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Nº 151 - Setembro 2018 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

HANA LUZIA & MARIA JÚLIA MOREIRA

Dossiê reflete os 80 anos


do clássico de Graciliano Ramos

MANIFESTO ANTROPÓFAGO, 90 ANOS | O RETORNO DE LEDUSHA | PAULO HENRIQUES BRITTO


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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

E
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
stamos em 2018, ano em que Vidas secas, e deglutir a cultura do colonizador? Ou faz mais
de Graciliano Ramos, completa 80 anos sentido “dar de comer”, dividir a “comida”, uma Vice-governador
Raul Henry
de lançamento e o Brasil pode voltar ao forma de fazer frente aos fascismos contemporâneos?
mapa da fome. Uma efeméride é sempre O que hoje se vê são as minorias narrando suas Secretário da Casa Civil
André Wilson de Queiroz Campos
uma oportunidade de pensarmos o questões em primeira pessoa e é a partir desse
lugar dos clássicos no presente. Nesta movimento que Evando fala. Na mesma proposta, COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
edição os escritores Estevão Azevedo e Socorro Acioli convidamos o líder Álvaro Tukano para contar sua Presidente
leem a obra a partir do som, das cores e do projeto visão da história das lutas dos indígenas no Brasil. Ricardo Leitão
modernista dos anos 1930. Um projeto político e É uma continuidade do tema que abordamos na capa Diretor de Produção e Edição
estético que abordava a miséria do Nordeste. Como de agosto. O resultado é um precioso depoimento que Ricardo Melo
isso se dá? Quem nos mostra é Silviano Santiago em aproxima leitores e leitoras das ideias e disputas nas Diretor Administrativo e Financeiro
breve ensaio sobre a linguagem de Graciliano, uma quais os indígenas se inserem. Bráulio Meneses
torção do português castiço pelo uso do “dicionário O mesmo ocorre com o texto de Amara Moira, que
vivo” da língua, colhido com familiares e amigos; discute o livro Princesa. Assinado por uma mulher trans
e uma carta do tradutor holandês do escritor, August e um homem cis, a obra é construída sobre uma rica
Willemsen, que frequentou a geografia original de linguagem entre o italiano e o português; e nos mostra
Uma publicação da Cepe Editora
Graciliano, em Alagoas, o que o levou a conhecer como o circuito editorial hegemônico do país ainda Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
pessoas que cruzam a linguagem do escritor. está pouco preparado para lidar com a diferença. Pernambuco – CEP: 50100-140
Continuamos na seara modernista ao abordar os Por fim: os bastidores de Lua na jaula, de Ledusha; Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
90 anos do Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade. e uma conversa com Paulo Henriques Britto, autor
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
O pesquisador Evando Nascimento situa as ideias de do recém-publicado livro de poemas Nenhuma arte. Luiz Arrais
Oswald no presente, em uma tentativa de atualizar a
EDITOR
ideia de antropofagia: será ainda necessário mastigar Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Hana Luzia, Janio Santos, Luísa Vasconcelos
e Maria Júlia Moreira
Álvaro Tukano, Amara Moira, escritora, Silviano Santiago, TRATAMENTO DE IMAGEM
uma das principais crítica literária e ativista crítico literário, Agelson Soares
líderanças indígenas trans, autora de E ensaísta e premiado REVISÃO
do Brasil se eu fosse puta? escritor, autor Maria Helena Pôrto
de Genealogia
COLUNISTAS
da ferocidade Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Estevão Azevedo, escritor, autor de O som de nada acontecendo; Evando Nascimento, professor e pesquisador (UFJF), e Sóstenes Fernandes
autor de Derrida e a literatura; Ledusha Spinardi, poeta e tradutora, autora de Risco no disco; Mariângela Nunes Guimarães, MARKETING E VENDAS
jornalista e tradutora; Ramon Ramos, escritor e mestre em Literatura (PUC-RJ), autor de A vulnerabilidade como Daniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvão
procedimento; Socorro Acioli, escritora, autora de Cabeça de santo; Walnice Nogueira Galvão, pesquisadora e professora E-mail: marketing@cepe.com.br
emérita da USP, autora de A donzela guerreira Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

BASTIDORES

HANA LUZIA

Os poemas
num ritmo lento e intermitente, a depressão come-
Ledusha Spinardi çou a dar indícios de que se dissolvia e arrisquei os
primeiros passos fora da caverna. A sombra perdia a
Nuit, desespoir et pierrerie parada, embora o trabalho de reestruturação anímica

estão vivos e
S. Mallarmé continuasse – e continua.
Em seguida, os editores Marília Garcia e Leonardo
Quando o Suplemento Pernambuco me sugeriu que Gandolfi, da Luna Parque Edições, me propuseram
escrevesse um texto contando como nasceu meu republicar Risco no disco, meu primeiro livro; fechei

passam bem
novo livro, passei a caçar cuidadosamente uma ponta com eles sem hesitar, o projeto era ótimo, e mais que
do fio dessa história, porque a de Lua na jaula tropeça oportuno. A edição ficou linda, a reação dos leitores
no próprio (fio), como em outros que me enredaram, foi bacana – a das gerações mais novas, comovente -
para que eu possa compreendê-la objetivamente, e e houve uma boa repercussão em nosso meio. Muito
assim também transmiti-la. Tendo acontecido por feliz o momento, a ideia e sua concretização. Isso me

Autora de versos famosos vias pouco usuais no meu exercício da poesia, a


abordagem que me é possível exige que fale de mim
estimulou a organizar os poemas dispersos, e passei a
trabalhar neles, o que me levou a reconectar, mesmo

como Prefiro Toddy ao tédio,


mais do que gostaria. que na ponta dos pés, o fluxo criativo. Trabalhei mais
A primeira coisa que me ocorreu foi que, na ver- um bom tempo no material esboçado até que percebi
dade, ao receber a proposta da editora Todavia para que talvez houvesse material para um livro; porém,
Ledusha conta como foi o publicá-lo, eu ainda não tinha total consciência
de que ali já respirava um livro. Na época, minha
faltava-lhe “alma” - e, para mim, lançá-lo não se
encaixava nessas circunstâncias.

seu lento retorno à literatura relação com os poemas que o compõem era de um
estranhamento que nunca havia sentido e, para
Foram os editores da Todavia que, no ano passa-
do, com profissionalismo, tratamento impecável e

com Lua na jaula, livro de potencializar minhas dúvidas, eu trazia os parâ-


metros abalados por anos de isolamento, quando
paciência, enfim me convenceram de que Lua na jaula
deveria ser publicado em 2018. Passei a me dedicar

poemas lançado neste mês


enfrentei uma depressão persistente e devastadora, mais intensamente aos textos, até “animá-los” e
aliada a profundas transformações anímicas, das que me sentir confortável para que fossem publicados.
não deixam pedra sobre pedra, e, à primeira vista, O título me chegara num insight havia tempo, e
caminho algum. Com a ausência de concentração o incorporei sem refletir- me, agradou o resultado
crescente causada pelo “mal do século”, aos poucos sonoro da combinação das palavras, e a princípio
percebi, assustada, que perdera a capacidade para não o associei às vivências que narrei acima; mais
seguir trabalhando com os frilas de costume: tra- tarde, também, é que me dei conta de que dentro da
duções, matérias jornalísticas, eventuais crônicas (palavra) “jaula” há uma (palavra) “lua”de trás para
poéticas; meu estado tornava tudo muito lento, a frente. Recurso metalinguístico interessante que
o que por sua vez me levava a estourar prazos e eu jamais teria encontrado intencionalmente. Para
nunca ficar satisfeita com os resultados. Vi-me blo- minha sorte, o inconsciente trabalha sem deixar que
queada para a leitura, alimento indispensável para nossos infortúnios o paralisem.
quem escreve e, enfim, para o contato social. Sem Nunca soube falar de forma crítica sobre meu tra-
meus recursos básicos, exaurida pelas tentativas de balho. Sei que ele não se reduz a caminhos“mágicos”,
agir “normalmente” durante anos, me recolhi para à “pura inspiração”, ou “espontaneidade”; porém
processar tudo isso. O desmantelamento interno seu processo derrapa em certo mistério, que não me
refletiu-se, claro, no meu fluxo criativo, e os ver- interessa desvendar.
sos, cada vez mais escassos, ficavam vagando por Meus versos ainda passeiam entre o humor e a
aí desordenados, ou registrados em algum arquivo melancolia, uma das minhas marcas, dizem, mas
remoto no computador. agora talvez em outras proporções. O que posso dizer
Já com um pé nesse exílio, havia publicado pela mais: quando setembro vier, o livro será lançado, os
editora 7Letras Exercícios de levitação (2002), uma com- poemas estão vivos e passam bem.
pilação dos textos semanais que escrevi para a Folha
de S.Paulo entre 1996 e 2001, e alguns parcos poemas Leia poemas de Lua na jaula na página 27 desta edição.
novos; e Notícias da ilha (2012), um apanhado da mi-
nha poesia desde Risco no disco (1981), acrescido de
pouquíssimos inéditos, também. Era quase nada, O LIVRO
mas havia movimento. Assim mantive distância da Lua na jaula
estagnação, perigo letal. Editora Todavia
Nesses anos, muitos, além de tratamento me- Páginas 128
dicamentoso, terapias, contei com o carinho e a Preço R$ 49,90
generosidade de amigos, familiares - especialmente
de minha filha -, para não me entregar à mudez
definitiva. Até que, depois de inúmeras recaídas,
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

ARTIGO

Nas mãos dela, Cem anos depois de O bom crioulo (1895), de Adolfo
Caminha, romance esquecido do nosso Naturalismo
e recolocado em debate, na década de 1980, por

a literatura
uma tradução americana como um dos primeiros
no Ocidente a apresentar um protagonista homosse-
xual, surge como forte candidato à lista das grandes
obras injustiçadas pela crítica literária brasileira
Princesa (1994). Trata-se de um livro de memórias

se fez trans
gestado em italiano, na prisão romana de Rebib-
bia, pela mulher trans paraibana Fernanda Farias de
Albuquerque em coautoria com Maurizio Jannelli,
um intelectual italiano ex-integrante das Brigadas
Vermelhas, enquanto ambos estavam lá presos.
Sobre Princesa, potente Publicada pela Sensibili alle foglie – cooperativa
editoral idealizada por presos políticos de Rebibbia

relato autobiográfico feito interessados em produzir e divulgar obras, dentre


outros assuntos, sobre a luta armada italiana e

por uma mulher transexual


dispositivos de exclusão social e a experiência do
cárcere –, o livro viu sua primeira edição esgotar
quase imediatamente. Foi traduzido já nos primei-
ros dois anos de existência para o grego, português,
Amara Moira espanhol e alemão, virou canção, conhecidíssima
na Itália, nas mãos de Fabrizio de André e Ivano
Fossati (Prinçesa, do álbum Anime Salve, de 1996), ins-
pirou peças, filmes e documentários e converteu-
-se em símbolo da luta pelos direitos trans no país.
Hoje é conhecido como um dos primeiros e mais
paradigmáticos casos da chamada letteratura italiana
della migrazione.
Tudo isso é Princesa, palavra tomada de emprésti-
mo ao português e que dá nome a todas às suas ver-
sões, incluindo a italiana (o termo correspondente
nesse idioma seria principessa e a cedilha encaixada
ao título da canção de André e Fossati dá a enten-
der que, sem o diacrítico, ainda que reconheçam
a palavra como estrangeira, a pronúncia esperada
na Itália seja não o nosso cê, mas tchê, como em
ciao/”tchau”), obra que já no título incorpora a dú-
vida e a ambiguidade. Esses dois elementos darão
a tônica desse livro que, no Brasil, para além duma
meia dúzia de referências esparsas, e da excelente
tese de doutorado de Luciana M. M. Ulgheri, tem
sido solenemente ignorado.
É livro de difícil classificação, o que se deve muito O italiano aprendido nas ruas e no cárcere por
a esse idioma que, ao fim de inúmeras reescrituras, Fernanda, em seus poucos anos de Itália, é o idio-
fez-se o italiano límpido, conciso, poeticíssimo do ma desses manuscritos. Um idioma macarrônico,
Maurizio editor/biógrafo (“para se tornar acessível caótico, altamente inventivo, de fronteira quase de
a um público mais amplo”, conforme se lê em seu sobrevivência, escancarando o abismo que separa
prefácio), mas o tempo todo salpicado pelo portu- o italiano do português ao mesmo tempo em que
guês coloquial da Fernanda personagem/narradora. ensaia um espaço onde os dois idiomas se fundam,
Um português repleto de marcas da terra e cultura se confundam (como traduzi-lo, aliás?). Mas desse
em que ela se criou, no interior da Paraíba, e que idioma quase nada se conserva na versão final,
recebe um glossário ao final do livro para se tornar que brincou com muita liberdade com os escritos
legível em italiano (é nossa a única edição que o de Fernanda, alterando personagens e sequências,
abandona, com seu português translúcido de cabo a inserindo situações novas, desdobramentos plau-
rabo). Biografia de Fernanda, autobiografia a quatro síveis, ênfases inusitadas etc. (liberdade demais em
mãos? Tradução, adaptação de um suposto original alguns casos, como por exemplo em recorrentes
escrito por Fernanda em português? pensamentos racistas colocados na conta da auto-
Não, não há um original em português. Há, isso ra, muitos deles direto em português, e que não se
sim, os manuscritos em italiano da própria Fernan- encontram em passagem alguma dos originais...
da, datados de setembro de 1991 e intitulados Sono como interpretá-los? Maurizio assumiu ter buscado
venuta di molto lontano (recentemente, eles, junto do inspiração em Guimarães Rosa para entender a cul-
texto publicado em livro e de um acervo de ensaios tura em que Fernanda se criou, intuito louvável, mas
a seu respeito, foram disponibilizados pelo website talvez seja a hora de começarmos a editar e traduzir
www.princesa20.it, em comemoração aos 20 anos não só a versão urdida por Maurizio – lindíssima,
de publicação da obra), nos quais se pode ver com há de se reconhecer –, mas também a gestada por
clareza a forma como a autora pensava sua história Fernanda com suas palavras e visão de mundo).
e estimar as transformações pelas quais esta passou E o que nos conta Princesa, o livro? Do corpo como
até tomar forma de livro e converter-se não mais na prisão (na já clássica metáfora com que tentam nos
história só dela, mas dos dois, Fernanda e Maurizio. explicar, apreender, o famoso “nascer no corpo
Dois? Em verdade três, pois intermediando essa errado”, como se houvesse “certo”), à prisão do
relação havia ainda a figura de Giovanni Tamponi, corpo em Rebibbia. Um corpo que nunca coube
pastor sardo condenado à perpétua por assalto a em padrões, corpo que nunca coube no armário,
banco, que resultou na morte de um segurança da narrando em minúcia as experiências de cunho
instituição. Giovanni foi quem primeiro sugeriu à sexual, aos milhares, sempre no limite entre a
Fernanda – recém-chegada à prisão por tentati- sensação de prazer (o prazer possível, momento
va de homicídio (sob efeito da cocaína, ela havia em que encontrava um mínimo de afeto e reco-
esfaqueado a dona da pensão em que morava por nhecimento) e a consciência da violência, vividas
esta ter-lhe roubado U$S 5 mil), momento tam- na infância e adolescência nas mãos de meninos
bém em que se descobre soropositiva – a escrita mais velhos e homens adultos, os mesmos que em
como forma de “não se despedaçar”, de “não se público a humilhavam.
esquecer de ter nascido livre”. Foi ele também As duas metades de coco com que imagina os
quem colocou Fernanda e Maurizio em contato, primeiros seios, os tamancos emprestados da mãe, o
para que o caderninho de capa amarela contendo vestido, esmalte nos dedos, os jogos em que ela era
esses originais, junto a outros tantos bilhetinhos que a vaca e Genir o touro, o faz de conta como espaço
correram pelas três celas, pudesse receber a atenção de experimentação e autodescoberta, mas também
merecida. Seu nome, no entanto, ficou de fora da de reinvenção da realidade, realidade que, no fim
lista de autores, ainda que Maurizio, no prefácio, das contas, ela vai percebendo que não passa de
assuma que aquele é um texto escrito a seis mãos. papéis, de interpretação... você é o que você faz, é
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LUÍSA VASCONCELOS

o que são capazes de ver em você. É isso ou como


entender o fato de que, na relação sexual (que outra
coisa não é senão jogo), diga-se que ela “se fez de
A única edição às vezes tudo isso na mesma frase, como a própria
Fernanda o fazia (é possível percebê-lo em vídeos da
época). A possibilidade de vivermos integralmente
mulher para homens”, pondo-se em jogo somente
a identidade dela e não a dos demais participantes?
Ela queria essa identidade em jogo, queria esse
de Princesa no feminino, as narrativas que o permitiriam, estava
só começando a ser inventada.
Mas para Maurizio, não, que referindo-se ao seu
papel, esse faz de conta em estado permanente, e
por ter chegado cedo à intuição de que gênero não é que não respeitou presente a trata sempre por ela, sempre por Fer-
nanda, assim como os paratextos da edição italiana,

a identidade de sua
destino irreparável, nem genital, viu-se autorizada espanhola e alemã (da grega só tive acesso à capa).
a acreditar que haveria solução para seu impasse. A exceção fica por conta da edição brasileira (pela
Uma solução encontrada a princípio nas brincadeiras Nova Fronteira) que, à orelha do livro achou de bom

autora foi a que


infantis, então no sexo, depois nas roupas, dali na tom apresentar nossa heroína como “Fernando,
prostituição e, por fim, via hormônios e silicone, aliás Fernanda Farias de Albuquerque, a Princesa,
em intervenções corporais permanentes (todas 32 anos, nascidO na cidade paraibana de Alagoa
clandestinas à época e, em alguma medida, ainda
hoje). Eis como o livro apresenta esse momento em
que, finalmente, ela se vê arrastada para o mundo
saiu em seu país Grande, travesti, condenadO a 6 anos por prosti-
tuição e tentativa de homicídio”. A condenação por
prostituição fica na conta dessa edição também e
das mulheres (p.82):
“Uma mulher com pau, eu sei. Mas o que eles
não veem é o que não convém ver. E eu os ajudo.
natal, o Brasil espanta Fernanda ser colocada como travesti (não
só aqui como no subtítulo à capa, “Depoimentos de
um travesti a um líder das Brigadas Vermelhas”1)
Dou garantias. Sei escondê-lo com habilidade e encontrou a prisão perpétua, onde passou a questio- quando, no prólogo, a tradutora afirma que ela
experiência sob a minissaia. Apertado em calcinhas nar o sentido do que o fez chegar até ali. Como se lê expressamente solicitara ser tratada como trans/
elásticas. Minguado pelos hormônios. Amassado de no prefácio, em meio a essa crise de identidade que transexual. A cereja do bolo encontra-se na página
tal modo, que só quem procura encontra. (Sei que ele e seus companheiros viviam, o panorama mo- com as informações catalográficas, onde se vê que o
talvez não seja assim. Muitos sabem, percebem. nótono do cárcere foi completamente transformado subtítulo com que se registrou a obra foi “A história
Veem e mesmo assim se comportam como se eu pela inesperada aparição de travestis e transexuais, do travesti brasileiro escrita por um dos líderes da
fosse toda mulher. E este ‘como se’ para mim é “perfumes de mulher invadindo olfatos desabitu- Brigada Vermelha”..., única edição a negar-lhe a
muito. Talvez tudo. Embaraçados com a situação, a ados; saias, meias e sutiãs pendurados nas janelas, autoria da própria história.
maioria prefere confiar na aparência convencional: (...) aqueles corpos fotocopiados das revistas sexy, Um dos primeiros relatos autobiográficos, no
peitos, bunda, tudo no lugar, então, senhorita. Na (...) um atentado ao velho modo de comportamento Brasil, de mulher trans e de trabalhadora sexual, e
praia e no restaurante. Para mim a vida é outra.)” na prisão”, indo ainda além em seu questiona- de longe muito mais enigmático que os dois que
O que se vê e o que se deixa de ver, a vida pela mento: “Como responder aos pedidos que faziam o antecederam (Meu corpo, minha prisão, de 1985, da
lógica do como se, do faz de conta, essa mulher com de serem chamadas no feminino? Às provocações mulher trans Loris Ádreon; e Eu, mulher da vida, de
pau que, funcionando num primeiro instante como exageradas? Mas, sobretudo, como interpretar os 1992, da prostituta Gabriela Leite), talvez seja hora
oxímoro, absurdo assumido, aos poucos desvela o novos fantasmas que de noite começaram a habitar de vislumbrarmos sua retradução. Mas uma que lhe
colapso do sistema de gêneros, porque o como se que, nossos sonhos?” leve a sério, uma que reproponha essa ambiguidade
a princípio, era apenas dela, logo se torna também de Não à toa essa passagem tão potente e poética linguística tão característica sua, que nos imponha
quem se faz testemunha. Em outras palavras, num da Fernanda-mulher-com-pau foi criação quase a necessidade de um glossário, que se interesse
mundo onde o genital com que se nasceu deixa de exclusiva dele, não se achando equivalente nos ma- inclusive pela narrativa que forjou Fernanda. Quem
se fazer ver na forma como a pessoa existe, num nuscritos que lhe deram origem. Não à toa também sabe, então, não chame a atenção da crítica?
mundo em que já não se sabe o genital com que Princesa e não Principessa, pois Fernanda não se traduz,
a pessoa nasceu, então não só Fernanda pode ser nem se explica, se impõe (e o mesmo se pode pensar 1. As versões espanhola e grega não possuem subtítulo,
Fernanda, como as demais pessoas precisarão buscar em relação ao Sono venuta di molto lontano, os manus- a italiana só passa a tê-lo na segunda edição, de 1997
outra forma de explicar o que são, o que se tornaram. critos da autora). Um livro que começa em primeira (Dal Nordeste a Rebibbia: storia di una vita ai margini).
Até onde você está disposto a ir pelo que acredita? pessoa, tratando-a no masculino para, do meio A alemã, feito a brasileira, desliza, mas só no subtítulo
Maurizio envolveu-se na luta armada de esquerda e em diante, oscilar entre essa opção e a feminina, (Ein Stricherleben, algo como Uma vida de michê).
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ENTREVISTA
Paulo Henriques Britto

Sobre o fracasso
como textura dos
próprios poemas
Premiado poeta carioca fala de seu livro mais recente,
Nenhum mistério, no qual recria as perdas da vida – e
pensa também o acaso esse “grande motor da realidade”
FOTO: DIVULGAÇÃO

Como você vê Nenhum mistério em relação


à sua obra? Há continuidade do projeto de
Formas do nada que, por sua vez, valoriza
o vazio, o menor (como anteriormente
sugerido em Mínima lírica)?
Creio que sim. A valorização do menor, do
mínimo, é, para um poeta do nosso tempo,
uma simples constatação do óbvio. Sim, a
minha produção dos últimos 10 anos, ou
mais, parece ter uma temática em comum.
E, como é inevitável, a temática de quem se
aproxima da barreira dos 60 anos e depois a
ultrapassa, é cada vez mais a perda. Assim
como, no início da trajetória, os temas mais
comuns são as descobertas do amor,
da maturidade, do potencial da palavra.

A vida na sua literatura não se romantiza,


tampouco se mitifica. Ao contrário, por
vezes passa a sensação de resignação com
o que nos é dado neste mundo. Na sua
poesia, como diria Drummond, a vida é
uma ordem?
A meu ver, o acaso é o grande motor da
realidade. A vida, como parte da realidade,
é essencialmente caótica, sempre regida
pela entropia. Nós, seres humanos, é que
ficamos o tempo todo tentando impor
ordem, conectar eventos através de nexos
causais. Essas tentativas só podem obter
êxito em caráter parcial e provisório,
necessariamente, porque elas atuam no
sentido contrário à própria natureza do
próprio autor diz: Não tivesse eu visto o Sol/ Sofrível a real. A poesia é, entre outras coisas, uma
Entrevista a Ramon Ramos sombra seria/ Mas a Luz fez de meu Deserto/ Terra ainda tentativa de ordenar o caos das sensações e
mais baldia. Tais versos sugerem a discussão dos sentimentos, de criar uma ordem que
Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1952), sobre a iluminação interior, mas também sobre possa ser utilizada pela própria pessoa que
além de poeta, é contista, tradutor e professor a luminosidade do processo criativo do poeta escreve, e também — espera-se — pelas
da PUC-Rio. Sua obra poética, desde a estreia — temas que percorrem o livro. Outro tema que vierem a ler. Essas tentativas dão
em Liturgia da matéria (1982), apresenta interes- importante, a perda, aparece já nas primeiras prazer, ou ao menos atuam no sentido de
se pelas formas fixas, cujos limites instigam páginas — propondo diálogo com Elizabeth reduzir o pavor causado pela constatação
o autor também pelo desafio no instante da Bishop — e se mantém como questão norteadora de que tudo tende à desorganização, à
criação. Poeta que discute a contenção de atravessando a obra como um todo. morte. Mas é claro que, para a grande
versos e emoções, Paulo recebeu os prêmios A escrita como tentativa de domar o caos maioria da humanidade, a poesia, a arte
Alphonsus de Guimaraens, por seu Trovar claro é um dos pontos que vemos nesta entrevista em geral, é desnecessária. Para essas
(1997), e Portugal Telecom (atual Oceanos) para o Pernambuco, na qual Paulo também pessoas, existe um texto sagrado já pronto,
por Macau (2004). fala sobre os procedimentos de elaboração o qual prova que, na verdade, a realidade
A epígrafe de Emily Dickinson, que abre seu de Nenhum mistério, sobre sua poética e sobre é perfeitamente organizada e caminha
mais novo livro Nenhum mistério, em tradução do poesia em geral. para um final feliz; todas as evidências em
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

A minha produção O verso livre é uma


da última década forma traiçoeira.
parece ter um É a maneira mais
tema comum, de fácil de escrever
quem se aproxima poesia ruim, e uma
e passa dos 60 das mais difíceis de
anos: a perda escrever boa poesia
sentido contrário são tachadas pensa o uso do perder para palavras que eu nunca havia à qual me parece impossível de imposição de uma ordem.
de ilusões. Como, na verdade, a elaboração desses poemas? percebido que rimavam entre voltar atrás. É perfeitamente E é esta a grande vantagem da
esse texto sagrado não prova É o tema que se impõe, como si. Esse é o ponto de partida. possível escrever hoje em dia criação artística: ela pode ser,
nada, é uma ficção como já comentei, a uma altura O desafio é chegar ao fim, poemas bons e relevantes em boa parte (ainda que não de
outra qualquer, passa-se a da vida em que o que mais em primeiro lugar, conseguir usando o decassílabo, o soneto, todo), controlada, construída
criminalizar aquele que não acontece com a gente é sofrer chegar àquele ponto em que, a sextina, o diabo — mas não de modo calculado e racional,
acredita nele — o castigo é a perdas. E todo escritor — talvez como disse Cabral, faz clique; consigo imaginar um poema com princípio, meio e fim. As
perdição eterna, e em tempos principalmente o poeta lírico — mas é também chegar ao fim, escrito hoje em dia, utilizando o pessoas que têm fé identificam
passados no Ocidente podia trabalha basicamente com a sua a algum tipo de fim, e constatar vocabulário precioso, a dicção uma coisa com a outra, o vivido
ser a fogueira, como aliás vivência do momento em que que o poema não é inteiramente nobre e a sintaxe arrevesada com o lido (ou ouvido, ou
ainda é em alguns países do escreve, além do repertório da redundante, não funciona de dos parnasianos, que possa decorado), acreditam na ficção
Oriente Médio — e a condenar memória. Bishop foi uma poeta modo muito semelhante a outro me interessar. Essas coisas, tal que elas criam (ou compram
a inteligência e a vontade de que descobri relativamente ou outros que já li, ou mesmo como a epopeia, a máquina de pronta), a qual sempre prova por
saber. Não é à toa que o pecado tarde, quando eu já havia mais que já escrevi. escrever e o bonde puxado por a mais b que tudo que aconteceu
de Adão e Eva foi comer o ou menos decidido o quê e burro, pertencem a um passado tinha que acontecer. Creio que foi
fruto do conhecimento. Não é como eu queria escrever, e que Enquanto leitor e professor que não volta mais. David Hume que disse que todas
à toa que os líderes religiosos mesmo assim teve um certo da poesia que é feita hoje as superstições se resumem
e políticos, de modo geral e impacto sobre a minha escrita, no Brasil, como você vê a Em determinado poema, à crença na causalidade.
com raras exceções, odeiam a creio eu. Eu diria que a poesia opção majoritária pelo está dito que, se não é sempre Ele tem razão, mas além de
inteligência e o conhecimento, dela reforçou uma tendência verso livre também aliada possível amar a vida, temos causalidade há também a crença
e desprezam a arte. que já existia no meu trabalho, à coloquialidade? sempre o direito de editá-la. na teleologia — ficções como
e me apresentou algumas O verso livre é uma forma Escrever é se editar? destino e providência divina.
O novo livro se inicia com a sugestões novas. traiçoeira. Na verdade, não Sem dúvida. A escrita em geral,
palavra nenhum e termina com é uma forma, e, sim, uma e a poesia em particular, é mais Da série Caderno lemos:
nada. São quase 110 ocorrências Certa vez, em entrevista, pluralidade imensa de formas, uma oportunidade de se impor, o fracasso se tornou/ a própria
do vocábulo não ao longo você disse que “quando se que abre um leque infinito ou tentar impor, uma ordem textura da vida (...) Assistir
dos poemas — além de tantos pega uma forma, você nunca de possibilidades. Por isso causal ao caos aleatório da à própria queda/ agora é todo
outros do campo semântico das compra o pacote completo”. A mesmo, como costumo dizer, realidade. Editar a vida é tentar o espetáculo. Seus eus-líricos
negativas. O que tanto precisa sua poesia faz uso de formas usar verso livre é a maneira ver uma lógica nela, construir encarnam esse movimento de
ser negado, Paulo? presas (que poderia sugerir mais fácil de escrever poesia cadeias de causalidade, elaborar “menos-valia” ou da própria
As crenças irreais a que nos uma ideia de ordem) com ruim, e a mais difícil, ou uma explicações para as coisas que sensação de fracasso em relação
apegamos. A tentação de tomar uma linguagem próxima do das mais difíceis, de escrever aconteceram, justificativas para à escrita ou à vida. Esse é um
uma ficção como realidade coloquial. Quais desafios você poesia boa. Boa parte do verso as decisões que foram tomadas procedimento irônico diante
última é muito forte: afinal, se impõe na hora de escrever? livre publicado nos últimos (muitas vezes por motivos da sua grandeza de poeta
ela promete o fim de todos os A forma fixa, para mim, é cento e poucos anos só é poesia inteiramente aleatórios). reverenciado e premiado?
temores. As religiões, os sistemas uma espécie de disciplina, porque é dividida em versos; Não vejo ironia nenhuma nessa
ideológicos que explicam sem dúvida, mas é também, no mais, não há nenhum O que tem no Paulo-vivo afirmação. A experiência vivida
tudo, são formas de lobotomia e principalmente, uma fonte trabalho de linguagem que seja que se perde (ou se ganha) é sempre um fracasso, na
voluntária. A negação é uma de “inspiração”. Alguns dos remotamente poético. Mas nas no Paulo-livro? medida em que inevitavelmente
afirmação da natureza dura meus poemas partem de ideias mãos de um grande mestre — Você está me pedindo para se constitui em um acúmulo de
desse real, que se tenta disfarçar abstratas, mas são uma minoria; e, no nosso idioma, os maiores comparar a realidade vivida perdas, culminando na morte.
com ficções edulcoradas. no mais de vezes o ponto de mestres do verso livre são, a com a escrita? Bom, não dá
partida é uma palavra, ou um meu ver, Pessoa e Bandeira — para comparar. A experiência Que luz é essa que, ao nos
No livro, Nenhuma arte nomeia sintagma, ou simplesmente um o verso livre rende resultados viva é a base de tudo, e o que perpassar, amplifica a sensação
a série de poemas iniciais padrão formal, um esquema que não seriam possíveis em ela tem de mais maravilhoso é de perda e abandono?
que promovem diálogo com métrico ou estrófico. Há no meu nenhuma forma tradicional. também o que ela tem de mais A lucidez?
Elizabeth Bishop. A perda, que livro novo um poema que partiu Quanto à coloquialidade, eu terrível — o fato de ser regida
não está nos títulos, claramente de uma rima, uma rima que me diria que é a única conquista pelo acaso, de frustrar toda e E o mundo vale a nossa lucidez?
é o tema central. Como você pareceu interessante, entre duas do Modernismo em relação qualquer tentativa de controle, Boa pergunta.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

LILITH (1987/90), DE ANSELM KIEFER / REPRODUÇÃO

Everardo
NORÕES
esnoroes@uol.com.br

Uma diaba
No Jardim das Amoreiras, em Lisboa, há um lugar Bandeira, entre outros. Dessa época, a tela de
especial onde nossos pés pedem âncora. Uma casa Vieira da Silva História trágico marítima, uma das mais
reformada, moderna, mas com telhado de tesouras conhecidas. Inspirada no livro do século XVII, de
aparentes e escoras de madeira como nas casas título homônimo, descreve os tantos naufrágios de

voadora sobre
sertanejas do Brasil. navios portugueses. Mostra de cumplicidade entre
Uma aura qualquer se desprende dos quadros Vieira da Silva e Cecília Meireles, por exemplo, é a
presos às suas paredes brancas como a cal, fazendo publicação em tiragem limitada de Flores e canções,
pulsar nosso afeto. E, para completar o cenário, do da Confraria dos Amigos do Livro. Curiosamente,

o céu do Brasil
lado de fora, no jardim, lemos as duas estrofes de ela não se encontra no mostruário da Fundação
um soneto de Antero de Quental gravadas num onde estão expostos os trabalhos que ganharam
banco de pedra, a dizerem o quanto a poesia das colaboração da artista. Entre os poemas de Cecília
coisas se insinua dentro da gente. Meireles, ilustrados por Vieira da Silva, é tocante
No dizer de um amigo, há ali algo de um mosteiro o A morte da formiga, o bichinho menor que qualquer
Zen. Mas a casa nem é templo, nem santuário. É letra: / mais fina que qualquer fio. É quando a poeti-
sede da fundação que abriga obra e memória de sa se pergunta como seria o sofrimento naquele
É o presente que deixa dois artistas singulares: a portuguesa Maria Helena
Vieira da Silva (1908-1992) e seu marido, o húngaro
corpo mínimo, já que o sofrer sempre existe. E,
junto ao poema, os desenhos abstratos da artista

inquietantes as obras e nos Arpad Szenes (1897-1985).


De 1940 a 1947, eles moraram no Brasil, onde
levando-nos a meditar sobre o contorcer-se da
formiguinha, de repente ligada pela arte à nossa

marca como sinete de fogo


viveram exilados em tempo de um Portugal nublado condição humana.
demais, auge da ditadura salazarista. Logo fizeram O Brasil foi importante para motivar Vieira da
amigos entre escritores e artistas. Lista longa: Lúcio Silva a se voltar para um tema que seria um de seus
Cardoso, Murilo Mendes, Carlos Scliar, Manuel favoritos, a construção das grandes cidades. Linhas
JOÃO MIGUEL PINHEIRO / DIVULGAÇÃO

LANÇAMENTO
Wellington A estética da indiferença
de Melo
Enquanto livrarias seguem publica Sidney Rocha desde
fechando portas, editoras 2009 e parece apostar no autor
e autores vão abrindo ou em tempos de crise ou não.
pulando janelas novas Segundo o escritor Xico Sá,
e velhas para alcançar que acompanha a trajetória
leitores, melhor dizendo: de Rocha, e escreveu sobre o
consumidores. Neste mês, livro: “Fernanflor é phoda; mas
a Iluminuras lança A estética A estética... é de longe o melhor
da indiferença (romance, 248 livro do cara”. Também já se

MERCADO páginas) de Sidney Rocha


(foto). O livro é bastante
iniciaram as pré-vendas, com
novidades na antiga-nova

EDITORIAL esperado desde o seu


Fernanflor, parte da trilogia
ideia dos clubs de leitura,
e na associação de serviços
“Geronimo”. A Iluminuras a produtos.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
nasceu em 1945, quando seu país, a Alemanha,
acabava de ser devastado pela guerra. Nos seus anos I Os originais de livros submetidos à Companhia
de formação, foi induzido, como boa parte de seus Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
compatriotas, a "esquecer" o que havia ocorrido du- Diretoria considera projetos da própria Editora, são
rante o regime nazista. Para se livrar de um trauma é analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
sempre mais confortável fazer tabula rasa do passado. partir dos seguintes critérios:
Fingir que a História voltou à “hora zero”, como se
ela pudesse ter pedaços amputados ou momentos
vazios, intervalos de uma peça de teatro. Kiefer, 1. Contribuição relevante à cultura.
recusando-se a pensar assim, foi dos poucos artistas
que rompeu com as formas então vigentes nas artes 2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
plásticas de seu país. Na sua visão dialética, se nada que privilegia:
mais poderia ser como antes, esse antes em vez de
esquecido, deveria ser absorvido durante o processo
de criação. E incorporar como sua matéria-prima a) A edição de obras inéditas, escritas ou
não apenas a tradição que culminou na grandeza traduzidas em português, com relevância
do romantismo alemão, mas também as ruínas e cultural nos vários campos do
desgraças legadas pelas catástrofes. Ou seja, furar o conhecimento, suscetíveis de serem
orifício e atravessá-lo, camada por camada. apreciadas pelo leitor e que preencham os
Anselm Kiefer passou, então, a agregar às grandes
seguintes requisitos: originalidade,
superfícies de suas telas matérias como chumbo,
pregos, palha, fibras, cinzas, arames, cabelos. O adequação da linguagem, coerência
cabelo de ouro de Margarete e o cabelo de cinzas e criatividade;
de Sulamita, como no poema Fuga da morte, de Paul
Celan, o poeta judeu que escrevia em alemão. Mar- b) A reedição de obras de qualquer gênero da
cado pela tragédia de seu povo, Celan terminaria
criação artística ou área do conhecimento
por se jogar no Rio Sena, em Paris. Mas sua poesia
marcou com sinete de fogo a pintura de Kiefer, a científico, consideradas fundamentais para o
tal ponto, que alguns pedaços de seus versos foram patrimônio cultural;
transpostos para as telas do artista.
Kiefer rompeu com os cânones da época, nadan- 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
do contra a maré da arte importada, sobretudo a dos sem as modificações necessárias à edição e que
Estados Unidos, assumida como paradigma por boa
contemplem a ampliação do universo de leitores,
parte dos artistas da Alemanha do pós-guerra. As
janelas que abriu à sua pintura permitiu-lhe revisar visando à democratização do conhecimento.
temas, formatos, materiais. E dela brotou uma arte,
entrecruzadas e diferentes coloridos de alguns de embora formalmente diferente, próxima enquanto II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
seus quadros traduzem os enredos arquitetônicos destino das obras de Vieira da Silva. Não por acaso, sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
que aprisionam nosso cotidiano e desembocam na os dois foram dos raros artistas a observar de forma
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
violência de nossas metrópoles tentaculares. Sete inusitada a paisagem urbana brasileira.
décadas após a passagem da artista pelo Rio e por Em 1990, Anselm Kiefer vislumbrou do alto do sobre a publicação.
São Paulo, a antevisão contida nas telas da artista Edifício Copan a floresta de edifícios da cidade de
portuguesa é provada profecia. São Paulo. Fotografou, analisou, meditou. E fixou III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
Contudo, suas premonições não se limitaram numa estranha tela, intitulada Lilith, um panorama papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
apenas à paisagem brasileira. Em A biblioteca em urbano devastado, coberto por uma chuva de par- Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
fogo, uma de suas pinturas mais conhecidas, há tículas cinza, chumbo, cobre. No meio, na parte
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
até quem a julgue alusão ao incêndio da Biblioteca de cima do quadro, caligrafou o nome “Lilith”. E
de Alexandria. Imagino que ela também configura ,abaixo, pintou uma figura indefinida, formada por for o caso, índices e bibliografias apresentados
o próprio destino do livro consumindo-se no fogo uma espécie de fumaça negra, esvoaçante. Algo com conforme as normas técnicas em vigor.
do capital. Queima de um saber arrumado durante a imagem do gênio ao sair da garrafa, nas histórias
séculos nas prateleiras de uma livraria mítica que, para crianças das Mil e uma noites. IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
de repente, arde em chamas. A exemplo das que Lilith, primeira mulher de Adão ou deusa das
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
hoje vão fechando suas portas, numa espécie de tempestades e da morte.
auto de fé metafórico. Ou uma diaba avistada com 30 anos de antece- violência e as diversas formas de preconceito.
Como na arte tudo é e não é coincidência, descu- dência pelo pintor alemão Anselm Kiefer, pairando
bro na casa de um artista plástico, nosso conhecido, sobre São Paulo, sobre o Brasil. V Os originais devem ser encaminhados à
livros sobre outro pintor contemporâneo tomado Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
pela mesma inquietação que suscitou os quadros Cavando nosso túmulo nas nuvens. seguir, sob registro de correio ou protocolo,
de Vieira da Silva. Ele se chama Anselm Kiefer e Como no poema de Paul Celan.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

PARADIGMAS SOBREVIVÊNCIA
Companhia Editora de Pernambuco
Modelo caduco Acerca de livrarias e animais acuados Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
A Chiado Editora anunciou pelo Um animal acuado é mais as — agora também acuadas — CEP 50100-140
Facebook que destinará a seus perigoso, mas pode se complicar médias e pequenas editoras? A Recife - Pernambuco
autores 50% do preço de capa quando desconhece as defesas jogada da Chiado é interessante,
(o que é pago pelo consumidor da presa. O modelo de formação pois vai no caminho oposto à
no ato de compra) das vendas de preço do livro no Brasil agressão, ao trazer os autores
pelos seus sites. A hashtag privilegia as livrarias, assim para seu lado. Basta saber se o
#10%daysareover na postagem como o ambiente favorece #10%daysareover será seguido por
do editor Gonçalo Martins é o predador. Ainda assim, o outras editoras. Em tempo: a
paradigmática e expõe um setor parece num beco sem Chiado anunciou, logo depois,
modelo de formação caduco. saída e está acuado. Será que que implantará mostruários de
Nele, livrarias submetem os executivos da Cultura se suas obras nas lojas da Cultura SECRETARIA
DA CASA CIVIL
editoras, que submetem autores acharam geniais ao propor do Conjunto Nacional (SP) e no
– esses escravos contemporâneos apertar as condições da Rio de Janeiro. Nada de jogar a
do mercado. consignação, pressionando colmeia no urso. Espertinhos.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

CAPA

Vidas secas e alguns


dos seus assombros
No romance, o mínimo Pode parecer paradoxal, mas de minhas leituras
mais marcantes costuma restar, em quantidade ou
perfeita”, como apontou Otto Maria Carpeaux em seu
ensaio Visões de Graciliano Ramos. É como se a um artista,

é descrito como mínimo diversidade de material, pouco. É como se o impacto


do que esses livros contêm se condensasse numa
por mais versátil que fosse, coubesse no inesgotável
repositório dos assuntos algum que lhe assentasse

para atingir o máximo


única imagem tão significativa e densa, que tudo o melhor do que tudo o mais, como um belíssimo
mais fosse tragado por esse buraco negro. Para tentar terno de alfaiataria. Sobre o estilo do autor alago-
dar contornos mais precisos a esse resíduo que segue ano, afirma Carpeaux: “É muito meticuloso. Quer
causando alguma espécie de assombro terminada a eliminar tudo o que não é essencial: as descrições
Estevão Azevedo leitura, é preciso voltar ao texto. Às vezes, esse re- pitorescas, o lugar-comum das frases feitas, a elo-
torno desmente o impacto e o equívoco da primeira quência tendenciosa. Seria capaz de eliminar ainda
impressão se desfaz. Quando calha de não acontecer, páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros,
isto é, quando o texto reafirma sua potência, esse re- eliminar o próprio mundo”. Esse mínimo exato de
síduo pode ser mais bem-compreendido, sua gênese palavras que permanece após tantas eliminações é
pode ser mapeada, seu modus operandi, descrito. Se a o correspondente do que resta de possibilidade de
obra for daquelas realmente votadas a durar no meu vida aos sertanejos, pois a matéria de Vidas secas é a
espírito, novos assombros devem ocorrer durante a escassez brutal e absoluta, inclusive de linguagem.
releitura e, por conseguinte, a necessidade de mais A comunhão entre o homem e a natureza se dá
retornos. Minha ideia, aqui, é a de tentar esboçar um em plenitude, mas nunca no que a natureza tem de
inventário pessoal e fragmentado dos assombros des- fértil, de farta. É como se aos homens e à natureza só
se tipo causados em mim pelas leituras de Vidas secas. restasse comungar no sofrimento e essa aproximação
pessimista acabasse por animalizar os homens e
*** humanizar os animais. Na terra, nos animais, nos
Quando saí do romance pela primeira vez, o que homens, só é forte, no sentido daquilo que perdura,
continuou ecoando foram os sons guturais emitidos a fraqueza: seca, fome, doença. O mínimo é descrito
por Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos. A crítica com o mínimo para atingir o máximo de força, pois
muitas vezes destacou a proeza técnica que é conjugar a natureza não admite o desperdício, o urubu come
a quase mudez derivada da miséria com uma verossí- a carniça, o homem come o que houver para não
mil vida interior, ainda que paupérrima. Sinhá Vitória morrer de fome, inclusive o papagaio, mudo e inútil
conversa com o marido por monossílabos. Fabiano como eles próprios, na visão de Sinhá Vitória.
“falava uma linguagem cantada, monossilábica e Num detalhe aparentemente banal de uma cena
gutural”, que os animais compreendiam. O menino do primeiro capítulo, Mudança, esse casamento feliz
mais velho “balbuciava expressões complicadas, de estilo e matéria se dá a ver, para mim, em toda a
repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o sua potência. A família chega à fazenda abandonada
barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na e Fabiano vai buscar a água barrenta e salobra para
catinga, roçando-se”. O mais novo põe-se “a berrar, matar a sede de todos. “Saciado, caiu de papo para
imitando as cabras, chamando o irmão e a cachorra”. cima, olhando as estrelas que vinham nascendo.
Nessa linguagem talhada pela lâmina da brutalidade, Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia
as palavras e a reflexão soam como excessos. Fabiano, mais de cinco estrelas no céu.” Causa impressão, logo
por exemplo, considera extravagante um raciocínio após a afirmação da grande quantidade de estrelas,
bastante simples de Sinhá Vitória (as aves matam os aquilo que soa quase como um desmentido: haver
bois e as cabras), pois não logra alcançar a relação mais de cinco estrelas no céu dificilmente caracte-
de causa e efeito entre a água consumida pelas aves rizaria haver muitas estrelas.
e a sede dos bichos maiores. Nesse trecho, porém, é Fabiano quem as conta, uma
Talvez Vidas secas seja a obra magistral que é por- a uma, não o narrador. Em sua rusticidade (o capítulo
que nele concordem à perfeição o estilo do autor e Contas é todo ele sobre a dificuldade com os cálculos que
a matéria com que ele decide trabalhar, a “escolha prejudicam o sertanejo na negociação do valor de seu
dos próprios fatos para conseguir uma composição trabalho), “mais de cinco” talvez já seja uma fronteira a
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

HANA LUZIA E MARIA JÚLIA MOREIRA

ser comemorada. Por isso, e pelo prenúncio de chuva,


o coração de Fabiano se enche de alegria. A mesma
frase ressurge outras duas vezes, como um refrão, antes
Sinhá Vitória palavras do romance: “Na planície avermelhada os
juazeiros alargavam duas manchas verdes”. Num
romance realista, de vocabulário rico, repleto de
do fim do capítulo (“Uma, duas, três, havia mais de
cinco estrelas no céu” e “Uma, duas, três, agora havia
poucas estrelas no céu”), com sutis modificações. A
conversa com descrições precisas do ambiente, da rotina e do falar
sertanejos, por que tão poucas cores e — o que era
ainda mais intrigante — por que sempre sólidas,
diminuição das estrelas na contagem ajuda a indicar a
passagem do tempo e a chegada da chuva com a qual, o marido em sem matizes, gradações ou misturas, e algumas tão
inverossímeis? O soldado amarelo, a vaca laranja, o

monossílabos.
naquele instante, Fabiano apenas sonha. Uma frase voo negro dos urubus, o céu de azul terrível, a catinga
como essa, aparentemente banal, mas tão precisa, tão de vermelho indeciso, os olhos azuis e a barba e os
exata, tão rica de significados, apesar de curta, é o que cabelos ruivos de Fabiano, a planta verde, os meninos

Fabiano fala uma


me encanta encontrar num texto. vermelhos, as ossadas brancas. Fez pensar numa
pintura fauvista ou expressionista (caso apliquemos
*** essas cores aos corpos deformados, retorcidos, de
Foi o espanto com o tartamudear causado pela
miséria física e psíquica que me levou à Vidas secas
pela segunda vez. Eu estava gestando o romance
linguagem Fabiano e família). Imagino que algum crítico já deva
ter se debruçado sobre essa questão.
O que me arrisquei a elucubrar é o quanto a vida
que viria a se chamar Tempo de espalhar pedras. Nele, a
miséria seria diretamente causada pela escassez de
diamantes, não de água, mas a contrapartida dessa
cantada e gutural em um cenário como o do livro deveria mesmo
ser determinada pelos rigores de um sol que raras
vezes encontra obstáculos como nuvens e produz
miséria que eu desejava colocar em ação nas perso- tando as pedras, os tocos, os buracos e as cobras”. Os sombras, zonas de indeterminação. A luz que, pra-
nagens seria similar à do romance que eu admirava: meninos costumavam usar apenas camisas ou andar ticamente sem cessar, queima as plantações e faz
uma que molda o corpo até o limite da desfiguração, nus. Sinhá Vitória equilibra-se mal nos sapatos de secar os rios confere às coisas e às pessoas cores
que determina o gesto e a fala. Como homenagem, salto. Não tarda e arrancam sapatos, meias, paletó, fixas, imutáveis, pois o destino imposto aos serta-
surrupiei de imediato do nome de Sinhá Vitória, com chinelinhas, tudo o que represente a prosperidade nejos pelo sol é inexorável. Talvez Vidas secas seja o
o qual batizei uma personagem importante. que não podem ter. Não à toa, é nesse exato momento “romance desmontável” de que falou Rubem Braga
O assombro nessa segunda leitura deslocou-se. em que voltaram a mirar o chão, como bichos, que não apenas porque os capítulos possam ser lidos de
Apareceu no capítulo Festa, que relata a incursão da o escritor faz chegar à cena, de surpresa, a cachorra maneira autônoma, mas também porque possam
família na cidade tomada pelas comemorações do Baleia. Agora, Fabiano passa a andar “cambaio, a ser remontados em qualquer sequência, de modo
Natal. A festa poderia ser um hiato na dura lida diária cabeça inclinada”, no que é seguido por todos. que à frágil esperança, seja a trazida pela chuva ou
para aquela família. Era tempo de bonança, e Fa- Graciliano dedica muitas linhas ao momento em a trazida pela cidade grande, sucedam sempre seca
biano, Sinhá Vitória e os meninos estavam vestidos que Fabiano, na entrada da cidade, tenta calçar-se. É e sede e fome e morte. De alguma maneira, também
com boas roupas, feitas sob encomenda. No romance, comovente e patético vê-lo fracassar: a meia embola, a pobreza cromática pode ser reflexo da escassez de
porém, as personagens são vítimas de uma inabalável a botina resiste, a mulher orienta, até que ele desiste, recursos para interpretação do mundo que assola as
inadequação à fartura, ao conforto. Qualquer fruição decidido a entrar na rua assim mesmo, malcalçado, personagens, escassez que é incorporada por esse
ou justiça (a cama de couro, os meninos na escola, o uma perna mais comprida que a outra, coxeando ainda narrador ao mesmo tempo tão distante e tão solidário.
vestido vermelho de ramagens, a punição do soldado mais, ainda mais cambaio, a ponto de se machucar. O É com essas poucas cores sólidas que Graciliano
amarelo etc.) só pode existir em sonho, em devaneio. assombro das crianças, até então acostumadas apenas pinta as esculturas sem adornos ou adereços que
Quando as condições estão dadas, como no dia da à família e aos animais, com a cidade e a quantidade Carpeaux chamou de “monumentos de baixeza”.
festa, escancara-se a falta de vocação para a felicidade, de gente e de luzes, e a inadequação insuportável dos Concluo meu inventário de assombros com um
vocação que seria mesmo inverossímil numa realidade sertanejos a qualquer bem-estar não saíram da minha desses monumentos, extraído da cena em que
brutal como a descrita — num romance como esse, até cabeça, e por isso decidi dedicar um capítulo de Tempo Baleia captura o preá que vai salvar o grupo de
mesmo a tão ansiada chuva se converte em ameaça de espalhar pedras a uma cena claramente inspirada nessa. morrer de fome: “Levantaram-se todos gritando.
sob a forma de frio ou de enchente, no capítulo Inverno. O menino mais velho esfregou as pálpebras. Si-
No dia da festa, bem-vestidos, os pobres tentam *** nhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o
“erguer o espinhaço”, andar eretos, mas a posição Na leitura para a elaboração desse texto, encontrei focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e
é forçada, o corpo de “ordinário olhava o chão, evi- o novo elemento que me intrigaria logo nas primeiras tirava proveito do beijo”.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

CAPA

Por onde se Quando Vidas secas foi publicado, na primeira


metade do século XX, os artistas procuravam en-
contrar seu lugar depois que os portões da criação
“Vidas secas
é também poesia
esconde um
tinham sido escancarados pelas vanguardas. A
partir de então, era não só possível, mas necessário
ousar em qualquer direção: nos temas, na forma e
na linguagem. No Brasil, o Modernismo já fincara
suas bases e, quase nos anos 1940, contava com e música, um
grande poema bloco de camadas
um time de autores que a historiografia literária
considerou pertencente ao que chamou de segunda
fase do modernismo.

sobrepostas de
Quase todos eram regionalistas, essa alcunha tão
malcompreendida e que, muitas vezes, desperta a
Em sua releitura do clássico, reação equivocada de um rótulo que diminui, mas

autora encontra música no


que fortalece e amplia. Um dos pulsos de qualquer
literatura nacional está fundamentado justamente
na capacidade de falar do próprio chão e de como
sentido que o tempo
chocalho das palavras
homens e mulheres andaram, marcharam e ca-
íram sobre ele.
No ano de 1938, foram publicados, entre outros:
tem realçado”
Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo; Pedra Bonita, que a leitura de O quinze provocou nele. “Depois
Socorro Acioli de José Lins do Rego; A estrada do mar, de Jorge Ama- conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz,
do; Cazuza de Viriato Correia; Porão e sobrado, de Lygia mas ficou-me durante muito tempo a ideia idiota
Fagundes Telles e Vidas secas, de Graciliano Ramos; de que ela era homem, tão forte estava em mim o
talvez o aniversariante mais lembrado do grupo e preconceito que excluía as mulheres da literatu-
que merece um olhar cuidadoso e atento para os ra. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito
motivos de sua permanência no cânone nacional. bem. Mas escrever João Miguel e O quinze não me
Para simular a experiência de um primeiro parecia natural”. Esse assunto, o lugar da mulher
encontro com Vidas secas, decidi comprar um nos espaços que os homens ocupam de forma
exemplar novo, de produção recente. Foi fácil de predominante, está cada vez mais atual. Feliz-
encontrar. Estava disposto em uma pilha em local mente, as coisas mudaram nesses quase 90 anos,
de destaque na loja. Bom sinal, a pilha e a posição. mas Rachel de Queiroz talvez tivesse de manter
Os exemplares mais visíveis de uma livraria não a sua altivez peculiar se fosse começar a carreira
estão lá por acaso. Adquiri uma tiragem de 2017 nos dias de hoje.
da editora Record, de número 135, cujo texto tem Os homens e mulheres do Nordeste foram pro-
como base a segunda edição, revista pelo próprio tagonistas de mais outras tantas obras dos con-
Graciliano Ramos. temporâneos de Graciliano Ramos. Considero
Isso é algo importante de perceber nesse mo- que o maior mérito de Vidas secas, justamente por
mento em que o mercado do livro no Brasil atra- ser o mais difícil de alcançar, é o trabalho com a
vessa uma grave crise, com dificuldades muito linguagem e a narração. Apesar de ser contado
específicas do ramo: problemas de distribuição, por um narrador onisciente, o uso impecável e
atraso de pagamentos, dívidas, falências. Enquan- invisível do discurso indireto livre provoca o efeito
to editoras e livrarias fecham as portas, autores de uma polifonia sofisticada.
buscam alternativas, editores, críticos, livreiros O efeito deve-se, em certa medida, ao fato de
e distribuidores procuram rotas de reinvenção e o livro ter sido construído em partes avulsas, em
sobrevivência, Vidas Secas segue inabalável na con- um primeiro movimento. Mesmo assim, não há
dição de clássico brasileiro, presente nas pratelei- emendas. O avesso do bordado é perfeito.
ras, sendo lembrado como aniversariante do ano. No capítulo dedicado a ele, o Menino mais velho,
O volume que comprei conta ainda com um sem nome, preocupa-se com a acepção da palavra
ensaio crítico de Hermenegildo Bastos, uma cro- inferno. Graças ao engenho do narrador, é possível
nologia da vida e obra de Graciliano, uma relação saber que ele não acredita que um nome bonito
de seus livros publicados no Brasil e no exterior, assim possa designar um lugar feio. Preocupava-se
além de um apanhado da sua fortuna crítica, com com as palavras, com os mistérios da vida. Como
uma lista imensa de pesquisadores que dedicaram era possível haver estrelas na Terra?
dissertações, teses e ensaios aos seus trabalhos nas Sinhá Vitória pensava muito na sua cama de
universidades brasileiras e estrangeiras. tira de couro, na injustiça de não ter o direito de
A presença dessas unidades paratextuais espe- dormir uma noite de sono como dormia seu To-
cíficas complementa a biografia desse livro, um más da bolandeira. De Fabiano, o leitor consegue
objeto-universo que resiste caminhando com suas saber tanto, que quase sente a tontura da cachaça
próprias letras. Os textos sobre o aniversário de 80 na sua cabeça, a zoada da noite de festa, as horas
anos têm justificado a atualidade de Vidas secas na amargas que viveu na prisão, o medo e a raiva do
semelhança com as crises migratórias de nosso soldado amarelo.
século e com a repetição da seca no Nordeste, O Menino mais novo queria brincar e ser meni-
que voltou a forçar as famílias a mudar de lugar. no, junto com sua amiga Baleia, a cadela. Mesmo
O tema e o mote central do livro – retirantes em quem não leu o livro a conhece, ouviu falar algum
busca de sobrevivência – não são exatamente uma dia nos bancos de escola do Brasil afora. Baleia,
novidade. Graciliano passa pela porta anteriormente a cadela que não conseguimos esquecer depois
aberta por alguns autores, com destaque para Ra- de compreender suas preocupações, de saber o
chel de Queiroz em O quinze, publicado em 1930, de que se passou na sua cabeça perto da morte, nos
quem o autor comentou em entrevistas o impacto minutos finais.
causado. O romance da escritora cearense foi cons- A economia de personagens de Vidas secas obriga
truído a partir de uma base de pesquisas nos campos o autor a cuidar muito bem de cada um deles. São
de concentração de refugiados no Ceará e em sua poucas pessoas em pouco espaço de texto – um livro
experiência com homens e mulheres do sertão de de 13 capítulos curtos. A possibilidade de deixar o
Quixadá, onde viveu boa parte de sua infância. texto raso como açude seco seria imensa, não fosse
Na hora de transformar matéria-prima em li- Graciliano Ramos um autor tão habilidoso.
teratura, outras questões foram usadas como ele- O que encontramos de habilidade nessa ar-
mentos do enredo. Conceição, a protagonista, está quitetura cuidadosa de narração salva o texto da
em busca de respostas para suas perguntas sobre possível poeira que o tempo poderia depositar
a condição da mulher, a justiça social e o que se sobre essa obra, levando-a ao esquecimento. Vidas
faz com o amor quando ele não se encaixa com o secas continua sendo uma aula de escrita literária,
resto da vida que se pretende levar. muito útil nos tempos de hoje, em que todos os dias
É curioso lembrar que a fortuna crítica de O surgem novos autores, novos livros, todos sempre
quinze, nos seus 88 anos de vida, perpassa inúme- muito apressados em busca da fama.
ras questões diferentes das abordadas ao falar de Na contracapa da edição que adquiri, há uma
Vidas secas. A primeira questão é a autoria feminina lição de Graciliano Ramos sobre escrita: “Deve-se
e, nesse ponto, a voz de Rachel e a de Graciliano escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá
se cruzam. Em entrevista concedida em 1937, o de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com
próprio Graciliano relembraria o estranhamento uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira
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MARIA JÚLIA MOREIRA

da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no Por onde andaram e o que fizeram os autores que para dizer por que fechei o livro com a certeza de
novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensa- abraçam até aqui o Nordeste como tema? O que que essa obra continua forte: há um grande poema
boam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, é a seca em 2018? Como a literatura lida com ela? escondido em Vidas secas, adormecido. Há música
dão mais uma molhada, agora jogando a água com O pensamento de Graciliano sobre a escrita no chocalho das palavras. Barbicacho, trempe,
a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, como um ofício que exige trabalho faz ecoar as macambira, suçuarana, baraúna, taramela, aió, pe-
e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até falas de João Cabral de Melo Neto sobre a lida lame, enxó, marrã, mundéu, pucumã, jirau, losna,
não pingar do pano uma só gota. Somente depois com as palavras, com o texto como organismo, craveiro, arribação – as aves que cobrem o mundo
de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa a necessidade de limpar, polir, cortar, quebrar de penas, expressão que quase batizou o livro.
lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem sempre que possível, deixar enxuto, reduzir ao Para além de um grande romance, Vidas secas é
se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A mínimo necessário até que faça sentido. também poesia e música, um bloco de camadas
palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como Ao encerrar a releitura do meu novo exemplar sobrepostas de sentidos que o tempo tem tratado
ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. desse livro de 80 anos, não constato sinais de ve- de realçar. Poucos octogenários chegam tão vivos
Esse trecho de Graciliano nos leva a pensar no lhice. Ainda há muita vida aqui. É possível falar de ao seu aniversário. Os passos desse livro ainda
que mudou no ofício de escrever de seus dias para Vidas secas pelos olhos da história, da sociologia da estão vindo pela estrada nos pés de Fabiano, Sinhá
os tempos de hoje. Até onde a literatura brasileira literatura, do seu lugar na trajetória do autor, na Vitória, os meninos sem nome e os olhos vivos da
avançou desde a segunda fase do modernismo? linha do tempo do Brasil, mas escolho outra via cadela chamada Baleia, que também é Palavra.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

CAPA

Parcimônia do Comecemos por algumas linhas de Memórias do cár-


cere. Elas traduzem o estoicismo filosófico – ético,
estético e político – de Graciliano Ramos: “Queria

seco, fascínio
endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com
ele o que faço quando emendo um período – riscar,
engrossar os riscos e transformá-los em borrões,
suprimir todas as letras, não deixar vestígio de ideias
obliteradas”. Em Graciliano, emoção e escrita lite-

do sólido
rária se interpenetram. Interpenetram-se também a
reflexão sobre a dita espontaneidade dos sentimentos
cotidianos e o trabalho duradouro que a arte requer
e deve ser exercido, a posteriori, sobre os borrões.
Borrar a espontaneidade dos sentimentos cotidia-
De como o velho Graça nos significa questionar preconceitos dissimulados,
impostos pela formação pequeno-burguesa, que nos

criou uma língua “cética” a enriqueceu sem dúvida, mas de que padecemos, se
pensarmos nas injustiças de que é vítima a maioria

partir de Eça de Queirós


da população brasileira.
Ao acertar o passo dos propósitos contraditórios de
uma escrita literária capaz de abrir espaço para uma
sociedade futura, Graciliano encontra uma forma
Silviano Santiago trabalhosa: ao borrar os desacertos sentimentais do
passado, melhor se enxergam os caminhos ilumi-
nados do futuro. Ao borrar a palavra apressada que
lança na folha de papel, o artista sai em busca da
palavra certa para o lugar certo. Tanto a depuração
da experiência que fundamenta a memória, quanto
a depuração do estilo que alicerça a narrativa têm o
fim de não deixar o cidadão e o artista caírem nas
ciladas armadas pelos poderosos do momento e pelos
pares pequenos burgueses, ávidos que sempre estão
a oferecer ao primeiro – o cidadão – o salvo-conduto
da má fé, de que fala Jean-Paul Sartre, e ao segundo
– o artista – os grossos dividendos do mercado e os
louros espúrios da Academia.
A partir da depuração da experiência e da de-
puração do estilo pode surgir no campo estreito e
esplendoroso da arte literária de Graciliano Ramos
a ideia duma utopia socialista. A atitude radical do
escritor alagoano não é decorrência do temperamen-
to. Como ele próprio nos alerta, o borrão na folha
de papel, que recobre e elimina a escrita apressada,
equivocada e preguiçosa, é virtude literária que serve
para guiar a vontade de endurecer o coração com a
finalidade de eliminar o peso do passado. Por detrás
da atitude radical está a força absoluta da indecisão,
ou melhor, a prática diuturna dos borrões. Feito o
borrão, brota, alicerça e se afirma na folha de papel
em branco a certeza e a coragem da decisão, fruto Tormes, das práticas devotas de uma velha casa cheia
que é do império da razão. de padres à Jerusalém do tempo de Jesus”.
Os escritores que nos legam livros que são apenas Dele tomou de empréstimo não só a qualida-
produto do “talento individual” – por mais extraor- de castiça do idioma português, como também
dinário que seja este – saltam, dão cambalhotas no o espírito político revolucionário, sempre crítico
ar, recebem aplausos e desaparecem com o correr das injustiças que as formas despudoradas do co-
dos anos. Já os que nos deixam escritos amadure- lonialismo e do pós-colonialismo continuavam a
cidos lentamente, ao compasso da vida que brilha e operar pelas margens do mundo europeu, quando
da história humana que se esvai, produzem efeitos tudo indicava que os tempos democráticos eram
inesperados e definitivos no leitor. Ao lê-los e ao chegados. Sem tempo hábil para desenvolver a ideia,
refletirem sobre seus escritos, o leitor atento, o gostaria, no entanto, de lançá-la como hipótese
crítico e o historiador da literatura percebem con- nesta ocasião. Eis a ideia.
comitantemente o “atraso” no sistema literário O nordeste de Graciliano Ramos tem muito a ver
vigente e são levados a repensá-lo, induzidos que com a Irlanda que Eça de Queirós descreve e ana-
estarão pela força histórico-social que esses poucos lisa nas extraordinárias Cartas de Inglaterra (escritas
e definitivos livros carreiam. São eles que nos levam entre 1874 e 1878) que ele devorou com entusiasmo
a revalorizar e a reorganizar, a partir de insuspeita- juvenil depois de reunidas em livro. De maneira
dos parâmetros originais, o acervo artístico de uma simples, eis a hipótese: o efeito Irlanda, via leitura
nação ou da humanidade. de Eça de Queirós, está para Graciliano, assim como
Nascido em 1892, o velho Graça não chega tarde o efeito Espanha, via atividade diplomática, está
ao cultivo das letras, como se depreende dos textos para João Cabral.
publicados em jornal entre os anos de 1915 e 1921, que Começarei a elaborar a hipótese de trabalho com
estão hoje reunidos no volume Linhas tortas; chega, no algumas palavras de Antônio José Saraiva, tomadas
entanto, tarde ao livro publicado e distribuído pelas do seu livro As ideias de Eça de Queirós, e continuarei
livrarias do país. Seu primeiro romance, Caetés, foi por outras poucas palavras tomadas de emprésti-
editado no ano em que cumpriu 41 anos. Talvez por mo a uma das cartas da Inglaterra do próprio Eça.
ter chegado tarde ao leitor de livros, chega enrique- Leiamos Saraiva e, ao mesmo tempo, substitua-
cido por uma reflexão pessoal e intransferível sobre a mos mentalmente algumas referências à Irlanda
arte de narrar. Muito dessa arte, sabemos, foi tomada do século XIX por referências à situação social e
da leitura dos realistas-naturalistas portugueses, econômica do nordeste do Brasil no século XX, que
em particular de Eça de Queirós, o mais vigoroso conhecemos tão bem. Por exemplo, onde se lê land-
e iconoclasta romancista do século XIX português. -lord inglês, leia-se latifundiário nordestino. Comecemos
Em longa frase entrecortada por pontos e vírgu- por Antônio José Saraiva:
las, escreve Graciliano: “Eça é grande em tudo – na
forma própria, única, estupendamente original, de Só nos fins (do século XIX) a exploração (da Irlanda)
dizer as coisas; na maneira de descrever a sociedade, pela Inglaterra deixou de ter caráter colonial. Com efeito, a
estudando de preferência os seus lados grotescos, terra irlandesa estava dividida em enormes latifúndios por
ridicularizando-a, caricaturando-a; na arte com alguns grandes proprietários ingleses, e o alento dos naturais
que nos sabe transportar do burlesco ao dramático, da ilha era consumido até ao último sopro para manter o
da amenidade de uma palestra entre íntimos às fausto e o esplendor dos referidos proprietários estrangeiros.
paisagens de Sintra, dos salões de Paris às serras de (...) Esta questão da Irlanda é talvez a que deixa um sulco
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HANA LUZIA

mais fundo e mais comovidamente humano nas Cartas de


Inglaterra. E aqui, como no caso do Egito, Eça sabe ver para
além do pitoresco romântico as leis rígidas que presidem
Abandonando o de Morais ou o de Cândido Figueiredo, Graciliano,
tal um etnógrafo em viagem pela própria terra natal,
busca o dicionário vivo que sai da boca dos amigos e
aos fenômenos sociais: a fome da Irlanda é o resultado do
regime da propriedade e das relações dos land-lords com
os trabalhadores da terra.
léxico e a sintaxe companheiros. Graciliano acrescenta na citada carta:

O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me servem de

Teríamos de ler em seguida, e por extenso, a carta lusos, Graciliano dicionários. O resultado é que a coisa (refere-se ao ro-
mance) tem períodos absolutamente incompreensíveis para

buscou o dicionário
da Inglaterra que leva por título A Irlanda e a Lei Agrária, a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada, servirá
publicada na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em muito para a formação, ou antes, para a fixação da língua.
20 de fevereiro de 1881. Contentemo-nos hoje com Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico?

vivo que sai da


algumas frases soltas:
Pode-se concluir, em apenas aparente contras-
Há também outra coisa que se percebe bem: é que a popu- senso, que o estilo clássico de Graciliano deve muito
lação trabalhadora da Irlanda morre de fome, e que a classe
proprietária, os land-lords indignam-se e reclamam o
auxílio da polícia inglesa quando os trabalhadores mani-
boca de amigos e à fala de Sebastião Ramos, dos irmãos Cavalcanti,
Otávio e Chico, e do padre José Leite, primo-irmão
de Heloísa.
festam esta pretensão absurda e revolucionária – comer.
(...) Como proprietário do solo, pois, o Lord arrenda-o às
famílias que de geração em geração vivem nas suas terras:
companheiros Agindo como etnógrafo em viagem pela terra natal,
Graciliano Ramos foi pouco a pouco transpondo os
cerceamentos impostos pela única atenção à forma
o irlandês prende-se ao solo como uma árvore pelas raízes, Escreve-lhe Graciliano no dia 1º de novembro castiça do português escrito em Portugal. Conse-
e muitas vezes prefere morrer a abandonar um torrão árido de 1932:. gue proeza quase impossível – a de criar em cima da
que o não nutre. (...) A natureza quando não se apresenta língua rebuscada e vigorosa de Eça de Queirós uma
ao trabalhador irlandês sob o aspecto de solo pedregoso, O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em língua brasileira parcimoniosa e acre-doce, cética
mostra-se sob o aspecto de pântano. Oferece-lhe de um português, como você viu. Agora está sendo traduzido e classicizante, semelhante à do nosso Machado de
lado um penedo, do outro um charco. // E diz-lhe com a (negrito meu) para brasileiro, um brasileiro encrencado, Assis. Ressalte-se esta frase de Mário de Andrade,
sua ternura de mãe: // – Escolhe. De qual preferes tirar tu os muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, leitor de Machado:
meios de subsistência. um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de
expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava Machado de Assis (...) era o homem que compunha com
Se as ideias socialistas de Eça de Queirós, em que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar setenta palavras. Era aquele instrumento mesmo de setenta
particular as que atacavam de maneira corajosa os muitas locuções que vou passando para o papel. palavras, manejado pelos velhos clássicos, que ele adotava
dramas do colonialismo e do pós-colonialismo eu- e erguia ao máximo da sua possibilidade acadêmica de ex-
ropeu, tiveram enorme impacto na formação inte- Portanto, existem duas versões do romance S. Ber- pressão culta da ideia.
lectual de Graciliano Ramos, sabemos que o estilo nardo. A primeira, escrita originariamente em língua
do autor de Os Maias, presente e forte em Caetés, como portuguesa, devedora por certo dos ensinamentos dos A que acrescentamos, para finalizar, quatro versos
Antonio Candido demonstrou em Ficção e confissão, clássicos lusitanos, é transcrita (Graciliano vai além, célebres de João Cabral de Melo Neto:
será pouco a pouco abandonado em favor de uma escreve: traduzida), ganhando novo léxico e nova sinta-
escrita brasileira. Documento dos mais extraordiná- xe, com vistas a uma segunda versão, onde predomina Falo somente com o que falo:
rios para indicar a ruptura estilística com o romancista uma língua brasileira encrencada, um brasileiro de com as mesmas vinte palavras
metropolitano é a carta que dirige à dona Heloísa de matuto. Abandonados o léxico e a sintaxe propria- girando ao redor do sol
Medeiros Ramos, sua esposa. mente dOs lusíadas, abandonado o dicionário luso, o que as limpa do que não é faca.
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CAPA

Uma viagem QUEBRANGULO, 3 DE JULHO (DE 1973)

Querido Paul,

ao escritor e à
Na cidade natal de Graciliano Ramos. A casa
ainda existe, assim como a loja de seu pai. Tudo
em tons pastel. Rosa velho, sépia, azul aguado. O
prefeito, Eustáquio Soares, um sertanejo curtido,

linguagem
com olhos azuis quase fosforescentes, tinha his-
tórias sobre a família de Graciliano, algumas das
quais anotei antes que eu esqueça. Especialmente
sobre os Ferro, a família do lado materno.
O alferes Jacinto Ferro tinha ficado viúvo. Num
A geografia original de sábado, ele foi de Quebrangulo até Palmeira mon-
tado em seu jegue. (Escrevo um pouco sob a in-

Graciliano em duas cartas fluência da lembrança do que ouvi, no estilo de


narração de Soares: enunciações curtas, os longos

de seu tradutor holandês


silêncios no meio você tem que imaginar.) Nunca
montava outra coisa, só jegue. Quando ia fazer
compras, entrava nas lojas com jegue e tudo e
nunca apeava. Em Palmeira1 ele foi até a mulher
Texto: August Willemsen de Pedro Vila-Nova, que era costureira. Falou do
Tradução: Mariângela Nunes Guimarães alto do jegue: “Aqui tem tecido para fazer um terno
para a missa de sétimo dia da minha mulher. Ve-
nho buscar semana que vem”. “Está bem”, disse
a mulher de Pedro Vila-Nova, “mas preciso tirar
as medidas.” “Tirar as medidas? Mas eu não vou
apear.” Ela tirou as medidas com ele montado no
jegue. Dessa maneira chegou perto dele e ele re-
parou: “A senhora é uma mulher bonita, não tem
vontade de viver com um homem?” “Eu sou casa-
da, meu senhor.” “Não foi isso o que eu perguntei.
Perguntei se a senhora não tem vontade de viver
com um homem. Se não, então não. Se sim, então
venho buscar o terno semana que vem e já levo a
senhora junto.” Na semana seguinte, ele chega de
novo a Palmeira montando seu jegue com alforjes
laterais. Vai até a mulher de Pedro Vila-Nova. O
terno está pronto. “Quanto devo para a senhora?”
Paga no ato. Pedro Vila-Nova, informado por sua
mulher, está sentado em uma cadeira na calçada.
“E qual é a sua resposta à minha proposta? Se a
senhora quiser viver com um homem, monte aqui
atrás.” Ela vai para dentro da casa, pega uma trouxa Depois de uma longa espera, veio uma caminho-
de roupas que tinha deixado pronta, pisa no pé do neta, que ficou abarrotada de gente e bagagens.
marido quando passa por ele e monta na traseira Viagem incômoda. Cheguei perto de meio-dia
do jegue com o alferes Jacinto, que faz uma sauda- em Quebrangulo, encontrei a única pensão do
ção ao esposo: “Até mais, Pedro Vila-Nova.” Eles vilarejo e comi ali, servido pela filha, de novo
viveram juntos até que ela morreu. uma beleza improvável, assim no meio do nada
O alferes Jacinto Ferro criava abelhas. Gente da absoluto. Parece Anouk Aimée2, só um pouco
região comprava mel a ele. Chega um menino para mais cheinha. Depois caminhei, o usual caminho
comprar mel. Jacinto tira o mel do favo com peque- até o cemitério (um conjunto de montinhos com
nas ripas e assenta as ripas usadas sobre recipiente cruzes caídas, cerquinhas azul celeste ao redor,
de mel, para escorrerem. Coloca a primeira ripa e inscrições desbotadas pela chuva, fotos esmal-
vê que o menino pega e lambe. Ele não diz nada. tadas, muitas sepulturas de crianças), fotografei,
Com a segunda ripa acontece o mesmo. Na terceira comi e conversei com Eustáquio Soares. Agora
ripa ele pergunta ao menino: “Quer comer mel?” estou aqui escrevendo num café de dimensões
“Quero, sim, senhor.” “Com farinha ou sem fari- realmente extravagantes, um hangar, quatro mesas
nha?” “Com farinha.” Um pouco depois, quando de bilhar, um balcão de uns 20 metros, incon-
termina, o alferes Jacinto convida o menino para táveis mesas e cadeiras. Por que nós não temos
entrar, serve a ele um prato fundo cheio de mel uma coisa assim na Holanda? As conversas que
com um monte de farinha em cima e fica do lado tive até agora deixaram claro para mim que o que
com um chicote na mão. Na metade do prato o eu estou fazendo nesta viagem já foi em grande
menino começa a enjoar. “Você queria comer mel, parte feito por Helmut Feldmann e Moacyr San-
vai comer mel”, diz Jacinto, e ergue o chicote. O tana3 (não por “grandes nomes” da crítica literária
menino come mais um pouco, então de repente brasileira). Não vejo problema, desde que eu possa
foge, é perseguido pelo alferes Jacinto, leva umas ficar à vontade. Em Palmeira, tive uma tentação
chibatadas com o chicote e cai no lago da barragem. que já havia tido antes: a de ficar aqui. No Colégio
Com a cabeça mal fora d’água, vomita todo o mel. Estadual tinha um francês que ensinava francês.
O alferes Jacinto tinha um casal de escravos que Bem, eu poderia ensinar francês, alemão, inglês
estimava muito. Certo dia, sumiu um porco. Ele e português aqui, e não seria muito mais útil que
encarrega o negro de encontrar o porco. Isso às continuar em Amsterdã contando coisas que todo
cinco da manhã. Às sete horas o negro retorna: mundo pode ler por conta própria? A ideia se tor-
impossível encontrar o porco. O alferes Jacinto nou ainda mais sedutora (será que nunca vou me
diz: “Esse porco tem que ser encontrado.” O negro tornar um pouco normal?) porque eu, depois de
sai de novo, procura até as nove horas. Volta até o um encontro com uma pessoa naquele Colégio,
SOBRE O TEXTO alferes Jacinto: continua impossível encontrar o fui assediado por um batalhão de alunas com uma
porco. O alferes Jacinto pega um chicote e dá duas sede de conhecimento, uma avidez, uma pureza,
Ao lado, cartas de August chibatadas no negro. O negro diz: “Ninguém jamais tão comovente. Terminou sendo uma espécie de
Willemsen (1936-2007), me surrou em toda a minha vida”. Vai para casa, entrevista/palestra improvisada, que me saiu com
tradutor das obras de mata seus porcos, suas galinhas, mata seus quatro uma desenvoltura que me fez suspeitar que eu
Graciliano Ramos para o filhos, enforca a mulher e a si mesmo. fosse um outro, e que só acabou depois de umas
holandês, ao seu cunhado Essas são histórias que ninguém nunca tinha me duas horas. E quando eu finalmente fui embora
Paul. Provavelmente, trata-se contado. Feldmann não as menciona: em Infância elas vieram as menorzinhas, de 12, 13 anos, atrás de
da primeira tradução das também não aparecem. Eu as escutei e me dei conta: mim: “Como você se chama, americano?” “Au-
cartas de Willemsen para “Fora de Quebrangulo talvez eu seja a única pessoa gusto, que nome bonito.” “Eu gosto de homens
português. As notas são na terra que sabe disso.” E o que é Quebrangulo? altos.” “Eu gostaria de ter você como professor.”
do Pernambuco. O trem que eu queria pegar hoje de manhã em E isso, note bem, não puxando o saco, ou talvez
Palmeira descarrilou. Sorriso de reconhecimento. só um pouquinho, o suficiente para ser agradável.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

MARIA JÚLIA MOREIRA

E foram comigo até a loja de Luís, um verdadeiro


cortejo. Veja, isso, sim, é um trabalho prazeroso. “Um homem como depois numerosas façanhas; respeitaram-lhe a
violência e a crueldade. Sapecou os preparatórios
num liceu vagabundo. Na academia obteve aprova-
VIÇOSA, 4 DE JULHO (DE 1973)4

Deixado pela caminhoneta em frente ao enésimo


Graciliano deve ter ção ameaçando os examinadores. Bacharelou-se,
fundou um jornal. Como o velho diretor, seu car-
rasco, fechara o estabelecimento e curtia privações,
Hotel Commercial. Melhor que em Palmeira: tem até
instalações sanitárias. Só as pessoas não me agradam se sentido muito deu-lhe um emprego mesquinho e vingou-se.
Caprichou no vestuário: desapareceram as nódoas,

solitário em seu
tanto. Um dono repugnantemente gordo, lento, a formiga, o mofo. E teve muitas mulheres. Foi em
malcriado, que afasta com violência um mendigo casa de uma que o assassinaram. Deitou-se na es-
cego e perneta (é, o destino às vezes castiga de um preguiçadeira, adormeceu. Um inimigo, no escuro

próprio país: quanto


jeito) sempre que o homem dá um passo no limiar. da noite, crivou-o de punhaladas”.
Ninguém se importa com ele. Risadas, escárnio. Isso (e foi traduzido às pressas numa posição
Dizem que ele é louco, porque resmunga e vocifera incômoda, com uma máquina infernal entre as
sem parar, mas na sua situação não vejo isso como
indicação de desequilíbrio. À noite, “sem-teto”
acampam em frente ao hotel na calçada do outro lado
melhor ele escrevia, pernas, na cama do hotel, livro à esquerda, cachaça
à direita) — isso é escrever. Um homem como Gra-
ciliano Ramos deve ter se sentido muito solitário em
da rua (defronte, eles não são tolerados), munidos
de fogareiros a carvão, espigas de milho, esteiras de
palha, na esperança de alguma sobra do hotel. Pratos
mais feio achavam” seu próprio país: quanto melhor ele escrevia, mais
feio as pessoas achavam. O que ele tenta em vão nos
primeiros três de seus quatro romances, escrever
pela metade voltam para a cozinha praticamente Sinfrônio fala de maneira “incorreta” e Graciliano como um analfabeto escreveria, se soubesse escre-
diante de seus olhos. Latões de óleo com restos escreveu de maneira “correta” — gramaticalmente ver, uma dificuldade que em seu quarto romance
de comida são jogados fora e tudo é comido por falando. Quero dizer o tom, o ritmo, a intensidade ele contornou ao escrevê-lo na terceira pessoa (de
cachorros e mendigos. Estou nesse hotel. que resulta de uma linguagem escassa, simples, no analfabetos praticamente sem palavras), consegue
Como as coisas logo se tornam rotina: caminhar, verdadeiro sentido da palavra. (Isso, a propósito, fazer em Infância ao não imaginar um escritor, mas
visitar os lugares “gracilianos”, conversar com torna Graciliano, na minha opinião, muito difícil a si mesmo. Mas Jesus, Paul, fico cansando você
peritos no assunto. Aqui encontrei dois moradores de traduzir: “literatura” não é difícil, mas tente com um autor que você nem pode ler, que não está
muito idosos, provavelmente os únicos contem- traduzir um analfabeto.) O confuso e emocionante traduzido. Também não posso fazer nada, é com
porâneos ainda vivos do que é descrito em Infância foi que, embora estejamos acostumados com a isso que estou ocupado. E sejamos sinceros: levando
(começo do século): Veridiano Sousa de Vascon- ideia da realidade transformada em literatura, aqui tudo em conta, isso não é apenas sobre o escritor,
celos (nascido em 1886), já um tanto ausente, e aconteceu o contrário: a literatura foi retransfor- também é sobre linguagem, coisa que interessa a
Sinfrônio Vilela (1893), um pouco surdo mas ainda mada em realidade. Esse também foi o caso em todos nós, e também é um pouco sobre mim.
inteiramente lúcido. Aliás, o homem mais feio que Canudos, mas lá foi com respeito ao ambiente, Agora chega. Não preciso nem sair do lugar para
eu já vi, mas um charme! Um mulato de 80 anos paisagem, natureza, quase matéria mineral. Aqui adormecer. Adeus.
com um nariz como um cacho de uva, uma mancha foi com pessoas. Fiquei boquiaberto escutando as
de nascença, uma pele destruída pela varíola, dois lembranças de Sinfrônio. Cícero Feitosa, a “criança Guus
olhinhos pequenos, juntos, vesgos, mas extre- infeliz” de Infância: um menino que, porque era
mamente vivos, e uma memória perfeita. Isso eu feio e sujo, era infernizado e evitado por todos, 1. Palmeira dos Índios, município alagoano do qual
posso afirmar, pois conheço Infância praticamente zombado por seus pais, acossado pelo professor, Graciliano foi prefeito (de 1928 a 1930).
de cabeça, e ele se lembra de todos os personagens e que se tornou mau e vingou-se. 2. Atriz francesa com mais de 70 filmes no currículo,
dali — uma sensação estranha. Suas histórias, na- Graciliano escreve sobre ele (evidentemente entre eles La dolce vita (1960, de Fellini) e Um homem,
turalmente, não são mais que uma confirmação de tenho o livro ao alcance da mão): “Deixei-o no co- uma mulher (1966, de Claude Lelouch).
Infância, mas o que agora me dou conta, e que faz légio, perdi-o de vista. E reencontrei-o modificado. 3. Moacir Medeiros de Sant’Ana e Helmut Feldmann,
aumentar ainda mais minha admiração por Graci- Ao iniciar-se no crime, andaria talvez pelos 15 anos. críticos que analisaram a obra de Graciliano.
liano, se isso é possível, é que Graciliano escreveu Atirou num homem à traição, homiziou-se em casa 4. Viçosa, município de Alagoas (não confundir com
como esse homem fala. Não exatamente, claro, pois do chefe político e foi absolvido pelo júri. Realizou o município mineiro de mesmo nome).
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

ESPECIAL

De quando a Publicado no primeiro número da Revista de Antropo-


fagia, em 1º de maio de 1928, o Manifesto Antropófago,
assinado por Oswald de Andrade, completou assim

antropofagia
90 anos. De todos os documentos que surgiram no
rastro da Semana de Arte Moderna de 1922 em São
Paulo, sem dúvida é o mais conhecido, e seu valor
cultural só fez aumentar ao longo das décadas.
É preciso, todavia, lembrar que o Manifesto An-

é essencial
tropófago é precedido pelo Manifesto da Poesia Pau-
-Brasil (1924), do mesmo autor, com que guarda
certa semelhança, mas também uma diferença
fundamental. Em ambos, trata-se de assimilar
a cultura estrangeira, associando-a ao elemento

As relações do Manifesto “primitivo” brasileiro. A fórmula do Pau-Brasil é


clara: “Temos a base dupla e presente – a floresta
e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria,
antropófago com o a álgebra e a química logo depois da mamadeira e
do chá de erva-doce. Um misto de ‘dorme nenê

momento que hoje vivemos que o bicho vem pegá’ e de equações”. Ou seja, o
Brasil era (e ainda é) constituído pelo mundo rural,
“primitivo”, e pelo mundo urbano nos primórdios
da industrialização. Mas o Pau-Brasil ainda tinha
Evando Nascimento uma metáfora colonial: preconizava fazer uma
poesia de exportação, inspirada na madeira que
deu nome ao país.
Era preciso ousar mais. E aí Oswald, inspirado
em movimentos europeus de vanguarda, como
ele mesmo reconheceu, especialmente no da-
daísmo de Francis Picabia e no surrealismo de
André Breton, propõe a metáfora da antropofagia.
Esta consiste essencialmente em devorar o outro,
em particular a cultura de origem europeia, não
literalmente é claro, mas assumindo o papel do
“mau selvagem”, em vez do “bom selvagem” de
Rousseau e dos românticos, aproveitando o que
o elemento estrangeiro tem de melhor e unindo-
-o ao elemento “primitivo”, nacional. Em outras
palavras, Oswald defendia tornar aquilo que já é
um fato, o caráter híbrido da cultura brasileira,
uma reivindicação de direito.
Daí a ideia do “bárbaro tecnizado” (o qual ele
recolheu em Hermann Keyserling, importante
pensador alemão da primeira metade do século
XX, hoje esquecido), um híbrido do mais civilizado Isso não implica cair num relativismo, em que
com o mais selvagem, mas afirmando sobretudo tudo possa ser aceito, desrespeitando os direitos
o “primitivismo” deste último: “Só me interessa o humanos, por exemplo, em proveito de qualquer
que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. particularismo cultural. O que um movimento
Observe-se que a lei específica do antropófago como a antropofagia fez historicamente foi abalar
vale para toda a humanidade... Desse modo, in- a visão estereotipada do outro, quer dizer, nós
teressava expropriar a cultura alheia para afirmar mesmos que habitamos as Américas de Norte a Sul,
a sua própria, que por isso mesmo jamais seria ou qualquer parte do globo que sofreu um violento
pura. Vale sempre interpretar também a conexão processo de colonização, com extinção de grande
visual que se estabelece com a pintura de Tarsila parte das culturas autóctones. Os assim nomeados
do Amaral, que era esposa de Oswald na época do (não sem equívocos) “índios” podem ter sua cultura
Manifesto e da Revista de Antropofagia, periódico criado novamente apreciada, sem oposição simples com o
para divulgação do movimento. Colaboraram na “civilizado”. Afinal, como lembra um dos maiores
revista, além do antropófago-mor, nomes como especialistas no assunto, Carlos Jáuregui1, ninguém
Mário de Andrade, Raul Bopp e Carlos Drummond foi mais “antropófago” ao longo dos últimos séculos
de Andrade, entre diversos outros. de história mundial do que o colonizador europeu.
Nos anos 1950, depois da passagem pelo comu- Foi este quem consumiu inúmeras vidas humanas,
nismo, Oswald redimensiona suas próprias ideias, enriquecendo-se com a sevícia dos negros africa-
contrastando-as com o messianismo político e re- nos e dos indígenas americanos. A própria noção
ligioso, em A crise da filosofia messiânica, tese com que de “Ocidente”, como distinto do resto do mundo,
tentou, sem sucesso, uma vaga no departamento foi uma estratégia progressivamente montada para
de filosofia da Universidade de São Paulo. A ideia facilitar o domínio colonial, que funda e sustenta
do “matriarcado de Pindorama”, já defendida no a chamada modernidade.
Manifesto, ou seja, a postulação de uma cultura não Cabe não esquecer que a cultura cristã é essencial-
falocêntrica, não baseada na autoridade patriarcal, mente antropófaga, visto que no ritual da eucaristia
me parece extremamente fértil neste momento simbolicamente se come o corpo e se bebe o sangue
atual de afirmação feminista. de Cristo. Deve ser um caso único em que uma divin-
O legado maior do movimento antropofágico foi dade é canibalizada por seus fiéis... Foi em relação ao
nos ajudar a ter menos complexos por não fazer- esquema opositivo brutal entre selvagem e civilizado
mos parte das nações hegemônicas. No momento que o pensador franco-argelino Jacques Derrida deu
em que a própria noção de hegemonia tem sido uma contribuição com a chamada “desconstrução”,
criticada por ativismos sociais como feminismo, a qual prefiro agora renomear como disseminações, no
cultura LGBTI, antirracismo e indigenismo, entre plural. Em livros fundamentais como Gramatologia e
outros, me parece que essa perspectiva antietno- O monolinguismo do outro, Derrida abalou as relações
cêntrica é, mais do que nunca, essencial. tradicionais entre a dita metafísica ocidental e tudo
Atente-se sobretudo para o fato de que, numa o que ela violentamente rebaixa ou exclui.
era da cultura planetária, não faz mais sentido
a oposição simples entre “lá” e “cá”. Ou entre POESIA CONCRETA E TROPICÁLIA
centro e periferia como entidades ontológicas. Em outra vertente, como se depreende do livro
Há tempos se descobriu que a periferia habita o fundamental de Gonzalo Aguilar, Poesia concreta
centro, e grande parte da periferia hoje está no brasileira,2 nada mais antioswaldiano do que o mo-
centro das atenções. Nesse contexto é que o con- vimento da poesia concreta, que emerge nos anos
ceito de civilização como um ideal ocidental tem 1950. Enquanto a escrita de Oswald tende a ser
sido sistematicamente questionado, em prol de caótica e anárquica, mesmo na tese que apresentou
um valor de universalidade que inclua culturas à USP, os concretos tinham uma visão planificada
menos valorizadas historicamente. da poesia, da cidade e da cultura. Apesar disso,
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

HANA LUZIA

um ponto vai aliar o Concretismo à antropofagia,


sobretudo na década de 1960: ambos estavam em
sintonia com o processo desenvolvimentista de
O legado maior antropofagia na crítica brasileira, na qual explica muito
bem como as ideias revolucionárias de Oswald
nada tinham a ver com o modelo institucional
São Paulo e do Brasil como um todo. Tanto Oswald
quanto os irmãos Haroldo e Augusto de Campos,
junto com Décio Pignatari, tinham horror ao nacio-
do movimento que se estava implantando no espaço acadêmico
paulista da primeira metade do século XX. Se lhe
faltava a formação específica na área de filosofia,
nalismo provinciano, fechado ao experimentalis-
mo vanguardista, que se desenvolvia plenamente antropofágico foi sobravam-lhe noções e conceitos que o qualificam
como um dos pensadores internacionalmente

nos ajudar a ter


na Europa, nos EUA e em outras partes do mundo mais originais do século passado, e ainda muito
ocidentalizado, desde o final do século XIX. relevante no atual.
Um interesse semelhante vai acontecer nos anos A referência a Totem e tabu, e outros textos de

menos complexo
1960 com a Tropicália de Caetano, Gil, Torquato, Freud, é marcante nos textos antropofágicos de
Gal, Mutantes, Tom Zé, Capinam & cia. Em mo- Oswald. Não é possível saber se os tabus culturais
mentos distintos, esses três movimentos buscaram foram completamente totemizados em uma nova
descolonizar o pensamento brasileiro. Isso significou
atuar em duas frentes: 1) valorizar o elemento po-
pular nacional (sobretudo na antropofagia e na
diante das nações civilização matriarcal, desprovida do complexo
de Édipo. Provavelmente não. Felizmente para
nós, a antropofagia não concluiu sua tarefa, e por
Tropicália), sem folclorizá-lo e 2) abrir-se ao ele-
mento cultural exógeno, vanguardista, na literatura,
na música e nas artes plásticas, porém de modo
hegemônicas isso mesmo podemos levá-la adiante, com novos
instrumentos e por meio da seleção daquilo que
de melhor engendrou.
inventivo, filtrando ou digerindo o que importava em nossas escolas de Ensino Fundamental e de O maior problema do apego excessivo que às
importar (valha o pleonasmo). Afinal, não se pode Ensino Médio. Ajudariam a dar uma visão mais vezes atualmente se nota em relação à antropo-
comer tudo, é preciso escolher o melhor alimento, otimista e construtiva de uma democracia atu- fagia é nos prender eternamente ao primitivismo
como manda o mito do antropófago: come-se o almente esfrangalhada por sua classe política. O atrasado, que a Europa sempre indigitou nos povos
inimigo para assumir suas melhores qualidades. importante é que, à diferença de outros grupos de outras latitudes. Isso pode servir de argumento
E era isso o que valia para Oswald, para os con- que surgiram depois da Semana de 1922, as três ao exotismo mais dogmático, tornando nossos
cretos e para os tropicalistas, estes dois últimos tendências escapam de um nacionalismo taca- artefatos culturais meras atrações de feira, como
grupos como argutos leitores do primeiro. Como nho. A visão da antropofagia, do Concretismo e da as exposições bizarras do século XIX, tão bem
resume muito bem Caetano, comentando em Ver- Tropicália é essencialmente cosmopolita e polí- retratada na exposição do museu etnológico Quai
dade tropical a respeito da descoberta da antropofagia tica, sem complexos e sem ufanismo. Razão pela Branly, em Paris, em 2012: Exhibitions: L’Invention du
oswaldiana por seu grupo nos anos 1960: “A ideia qual se tornaram universais, sendo pesquisados Sauvage. Nesses festivais internacionais, objetos e
do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalis- e ganhando exposições no Brasil e no exterior. O indivíduos da Ásia, da África e das Américas eram
tas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Be- que une os três mo(vi)mentos é a necessidade de exibidos como “produtos” estranhos e exóticos, a
atles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra pensar o lugar cultural do Brasil para além das fim de confirmar a superioridade europeia.
a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam teses negativistas (à Paulo Prado) ou entusiastas (à Em contrapartida, o primitivismo transformado
aqui uma formulação sucinta e exaustiva”3. Gilberto Freyre). Nem melancolia, nem mitologia em corrente estética bastante positiva surge no
A meu ver, quem mais reivindica enfaticamente mestiça, outra coisa. mesmo século XIX e ganha enorme força no início
ainda hoje a antropofagia em suas declarações Oswald teve duas vezes a tentativa de entrada do seguinte, sobretudo porque um dos grandes
e em seu teatro é José Celso Martinez Corrêa. A na Universidade de São Paulo barrada. Hoje, as nomes das vanguardas artísticas e literárias, Pablo
reencenação, desde o ano passado da peça fun- instituições acadêmicas o avaliam como pensador Picasso, entre outros protagonistas do modernis-
damental de Oswald, O rei da vela, anos depois da extremamente original, com teses, dissertações e mo, incorpora elementos africanos a seu trabalho
primeira encenação nos anos 1960 – a qual marcou livros publicados. A História lhe fez, finalmente, pictórico e escultural, como na famosa tela Les
enormemente Caetano –, confirma na prática essa justiça. Este ano, Raphael Meciano defendeu no demoiselles d’Avignon. Com isso, de algum modo as
condição de herdeiro reivindicativo. Departamento de História da USP uma dissertação vanguardas anteciparam a valorização das cul-
A antropofagia, tanto quanto a poesia concreta de mestrado intitulada Formação e diferença: o proble- turas não hegemônicas, trazendo-as para o palco
e a Tropicália, deveria ser amplamente estudada ma da relação entre os discursos de formação nacional e a principal da cultura modernista.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

ESPECIAL

Creio que hoje há a possibilidade de se rever com


outros olhos as teses antropofágicas de Oswald.
Nesse sentido, levantei algumas hipóteses numa
A questão seria: do Este e outros textos de Silviano publicados em
Uma literatura nos trópicos (que agora completa 40
anos) e em Vale quanto pesa contribuíram igualmente
conferência realizada em 2005, na Unesp de Ara-
raquara, intitulada Desconstrução e antropofagia, e
depois republicada com o título de A antropofagia
ponto de vista ético para descolonizar o pensamento brasileiro já nos
anos 1970.
Um dos efeitos mais poderosos do pensamento
em questão, no livro de referência excepcional, or-
ganizado por João Cezar de Castro Rocha e Jorge e político, ainda antropofágico foi justamente pôr em questão a
ideia estereotipada de nação, como se ela existisse

hoje, é preciso
Ruffinelli, Antropofagia hoje? 4 Nesse ensaio, procurei desde sempre. Como se sabe, o conceito de Estado-
empreender duas tarefas que me parecem essen- -nação se afirma em definitivo principalmente a
ciais. Primeiro, reler os textos de Oswald em seu partir do positivismo do século XIX europeu, mas

“devorar” o outro,
momento histórico, explorando algumas de suas também estadunidense, e em seguida é exporta-
contradições. Por exemplo, ele evidentemente do sem muitas adaptações para outras partes do
não era um antropófago em sentido estrito e até planeta. Alguns dos grandes conflitos do século
onde sei não conheceu sequer uma tribo indígena!
Mas essa contradição não é paralisante; é fértil, e
mostra que, de fato, seu antropófago não é puro,
mesmo sendo o passado, e ainda do atual, vêm da divisão territorial
que grandes potências coloniais como Inglaterra,
França, Espanha, Holanda e Portugal impuseram
mas um híbrido de “selvagem” e “civilizado”,
ultrapassando essa oposição redutora. Oswald foi
um escritor modernista, membro da elite paulista,
colonizador? sobre povos que viviam em regime tribal ou em
comunidades, nada tendo a ver com os burgos
medievais, nem com as cidades modernas dos eu-
porém engajado no questionamento dos valores antropofagia oswaldiana era democrática, mas ropeus. Ao tornar-se permeável a formas culturais
culturais e de classe social. ainda trazia em si os germes da violência em sua externas, a antropofagia amplia e põe em causa
Além disso, interessa pensar a metáfora da devora- metáfora. Podemos continuar a comer, mas agora os limites da nação. Percebe-se assim que não faz
ção em si, coisa que poucos fazem. A questão seria: coletivamente, sem pulsão violenta, como bem mais sentido qualquer ontologia identitária, pois,
do ponto de vista ético e político é preciso, ainda encenou Lygia Clark, com sua experiência gru- segundo uma das melhores tiradas de Oswald, a
hoje, devorar (metaforicamente) o outro, mesmo pal Baba antropofágica realizada nos anos 1970, em questão é “odontológica”: um problema de “denti-
sendo ele o antigo colonizador europeu? Será que que os participantes davam de comer as próprias ção” e mordida, sem qualquer essência metafísica...
necessitamos repetir a violência do colonialismo, entranhas (representadas por fios de barbante Nessa perspectiva, um aspecto decisivo hoje
invertendo o vetor de ataque? Aí é que proponho regurgitados aos poucos), e ao mesmo tempo eram seria pensá-la com relação aos próprios povos
um comer junto, em vez da devoração. Me parece que “comidos”, numa performance ritual. autóctones que chamamos, não sem equívocos,
hoje é mais importante dar de comer para poder comer junto de “índios”. Afinal, se o antropófago oswaldiano
do que devorar por devorar. A SOLIDARIEDADE DOS VIVENTES é um indivíduo modernista que se inspira no mito
Isso nem de longe invalida as teses de Oswald, Vale lembrar que o célebre ensaio de Silviano da antropofagia relatado desde o início da invasão
apenas as atualiza no momento em que os novos Santiago O entre-lugar do discurso latino-americano cita das posteriormente nomeadas Américas pelos
fascismos emergiram com extrema violência. A a antropofagia como uma de suas linhas de força. europeus, é o modo como se assimilam (ou não se
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

HANA LUZIA

assimilam) as diversas culturas “indígenas”, bem


como as de origem africana, que conta bastante
para entendermos o Brasil de hoje. Um país visto
A literatura jogo das grandes potências coloniais, como Ingla-
terra, França, Bélgica, Portugal e Espanha, entre
outras6. A ontologia da dependência começa efe-
não como unidade nacional pacífica, mas como
uma “comunidade imaginária”, plena de conflitos
internos e externos. Conflitos decisivos, por exem-
indígena recente é tivamente a se desfazer no momento em que se
põe em dúvida ou até mesmo se abandona essa
terminologia. Interessa mais, no contexto atual,
plo, entre latifundiários do agrobusiness e todo tipo
de invasores, de um lado, e marginalizados, vidas um fato inédito na analisar a precarização das existências sevicia-
das nas Américas como um todo, bem como em

cultura etnocêntrica
precarizadas, de outro. Entender a oposição de um outras partes do mundo. Nada se deve ter contra
pensamento progressista, antropófago ou não, a os avanços tecnológicos, mas estes não podem
um pensamento reacionário, destrutivo, é agora servir para impor novas formas de colonização

do país: o outro pela


a “prova dos nove” da antropofagia oswaldiana econômica e cultural. Nisso, revisitado com olhos
como modelo cultural, porém não exclusivo, como livres, o “selvagem tecnizado” de Oswald, bem
gostariam alguns. como toda sua densa obra poética, romanesca,
A literatura indígena recente é um fato inédito na
cultura etnocêntrica do país: o outro pela primeira
vez conta sua própria história. Em vez do intelec-
primeira vez conta teatral e ensaística, continua muito vivo, tendo
muito a dizer em meio à Babel contemporânea,
em tupi, em português e até em iorubá.
tual modernista, a alteridade de fato “canibaliza”
o civilizado, revertendo o sentido da História. Isso
somente foi possível porque indivíduos prove-
sua própria história 1. Carlos Jáuregui. Canibalia: canibalismo, calibanis-
mo, antropofagia cultural y consumo en América Latina.
nientes de tribos foram alfabetizados na língua ríndias têm um relacionamento mais estreito com Havana: Fondo Editorial Casa de las Américas, 2005.
portuguesa, cada um com sua história singular: o que costumamos chamar de natureza. Nelas, não 2. Gonzalo Aguilar. Poesia concreta brasileira: as
Daniel Munduruku, Kaká Werá Jecupé, Eliane há propriamente descontinuidade entre viventes vanguardas na encruzilhada modernista. São Paulo:
Potiguara, entre outros. O mesmo tem acontecido humanos e não humanos. Era nesse sentido que, EdUSP, 2005.
com pessoas oriundas de comunidades periféricas, numa entrevista a mim concedida, Jacques Derrida 3. Caetano Veloso. Verdade tropical. São Paulo: Com-
com negros que reivindicam dar seu testemunho fazia apelo a uma solidariedade dos viventes.5 O misto panhia das Letras, 1997, p. 247.
via ficção e com mulheres que resolvem contar de “escola e floresta” que Oswald propugnava para 4. João Cezar de Castro Rocha; Jorge Ruffinelli (Orgs.).
as relações de gênero sob o ângulo delas. Esse a afirmação de uma cultura não mais nacionalista, Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São
investimento na autoetnografia é muito bem-vindo e mas, sim, aberta ao mundo, implica esse respeito Paulo: É Realizações, 2011, p. 331-361.
abre para outras perspectivas literárias e culturais, por todas as formas de vida que não a nossa, a qual 5. Jacques Derrida; Evando Nascimento. La solidarité
expandindo o conceito de literatura hoje. muitas vezes assume aspectos desumanos. des vivants et le pardon. Paris: Hermann, 2016.
A relação dos índigenas com as plantas e os América Latina, Ocidente, progresso e Estado- 6. Ver Evando Nascimento. Uma leitura nos trópicos.
outros animais está também no centro do debate. -nação, entre outros, são conceitos que se fir- In: Evando Nascimento; Maria Clara Castellões de
Como relatado por diversos antropólogos e mais maram entre os séculos XIX e XX, conformando Oliveira (Org.). Leitura e experiência. São Paulo: An-
recentemente por eles próprios, as culturas ame- identidades que serviam antes de mais nada ao nablume, 2008, p. 9-23.
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O INQUISIDOR OS FILHOS DO DESERTO MIRÓ ATÉ AGORA


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da Geração 65, é lembrado como um Cazarré retorna à época da escravidão enxergar o ritmo, a voz e seu gestual
“vulcão”, tal é a efervescência e o calor que no Brasil para contá-la através de um performático: dizCrição, Quase crônico,Tu
emanam de sua obra. Os poemas deste menino, feito prisioneiro na África para tás aonde?, Onde estará Norma?, Pra
livro ganham figuras e formas através do ser vendido a homens brancos no país. não dizer que não falei de flúor, Poemas
pano de fundo do regime militar do Brasil, Mas Kandimba torna-se protegido da para sentir tesão ou não, Quebra a direita,
provando que a alcunha atribuída ao poeta poderosa Dona Joana, uma rica mestiça segue a esquerda e vai em frente, Flagrante
faz todo o sentido. que, além de cuidar dele, vai apresentá- deleito, Ilusão de ética, São Paulo é
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HQ baseada no livro A noiva da Revolução, BUARQUE DE HOLANDA
de Paulo Santos, com roteiro do autor e Vencedor do IV Prêmio Pernambuco de Alberto da Costa Lima
ilustrações de Pedro Zenival. Os fatos Literatura, apresenta um escritor que se
históricos são narrados pelo líder da envolve na narrativa, mesclando ficção e Um mergulho na obra de Chico Buarque,
Revolução Pernambucana, Domingos realidade. Com elementos fantásticos e tido como o grande intérprete da alma
Martins, e sua esposa, a portuguesa Maria muita autoironia, o autor brinca com os feminina e uma das maiores expressões da
Teodora da Costa. O amor dos dois, que clichês dos romances policiais noir, num MPB, que analisa a condição da mulher em
enfrentou preconceitos, acontece durante a jogo metanarrativo com a estrutura do suas músicas e identifica como o discurso ali
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Miscelânea composta de crônicas, reflexões Vencedor do Prêmio Cepe Nacional de
literárias, pequenas narrativas, relatos Perfil do ator, diretor, escritor, poeta, professor Literatura em 2016, o romance de Luís
históricos e memórias de José Almino. e jornalista José Pimentel, memória viva Sérgio Krausz inicia com uma viagem a
Como uma variação do brilho de sua obra do teatro pernambucano desde os anos Nova York, numa narrativa vertiginosa
poética, as crônicas parecem transitar 1950, quando novas concepções cênicas rumo ao desconhecido. O livro é construído
entre poesia e prosa, sem que haja risco conquistaram o respeito do Brasil. Após através de palavras inacreditavelmente
na mudança de gênero, com refinada integrar a Paixão de Cristo de Nova conscientes, torpes, profundas e friamente
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

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Eu sou o que eu escrevo


A realidade fala. Todo o tempo, sem parar, Por isso, não adianta, é impossível, não gramáticas, morfologias, sintaxes, conju-
sem me dar sossego. A realidade é uma voz “ter posição”. A letra sempre me dá uma gações, nada disso o interessa. Ele quer a
que se espalha em torno de mim. É tagarela, posição, me dispõe de uma maneira, me alegria da letra pura, a letra que é música
insistente, incansável. Mais que uma voz: ela exibe numa perspectiva, ela sempre me e que não se deixa aprisionar em sentidos
é um amontoado de letras, intransigentes, in- recorta e me faz falar. “Não sei o que dizer”, fixos. A letra da liberdade. Naquela dança
tragáveis, intoleráveis, que formam palavras dizemos tantas vezes, no desespero ou no de letras, todos nós nascemos.
atrás de palavras e não me deixam descan- susto, mas mesmo assim já estamos dizen- Conclui Rahimi, assombrado com as
sar. Dizem, denunciam, acusam, protestam, do. Lembra Rahimi de Roland Barthes, que próprias palavras: “Eu nasci do verbo. Re-
elevam-se. A realidade fala e tem dito coisas afirmava sofrer de uma doença, uma terrível ligiosamente. Socialmente”. Talvez por isso
terríveis. Ainda mais agora que encontro um doença, que assim resumia: “Ver por todos nos inquietemos com as pessoas que falam
espelho em Atiq Rahimi (foto), o escritor os lados a linguagem”. Ver a linguagem é demais: elas sofrem da impressão de que as
afegão nascido em Cabul em 1962, de quem ouvi-la falar. Habitar a linguagem, como letras podem acabar e por isso devem ser
leio A balada do Cálamo (Estação Liberdade). todos habitamos, é nela ocupar um lugar. ditas logo. Também por isso nos inquieta-
A realidade anda difícil, mas o que a salva é Este, e não aquele. Assim, e não de outra mos com as pessoas que se recusam a falar:
a letra – é o sentido. A letra que é ela própria, maneira. Ser é estar: aqui, ali, acolá, muito elas falam para dentro e simplesmente não
num emaranhado de carne e espírito, de co- longe, ou muito perto. Não há escapatória. nos deixam ouvir. Por isso – no cotidiano,
ração e invenção, de sopro e fala. Na página É por isso que também Rahimi vê (como na política, na arte – o mundo exige de nós
98 do livro de Rahimi, encontro um capítulo todos nós, se olharmos bem) letras por to- que não deixemos de falar. Que não dei-
decisivo, que resume tudo o que tento, de dos os lados. “Letras nas rochas rebeldes xemos de ser. Que ocupemos um lugar no
modo vacilante, dizer. “Não sou senão uma das montanhas. Letras nas águas turvas, nas banquete da vida.
letra”, o capítulo se chama. Trata-se de uma nuvens errantes, em cada gota de chuva”. Não importa se falamos confusamente,
reflexão sobre o pertencimento. A quem devo Ali onde menos se espera, esbarramos em ou com clareza; o que menos importa é se
minha vida? De onde venho? Onde exata- uma letra e em uma direção. O mundo nos somos entendidos, ou não; aliás, o mal-
mente estou? Para o escritor afegão, essas obriga a lê-lo todo o tempo. Somos, antes de -entendido é, em nosso mundo áspero, a
perguntas se resumem em uma só: “A que tudo, leitores. E, ao ler, nos situamos. Antes regra. Ele nos massacra. As letras são tro-
civilização eu pertenço?” mesmo de viver, ou “para viver”, lemos. cadas, amassadas, deturpadas, dizimadas
Sim, porque a civilização nada mais é que O olhar da mãe, os seios da mãe, a grande – mas serão, sempre, letras a nos advertir
a letra feita carne. E a resposta que Rahimi nuvem em torno: a letra está em todo lugar. e a nos ensinar. O verbo: estamos presos a
nos oferece é ainda mais difícil, embora mais Não há escapatória. ele, somos seus filhos. Mesmo em silêncio
óbvia e também mais amorosa: “A todas, Continua Rahimi: “Letras na pele da terra, absoluto, nosso pensamento se agita e fala.
mas sobretudo àquela que me empresta suas em suas entranhas... Letras, letras, letras...” Rahimi: “Por mais que eu tente escapar,
letras”. Ecoam as palavras de Pessoa: “Minha Ainda somos essa criança que se assustou dele não posso me desfazer”.
pátria é minha língua”. Ou ao contrário? “Mi- diante do mundo – desse mundo feito de Por isso – atenção – é impossível, é mesmo
nha língua é minha pátria”. Tudo se confunde letras, ainda que indecifráveis – sou eu uma estupidez, desejar “não ter posição”.
e se alimenta; sem a língua não há pátria, não também, somos todos nós. Sigo as palavras Sempre, até fisicamente, em alguma posição
há fala, tampouco há o Ser; sem a língua, do afegão: “Sim, sou ainda esta criança, in- estamos: sentados, ajoelhados, curvados,
nada, infelizmente nada. fans, que se põe repentinamente e com zelo de pé, deitados, entortados. Seja como for,
Resume o afegão: “O que quer que eu faça, a aprender, a falar, a ler, a escrever”. Sou estamos em algum lugar e de algum jeito. A
aonde quer que eu vá, no que quer que eu me (somos) esse infante que balbucia, e é esse palavra é esse lugar. O verbo é uma grande
torne, eu sou o que eu escrevo, o que eu leio, gaguejar, essa hesitação constante e atroz, manta sobre a qual rolamos, fugimos, nos
o que eu vejo!” Eu sou o que eu escrevo, eu que lhe dá acesso ao mundo e que o tornará encolhemos, mas sempre estamos.
sou essas palavras mesmas que agora aqui homem. Sou “aquele que sempre contempla “Eu retorno ao verbo, como para retornar
anoto, isso – e nada mais – sou eu. Aqui eu as letras e brinca com elas”. ao meu país de nascimento”, Atiq Rahimi
me guardo, aqui guardo meu segredo mais Na infância, a letra é jogo – é pura emo- resume. Estamos sempre em posição de
antigo, aqui respiro. “E não vejo senão letras”, ção. É uma dança, na qual nos engajamos retorno. Tudo nos traz de volta ao verbo
Rahimi conclui. Tudo é letra, tudo fala, tudo para respirar e viver. Desde o primeiro “Ah!” e às palavras. Nunca escapamos. Prisio-
se articula e se expressa. Mesmo o silêncio que gritamos para mãe, até o “Ah!” vacilante neiros da linguagem, é nela que consegui-
é uma letra perdida, uma letra – em uma do último suspiro, a letra se embrenha por mos, também, nossa liberdade. Só existem
longa caravana de palavras – deixada, há todos os lados. Acontece que o infante se homens livres porque existem grilhões a
muito, para trás. recusa a se submeter às amarras da letra: serem rasgados.
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INÉDITOS Álvaro Tukano

No Alto do Rio Negro, depois de muitos anos de ligado as forças armadas.2 E o objetivo das forças
andança, surgiu uma figura que chamamos de Percá armadas e dos missionários durante as missões era
Sê (homem de fogo). Para nós, esse é o homem de eliminar as culturas, as línguas indígenas, deixar o
fogo, aquele que têm espingarda. É aquele que índio sem nada, sem território, sem nenhum direi-
mata, rouba, toma, ele não quer saber de ninguém. to. Essa briga foi péssima, horrível! E essa briga foi
Depois de muitos anos esse homem branco chegou apresentada por mim, como testemunha, quando
e dividiu a nossa sociedade do Rio Negro, e continua não concordei com certas atitudes do Estado ou
dividindo até hoje. Antes, nossas vidas eram assim: da Igreja ao atacarem os povos indígenas. Fiz de-
fazer festas, cantar, preservar, praticar cerimônias. núncia no Tribunal Bertrand Russell na Holanda3,
Mas, frente ao inimigo poderoso, foi preciso parar em 27 de novembro de 1980. Quando cheguei em
de pensar só nessas coisas, porque isso não seria Brasília (para seguir para o Amazonas), não pude
mais suficiente para a gente ser feliz. Por isso meus voltar para minha aldeia porque era o bispo quem
antepassados brigaram com os colonizadores. São controlava os aviões da FAB para o Rio Negro, então
essas histórias de guerra nos seringais, nos piaça- eu fiquei ilhado.4
bais e, hoje, com tantos garimpos no Amazonas, Ao chegar em Brasília, a primeira pessoa que
eu me lembro de como começou o tempo de tantas conheci foi Marcos Terena5, na casa da Memélia
mortes, devastação e conflitos na Amazônia, Foi Moreira, jornalista da Folha de S.Paulo. Uma aliada
desde 1640, de lá para cá nunca mais tivemos paz.1 que denunciou as barbaridades que se cometiam no
A igreja sempre esteve presente. Em São Gabriel país contra os povos indígenas. Marcos Terena co-
da Cachoeira (AM), temos bispo e general que são meçou a entender a importância de se defender os
nossos amigos, mas quando queremos tratar da parentes dele que morriam no Mato Grosso do Sul.
questão indígena, eles não deixam você dizer o seu Foi neste momento que nasceu a ideia de resistência
direito. Da mesma forma é o Congresso Nacional, nas Terras Indígenas (TIs). Conheci também Nailton
SOBRE O TEXTO ele não respeita. Só os direitos que atendem aos Pataxó, que brigava contra os grandes fazendeiros
interesses deles que vale. Meu pai passou muito de cacau na Bahia; Lázaro Kiriri, baixinho do inte-
O texto é um depoimento tempo brigando com portugueses e espanhóis por rior da Bahia, muito rezador, estavam demarcando
inédito do líder indígena volta de 1912, tempo em que falávamos nhengatú, suas terras sem o apoio de ninguém, onde morreu
Álvaro Tukano, que relata a uma mistura de português com tupi-guarani. Meu muita gente. Depois conheci os xavantes, entre eles
história das lutas dos povos avó falou nhengatú por entender que era preciso. o Mário Juruna, que discutiu com o Estado, cobrou
indígenas a partir de sua Depois ele colocou meu pai, Akito, na escola dos a demarcação das TIs. Em São Paulo, conheci o
visão. Guarda marcas de missionários para aprender a ler e escrever, ler Ailton Krenak, que recebeu a declaração de guerra
oralidade por ter sido ditado as leis da igreja e do Estado. Por isso nós fomos pelo Estado brasileiro, assim como outros povos
e transcrito. Os usos da isolados de nossos pais, quando fomos mandados receberam essa declaração de maneira indireta. Por
palavra índio e as visões para o internato, e lá nos proibiam de praticar nos- isso nunca tivemos liberdade neste país.
sobre a participação de sas tradições antigas. Só podíamos rezar e rezar… Os antigos morreram, morreram com dignidade.
alguns personagens nas lutas sem destino. Muitas mulheres também se foram: professoras,
respeitam o discurso do autor. Sobre o movimento indígena no Brasil, ele sem- mães, as melhores oradoras e defensoras que tive-
Os termos entre parênteses pre aconteceu em todo o país, pois todo povo, ou mos, mas por falta de instrumentos não pudemos
e as notas de rodapé são de quase todos os povos, tem seus líderes. Mas o Brasil registrá-las. Essas mulheres continuam até hoje
responsabilidade dos editores sofreu com essa batalha desigual, ao longo desses entre nós: são nossas mães, filhas, acadêmicas que
do Pernambuco. séculos de colonização. Quando eu vivia no Rio continuam observando o comportamento do país
Negro, tive inimizade com um bispo que era muito sobre os direitos dos povos indígenas. Isso é bom!
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

HANA LUZIA

sou a se posicionar e dar razão para nós indígenas


defendermos nossas terras, a ecologia contra todo
esse tipo de exploração. Mas o mais destacado foi o
Mário Juruna, muita gente debochou dele, mas ele
não brincou com o Estado.9 Ele foi gente de pouco
conhecimento acadêmico, mas era bom pensador
e até hoje foi o único deputado federal (indígena)
que o país teve. Igual ele, tão cedo, nós não tere-
mos. Depois veio o Raoni Kaiapó, junto com seu
sobrinho Megaron10, depois veio o Aritana com o
pessoal do Xingu.11
Assim nós estávamos construindo a Constituinte
no Brasil. Foi junto com o Lula, que é amigo de mi-
lhões de brasileiros, e eu sou um deles. Juntos uni-
mos a voz dos índios e trabalhadores, e nossa voz
foi para o mundo. Muita gente que estava com medo
de voltar para o Brasil começou a se fazer movi-
mento aqui no Brasil, como um direito dos exilados
voltarem a morar aqui. Foi então que começamos
a redigir o texto indígena. Depois, apareceram os
caiapós, e o Paulinho Paiakan como um destaque.12
Foram os grandes guerreiros que enfrentaram o
Projeto Carajás, maior empresa de minas no Pará,
que a Vale do Rio Doce foi proprietária até o FHC
vender a estatal.13 Os xavantes apareceram também
como grandes guerreiros. Depois nos unimos com
os povos da Região Sul, os macro-jê,, geralmente
eles são guerreiros. Eles não são de festa não! São de
defesa mesmo. Foi muito forte o nosso movimento
indígena. Perdemos gente como o Ângelo Cretã,
Marçal de Souza e outros tantos líderes.14
Essas mortes também nos incentivaram para
nós, a gente não parar de lutar. A maioria de nos-
sos líderes foram assassinados. Assim surge Davi
Kopenawa15, para defender a Amazônia. Formamos
a COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas
da Amazônia Brasileira), surgiu o Moura Tukano16,
um dos grandes articuladores do movimento in-
dígena no país, o (Ailton) Krenak como jornalista
que ficou responsável para carregar esta cruz pesada
lá em São Paulo. Então esse texto teve o apoio de
muitos índios, muitas índias, era um parto que
estava para acontecer com a chegada da Consti-
tuição Federal de 1988. E este parto aconteceu, e
foi lindo. Lindíssimo!.
A importância, para os indígenas e não indígenas,
da Constituição Federal de 1988 era o pensamento de que
ela traria paz e mudança nas decisões políticas.
Historicamente, a voz dos índios não foi valorizada,
quando o que predominou pelas centenas de anos
foi o poder dos missionários, dos garimpeiros. E foi
depois de muitos conflitos que meus antepassados
sofreram que entendemos que as leis feitas pelos
brancos (não indígenas) não serviriam para nós,
Tive que ir para São Paulo, (estava) ameaçado pe-
las Polícias Federal e Militar de Manaus, me tornei
muito conhecido e tive que sair. Lá não tinha lugar
“O índio muda povos indígenas, e que só traz medo. Por exemplo,
se você não for cristão, você é pecador e será pe-
nalizado às penas do Estado brasileiro. Assim era
para dormir, o que comer, passei a ser fugitivo do
Estado. Quando cheguei em Brasília, percebi que
aqui não era meu lugar, depois me mudei para São
junto com a preciso se tornar cidadão, se tornar cristão para
somente depois termos direito a opinar.
O movimento indígena foi um movimento au-
Paulo. Foi lá que conheci sindicalistas, estudantes
e passei a ouvir o pensamento de esquerda. Era sociedade brasileira têntico, conseguimos chegar lá através do Ailton
Krenak, que é um brilhante acadêmico, bom ora-

e não pode
diferente para mim, mas foi onde me identifiquei. dor. Ele tem sido nosso porta-voz e nós estamos
Lá eles me deram ideias, prato de comida. Foi lá lá com boas articulações políticas, principalmente
que conheci Lula e outros sindicalistas, conheci o do Bernardo Cabral (AM), meu amigo de verdade,

continuar morrendo
pessoal da PUC, da USP, a mídia, e assim nos for- que foi relator da Constituição (da Assembleia Cons-
mamos, e depois formamos o pessoal sem-terra de tituinte). Lá no Congresso, pisávamos quase todos
Curitiba. E toda essa ideia foi se espalhando junto os dias para ver se o que eles faziam estava certo ou
com a defesa da questão indígena. Lutávamos pela
Reforma Agrária, que se consolidou com a Consti-
tuição de 1988. Perdemos muita gente, mas também
de fome enquanto não. Lá nós fizemos amizade com políticos como
Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, o senador Ro-
nan Tito (MG). Não tínhamos um partido indígena,
continuamos com muita honra, dignidade. Por isso
essa Constituição tem valor para nós, e ela valerá
a pena desde que a juventude cobre do Estado
outros vivem bem” era uma sociedade mista onde cada um defendeu a
Constituição. A nossa parte foi uma versão própria.
Claro! Com apoio de aliados. Fizemos aliança com
brasileiro a sua aplicação. bre os índios sem nos consultar. Não podem porque os trabalhadores sem-terra, os rurais e das florestas.
Enquanto movimento indígena, criamos a União não são índios. Eles são nossos aliados, podem nos Essa era a visão daquela época onde o Brasil era o
das Nações Indígenas (UNI) em junho de 19816, em ajudar, mas não podem decidir o destino de vários foco dos ecologistas, e é até hoje. Não pintamos
São Paulo, como estratégia para se contrapor a este povos. Por isso o movimento indígena hoje está nossa cara para fazer festa não, nós nos pintamos
cenário de corrupção e tutela por parte da Funai. Ao refletido nas novas gerações, que são os advogados, para mostrar que nós somos diferentes. Foi a união
mesmo tempo a sociedade aumentava sua revolta advogadas, médicos, professores que continuam de povos diferentes. O Brasil não pode ser só de uma
pela falta de paz no país, nós pensamos juntos, de olho na luta indígena, que é complexa e difícil. crença, nem de um partido, ainda mais quando se
criando leis que tratavam da questão indígena no Domingos (Marcos) Veríssimo7, com apoio de fala da questão indígena. Nós temos muitos índios,
Brasil. A Constituição de 1988 afirmou nosso direito à Darcy Ribeiro e da (antropóloga) Carmem Jun- muitas índias, muitas crenças, sabedorias, e isso
expressão, a prática de nossas tradições, os terri- queira, entre outros intelectuais, formaram o UNI tem crescido mais depois da Constituição. Ser índio
tórios enquanto direito originário etc., mas nossa em Campo Grande (MS). Um ano depois fizemos a numa Constituição que foi feita por nós.
alegria durou pouco e logo percebermos que essa renovação do quadro da UNI, onde Marcos Terena Hoje, nós temos esta lei. Mas infelizmente nossos
lei não estava sendo cumprida pelo Estado. Vieram foi o primeiro indígena a assumir a presidência da inimigos continuam no poder. No Congresso, STF, nos
novos deputados para o Congresso Nacional, que instituição, e eu saí como vice-presidente. O Lino ministérios e estão loucos para roubar ouro, água, todo
começaram a escrever leis pelos índios de novo. Miranha, de Tefé (AM), e Ibis Menino, de Cocal tipo de minério, madeira e a biodiversidade de modo
Por isso falar com homem branco é muito difícil (AL)8, fomos nós que assumimos essa responsa- geral. Essa é a maior tentação do homem colonizador,
neste país, é muito difícil ser índio num país que bilidade. Enquanto todos os índios lutavam pela e por causa disso que estamos nesta batalha. É por
diz ser civilizado, rico, enquanto nós morremos de demarcação das Tis, foi muito fácil a gente falar a isso que não querem demarcar as TIs. Nós, índios,
malária, de desnutrição, de outras doenças e a voz mesma linguagem e assim se formaram mais de 240 temos o usufruto de 13% das terras brasileiras, mas
do índio continua sem ser ouvida. Por outro lado, organizações indígenas no país, uma força política que continuam sendo terras da União, e são nas TIs
sabemos que a Constituição é importante porque que passou a ocupar espaço nos jornais e na mídia que estão as maiores riquezas. O futuro do país estão
nenhum deputado ou senador poderá fazer leis so- internacional. A sociedade brasileira também pas- em nossas terras, por isso que querem nos roubar.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

HANA LUZIA

INÉDITOS
Álvaro Tukano

Para não permitir que isso ocorra, nós conti- Esse modelo que está aí não serve para nós, de Brasília em abril, com o projeto da Federação
nuamos como plantonistas, prestando servi- é preciso ter muito diálogo. dos Povos Indígenas do Mato Grosso do Sul, con-
ços ambientais para o povo brasileiro e para o vocada pelo chefe Terena Domingos Marcos”. Ver
mundo. Demarcar as TIs é obrigação do Estado. Notas Povos Indígenas do Brasil (1980), p. 38.
Um bom trabalho que deve ser feito à so- Os livros Povos indígenas do Brasil são referidos 7. Liderança do povo Terena. Foi presidente pro-
ciedade brasileira é falar de nossas origens. junto com ano e página. A íntegra das obras para visório da UNI em 1980, quando das negociações
O negro não deve ter medo de ser negro, o consulta se encontra neste link: pib.socioambien- para sua criação. Faleceu em 2005.
índio que tem sangue forte, que são as suas tal.org/pt/Downloads. 8. Lino Cordeiro, do povo Miranha (AM), tornou-
raízes, deve assumir essa identidade, então 1. Uma bula papal de 1639 condenou a escravidão -se secretário da UNI na mesma ocasião. Ver
o Brasil é um país mestiço. O Brasil não pode dos indígenas. A partir de então, esses povos, Povos indígenas do Brasil (1981), p. 72. Por e-mail,
ser dirigido por pessoas que não conhecem que deveriam ser catequizados e alfabetizados, Álvaro Tukano conta que Ibis Menino, liderança
os povos indígenas, nem a situação real da ficaram ainda mais à mercê da Igreja Católica. no Nordeste, defendeu a demarcação das TIs
maioria dos brasileiros. Por isso precisamos 2. Trata-se de Miguel Alagna, responsável pela na região e foi perseguido pelos políticos. “Foi
de novas tecnologias brasileiras, temos que prelazia do Alto Rio Negro. Em 1981, o missio- alvejado na frente dos filhos e tombou na porta de
ter autonomia. O índio muda junto com a nário Eduardo Lagório confirmou a violência da sua casa. Foi meu grande companheiro de luta.”
sociedade brasileira, e não pode continuar missão religiosa na região. Afirmou que mulheres 9. Mário Juruna foi o primeiro e único deputado fe-
morrendo de fome ou de malária enquanto indígenas eram levadas a Manaus para trabalha- deral índigena do Brasil. De origem xavante (MT),
os outros vivem bem. Os outros têm melhores rem como domésticas em casas de militares e elegeu-se em 1982 pelo Rio de Janeiro. Percorria
escolas, o índio também precisa. Se os outros terminavam se prostituindo em razão de baixos os corredores da Funai para lutar pela demarcação
têm celular, eu também preciso. Quem não salários e da dificuldade para se adaptar à cidade. dos territórios com um gravador. O objetivo era
quiser nada de progresso, que tire a roupa e Lagório recebeu do próprio Alagna ordens para registrar o que diziam os brancos para depois
suma. Mas eu não posso sumir, preciso que castigar os indígenas que falassem as línguas constatar que não cumpriam a palavra. Criou a
meus filhos, minhas filhas tenham acesso às tucano, pois, segundo o bispo, “eles devem falar Comissão Permanente do Índio no Congresso.
universidades para poderem nivelar o conhe- somente o português. Eu mesmo castiguei muitos 10. Liderança caiapó (MT e PA) mundialmente
cimento, essa discussão, que é deles. E é essa índios”. A punição consistia em escrever cem reconhecida por seu engajamento nas lutas dos
discussão que dará a luz de como deverão vezes a frase “Eu não vou falar mais tucano, vou indígenas brasileiros. Seu sobrinho Megaron é
ser ocupados os territórios indígenas para falar apenas português”. Ver Povos indígenas do o atual cacique.
dar autonomia econômica, cultural nas TIs Brasil (1981), p. 5,6 e 91. 11. Aritana é líder dos indígenas yawalapiti do
dentro do Estado brasileiro. O que precisamos 3. Tribunal internacional criado para julgar sim- Alto Xingu (MT).
é organizar o povo, muitos povos indígenas. bolicamente agressões e etnocídios praticados 12. Paulinho Paiakan, líder caiapó. Em 1992, estu-
As reivindicações de minha comunidade contra povos indígenas americanos (ver Povos prou uma estudante de 18 anos, crime cometido
não funcionam aqui em Brasília sem a minha indígenas do Brasil, 1981, p. 45–47). com a ajuda de sua esposa.
cobrança. Do contrário eu estaria lá, com 4. “O índio Álvaro Tukano, o primeiro a denun- 13. O Projeto Carajás explora recursos minerais
meu povo. Muita gente me diz que meu lugar ciar a prostituição e descaracterização do grupo, (especialmente ferro) em região que abrange três
não é aqui, eu respondo: E, se eu for morar imposta pelos salesianos do Rio Negro, não pode estados (TO, PA e MA). Foi criado pela Vale do
no mato, quem ficará em meu lugar para voltar a Manaus, onde estuda. Os companheiros Rio Doce no governo Figueiredo.
defender os meus direitos? É você quem vai de Álvaro Tukano que moram em Manaus estão 14. Ângelo Cretã, do povo Kaingáng (PR), pri-
me defender? Como é que você vai me de- preocupados, pois frequentemente são procurados meiro vereador indígena do país (1976). Morreu
fender? Sendo funcionário público da Funai pela Polícia Federal, que quer saber do paradeiro em 1980 num acidente de carro. Marçal de Souza,
ou de outros órgãos que apoiam os índios? do índio” (Povos Indígenas do Brasil, 1981, p. 91). líder guarani que brigou pela demarcação das
Vocês vão apoiar os índios neste sentido? Para 5. Liderança do povo Terena (MS). Um dos fun- terras dos kaiowá (MS), em 1980 relatou ao papa
mim isto não é me defender. É se aprovei- dadores da UNI, da qual foi presidente, lutou João Paulo II que as tribos brasileiras estavam
tar de mim, de minha fraqueza, da pobreza pelos direitos dos indígenas na Constituinte, foi sendo dizimadas. Foi assassinado em 1983. Ver
que está em minha comunidade. Por isso o primeiro indígena a gerenciar o Memorial dos Povos indígenas do Brasil (1983), p. 229-230.
defendo que o Estado deva dar ouvidos às Povos Indígenas de Brasília. 15. Liderança ianomâmi de renome mundial. Ar-
nações de índios com projetos de cultura em 6. Diz uma matéria da Folha de S.Paulo de 9 julho ticulador da demarcação das terras de seu povo,
todo o país. Quem precisa dizer somos nós, de 1980: “Quinze nações já estão comprometidas ocorrida em 25 de maio de 1992 e que abrange
indígenas, sobre projetos de educação, pro- com a criação da UNI (…), lançada no dia 7 de junho mais de 90 mil km² nos estados de RR e AM.
jetos econômicos e de autonomia, é isso que na aldeia Terena do Mato Grosso do Sul e divul- Ver Povos indígenas do Brasil (1991–1995), p.226.
nós queremos. O que eu sonho mesmo é ter gada ontem na conferência Criação da Federação 16. Moura Tukano, um dos fundadores da
uma nova formação da sociedade brasileira, Indígena Brasileira. (…) A UNI é o resultado da COIAB, integrou a Comissão Nacional de Po-
porque esta sociedade que está aí não serve. fusão da Unind, criada por estudantes indígenas lítica Indigenista.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

LUÍSA VASCONCELOS

INÉDITOS a palavra velhaca rasteja


silvo mais sem sal o dela
ao sentir-se indesejada

bífida língua revela


depois da picada banguela
(suas presas são balela)

aprendi a recusá-la
baixar sua crista
— à bala
Ledusha Spinardi

foi para não sabe onde


e talvez não tenha voltado
desse onde
para o qual na real
não tem certeza
se foi

carregar pedra

SOBRE O TEXTO
AGORA
Os poemas fazem parte ler dostoiévski
do livro Lua na jaula, que é faz doer também
lançado este mês pela seus olhos
Editora Todavia.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

RESENHAS
REPRODUÇÃO

Ouça: é o apito O livro Parque industrial,


de Pagu, clássico do
“romance proletário”
conviria uma nota
editorial no início.
A diagramação manteve
e trabalho na fábrica é
húmus para a elaboração
ficcional. Seu ativismo é
defesa das vanguardas e
do inconformismo. Sua
beleza, seu charme e sua

da fábrica que assinado pelo pseudônimo a distribuição em blocos, ponto de partida, e combatividade seriam
Mara Lobo, acaba acentuando a concepção mais anos de cárcere cantados em prosa e
de receber reedição da narrativa fragmentada, ainda viriam. verso. O reconhecimento,

hoje soa forte


impecável, que honra a em instantâneos ou Mostra também o embora tardio, é
autora e a obra. Abre-o, flagrantes que se dispõem assédio que as operárias crescente: multiplicam-
noblesse oblige, um prefácio por curtos e incisivos sofrem dos rapazes de se teses e trabalhos
de Augusto de Campos, capítulos. A prosa, automóvel, para quem são universitários, reedições,
Há 85 anos Pagu lançava que redescobriu Pagu
nos anos 1980. Até então,
entre expressionista e
cubista, certamente é
mercadoria de carne, aliás
descartável. Nem noivas
filmes, programas de
teatro e TV. Tornou-se
Parque industrial, “romance tinha-se vaga noção de de vanguarda. Visa à nem prostitutas, não são nome de escolas, de

proletário” agora reeditado


uma Pagu associada tanto síntese, apoiando-se sobre elegíveis para casamento centros culturais e de
aos fastos modernistas elipses e cortes súbitos, nem exigem pagamento institutos de pesquisa,
quanto à saga da esquerda. acentuando a velocidade – portanto, são altamente bem como da revista
Walnice Nogueira Galvão A edição reproduz do discurso que não convenientes, até por consagrada a estudos de
a capa original, só perde tempo em saírem barato. Nesse gênero Cadernos de Pagu,
mudando a cor. O leitor explicações ou transições. mesmo ano de 1933, Noel da Unicamp. E já ganhou
recebe o impacto de Um pouco tendendo ao Rosa compôs o samba canção e samba-enredo.
uma composição de que então se chamava Três apitos, em que fala Ícone do feminismo,
estética modernista a “prosa telegráfica”. das operárias de fábrica esta transgressora
mais não poder, com A narrativa – que se e desse assédio, só que é considerada uma
manchas assimétricas e passa no Brás, à época mediante idealização precursora. É de sua
agenciamento dos dizeres reduto operário de benigna e sentimental, autoria nosso mais
em tipos diferentes. Linhas imigrantes italianos não predadora, do dono importante romance
oblíquas esboçam arestas em São Paulo -, ao do automóvel. proletário, e a seu lado
que se interseccionam, encaminhar-se num Pagu, a de múltiplos quase todos os demais
recortes deixam entrever crescendo para a eclosão talentos, tem sido dessa voga – ressalvadas
a silhueta do gueto de uma greve, traz progressivamente honrosas exceções
concentracionário da uma evidência logo de revelada, à medida que se –, conservadores
fábrica. E se a capa original saída: trata-se de um publicam mais inéditos: e ortodoxos, nada
se valia do preto e branco, romance de mulheres. memórias, poemas, contos vanguardistas,
agora a cor vermelha com São moças de vários policiais, desenhos e empalidecem. Seu
sua semântica predomina. tipos e instâncias da vida croquis, charges, tirinhas, romance, comunista
Assina-a o renomado social, embora unidas sempre mordazes, até e feminista ao mesmo
artista plástico Lívio pela classe: pertencem ferozes na demolição da tempo, ergue-se ímpar na
Abramo, um dos grandes todas ao proletariado. burguesia. No tablóide literatura brasileira.
da gravura. Há poucas exceções, O homem do povo, hoje
O leitor ganha dois como aquela que subiu em edição fac-similar,
alentados estudos pinçados na vida casando-se com que dirigiu com Oswald
nas traduções para o um homem de posses; ou de Andrade, manteve
francês e para o inglês, aquela que chegou aos uma coluna chamada A
escritos por especialistas abismos da prostituição mulher do povo. Satirizava
no modernismo brasileiro: mais desamparada, por ter o contingente frívolo ou
ademais, entusiastas de perdido o emprego e não ocioso do gênero feminino
Pagu, tal como Augusto ter saúde para enfrentar e desenhava uma história
de Campos. Antoine a extenuante jornada de em quadrinhos cuja
Chareyre fornece notas de trabalho. No mais, são protagonista se chamava
rodapé esclarecedoras para operárias mais politizadas Kabeluda (um dos
estrangeiros e nativos. ou mais alienadas, mais atributos de Pagu).
Kenneth David Jackson, decididas a enfrentar as Mais tarde, jornalista
de Yale, há pouco deu por agruras da vida ou mais cultural de excelente
concluída a compilação de desesperadas. O dia a dia nível, forneceria em seus ROMANCE
toda a obra jornalística de das jovens trabalhadoras é artigos pequenos trechos
Pagu, que rendeu quatro mostrado em suas facetas que ia traduzindo de Parque industrial
volumes. Faz falta um de tarefas, vida social, autores bem difíceis como Autora - Mara Lobo (Pagu)
histórico das edições, e, amores, militância. A Beckett, Ionesco, Artaud. Editora - Editorial Linha a Linha
se Antoine Chareyre o imersão de Pagu em sua Permaneceria Páginas - 192
esclarece, ainda assim própria proletarização intransigente até o fim na Preço - R$ 55
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

História universal dos abusos PRATELEIRA


Talvez uma das realizar o mesmo tipo No conto minúsculo estranhar totalmente DOSTOIÉVSKI NA RUA DO OUVIDOR
demandas mais de violência conosco”. que dá nome ao livro, há o contista magistral Nome forte dos estudos em literatura russa no
frequentes que hoje O segundo livro de descrição de um pesadelo aqui presente – ainda Brasil, Bruno Gomide (USP) analisa a circulação
temos nas artes é a de contos de Luís Henrique infantil, em que um que o material de A desta produção no Brasil e sua recepção pela
entender o humano pela Pellanda, A fada sem criança conversa com fada sem cabeça seja dark, crítica literária durante a Era Vargas, com foco
medida do animalesco. cabeça, perfila homens uma aparição noturna, perturbador e quase no Estado Novo (1937-1945). Gomide analisa as
Ou mesmo do monstro. e mulheres com suas que surge sem cabeça. O barra-pesada, bem disputas em torno dos escritores e suas obras,
É do que trata, por potencialidades de vítima horror ganha ainda mais distante do que se poderia inseridas em um contexto político autoritário.
exemplo, a leva de e carrasco, criando força quando é travado esperar de uma crônica A obra é uma continuidade de seu livro anterior,
filmes recentes com o uma espécie de história o seguinte diálogo sobre de jornal. Mas como o Da estepe à caatinga, que analisa a literatura
rótulo de pós-terror. universal do abuso. o porquê do membro autor lançou mão de russa no Brasil de fins do século XIX a 1930.
Obras com roteiro de Um bestiário, que usa decepado: “Cortaram, ela uma epígrafe de O médico
cunho filosófico, em de forma engenhosa o disse, e ninguém saberia e o monstro, de Stevenson,
que, muitas vezes, o maquinário (violento) explicar com que boca. para o livro, podemos até
elemento susto não vem das fábulas. Em seus Mas a menina insistiu, brincar que o Pellanda
de forças sobrenaturais, contos, os animais quem cortou? E a fada, cronista é o Dr. Jekyll;
mas do perigo que parecem seres dispostos deslizando as mãos por e o contista, o Mr. Hyde
o contato com um a ser abusados. Há sob o travesseiro da filha, (Schneider Carpeggiani). Autor: Bruno Barreto Gomide
semelhante pode gerar. pinguins mortos de forma respondeu: Pergunte Editora: EdUSP
O elogiado livro de misteriosa numa praia, ao seu pai. Disse isso e Páginas: 464
contos do escritor Gustavo há um gato fantasma em chorou, embora ninguém Preço: R$ 64
Pacheco, Alguns humanos, chamas que assombra soubesse dizer com que
nos transformou em um antigo molestador olhos”. E o conto para A CABANA DO PAI TOMÁS
espécimes expostas em de felinos... Os animais aí, nos deixando com Clássico da literatura norteamericana lançado
gabinete de curiosidades. são as vítimas e, nós, os duas ausências: o órgão pouco antes (1852) da Guerra de Secessão
E, como pontuou a humanos, os racionais, decepado que havia se (1861-1865). A partir da história de Tomás,
crítica Laura Erber, em somos os abusadores debulhado em lágrimas homem negro escravizado, o leitor é levado a
texto sobre os contos de deles e de nós mesmos. e a resposta para a razão refletir sobre a imoralidade da escravidão em
Pacheco em nosso site: Mas Pellanda nos faz da demanda “pergunte uma narrativa permeada por valores cristãos.
“A natureza do olhar lembrar em suas histórias ao seu pai”. Há algo tão Foi o livro mais vendido do século XIX, depois
humano sobre os animais que o abuso nem sempre violento nessa passagem, da Bíblia. Esta bela edição conta com posfácio
foi questionada por John é algo claro, de simples que o autor só consegue do pesquisador Danilo Ferreti, além de registros
Berger no belo ensaio desenho, tanto para nos contar por elipse. sobre a repercussão do livro aqui e nos EUA.
Por que olhar os animais?, quem faz quanto para Cronista dos mais CONTOS
escrito nos anos 1970. quem sofre. Existe algo vigorosos em atividade
Berger alertava para o que se perde nessa hoje, Pellanda tem uma A fada sem cabeça
modo violento como tradução, e tal perda é o linearidade e estilo tão Autor - Luís Henrique Pellanda
exibimos os animais, que causa pavor, o que fortes na sua escrita, Editora - Arquipélago
pois, mais cedo ou mais gera fantasmas. O que que os leitores das Páginas - 176
tarde, acabamos por de fato aconteceu? suas crônicas não vão Preço - R$ 39,90 Autora: Harriet Beecher Stowe
Editora: Carambaia
Páginas: 704
Preço: R$ 163,90

Postais do presente Por trás da vacina JANELAS IRREAIS


A obra apresenta um narrador que transita
Ismar Tirelli Neto é voz do coletivo num No início de julho, o correto, mas o que se entre a ficção e o ensaio. Ao reler romances
importante da poesia esforço mais detido Ministério da Saúde evidencia é o processo decisivos na sua formação, toma notas dessas
contemporânea brasileira. em confitos subjetivos, emitiu alerta sobre violento de contenção leituras. O seu propósito é voltar a livros que
Em seu mais novo livro, protagonizados por um a volta de doenças de uma população que o fizeram feliz e procurar traços da pessoa que
Os postais catastróficos, a eu poético em primeira antes tidas como fora obrigada a acatar, foi em outros tempos. O diário se expande
referência a que o título pessoa. A este eu, erradicadas, o sarampo sem preparação prévia, continuamente e termina por revelar bem mais
se anuncia é o poema marcado pelo trânsito e a poliomielite. a determinação do que as memórias de um leitor.
como emissário de um nas ruínas do presente, Especialistas afirmam governo. Sevcenko, um
presente complexo. Os cabe apenas entregar-se que a negligência de dos grandes historiadores
versos não surgem como ao exercício da perfomance pais e responsáveis que tivemos, busca
espaço de cura para o “inútil” que é escrever passa pelo sucesso na materialidade das
real, mas antes espaços um poema: inútil por não da obrigatoriedade motivações (o verniz
de aprofundamento da ser prático, performático dessas vacinas. O de modernidade e a
percepção sobre o que porque calcado no esforço livro A revolta da vacina higienização do centro Autor: Felipe Charbel
é visto. A poesia – ou de revelar, na observação, resgata a história da do Rio) os principais Editora: Relicário
melhor, toda a literatura o que é existir na vacinação compulsória motores desse processo Páginas: 190
– não dá nada em troca catástrofe (Igor Gomes). e da reação da ambíguo (I.G). Preço: R$ 38
a quem se liga a ela; população no Rio de
antes é possibilidade Janeiro. Foi o último LEONA, A FILHA DO SILÊNCIO
de olhar melhor. O motim urbano do História da tradição oral de Moçambique, aqui
exercício da visão, país. No início do publicadas com aquarelas de Luís Cardoso.
na obra, surge como século XX, tanto a Em um lugar encantado, vivem o Leão, a Leoa
“ação contemplativa”, elite quanto os estratos e sua filha, Leona. Bela e encantadora, Leona
posto que é pelos olhos menos favorecidos é triste e há muito tempo que não fala nada,
que triam de forma não se opunham à nem ri. Um dia, seus pais viajam para um reino
participativa o que ocorre obrigatoriedade. distante e, ao retornarem, trazem um vestido
no coletivo. É quase, Se nos lembra da de noiva e decretam: aquele que fizer Leona
arrisco dizer, como na necessidade das falar, a levará ao altar. O que ninguém sabe é
sequência de Persona, vacinas, por outro nos que Leona já está apaixonada.
o filme de Bergman, expõe a arbitrariedade
em que a protagonista do processo: em 1904,
Elisabeth Vogler, já o sanitarista Oswaldo
emudecida, vê na TV o POESIA Cruz e o prefeito da HISTÓRIA
horror do mundo. Mas época, Pereira Passos,
ao invés de se calar ou Os postais catastróficos usavam a cruzada A revolta da vacina
se abrir mais espaço Autor- Ismar Tirelli Neto contra a varíola como Autora - Nicolau Sevcenko Autor: Marcelo Panguana
para questões da ordem Editora - 7 Letras sintoma de inclusão Editora - Editora Unesp Editora: Kapulana
do social, o poema Páginas - 76 na modernidade. Páginas - 134 Páginas: 28
revela o processamento Preço - R$ 34 Isso não deixa de ser Preço - R$ 28 Preço: R$ 39,90
30
PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

RESENHAS
BONUCCELLI / DIVULGAÇÃO

Cacaso e que visa tratar


como literárias todas as
novas formas de poesia
surgidas nos sufocantes
anos 1970, ele exalta
o trabalho pensado da
língua em Cabral. Mas
não perde de vista a
presença de qualidade
na referida produção:
ressalta a importância
de Ana Cristina Cesar,
Chacal e Cacaso por seu
trabalho com a linguagem.
Se pode incomodar a
escassez de ensaios
mais profundos sobre a
produção contemporânea
e o tom que é, em alguns
casos, esquemático; tal
característica pode ser
entendida pela ausência
nesta produção de uma
contribuição própria ao
repertório da língua.
O tributo à língua é
reforçado ao se falar de
Cabral e Drummond. Pela
presença de uma coetânea
destes que se revela a
ideia dos Percursos: Cecília
Meireles. Não há análise
do conhecido motivo
marinho em sua poesia,
mas das viagens à Índia;
não fala do que a poesia
de Cecília alcança, mas do

Pela necessidade O caminho é individual,


mas o ganho é coletivo
em Percursos da poesia
que os usos do português
estão na pauta desde o
decreto de 1758, emitido
ou da pujança do meio
ambiente, mas por ser
o espaço de tráfego da
que dela escapa à sombra.
Ora, Cecília não nos lega
um trabalho de linguagem

de nos determos
brasileira, obra de ensaios pelo Marquês de Pombal vergonha da escravidão, que tenha marcado lugar
recém-lançada pelo para instaurar, não de um mar de chegada, e no cânone. Mas pontua a
poeta e crítico literário forma pacífica, o idioma não de ida. Não é o mar de arte como naufrágio, como

nas palavras
Antonio Carlos Secchin, europeu como único. Camões, aberto ao mundo algo exilado das categorias
integrante da Academia Do uso criativo e e prenhe de imaginação, de conforto e proteção.
Brasileira de Letras. Reúne incontornável da sintaxe que se constitui como Esse exílio não é o mesmo
textos produzidos entre lusa em Gonçalves Dias elemento central no que marca, também, o
Em ensaios, “imortal” pensa 1996 e 2014, com alguns
inéditos. As escolhas
às primeiras incursões
nas coloquialidades
imaginário lusitano; mas
o de sua volta, sobre a
ofício crítico, que deve se
pautar pela necessidade
aspectos da poesia brasileira a do livro são anunciadas
como “pessoais”, já que
feitas por Álvares de
Azevedo, passando pela
qual Os Lusíadas se debruça
rapidamente e que, no
de busca constante e de
desconforto para com o
partir de escolhas pessoais se detêm, várias vezes, necessária discussão da Brasil, foi caminho de ímpeto domesticante?
em autores ou nuances forma no Parnasianismo tantas opressões. Concorde-se ou não
que passam distante das e a desembocar, O olhar sobre a com Antonio Carlos
Igor Gomes
discussões mais frequentes posteriormente, na linguagem nos leva a Secchin, correr com ele
do campo literário. Porém, língua modernista e já outro entendimento, estes seus individuais
é na afinidade eletiva brasileira em Raul Bopp o segundo, sobre os Percursos é, para os
com certo período ou ou, posteriomente, Percursos de Secchin: a leitores, interessante
produção que Secchin Cabral, as veredas de defesa do repertório da exercício de reflexão
marca pé de seu olhar Secchin proclamam palavra poética em nossa sobre as dinâmicas da
sobre o objeto literário uma discussão sobre as literatura. Já na primeira palavra poética de hoje,
e, na construção desse principais mutações da página, o autor rejeita as o que se constitui como
olhar, possibilita reflexões. língua na nossa poesia. justificações que visam ganho por nos levar a
Explico-me com base Não é de graça, portanto, alçar ao literário apenas refletir detidamente no
em momentos do livro. que a obra começa com uma produção socialmente presente tão disputado
O que primeiro salta aos Tomás Antonio Gonzaga engajada, sem perder por inúmeras e
olhos nestes Percursos é a e uma discussão sobre a de vista a esterilidade importantes dicções.
valorização de autores e ambiguidade de sua lírica de formalismos e
produções do Romantismo romântica (da relação entre estruturalismos tomados
e do Modernismo. Nisto, o homem e seu objeto apenas por si. Mais vale
são particularmente de desejo, a mulher): o que o objeto diga qual o
interessantes os ensaios poeta viveu no período melhor método de estudo
sobre as aparições de pombalino e o temário e o de Secchin prima
Portugal e dos motivos romântico se desdobraria pela união de ambos.
marinhos na poesia em inúmeros momentos É o que fica visível no
romântica. A marcação da de nossa literatura olhar sobre a poesia
ambiguidade que existe na posterior. Também o marginal, completamente
rejeição social do país luso motivo marinho nos satélite na obra, mas
e a preocupação com a auxilia a entender a ideia que se insinua quando
manutenção do português de nação por meio de o ensaísta se detém em
castiço na produção citada nossa literatura: a busca Cabral (o “assassinado”
nos ajudam a entender pela nossa identidade por excelência daquele
os processos de produção é vista na valorização período, ainda que de
da nossa nação, essa dos motivos naturais tão forma ignorante) e no ENSAIO
comunidade imaginada, comuns na poesia do panorama que traça das
porque operam, como primeiro momento do poéticas contemporâneas. Percursos da poesia brasileira
mostra o antropólogo Romantismo. Exclui-se o Ao rejeitar a ideia da Autor - Antonio Carlos Secchin
Benedict Anderson, em mar, na visão de Secchin, “ditadura do novo”, que Editora - Grupo Autêntica
cima da materialidade da porque ele é símbolo abre espaço para a lógica Páginas - 368
linguagem. Lembremos não da tropicalidade do Poemão cunhada por Preço - R$ 59,80
31
PERNAMBUCO, SETEMBRO 2018

Clarice Lispector continua a mesma PRATELEIRA


Era 1969 e fazia dois que ser? Quem sou cronológicos e outros traz colaborações com SETE CONTRA TEBAS
anos que Clarice realmente? E eu sou?” incompreensíveis, como vários veículos e muitas Obra seminal do teatro traduzida do grego pelo
Lispector escrevia para Ainda que as perguntas a exclusão de último delas inéditas em livro. helenista Trajano Vieira. O pano de fundo da
o JB como cronista. “quem sou eu? Como registro como colunista A terceira reúne os tragédia é a maldição caída sobre a família
Clarice aí já era um dos sou” façam todo sentido do Jornal do Brasil, em 1973. textos de Não esquecer. de Édipo. Após a desgraça deste, ocorre uma
nomes fundamentais dentro do seu particular Ainda que pesem No prefácio, Marina guerra entre seus filhos, Etéocles e Polinices,
da literatura brasileira. universo, Clarice não equívocos, essa reunião Colasanti conta como para herdar o trono. O primeiro é o protagonista
Havia publicado alguns se afastou do que se das crônicas completas Clarice pedia que jamais da narrativa, que precisa se defender do
dos seus grandes contos esperaria dela ao ser de Clarice faz parte mexessem em sua exército de Polinices e dos seis generais que
e A paixão segundo GH cronista de publicações do necessário projeto pontuação. “É minha estão com ele. O rei Etéocles, protagonista
(1964), talvez sua obra- como o JB e A última da editora Rocco de respiração”. Recadinho da peça, procura acalmar os cidadãos em
prima em termos de hora. É o que vemos na revitalizar o legado da mais “Clarice”, pânico e organizar a defesa da cidade.
narrativa longa. Mesmo edição Todas as crônicas, autora para os leitores impossível: nas crônicas
com a consagração publicadas pela Rocco. brasileiros num período ou nas ficções, lemos
veio a dúvida do que Algumas vezes o de ascensão internacional a incrível escritora e
ela estaria fazendo ao que era material de do seu nome. Primeiro observadora atenta
colaborar com o veículo crônica e o que era foram os contos reunidos, de sempre (S.C.).
e como essa colaboração material de conto ou depois a bela edição pelos
a influenciaria. Teria o romance acabavam 40 anos de A hora da estrela Autor: Ésquilo
jornal deixado Clarice se confundindo. e agora os escritos de Editora: Editora 34
menos Clarice? Numa “Chegava a aproveitar jornal. Com o peso dos Páginas: 152
crônica desse ano, ela fragmentos dos textos problemas, ainda assim, Preço: R$ 43
chegou a comentar as veiculados na imprensa a publicação serve para
demandas que sentia: em seus romances, atualizar a obra de Clarice SPARTAKUS
“Pessoas que são em uma prática tão no mercado, visto que lhe Trata-se de apaixonada fenomenologia da
leitoras de meus livros constante de reuso”, dá nova roupagem, uma revolta escrita pelo ensaísta italiano Furio Jesi
parecem ter receio de que observa o pesquisador que faz jus à sua obra e (1941-1980), um dos autores favoritos
eu, por estar escrevendo e organizador do que chama atenção de de Giorgio Agamben. Se a revolução comporta
em jornal, faça o que se volume, Pedro Karp leitores. O livro não é uma estratégia a longo prazo, e se inscreve
chama de concessões. E Vasquez, no posfácio. definitivo como sugere nos processos históricos, a revolta implica
muitas disseram: ‘Seja É justamente aí que o título, mas agencia uma ​imediata​suspensão do tempo histórico.
você mesma’. Um dia reside um dos problemas novamente a autora, o Assim, revolta e revolução se contrapõem.
desses, ao ouvir um ‘seja da edição: a tentativa que é bastante relevante. Jesi aborda o conceito de “revolta” no
você mesma’, de repente de prender os textos A edição é dividida em CRÔNICA pensamento de Rosa Luxemburgo,
senti-me entre perplexa jornalísticos de Clarice três partes. A primeira Dostoiévski, Brecht, Eliade e Thomas Mann.
e desamparada. É que num gênero só, quando referente à sua atuação no Todas as crônicas
também de repente me na mesma coluna JB, muitas delas que não Autora - Clarice Lispector
vieram então perguntas ela borrava a crônica haviam sido publicadas Editora - Rocco
terríveis: quem sou e o conto. Também na seleta A descoberta Páginas - 704
eu? Como sou? O há pequenos erros do mundo. A segunda Preço - R$ 89,90

Autor: Furio Jesi


Editora: n-1 edições

Entre países Reflexos coloniais Páginas: 224


Preço: R$ 55

A PÁTRIA EDUCADORA EM COLAPSO


O romance A uruguaia, emocional e profissional Por conta da sua lágrimas na leitura Renato Janine Ribeiro conta os bastidores
do escritor argentino de um escritor de 40 passagem na dessa obra, por me fazer de sua experiência no Ministério da Educação
Pedro Mairal, foi best- e poucos anos é boba Flip, tivemos a reviver os momentos no governo Dilma Rousseff e faz um relato das
seller em seu país natal e descamba para um chance de ter dois mais amargos do meu esferas do poder e de sua convivência com a
e acabou fazendo sem-fim de clichês. A livros da escritora percurso. (…) Estávamos presidenta. Também reflete sobre as causas
carreira internacional. uruguaia é um passatempo moçambicana Isabela eu e tu, cada um no políticas da derrocada do governo petista e a
É compreensível. divertido, mas não é Figueiredo lançados seu lado da barricada, situação educacional no Brasil, a qual, para ele,
Mairal tem um texto muito diferente de uma no Brasil num mesmo quando o colonialismo reflete séculos de “meticuloso planejamento
dinâmico, que pega coluna sobre os conflitos ano. Primeiro, foi aconteceu. Tu, branca, da desigualdade e da injustiça no país”.
facilmente o leitor com dos homens brancos A gorda. Agora, esse filha de um colono
suas frases de efeito. e de classe média que Caderno de memórias racista e eu, negra,
Há ainda no romance você encontra em coloniais. Um feito filha de um colonizado,
precisas descrições do revistas com modelos importante, já que se também racista.
estranhamento entre a sensuais na capa. Uma trata de um dos nomes Refletindo-nos uma na
Argentina e o Uruguai, pena, porque Mairal mais consagrados hoje outra num espelho de
países de mesma língua, promete mais. (S.C.) da língua portuguesa. preconceitos” (S.C.). Autor: Renato Janine Ribeiro
tão próximos, mas de Caderno de memórias Editora: Três Estrelas
culturas tão diversas coloniais é um pequeno Páginas: 352
e vivendo momentos romance devastador. Preço: R$ 50
político-sociais bastante Um acerto de contas
díspares. A cena, em tanto com a figura O TIRADENTES
particular, em que paterna quanto com Calcada em estética literária e investigação
o narrador relata os a herança colonial na histórica, a obra reconstrói a vida do alferes
detalhes da sua ida África. O racismo a Joaquim José da Silva Xavier. Foi mascate,
para Montevidéu, para que assiste a garota lidou com a burocracia estatal quando era
salvar um pagamento branca e a figura do baixo escalão dos oficiais e, em paralelo,
que recebe do exterior opressora do pai em extraía dentes. Até chegar na Conjuração
de ser corroído pelos casa são tratados Mineira, a obra descortina o século XVII
juros da era Kirchner, é de forma paralela, em Minas Gerais.
exemplar: “Se os dólares num registro que não
fossem transferidos para deixa o leitor inerte.
a Argentina, o banco os A edição da Todavia
transformaria em pesos ROMANCE conta com prefácio da ROMANCE
pelo câmbio oficial e eu moçambicana Paulina
teria de pagar imposto A uruguaia Chiziane, que dá uma Caderno de memórias coloniais
sobre os rendimentos”. Autor - Pedro Mairal boa medida ao espanto Autora - Isabela Figueiredo Autor: Lucas Figueiredo
No entanto, os pontos Editora - Todavia que a narrativa de Editora - Todavia Editora: Companhia das Letras
fortes do livro param Páginas - 128 Isabela motiva: Páginas - 184 Páginas: 556
por aí. A trama de crise Preço - R$ 44,90 “Caíram-me muitas Preço - R$ 49,90 Preço: R$ 79,90

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