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vista de cima, por assim dizer - tão moralmente sem signiftcação quanto o
universo corpuscular de Newton.
neuroses, ela nunca teria atraído a atenção dos intelectuais.! Foi a aplicação
das noções psicanalíticas à vida normal que sugeriu primeiramente que as
idéias de Freud podiam exigir uma revisão em nossa auto-imagem. Pois
essa aplicação cinde a conexão entre a distinção platônica razão-paixão e a
distinção consciente-inconsciente. Ela substituí a imagem tradicional de um
"intelecto" lutando contra uma multidão de brutos irracionais pela imagem
das transações sofisticadas entre dois ou mais "intelectos".
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Ver essas três (ou mais) estórias como paralelas, como explicações alter-
nativas de uma situação confusa, é parte do que Rieff chama "a revisão
igualitária de Freud da idéia tradicional de uma natureza humana hierárqui-
ca".12 Adotar uma auto-imagem que incorpore essa revisão igualitária é pen-
sar que não há uma resposta única e correta para a questão "O que me acon-
teceu no passado?" É também pensar que não há nenhuma resposta certa
para a questão "Que tipo de pessoa eu sou agora?" É reconhecer que a esco-
lha de um vocabulário no qual descrever seja a infância de alguém, seja seu
caráter, não pode ser feita inspecionando alguma coleção de "fatos neutros"
(por exemplo, um video tape completo de sua história de vida). É abandonar
o anseio por purificação, por uma versão desnuda de si mesmo, e desenvol-
ver o que Rie:ff chama "tolerância às ambigüidades ... a chave para o que
Freud considerou a mais dificil de todas as realizações pessoais: um cará-
ter genuinamente estável em uma época instável". 13 Segundo a visão que
eu estou oferecendo, Freud nos deu uma nova técnica para alcançar um
caráter genuinamente estável: a técnica de ouvir com simpatia às nossas
próprias tendências à instabilidade, tratando-as como maneiras altern"1ti-
vas de dar sentido ao passado, maneiras que tem tanto direito à nossa aten-
ção quanto as crenças e desejos familiares e acessíveis à introspecção. Sua
visão mecanicista do self nos deu um vocabulário que permite descrever
todas as várias partes da alma, o consciente assim como o inconsciente,
em termos homogêneos: como candidatos igualmente plausíveis para "o
self verdadeiro".
Mas dizer que todas as partes da alma são candidatos igualmente plausí-
veis é colocar em descrédito tanto a idéia de um "selfverdadeiro", quanto a
idéia da "estória verdadeira sobre como as coisas são". É olhar o sei! escla-
recido, liberado - o self que finalmente conseguiu dar forma a si mesmo -
como um self que abandonou a necessidade de "ver as coisas fixamente, a
necessidade de vê-Ias integralmente", de penetrar além das aparências
mutáveis em uma realidade constante. A maturidade consistirá, de acordo
com essa visão, antes em uma capacidade de buscar novas redescrições de
seu próprio passado - uma capacidade de assumir uma visão nominalista,
irônica, de si mesmo. Transformando as partes platônicas da alma em par-
ceiros conversacionais umas para as outras, Freud fez pela variedade de
interpretações do passado de cada pessoa o que a abordagem baconiana da
ciência e da filosofia fez pela variedade de descrições do universo como um
todo. Ele nos fez ver narrativas alternativas e vocabulários alternativos como
instrumentos de mudança, ao invés de como candidatos para o retratar cor-
reto de como as coisas são em si mesmas.
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Purificação e auto-ampliação
Uma tal tentativa pode tomar uma de duas formas antitéticas: a busca
por pureza ou a busca por auto-ampliação. A vida ascética recomendada por
Platão e criticada por Nietzsche é o paradigma da primeira forma. A vida
"estética" criticada por Kierkegaard é o paradigma da segunda. O desejo de
purificar a si mesmo é o desejo de minimizar, de expurgar tudo o que é
acidental, de querer uma única coisa, de intensificar, de se tomar um ser
mais simples e mais transparente. O desejo de ampliar a si mesmo é o desejo
de abarcar mais e mais possibilidades, de estar constantemente aprendendo,
de se entregar inteiramente à curiosidade, de acabar tendo considerado to-
das as possibilidades do passado e do futuro. Essa era a meta compartilhada
por, por exemplo, Sade, Byron e Hegel. 17 Segundo o ponto de vista que eu
estou apresentando, Freud é um apóstolo dessa vida estética, a vida da curio-
sidade infinda, a vida que procura expandir seus próprios limites, ao invés
de tentar encontrar seu centro.
Para aqueles que rejeitam as opções oferecidas por Sade e Byron (ex-
perimentação sexuaf engajamento político), a principal técnica da auto-
ampliação será a de Hegel: o enriquecimento da linguagem. Se verá a his-
tória tanto da raça quanto a sua própria história como o desenvolvimento
de modos mais ricos e mais plenos de formular seus desejos e esperanças,
e então tornar esses próprios desejos e esperanças - e, por conseguinte, a
si mesmo - mais ricos e mais plenos. Eu chamarei esse desenvolvimento
de "aquisição de novos vocabulários de reflexão moral". Por "um vocabu-
lário de reflexão moral" eu quero dizer um conjunto de termos no qual se
compara a si mesmo com outros seres humanos. Tais vocabulários contêm
termos como magnânimo, um verdadeiro cristão, decente, covarde, temente
a Deus, hipócrita, auto-enganador, epiceno, autodestrutivo, frio, um ro-
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cimento a descoberta dos materiais fortuitos a partir dos quais nós devemos
construir a nós mesmos, ao invés da descoberta dos princípios aos quais nós
precisamos nos conformar. Ele, conseqüentemente, fez com que o desejo
por purificação parecesse mais auto-enganador, e a busca por auto-amplia-
ção mais promissora.
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Freud e a reflexão moral
Essa avaliação da filosofia moderna pode ser resmnida dizendo que, quan-
do a ciência moderna tornou dificil pensar no homem como um tipo natural,
a filosofia respondeu inventando um tipo não-natural. Talvez fosse possível
predizer que a seqüência de descrições desse self que começa com Descar-
tes terminaria com Sartre: o self como um espaço vazio no meio de uma
máquina - um être-pour-soi, um "buraco no ser". Em contraste, Freud colo-
ca-se, junto com Hegel e contra Kant, em uma atitude de exuberância
nietzscheana, ao invés da de embaraço sartreano. Ele nos oferece um modo
de reinventar a busca por ampliação e, por conseguinte, reinventa a
moralidade do caráter. Eu posso resumir minha avaliação de como ele faz
isso em cinco pontos:
1. Enquanto todo mundo, desde Platão até Kant, sempre identificou nos-
so self central, nossa consciência, a parte autoritária de nós, que estabelece
padrões, com verdades universais, princípios gerais e uma natureza humana
comum, Freud transformou a consciência em apenas mais uma parte, não
particularmente central, de uma máquina homogênea mais ampla. Ele iden-
tificou o sentido do dever com a internalização de uma hoste de episódios
idiossincráticos acidentais. Segundo sua avaliação, nosso sentido da obri-
gação moral não é uma questão de idéias gerais contempladas pelo intelec-
to, mas antes de traços de encontros entre pessoas particulares e nossos ór-
gãos corporais. Ele viu a voz da consciência não como a voz da parte da
alma que lida com generalidades, enquanto oposta à parte que lida com par-
ticularidades, mas antes como a memória (usualmente distorcida) de certos
eventos muito particulares.
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não será mais uma posição inteligível. Mais genericamente, se nós levarmos
Freud a sério, não teremos de escolher entre um conceito aristotélico funcio-
nal de humanidade, um que venha a prover uma orientação moral, e a "terrí-
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velliberdade" sartreana. Pois a concepção sartreana do self como liberdade
pura será vista como sendo meramente o último estertor da tradição
aristotélica - uma expressão autodestrutiva da determinação cartesiana de
encontrar algo não-mecânico no centro da máquina, mesmo que seja apenas
um "buraco no ser" 29 Nós não necessitamos de uma imagem do "selfhuma-
no" para termos uma moralidade - nem de um enc1ave não-mecânico ou de
um vazio sem significado no qual um tal enclave deveria ter estado.
Parece um ponto a meu favor que MacIntyre não responda à questão
sobre se é "racionalmente justificável {pace Sartre} conceber cada vida
humana como uma unidade" (p. 189) dizendo (com Aristóteles) "sim, por-
que a função do homem é ... " Ao contrário, ele nos oferece "um conceito de
um self cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que conecta o nas-
cer com o viver e o morrer, assim como o começo da narrativa com o meio e
o fim" (p. 191).30 MacIntyre tacitamente abandona a demanda aristotélica
de que os temas de cada uma dessas narrativas sej am mais ou menos os
mesmos para cada membro de uma dada espécie, e de que eles permaneçam
mais ou menos constantes através da história das espécies. Ele parece satis-
feito em argumentar que, para que exibamos a virtude da "integridade ou
constância", precisamos ver nossas vidas em termos de tais narrativas. Em-
penhar-se por alcançar essa virtude é apenas o que eu venho chamando de
"a busca por perfeição", e eu concordo que essa busca requer a construção
de tais narrativas. Mas se nós abandonamos a demanda aristotélica, e nos
contentamos com narrativas ajustadas ad hoc às contingências da vida indi-
vidual, então podemos dar as boas vindas a uma cultura baconiana domina-
da pelo "Esteta Rico, o Administrador e o Terapeuta" - não necessariamen-
te como o objetivo final do progresso humano, mas ao menos como o apri-
moramento considerável frente a culturas dominadas, por exemplo, pelos
Guerreiros ou pelos Sacerdotes.
Em minha avaliação de Freud, sua obra nos torna aptos a construir narra-
tivas mais ricas e mais plausíveis desse tipo ad hoc - mais plausíveis porque
elas cobrirão todas as ações levadas a cabo no curso da vida de alguém,
mesmo as ações tolas, cruéis e auto-destrutivas. Mais genericamente, Freud
nos ajudou a ver que a tentativa de compor uma tal narrativa - uma que não
minimiza nem a contingência, nem a importância decisiva da entrada de
dados na máquina que cada um de nós é - precisa tomar o lugar de uma
tentativa de encontrar a função comum de todas as máquinas como essas. Se
se leva a sério a advertência de Freud, encontra-se narrativas psicológicas
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sem heróis ou heroínas. Pois nem a liberdade sartreana, nem a vontade, nem
os instintos, nem a intemalização de uma cultura, nem qualquer outra coisa,
desempenhará um papel de "verdadeiro self", Ao contrário, a estória da
máquina será contada enquanto máquina, sem escolher um conjunto parti-
cular de rodas e engrenagens como protagonistas. Uma tal estória pode nos
ajudar, se alguma coisa puder, a interromper o pêndulo da oscilação entre as
tentativas aristotélicas de descobrir nossa essência e as tentativas sartreanas
de auto criação de novo.
Essa sugestão de que nossas estórias sobre nós mesmos devem ser estó-
rias de mecanismos sem centro - de um determinado processar de dados
contingentes - só parecerá retirar de nós a dignidade humana se nós pensar-
mos que necessitamos de razões para viver romanticamente, ou para tratar
os outros decentemente, ou para que nós mesmos sejamos tratados decente-
mente. Questões como "Por que eu deveria ter esperança?", ou "Por que eu
não deveria usar os outros como meios?", ou "Por que os meus torturadores
não deveriam me usar como um meio?" são questões que só podem ser
respondidas pelas metanarrativas filosóficas que nos contam sobre um mun-
do não-mecânico e sobre um self não-mecânico - sobre lUll mundo e um
self que possuem centros, centros que são fontes de autoridade. Tais ques-
tões são formuladas para se adequar a tais respostas. Assim, se nós renun-
ciarmos a tais respostas, a tais metanarrativas, e retomarmos às narrativas
sobre as vidas factuais e possíveis dos indivíduos, teremos de renunciar às
necessidades que a metafisica e a filosofia moral tentam satisfazer. Nós tere-
mos de nos confinar a questões como: "Se eu fizer isso agora ao invés da-
quilo, que estória eu contarei para mim mesmo depois?". Nós teremos de
abjurar questões como: "Há algo profundo no interior de meu torturador -
sua racionalidade -, »ara o qual eu possa apelar?"
A tradição filosófica sugere que há, de fato, algo desse tipo, Ela tende
a tomar como certo que nossa dignidade depende da existência de algo
que pode ser opostoà "vontade arbitrária". Essa coisa, usualmente chama-
da "razão", é requerida para dar "autoridade" às premissas primeiras de
nossos silogismos práticos. Uma tal visão da dignidade humana é precisa-
mente o que Freud chamou "a visão pia do Universo". Ele pensava que as
oposições tradicionais entre razão, vontade e emoção - as oposições em
termos das quais Maclntyre constrói sua história da ética - devem ser des-
cartadas em favor de distinções entre várias regiões de um mecanismo
homogêneo, regiões que incorporam uma pluralidade de pessoas (isto é,
de sistemas incompatíveis de crenças e desejos). Desse modo, a única ver-
são da dignidade humana que Freud nos deixa preservar é a que o próprio
Maclntyre oferece: a capacidade de cada um de nós de tecer uma auto-
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imagem coerente para nós mesmos e, então, de usá-Ia para remodelar nos-
so comportamento. Essa capacidade substitui o projeto filosófico tradicio-
nal de encontrar uma auto-imagem coerente que se ajuste à espécie inteira
à qual nós pertencemos.
Por outro lado, Freud não faz nada para diminuir um sentido de solidarie-
dade humana que, ao invés de abranger a espécie inteira, restringe-se a mo-
vimentos comunais particulares tais como a ciência moderna, o liberalismo
burguês ou o romance europeu. Mesmo se nós evitarmos descrever esses
movimentos em termos denoções metafisicas como "a busca pela verdade",
ou "a realização da liberdade humana", ou a "conquista da auto-consciên-
cia", as histórias desses movimentos continuarão acessíveis como narrati-
vas mais abrangentes no interior das quais nós sempre podemos alocar as
narrativas de nossas vidas individuais. Freud bane as metanarrativas filosó-
ficas, mas ele não tem nada contra narrativas históricas ordinárias. Tais nar-
rativas contam, por exemplo, como nós passamo de Galileu para Gell-Man,
ou como passamos das instituições que defendiam mercadores contra os
senhores feudais para instituições que defendem o trabalho contra o capital,
ou como passamos de Dom Quixote para Fogo Pálido.
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NOTAS
1. The Standar Edition ofthe Complete Psychological Works of Sigmund Freud, traduzida
para
o inglês por James Strachey (London: Hogarth Press, 1966), 16:284-285. Referências futu-
ras a Freud serão todas dessa edição, e serão inseridas no texto com a abreviação S.E.
2. Pode haver uma coisa tal como uma "pura" substância aristotélica - uma que realiza
melhor
sua essência porque está menos sujeita a mudanças acidentais irrelevantes. (De fato,
Aristóteles dispõe substãncias em uma hierarquia de acordo com seu grau de materialidade,
com seu grau de suscetibilidade a tais mudanças - uma hierarquia com a "puta efetividade"
no topo.) Mas não há nada como uma máquina purificada, mesmo que possa haver outra
máquina qde execute o mesmo propósito mais eficientemente. Máquinas não possuem ne-
nhum centro ao qual se possa reduzi-Ias; versões remodeladas de máquinas são máquinas
diferentes, máquinas para fazer ou produzir coisas diferentes, não versões mais perfeitas da
mesma máquina.
1. O modelo copernicano dos céus não poderia ter sido aceito sem que se aceitasse também
a mecânica corpuscular de Galileue Descartes. Essa mecânica foi a alavanca que impulsio-
nou a introdução do paradigma newtoniano de explicação científica - um que predizia
eventos sobre a base de uma microestrutura universal homogênea, ao invés de sobre a
base da revelação das diferentes naturezas dos vários tipos naturais. A razão pela qual "a
nova filosofia" colocou tudo em dúvida não foi o fato de todos terem se sentido diminuí-
dos quando o Sol tomou o lugar da Terra, mas o fato de ter se tornado dificil de ver o que,
dado o espaço galileano, poderia significar para o universo possuir um centro. Como se
tornou mais difícil saber como se pareceria a visão do olho de Deus, também ficou mais
difícil acreditar em Deus. Como se tornou mais difícil pensar no modo do senso comum
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dividir o mundo em tipos "naturais" como mais do que uma conveniência prática, ficou
mais difícil dar sentido à distinção aristotélica entre essência e acidente. Assim, a própria
idéia da "natureza" de algo como estabelecendo os padrões que as coisas desse tipo preci-
sam cumprir começa a esvaecer.
4. Em particular ficou difícil ver qual poderia ser a razão de ser do homem - dificil de
preservar
qualquer coisa como o conceito "funcional" de homem de Aristóteles, bem descrito por
Alasdair MacIntyre como segue: "Os argumentos morais, na tradição aristotélica clássica -
seja em sua versão grega, seja em sua versão medieval - envolvem no mínimo um conceito
funcional central, o conceito homem compreendido como possuindo uma natureza essencial
e um propósito ou função essenciais ... Aristóteles toma isso como o ponto de partida para a
investigação ética que estabelece que o relacionamento do 'homem' com o 'bem viver' é
análoga ao relacionamento do 'harpista' com o 'tocar bem. harpa' ... Mas o uso de 'homem'
como um conceito funcional é muito mais velho do que Aristóteles e não deriva inicialmente
de sua biologia metafísica. Ele está enraizado nas formas de uma vida social, à qual os
teóricos da tradição clássica dão expressão. Pois de acordo com esta tradição, ser um ho-
mem é cumprir uma série de papéis, cada um dos quais possuindo sua própria razão de ser e
seu próprio propósito: um membro de uma família, um cidadão, um soldado, um filósofo,
um servo de Deus. É somente quando o homem é pensado como um indivíduo 'antecedente e
à parte de todos os papéis que 'homem' deixa de ser um conceito funcional". (MacIntyre,
After Virtue {Notre Dame, Ind.: Notre Dame University Press, 1981}, p. 56). Eu levo em
consideração a sugestão. de MacIntyre de que nós precisamos recapturar um tal conceito na
seção final deste ensaio.
4. As convicções dos não-intelectuais de que aquilo sobre o que os intelectuais falam não
importa realmente foi enormemente fortalecida quando os novos intelectuais do Iluminismo
1hes informaram que a última turma de intelectuais - os padres - estava completamente
errada. Uma conseqüência da mecanização da natureza, e da resultante popularidade de uma
atitude pragmática baconiana diante das asserções do conhecimento, foi o cinismo elevado e
a indeferença quanto ás questões discutidas pelos intelectuais. É por isso que temas metafisicos
como "a natureza da realidade" e "o selfverdadeiro" têm menos ressonância e apelo popular
do que as heresias religiosas outrora tiveram, e que questões filosóficas levantadas na pers-
pectiva "positiva" e pós-metaflsica de Comte têm ainda menos. As pessoas sempre acharam
os padres um pouco engraçados, mas também sempre os viram um pouco como homens que
impunham respeito. Elas acharam os idealistas alemães e os positivistas anglo-saxões mera-
mente engraçados. Em contraste, elas levam os psicanalistas a sério o suficiente para tentar
imitá-los, como ocorre com a Análise de Salão e com a popularização da terminologia psica-
nalítica na gíria ("psychobabble").
5. Mesmo se, como Hume pensava, houver um universo possível que venha a consistir unica-
mente de uma impressão sensorial, nós não podemos dar sentido à idéia de um universo que
consiste somente da crença em que, por exemplo, Cesar cruzou o Rubicão. Além disso, não
há nada como um arranjo incoerente de átomos mentais humeanos. Mas há algo como um
conjunto de crenças e desejos tão incoerentes que nós não podemos atribuí-los a um único
self.
6. Philip, Rieff, Freud: The Mind O/lhe Moralist (New York: Harper and Row, 1966), p. 36.
5. "A importância da psicanálise para a psiquiatria nunca teria chamado a atenção do mundo
intelectual para ela ou conquistado para ela um lugar na História de Nosso Tempo. Esse
resultado foi alcançado pela relação da psicanálise com a vida mental normal, não com a
patológica" (Freud, S.E., 19:205; ver também 18:240). Mesmo se a psiquiatria analítica
tiver de algum dia ser abandonada em favor de formas de tratamento químicos e
microcirúrgicos, as conexões que Freud esboçou entre emoções tais como os anseios se-
xuais e a hostilidade, por um lado, e entre os sonhos e as parapraxias, por outro, permanece-
riam como parte do senso comum de nossa cultura.
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10. Toda psicologia associacionista fará essa afirmação. Pois ela é um corolário da afirmação
de
que a razão não é uma faculdade de contemplar essências, mas apenas uma faculdade de
inferir certas crenças a partir de outras crenças. Uma vez que as premissas iniciais de tais
inferências precisam, então, ser preenchidas por algo diverso da razão, e se a única faculda-
de que pode ser relevantemente oposta à "razão" é a "paixão", então a afirmação de Hurne é
uma consequência trivial. Mas seria, é claro, mais consistente com o vocabulário mecanicista
da psicologia associacionista abandonar o discurso das faculdades e, em particular, abando-
nar os termos "razão" e "paixão". Uma vez que a mente se torna uma máquina ao invés de
uma quase-pessoa, ela não tem mais faculdades, muito menos faculdades mais elevadas e
mais baixas. Hume está entrelaçando o velho vocabulário das faculdades com os resultados
do novo associacionismo por causa do valor de impacto.
10. Esse modo de definir o propósito do tratamento psicanalítico pode dar a impressão de que
todas as coisas soam muito suavemente racionais. Ele sugere que o psicanalista serve como
um tipo de moderador em um simpósio: o analista apresenta, por exemplo, uma consciência
que .pensa que a Mãe é um objeto resignado de piedade a um inconsciente que pensa nela
como uma sedutora voraz, deixando os dois debaterem os prós e os contras. É claro que é
verdadeiro que os fatos da resistência proíbem o analista de pensar em termos conversacionais.
O analista precisa, ao contrário, pensar em termos de vários modelos topográfico-hidráuli-
cos de fluxo libidinal, esperando encontrar nesses modelos sugestões sobre como superar a
resistência, que significado associar a novos sintomas, e assim por diante.
Mas também é verdadeiro que o paciente não tem-nenhuma alternativa a não ser a de
pensar em termos conversacionais. (É por isso que a auto-análise usualmente não funciona,
e é também por isso que o tratamento pode fazer frequentemente o que a reflexão não pode).
Para o propósito da tentativa consciente do paciente de reconfigurar seu caráter, ele não
pode usar uma autodescrição em termos de catexia, fluxo libidinal e coisas do gênero; mo-
delos topográfico-hidráulicos não podem formar uma parte da auto-imagem de alguém _
não mais do que uma descrição de seu sistema endócrino faz parte de sua auto-imagem.
Quando o paciente pensa sobre descrições concorrentes de sua mãe, o paciente tem de pen-
sar dialeticamente, pensar que há muito a ser dito em ambos os lados. Pensar, como oposto
a reagir a um novo estímulo, é simplesmente comparar e contrastar candidatos à admissão
em seu conjunto de crenças e desejos. Desse modo, enquanto o analista está ocupado pen-
sando causalmente em termos das reações do paciente a estímulos (e em particular a estímu-
los que ocorrem enquanto o paciente está no divã), o paciente tem de pensar em seu incons-
ciente como, ao menos potencialmente, um parceiro conversacional.
Esses dois modos de pensar parecem-me instrumentos alternativos, úteis para diferen-
tes propósitos, ao invés de afirmações contraditórias. Eu não penso (a despeito dos argu-
mentos de, por exemplo, Paul Ricoeur e Roy Schafer) que haja no pensamento de Freud uma
tensão entre "energética" e "hermenêutica". Ao contrário, as duas parecem-me ser tão com-
patíveis quanto, por exemplo, descrições microestruturais e macroestruturais do mesmo ob-
jeto (e.g., a mesa de Eddington). Mas, para defender propriamente minha atitude, eu devo
oferecer uma avaliação de "resistência" que esteja em consonância com a interpretaç.ão de
Davidson do inconsciente, e eu ainda não imaginei como fazer isso. (Eu sou grato a George
Thomas, Seymor Rabinowitz e Cecil CuJIender por salientarem essa dificuldade para mim.)
12. Philip Rieff The Triumph ofthe Therapeutic (New York: Harper and Row, 1966), p. 56.
13. Ibid., p. 57.
12. É interessante que, na passagem citada, Freud esteja se referindo a uma passagem
anterior
(S.E. I I :76), na 'qual ele atribui a Leonardo não apenas o fato de antecipar Copérnico, mas
também o fato de ter "adivinhado a história da estratificação e fossilização no vale do Amo";
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uma sugestão que assume Leonardo como tendo também antecipado LyeJI (e, então, de certa
maneira, Darwin).
17. Considere o uso inovador e influente de Leibniz dos termos fisica e metafisica, para no-
mear o estudo do mecanismo e do não-mecanismo respectivamente - para distinguir entre
a área na qual Newton estava certo e a área na qual Aristóteles e a escolástica tinham
estado corretos.
16. Como J. B. Schneewind indicou para mim, essa observação só é acurada no que diz
respeito
ao pensamento moral do primeiro Kant. Mais tarde em sua vida, a pureza e o isolamento
asseverados para a moralidade em seus Grundlagen foram acomodados de várias maneiras.
Foram, entretanto, os primeiros escritos sobre moralidade que se associaram ao nome de
Kant, e que seus sucessores estavam preocupados em criticar.
17. Ver lris Murdoch, The Sovereignity ofthe Good (New York: Schocken Books, 1971), p. 58:
"É uma falha de boa parte da filosofia moral contemporânea o fato de que ela evita a discus-
são das virtudes separadas, preferindo proceder diretamente para algum conceito soberano
tal como sinceridade, ou autenticidade, ou liberdade e, por conseguinte, impondo, parece-
me, uma idéia não-examinada e vazia de unidade. Tal procedimento empobrece nossa lin-
guagem moral em uma área importante". A afirmação de Murdoch de que "o aspecto mais
essencial e fundamental de nossa cultura é o estudo da literatura, já que esta é uma educação
de como imaginar e compreender situações humanas" (p. 34:) teria significado algo diferente
há duzent~s anos. Pois, então, o termo literatura cobriria as Investigações de Hume e sua
História tanto quanto romances, peças e poemas. Nosso contraste moderno entre literatura e
filosofia moral é um resultado do desenvolvimento do que Murdoch descreve: "A filosofia ...
tem estado ocupada desmantelando a velha imagem substancial do "self", e a ética não se
mostrou capaz de repensar este conceito para propósitos morais ... Filosofias morais, e de-
certo morais, estão portanto indefesas diante de uma auto-afirmação irresponsável e sem
direção que facilmente caminha lado a lado com algum tipo de determinismo pseudocientifico.
Um sentido não-examinado da força da máquina é combinado com uma ilusão de saLtar para
fora dela. O jovem Sartre, assim como muitos filósofos morais britãnicos, representa esse
último destilamento da visão de mundo kantiana" (pp 47-48).
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22. O último fenômeno é exemplificado, por exemplo, por Bentham e Marx - filósofos que
foram responsáveis por muitas coisas boas na esfera pública, mas que não são de nenhuma
utilidade como consultores do desenvolvimento do caráter moral de alguém.
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nós podemos ter menos meninos briguentos por aí se as pessoas tiverem mais educação,
lazer e dinheiro. A sugestão de Adorno e Horkheimer de que a ascensão do nazismo em uma
nação altamente desenvolvida e cultivada mostra que essa solução liberal familiar é inade-
quada não me parece nada convincente. De qualquer forma, parece seguro dizer que as
análises freudiano-marxistas do "autoritarismo" não ofereceram nenhuma sugestão melhor
sobre como manter os fascinoras longe do poder.
\2. Para uma discussão das causas e efeitos de uma tal oscilação pendular, ver Annette Baier,
"Doind without Moral Theory?", em seu Postures of the Mind (Minneapolis: University of
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