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PERIGOSAS

O TRAPEZISTA E SEU CORAÇÃO


VAGABUNDO
Poemas

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Heitor Abreu

O TRAPEZISTA
E SEU CORAÇÃO VAGABUNDO

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Copyright © by Heitor Abreu, 2018


Todos os direitos desta edição reservados ao autor da obra.

Diagramação Heitor Abreu


Capa Heitor Abreu
Revisão Heitor Abreu

A145o

Abreu, Heitor
O Trapezista e seu Coração Vagabundo/Heitor Abreu. 1. ed - Rio de Janeiro:
Independently published, 2018.

Esta obra é uma produção independente.

Copyright [2018] by Heitor Abreu


Todos os direitos desta edição reservados ao autor da obra.

1. Literatura brasileira. 2. Poesia. I. Título.

CDD: B869.91
CDU: 821.134.3-1

Índice para catálogo sistemático


1. Literatura brasileira: Poesia

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Para

João Manoel,
Isabela Carolina e
Mauro César.

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Então queres ser um escritor?


se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.

se tens que esperar para que saia de ti


a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher


ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
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não sejas como muitos escritores,


não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,


e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.


e nunca houve.

Henry Charles Bukowski

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O TRAPEZISTA E SEU CORAÇÃO VAGABUNDO

ÍNDICE
O Trapezista e seu coração vagabundo
Índice
Homens de fé
Solidão
O Trapezista
Guarda alta
A batalha de Sísifo
Finitude
Paz
O velho
Revolta
Elo perdido
O Homem sem braços
Domingo é dia de ajustar contas
Hoje, José morreu
Passado
Coração vagabundo
Amigos
Insensatez
A ponte
O abraço
Minotauro
Poeminha sobre você
Medos de um escritor apaixonado
Madame
Que falta você me faz
Labirinto
A esfinge
Homem de verdade

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PRIMEIRA PARTE

O TRAPEZISTA

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HOMENS DE FÉ
Dizem para eu ter fé.
Fé na humanidade,
fé na raça humana.

Entre rasgos de boa fé,


aqui e acolá,
só vejo má fé.

A má fé dos que exploram a fé.


A má fé dos homens que destroem os homens.
A má fé dos que têm muita fé.

A fé matou cristãos,
muçulmanos,
judeus...
Todos,
homens de boa fé.

A fé, julgadora e executora por excelência, matou o perdão,


a humildade,
a esperança,
o amor.

A mim, insignificante ser sem fé, confesso,


só me resta a resignação dos céticos.

Afinal, fé para quê?


Fé em quem?

Se os homens inventaram a fé,


por que a destroem com tanta fé?

Ah... Se Deus existisse,


nem mesmo Ele teria fé.
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Nos homens.

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SOLIDÃO
Cedo aprendi sobre ela.

Tem várias formas, cores e nuances,


inclusive a branca e a preta,
mas há uma que poucos conhecem: a negra.
Solidão negra cai como um lençol que despenca do varal em dia de
vento forte.

Envolve, entristece, encolhe.


E não há nada a se fazer.

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O TRAPEZISTA
Preso ao teto do mundo por dois fios tênues,
vislumbro os meus trapézios balançando em um movimento angular
perfeito, como um artista circense que engana, a cada espetáculo, a
morte.

Vislumbro, num lapso temporal, a minha vida.


Peço a ele, entre o derradeiro encher e esvaziar de pulmão antes do
salto, pela minha sobrevivência.

Aprendi que no espetáculo da vida não há rede para amortecer a queda!


Por isso, é preciso certo cuidado antes de se lançar no espaço.

Enquanto largo um e tento,


com leve e imperceptível desespero,
agarrar o outro trapézio,
brinco no ar.

Ignoro a gravidade e crio minhas próprias leis da Física.


Desafio Newton e sua maçã.
Provoco Einstein e seu espaço-tempo.
Flutuo!
Apenas flutuo...

Num dos trapézios, seguram-me os desejos,


os devaneios,
o chamado sem razão – delicioso e sedutoramente
inconsequente.
A entrega ao deleite,
a falta de limites,
o gozo libertador,
a submissão ao Id...

No outro, a crueza da realidade,


a seriedade dos atos e dos fatos,
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o peso das responsabilidades,


os encargos e as cargas,
as culpas e os medos que me foram entregues sem que eu os pedisse
quando ainda era imberbe, pelo poderoso e inflexível Superego.

Vejo-me num movimento pendular,


de vertigem inebriante,
que faz o coração pulsar,
a respiração faltar e
o vento deformar a minha face.

O som do ar cortado pelo meu corpo


penetra meus ouvidos.
Aguça meus sentidos.
Relembra-me que sou mortal.
Que lástima!

Ora cá, ora acolá, sempre balançando,


sempre tentando não cair e me espatifar na
aspereza no caos da vida.

Para continuar balançando nesse trapézio imaginário,


escondo-me dentro dos meus sonhos,
dos meus ideais e das minhas ideias,
sem saber exatamente de quem ou de que.

É como se voltasse às brincadeiras da infância,


onde, depois do susto de ser pego na peraltice,
vinha a gargalhada fácil,
alta,
sincera.
Pura...

Nessa doce insanidade, sou surpreendido a cada movimento pela


ligeireza e malemolência da vida, das verdades que não são minhas,
mas que insistem em me agarrar a cada mudança de direção.

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Nesse salto de fé na escuridão da vida,


divirto-me do meu jeito.
Permitindo-me cair,
chorar,
levantar e
rir de mim mesmo, da minha (i)maturidade que as décadas de
(sobre)vida me deram...

Quanta incoerência!
Mas quem disse que a vida tinha coerência?

E o Tempo passa,
às vezes fugaz e deselegante,
sem me permitir sequer cumprimentá-lo.

Bom dia Tempo!


E ele fecha a cara e continua sua inexorável senda...

Às vezes não passa, ignora-me britanicamente,


simplesmente não anda.
Hoje vou te cobrar cada ínfima fatia do meu tempo, diz o Tempo...

Aguardo, quietinho, até que o acaso resolva mover seus ponteiros


novamente.

Aí me redescubro,
refaço-me.
Parto avante,
abrindo novas trilhas,
livrando-me dos seixos cobertos pelos limos da existência que
dificultam o caminhar e nos fazem, de tempos em tempos, escorregar,
esfolando um joelho, um cotovelo, um dedão...
Isso, se dermos sorte na vida.
Tem vezes que uma escorregada simples nos leva a vida inteira...

Escoltando-me a cada reinício,


somente a certeza de que vou cair novamente.
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Desta vez, em lugares e em tempos diferentes.


Assim espero...

Convivo com a realidade e o sonho sem nunca feri-


los,
por saber que uma e outro devem coexistir,
pois somente assim se pode parir, tal como Sócrates, uma nova e
desafiadora verdade.

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GUARDA ALTA
Guarda alta é uma atitude militar de combate.
O fuzil fica próximo a você,
pronto para você atirar ou dar uma coronhada no inimigo que espreita.

Guarda alta é uma defesa.


Uma poderosa defesa!
É usada quando se entra em um ambiente de perigo.
Uma emboscada é o mais provável de acontecer.

E você deve andar pé ante pé, com muito cuidado e vigília.


Um graveto quebrado pelo peso do seu corpo enquanto caminha pode
significar a morte.

Uma coisa é certa:


você só usa guarda alta quando tem receio de ser atacado.

Justa ou injustamente.

A minha vida toda foi em guarda alta.

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A BATALHA DE SÍSIFO
Quando a noite se faz de quieta
para atrair os demônios
e os fantasmas,
finjo-me de vivo.
Acendo luzes,
inflamo tochas,
cantarolo músicas,
leio, sempre em voz alta,
poemas de Pessoa.

"Acordo e redurmo e ainda não dormi"[1]

Lembro dos amores pretéritos e como poderiam ter sido...


Quando a luz do sol,
depois de vencer a titânica e sísifa batalha crepuscular,
é coroada rainha,
volto ao meu estado normal.
Morro-me.

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FINITUDE
Os filósofos te explicam,
as religiões te aceitam,
os cientistas te estudam.
És o maior dos mistérios.
Nisso, ao menos, todos concordam.
Religiosos e ateus!

Todos fingem não te temer,


protegidos pelas frágeis muralhas
da sabedoria helênica,
da fé axiomática,
da ciência metodológica.
Eu, ser despido de juízo,
ao te ver brandindo sua foice,
te enfrento em campo aberto.
Desarmado...

Mas confesso-me de joelhos:


não te compreendo
nem te aceito.

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PAZ
Ouço a chuva batendo na vidraça.
Suave,
provocante,
ventante.

É a paz travestida de água.


Arrefece alma, corpo e pensamento.

É a paz que preciso,


mesmo que momentânea,
fugidia e enganadora.

Chuva que lava os pensamentos,


que deixa escorrer o inútil
e mantém o essencial.

Como preciso da chuva!

Como preciso de paz!

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O VELHO
Eu vi o velho caminhando pela calçada esburacada e estreita.
Carregava um menino recém-nascido,
saído da maternidade ao lado.

Carregava o anjo em seus braços carcomidos pelas manchas vermelhas


e brancas que pontilhavam sua pele de velho.

Ao seu lado, o séquito de genro, filha e esposa,


preocupados se ele não deixaria o neto cair no chão duro, de cimento...

Confundiam velhice com falta de amor.


E o amor é mais forte que um halterofilista, saibam vocês!

Seus passos eram lentos e curtos.


Firmes, dignos, altaneiros.

Seus olhos, cuja pele flácida caia sobre os olhos azulados como uma
velha cortina que em breve se fechará definitivamente naquele velho e
decadente teatro,
ainda brilhavam ao mirar o neto acolhido em seus braços.

Olhos que fitavam não o fim da rua.


Fitavam o futuro,
fitavam a sua morte justa e próxima,
após ter conhecido o neto.

Ao mesmo tempo em que caminhava para o fim da rua e da existência,


segurava a vida nos seus braços.
Até o último momento...

Braços de avô,
que aquecem,
que são como preces que se elevam,
que transferem pulsão ao serzinho que chega e que,
mais cedo ou mais tarde,
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precisará enfrentar o absurdo que é a vida.

Precisará ser uma espécie de Mersault[2], como o velho foi...

Eu vi o velho.
Eu vi o velho encarar o fim com dignidade nos olhos e com o neto nos
braços.

Eu vi o velho abraçando a esperança.

Deixem o velho em paz!

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REVOLTA
Revolta é pouco para o que sinto.
Preciso de uma revolução!

Mas um homem pode apenas se revoltar, já nos ensinou Camus.


No máximo, se for um crente, blasfemar.

Sou um homem que disse não.


Mas há um preço a se pagar.
Como tudo na vida...

A revolta, a minha revolta, me conduz ao rompimento.


Rompi com Deus.
Rompi com os homens.
Rompi comigo mesmo.

Depois que rompi, passei a ser um Quasimodo[3] tupiniquim...

Não posso mais responsabilizar Deus pelas minhas desgraças.


Pela minha condição humana.
Pelos meus desertos.

E isso, é libertador.

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ELO PERDIDO
Quando vejo o homem solitário e triste, à beira da mureta da praia de
Botafogo, contemplando o pôr do sol,
pergunto-me:
- Quando perdemos o elo?

Quando caminho pela rua e vejo o casal de maltrapilhos sujos,


fedorentos, abraçados candidamente e fumando maconha para iludir a
realidade sombria,
pergunto-me:
- Quando perdemos o elo?

Quando percebo que aquele que me foi próximo um dia, passa por mim
e finge não me ver,
pergunto-me:
- Quando perdemos o elo?

Quando vejo mulheres caminhando com seus celulares nas mãos como
se fossem modernos crucifixos em que se reza o terço, esperando deles
respostas metafísicas para suas angústias,
pergunto-me:
- Quando perdemos o elo?

Quando fito seus olhos profundos, tentando acordar nessa civilização


que finge dormir,
inquieto-me,
penalizo-me,
em busca de uma resposta para a pergunta que tanto me machuca:
- Quando perdemos o elo?

Procuro.
Procuro, procuro e procuro...

Procuro onde perdemos a sutil ligação que uniu,


em um dia ancestral,
em volta de uma fogueira
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dentro de uma caverna,


os homens por meio do amor e da compaixão.

Queria compreender aquele momento infinitesimal em que deixamos


de ser unidos, fraternos e fortes e nos tornamos esse fracasso humano,
inaugurando o nosso próprio inferno.

Queria compreender, por Deus!,


como queria,
quando nossas lágrimas deixaram de importar.

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O HOMEM SEM BRAÇOS


Eu quero, mas não posso.
Eu tento, mas não consigo.
Eu me ajoelho e rezo, mas ninguém responde.

Caminho pelas ruas de Copacabana e a cada passo me angustio,


a cada esquina,
a cada sinal...

Meus intestinos se reviram.


Vejo o homem.
Vejo um homem.

Sem braços, com cotocos fantasmagóricos pendurados em um tronco


nu,
sujo,
enrugado.

Olhamos a vitrine mais bonita.


Olhamos o relógio mais caro.
Olhamos o celular mais moderno.
Olhamos até o céu escurecido pela noite que se avizinha.

Mas não olhamos o homem sem braços!

Meu Deus!
Onde escondeste a humanidade?

Meu Deus!
Em que nos tornamos quando fomos apresentados ao conhecimento?

Meu Deus!
Você existe?

Silêncio...
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DOMINGO É DIA DE AJUSTAR CONTAS


Vi o coitado sem querer.
Desavisadamente,
enquanto apreciava a paisagem que desfilava à minha frente.

Não era a minha intenção prestar a atenção nele.


Ninguém presta atenção nos velhos.

Voltava do seu ajuste de contas dominical.


Suado.
Cansado.
Derrotado, mais uma vez, pelas forças mágicas da fé.

Um pobre Odisseu[4] tentando tornar à casa pelos caminhos da


Verdade.
Apenas isso...

Vestia o seu melhor, talvez o único terno de toda uma vida.


Era um terno desengonçado, meio engraçado, meio triste, com as
mangas curtas para o seu tamanho, feito de tecido ordinário.
Mas era um terno.
Dava-lhe dignidade, pelo menos naquele momento, naqueles
domingos.
E ter dignidade, ao menos um dia da semana é importante.

Seus cabelos eram ralos.


Olhos pesados, tristes, fundos.
Um homem amarrotado pelo tempo.
Chicoteado, talvez, pela mesma culpa de Atena[5].

Curvava-se diante de um peso invisível.


De uma gravidade astronômica e escura.
De uma dor perceptível somente aos olhos mais treinados.

Quem disse que as dores da alma não pesam?


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Apoiou-se no teto do carro velho, já com a tinta fosca e desgastada


pelo tempo, antes de girar a chave para abrir a porta e jogar, com
displicência dolosa, o seu livro sagrado no banco do carona.
Pensava sob o sol quente que maltratava o asfalto, levantando ondas
invisíveis de calor escaldante.

O ajuste de contas dominical fora dos diabos!


Doera muito falar para Deus seus pecados aquele dia.
Quantas vezes teria que repetir?
Pedir?
Confessar?
Suplicar?

Parei de caminhar e me perguntei:


- Que diabos aquele homem tinha feito de tão grave que só um ser
divino poderia ouvir e perdoar?

Entrou no carro e apoiou a cabeça no volante.


Cerrou os olhos, já semi cerrados.
Apertou o volante como se apertasse as mãos de Deus.

Súplica?
Blasfêmia?
Raiva?
Dor?

Lágrimas...

Um filho de Deus.
Deus?

No próximo domingo, talvez Deus fosse mais piedoso.


Aquele tinha sido em vão.
O peso continuava lá, rondando, culpando, macerando sua alma já
esgarçada...

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Permaneci estático,
pensando que Deus, como os homens O inventaram, devia viver e se
alimentar do sofrimento humano.

E se todos fôssemos felizes?


Os homens teriam inventado Deus?

Perguntas, perguntas...

Talvez Deus também precisasse Se confessar naquele domingo.

Fiquei olhando o velho Odisseu retornar para sua casa no seu carro
enferrujado que se arrastava pela rua, expelindo fumaça acinzentada e
deixando a igreja sumir no seu retrovisor...

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HOJE, JOSÉ MORREU


Vejo o tempo passar - o meu tempo! - com pesar, no meu país.
Vejo a turba raivosa sem rumo.
E raiva sem rumo é muito perigoso...
Vejo o caos se aproximando por caminhos fugazes, cheio de
malemolência e muita esperteza.
O caos tem forma de gente.

Como sempre, ele entra em nossas vidas e não nos damos conta,
até que ele desfere um soco em nosso estômago.

Sentimos vontade de arquear o nosso corpo.


Sentamos na esperança de que a dor cesse.
Mas ela não vai cessar somente porque nos sentamos.
É preciso muito mais para esse tipo de dor passar...

Assim são os dias de hoje.


Desfilam os extremos, os extremismos, os estremecidos.
A reboque deles, os covardes, aplaudidos com intensidade pelos
aproveitadores de sempre.

Os covardes renascem a cada pleito.


Não das cinzas, mas dos esgotos da imoralidade, da safadeza.
Pois é dos esgotos que surgem,
nessa orgia pelo poder,
os que querem representar os humildes e os desesperados.

Eles surgem dos esgotos da história estuprada, das ideologias


assassinas, das unanimidades forjadas.
Destroem tudo: sonhos, vidas, esperanças, como se estivessem em um
anfiteatro flaviano da Roma de Tito.

Patrícios, aqueles que vão te roubar o saúdam!

Bradam nas mídias interesseiras e vendidas.


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Bradam nos discursos vazios e raivosos.


Bradam nas entrevistas espetaculosas.
Bradam nos planos de governo fictícios.
Bradam nos comícios hipnóticos.
Bradam em nossos ouvidos cansados das promessas recorrentes.

Vão, inclusive, à missa.


Para bradar, é claro...

Manipulemos a ingenuidade do povo!


Prometamos a salvação!
Finjamos ser a salvação que eles tanto precisam!
A turba já está enfeitiçada pela estupidez humana!
Aproveitemos!
Aproveitemos!

Ensinam, nas entrelinhas, os seu manuais escritos em um cárcere


qualquer da Itália em tempos pretéritos.

Depois de destruídos os sonhos e as esperanças,


pois em algum momento eles sempre o são,
nos fingiremos de mortos no lodaçal da hipocrisia, da corrupção, da
difamação, do vitimismo esperto...

E depois, meus queridos manipuladores, renasceremos moldados no


barro da ignorância, da ingenuidade, do desespero...
E nos tornaremos, tal qual um ciclo infinito, a nova e vã esperança.

Até sermos destruídos novamente...


Construídos novamente...
Destruídos novamente...

E assim, nesse trágico ciclo,


vivemos uma inexorável marcha para lugar nenhum nessas terras
tupiniquins, tal qual zumbis em busca de algo que sequer sabemos.

E assim, alimentamos generosamente os inumanos e


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matamos lentamente os humanos que nem sabem por quem ou por que
morrem.

Apenas morrem.

De desgosto.

E eles, os poderosos, simplesmente vivem e sorriem a cada gole de um


legítimo e puro scotch ou,
para alguns ainda mais doentes da alma,
de uma cachaça de qualidade duvidosa,
ao mesmo tempo em que discursam com a ferocidade dos culpados
para uma população desorientada e ingênua,
enquanto os sinos das igrejas dobram durante o derradeiro comício...

Assistindo ao tragicômico espetáculo,


lembrei-me de Donne, Hemingway, Seixas...
E, subitamente, me vi perguntando no caos da minha mente...

Por quem os sinos dobram?

Dobram,talvez, pelos homens e mulheres que depositam, a cada ciclo,


suas esperanças nos ungidos sem mensagens.

Dobram, talvez, pelo homem curvado diante do descalabro do seu caos


pessoal provocado pelos que sentaram sobre o poder, estuprando-o
com o falo da corrupção entranhado naquilo que deveria pertencer ao
povo.

Dobram, talvez, pela criança que não comeu na escola e voltou de buxo
vazio para casa.

Dobram, talvez, pelo cidadão que tem sua vida emaranhada por um nó
górdio costurado pelos que ele escolheu para desatar os nós de suas
dores cotidianas.

Dobram, talvez, pelos injustiçados por uma justiça seletiva,


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dispendiosa e indiferente ao sofrimento humano,


que brinda generosamente os ricos e poderosos e coloca o cidadão
comum em um labirinto de leis sem uma Ariadne[6] para mostrar a
saída.

Dobram, com certeza, por José, que se matou hoje ao constatar que
fora enganado diante da desfaçatez do "como nunca antes na história
desse país" e não suportou a ideia de que poderia ser enganado de
novo, de novo e de novo...

Vida que segue...

Não! No caso de José, é vida que não seguiu!

É por todos esses que os sinos, talvez, dobrem e continuarão a dobrar


até que um dia o Homo sapiens brasilis entenda que cachaceiros e
companheiros de boteco não podem governar um país.

Mas até lá, os sinos continuarão a dobrar tristemente.

Vá em paz, José.

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SEGUNDA PARTE

CORAÇÃO VAGABUNDO

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14

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PASSADO
Dia desses,
quente e agitado,
te vi atravessando uma rua.

Estava linda...
O tempo fora generoso com você,
cruel comigo.
Era justo.

Seu frescor,
naquele vestido estampado, me fez voltar ao passado,
quando seu sorriso iluminava minhas dúvidas,
desarmava minhas desconfianças,
me dava esperança.

Lembrei-me de uma marca de perfume que só nós dois sabíamos.

Quase te chamei,
quase te gritei.

Mas a prudência veio antes da impetuosidade,


soprando baixinho ao meu ouvido:
deixe o passado ser feliz.

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CORAÇÃO VAGABUNDO
Meu coração vagabundo
cambaleou pelas ruelas do amor,
como quem buscava, desorientado,
socorro depois do bombardeio.

Vagabundo e sem rumo que é,


escorregou nas armadilhas que ele armou e
que outros corações armaram.
Tanto fez.
Tanto faz.
Tanto fará.

Encontrei lindos amores nas horas em que estava despreparado.


Escaparam-me pelas frestas do ciúme,
da mágoa,
da melancolia.
Deparei-me com carências
disfarçadas de amor.
Sugaram minhas energias,
escorreram,
sumiram sem aviso prévio
ou eu mesmo fugi,
quando já havia me rendido.
Confundi e fui confundido.
Tal como um Sísifo resignado,
fui condenado ao eterno e doloroso amor e desamor.

Meu coração vagabundo.

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AMIGOS
Amigos são iguais a nós.
Só que perfeitos.

Como disse um poeta, parece que eles te dizem: "estou mais do seu
lado que você".[7]

Sem eles somos um absurdo.


Tão absurdo quanto a morte.

Mesmo distante,
ainda que em silêncio,
quando se olha para um verdadeiro amigo parece que ouvimos,
entremeando essa distância e silêncio, "Conta comigo, amigo!"

Mas não confunda amigos com pessoas que somente transitam em


nossas vidas, ao acaso.
Muitas vezes, são um mero atraso.
De vida.

E mesmo os amigos, são de tipos e tempos diferentes.

Há aquele que só é amigo num infinitesimal momento,


porém, é certeiro em suas palavras.
É fugidio,
Nem repara que foi nosso amigo.
Desaparece na névoa da vida, sem nunca mais voltar.
Foi incidental.
Mas foi fundamental.

Há aquele que chega para ficar a vida toda,


fica um tempo
e vai embora.
Vagarosa e discretamente...
Que nem a noite quando vê o sol chegando.

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Há os que chegam de mansinho.


Quase que não chegavam...
Chegam por um desses caprichos da natureza.
Um encontrão no mercado.
Um esbarrão no bar.
Uma doença.
Um acidente de trânsito.
Uma viagem de avião.
Um novo curso na universidade.
Tornam-se o Sancho Pança em nossos descaminhos doidivanos em
busca de gigantes utópicos.
Não são caprichos. São anjos teimosos.
Agarram na gente que nem carrapicho
e só nos largam quando descem a alça do nosso caixão.

Há os que chegam para ficar para sempre e nos ferem como Ulisses
feriu Polifeno[8] para continuar sua longa e penosa viagem para Ítaca.
Eles precisam nos ferir para continuar vivos e se encontrar.

Amigo entende essas coisas.


Amigo compreende até as amizades narcísicas.
Sentimos a dor do ferimento.
A decepção.
A raiva...
Até que o tempo, o grande alquimista,
faz da raiva o amor fraterno,
novamente.

Há que ser humano.


Há que perdoá-lo.
Há que se ter amor,
mesmo quando a porta se fecha e as chaves são perdidas.
Como disse outro poeta,
"O amor tem sempre a porta aberta"[9].

Um dia, nós também precisaremos de perdão.


Todos, de algum modo, somos Sísifo, carregando o mármore montanha
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acima inutilmente.
Precisamos do perdão dos deuses.
E dos amigos.

Há muitos tipos de amigos.


Amigos podem ser polifórmicos.
Sérios, alegres, brincalhões, irônicos, inteligentes, emotivos, frios,
glutões, vaidosos, bonitos, feios, pegajosos, ingênuos...
Tudo em um só amigo!

Aos amigos, tudo é perdoável.


Até o imperdoável.

O meu melhor amigo já virou átomo.


Carbono.
Hidrogênio.
Oxigênio.
E outros "ênios".
Ou foi ter com Deus. Nunca se sabe...
Mas isso não importa.
Ele não está mais aqui.

E isso importa.

Ele dizia que o verdadeiro amigo é o único capaz de pensar em voz alta
na frente do outro.

Sinto falta de pessoas que pensem em voz alta na minha frente.

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INSENSATEZ
O amor é o medo que criou coragem.
É a insensatez travestida de decisão.
Mas só o amor
nem sempre basta,
meu amor.
Quando te amei,
a coragem fluiu nas veias,
como combustível que inflama um motor potente na sua mágica e
máxima aceleração em direção ao sentimento oceânico.

Mas diante da sua fúria,


entremeada pela extrema felicidade e a mais negra das melancolias,
o amor perdeu para o medo.
Como fui insensato!
Quando te desejei.
Quando te deixei.

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A PONTE
Sei que esse não é o seu nome,
também sei que você nunca
será seu outro nome.
Você é tantas,
nunca nenhuma,
jamais uma.
Sinto, à sombra daquela ponte,
seus lábios rosados como um algodão doce,
envolvendo minha boca como se fosse a mangueira de ar que salva o
mergulhador da morte certa na imensidão azul.

Derramo, ao fechar meus olhos,


minhas lágrimas viscosas e relutantes
que se espalham em seus olhos castanhos.
São as únicas testemunhas daquilo que poderia ter sido,
caso a vida não fosse tão brincalhona e tivesse pregado a maior das
peças.

O desencontro.

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O ABRAÇO
Te soube no primeiro dia,
quando falávamos sobre animais e ouvi sua voz.

Não sabia o que você despertara em mim,


só sabia que você me colocou.

Me colocou a pensar.
Me colocou a sentir.
Me colocou confuso.

Saber mesmo,
só sabia que você me dilacerava, mesmo sem querer.

Depois daquele dia,


voltei para casa.

Nunca mais cheguei em casa.

Um dia, ah, que dia...


Você me abraçou.
Foi o abraço mais suave e mais necessário da minha vida.

Queria que a nossa vida tivesse sido como aquele abraço.

Depois, muito depois,


seus olhos claros se acinzentaram.
Vieram meus medos negros,
nossa relação nevoenta,
prenúncio de tempestade certa.

A chuva se precipitou violenta,


narcísica,
apavorante.

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Nossos corações se estratificaram:


mágoas,
rancores,
vinganças de amor.

As portas se fecharam para sempre.


Ficamos nus do lado de fora.

O seu abraço, nunca mais terei,


sei bem disso.
O seu sorriso, somente pelas fotografias.

Daqueles tempos, só guardo o que deve ser guardado.


As boas lembranças.
A cor dos seus olhos.
O colar de pérolas que você usava em dias importantes.
Sua pele leitosa banhada pela lua.
Nossa crença de que seríamos eternos um ao outro.

Sob a guarda celeste de Jorge


e o olhar condescendente de Chopin,
resigno-me,
reconstruo-me,
perdoo-nos.

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MINOTAURO

Foi quando você desabotoou aquele sutiã,


que nem era sexy,
que me senti novamente menino embevecido quando vê,
pela primeira vez,
uma mulher nua.

Eu nem precisei te contar que teus seios eram os mais bonitos do


mundo.
Do meu mundo.
Meus olhos me traíram.
Te contaram antes da minha boca.

Inebriados naquele labirinto de Dédalo,


nem sentimos medo do Minotauro.
E por que sentiríamos?

Estávamos eu, você e toda a coragem do mundo,


reunidos em um quarto.

O Minotauro não passava de uma quimera.

Estávamos armados pela mais poderosa das couraças:


a nudez dos amantes.

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POEMINHA SOBRE VOCÊ


Você não foi fácil de se chegar,
tampouco de se conquistar...

O sorriso era difícil, as palavras quase inaudíveis.


A desconfiança abissal.

Mas a confiança e a franqueza foram vencendo.

Nada resiste ao amor genuíno.


Dizem...

Aí, desarmada, pude conhecê-la de verdade.


Seu cheiro inebria, o gosto de sua boca vicia e o seu olhar revela.
Seus silêncios me encantam.

Minha mão desliza pelo seu corpo,


revelando sua geografia e todos os seus pontos cardeais.
Não encontro defeitos nos seus vales e montanhas...

Quem sabe, quando e se um dia eu descobrir seus defeitos,


eles não se tornem qualidades aos meus olhos?

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MEDOS DE UM ESCRITOR APAIXONADO


Tudo começou em uma tarde ensolarada e quente no Jardim Botânico e
continuou em um lugar que parecia ter saído de um conto de Borges.

A chuva ininterrupta, seus gatos, sua simplicidade...

Você apareceu radiante em um vestido vermelho, calçando botas e


adornando seu rosto com um sorriso que me fulminou.
O tempo parou.
Os sons sumiram.

Quando nos percebemos, nos beijamos em uma rua movimentada


daquele bairro que resolveu acolher nosso encontro.

Quando nos percebemos, estávamos andando de mãos dadas.

Quando nos percebemos, estávamos suspirando com nossos corpos


colados e suados no meio da rua.

Quando nos percebemos, não queríamos nos despedir.

Quando nos percebemos, havia apenas nove horas que nos víramos
pela primeira vez.

Foi quando vimos ao invés de perceber.


Algo havia acontecido.

É só o que eu sei e pude escrever sobre essa história.


Ela ainda não terminou.
O desenrolar ainda está sendo escrito.
O final, eu apenas rezo por ele.

O problema é que sou ateu...

Adormeci enquanto o dia se insinuava através da minha janela


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pensando em você.
Ninguém mais do que você...

Sei que sou, nesse romance, incapaz de escrever o seu final.


Tenho que me contentar, com humildade,
em ser apenas um personagem secundário.

Como escritor, isso me dá um certo frio na barriga.


O que pode ser bom...

Aprendi nos meus estudos de Física e Astronomia que o tempo é uma


abstração humana.
Será?

Quando me deparei com você, vi que era tudo verdade.


Sobre o tempo.

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MADAME
Te chamava de madame quando te conheci.
Você se lembra?
Talvez não. Faz tempo...
E o tempo, essa abstração, é o verdadeiro alquimista.

Apaga a memória.
Esfarela as lembranças, jogando-as ao vento.
Transforma choro em saudade.

Mas algumas lembranças ele não transformou.


A recordação que transita na minha pobre mente,
de você nua, sob a luz envolvente do luar de Copacabana nunca saiu da
minha mente
nem desanuviou com o tempo.

Você, uma das três "poderosas", brincava comigo.


Dias em que estava sorrindo para mim e para o mundo.
Dias em que se fechava qual pérola dentro da ostra.
Impenetrável.

E eu me perdi.

Distraído, me apaixonei.
Te amei.

Até que os desencontros da rotina.


As premências da vida.
Os pesos de nossas bagagens passadas.
As responsabilidades.
Ah... as responsabilidades...

Destruíram tudo,
transformando ouro em ferro.

O mundo real foi mais forte do que o nosso sonho.


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Por que a realidade foi tão mais forte do que os nossos sonhos,
madame?

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QUE FALTA VOCÊ ME FAZ


Amante poderosa,
cheia de artimanhas.
Se fez de serva no comecinho do nosso amor,
mas se transformou em ama depois de me conquistar.

Dona dos meus amores, desejos e culpas,


aprisionou-me sem me beijar.

Sua conquista começou com aquele cheiro de cacau


que pairava pesado no ar,
quando te vi (senti?) pela primeira vez.

Foste o meu vício mais compulsivo.


Foste o meu êxtase consentido ao invadir minhas narinas e se adonar
do corpo daquele pobre idealista.

Ainda hoje, meia geração depois,


sou capaz,
com detalhes de joalheiro,
de fechar os olhos e me teletransportar para aquele taxi quente,
barulhento,
sujo,
vermelho,
onde, numa epifania,
encontrei você e seus cheiros.

Somente mais tarde,


conheceria seu sabor.

Sucumbi aos seus trejeitos,


jeitos e
ajeitos.

Pas de problème![10]
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Minha querida, sinto sua falta.

Falta das lágrimas que espremeu de mim,


libertando as minhas culpas e os meus medos,
por mais fugidia que fosse essa sensação.

Falta dos sorrisos fartos, tão raros em mim que,


num ato falho, me fiz feliz por um incronometrável lapso de tempo.

Falta de sentir, iluminado pelas estrelas que reinam eternas no seu céu,
sempre límpido e negro,
a serenidade diante do caos da minha cabeça.

Falta daquele pôr do sol que me fazia acreditar nos homens,


no mundo,
no futuro.

Falta das difusas e belas cores que se digladiavam


quando a Lua e a luz do Sol se esbarravam no lusco fusco e eu,
estupefato diante daquela beleza ancestral,
acreditei,
numa infinitesimal fração de tempo,
que Deus, até, poderia existir.

Por pena,
por comiseração,
por humanidade,
África, meu amor, não me abandone.

Acredite, eu sinto sua falta.

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LABIRINTO
Caminhei pelas estradas sem fins da busca.
Enfrentei tempestades de gozos infinitos.
Deparei-me com oásis de intensos e curtos amores.

Confundi nuvem com algodão.


Fugi das armadilhas escondidas na floresta de Hipólita[11].
Rompi amores como quem foge desesperado do ontem, do hoje e do
amanhã.

Tive pavor que o passado chegasse ao futuro.

Entrei em um labirinto.

Buscava o "meu amor",


aquele amor que poucos procuram.

Somente os loucos.
De amor.

Eu sou um desses:
que procuram o amor, até encontrá-lo.
Sou um louco!

No caminho, deixei paixões inacabadas,


amores desolados,
sexo que ardia e queria mais,
corações murchos,
que desaguavam em lágrimas que escorriam para as praias e os rios,
enchendo-os, prenunciando cheia e ressaca.

Mas também deixei sorrisos daqueles que invadem o quarto e fazem


uma mulher parecer ainda mais bonita.
Mudei vidas sem rumo e ajudei a colocar muitas no prumo.
Aconselhei algumas,
mostrei o outro lado,
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enfim,
também fui esperança.
Também fui felicidade.
Também fui libertação.

Fiz sofrer e sofri.


Mas foi de amor.
Foi por amor.
Não tive a intenção.
Não tiveram a intenção.
Mas também não tive saída.

A minha busca é o que dá sentido à minha vida.


Preciso encontrar minha Hedonê[12].
Preciso largar o meu peso no colo dela.

Nessa senda alucinada, também me machuquei.


Essa primazia da dor, que fere a alma, não é só delas.
Mas sofro em silêncio, como os britânicos.

Mulheres não sofrem em silêncio...

Pergunto-me, a cada amor desfeito:


Há um amor de verdade para mim?
Há amor de verdade?
Há amor?
Há?

Nas noites silenciosas,


quando o peso da dúvida desce magnânimo do andar superior
e abre a porta do meu apartamento, torturo-me.

Torturo-me com medo de ter deixado o "meu amor" ir-se.


Ir-se por desatenção.
Ir-se por vaidade.
Ir-se por desejo.
Simplesmente ir-se...
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Se in vino veritas, aí vai:


Onde você está, meu amor?
Qual caminho devo tomar para te encontrar?
Será que tomei o caminho errado?
Ou será que estou em um labirinto de Creta?

Acho que o amor foi criado pelos deuses


e somente para o deleite deles.

Pena que sou mortal.

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A ESFINGE
Um dia você me disse:
te amo.
Foi sem mais nem menos.
Assustou-me.
Muitos amores me machucaram.
Então, saber que você me ama me deixou com medo.

Não sei se devo te amar.


Mas quero te amar.

Você não é quem eu vejo.


Mas quem é?
É melhor ou pior?
Será mais uma armadilha para esse coração vagabundo que tenta
encontrar salvação no amor?
Será que é minha redenção?
Ou será que sou sua redenção?

Somos tão diferentes.


Como luz e escuridão.
Como livro e exercício físico.
Como pensamento e ação.
Como calmaria e vento.
Como bicicleta e automóvel.
Como comprar e alugar.
Como silêncio e bichos em casa.
Como Id e Superego.

Somos tão parecidos.


Como amor e sexo.
Como amizade e irmandade.
Como beijo e mel.

Nossos cheiros e sabores se confundem ao se misturar.


Me confundem.
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Nos fundem.
Nos arranham.
Nos marcam.

Sei que devo te amar, mas não sei se seria sensato.


Nas vezes em que fui insensato, meu coração foi despedaçado.
Ele não aguentaria mais um remendo...

E você é um enigma!
Pior que o proposto pela Esfinge de Tebas para Édipo.

"Decifra-me ou te devoro"

Não sei se terei a sabedoria de Édipo...


E não suportaria ser devorado mais uma vez...

Desconcertado, engano o tempo fazendo amor com você.


Mas sei que uma hora terei que decidir.

Ou te amo,
ou te deixo.

"Decifra-me ou te devoro"

Será que você prenuncia o final da minha busca neste deserto de


amores?

Decifra-me ou te devoro
Decifra-me ou...
Decifra-me...
Decifra...
Decida...
Decida-se...
Decida-se ou...
Decida-se e me devore.
Logo!
Agora!
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E quando o dia descansa, ainda me resta a persistente dúvida.


Devo-me entregar ao seu amor?

Você tem qualidades e defeitos que admiro. Não se engane. Não direi
que tua beleza é qualidade, posto que beleza é acaso...
Ser bonita não é qualidade, é acaso da biologia edo evolucionismo.

Você é um enigma!

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HOMEM DE VERDADE
Para se amar um mulher, é preciso amar suas estrias,
suas celulites,
suas cicatrizes do parto...

Mesmo que ela ainda não as tenha.


Um dia, as terá.
Acredite.
Portanto, não se engane.
Simplesmente ame.

Passeie vagarosamente com seus dedos,


sinta com seus lábios,
enxergue com seus olhos,
e se extasie com as marcas de Chronos[13] desenhadas no corpo de sua
mulher.

Se você só ama o intocado, o liso e o jovem corpo,


você não é um homem.
É um reles marchand em busca de Hebe[14].

Mulheres não são arte.


Mulheres não são imortais.
Mulheres são tatuadas pelo tempo...

É preciso amar a mulher no tempo e a tempo.


Afinal, toda mulher é uma deusa em Tríade.
Primeiro, Coré.
Depois, Perséfone.
Por fim, Hécate.[15]

É preciso amar cada imperfeição como se fosse a perfeição.


Pois elas, as imperfeições, o são.

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São perfeitas aos olhos bem treinados.


São eternas aos olhos apaixonados.
São admiráveis aos olhos maduros.

Seja homem de verdade!


Ame uma mulher com estrias.

[1]
Fernando Pessoa. Livro do desassossego. Diário de Bernardo Soares.
[2]
Personagem do livro "O Estrangeiro" de Albert Camus.
[3]
Personagem do livro Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo.
[4]
Outro nome dado a Ulisses que, na mitologia grega e romana, participou da guerra de Tróia e teve
que percorrer um longo caminho, durante anos, para chegar a Ítaca, onde era rei.
[5]
Segundo as lendas gregas, Atena matou, sem querer, Palas, sua amiga, enquanto brincavam de lutar.
Para se redimir, adotou o nome Palas antes do seu. Há quem diga que Atena teve um pai chamado
Palas. Um ser libidinoso que tentou violar Atena.
[6]
Na mitologia grega, é a princesa de Creta, filha de Minos e de Pasífae. Deu a Teseu um fio de lã
para que ele, depois de encontrar e matar o Minotauro do labirinto de Dédalo, pudesse voltar sem se
perder no complexo caminho de volta. Ao retornar segurando o fio de lã de Ariadne após eliminar a
fera, casaram-se.
[7]
Arnaldo Lima e Fernando Ouro Preto. Música "Não olhe pra trás".
[8]
Na mitologia grega, era um ciclope, filho de Poseidon e de Teosa, que aprisionou Ulisses e seus
homens em uma caverna. Aos poucos, começa a devorar vários homens de Ulisses que, então, oferece
vinho para o ciclope e, enquanto ele dorme em função do efeito do vinho, fura o seu único olho,
cegando-o. Assim, Ulisses e o restante dos seus homens fogem da caverna.
[9]
Renato Russo, Música "Perfeição".
[10]
Expressão francesa: "Sem problemas", "Está tudo certo".
[11]
Amazona da mitologia grega que teria lutado na guerra de Tróia, juntamente com sua irmã
Pentesileia.
[12]
Na mitologia grega, Hedonê, é a deusa do prazer. Filha de Eros e Psiquê.
[13]
Na mitologia grega, também chamado Aeon. Era a personificação do tempo eterno e imortal.
[14]
Na mitologia grega tinha a juventude eterna, Filha de Zeus e Hera.
[15]
Na mitologia grega, Coré representa o trigo verde (a mulher imatura), Perséfone, a espiga pronta
para ser colhida (a mulher madura, na plenitude da beleza) e Hécate o trigo colhido, a "velha esposa" da
área rural da Inglaterra.

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