá-las sendo averiguadas, grosso modo, de abandonos sociais,
chamar a imprensa, preciso fosse. E ali, naquela chácara, era um bom lugar
não apenas de observação, mas de pisar a terra, saber, ler, ajudar, construir,
crescer.
76
Olhou o velhote e sentiu que ele lhe poderia ser muito útil, pois conhecia bem
o local, parecia honesto em que pese meio arigó, no sentido bom da palavra.
Seria um amigo e tanto, mal sabia ele.
-Não sei porque, disse o homem, mas, ao mesmo tempo em que gostei do sr.,
em que me simpatizei, fui com a sua fachada, vamos dizer assim - acho que
dará conta do trampo todo - ao mesmo tempo uma voz que não soa diz que eu
vou me arrepender de estar lhe confiando esse lugar. Que barbaridade,
exclamou, puxando uma toada rústica num assobio de taquara rachada que
soou algo desafinado.
-0-
77
TREZE
Sofreu pra cachorro, tentando aprender alguma coisa de útil, já algo velho que
era. Estava desacostumado de pegar feio no batente. Foi dura a fase entre o
que tivera no confinamento a engordar do Mosteiro, e aquele novo serviçio
braçal e pesado ali. Mas suportou. Negar-se era queimar ou pular etapas.
Foi numa edição de um diário paulista que leu um texto do Jornalista Casoy
que tinha a ver com seu compreender a vida e as relações humanas, e que dizia
mais ou menos isso:
78
O Irmão Saulo fez um bom trabalho nas redondezas. Sem se dizer católico
praticamente (e o era, tinha sido algum dia?), ajudava todo mundo. O velho
Aarão dizia que ele podia ser crente, daria um, belo exemplar de “irmão” tinha
feitio para isso, confessou encantado, até tentou convertê-lo, pois ele não
bebia, não fumava, não dizia impropérios, lia muito a Bíblia (o crucifixo que
passara a usar, só se valia em lugar discreto, na intimidade).
O velhote ficou adorando-o, pois era quinze anos mais moço e bem sabia lidar
com as coisas, era bom de papo, sabia tratar bem a criação, e o que não sabia,
logo queria saber, aprender, tal como afiar faca, pegar peixe, fazer cabo
artesanal de martelo ou enxada, afiar serrote, capar porco, tirar leite, fazer
lavoura de feijão, época de colher o milho, saber ler ventos, luas – identificava
chuva do mar, geada, neblina, temporal. Empirismo? O velhote era um sábio
ao seu jeito.
Com seu empirismo, tinha muito o que passar. E ele sabia aprender com a
vida, as vicissitudes, as pessoas. Sempre soubera. Sabia ler angustia demorada
nos olhos turvos da mãe pregada dia e noite no tanque ou no ferro de passar
roupa cheio de brasas. Sabia ler grandeza nos gestos da primeira mulher com
quem se casara por amor. Apenas ficara vendido quando tornara-se em vicio e
tivera, provocado na sua virilidade latente, uma amante – erro de avaliação e
percurso – que o laçara, com ameaças de fazer arruaças, denúncias, cair na
má boca do povo ou virar refém de manchetes de jornais, pelos negócios
escusos que o escritório herdado lhe deixara de mau lastro, de empresariado
fundado em mau-caratismos e outros jeitos nefastos, inidôneos. Agora ele
sabia avaliar bem, avaliar melhor, avaliar tudo. Aquele velho era uma mão na
roda. Ombro amigo, confidente.
Não tinha obrigações, vivia ali de favor, como se um encostado, mas servia-o
e muito bem. Era pau pra toda obra, como diziam em Itararé. Precisavam um
do outro. Só implicava quando o velho falava de sua religião como absoluta.
Então ele falava de um Cristianismo puro, sem placa de igreja. O companheiro
não compreendia cem por cento, mas ainda assim admirava-o, respeitava-o, e
assim viam bem. Paulo tinha lido sobre Islamismo, judaísmo, janismo e
marxismo no Mosteiro.
O velhote gostava ainda mais, quando ele recebia a pouca grana do salário e
sem medir tempo de reter o parco valor, doava quase tudo, além de levar
79
laranja, couve, remédios, roupas e palavras de amparo para os coitados das
imediações. Com isso, com o passar do tempo, o local logo ficou concorrido,
manjado, famoso, como se um pronto socorro para tudo.
O velho crente até pensou em botar uma baiúca ali, para vender quitutes e
guloseimas caseiras, mas depois temeu sofrer reprimenda do patrão que não
sabia de nada pois em vinte anos apenas dera as caras por ali umas poucas
vezes. Parecia que era ligado ao ramo de cimento, da empresa Votorantin, mas
que vivia mais no Texas, Estados Unidos, do que no Brasil. Devia ser filho de
gente fina, importante. Gente cuidando de ficar mais rica do que já era, e os
pobres mais pobres do que tinham sido.
Pois o Seu Saulo ganhou destaque, alguns barracos foram sendo construído ali
por perto, arredondando de gente carente nas imediações, gente simples foi
recorrendo à ele – quando precisava, acionava o Mosteiro (chegou a passar
alguns domingos por lá, levando doce de abóbora que aprendera a fazer com o
velho bom de forno e fogão), quando vinham remédios, problemas jurídicos
ganhavam aparato de um Bispo mais aberto, enfim, tudo se resolvia na santa
paz.
Saulo passou a morar num paiol que pintou de verde, depois de limpá-lo,
arejá-lo e fazer uma varanda que rodeava o lugar de sombras por causa das
samambaias que dependurou por perto. Adorava flores e pássaros. . Dali
despachava diariamente com dezenas de pessoas que faziam fila para uma
consulta rápida. Não benzia, não orava, nem rezava ou falava de religião – não
era isso exatamente o que queria – nem deixava em hipótese alguma que o
tomassem por beato ou santo. Era um com um, dizia, humilde. Tocava as
pessoas com feridas, doentes, picadas de bichos, com amarelão, varíola,
AIDS, dava remédios caseiros, indicava raízes e ervas para chá. Era mais um
atendimento espiritual?
80
E para rodas de convívio e explanação, tinha uma palavra de fé, de
encorajamento, um ombro amigo, um consolo. Lia a Bíblia, pedia que as
pessoas buscassem à Deus, só adorassem Jesus Cristo, nem imagens,
símbolos, retratos, e nem se preocupassem com ele que era só de si mesmo
mas era inteiro e feliz sendo útil entre eles. Só se lembrassem dele nas preces.
Mas as pessoas iam e vinham, trazendo problemas, galinhas de doações, doces
cristalizados, alguns pares de roupa usada (ele vivia com uma única roupa
quase uniforme, uma calca jeans surrada, chinelo de dedo preto, malha
branca.) E isso lhe bastava. Tinha à Deus no coração e nas benfeitorias.
Do mesmo modo que era admirado, querido, é claro que despertou olho gordo,
inveja e maledicência. Tinha sido intimado por um delegado, a titulo de
indiciá-lo por falso beato, curandeirismo. Deu um telefonema demorado, o
delega pediu desculpas e deixou de pegar no pé dele.
Aarão, que não era bobo, ficou impressionado com Seu Saulo. Aquele homem
daria um pastor e tanto. Daria um missionário, um padre, um, professor, um
belo e magnífico servo de Deus. Mal compreendeu que Saulo o era. Era uma
ovelha escolhida a dedo. Dedo de Deus.
81
Queria voltar para as ruas de São Paulo. Tinha muita coisa a fazer. Tinha se
passado cinco anos que saíra de casa, fugido, estava ficando velho, queria
experimentar novamente a sensação de ver o que vira. Queria saber se ELES
estavam presentes ainda. Queria identificar-se entre eles, achara que tivera um
bom treino e fizera por merecer sabê-los. Sim, era isso, voltaria para as ruas.
Ninguém mais o reconheceria do jeito encardido e mais calvo que estava.
Estava maduro, pronto. Mudara. Pela face era puro outra vez, simples, limpo.
Pareceria mais com os pobres do que da primeira vez. Estava seguro disso.
Seria inteiramente um deles agora. Tinha a linguagem dos pobres nas mãos,
nos gestos, nos olhos, nas palavras. Ettão haveria de estudar, pesquisar e
compreender – também com a Bíblia que bem lera tantas vezes; com os
excelentes cursos (e uma nova visão filosófica, teológica conceitual-religiosa)
que aprendera no Mosteiro, saberia entregar-se mais, de corpo e alma, à causa
que abraçara como se punho e pulso do seu se sentir vivo. Achara a resposta?
Viver era lutar? Cristo era caridade? Amar ao próximo como se à si mesmo?
Estava bem encaminhado.
Durante uma semana foi se despedindo secretamente das pessoas, das coisas,
do ambiente, dos animais. Foi se despedindo a prestação, escondido, silente,
até que, de repente, de uma hora pra outra, simplesmente sumiu de circulação.
Os sem terra, sem teto, sem salário, sem emprego, sem Deus, sem Amor, das
ruas de São Paulo, ganharam seu peso em ouro: o irmão Paulo de Tarso que
82
assumiu o nome de seu documento, já que não despertava mais atenção e
suspeita, achou isso.
Com nada de si, mal que um saco de estopa, alguns trocados, uns papéis
(cadernos e cadernos), mais um carrinho velho de supermercado (comprara
num lixão – vira tipos destes na televisão andando pelas ruas dos Estados
Unidos e mesmo em países da velha Europa, dito berço da civilização) e
resolvera de chegar ao seu povo, a arraia miúda, os borra-botas dessa maneira,
pois era inteiramente um deles. Voltara à luta. Estava de novo entre os
humildes sem terem onde cair mortos. Que bem-aventurado fosse. Que Deus
tomasse tento de sua grandeza. Era ele de novo, em estrada nova, em
proporção e grandeza. Queria ver à Deus na pessoa do mais próximo e
desesperado que houvesse.
Resolveu desembarcar desse jeito no centro velho de São Paulo, numa ruela
onde vários mendigos se amontoavam dormindo, e onde, pertinho, num canto
ermo regado de sombras, crianças de tudo usavam craks e policiais passavam
mais batendo e surrupiando do que prendendo, identificando, levando para
hospitais ou casas de repouso, talvez algum lugar que ajudasse a recuperar a
fauna da noite enferma de São Paulo.
Arrumou seu saco de estopa, sua caixa de papelão (cobria a cabeça do sereno),
seu cobertor, sua chaleira (aprendera com caminhoneiros a fazer café de um
jeito fácil, rápido e comum), e assim daria o resto de sua vida a servir, ser útil.
Foi quando viu de perto o que estivera até então se preparando (e como se
treinando) para VER.
83
QUATORZE
Era uma madrugada extremamente fria de julho, não tinham jantado – já era
reconhecido, admirado e bem aceito no local cheirando à urina velha e esgoto
rente – quando chegou uma senhora trazendo - tirando de dentro de uma velha
brasília amarela já queimando óleo ruim - uns latões enormes de sopa quente e
gordurosa de macarrão cortadinho com feijão-jalo.
E ele viu.
Por ali, como se “guardas” vestidos de alguma roupa iluminada de prata, coisa
radioativa, os ANJOS davam segurança (a velha e o parceiro de óculos de
fundo de garrafa sabiam?) e supervisionavam a obra de Deus manifesta além
de orações, mas de assistencialismo imediato, direto e objetivo aos seres
largados nas sarjetas da vida, prestes a morrer de fome, na miséria absoluta.
Então Paulo levantou-se resoluto, sem medir risco, sem medo de ser feliz.
Não para comer um pouco e suprir sua fome de pão, mas levantou-se e
caminhou para um amigo que dormia o porre de horas antes. Queria
testemunhas. Queria fazê-lo documento de registro.
-Veja aqui, Dito Baleia; veja ali; veja no alto do prédio da Polícia Federal,
veja ali perto da porta com corrente do metrô. Veja, parado no ar, perto da
Igreja de São Cristóvão, veja! veja!
O mendigo acordou, olhou para o nada ainda aturdido de susto e medo, recém
desperto, teimou o reparo apurado (e forçando o ímpeto de assomar-se) mas
não viu nada, sentiu o cheiro da comida – cheirava a azedo de vômito, baba,
remela e cachaça ruim vencida – e faminto largou o amigo ali, apressadamente
ganhando rumo da fila para a sopa, onde tomaria sua porção de ração de amor
numa enferrujada latinha velha de leite Ninho.
Chegou perto.
84
O “anjo” maravilhosamente brilhava uma “radiação fria”. Quando olhou nos
olhos daquele ver que não imaginava ter coragem para assimilar em todos os
sentidos (o tanto), sentiu uma dor – no cérebro, na retina, no coração, na alma,
no espírito (um choque) e caiu, DESMAIANDO (COMO SE SOFRENDO
UM DESMANCHE DE OSSOS, PELE, MÚSCULOS, VEIAS E NERVOS) –
Quedou em átomo, sons, palavras, sentidos vitais. Vazara o globo ocular?
Estava cego de ver a maior obra de Deus, muito melhor e imensamente acima
do ser humano.
-0-
85
CAPÍTULO SEGUNDO – SALMO (ARREBATAMENTO)
86
UM concha oval, quase um útero de
placa-mãe. E dentro de onde agora
eu estava – parecia uma placenta
lilás da natureza – eu “via” (não sei
se esse é o exato verbo) sons
“Creio na prática e na filosofia do que se dodecafônico não decodificados. E
convencionou chamar de magia, e no que sentia o toque presencial ( como se
devo chamar de invocação dos espíritos, o dedo do Intocável!) vindo em
embora sem saber o que são, no poder de formato de uma espécie
criar ilusões mágicas, nas visões da desconhecida de som magistral,
verdade nas profundezas da mente arrebatador, e esse Som, pelo que,
quando os olhos estão fechados(...). E
aturdido, busquei compreender
creio que as fronteiras da nossa mente
mudam-se constantemente, que muitas quase insano de alguma maneira ou
mentes podem fluir em outras, e criar ou por alguma arrebentação no todo
revelar uma mente única, uma única sensorial-sentidor de mim,
energia(..). Creio que as memórias são FALAVA-ME!. Quereria um
parte de uma grande memória, a memória veredicto? Pedia assento para
da própria natureza.”
inédita lavra? Livre arbítrio?
(Ideas of Good and Evil – W.B. Yeats) Nenhuma das alternativas
anteriores? Falava dentro de mim
naquele estágio-estado, como se eu
......................................................... fosse metamorfoseado espécie de
mutante hospedeiro de algum
altíssimo Elo-lume genético-sideral
adquirido. E onde eu estava, eu não
(Eu estava dentro de uma Bolha, e me compunha completamente em
essa “bolha” feito nebulosa binária mim, mas dentro da partícula-
nutria-se-me sem aparentes dutos láctea-cosmonal de um outro novo
ou drenos. E haviam dois sóis, e eu espaço-tempo-(existencial), talvez
tinha dois corpos, dois espíritos, tocando a nau de ícaros do
duas almas, duas mentes, dois improvável, talvez silo de alguma
corações. Tudo era duplo etéreo em presença terreal para muito além do
mim. Eu saíra de um vazio infinital, que podia residir e assim
caminhara para dentro de uma representar como um Ser-Ente. E
espécie de túnel de luz – zilhões de nesse presencial eu era tornado
olhos de todas as dimensões-chaves finalmente um novo semeador, não
acompanhavam minha queda para entendi bem do quê, de quem, para
aquele vôo abissal – e me quedara quê, quem, quando e como. Tudo
ali naquela bolha em formato de era confuso, mas, sem paradoxo, ao
87
mesmo tempo magnificamente, dentro do mais sublime ACIMA
magistralmente confuso. Surpreso DE MIM, de um deserto onde
mas estranhamente calmo (e purgaram-se todas as minhas
“aclareado” de alguma maneira) divindades – e não me cabia no
dentro daquela imensa bolha-bolsa- assento sacrificial do meu duplo ser
(nau?) - convenci-me feliz a entre “Euses...” -Era geleia
identificá-la assim – eu via-criava cristalíssima num quartzo-neon de
espécies de totens neobarrocos de um gomo do sagrado em meu
luzes cujos sons eram senhas- próprio deleite. Quem era eu ali?
chaves (códigos legados). E eu “lia” Fragmento-pó de átomo de folha
(isso foi o que senti naquele estar corrida de Existir? Um não-lugar
extraordinário como se num me fora dado para a travessia do
refluxo-eixo de ser sugado como se descanso; a vacância entre o
fosse todo poro; cevado para um passado e o estágio profano
funil) toda uma rampa invisível do seguinte? – Não sou: estou a
meu cérebro, o meu paraespirito (ou procura de. (Será que morrer era
metaespírito), a minha alma-nuvem como ser tirado de um peito da mãe
naquele estojo de pelica de meu vida, abrir-se em choro, até ter um
paradeiro talvez de alguma forma outro seio à mão para continuar
supraestrelar. Por um momento linhagem nova em seio de degrau
(ácido-nucleico) veio-me à mente seguinte?) Eu tinha pré-morrido e
uma frase que lera de algum estava naquele gomo vivencial.
cientista (cujo nome não me era (Todos estão perdidos no seu
inteirado ali no mosaico de fulcro século, o século está perdido no
do fluxo quase inconsciente com tempo, e o tempo está perdido no
meu conscienciar pinçando alhures incompreensível?) - Eu não me
palavras-coisas) que uma bigorna, lembrava de nada que me ocorrera
um poema, um sopro de vento, uma ou tinha sido dado antes. Só pedia a
abóbora ou uma vaca eram formas Deus para não sofrer muito, caísse
diferentes de uma mesma energia e onde caísse, qualquer que fosse
então submetidas às mesmas leis minha sentença adquirida, meu grau
cósmicas que regem o infinital de polimento maturando inusitadas
universo (e suas dobras de buracos lógicas até incompreensíveis ali. Eu
negros da espécie), mas possuíam só sabia que era algo-coisa, porque
características comum: não existem, a própria Bolha era também uma
não são matérias, e, reduzidas às espécie de gaveta côncava de
suas essências quânticas manuscritos pertenciais que me
primordiais não passavam de davam cunho neural. Talvez eu
energias concentradas. Eu fosse uma célula de pertencimento
divagava? - Eu estava nos ares – ulterior, e eu, fosse quem fosse,
88
vivia ali (depois de cego? – morto? alguma fonte de áccua fidedigna,
- Como captei isso?) mal me energética, sideralmente água-
cabendo de contentamento perene e composta de espírito-Luz! Eu mal
extremamente essencial, me cabia em mim de contentamento
dinamizado por estar daquela forma imedível, e no entanto eu era puro e
inusitada e incrível “morto” para simplesmente um NADA. Eu
outras dobras da Vida como um estava dentro do in loco do tudo
todo. Eu estaria no paraíso? Aquilo que era um outro “mundo ? Era o
era o único céu de todas as crenças? trono do carpinteiro/marceneiro do
Aquele “lagar-lugar” então era o universo? Recebi a resposta
verdadeiro verbo “religare”? afirmativa com nãos e sins, e
Pareceu-me estar ouvindo (o positiva como se um punho me
silêncio espiral do meu dentro era socasse a interação da postura.
só espirito-alma) palavras num Então seria ELE – o Sem Nome –
misto de hebraico – tudo em braile que no pouco era o Verbo, que fez-
epidérmico-sensorial - meio se Criador no caos do inexistente, e
sânscrito, meio aramaico antigo, que me produzia, como a bilhões,
meio língua estranha nesse um fruto em miserável & ente?
liqüidificador-mistura; sim, tudo Então eu tinha visto permanente
isso num invólucro sensorial, para ser chamado O Escolhido. Era
tamanho, inexplicável. Senti como um estado de Salmo Arrebatador?
se uma verruma de arco-de-pua Sim, ouvi sem ouvir, a inflexão, o
invisível mas de certa forma táctil, impulso possante do silêncio
abrindo alguma cavidade nevrálgica indizível tocar respostas no gene
de algum pomo de adão do meu primordial da ilha do meu genoma-
cérebro anterior. Houve um curto- centro de condenado a voltar a
circuito feito orgasmo mental Existir. Era um “enter” para eu
eletrizante que durou a eternidade escolher estojo, mas eu me queria
inteira de alguns micro-milésimos de mim em mim, sempre
de átomos de segundos, feito flash descansando naquele colo do maior
de relâmpago contido na minha Pai Abrahão, silêncio sem
limitação, depois senti o documento. Tinha escolhido ser
psicossomático somatizar, oferta? Tinha estado com os
pontilhando de bisturis, gruas, miseráveis, e, sim, lembrava-me,
zíperes, ignições, irrigações e queria voltar ao compromisso de
correntes de gambiarras de energia ser Ser Humano perante eles, até
atomal com o vácuo de uma luz- ser definitivamente plugado para o
matriz, sem rótulo-nome. Que curso arrebatamento final nos ares dos
de não-círio aquilo me daria, ainda quatro cantos do mundo, como
ali um Sem-nome, a beber de estava escrito no livro das profecias
89
de João. (“Agora vejo por espelho- fracos e oprimidos, os
enigma. Mas verei face a face”) -O abandonados, os descamisados, os
que se cumpria em mim era rejeitos sociais, e ser, com eles, um
referencial de aceitação, o chamado excluído do livro dos homens
libre arbítrio da engrenagem da notáveis, mas, com certeza que
roda da vida, mas eu não queria sair estaria registrado no Livro dos
mais do potássio/oxigênio/ácido Céus. Que lugar era aquele – ah a
laico/sais de minha sozinhês no maldita aventura da curiosidade (e
estofo daquele estágio peregrino e imaginação) humana! – em que eu
sonhador que eu era. Queria me restava hospitaleiro? Quem era
continuar caminhante e ser o Saulo eu de presencial ali? (O Ser
que ali estava da trilha da Estrada Humano não podia suportar tanta
de Todas as Decisões. Se era uma realidade?) Parte de uma grande
avaliação oxigenal, eu aceitava o fala pluridimensional? Pois deleitei-
crivo de. Se era um purgar-se, eu me. Não sabia se estava vestido de
faria o teste da estadia. Senti-me vida, de pé, espírito, voando (eu me
num hospital feito UTI, mas tudo sentia assim), para experimentar o
ao meu presencial simplório e desfrute da vagação e deixei-me ir,
imediatista se resumia na mesmo sem sair dali, sem sair-me
contemplação-pincel-scanner de do Eu de mim. Que emissor e
uma bolha que era minha primeira receptor eram aqueles, num
pele, na tessitura de uma capa de entendimento parapsíquico,
resto. Pior: Eu era uma bolha antes abrangente, sofisticado, baseado na
de ser um Ser número um com descoincidência vígil dos veículos
vestimenta-pele qualquer? Minha de manifestação de consciência?.
voz não se soava. Ainda não a Eu ali deixava de me existir
tinham escolhido para a minha sozinho, começando a participar de
estética compleição finalizadora. Eu uma grupalidade que poderia
era todo – espírito, corpo, alma, chegar às gestações conscienciais?
mente – um espécie de alma- Antes eu era indeciso, ali nem mais
catamarã: sintonia fina da Vida tinha tanta certeza assim. Precisava
Eterna? Tive medo de mim sendo elaborar essa experiência,
isso, o que quer que “isso” fosse. transformar em palavra. E eis que
Eu queria – como lera de um poema aturdido vi meu corpo entendido no
espanhol – era mesmo subir numa chão do retorno. Era uma calçada
escada e tirar os cravos da cruz do suja, feia e úmida, perto de um breu
Mestre Rabi sofredor, para tirar do humanídeo, noturno total, perto da
seu rosto a sofrência, e deveria Estação da Luz do metrô, fétido
(precisava – intimamente, devia centro velho de São Paulo, e uma
isso à mim mesmo) estar com os horda de mendigos se preocupava
90
comigo (ou do que me restava
menos do que posta humana ali) –
eu estava acima deles todos; 360
graus acima! – ou, pelo menos a
bolha invisível de onde eu acabara
de apear num desembarque
dolorosamente podre para o retorno
de ser novamente o Eu
miseravelmente simplório e finito
de volta.)
.........................................................
91
DOIS
(Eliphas Levi)
Uma oxigenada repórter frila que, de faro fino cheirara mais do que a simples
e triste rua do crack por ali, por ser área de infrações de rotina estava pensando
em montar um documentário sobre os “pais de ruas” de menores infratores,
subitamente passou a filmar o amontado todo do ocasional entrevero, e,
parece-me que um reator inexplicável qualquer - preso por uma grua no
gerador da picape com canhão de luz informatizado - como que
circunstancialmente “varreu-me”, de certa forma com um certo chamativo do
Eu de mim à dura realidade corpórea e terrenal, atiçando meus pontos
positivos de vivacidade que o instintal acessa, que, finalmente, numa espécie
de soco-sopro (à seco) fui-me despojado inteiro e completamente para fora da
“bolha” (bolha?) e, de forma abrupta (susto, medo, sangue humano – Ai
podridão de ancestrais!) dei-me de novo comigo ali (cacos de espelho
quebrado no íntimo pela descida de novo ao “inferno” da crosta terrestre),
novamente redivivo, pobre e finito serzinho a mendigar novamente agora a
textura do oxigênio do mundo insano, fluxo de necessária consciência, algo
quebrado como arroz de terceira, rompido de uma estadia inexplicável (eu
estivera numa dobra dimensional de um outro mundo?), ganhando nódoas de
movimentos parcos, parecendo que, de certa forma levara, de alguma maneira
sem entendimento de palavra explicável que seja numa hermenêutica
coloquial, um tremendo choque (de dobra de algum “campo do espaço”), e, de
novo algo consciente ali, por impulso imediatista levei a adormecida mão
92
direita aos olhos dolorosos, procurando como que, a qualquer custo romper a
pupila que parecia ter uma remela vítrea, a íris não vindo-me como deveria –
senti-me desesperado, numa estranha distonia – quando finalmente percebi
(pelo toque algo abrupto do dedo indicativo) que eu tinha uma espécie rústica
de gaze com crosta a cobrir os olhos como se, de certa forma, vazados
internamente. Muito tempo depois é que soube que eram grossas feridas com
pruridos (e larvas de cogumelos de infeção), mais o meu precário cérebro
atiçado a disparar estilhaços de luzes em ritmos estranhamente hexagonais na
mente. Ficamos de alguma maneira “cegos” quando não compreendemos o
que vemos?
Ouvi uma porta de aço ser rompida, destravada. Depois jogaram-me no que
deveria ser o chiqueirinho de um carro com grade e chão cheirando a sangue
seco – ouvi um mendigo de voz conhecida dizer para alguém anotar aplaca
daquela carro cinza da polícia - quando compreendi que eu voltara à dura
realidade de Existir. Estava eu de novo ao rol do baixio chão da existência
humana. Humana? Eu não estava passando bem. O coração disparava um
bólido dentro. As mãos tremulavam. A mente tinha disritmias. Eu respirava
com enorme dificuldades, o peito arfando chiava, a pressão subira a mil, mais
algum atiçado instinto de sobrevivência animal tocando-me de forma feroz,
voraz.
Tinha medo do escuro que me restava fendido, vexado e sem prumo, não me
sentia inteiramente em mim. Pois que finalmente aquele precário meio de
retenção fez-me voltar-me à mim, e me fazia mal, muito mal. Eu estava com
espasmos, tremendo, nervoso quase com diarréia. Uma grudenta coriza
atrapalhando a respiração, enquanto o carro policial cheirando a sangue e
urina velha rodava corcoveando com sua sirene feito vaca louca aloprada a
93
abrir caminhos tortos e inacabáveis, revirando-me mais ainda o estômago
azedo. Quase vomitei água ácida na borracha com cheiro ruim da viatura. Eu
estava mal, principalmente pelo choque do antes, do depois e do agora, nas
medidas da dicotomia do haver; ainda mais em se considerando o
arrebatamento, o resgate, que eu vivenciara de forma estranha, inusitada e
inexplicável. O “vácuo” (pós-mortis) de onde eu me restava depositado,
residente (e depois feito “hospedeiro” de algo, alguma coisa), sofrendo uma
inesquecível “avaliação” - que poderia ter sido treino para algum rito de
passagem - que eu não compreendera totalmente, talvez jamais viesse a
entender, no voltar provocara um refluxo de ambientação e eu, para usar um
termo técnico, não tinha entrada em nenhuma câmara de despressurização. Se
é que havia uma entre o antes da morte, a morte, depois da morte e a pior
parte: a “volta dos umbrais da morte” que eu acho que é onde eu estava.
Onde eu estivera? Por quê? Com quem? O que eu sofrera? Ali onde eu
estivera era um dos labirintos do jogo profano da morte? O que era morrer?
(Sobrevivência?)
-0-
94
TRÊS
(MPB – Gonzaguinha)
________________________________
Num dia extremamente ruim, difícil, com baixa estima, Saulo pensou
realmente em se matar. Sim, acabaria com tudo.! Seria o fim do que era a
estrangeira tragédia de sua vida arrebentada nesse plano. Atirar-se-ia nas rodas
de um caminhão de feira e pronto, estaria tudo acabado!. Que Deus tivesse
compaixão. Chorou um pouco. Chorou escondido. Chorou por dentro como
uma pedra trincada internamente. Depois mediu bem a situação. Refugou o
ímpeto. Já se levantara da calçada para tomar a decisão, atentar contra sua
própria vida. Por um segundo de melancolia diferenciada pensou na finada
mãe para quem era tudo. Ele teria orgulho de vê-lo rico, posudo, famoso e
com posses, cursos superiores, depois ter largado tudo isso que conquistara de
forma difícil mas determinada e ter se- dado inteiro ao estranho ninho dos
pobres e miseráveis. Ponderou. Um átimo de juízo varreu-lhe a medula: não,
não faria esse mal à memória dela. Por algum motivo – e isso vinha-lhe à
torna em situações desgastantes, constrangedoras, além de uma resiliência
inerente - sentia que tinha uma outra parte de si vagando pelo mundo – NÃO
SABIA EXPLICAR DIREITO PRA SI MESMO - talvez um irmão, talvez um
espírito, talvez uma outra alma, numa outra dimensão. Estaria morto? Morrera
no parto difícil? Era só uma vaga lembrança perdida no inconsciente algo
falho? Nunca tivera coragem de inquirir a triste genitora a respeito dessa
mácula, dessa perda ou entrega, dessa geração de instinto maternal
provocando rupturas. Segredo maternal?
95
podia dá-la aos outros, menos afortunados, assim como a chama de uma vela
por pequena que seja, ainda pode acender outras.
Depois de ter esse momento difícil de baixa estima, sentiu uma fisgada no
baixo ventre. Alguma doença, talvez. Outra vez? Sentou-se na calçada, seu lar
a céu aberto, já que sua casa era seu corpo como um todo. Quase desesperou-
se. Aquele problema vinha lhe incomodando há tempo. Uma hérnia? Problema
na próstata?. Ouvira o galo cantar mas ainda não negara-se à si mesmo. Era
um filho de Deus e ninguém teria que passar por ele, o que ele teria que
passar, pensou.
96
QUATRO
Ele era famoso pela boa memória, pelo Q.I. alto, pela facilidade de declamar
textos inteiros de Shakespeere, belos poemas de Bertold Brecht, crônicas
maravilhosas de Rubem Braga, árias de Wagner e até cantava seu repertório
predileto que era o do artista Caetano Veloso. Ele adorava Caetano Veloso,
que considerava a maior cabeça pensante do país em 500 anos.
97
Ela tivera de início, dois filhos de pais diferentes, depois que largara o Dr.
Saulo, antes de voltar para ele, e tentou esconder as crianças, filhos de alguns
acidentes de percurso sexual, num Educandário São Vicente de Paula em
Itararé. Depois que ele a largara, após ser espancada na favela, resolvera ir
morar em Itararé e lá tivera outros dois, novamente com fecundadores
diferentes pois tinha parceiros sexuais às pencas, isso muito antes de ficar
velha, louca e morrer num Asilo da cidade, abandonada pelos próprios
rebentos que não viam a mãe com nos olhos, não a querendo por perto pois
tumultuava as relações deles, atrapalhava-os com a má fama e os destemperos
irracionais..
Lendo os poemas, além do livro como um todo, o leitor poderá ter uma justa
idéia da cabeça, da personalidade, da cultura, da sensibilidade do Dr. Paulo de
Tarso Trigueiro, que ao morrer confiara os relatos à um membro do
Departamento de Letras da USP, e que por um canto qualquer largara os
papéis, até conhecer-me conterrâneo dele, e resolver fazer uma cópia e mandar
para a Prefeitura do Município de Itararé, terra de origem do mesmo, e que lá
os despojos ficaram largado num canto de uma biblioteca de um inacabado
Centro Cultural da Rua XV de Novembro.
98
POEMA DO MOSTEIRO
99
E dividiu-se em nômade trilha bering intercontinental
Mesmo vindo do pomo de barro do adão sósia que o precedeu
Quando um anjo caído traiu o Deus Criador
Incentivou o homem e sua sosinhês pra fora
E a sua costela de tripa utilizável pra dentro
Porque o anjo expulso sabia o que sabia dos prazeres da carne
O SÉTIMO SELO
Vermes – pó!
-0-
100
SE
-0-
101
DEUS
Deus
Para poder merecer-me ser Ser
Tenho que amadurecer-Te
Em mim
Como um átomo conduzido à reflexão
Hospedeira, de ser inteiramente nulo, não-lugar
Deus
Para poder fazer-me Teu
(Como convém a um átomo do tomo)
Em mim
Tenho que te decifrar-me teu à exaustão
Parte de Ti, em Ti – Universo e Hangar
Deus
Para poder pertencer-me como Ser
Tenho que revelar-me Te
E assim
Como um nada dar-me à exatidão
De revelar-se-me paradoxo práxis.
-0-
102
POEMA DA CHÁCARA
A noite
É só um dos gumes
(cumes)
Do corte:
FLASH
-0-
103
GOZO ETERNO
Zíper – purpurina
(A melhor morte
É a Poesilha)
-0-
CONCHA ACÚSTICA
O pior
Da enorme concha do mar
É quando você começa a escutar
Não pedidos de socorro
Mas seu próprio suór e sal
Choro e ranger de dentro
Sete Pecados Capitais
Visitador e Esqueleto
Poesia no plural
Do seu próprio naufrágio urro
-0-
104
Ancoradouro Mártir
O pior medo
É o reflexo
-Piér!
-0-
METÁFORA
-0-
105
POEMA DAS RUAS
-0-
106
POEMA DA CONTEMPLACÃO
(O medo
Da pronúncia)
-0-
107
CINCO
(Eck Hardt)
Pelo que pude verificar dos rascunhos garatujados pelo Irmão Saulo, ele tivera
crises de saúde, de consciência, de baixo-estima, até mesmo fora tentado a
largar tudo e voltar para casa, voltar à cruel sociedade de onde era originário
com toda sua variação de personalidade e mesmo sensibilidade atrofiada pelo
lucro, pelo poder, pelo status.
Entre os textos que eu achara do mesmo, havia um que era uma carta a filhos,
netos e amigos, e que, depois de bem decifrada (parecia um rascunho feito em
estado de dor ou quimicamente alterado), e que diz, depois de decodificada,
assim, menos no que traduzimos de compreensível:
Meus Queridos:
-O que para vocês pode parecer loucura e até permitir alguma vergonha
socialmente falando, para mim não é uma seqüela, nem tampouco o curso
de uma fuga. Antes, é uma necessária e inquestionável Busca. Bendito
seja o ser Humano que seja convidado a passar pelo ritual todo dela. Não
é, como podem pensar, um neoesoterismo tantã de fim de século, nem por
causa de frustração social da falência das ideologias marxistas, tampouco
sou membro desse banco de lucro que é a chamada Nova Era, para
enganar a pessoas com problemas de vivência e mesmo psicológicos.
108
-Não, nunca fui um religioso da carteirinha, nem, de carnê de dízimo. As
caridade que vi, nos meios que habitei, eram tolas, inócuas, promocionais,
supérfluas, além de terem o ranço de fariseus: fazendo propaganda do
que faziam. E, entendo, que o que uma mão faz, a outra não deve saber.
-Nasci pobre filho bastardo de pai rico que ignorou minha própria
existência, lutei muito, trabalhei feito um espeloteado, passei fome, vi
minha mãe morrer com o pouco que eu lhe pudera dar, no entanto, vim
para Sampa e aqui carreguei meu fardo, combati o meu combate, fiquei
rico, casei bem, tive filhos maravilhosos, tinha status, dinheiro, poder,
força, a influência política, no entanto
109
direitos. Hoje, tenho tempo para pensar, até questionando-me. Dei-lhes
poder, nobreza, dinheiro, mas, acredito, que poderia dar-lhes mais amor,
passar mais tempo gracioso com vocês, não em reuniões ou em clubes,
quando perdi-me de mim em diretórios de partidos liberais feito antro de
escorpiões, ou em viagens que não nos levavam a lugar nenhum, já que
nunca podermos fugir de nós mesmos, do lugar em que estamos. E depois,
compreendi, a única forma de me livrar da tentação era cair nela. E foi na
rua que compreendi que a alma nasce velha e com a nossa vivência,
também de conhecimentos que advém de problemas e conflitos, torna-se
jovem. E que só o corpo nasce jovem e depois envelhece. E que é essa a
tragédia da vida.
-Adorei os netos que tive. Penso neles todo final de tarde. Foi num
desespero ocasional desses, que pensei em largar tudo, quase traindo-me
comigo mesmo, quase questionando a minha fé. Uma andorinha só não
faz verão, conclui então. Mas depois lembrei que poderia fazer uma
minúscula parte, e que assim seria meu quinhão íntimo de serenidade,
fora de uma vida vã, sedentária. Outros fizeram uma minúscula parte, e
foram testemunhos de verdadeiros filhos de Deus. Feitos à imagem e
semelhança.
-Não peço que tenham piedade de mim, nem me procurem jamais, por
favor. Não me criem esse constrangimento. Peço que tenham piedades de
vocês mesmo. Não adianta buscarmos o lucro fácil, a mão de obra barata,
a matéria prima fácil, se passamos os finais de semana enjaulados em
nossa própria casa, ou, depois de sairmos com a Secretária, viajamos para
Miami para estarmos em segurança com nossos familiares. Que país é
esse? Que capitalismo de araque é esse?
110
sobe/E o de baixo desce. Acho que é isso. Que raio de neoliberalismo-
câncer social é esse? Margareth Tatcher a bruxa do “capitalhordismo’
bem sabia, insensível, bronca e inumanamente amoral que o é. Que Deus
tenha piedade dela, quando o diabo ficar arisco para não perder o lugar
para ela nos quintos dos infernos.
-Só me entendo como gente aqui. Aqui, pelo menos somos todos iguais.
-Quando caí pela primeira vez na calçada, com fome, sem comer nada, fui
que senti o primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro desdém visto
debaixo, da ótica do coitado.
111
-Muita gente da rua não merece estar na rua.
-Sei que tenho muito pouco tempo de estadia aqui na terra. Preferi dar o
meu exemplo de dedicação, saindo de casa. A rua é um lar a céu aberto,
onde vemos melhor as estrelas perto do esgoto. Onde passamos fome para
sentir o valor do pão. Onde fazemos bicos para valorizar o trabalho, onde
somos reles para valorizar a grandeza de Deus. Onde os puros rastejam e
ainda têm que sofrer o crivo dos olhares duros e impiedosos dos que
passam rápidos e com nojo, em seus carros importados, em suas poses
falsas, em suas posses conquistadas com riquezas injustas e impunes,
como bem pregou São Lucas...
-Se a minha vida vale alguma coisa assim, que lhes sirva de exemplo.
-Não sei quem de vocês mais se parece comigo, nem o que mais odeia pelo
que faço agora. Mas algum de meus descendentes há de ser pintor, poeta,
artista.
-Dia virá que todos os lares serão molestados pelos homens pobres das
ruas, que os campos não produzirão nada, que a violência generalizada
como a corrrupção endêmica hoje institucionalizada em todos os níveis –
atacará a brancos e mestiços, a pobres e ricos. Então será o fim.
-Esse selo lamberei com minha boca mole, murcha, com dentes ruins, com
algumas doenças que contraí na rua da amargura,
112
-Esse selo será meu testemunho, como uma metáfora.
-Salvem-se por suas próprias obras, e assim poderei dizer "até qualquer
dia desses..."
-Amo-os.
-0-.
113
SEIS
Não se sabe quando, nem como, sequer por qual parente (sobrinho, neto,
nora?), mas o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro começou a ser procurado no Brasil
todo, novamente. A família tinha lá seus lapsos de ignorância e esquecimento,
depois parecia que a consciência pesava em algum membro novo do clã e tudo
recomeçava. Era uma sina ser caçado em sua fuga para dentro de si mesmo?.
-Olha só a cara do Irmão Saulo. Como ele era muito diferente quando era
doutor!
-Isso é que é Ser Humano. Vejam que pose deixou para estar conosco?
-Um escolhido de Deus, isto é o que ele era. Deixar tanta riqueza para estar
nos ajudando, servindo, ser ombro amigo...
114
-E as igrejas querem ser o que são, inúteis. Esse Beato é que era verdadeiro e
feito à imagem e semelhança de Deus-Pai.?
-Por onde é que ele anda, afinal? A recompensa pela dica é boa.
-Deve de ter morrido, o coitado. Ter uma vida de rico, e depois se enlamear
conosco, não foi fácil. Deus tenha piedade da alma dele.
-Benza-Deus.
-Certa feita deu-me o pouco que tinha e ficou feliz ainda sem nada, sem
comer, morrendo...
-E da vez que apanhou comigo, quando fui atacado por um fiscal sem-
vergonha da Regional da Sé? – Participamos graciosamente juntos, de várias
passeatas cívicas na Avenida Paulista. Ele gostava de passeatas...Para ele
aquilo era alegria (ao contrário do medo que a ditadura impõe), era gente junta
buscando um mesmo ideal, todos por todos, unidos - o povo, a razão de ser do
Estado...
-Deus o tenha! Deus o tenha! – disse um seboso mendigo que se dizia chamar
Dorival Abreu, e que costumava repetir tudo duas vezes, por um problema
talvez de insanidade.
-Fui operada espiritualmente por ele. Estava com tuberculose e ele fez com
que eu tossisse um dia inteiro, ficando roxa, até expelir tudo. Quase morri,
mas salvei-me de apodrecer na rua!
-Era um verdadeiro servo de Deus. Nunca mais haverá outro igual. O céu por
testemunho.
115
-Nunca houve um Ser Humano como ele. E nunca mais haverá.
-Dizem que estava escrevendo tudo sobre o que se passou em sua vida, sua
cabeça, desde os tempos de pobreza, de riqueza, até se escolher parte de nós.
Era meio metido a Poeta também.
-Temos que pedir à Deus por ele. Temos que guardar a memória dele.
116
-Sim, podemos parar o trânsito, invadir palácios, pedir moradias. Poderíamos
nos juntar aos Se Terra, Sem Cortiço. O que você acha, Centopéia?
-Estamos sozinhos agora. Somos o Vietnã do Brasil, cada cidade uma espécie
de Saigon tropical
-Mas o Brasil não tem vulcão, não tem terremotos, não tem geleiras, não tem
furacões
-Nunca tivemos uma guerra; não aprendemos a dar valor. Parece que tudo cai
do céu.
-Deus?
-0-
117
SETE
O preço de viver ali, com uma sopa rala à noite e um café com pão e banha de
manhã, era servirem de pequenas “mulas” intermediárias dos narcotraficantes,
abastecendo toda a grande e populosa cidade. O lugar como um todo era uma
terra de ninguém, onde a dor jamais era ouvida e as lembranças duras de dias
inglórios se perdiam sepultadas nos curtumes das sombras tenebrosas.
Constou que a entrada para esse acesso vigiado, ficava perto da Estação
Paraíso do Metrô, e que funcionários de áreas de serviços terceirizados da
118
empresa estariam mancomunados com a gangue toda, desde o portal até outras
entradas e saídas furtivas, como passagens secretas estratégicas. Fingindo-se
de mais doente e em situação precária que estava, caído na Avenida 23 de
Maio, o corpo do Beato Saulo (para eles) foi socorrido ali, onde uma prostituta
que tinha sido professora universitária de medicina prestava serviços, valendo-
se de altas doses de heroína.
119
submundo subterrâneo de São Paulo, quando a troco de alguma ração para
sobreviverem ainda prestaram serviços rápidos, quando não eram treinadas
para serem vigiadores de cativeiros, pequenos furtos rápidos, assumirem
infrações de adultos pois que eram imputáveis, fazerem serviços manuais
primários, e coisas assim.
120
mamento combustível e outros produtos corrosivos
nas galerias de águas pluviais, com risco de algum ramo
de esgoto ser perfurado por causa disso. O tráfego pesado
também provoca tremores, com barreiras aqui e ali
vindo abaixo, túneis a dentro. A chamada “intercorrência”
(aquilo que se mete no meio em termo técnico de
engenheiro) pode vedar galerias, acabar com saídas
estratégicas, matar pessoas que, estaticamente,
oficialmente não existem, estão na clandestinidade,
a margem de dados oficiais. O próprio ar, roubado de áreas
de ventilação externa, é sofrível, pegajoso, num ambiente
escuro, abafado, aqui e ali com um reflexo de luz ou
com uma velha lâmpada única, roubando fraca energia,
amelando ainda mais o sombrio ambiente, principalmente
quando não há recebimento das vazões exteriores da
luz do sol. Quase tudo é coberto de entulho, de toda
espécie. Há areia e pedregulhos. Há lugares que, em se
apoiando numa mureta de risco, numa parede com cheiro
de óleo díesel e perigosamente lisa, sem querer dá-se com
fileiras de baratas gordas, quando não a galeria se afunila
e é preciso caminhar com jeito, agachado, quando
não desviado de gordos ratos que as vezes servem de pastos
por menos privilegiados, doentes, tipos viciados
procurando o que comer sem medir conseqüência.
No lugar, ainda além de dutos, os gases inflamáveis
como metano, hidrocarbonetos, monóxido de carbono
e cloro sujo de uso. De vez em quando um tampo de
bueiro explode, voa exterior acima, mas o pior é quando
ele, por força do asfalto ter cedido (efeito estufa que amolece
a composição), sai de uma boca de lobo, e desce buraco
abaixo, fazendo um estrago, provocando explosões,
matando, rasgando paredes, destruindo barracos,
tendas, pessoas miseráveis que morrem rasgadas,
e depois os corpos são tirados dali, largados em
qualquer lixão ou aterro sanitário da superfície.
Também há regiões que as escavações para aumentar
espaços subterrâneos, ferem lençóis freáticos,
e é aquela correria para salvar roupas, comidas,
sobras de munições, material de refino de drogas(...)
121
Quem tentava fugir (e isso era raro), ou dedurar, era simplesmente morto,
eliminado, e seus órgãos traficados. Também, ali num ermo subterrâneo
fétido, úmido e cheio de ratos de um canto na Avenida Paulista com a Estação
Paraíso do Metrô, havia um Banco de Sangue que supria – a custa de doadores
forçados (principalmente as instruídas vítimas do rol dos miseráveis) – os
bancos paulistas, brasileiros e mesmo latino-americanos, pertencentes à
chamada iniciativa privada. Enquanto nos hospitais públicos, faltava sangue,
ali havia o bastante para venda a dobro do preço aos coitados catados na rua e
que cediam a troco de banana. Quando alguém morria por seguidas doações –
eles estimulavam algumas quimicamente – eram simplesmente desossados e
os ossos vendidos como se de animais para fábricas de goma arábica, ou
exportados. O maior mercado de pele e ossos (e pedras de rins humanos),
além de cabelos e unhas, eram, os Estados Unidos. O que era bom para os
Estados Unidos eram bom para o Brasil?
Pois esses laboratórios itinerantes com alta tecnologia de ponta, era sustentado
pelo crime organizado de Sampa e do Rio de Janeiro, mais dinheiro lavado da
Colômbia, e as máfias de todo tipo, juntando ainda a grana alta de políticos
envolvidos com traficantes e ligados a partidos chamados liberais do norte-
nordeste brasileiro, mais alguns “terroristas” falsos de países que faziam
fronteira com o Brasil.
122
de cimento armado, que tinha água furtada em subterrâneas torneiras internas
das entranhas da terra, onde tinham toda sorte de estrutura arrancada dos
porões dos prédios e ainda com ramificações estratégicas em garagens e
edifícios de serviços públicos atrelados...
A “entrada de serviços” (por onde era reposta a muamba toda) chamada Portal
A, era um bem disfarçado buraco de esgoto com capim-gordura perto na
Marginal Pinheiros, ao lado de um viaduto novo superfaturado, mais
parecendo enorme boca de lobo, feito escoadouro falso de águas sujas, mas
tinha sua vital importância pois era área próxima da rodovia marginal e com
fluxo de trânsito (saída de emergência e receptação, pouco policiada) para
aeroportos clandestinos e mesmo as rodovias Raposo Tavares, Castelo
Branco, Bandeirantes e Anhanguera.
Só que nessa subcidade os pobres viviam até melhor do que muitos no chão
paulistano. Ali tinham uma espécie de “merenda” diária, água (roubavam de
canos), luz (roubavam de prédios públicos), além da segurança de ladrão não
roubando ladrão, antes sendo solidário, multiplicando as munições, dividindo
os pontos de desovas e de passagem de maconha e crack, além de se ajudarem
em doenças, quando todos sabiam que o falecido apenas tinha ido primeiro e
que, cedo ou tarde, outro iria, até o fim de uma época, uma turma, pois logo
outra vinha,. Outra era recrutada, sendo que os chefões tinham ali seus testas-
de-ferro de confiança, pois disfarçavam-se em bacharéis, doutores, milicos,
empresários, isentos microempresários da lavagem do dinheiro sujo, bem nas
barbas dos totens do capitalismo, que eram os bancos de lucro fácil, pois o
teatrológo Bernard Shaw bem dizia que não havia muita diferença entre
assaltar um banco, e montar uma agência bancária, tudo era a mesma forma de
roubo.
Além de tudo, destilava-se bebida ali, mas como era de pouco monta, acabava
sendo usada como moeda de pagamento entre os próprios moradores, pouco
123
era vendida fora. Mais: falsificavam ali, desde tickets refeições, vales
transportes, passagens, carteiras de identidade até diplomas de cursos em
gerais, virgindades recuperadas e outras tantas transações ou operações
ilegais.
Terra brasilis.
.............................................................................................................................
Pois ainda assim, foi nesse local incrível, que o Dr. Paulo de Tarso Trigueiro
conseguiu de um louco que passava maconha e artesanato de couro falso para
uns ilegais imigrantes chilenos que naquele reduto eram discriminados e
considerados a escória de uma ‘latrina américa” de tantos Pinochêts e que
vendiam a erva e os trabalhos na Avenida Paulista, um desconhecido trecho de
Olavo Bilac que dizia:
124
Ele é o grande corruptos, o grande envenenador das almas, o grande
prostituidor das consciências.
Mas Dr. Paulo de Tarso Trigueiro tinha aprendido bem a lição da viagem de
existir. Compreendia ainda que a felicidade era como uma borboleta, quanto
mais a perseguia, mais ela fugia. Mas que se voltasse a sua atenção para outras
coisas, ela viria mansamente, serenamente, pousar em seu ombro, em seu
coração, em seu íntimo...
Também foi ali, tentando escapar sem deixar rastro, como uma lesma cega,
que compreendeu que só o fim da vida dava sentido à vida como um todo, e
que Deus estava mais próximo dele do que a sua própria jugular.
E ainda escreveu, num rasgo de papel de pão com nódoa de haxixe velho:
-“Não sei se o que transcrevo, passo, arrolo, registro, torno assento, por
metáforas, parábolas, despojos quase diuturnos, de alguma maneira
transtextual (ou mesmo pantextual) pode apontar alguma coisa, além de só
sugerir. Pareço-me às vezes estar num delírio místico, sempre perplexo,
125
sedento, talvez míope ou louco de algum modo, tentando com esse garatujar
obsessivo pôr ordem da desordem. Afinal, os seres humanos gastam a maior
parte do tempo e do dinheiro parecendo o que não é. Eu, onde estou, como
vegeto, quase escondendo-me de existir, colho lições dessa longa viagem que
é a travessia da Vida, nem fantástica nem rala. Mas, graças a Deus,
compreendi, que o momento de partir, não é o momento de se preparar para
partir, e assim eu pude ser servidor do homem, não explorador dele. Que o
bom Deus-Criador tenha piedade de mim. Afinal, a caridade é sofredora mas é
benigna, não é invejosa, não se trata com leviandade, não se ensoberbece, não
folga com a injustiça, mas folga com a verdade, pois a Caridade tudo sofre,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta, pois a caridade nunca falha, como disse o
Apóstolo Paulo aos Corintios(...)”
-0-
126
CAPÍTULO TERCEIRO – APOCALIPSE (FINAL)
127
UM
(Henfil – l944/l988)
128
descendentes) carimba uma dor fatal e odiosa de estruturar, paulatinamente, a
cada dia, a tempestade social que se prenuncia a partir da ignorância pública
no imperativo curtume dessa vasta gente humilde no subsolo infinito do nada?
Que marca (para sempre) é a histórica insensibilidade política de cinco
séculos? História de fracassos (e perdedores) não são contadas com facilidades
nos becos, guetos e cortiços abertos das ruas. Os livros dos dias têm os
destinos dos abandonados por aventados filhos de Deus? Não, nem todos os
livros foram escritos, nem todos foram abertos, nem todos foram aceitos, nem
todos têm a vileza do homem escrita com sangue.
Que vítimas de revés no cálice do devir somos nós, num tédio adquirido,
insanos que nos tornamos (e broncos) para não ver a realidade óbvia da
insensibilidade patriarcal que rege os podres poderes? Clamam por justiça, os
miseráveis, mas fazemo-nos de surdos. A dor devora o espírito dos
desgraçados e mancha a sociedade que os ignora de forma inumanamente
radical. Que confinamento é o da falta de sentido plural-comunitário de uma
vida em prol dos descamisados? Até quando essa mancha na história dos
povos com rótulos de “civilizados”? A dor e a fome geram lucro. A dor e a
fome têm estruturas ricas por trás.
Empresas mandam funcionários embora, têm mais lucro e suas ações sobem
no mercado das bolsas de valores. Que raio capitalismo é esse? É isso que
queremos, que resultou do chamado fim das ideologias sociais? Oferta de
injustiça e procura de posses? Terceirização de subviver? Mais valia de
exercícios efêmeros de poses? Exercício de maldição como legado permitido
recíproco? A esperança é a inteligência de um instinto de sobrevivência,
mesmo que amaldiçoado pelas altas classes sociais. Viver é tão pouco.
129
Vivemos em média sessenta anos, setenta, oitenta anos, se tanto. Somos bons?
Se o somos, para quem? Para quê?
Não confiamos nos estatutos da desgraça que o descaso social sem limites
preconiza, apontando-nos eliminação vários tipos de agressões de retorno,
seguranças supérfluas e caras (pagas com o desvio de salários justos), armas
poderosas e inúteis mas que só matam, não matam a fome, e perdas humanas
irreparáveis (de todas as classes sociais) para o futuro de nossos descendentes,
fundando um futuro mundo de conflitos, com sérias perspectivas de
desastrados retornos em tragédias e vinganças abarcadas geneticamente.
Meu coração foi apunhalado pela realidade cruel da vida dos povos de rua, a
maioria, a massa de manobra, os povos de rua, furacão humano, vulcão de
quase irmãos.
Os Sem Amor – frutos dos Sem Terra, Sem Salário, Sem Emprego, Sem
Pátria, Sem Teto, Sem Nada. Frutos do Modelo Globalitário, o totalitarismo
da globalização neoliberal. Marginalizamos os pobres, ignoramos os
desesperados. Nunca viajamos para dentro de um Brasil real? Que país é esse?
Que povo catolaico é esse?. Que soma é essa que divide, multiplicando
dezelos;? A população de rua é um ignorado holocausto de retirantes, de
desesperados, de fugitivos da fome rural, de lixo pós-moderno do neo
liberalismo cão, neo liberalismo câncer. Um holocausto de crianças alienadas,
de jovens sem saída, de velhos apodrecendo em filas, de migrantes, mestiços,
negros, quase pretos, pardos e outras sub-raças sub-viventes, desse planeta que
em nome de um amoral modernismo reformador internauta globaliza a
miséria absoluta, a corrupção endêmica institucionalizada em todos os níveis,
tornando a violência e a mentira irmãs, a prostituição infantil e política
baseando tudo.
130
Sagrado Coração de Jesus que ganhara de presente de natal da Dona Doquinha
da Santa Casa de Misericórdia, e a guardara numa carteira de couro que,
depois de puída, rota, foi largada num canto qualquer de tarecos com seus
pertences pessoais desprezados.
Pois, ao resolver ganhar a rua dos abandonados, a rota de fuga dos que não
tinham saída de emergência, lembrei-me daquela publicação graciosa e
edificante, e, foi com grande prazer espiritual que achei tal página arrancada
de um antigo dia passado de minha vida sedentária de lobo caminhante, e lá
estava a pequenina folha com a bendita mensagem universal, papel amassado,
amarelado, mas ainda sendo uma espécie de oração de honra da espécie.
Quase um tributo à vida. Consegui que um amigo de escritório de fotocópias
me aumentasse aquele “texto-talismã” abençoado pela expressão do único
filho de Deus.
131
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o
reino dos céus.
Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos
perseguirem e, mentindo, dizerem, calúnias e maldades contra vós.
132
DOIS
(Eduardo Galeano)
133
velhas encardidas de cerotos e manchas de sangue, poluição, miséria e suor,
cobertores (puídos corta-febres) comido por ratos e baratas, lampião que mal
funcionava de velho e defeituoso, latas de mantimentos, papelões, trecos
inúteis, alguns poucos documentos que nunca davam identidade alguma, tocos
de vela, cascas de frutas para chá, uma esperiteira enferrujada, tocos de lápis e
uns cadernos, além do acervo básico: arroz, açúcar, sal, óleo, aspirinas
roubadas de um camelô de rua, uma foto velha de um Jesus de costas sob
enfoque de Salvador Dali, um punhal pequeno sem cabo, uma faca comum,
uma colher, um garfo de três dentes e um pente velho já desdentado. Era tudo
(só isso) que possuía de bem, de posse.
Eram sub-seres pedindo para morrer; uma bala perdida seria o reino dos céus;
um atropelamento seria a muleta de um hospital; um linchamento seria o
pagamento final; um filho de papai, milico ou deputado, a lhes dar fim com
álcool ou gasolina seria sair do fogo do inferno terrestre para o céu de uma
esperança limpa; uma doença ruim poria fim à desgraça, um pedaço de
134
comida deteriorada do lixão geral que era a cidade de São Paulo era o filé do
comer sem medir risco. Sim Sampa um verdadeiro esgoto a céu aberto. Ratos
do tamanho de coelhos, baratas enormes, sarna, malária, amarelão, cólera.
Esse era o símbolo vulgar e amoral de uma cidade que conduzia o testamento
de uma sub-raça, os miscigenados de três cores, branco, preto e vermelho. As
cores da bandeira da cidade de São Paulo. Uma cidade de milhões de
habitantes oficiais, sem estatísticas para os coitados. As máfias governando os
governos.
Uma pústula social de terno, gravata, farda e toga. A fina flor da espécie?
Igrejas-circos. Igrejas-bancos. Máfias chinesa, japonesa, paraguaia, russa,
italiana, norte-americana, coreana, vindo fazer estágio em São Paulo. Belas
catedrais cercadas de grades, alarmes e câmaras de segurança, enquanto ao pé
do desamparo total, pessoas expunham suas varizes, seus traumas, suas
doenças, seus desesperos, esperando um milagre, sim, um milagre, mesmo que
por uma fé com horário nobre, com agenda lotada, com catraca para regular o
funcionamento, com um religioso celebrando seu ritual decorado bonito de
pompa e vaidade, depois fechando o pão e o vinho em cofre com tantas
senhas, tirando o hábito, batendo a porta, pondo os cidadãos de rua para fora
dos templos que deveriam ser enfermarias, refeitórios, escolas abertas,
franquias puras de Deus, bolsões de recuperação, áreas de atendimento médico
ou de doação de sopa.
Mas o seu país continental de tantos Contrastes Sociais era – e não tinha sido
sempre? - uma ignótica. Para algumas potências (ou potentados do oriente)
uma republiqueta de canalhas. Rotas de fuga da escória social de qualquer
resto de sociedade decadente. Tinha sido assim desde as primeiras caravelas
de degredados que trouxera seu câncer europeu confinado nos grilhões
brancos das primeiras naus de despejos. A escória jogada no continente
invadido. De Gaulle dizia que o Brasil não era um país sério. A tachada
“descoberta” pelos portugueses que extinguiram milhões de índios e
destruíram sua cultura nativa, fundando declamadores de latins, bastardos,
mestiços, filhos sem pais ou pátria. Nascera aí o tristemente famoso “jeitinho
brasileiro”.
135
uma Reforma Agrária em tempo mais que hábil, que João Goulart pretendia, e
o golpe militar canalha de Primeiro de Abril de l964 recusou (tachando de
coisa de Comunista), mas que ao seu cabedal de arbítrio e regime de exceção
privilegiara um sul maravilha e seu mercado agrário-exportador, em
detrimento dos coronelatos do nordeste preterido nesse modelo econômico,
fundando agro-rurais bolsões de miséria e pontos de partidas de êxodos rural
sem precedentes, migrações em massa, inchamento populacional nas grandes
metrópoles da região sudeste. Depois, enfim, a democracia de araque (não era
para ser uma democracia social?), pois nem todos eram iguais perante a lei,
uns eram mais iguais que outros. E era um capitalhordismo internacional
financiando o selvagem capitalismo tupiniquim com suas dívidas sociais
impagas por 500 anos.
E o que era São Paulo nesse contexto todo? A capital econômica da América
Pobre. Corria mais dinheiro num quarteirão da Avenida Paulista, do que em
todo o resto do país mais o resto da própria América latina toda. Mas haviam
as riquezas injustas, as riquezas impunes, as periferias Sociedades Anônimas,
a grife versus o crime, os contrates sociais. São Paulo era um tétrico modelo
que não deveria ser um exemplo de civilização, cidadania, sustentação social
pública. O Estado Público na verdade era privado. Agiotas do capital
estrangeiro mandavam no pais e suas privatizações roubos, suas reformas
modernas que não reformavam nada, mas davam vernizes novos a oligarquias
velhas.
São Paulo era uma cidade que, quando morria um filhinho de papai, rico, carro
importado, relógio de grife, branco, aluno da USP, uma perua apresentadora
demodê de programeco da TV fazia campanha (chorando histérica em frente
às câmaras) do tipo “Reage São Paulo”, promovendo delegados torturadores
de inocentes e fazendo coro com os cupinchas do arbítrio, políticos do tipo
“rouba mas diz que faz”. Era uma “rica a qualquer custo” que se pregava
contra imoralidades, mas tinha sido candidato pelo partido desse estilo de
engodo, de amoralidade de meio. Era só uma perua bregamente maquiada que
dizia ter bom senso mas era a pior ignorante políica, pois era falsamente
metida a moralista só para aparecer e ganhar dígitos no ibope?
Mas, quando morria todo final de semana, mais de cem pretos pardos,
mestiços, nas favelas ou periferias pobres da grande São Paulo (mais de dez
milhões de pessoas), ela não fazia nada. Um delegado torturou inocentes para
arranjar culpados e ser promovido. Um juiz, tempos depois deu sentença pela
libertação dos suspeitos de ocasião (suspeitos de sempre, pretos, pobres,
136
favelados) e chamou a sociedade de Sampa de hipócrita. Será que a tal
apresentadora de TV, uma perua velha, poderia alegar ignorância disso? Tinha
visão ampla para entender a malha turva da mídia, da qual era fantoche e ao
mesmo tempo reprodutora de injustiças?. Demagogia de uma típica ignorante
política atrelada à mídia, apoiadora de políticos corruptos e ladrões. Quem
sorri para o ladrão que o rouba, é ladrão de si mêsmo, ladrão de sua cidadania,
de sua ética.
São Paulo era um estado onde um promotor matava uma esposa grávida e não
perdia o cargo. Onde dez por cento dos crimes apenas eram apurados, com os
delegados (ser incompetente é uma forma de roubo?) continuavam existindo
com salário de marajás, quando deveria tal classe ser extinta e não iria mudar
muito. São Paulo era uma cidade onde um juiz trabalhista superfaturara os
gastos com um palácio de justiça, e continua no bem bom de sua lida. São
Paulo era uma cidade que criara um esquema para acabar com a prostituição
infantil no norte-nordeste, mas verificou que as maiores ramificações desse
tipo hediondo de crime eram na grande São Paulo mesmo. Um modelo
econômico que financiava o sul maravilha, agravara os problemas sociais
(mais a seca) do norte-nordeste.
Se aquela era a maior cidade do Brasil, e era um esgoto a céu aberto, imagine
o resto do país? O Brasil, afinal, como cantara Caetano Veloso (seu ídolo) era
mesmo um enorme Haiti? O Haiti era o Brasil e São Paulo era a cloaca do
terceiro mundo.
Ninguém cai na rua porque quer. E depois que se cai na viela do anonimato
social, sobreviver não tinha preço, risco ou medida.
137
não tendo nenhum prazer em amar, existir, no significado que a palavra
deveria expressar de conteúdo e filosofia.
138
TRÊS
Teve-se pena, bem maleixa, com quatro filhos que criara, dois de extraviados
pais paulistanos rebeldes, e dois de pais Itarareenses que mal identificava
quem fosse realmente, tal a sua inescrepulosa variedade de parceiros, na
oxigenação de seixos íntimos. Sentindo-se desiludida, os filhos pinchados
fora, trabalhando ou estudando, deu-se de beber ainda mais. Dizia que não era
de trabalhar de carteira assinada, que não suportava ordens nem patrões, que
ninguém mandava nela, que tinha sido poderosa e voltaria a ser. Alias, brigara
com os pais, os irmãos, os amigos, os amantes, os vizinhos, seus
relacionamentos eram doentios, ela sempre fora nariz arrebitado problemática,
achando que o mundo que estava errado, mas nunca se aprumara de arrumar
serviço sério, com horário para cumprir, fazer seu pé de meia. Quando o calo
apertava, no entanto, apelara para uns e outros, quando era novamente
inutilizada. Não era racional para enxergar um palmo além do nariz, mas se
achava a santa, enquanto o mundo todo estava errado. Quando apanhava da
vida dava-se de desculpas falsas.
139
desnaturada e ainda metida a ser o que não era. Acabou por passar mal, caiu
em absoluta e perigosa depressão, passando necessidade, quando foi acudida
por vizinhos que a desprezavam, achavam-na uma puta rameira (os pai
também profetizaram ou intuíram isso décadas atrás), e ficaram com medo de
uma tragédia envolvendo as imediações, além de com nojo do mal cheiro, e a
levaram para o Asilo São Vicente de Paula de Itararé, onde ficou largada, sem
ninguém de si para dar carinho de retorno ou prece de empenho. Ali foi
definhando aos poucos, apesar de ter algum remédio ocasional, companhia de
pessoas mais velhas e até certa comida regular.
Mas a infeliz mulher, apesar de não ter estudo, profissão, não ser nada e nem
ninguém, por incrível que possa parecer. não gostava de obrigações, de
cumprir regras, julgava-se independente e livre para pintar e bordar. Começou
a ficar louca, ver fantasmas no armário. Começou a falar sozinha. Remédios
aplicados na marra eram inúteis.
140
coletivo do asilo, e, ainda pintada de palhaço, nariz de bola de plástico
vermelho e tudo, e finalmente enforcou-se.
141
QUATRO
Nas ruas as histórias tinham somente um final: sobreviver até onde posse
possível, e que Deus tivesse piedade de todos. O instinto falava mais alto, o
instinto de sobrevivência era o único eixo terminal que movia o sub-viver puro
e simples, sem qualquer mais valia que o respirar por respirar, o existir por
existir. Aliás, Viver era quase um crime. Alguns tinham medo desse subsistir.
Sabiam que, a qualquer momento, por algum motivo (ou motivo nenhum),
seriam atacados, atropelados, presos, inutilizados. Uma chacina, um erro, na
forçada doação de órgão.
142
estar vivos era graça de Deus. Deus? Para alguns, Deus, Sinal Fechado, Sopão
Comunitário, Esmola, Segurança, Sono, Porre, Morte – tudo era a mesma
coisa. Estavam mortos espiritualmente. E essa é a pior morte que existe.
Porque é uma “morte” que não abre canais de comunicação, não funda canais
de esperança, não acessa o toque de Deus. A morte espiritual era quase um
anulamento da essência de Ser.
Havia um homem idoso e com dentes podres, que chegara em casa e vira a
mulher na cama com o vizinho seu velho amigo de infância. Com medo do
que poderia virar, ou não ter forças para ousar tanto – uma espécie de medo-
coragem evitando o doloroso gume da fatalidade trágica – como um camaleão
saiu escondido e furtivo como entrou, sem avisar, ganhando, com a roupa do
corpo somente, a rua da amargura, seu ilhar-se de inútil fugitivo. Não matara
os desgraçados, dizia ele, pois já estava morto com o que vira, e com o que
sentira do que vira. Matara a paixão de sua vida no íntimo. Filhos largara, não
os queria sabendo da baixaria da mãe. E da ocasional impotência do pai para
lavar a honra. Honras? O abandono íntimo, a rua da amargura, era uma honra
que mentia pra si mesmo.
Era a fuga para o nada. Era o purgar-se, o vegetar-se, até que os dias seus
fossem consumidos. Era na rua que punha sua baixa-estima, sua depressão,
catando restos de lixões. Disputando espaço com ratos, baratas. Queria morrer.
Mas a morte só escolhe os despreparados, os vivíssimos. Ele praticamente
vegetava.
143
-O sr. poderia ajudar-me a me matar?. Sei que o sr. sabe como. Sei que o sr.
pode. O senhor me ajuda a morrer e, por certo, Deus me encaminhará com a
bondade do préstimo, da intermediação de sua benéfica ajuda.
-Um outro, baiano, me contara que seu pai perdera terras para um político
baiano, um coronel sempre ligado ao poder, principalmente desde a funesta
ditadura, quando aumentara em mais de mil por cento os bens, adquirira vários
canais de Tevês. Quando o pai o acionara na justiça, matara o velho. O rapaz
então intercedera ao juiz, mas não adiantou nada. O juiz foi morto antes de dar
sentença contra o político baiano. Já pensando em atocaiar e acabar com a
vida desse reacionário elemento nefasto à sociedade brasileira, fora posto por
familiares, na marra e sedado, num ônibus e embarcado para Sampa, e então a
rua era seu exílio de uma dura realidade.
Eram todos classificados (às vezes até entre eles mesmos) como uns filhos da
puta da vida, disse uma louca que tinha estudado filosofia, se envolvera com
tráfico de drogas na USP, dedurara uns tipos, fora perseguida, policiais
envolvidos montaram contra ela um flagrante, e acabou perdendo emprego,
status, amigos, parentes, só escapando das grades por sorte. Pois rendera-se às
evidências: os imbecis estavam no poder. Sabia do que regiam os calouros de
Medicina na USP, todos despreparados para o trato com vida humana, como
eram quando assediavam calouros. Sabia o que os veteranos faziam
(julgavam-se se impunes com professores na retaguarda), e, porque nunca se
identificavam culpados, no corporativismo de meio, os Diretores faziam vistas
grossas, despistavam porque não podiam investigar inteiramente nada.
Haviam riscos. Se fossem mexer em águas turvas, teriam lama nos pés, na
carreira, na própria estruturação do curso e do meio. E bem sabia das coisas da
rua, quando dizia seus palavrões em várias línguas, prostituía-se com
mendigos aproveitáveis, querendo pegar uma doença grave e morrer podre,
com seus restos sendo comido por larvas, vermes, escorpiões, pois estes eram
melhores do que os seres com os quais convivera em corporativismo irracional
de meio acadêmico
144
De outra feita soube de três crianças que sobreviviam de pequenas infrações e
da catagem de `restos de lixões. Um dia viu os coitados, filhos de uma mãe
alcoólatra favelada que fora pego por engano por justiceiros, fazendo uma
sopa numa lata de tinta, onde algumas bolas eram fervidas sem sal mesmo.
Acharam aqueles pacotes congelados de coisas redondas e pensaram que eram
frios ou mesmo carne comestível. Quando Irmão Saulo viu, mal conteve um
grito. As crianças estavam para comer glóbulos oculares de seres humanos,
que tinham sido inadvertidamente jogados num lixão hospitalar porque
estavam com o prazo de aproveitamento para transplante vencido
Dagmar Marlene, ainda antes de ir para Itararé, atirada que era, ao se envolver
com rapazes de aluguel – tinha grana alta para pagar por prazeres carnais aos
montes se contaminara. Não era soropositiva por pouco, por um milagre. Mas
engravidara de um traste. Ao saber – fuxicos, fofocas – do retorno do inferno,
do retorno da merda da sociedade, o homem que lhe dera um sobrenome, um
145
lar, uma herança. fora em busca de um apego do seu ex, tentando o paliativo
da reconciliação.
Pois ali estavam, num barraco podre da Favela Real Parque, adjunto ao bairro
do Morumbi, entre o Palácio do Governo e o rio pinheiros, entre o palácio do
Estádio do Morumbi e uma área de riscos, o barraco do casal Saulo e Marlene.
Eles eram a ajuda dos cantes, dos pobres. Eram mal vistos pelos traficantes,
ladrões, justiceiros, pois atraiam gente. Sim, a fama de Saulo tinha descido
entre os desafortunados. E ele passou a ajudar, dar sua benção, orar pelas
pessoas, como paramédico até ajudá-los no que fosse possível.
Como ele era sensitivo (a rua apura o extraordinário sensível das pessoas),
sempre acertava nas previsões. Ora malária, tuberculose, tifo, gonorréia,
leptospirose. Quando não um fígado podre, um coração arrebentado, uma bala
perdia, um vazamento de gás, um barraco atropelando deslizamentos de terras.
Sabia causas e efeitos. Encaminhava para hospitais, igrejas, ONGS, ou mesmo
para cemitérios, asilos ou sanatórios.
146
mais do que apaixonada por ele. Tornou-se fã, fanática por aquele “beato”,
aquele anjo terrestre, como contou-me anos depois seu filho.
Milagre?
-0-
147
CINCO
______________________________
-Adeus. Boas férias, feliz Natal! Cuidado para não voltar grávida das férias.
148
Dias depois, no ir e vir dos comentários do lugar, ficara sabendo que a moça
tinha feito aborto na manhã daquele dia que depois de um primeiro gole de
cerveja preta tivera um siricotico espumoso e fora levado até ele.
De outra feita, avisou um rapaz para que deixasse de fazer e tremenda besteira
que estava para fazer. Pois o rapaz deixou a gangue que iria assaltar um banco,
e depois ficara sabendo que todos os bandidos da quadrilha tinham sido
mortos, que o assalto fora um tremenda furada.
Ainda outra vez, ao benzer uma criança, notou que ela conversava com o
nada. Sim, falava sozinha, como se estivesse com alguém ao lado. Saulo não
sentiu quem era, mas, inteirado (ao seu jeito de entender a redondeza terreal
das coisas) avisou aos pais do menino que ele seria recolhido. Os pais ficaram
preocupado, pensaram em fazer macumba, coisa assim, mas doas depois, ao
chamarem o filho único de manhã, para levar à creche, viram que ele tinha
morrido dormindo, mas conservando no rosto um sorriso sereno, os olhos
brilhando (como se pétreos por uma visão cristalizada de luz), e ainda tendo
nas mãos um gracioso bilhete de despedida, escrita com letras miúdas,
dizendo que iria fazer uma viagem, que os encontraria depois.
Coincidências? Milagres?
-Como vai, Irmão Saulo? Tem acontecido alguma coisa diferente por aqui? O
sr. tem visto algo de novo? Alguma movimentação diferente.
Saulo olhou aquele tenente da Rota e, na bucha respondeu, sem mais nem
menos, sequer sem ser inquirido. Falou pelo seu lado sensitivo:
149
-O cativeiro do refém é numa pensão da Rua Aurora.
A imprensa veio alvoroçada. Irmão Saulo resolveu dar um tempo, sair daquele
lugar, indo morar uns dias com uns restos de índios da tribo Pankararu que
tinham se mudado da favela – um de seus lideres fora morto por engano –
indo passar uns tempos lados da periferia menos violenta chamada do Embu
das Artes.
Só que Dagmar Marlene não tinha sido picada ainda, pelo mosquito da fé. E
resolveu, numa decaída de convivência humana e pacífica, tentar ganhar
algum dinheiro, como se estivesse em poder do velho Dr. Paulo. Deu uns
telefonemas, exigiu resgate – queria fazer caixa para o caso do velho morrer
de doença, de velho ou assassinado, quando teria seu pé de meia para
continuar sobrevivência, pois a AIDS ainda não se manifestara, e tinha medo
de não poder ter o máximo de filhos que imaginara. Incubada, não a tinha
atacado inteiramente, talvez escapasse, quem sabe.
Foi quando foi pega por uns policiais da Garra, dando uns telefonemas. Os
favelados, vendo a mulher de seu melhor irmão de meio sendo atacada por
quatro tipos, um soldado raso, dois sargentos e um capitão, movimentaram-se
em paus, tocos, tijolos, cabos de vassoura e atacaram os soldados. Dois
escaparam com vida. Dois morreram. Não sem antes comentarem
150
desesperados quem eram e o que estava fazendo a tal Dagmar Marlene, que
não era boa bisca, e que eles, tolos, manés, defendiam.
Milagre foi seu corpo ainda ser achado com vida, mesmo depois de alguns
segundos pendurado ali como um espantalho horrível preso por uma corda
frouxa. Vieram uns policiais de reforço e a levaram para um pronto socorro
popular das imediações. Com certeza se salvaria, talvez tomasse jeito. Só que
o seu cheiro e sangue ficou muito tempo por ali, atraindo urubus, com pessoas
vendo fantasmas (consciência pesada?) entre e cachorros mortos, ratos do
tamanho de lebres, entre monturos levados pela correnteza de um rio após
inundações, enchentes, quedas de barracos. Dagmar Marlene teria que pensar
melhor sua visão de vida. Foi quando, pensando em encontrar seu amado na
terra natal dele, pensou em ir morar em Itararé, e ali esperar pelo seu amado,
sem saber que jamais o encontraria de novo, que decairia, que seria internada
num asilo, que feneceria primeiro do que ele, mais acabada do que ele que,
apesar de mais velho, ainda viveria por muito tempo entre os fracos e
oprimidos, os excluídos de toda sorte.
Saulo, que nesse ínterim, estava com malária – tinha sido picado, tinha sido
contaminado – não soubera de nada nem pudera providenciar enterro digno
para sua traidora.
Quando foi inteirado de tudo, era tarde demais e estava desprotegido. Um dia
foi acusado de curandeirismo ilícito e preso, sofrendo processo, encaminhado
ao Carandiru.
151
envergonhar, de certa forma, seus parentes que pelo jeito agora o tinham
ignorado definitivamente e de uma vez por toda. Era isso o que pensava, pelo
menos.
Ali ele seviciado, roubado, agredido, condenado de meio. Primeiro porque era
branco, segundo porque comentários maldosos de funcionários corruptos da
repartição disseram que ele era doutor e de família cheia da grana. Para os
presos, humilhar alguém diferente e metido a sebo era um prazer. Ele aceitou
aquilo como se uma coisa que tivesse a pagar. Aos poucos foi sendo aceito,
foi levando ao seu jeito, até que viram nele um melhor do que eles todos.
Os anos que Saulo passou ali, não mudaram seu caráter. Ao contrário.
Ninguém o podia atingir, se ele não quisesse ser atingido. Depois que
passaram de odiá-lo, viram, com a consciência pesada – e um medo dos
infernos – que aquele pobre ser na verdade era um verdadeiro servo de Deus.
Uma igreja evangélica que prestava assistência religiosa e jurídica no local,
conseguiu que ele saísse para ser albergado, trabalhando durante o dia e
dormindo na prisão a noite. Mas ao saberem que ele só um amigo dos pobres,
tentaram, depois da pena que lhe deram pelo suposto conluio na morte dos
policias, o abrandamento da pena e, cumprindo um terço em liberdade, foi
posto sem lenço e sem documento na rua.
E a rua, para quem sai de uma prisão daquele potencial medonho, era quase
que um paraíso. Afinal, o Carandiru era uma filial do inferno.
152
..............................................................................................................................
Constava que o Irmão Saulo fora pego por um delegado que tinha amigos na
Academia da Policia que tinham métodos supostamente “modernos” (de
Primeiro Mundo civilizado, diziam) de saber investigar crimes e pessoas, e
que tinham se valido de um chamado ultra atual Soro da Verdade para
arrancar alguma confissão do Irmão Saulo, visando deixá-lo em dificuldades,
gerar motivos para extorsões. Fiquei sabendo disso meio que em of, por um
tenente da Rota que estava para ser expulso da policia, por estar envolvido
com Matadores de Aluguel de Guarulhos, e que tinha medo de também ser
eliminado como queima de arquivos, pois sabia muitos podres entre políticos,
empresários e membros da alta sociedade local. Tentou conseguir com a
Polícia Federal um tratamento especial ligado ao Serviço de Proteção à
Testemunha vinculado ao Ministério da Justiça e ao Congresso Nacional, mas
nada conseguira de objetivo dada à burocracia que emperrava a máquina
tucana-liberal, depois roubara uma empresa alemã de jóias raras e, largando a
família iria fazer uma operação plástica e sair do Brasil. Tinha intenção de ir
para Miami, juntar-se a bandidos, prostitutas, corruptos, vagabundos e
traidores da pátria (a curriola que restou dos tempos sujos da ditadura sórdida
de Fulgêncio Batista) que o Comandante Fidel Castro estrategicamente tinha
expulso de Cuba e que ali, com o apoio de braço armado da CIA, ainda
covardemente postavam-se de forma mal intencionada (e dirigida) como se
confiáveis anti-castristas.
153
prejuízo dos fatos, com aquilo tudo me dando nos nervos, abrindo meu faro de
questionador, de repórter enxerido e entrão.
-Os novos tempos do Brasil, tentando descobrir os podres históricos dos três
poderes, poderiam atingir interesses cooperativistas de militares, autoridades
judiciais e mesmo bandidos com imunidade diplomática ou imunidade
parlamentar. A corja deles estava entre os chamados políticos de direita, todos
bem encastelados, confiantes a continuarem mamando nos cofres público. Era
a corrupção municipal, treinada com a corrupção estadual, enquanto a
corrupção federal financiava devidamente maquiada (papéis escusos com
rótulos de vernizes novos) o sucesso da economia norte-americana.
-Ou seja, o sistema todo era podre. O país desde o golpe de 64 vivenciava, dia
após dia, no trânsito, nas chacinas, nas brigas dos campos com grileiros e
latifundiários, uma verdadeira guerra civil disfarçada, bem disfarçada. As
estatísticas oficiais e, por isso mesmo camufladas da grande mídia, atestavam
que o Brasil tinha uma “guerra dos balcãs” em suas terras, onde os pobres
eram eliminados pela fome, pela miséria absoluta.
-Revelou ainda que a miséria ainda iria aumentar ainda mais no Brasil, na
América Latina (muitos países teriam terroristas aliados a capos traficantes no
poder), o terrorismo tinha tomado um caminho social paralelo e bem lucrativo
– a globalização da miséria e violência sem fronteiras também - e iria dar o
154
que falar no continente pobre da América que era mesmo uma latrina de
interesses das grandes potências insensíveis e com grande poderia bélico.
-Falava de atentados que alguns políticos corruptos sofreriam, para que não
tentassem levar de roldão, nas apurações de ilícitos, outros membros do crime
organizado que sustentava o Brasil Real e seu tucanato (balaio de ideologias e
muito nhennhenhen), de suspeitas privatizações-roubos, de duvidosos
pedágios doados a amigos do alheio, de erário público saindo pelo ladrão da
gangorra econômica espúria e suas bandas podres, moedas podres, planos
econômicos com fitos eleitoreiros. Afinal, com mais de dez milhões em áreas
atrasadas vivendo em miséria absoluta, tinha ainda o povão trocado seu
dinheiro pau a pau pelo dólares, depois de eleito, FHC desvalorizou a moeda e
tudo passou a valer a metade. Era uma empulhação com endosso dos três
poderes. Quem iria pagar por isso? Qual era o verdadeiro nome do sócio do
Brasil? O engodo estatal baseado em uma prostituição política também?
155
entregue às mesmas moscas que cresceram desde a colonização exploradora, o
escravismo, a ditadura e o neo liberalismo de FHC e amigos do alheio.
Só que, para Saulo, com sua sensibilidade excepcional, bem como a artistas,
pessoas sensíveis, geniais, questionadoras, críticas, o esforço para
compreender o universo (e o ser humano no contexto, claro – de onde veio, o
quê é, para onde vai?) era uma das poucas coisas que elevavam a vida
humana muito acima da comédia bizarra (que era o verbo Existir) e de certa
forma conferia um pouco de dignidade na tragédia.
156
SEIS
..........................................................................
Preferiu ceder. Ao menos poderia ver seus coitados amigos terem alguma
coisa de assistência, em que pese, pelo abandono do governo, das mãos dos
marginais. O Quinto Poder - a Violência – dando ao povo o que o governo
com seus altos impostos desviava para banqueiros que financiaram sua
157
campanha de eleição e reeleição, para continuarem mamando nos juros das
eternas dívidas externas, ou desviando verbas para cobrir cofres de corrupções
herdadas do regime da incompetente, corrupta, violenta e senil ditadura
militar.
158
Pela ocasional cobertura de cimento armado, pela segurança dos prédios ao
lado, pela companhia de turbas de carentes, Irmão Saulo fez estadia demorada
sob o Minhocão. Ali passou dias e noites entre fracos e oprimidos. Conheceu-
os na alegria e na dor, na pobreza e da riqueza, na fome e na pequena infração.
Com seus dons, pensava as pessoas certas nas horas incertas. Quando não
evitava uma situação mais grave e fora do contexto do tempo de milagre, tinha
uma palavra de paz, de conforto, de amparo. Como se um Antônio
Conselheiro dos Pobres, logo sua presença ganhou uma legião de mendigos,
fiéis admiradores e discípulos, a quererem beber de sua esperança-luz, das
migalhas de fé que caiam de sua mesa de sonhador, de plantador de sonhos.
Sua passagem aqui e ali, era um séquito. E dos prédios velhos daquele lugar
abandonado pela estética arquitetônica, caiam pétalas de aplausos, lágrimas,
flores, papel picado. Era adorado pelos sensíveis. Era um Beato, para os
menos desafortunados. Mas estava ficando velho, a idade batera, a barba
crescera muito e ficara grisalha, um improvisado cajado do que era antes um
cabo de guarda-chuva grande lhe dava apoio. Tinha varizes, labirintite,
problemas do músculo do coração pressionando as veias internas e o pulmão
já com a marca terrível da rua.. Para uns, era um místico, para outros, um
vidente, para tantos um filho de Deus no presépio do abandono social.
Uma vez, madrugada de lua cheia e frio de junho cortando, foi procurado aos
berros por uma velha da classe média alta, bem vestida, jóias, olhos azuis, que
pedia uma ajuda pela sua dor. Era a otosporose fazendo mais uma vítima, sem
medir credo, pose social, idade ou vaidade.
Saulo mal tinha despertado para ir mijar num vão de construção, tomara um
resto de água tônica quando foi alertado sobre a presença da velhota àquela
hora da noite, que insistis em vê-lo. Parecia louca e estado lamentável de
desespero e dor crucial.
Saulo prontamente se cobriu, envolvo numa manta velha, pediu que a senhora
sentasse num banco feito com dois botijões, um tampo velho de mesa e uns
cobertores encardidos.
Pois colocou as mãos peludas e trêmulas no punho direito da velha, que era o
que mais apresentava deterioração epidérmica – e fedia carne podre – depois,
com as duas mãos, subiu e desceu, do punho até o alto ombro daquela sra
Parecia rezar. Parecia em transe. Suas palavras nessa hora eram egnimáticas.
Podia ser uma prece, um murmuro, uma oração vertida intimamente.
159
Na primeira vez que fez a espécie estranha de “massagem”, a velha urrou de
dor, como se estivesse sendo atravessada por uma lança. Na Segunda vez a
mulher segurou o ímpeto, mas as lagrimas cairam aos borbotoões. Na terceira
vez foi que se deu o bendito milagre: a pela de mulher como se foi cerzida
pelas mão de Saulo, como se estivessem sendo fritadas no osso, recompondo-
se na vermelhidão quente dos toques severos, diretos. Então ela sentiu que a
dor a deixara, que os ossos receberam alguma energia, e, antes de desmaiar de
“tocada”(o dedo de Deus?) murmurou um lânguido agradecimento demorado.
Enquanto seus amigos a levavam dali, Saulo foi cercado por uma repórter e
um cinegrafista de um Canal Pirata de produção independente, que filmara os
uivos desesperados da mulher, filmara a operação de limpeza epidérmica o ou
coisa que o valha, e agora o queriam entrevistar. Aquilo valeria uma nota
como trabalho de frila (free-lancer) nos principais noticiários do país.
Mas a mídia tinha seus donos. Pelos padres foi acusado de charlatão Pelos
crentes de falso profeta. Pelos espíritas de curandeiro. Pelos macumbeiros de
débil mental. Para as bruxas, videntes, feiticeiros, videntes, paranormais,
esotéricos, sensitivos, acusando de ludibriar a boa fé dos incautos.
Mas ele estava onde estava. Não era um ignorante jogado ali entre
escrecências sociais. Ele escolhera estar ali, e isso fazia sentido. Ele era
politizado. Ele tinha estudo, cultura, lera muito. Ele sabia muito mais do que
os pobres miseráveis que o assistiam.
E sabia do holocausto das ruas pobres do mundo todo, mas da situação ruim
também no continente africano, com 766 milhões de habitantes, expectativa de
vida em torno de 53 anos, com 0,3% apenas de terra cultivável, oito países
atrasados envolvidos em guerra (que interessavam às grandes potências), mais
de 200 mil crianças lutando como soldados, o continente todo coberto por l8
milhões de minas terrestres, 3,5 milhões de pessoas fora de casa, fugindo ou
em busca de trabalho (a sobrevivência), além de pelo menos 22 milhões de
pessoas contaminadas com o vírus da AIDS, Isso o fazia tremendamente
infeliz. Sampa tinha seu holocausto imediato e presencial.
160
Ele era ainda um irmão de sonhos, um irmão que, nas sombras, levava sua luz.
Não queria ser uma mera autoridade religiosa, nem preocupar-se com dogmas,
dízimos, rituais, nominações,, ou filosofias de baixo calão, sem um fito
precípuo e imediatista de ajudar, amparar, salvar vidas.
Como era época de eleição, sua imagem de ancião beato quase santo (cabelos
brancos com cãs da cor da flor de algodão) foi usada aqui e ali, sem
autorização. Quando procurado por um político que era ex-ateu, ex-sociólogo,
ex-marxista, não viu ali ninguém especial, mas um tipo doente do ego, doente
de má companhia, doente da mentira que a vida o fizera, doente de várias
maneiras, Mas não viu cura para aquilo. O ser que à ele se apresentara entre
fotógrafos e comitiva palacial, saíra como viera: doente para sempre. Uma vez
foi procurado com a promessa de recursos financeiros por um tipo que
promovia de cara lavada o mote de “rouba mas faz”.
Mas ali o Irmão Saulo só viu o câncer de uma metamorfose ambulante, Não
achou que ia ouvir o que teve que ouvir na teve, no horário político eleitoral.
Todo mundo o queria perto. Todo mundo dizia que iria fazer pelo povo o que
deveriam estar fazendo. Quase vomitou de nojo ou ouvir tanta mentira. Mas
nenhum daqueles políticos, avena da rapina liberais, conseguiu uma só palavra
dele, sequer profecia ou sinal de cura do mau-caratismo. O triste foi quando
esteve sendo sondado para embarcar para uma capital do nordeste, para fazer a
161
campanha de um político corrupto, violento, irascível e ladrão que o queria em
campanha de um parente. Ele, ao ser visitado por esse tipo, viu que o homem
já mandara matar autoridades, juizes, promotores. Que aumentara em mais de
mil por cento a grana da família; que perdera uma filha lésbica, viciada , poeta
e comunista, mas que nem assim tinha sido tocado pela consciência. O moça
tinha sido devidamente forçada a se suicidar. Muitas décadas depois, por
continuar ainda insano, despreparo, foi lhe colida outra parte de si: um filho na
flor da juventude. Mas nem assim aquele homem gordo, já condenado a
morrer, se arrependera do enorme mal que fizera ao país, nem tinha sido
sensibilizado para triplicar o valor do salário mínimo, ajudar os pobres. Era
um homem que encarnava o próprio satã em terras brasileiras, pensou Saulo.
Como estava velho, Saulo passou a valer-se de um par de muletas, pois não
queria liteira, nem ser carregado. Aquele par de prótese lhe bastava. Punha-o
em alerta, se movimentando, ouvindo, sabendo das coisas.
Foi quando começou a ter certos “ataques” somados com estranhas distonias e
sudoroses. Levado a um pronto-socorro, ali ficou horas sem ser tratado. Os
serviços públicos estavam abandonados. Como passou o problema, pediu para
ser levado de volta para o seu canto. Na fila de espera, sofria mais do que com
o arrebatamento em si. Os serviços públicos estavam sucateados de propósito.
Uma cooperativa de.saúde, além de inconstitucional era amoral e roubo
oficial. Haviam interessem de bancos e agiotas do capital estrangeiro,
interessado em venderem seguro-saúde de previdência privada por trás.
Mas ele sabia mais do que podia dizer, do que podiam compreender os seus
amigos tão solícitos admiradores. Nesses estados de “ataques” seu cérebro
“voava” e ele como que recebia pensares novos, diferentes, que passou a
escrever em um caderno especial, que só foi achado muito tempo depois, entre
suas bagagens ruins, imprestáveis. Quase que as anotações importantes todas
foram atiradas num lixão hospitalar ou mesmo incineradas.
162
Era como se uma caminhada mística para dentro de si.
E haviam os estágios que ele, sem o saber, de certa percorrera bem ou aos
trancos, e que eram:
163
O primeiro é o Eu. Imobilizado pelas trevas da sua insignificância e total
desamparo, o Eu procura o seu senhor e o encontra: ele é o grito – seu
companheiro de armas – É o Grito que arranca o Eu do imobilismo
petrificante, na angústia-vívere de sua nulidade. E o tal Grito determina: “Ama
o perigo...aprende a obedecer...aprende a comandar...ama a responsabilidade
de pensar...ama cada um de conformidade com a sua contribuição para a
luta...Sê sempre inquieto, descontente, inadaptado, crítico, provocador,
radical. É o grito que agarra o Eu do nada sideral-abismal, que lhe mostra ser
um fragmento do universo infinital.
(Senhor, por que ruges como fera? Teus pés estão sujos de sangue e lama; tuas
mãos também. Pesadas como pedras de moinho são as tuas mandíbulas
trituradoras....Aonde vais? Choras, te agarras a mim, te nutres do meu sangue,
alentas e bates o meu coração)
164
A Luta: É a partir dela e dentro dela que os impulsos de Deus se manifestam,
entre eles o que o homem pode perceber é a dramática ascensão da matéria
inanimada às plantas, destas aos animais e deles para o homem-Ser. Degraus
que Deus criou para poder pisar e ascender-se?
São relações de cosmogonia. Uma relação entre Deus e o ser Humano. Nesse
percurso pré-final de configuração, os sentidos são renovados, reviçados e
purificados por excelência, e nem cabe mais explicar o ritmo da marcha de
Deus-Pai-Criador, mas sim fazer com o que da nossa fugaz existência com ele
sincronize. Não importa o nome que damos ao círculo supremo as sagração
das forças turbilhonantes, mas nos acostumarmos a chamá-lo de Deus porque
desde as infinitais dobras dos tempos ele nos comove, nos toca, nos supri, nos
intui, nos exercita em caminhos e descaminhos, com desvarios ou não, de
nosso rebuscá-Lo.
E aqui Deus é definido em nós tanto pela via negativa como pela afirmativa;
não é onipotente, não é onisciente, não é de todo bondade, é homem e mulher,
é moral e imoral, é excremento e espírito, é naufrágio e âncora, é balaio e
tampa. E em nossa carne efêmera corre perigo: ‘ ” Não poderá salvar-se se
nós, com nossa luta, não cuidamos disso; e não nos poderemos salvar se ele
não salvar-se em nós.
O mundo que nos chega aos sentidos de duas forças prodigiosas: uma que
desce e busca a imobilidade e a dissipação e a outra que sobe, procura a
liberdade e a imortalidade. Essas duas forças aparentemente contrárias, se
entrechocam sempre, perpetuamente, reconciliam-se e voltam a guerrear por
todo o Universo, desde o torvelinho de uma gota de água até a infinita torre
binária de astros da Galáxia.
-0-
165
SETE
(Decio One)
Não, não, certamente que não era mais o posudo doutor, tampouco apenas e
tão somente um rueiro. Era pior ou melhor do que antes? Que medida há no
cárcere à céu aberto das ruas e suas situações escabrosas, mórbidas?.
166
E notou-se ali com o par esquisito de muletas poluídas, com ceroto,
encardidas, maleixas, que passara a usar por causa das varizes, dos problemas
de articulação, de uma dor que surgira no joelho após um entorse de percurso.
As muletas lhe machucavam o sovaco, lhe puxavam uma velha hérnia, lhe
davam caimbras e tristes dores musculares, lhe macetavam os músculos sobre
os sovacos suados e com escamas de feridas velhas.
Pior foi o notar que, com o uso das muletas, parecia que as omoplatas estavam
crescendo. Não entendeu por que. Parecia ser-lhe uma metáfora, esse aludir.
Mas, de alguma forma, instintivamente até, sentia isso? Seria má impressão
pelo fato de ver-se em tal estado? Um ponto de fuga?
Irmão Saulo anotou isso e, logo em seguida, num outro caderno, alguns
poemas que aqui são relatados:
167
Poema Três – Os Velhos Herdarão a Terra
Na igreja vazia
O mendigo dorme de dia
E de noite rouba toca-fitas
Para trocar por injeções de café com leite
E gordurosas marmitas
168
Poema Sete – Sampa Revisited
na fila do hospital
na fila do banco
na fila do correio
na fila do cinema
na fila do restaurante
na fila do estacionamento
na fila do cemitério
na fila do motel
na fila do açougue
na fila da hóstia
na fila do sopão
na fila da morte
169
Poema Dez – Sudário
Deus é brasileiro
Mas está com passaporte carimbado
Pra ir morar na Somália ou no Haiti
170
Poema Quinze – Sede
Um vigia-noturno de um estacionamento
Matou um amigo meu, pedinte, por erro
Pensou que ele ia roubar um dos carros
Mas o pobre coitado só queria pegar água
Deu-me um real
171
Poema Dezenove – Piscina
No monumento do Ibirapuera
Um louco pichou em verde-amarelo
Uma verdade: Radical é a fome!
172
Poema Vinte e Quatro – Lei da selva
Olhos fechados
Ouvidos fechados
Bocas fechadas
A lei do sil6encio das ruas
É como um código legado de sobrevivência
Minha penicilina
É um cogumelo chamado sobrevivência
Minha fé ou religião
É medo de ser um corpo entendido no chão
173
Poema Vinte e Sete – Mãe
Hoje eu acordei
Com vontade de morrer
-0-
174
OITO
Ele sim, era um verdadeiro santo católico, pois dera toda sua vida, desde
pequeno, à santa madre igreja. Ele merecia ser motivo de rezas, promessas,
simpatias, novelas, um dia. Ele, Walter Bello, só ele, mais ninguém
Tinha ciúme, inveja. daquele homem puro que não fora, não tinha conseguido
ser, nunca seria. Era um nada cansado do nada, mas, não tinha competência
afetiva para ter conhecimento inteiro disso. Ser o que não era o limitava.
Pensava em melhorar os ensinos, os estudos, o currículo, mas não iria
simplesmente virar mero frei ou padreco de paróquia provinciana nos
cafundós do judas. Queria, isto sim, desembarcar no Vaticano, conhecer os
famosos rapazes de aluguel iugoslavos que abundavam em Roma fazerem a
vida entre bordéis de luxo e saunas de turcos banhos públicos. Pois aprontou
de todo jeito, maquiavélico e tresloucado, desviou intenções, montou teatros
de absurdos, que, a certo tempo, as autoridades do lugar, cansados de tê-lo
175
como professor interesseiro e atrapalhando a sagração tranqüila do lugar, já
que não podiam afastá-lo ou mesmo cassá-lo de ser o que era para desgraça
própria, que, finalmente montaram caminhos, estruturais e administrativos,
conseguiram uma promoção-castigo, e, finalmente mandaram o mal
intencionado servo de Deus para estudos complementares visando o bispado
no Vaticano em Roma. Livraram-se dele, claro..
176
NOVE
“Conversamos futilidades. Nada temos a dizer, mas não podemos ficar calados. Quando
encontramos alguém fazemos festas, recordamos os bons tempos, sentimos algo agradável;
ma não sabemos ao certo definir. Nem sempre somos sinceros nessas ocasiões.
Desenrolamos o fio de Ariadne. Enrolamos o fio novamente. Quando alguém faz um gol,
gritamos gol. Não ficamos nem alegres nem, tristes. Vivemos numa zona de sombras.
Vultos. Não queremos morrer, não queremos viver. E trabalhamos. Não podemos ignorar o
que todos sabem. Nossas vozes se confundem. Temos a nítida impressão de que nossas
palavras não são nossa. Durante anos perdemos a memória. NO entanto, isso não nos
prejudicou. Ao contrário, a amnésia nos protegeu das culpas e dos aborrecimentos. É certo
que também levou nossas melhores lembranças. Mas, o que se pode fazer com lembranças?
À noite, quando o universo é mais belo, quando a vida revela seus segredos, nos
acomodamos em silêncio em frente à televisão. Em geral, não assistimos aos programas.
Ligamos porque apenas não suportamos a solidão. Nunca vamos além do permitido. Por
vezes, um de nós solta um peido. Sorrimos. É uma senha. Afinal, estamos vivos. A cidade
tem 150 salas de cinemas, 90 de teatro, 800 bons restaurante, zoológicos, museus, casas
noturnas, clubes. Se queremos ser diferentes, temos que ser iguais. Temos vergonha de
nossa nudez, nossa barriga, nossa calvície, nossas roupas. As incertezas nos desesperam.
Não sabemos mais em quem acreditar: na psicanálise, na astrologia, nas seitas orientais, na
terceira onda, no fim iminente por uma guerra nuclear, nas profecias de Nostradamus, na
velha e tão nova igreja católica. Matamos Deus. Ressucitamos Deus. E, a todo minuto, nos
injetam mais dados, mais informações. Não nos recordamos mais quem foi Hitler. Vamos
vivendo, vamos morrendo. Temos sempre desculpas prontas, na ponta da língua, para cada
ocasião. Pedimos socorro por olhares, mas quase todos estão cegos. Somos vitimas e
inocentes. Desaprendemos muitas lições. Desajeitados, constrangidos, preferimos o escuro.
Fazemos amor já sem alegria. Não estamos preparados para a alegria. Não temos tempos
para os irmãos. Não temos tempo para nada. Mas dançamos. Em breve, muito breve,
teremos um filho. Ensinaremos a ele tudo o que sabemos. E o que não sabemos...” (Casais
– João Anzanello Carrascoza)
_________________________________________________________________________
Um dia Saulo sonhou que tinha outro irmão. Era uma obsessão intuitiva que
vinha-se-lhe de tempos em tempos, como se um inesperado desvio de conduta
mental. Um resquício de paranormalidade em vezo inferior? Sonhou ou foi só
um mero fluxo de inconsciência, revestido de memórias parcas guardadas
desde a primeira infância?. Era só uma nódoa de legado íntimo?
Por muito tempo teve que carregar ainda essa cruz, feito enorme ponto de
interrogação nas paredes das reminiscências. Pois certa feita sonhou que
estava com esse irmão já bem crescido e muito parecido com ele, e, ambos,
177
crucificados junto com o filho do Marceneiro José, com Jesus Cristo já
transpassado dizendo que ambos estariam, com ele no paraíso. Saulo acordou
assustado, trêmulo, pálido. Chorou. Era então mais um ladrão, um corpo na
Quarta Cruz do Calvário?
Ladrão de si mesmo?
Nunca ganhou tanta esmola como aquele dia difícil, quando comprou leite,
pão, manteiga e mortadela, e, como o fazia quase sempre, distribuiu a comida
rápida e simples aos seus semelhantes, largados ali entre uma oficina
mecânica e um depósito de ferro-velhos, numa travessa da Avenida Faria
Lima, no bairro de Pinheiros. Escreveu muito aquela noite fria de junho.
Ouviu conversas de mendigos sobre uma tal Confraria Miosótis, também
ouvir lascivos sussurros de mendigos se amando e fez força para não se
destemperar em impropérios.
Cuidou-se.
A lua vinha de Itararé e era inteira, branca , linda e nua como dizia a canção
de Caetano de música Lua de São Jorge.
178
Ouviu barulhos e medrou-se. Tinha havido uma outra fuga no cadeião de
Pinheiros, ali perto, na marginal, e a policia ia a vinha nervosa, pondo todo
mundo ali em risco, pondo as adjacências em polvorosa.
-0-
179
DEZ
Uma outra bendita noite sonhou que fazia o caminho de volta para casa, para
sua aldeia Itararé. Que tinha que se preparar para voltar às origens e entregar
seu estandarte de vivência ao julgador da espécie humana
Pois uma manhã tomou a decisão, saiu de fininho do canto rueiro dos pobres e
coitados, escondido deu no pira furtivamente, quando, a partir da Rodovia
castelo Branco demorou meses na trilha do sol, a caminho de casa. Ganhou
Sorocaba, depois Itapetininga via Raposo Tavares, até Capão Bonito, depois
garrou uma rodovia vicinal sentido Taquariavai, Itapeva e, finalmente
adentrou Itararé, sul do estado de São Paulo, seu rincão amado.
Desceu pela Rua São Pedro e seu tapete de lustrados paralelepipedos como se
cacau quebrado, passou a praça da Igreja São Pedro e garrou rumo do
Supermercado central do velho genitor, que ficava no chamado centro velho
da cidade, perto do calçadão.
180
Apesar de ser um sábado qualquer na vida rotineira da cidade, seu pai exigente
e unha de fome como era, mesmo algo curvo e lento no gestual, estava
conferindo pessoalmente um caixa que não batera, com medo de estar sendo
ludibriado.
-Fora daqui, seu estrupício. Não atrapalhe meus negócios, seu filho-da-puta.
Saia já daqui ou eu chamo a polícia. Quem o deixou entrar? Não se enxerga?
Sai! Sai! Sai! Vá feder assim nos quintos dos infernos!
.............................................................................................................................
Uma noite, deitado sobre umas tábuas, no largo de Santo Amaro, depois de
ganhar algum adjutório e de apanhar algumas frutas parcialmente
aproveitáveis numa feira nordestina própria, perto do Largo do Socorro, tendo
problemas nas articulações, talvez um reumatismo ou problema de hérnia,
resolveu tomar uma aspirina para ver se passava. Estava ficando velho,
181
concluiu. Logo, a sua hora chegaria. Ansiava por isso. Iria descansar o espírito
atribulado. Por isso foi dormir e nem eram duas da tarde, com um sol ardido
queimando a pele do dia. Escolheu um canto de obras ao lado de um prédio
abandonado por estar com problemas nas estruturas, e ali adormeceu entre
sarnentos cachorros vadios e um esgoto correndo fétido.
Quando acordou já era perto da meia noite, pelo que observara de um relógio
de banco num alto prédio ao longe.
Súbito foi tocado por um tipo que, certamente não era dali e nem mendigo, e
que pediu que o seguisse. Era um estranho no ninho. Quem seria?
Como teve medo de ficar empacado ali, numa recusa fora de propósito ou mal
explicada, entrou numa kombi (seria daquelas que distribuíam alimentos aos
neessitados?) e viu que o carro queimado óleo rodou por mais de hora, saindo
daquela zona sul de Santo Amaro para o outro lado da cidade.
Foi levado até uma instituição de caridade, cuja senha de entrada, ouviu, era
Operação Miosótis, lados do bairro de Santana, zona norte.
Era um prédio velho e simples, mas onde parecia ficar sediada uma
administração de empresa caridosa ou coisa assim.
Ali, chamado às falas com um sr. de nome Carlo Magmo, foi inteirado de que
poderia deixar a rua, poderia ir servir ali, como empresário, como filantropo,
como doutor, como caixa administrador. Seria de ótima valia. Quando Saulo
indagou como eles adquiriam recursos para manter a operação toda, um tipo
que vigiava ao lado disse que a organização era uma espécie de Robin Hood
moderna. Tiravam coisas de quem tinha muito, para dar aos pobres. Disseram
que era uma ramificação nova de uma ala de maçons do leste europeu, com
trabalho ali em Sampa. Tomavam dinheiro conseguido por bandidos em altos
resgates, desviavam contrabando roubados, enfim, na contra-mão dos fatos,
agiam bem estruturados para roubar ladrões, traficantes, ricos, poderosos.
Com isso, aplicariam dinheiro lavado do narcotráfico, dinheiro sujo de
contrabando, na ajuda humanitária. Era a Operação Miosótis e os fins
justificam os meios. Saulo até achou interessante aquilo. Será que o mundo
globalizado sofreria um revés a partir de pobretões do terceiro mundo? Era a
terceira via contra a Nova Ordem Mundial com suas injustiças também
terceirizadas?
182
Mas também era suficientemente esperto para perceber que estava com
alguma virose, que não duraria muito na tábua de carne da terra, que logo
bateria com as dez, como diziam seus amigos de Itararé, e não poderia
empatar tempo ali num escritório, do qual fugira quando era rico, como se
fugisse de uma cruz montada em pose .
Com todo respeito foi levado de volta, sabendo que, pelo menos, alguma coisa
os desafortunados estruturados para terem algo de melhor.
-0-
183
Pré-final
Era quase impossível atingir aos ouvidos de mercador da classe média alta (e
principalmente da classe dominante, claro), mas, fazer passeata era um
desabafo, uma demonstração de força (ah se o povo soubesse o poder que
tem!) e desfile de protestos ali era muito bonito, não apenas um mero jogo de
cena, mas com certeza viraria manchete de jornais, atrairia a atenção da mídia,
verdadeiro exercício democrático de cidadania, participação e conhecimento
da dura realidade que atingia as veias do país.
184
Pois foi aquele dia véspera de seu aniversário, final de agosto (era do mesmo
signo de Jesus - lera pequeno ensaio de um astrônomo israelense a respeito)
que, saindo de fininho do Largo de Pinheiros onde se achava fazendo nova
temporada (dizendo que ia ali perto num monturo fedorento, disfarçar para
fazer um xixi), e, pedindo carona de graça para um motorista (de vez em os
deixavam entrar pela porta de trás, ou, pela porta da frente desde que
passassem por debaixo da catraca) e, finalmente deu-se ali no começo da
Avenida Paulista, esquina com a Avenida Consolação, área toda enfeitada, em
balbúrdia, lotada de policiais sisudos. Para confinar o povo a policia prestava.
Antes não tivesse ido. Bem cedo, quando perdera o sono com fome a
contemplar a estrela vésper, ouvira num roufenho radinho chato de um
morador de rua uma canção dizendo de picaretas em Brasília..
185
palavras, como disseram alguns professores que tinham reparado em sua
alegria, sua boa vontade, sua determinação de marchar, apesar das muletas, de
seu jeito de ancião já mais pra lá do que pra cá.
Mais de dez mil pessoas amontoadas com fervor e palavras de ordem. Como
se marchassem para lugar nenhum, mas ainda assim seguiam em frente. Como
se conduzidas ao matadouro das resignações, mas altaneiras, firmes, resolutas,
assumidamente confiáveis e politizadas com verve de meio e propósitos.
Súbito, de uma hora pra outra, mal uma pomba voou baixo a procura de restos
de pipoca doce, mal um sol vazou o alto edifício da FIESP, e ouviram-se
gritos espantados, salvas de tiros, cocos voaram para cima de cavalos, pedidos
de calma de um aparelho de som, e um chiado espoucou no ar rente. Um
flanco de gente correu, outros abortaram a fileira em marcha, Saulo
inconsciente mas lento e cansado apressou seu par de muletas rústico para
ganhar a segurança do vão do prédio da Gazeta, quando ouviu um zumbido
curto, todo mundo correu buscando cuidar-se, depois imaginou-se com uma
pontada de água gelada no lado direito da cabeça (como uma gota de chuva
ele murmurou, antes de fechar os olhos aturdidos), e caiu para dentro de um
buraco que certamente sabia que ali não existia.
Não existia?
*******
186
Seu corpo coberto de crisântemos e pequenas dálias japonesas foi enterrado
em Itararé, na guardação e féretro mais concorrido que a região de luto tivera
notícia.
187
A mão de Deus tem vários dedos, e, mesmo às vezes escrevendo certo por
linhas tortas, ainda sabia tocar feridas existenciais, apontar caminhos,
amparar, plantar sonhos no coração dos sensíveis.
-0-
188
FINAL
“Bem-aventurado os que
procuram, porque acharão”
Não ficou triste por, finalmente ter chegado a sua hora. Esperou por aquilo
desde que se deu por gente? Quase suspirou de contentamento. Tinha feito
bem a sua parte: tinha vivido da melhor maneira possível. Quase que
agradeceu à Deus, dizendo “obrigado meu Deus” por ter me livrado desse
inferno, ter me tirado desse castigo de existir. Quase que sorriu inteiro, como
nunca houvera sorrido na vida inteira, a agradecer a Deus por o ter ferido de
tal fim. O fim da dor, o fim da fome, o fim de tantos desencontros. Sim. Era
isso mesmo o que queria, como se um alienígena na vida estrangeira da terra.
Estava em paz pela primeira vez desde que nascera?
189
Olhou para o céu.
Que mundo era o mundo? O que era o outro lado, o lado de dentro? O que era
o não-mundo?
190
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..........................................................................................................................
191
_______________________________________________________________
(Carl Jung)
..............................................................................................................................
Quem era ele ali?. - VIU que seus ombros eram mais largos do que sabia que
eram. Seus chatos pés descalços e inchados de andarilhar vestiam a pantufa do
ar. Cadê as suas dores musculares, as varizes - as omoplatas dolorosas? Cadê a
angústia, a melancolia, a depressão, a pele velha, a mente com disritmias? Em
que estojo se restava despojado da vida nua e crua?
POR DEUS! Estava voando! Tinha saído do mundo infame, vil. Asquele era o
outro lado do maldito mundo?
Sem que se autorizasse interiormente, sem que esperasse ter chegado a honra
da hora – uma bala perdida, um tombo de escada, um ataque fulminante do
coração – estava sem corpo podre, finito, nojento – ai do podre sangue
humanus! – e agora era nu nos ares de um altar que ficava na sagração de
muito além do sol.
Pela última vez contemplou seu corpo ali no primeiro degrau do edifício da
Gazeta Esportiva, com um policial assustado guardando o cassetete, pessoas
parando para recolherem-no ao vê-lo caído longe das muletas, repórteres
feridos espoucando flashs como se pequenos relâmpagos de sintonia fina.
Estava morto na terra e o barulho de uma ambulância (e gritos, correria,
pancadaria, palavrões) invadiam o ambiente varrido de medo e correria
generalizada.
192
Subindo, tragado por uma dimensão (paralela?) sendo finalmente revelado-
me, pode finalmente compreender que tinha sido aceito:
PARA QUE O CRIADOR – que nos fez à sua imagem e semelhança – não se
envergonhasse do que criara e não abandonasse a esfera global a própria sorte
de vagar para sempre no desgovernado curso do universo cosmonal.
E os viu aos montes. DEUS ESTAVA NO MEIO DE NÓS – não fora feito à
imagem e semelhança, não era um elo como parte do todo em Soma - E ELE
ESTAVA ENTRE ELES!
Eram muito mais do que podia imaginar. Estavam em todos os lugares. Uns
tinham-se tornando de alguma espécie terrestres – um novo céu e uma nova
terra? – alguns tinham cargos públicos, outros descobertos curas de doenças
terminais, um monte deles tinha trazido a invenção de um tal disco-voador ao
campo da ciência terrestres e agiam com outra face numa área desértica perto
da fronteira com o México, numa sede clandestina da Nasa.
Todos eram campos de mais ou menos energias. Aos poucos os seres ruins da
terra seriam substituídos? Então todos seriam, cedo ou tarde, SALVOS
PELAS OBRAS?
Meu Deus!.
193
O dia da vinda do Criador já tinha começado.
Ele tinha dado Noé, Elias, José do Egito, Moisés, Abrahão, Jesus Cristo
Maomé, Buda, Leonardo da Vinci, Santos Dumont, Pablo Neruda, Gandhi,
Luther King, Madre Teresa de Calcutá e tantos outros.
Finalmente estava dentro de si. O cálice da limitada vida terrestre tinha sido
afastado de sua angústia-vívere interior.
D E S M U N D O !
-0-
(FIM)
194
(*1)-Dr Paulo de Tarso Trigueiro foi atingido por uma bala perdida de um
policial da Rota atrelado ao governador insensivel com os problemas da
educacão e Violência, seu corpo reconhecido por familiares. Foi enterrado no
cemitério Centenário de Itararé.
(*4)-O Frei Walter Bello que andou sondando o irmão Saulo, ao seu jeito
afrescado (de meio sexo), cabelos oxigenados, gestos moles, é o pervertido
novo Chefe dos Capuchinhos descalços. Por ter aprontado entre irmãos, foi
recomendado para fazer curso (retirada estratégicamente legal) de Direito
Romano no Vaticano. Sonha em ser o primeiro papa latino-americano e já
teima nos bastidores essa intenção maquiavélica.
(*5)-O velho Aarão da Chácara das Rosas fez noventa anos e arrumou ainda
mais o lugar. O dono do terreno ao saber de seu trabalho, passou o lugar para
seu nome, ajudando, transformando o local num centro de Atendimento
Social, chamado Fundação Sócio-Cultural Irmão Paulo de Tarso
(*6)-Os filhos do Dr. Paulo de Tarso são todos aliados de corruptos e ladrões,
a maioria de políticos liberais. Dirigem clubes, universidades, instituições,
ONGS, têm cargos públicos bons, já aumentando as posses em mais de
quinhentos por cento. A vida do pai não foi lição suficiente. Nem querem
saber dos sobrinhos, filhos do irmão gêmeo do pai. Mal sabem o que sabem.
(*7)-São Paulo continua um esgoto a céu aberto, com o seu prefeito envolvido
em rede enorme de corrupção, que começou com seu anterior prefeito e
mentor político, Paulo Maluf. É mais um ramo da Máfia chamado Pau-Brasil
agindo, apesar de já investigada até pelo FBI. Mas têm 30% de chance de ser
eleito o político do estilo “rouba mas faz”, o mais corrupto do Brasil. Uma
pesquisa da Folha de São Paulo estatisticamente descobriu que pelo menos
vinte e dois por cento dos paulistanos aceitam um ladrão no poder.
195
(*8)-Caetano Veloso ganhou o Troféu Imprensa (Programa Silvio Santos) por
ter o melhor cedê de MPB gravado no ano, estourando nas paradas de sucesso
com a música Sozinho do cantor-compositor Peninha.
(FIM)
196
SAMPA-ELE está no meio de nós
Um homem de poder, realizado financeiramente, mas que não é feliz com todo
o status que tem. Ao contrário, é infeliz e, secretamente busca um sentido
para a vida, para a pergunta que cantou Caetano Veloso: “Existir, a quê será
que se destina?” Pois esse paulistano de Itararé, sul do Estado, certa noite de
passeio e gastança como tantas outras fugas inúteis, ao lado de uma bela e
fogosa mulher que tinha sido sua amante e agora desposara, vê uma resposta
excepcional para o que procura, enxergando então, muito além do
costumeiramente comum. É quando vê - com uma antiga e atiçada
paranormalidade de sensitivo novamente redesperta (passou décadas com esse
dom mascarado em si, pois ganhava dinheiro, crescia, estudava com a vida
sedentária de rico que levava). É quando esse TAMANHO VER mexe com
suas estruturas íntimas, espirituais, sensoriais. O quê era exatamente VIVER?
Valia a pena a sagração da infinita Viagem de Existir, sendo o que era?. Era
bom, sim, mas, para quem? Para quê? Então toma partido de sua vida pessoal,
readquire novas e puras convicções, tem inteira clareza do que realmente de
extraordinário (e de inusitado presencial) acontece nas ruas de abandono
social de São Paulo, onde ocorre um incrível holocausto de rejeitados por
causa do dezelo social público, os chamados excluídos, descamisados. Gente
simples, pobre, humilde, carente. Moradores de ruas entre pedintes
subviventes, mais velhos largados pelos clãs, fugitivos de êxodos rurais e
periféricos (e suas injustiças explícitos), E ex-favelados atirados na rua da
amargura dos contrastes sociais. E lembra-se do que de mais belo lera de
Cristo, sobre o Sermão da Bem-aventurança que São Mateus dos Evangelhos
resgata. Então toma sentido de si, toma tento de mudanças que se fazem
necessárias. Tachado de louco, extravagante, passa a buscar grandeza de
espirito. Quer lavar sua alma na causa dos desafortunados. Esse foi o primeiro
milagre. Existem outros. É quando cai na rua, estuda, aprende, é tripudiado –
quer orações com a Soma de obras sociais – e sofre, até que, tocando o
intocável, tem-se aceito em sua missão, com o aval do “Dono” da falange que
vê de maneira clara e cristalina. O quê um homem só, com sua esperança e
luz, pode fazer contra um mundo globalizadamente amoral, insano e pouco
preocupado com os Sem Teto, Sem Salário, Sem Amor?. O livro
(neoexistencialismo?) prepara caminho interior para a releitura da existência
sob uma ótica ética, humanista, nesses tempos tenebrosos de muito ouro e
pouco pão. Não estamos sozinhos quando fazemos caridade? A força do amor
move moínhos...
197
A história desse Paulo de Tarso personagem principal aos poucos se
fiquei sabendo inicialmente de tornara) o próprio Paulo de Tarso
ouvir-dizer, entre tantos causos e do caminho de Damasco. Dos
lendas de Itararé, com sua gama de relatos incríveis que ouvi, dos
histórias, inclusive representativa cadernos de rascunhos que achei
do rol da história brasileira. De em Itararé, procurei entender na
início não me fiei muito. Mas, medida do possível (e dentro do
coincidentemente em São Paulo, de meu imaginário pequeno para a
um grupo de Psicólogos, grandeza sensorial do vivenciador
Assistentes Sociais, Sociólogos e da história), tentando deixar o mais
pesquisadores dos problemas de verdadeiro relato de uma vida
rua, bancados por uma ONG com maravilhosa recuperada em tempo
base social na FAO (ONU) soube para a obra suprema da caridade.
mais e busquei sondar melhor Não inventei nada, nem enfoque
aquilo tudo de inusitado. Fui a ideológico ou religioso. Apenas
creches, sopões comunitários, formatei um relato do que de inteiro
igrejas, hospitais, sempre buscando e crível entendi. Cada leitor avaliará
dados dessa vida magna. Conheci melhor do que lhe for de serventia
parentes do personagem – disseram em fé e amor. Mas, com certeza,
ser verdade mas não quiseram se depois de ler sobre a vida de quem
identificar – conheci mendigos largou as páginas em branco de
recuperados que confirmaram (com uma existência vazia, e foi em
lágrimas nos olhos) muitos fatos. busca de se postar como um Ser
Até fiquei sabendo de dados plural, comunitário, será outro.
oficiais, como se um fio de luz Então ainda há esperanças para a
terreal tivesse atravessado a espécie humana? Nem tudo está
insensível soma de problemas que perdido. Muitos são chamados. O
fundam os feudos, becos e favelas quê pode o amor gratuito e serviçal
periféricas de uma cidade insana numa sociedade insensível? Eis o
com milhões de pobres entregues à resultado dessa busca. O interesse
própria sorte. Não é um livro triste. de passar uma vida a limpo,
Antes, é um livro que relata uma transformando-a num registro, é o
vida. Parafraseando Walt testemunho de que tudo na vida é
Whitmam, quem toca esse livro, um “milagre”. Os nossos problemas
toca o Ser Humano na sua mais são os nossos professores? A
pura plenitude. Omiti dados imaginação é mais importante que o
escabrosos, de fundo político ou conhecimento? “A mente que se
socialesco, mudei sobrenomes – um abre para uma idéia, jamais voltará
sr. até muito respeitoso confessou- ao seu tamanho normal”, disse
me ser esse “Irmão Saulo” (que o Einsnten.
198
COMENTÁRIOS DO AUTOR Para os vivíssimos:
Esse projeto de livro tantas vezes Julio Lancelotti, Dom Agnelo
começado, adiado, inúmeras vezes Rossi, Cardeal Arns, Jânio de
abandonado, foi de parto realmente Freitas, Elio Gaspari, Bispo
difícil. Tomei-me de inteireza para, Crivela, Caetano Veloso, Roberto
finalmente pesquisar o necessário e Carlos, José Nêumanne Pinto,
concluí-lo, na ocasião em que Rabino Henry Sobel, Sebastião
recebi o belo livreto chamado “Vis- Salgado, Maria Bethãnia, Roberta
Lumbre” do excelente Poeta Rizzo, Clovis Rossi, José
Alessandro Marino Lima (São Nêumanne Pinto, Chico Xavier,
Caetano do Sul), quando, ao final Milton Santos, Paiva Neto, Pastor
da obra, artesanal, o mesmo Nehemias Marien e Carlito Maia
esperançoso, valera-se muito Para os eternais:
apropriadamente da frase “Um dia, Betinho, Florestan Fernandes, Dom
enfim, todos os livros se abrirão”. Hélder Câmara, Pastor Jaime
Bingo! Esse mote belíssimo parece Wright, Vladimir Herzog (Vlado),
que lavou-me por dentro, abrindo Martin Luther King, Mahtama
em mim portas de entusiasmo e Gandhi, John Lennon. Madre
busca inconstante e impertinente, Teresa de Calcutá, Orlando
até que, finalmente, recolhi os Bandoni e Poeta Cecília Duarte
dados, ganhei as ruas, bati em Fogaça (de Itararé-SP) todos
portas – “batei e abrir-se-vos-á?” – imprescindíveis
cobrei dados oficiais (assustei E a todos os meus irmãos Lili,
pessoas), e, finalmente, eis a obra Luis Antonio, Claudia, Zé (in
que fala por si mesma. Ë a história Memoriam), Neusa, Sirlei, Erzita,
de um ser humano que viveu Sueli, Clarice, Cristina, Joana,
intensamente. Caso passasse Jacira, André, Paulo, Everaldo,
despercebida essa entrega, a Marco, Jair, Ricardo e, Celio Ely.
partilha de seus altos e baixos, não À minha Mãe, Eugênia, que
haveria lição alguma, a não ser para com sua voz de clarineta, alongou
os que o conheceram, dependeram, orações por meus sonhos.
foram ajudados pela bem- À memória de meu Pai,
aventurança da tenacidade dele. Antenor Corrêa Leite. Quando a
Livro pronto, entrego-o ao público morte matar a morte nós nos
leitor, feito inventariante de uma encontraremos de novo.
vida especial e depositório fiel
desse legado de emoções e buscas. “O futuro não nos traz nada e nem nos
Que façam bom proveito dele, da dá nada. Nós é que, para construi-lo,
devemos dar-lhe tudo“ (Filósofa Simone
mesma maneira como me fez Weil – França)
enormemente bem escrevê-lo
199
O AUTOR – Foi criado em Itararé desde os seis meses de idade – nasceu no
bairro Harmonia da cidade de Monte Alegre-Pr no dia l9.08.52. Seu pai foi
perseguido por grileiros de Lupion e voltou à terra de origem, onde tinha
sido, quando moço, primeiro acendedor de lampiões de gás da cidade. Em
Itararé passou a primeira infância e correu nas descalças ruas cor-de-rosa da
pequena periferia da cidade. Começou a escrever precocemente ainda no
Grupo Escolar Tomé Teixeira, em Itararé, no Curso Primário. Poemas pueris
sobre o Dia da Pátria, da Árvore, do Índio, da Bandeira. Com 16 anos
escrevia para um suplemento jovem que o jornal O Guarani trazia encartado,
além de ter sido aprovado em concurso para locutor na Rádio Clube de
Itararé. Em shows populares (prata da casa) cantava paródias e fazia
imitações da nata da Jovem Guarda. Era um rapaz que amava Os Beatles &
Tonico e Tinoco. Em Itararé, quando se iniciava nos estudos, também
trabalhou como bóia-fria, engraxate, vendedor de picolés, garçom de bar e
marceneiro, onde aprendeu essa profissão e ajudou a família, primeiro filho
homem depois de cinco irmãs. Em finais de 70, bandeou-se para Sampa, para
inscrever-se para servir a pátria. Por ser arrimo de família, foi dispensado.
Voltou a estudar, terminou os estudos no salesiano (de Dom Bosco) Liceu
Coração de Jesus onde foi medalhado, fez Direito, foi perseguido pela
ditadura, ganhou ficha nos porões dos podres poderes do regime de exceção,
a ditadura militar. Trabalhou oito anos na área de Pessoal e depois na
Contenciosa, quando foi demitido por ter escrito texto para o Jornal da Tarde
contestando as falcatruas da banda podre do Plano Cruzado de Sarney. Fez
então Geografia e foi aprovado em concurso para professor da Rede Pública
de São Paulo, além de ter feito várias oficinas, extensões e especializações
(redação publicitária na ESPM; relações raciais, literatura e jornalismo na
ECA-USP, além de inteligência emocional, filosofia para crianças, etc.). Fez
pós-graduação em Educação (Mackenzie) , onde especializou-se em Didática
de Terceiro Grau. Sempre escrevendo para jornais de Itararé, produzindo
muito, começou a participar de Concursos, quando teve a sorte de vencer
alguns, inclusive na USP, na Unioeste (Universidade do Oeste do Paraná –
Concurso Paulo Leminski de Contos), e outros bancados por Bibliotecas
Públicas de renome e Fundações Culturais idôneas. Em 1995 teve um livreto
de Poemas (Trilhas & Iluminuras) bancado pela Coleção Prata Nova da
Editora Grafite do RS. Começou a participar de mostras (inclusive no
México), congressos, palestras (Faculdades Campos Salles), (exposições
(Centenário de Itararé), feiras culturais (Faculdade Pinheirense – Grupo
Teresa Martin), eme também a colaborar com várias revistas literárias,
jornais e Suplementos Culturais, escrevendo sobre literatura, artigos,
resenhas críticas, sobre teens, Terceira Idade, educação, Cidadania, Política
200
e Ética. Passou a constar em diversas Antologias Literárias, inclusive no
exterior como Itália (Antologia Multilíngue de Poetas Contemporâneos),
Portugal (Instinto Piaget/Concurso de Poesia) e Cristhmas Anthology
(Estados Unidos), entre outros, além de ser incluído em alguns cadastros da
nova poesia brasileira. Teve seu trabalho elogiado, entre outros, por Elio
Gaspari(Folha de São Paulo), Crítico literário Erorci Santana (Jornal O
Escritor da UBE-União Brasileira de Escritores), Solon Borges dos Reis
(Educador e Poeta), Jamil Snege (Escritor de vanguarda do Paraná), Ricardo
Ramos (filho de Graciliano Ramos),Senador e Jornalista Artur Távola, Jornal
O Estado de São Paulo (quando ganhou prêmio na USP), Professora Maria
de Lourdes Luciano Nonvieri (Jornal Tribuna de Itararé/Elos Clube-
Comunidade Lusíada Internacional) e Revista Literária Aldéa, da Espanha,
entre outros. Em abril de 2.000 teve seu livro O Rinoceronte de Clarice,
contos interativos, literatura virtual, bancado pelo Site
httpp:www.hotbook,com,.br da Jornalista, Professora e Escritora Roberta
Rizzo (Rádio CBN Rio de Janeiro), lançado na rede mundial da Internet,
como trabalho pioneiro, único, de vanguarda, com ficções ao estilo “você
decide”. Por duas vezes foi selecionado pelo Mapa Cultural Paulista
(Secretaria de Estado de Cultura) como um dos dez melhores contistas do
Estado, representando Itararé. Recebeu o título oficial de Cidadão
Itarareense e é autor do Hino ao Itarareense, escrevendo ainda para o jorna
Gazeta Regional de Itararé, onde é diretor cultural de clube e mantém
atividades e família. Pode ser contado pelo e-mail poesilas@ig.com.br reside
em Sampa à Rua Tucambira,44-Apto.2-Pinheiros-São Paulo-SP, atendendo
pelos fones: 211.7l64, 9l08-6352 ou recados 289.4333(hor.comercial). É
compositor inédito de rocks, baladas toadas & blues, tendo ainda vários
livros inéditos, como romances, uma novela, dois livros de microcontos, um
de haikais, vários de poemas temáticos, um de poesia para a juventude e um
inventário sobre a Prática Educacional Vivenciada. O autor, como Manuel
Bandeira, não acredita em arte que não seja libertação, acredita-se um
plantador de sonhos, um eterno aprendiz da alma humana, acha que o mundo
estaria melhor se tivesse mais mulheres no comando, além deter sua poesia
rueira, descalça, como se uma espécie de respiração da alma, e a sua ficção
classifica de ficção-angústia. Tem livros inéditos sendo prefaciados por José
Nêumanne Pinto (O Estadão) e Bernardo Adjzemberg (Folha de São Paulo) e
dois outros (um de auto-ajuda e um romance) em poder de editora de SP para
serem avaliados. Um poemeto seu diz ”Ser Poeta é a minha maneira/ De
chorar escondido/Nessa existência
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estrangeira/Que me tenho havido”. Teve a idéia desse livro muitos anos atrás,
começou a parou várias vezes o projeto, até ter tempo para pesquisa e acabar
esse projeto de livro. Pensa em traduzir alguns de seus trabalhos e lançá-los
no exterior, como fez com sucesso Ignácio de Loyola Brandão. Ainda um
sonhador, acredita na utopia de um neosocialismo de resultados,
envergonhando-se do “capitalhordismo” praticado no Brasil de muito ouro e
pouco pão, de tantas riquezas injustas, de suspeitas riquezas impunes, onde os
excluídos sociais fazem parte da miséria absoluta globalizada, da fome, da
prostituição infantil e da corrupção endêmica institucionalizada em todos os
níveis, com um estado público na verdade privado..(*)
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