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CAPÍTULO 1 – A QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL1

1
Texto construído com base nas aulas ministradas pelo prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira na
FFLCH/ DG/ USP. São Paulo, 2001, 2002 e 2003.
1.1– As origens da legislação de terras.

A legislação de terras no Brasil tem sua origem no próprio processo de


formação do Brasil contemporâneo. Esse processo foi marcado pela contradição
entre a aplicação da legislação portuguesa à colônia e o papel que essa
legislação desempenhava como produtora escravista de mercadorias para os
países europeus.

De acordo com Prado Jr.2 “a função de fornecedor de gêneros de grande


valor comercial, o trabalho escravo e o acentuado caráter mercantil foram
elementos constituintes de uma sociedade inteiramente original”. Assim, “a
colonização tomou o aspecto de uma vasta empresa comercial destinada a
explorar os recursos naturais de um território em proveito do comércio europeu.
Este é o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é um
resultado”.

Assim, a produção colonial foi parte da produção internacional do capital,


realizada através da relação de produção e de trabalho não especificamente
capitalista, o tráfico negreiro e o trabalho escravo, para a formação e acumulação
da riqueza, que ia se convertendo em capital na transição do feudalismo para o
capitalismo europeu3.

Para Martins4, o período colonial (a Colônia) foi um período no qual o


trabalho na grande fazenda monocultora era fundamentalmente executado pelo
escravo negro, de origem africana. A explicação da preferência do trabalho cativo
do negro em relação à escravidão indígena aconteceu, porque

“de um lado, o fundamento do trabalho escravo estava no tráfico negreiro, era no


comércio escravista e não na fazenda escravista que a escravidão se recriava. Por
outro lado, essa situação tinha o seu sentido, já que permitia aos traficantes de
escravos fazer do cativo renda capitalizada, extrair renda da colônia já antes da
produção colonial, ao invés de extraí-la por meio de monopólio e renda territoriais”.

O período escravista no Brasil apresentou componentes geográficos


importantes: o tráfico negreiro, mercados de escravos e o próprio trabalho
escravo. O tráfico escravagista revelou que o trabalhador negro, antes de
trabalhar de fato, já era uma mercadoria. Por isso, a mercadoria escravo,
também, deve ser compreendida como renda capitalizada antecipada do tráfico
2
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1953. p. 25.
3
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção e agricultura. São Paulo: Ática,
1990.
4
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.p.37.
28
negreiro. Além dessa condição de mercadoria, o trabalhador escravo produzia a
mercadoria açúcar. Portanto, para o senhor de escravos, concordar com o fim da
escravidão seria aceitar perder parte de seu patrimônio aplicado na compra da
mercadoria escravo.
O escravo, entendido como renda capitalizada, viabilizada pelo tráfico e
pela formação dos mercados negreiros, apareceu como o elemento fundante do
período colonial. Esse fato resultou em um processo de acumulação de riqueza
no território brasileiro. Cidades como Rio de Janeiro e Salvador tornaram-se
verdadeiros bolsões de acumulação de riqueza gerada pelo comércio de escravos
no país.
A abordagem do escravo como renda capitalizada por Martins5 reforçou a
tese da inexistência do feudalismo nas relações de produção presentes no campo
brasileiro. Concordou, portanto, com Prado Jr.6, quando este afirmou que “o
grande empreendimento agromercantil foi um grande negócio para quem nele se
meteu”. Mas, se afastou do pensamento de Prado Jr., ao introduzir a tese do
escravo como renda capitalizada.
Em uma outra vertente teórica, adotada por Cirne Lima7, “a história
territorial do Brasil começa em Portugal. É no pequeno reino peninsular que
vamos encontrar as origens remotas de nosso regime de terras”. Salientou esse
autor que, embora a base legal da distribuição de terras no Brasil tenha sido a Lei
de Sesmaria, lei portuguesa de 1375, sua aplicação e resultados no país foram
inteiramente diferentes daqueles da Metrópole.
O primeiro documento das Sesmarias no Brasil foram as três cartas régias
concedidas a Martim Afonso de Souza, por conta de sua expedição de 3 de
dezembro de 1530. A primeira o autorizava a tomar posse das terras que
descobrisse, a segunda lhe conferia os títulos de capitão-mor e governador das
terras do Brasil, e a última lhe permitia conceder sesmarias das terras
aproveitáveis que encontrasse. Dessa última seguem os seguintes trechos:

5
MARTINS, José de Souza. Nas obras 1981, 1986 e 1995 dentre outras.
6
PRADO Jr. Caio. Op. Cit,. 1953. p.24.
7
CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil. Porto Alegre: Liv. Sulina, 1954. p. 11.
29
“Dom João, por graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’além mar,
(...). a quantos esta minha carta virem, faço saber, que as terras que Martim Affonso
de Souza do meu conselho, achar e descobrir na terra do Brasil, onde o envio por
meu capitão mór, que se possa aproveitar, por esta minha carta lhe dou poder para
que elle dito Martim Affonso de Souza possa dar ás pessoas que comsigo levar, e ás
que na dita terra quizerem viver e povoar, aquella parte das ditas terras bem lhe
parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e qualidades, e das terras que
assim der será para elle e todos os seus descendentes, e das que assim der ás ditas
pessoas lhes passará suas cartas; e que dentro de dous annos de data cada hum
aproveite a sua e que se no dito tempo assim não fizer, as poderá dar a outras
pessoas para que as aproveitem, com a dita condição; (...). dada na villa do Crato da
Ordem de Christo, a 20 de novembro. Francisco da Costa a fez, anno do nascimento
de Nosso Senhor Jesus Christo de 1530 annos. Rei” (apud Cirne Lima8).

A partir do trecho transcrito nota-se que para fazer uso das sesmarias no
Brasil, Portugal, implicitamente, desconsiderou qualquer ocupação indígena e
enterdeu as terras brasileiras como desocupadas.
A sesmaria se constituiu a partir de uma doação de títulos de concessão de
terras a proprietários individuais sob o encargo de serem cultivadas. A concessão
das terras pertencia aos governadores e capitães-gerais, que representavam a
Coroa no país. Não poderia obter concessão de sesmaria quem tivesse já logrado
concessão anterior. Cada uma devia ter no máximo a extensão de três léguas e,
ainda, era preciso que o pretendente juntasse provas de suas possibilidades
quanto ao aproveitamento das terras. Dessa forma, concedia-se apenas o uso,
pois todas as terras da Colônia continuavam pertencendo à Coroa portuguesa.
Conforme Marés9, o estatuto de propriedade privada da terra no Brasil tem
sua raiz na Lei da Sesmaria, uma legislação completamente regida como
instrumento de conquista, mas também de garantia aos capitalistas mercantilistas
de que sua mão de obra, escrava ou livre não viria a ser proprietária de terras
vagas. Se as terras estivessem à disposição de quem as ocupasse e tornasse
produtivas, os capitalistas mercantilistas ficariam sem trabalhadores livres.
A concessão de terras aos senhores de escravos e fazendeiros para a
construção de engenhos de açúcar e/ou estabelecimentos semelhantes também
teve por objetivo a formação da aristocracia da sociedade colonial. Nesse

8
CIRNE LIMA, Ruy. Pequena história territorial do Brasil. Goiânia: Ed. UFG, 2002. p.36/37.
9
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: S. A. Fabris Editor, 2003.
30
contexto, quem não fosse homem de sangue limpo, não comprovasse possuir
escravos, estava excluído da concessão.
Para Martins10, “a interdição da propriedade, desse modo, alcançava não
só o índio reduzido à condição de peça e escravo, nas fazendas e nos
aldeamentos organizados e administrados pelos padres e pelas câmaras, como
alcançava também o filho de branco sem pureza de sangue”.
O que restava aos excluídos desse grupo era abrir posses. Muitos dos
camponeses abriram posses nos espaços entre uma sesmaria e outra, em
sesmarias abandonadas e / ou, ainda, agregavam-se como “morador de favor”
nas fazendas e ou engenhos de açúcar no Nordeste.
Martins11defende a idéia de que “a concessão de sesmaria tinha
procedência legal sobre direitos de posseiros. Não era raro o fazendeiro
encontrar, no território de que se tornara sesmeiro, posseiros instalados com suas
roças e seus ranchos. Dependia do fazendeiro aceitar ou não a permanência
desses posseiros como agregados”. Desse modo, longe de ser um processo
tranqüilo, a presença de posses no interior das sesmarias revelava na economia
colonial a desigualdade de direitos presente na legislação vigente na Colônia.
Conforme esse autor, os direitos dos camponeses que viviam como
agregados nas fazendas só eram reconhecidos como extensão dos direitos do
fazendeiro, como concessão deste, aceitas por aqueles. Isso fazia com que os
camponeses agregados desenvolvessem um código de relação com o fazendeiro
diferente do código que regulava as relações do senhor com o escravo. Nesse
caso, o que se configurava era uma relação de dominação do senhor sobre a
mercadoria escravo; no outro caso, o que se configurava era uma relação de
troca.
A troca variava de serviço e produtos a favores. Até a defesa das terras do
sesmeiro era utilizada na troca pela moradia. Assim, ao defender as terras do
sesmeiro, o agregado também defendia o seu direito de estar lá, de trabalhar na
terra. “Mas não podia defender o direito de estar na terra, sem fazer dessa terra
propriedade do seu fazendeiro. A sua luta era luta do outro”12. Dessa condição
veio a concepção de “morador de favor”, que existia e existe, ainda, em grande

10
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1995. p. 32.
11
Ibid. p. 35.
12
Ibid. p.36.
31
número no Nordeste e em outras regiões do país. A morada de favor envolveu e
envolve, portanto, relações pautadas na lógica das trocas. Essas relações
ultrapassam o trabalho e as relações de trabalho. A concepção de favor envolve a
produção material, mas, também, relações estabelecidas a partir de um código
moral com a outra parte. A lealdade, a confiança, o apadrinhamento e a proteção
foram e são práticas morais pautadas em um código costumeiro firmado entre o
fazendeiro e o agregado13.
Para Martins14,

“a natureza da troca envolvida e embutida na concepção de favor evoluirá com o


desenvolvimento econômico brasileiro para se definir mais concretamente como
relação de arrendamento: terra em troca de renda em trabalho ( como é o caso do
cambão no Nordeste), em espécie (como é o caso da parceria em todas as regiões
do país) e em dinheiro (como é o caso particularmente do arrendamento de terras no
sul e no sudeste)”.

A natureza das trocas de favores foi, assim, definida a partir da “renda da


terra”15 em sua forma menos desenvolvida, ou seja, uma parte da produção
entregue pelo camponês ao proprietário da terra, como pagamento pela
autorização para cultivá-la a terra. A troca de favores concebida com base no
código costumeiro evoluiu e agregou elementos presentes nas trocas comerciais.
No entanto essa evolução será diferente para o fazendeiro e para o agregado.
De acordo com Martins16, o camponês era duplamente excluído das
relações de propriedade: primeiro da condição de proprietário de terras e,
segundo, da condição de escravo. Porém, não era excluído do trabalho na
propriedade. Essa foi uma contradição vivida pelo camponês em todo o período
dominado pela economia capitalista de produção escravista de mercadorias.
Assim, “cabia ao agregado funções ao mesmo tempo complementares e
essenciais numa economia baseada no trabalho escravo”. No caso de São Paulo,
nesse processo de transição,

“o agregado foi empregado na abertura de novas fazendas, na derrubada da mata, no


preparo da terra. (...) o camponês incumbia-se da abertura de uma fazenda e
implantação do cafezal em troca do direito de plantar entre os cafeeiros gêneros de
que necessitasse, como milho, feijão, arroz, algodão. Formado o cafezal, recebia um

13
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1995.
14
Ibid. p. 36.
15
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Renda da terra. In: Orientação, n. 05. São Paulo: IG-USP, 1984.
p.94.

32
pequeno pagamento em dinheiro correspondente ao número de cafeeiros formados.
(...) O fazendeiro, não pagava ao lavrador, mas recebia sob forma de renda em
trabalho, o cafezal formado, em pagamento pelo direito do camponês produzir no
terreno os gêneros de que necessitava”.

Na realidade, no sistema de colonato, os camponeses acabavam por


contrair dívidas que inviabilizavam completamente suas saídas das fazendas de
café.
No caso do Nordeste, de acordo com Andrade17, a figura do “morador de
condição” se revelou em meio ao trabalho escravo e ao tráfico negreiro.

“Os senhores-de-engenho, por não poderem adquirir escravos devido ao alto custo,
para suprir a necessidade de braços, facilitaram o estabelecimento de moradores em
suas terras, com a obrigação de trabalharem para a fazenda. Esses trabalhadores
tinham permissão para derrubar trechos de matas, levantar choupanas de barro ou de
palha, fazer pequeno roçado e dar dois ou três dias de trabalho semanal por baixo
preço, ou gratuito, ao senhor-de-engenho”.

A abordagem de Martins18 complementou essa análise. O autor afirmou


que a maior importância do agregado nas fazendas de cana-de-açúcar, restritas à
zona da mata, esteve relacionada a produção de gêneros alimentícios. “Só
excepcionalmente o escravo se dedicava a outra coisa que não fosse a produção
de açúcar. Aí os agregados ou moradores encontraram a função econômica
principal”.
Não somente os agregados constituíam o campesinato da época,

“também havia os posseiros e os sitiantes. Ambos às vezes se confundiam, porque a


condição de posseiro dizia respeito à relação jurídica com a terra, quando o
camponês tinha a posse, mas não tinha o domínio. O sitiante era o pequeno agricultor
independente, dono de um sítio, um lugar na terra, e não de uma sesmaria.
Agregados e moradores eram também, no entanto, tidos como sitiantes, já que sua
área de roça no interior da fazenda também, era definida como sítio, ou roçado”19.

16
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1995. p.38/39.
17
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo: Ed. Atlas, 1986. p.87.
18
MARTINS, José de Souza. Op. Cit., 1995. p.39.
19
Ibid. p. 40.
33
Antes mesmo da abolição das sesmarias, e simultaneamente a ela, foi
firmado no país o que se convencionou chamar de “regime de posse”20. Todavia,
esse regime não foi um processo organizado ou disciplinado pelo poder público
da época, mas decorrente da resistência e luta das populações pobres, que, não
dispondo de recursos materiais ou de outras formas para obter terras via Lei das
Sesmarias, só lhes restava como opção a ocupação simples e efetiva das terras,
ainda não apropriadas de fato pelo latifúndio. Embora o latifúndio procurasse
sempre ampliar as terras apossadas.
Conforme Cirne Lima21,

“apoderar-se de terras devolutas e cultivá-las tornou-se cousa corrente entre nossos


colonizadores, e tais proporções essa prática atingiu que pôde, com o correr dos anos, vir
a ser considerada como modo legítimo de aquisição do domínio, paralelamente a
princípio, e, após em substituição ao nosso tão desvirtuado regime das sesmarias. Os dois
processos chegavam a ter-se por equivalentes, (...) Depois da abolição das sesmarias, -
então, a posse passou a campear livremente, (...) Era a ocupação, tomando o lugar das
concessões do Poder Público, e era igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico
desamparado, sôbre o senhor de engenhos ou fazendas, o latifundiário sob o favor da
Metrópole. A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos. A posse é,
pelo contrário, - ao menos, nos seus primórdios, - a pequena propriedade agrícola, criada
pela necessidade, na ausência de providência administrativa sôbre a sorte do colono livre,
e vitoriosamente firmada pela ocupação”.

Entre 1822 e 1850 foi o momento em que ficou instituída a abertura e


depois a regularização das posses pela Lei de Terras. Por ela todas as posses
deveriam ser regulamentadas e aos posseiros caberia registrar suas posses nos
livros de registro paroquial da igreja católica.
A promulgação da Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, chamada Lei de
Terras, estabeleceu a base jurídica da propriedade privada da terra no Brasil. A
Lei de Terra22, em seu artigo 1º, proibiu a aquisição de terras devolutas por outro
título que não seja o de compra. No artigo 4º, revalidou as sesmarias que se
achavam cultivadas; e, em seu artigo 5º, legitimou as posses mansas e pacíficas
adquiridas por ocupação primária. De acordo com Decreto n. 1318 de 30 de

20
De acordo com MARÉS, Carlos Frederico. Op. Cit., 2003. Esse nome é impróprio. Porque não havia
sequer posse, mas ocupação, considerada clandestina e ilegítima.
21
CIRNE LIMA, Ruy. Op. Cit. 1954. p.46.
22
BRASIL. Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas no Império e
acerca das que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem
como por simples título de posse mansa e pacífica; e determina que, medidas e demarcadas as
primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o
estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros, autorizados o Governo a promover a
colonização estrangeira na forma que se declara. Rio de Janeiro, RJ, 18 de set. de 1850 In: CAZETTA,
Carlos Luís. Legislação imobiliária da união. Brasília: DF, 2002. Pp. 202 – 208.
34
janeiro de 185423, que regulamentou a Lei de Terras, as sesmarias e as posses
tinham um prazo máximo de dois anos para serem medidas e registradas nos
livros das casas paroquiais. Com esse procedimento legal, as sesmarias e as
posses passaram a ser reconhecidas juridicamente. E a aquisição de terras
devolutas passou a ser proibida por outro mecanismo que não fosse a compra e
venda em hasta pública.
A partir da Lei de Terras, portanto, as terras devolutas passaram a ser
obtidas apenas por compra e venda. Para Martins24, isso foi “o começo de um
período em que a terra não era só um instrumento para explorar o trabalho do
outro e extrair um excedente, mas era também uma base de acumulação
capitalista – a conversão da renda da terra em capital”.
A legislação de sesmaria e o regime de posse foram formas de distribuição
de terras no Brasil marcadas por uma sutileza. Em ambas, a posse da terra
prevalecia sobre o título. Com isso, garantia-se a ocupação efetiva da terra,
porque o que estava em jogo era a ocupação do país. No caso da Lei de Terras
de 1850, o título, o domínio passou a prevalecer sobre a posse. Assim, houve
uma inversão dos fatos. O que passou a ser focalizado foi a renda que a terra
poderia vir a gerar, ou seja, renda capitalizada da terra. Preparava-se, assim, a
substituição da propriedade privada do escravo pela propriedade privada da terra.
A terra tornava-se equivalente de mercadoria.
De acordo com Martins,25

“a terra transformada em mercadoria tem efeitos bem diferentes das outras


mercadorias que se caracterizam por serem produtos do trabalho humano. A terra é
um mercadoria completamente distinta das demais. A diferença está em que a terra
não é produto do trabalho, é finita e imóvel. É uma mercadoria que não circula; em
seu lugar circula o seu representante, o título de propriedade. O que se compra e
vende não é a própria coisa, mas o seu símbolo. Todas as verdadeiras mercadorias
se realizam na sua utilidade e na sua utilização; elas se realizam nas mãos de quem
as possui e usa. A terra não é propriamente mercadoria, mas equivalente de

23
BRASIL. Decreto n. 1.318 de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei n. 601, de 18 de setembro
de 1850. Rio de Janeiro, RJ, 30 de Jan. de 1854. In: CAZETTA, Op. Cit., 2002. Pp. 209 – 232.
24
MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes, 1986. p.34.
25
Ibid. p.32/33. Grifos do autor.
35
mercadoria. Para que possa produzir renda – que é o seu uso capitalista – a terra não
exige que o ter e o usar estejam juntos. Nas outras mercadorias, o ter é condição do
usar e o usar é a realização do ter; no caso da terra, na sociedade capitalista (e é
dela que estamos falando), não é necessário que estejam juntos”.

Assim, com a Lei de Terras de 1850, separou-se de vez o domínio da


posse de fato. O título, domínio da terra, passou a ser superior à posse efetiva.
Alguém que abre a posse da terra não tem, automaticamente, direito de
propriedade sobre ela. Mas, alguém que tem o título da terra, seu domínio,
portanto, mesmo sem nunca tê-la ocupado de fato, tem o direito de propriedade
privada sobre ela.
Na prática, a implantação da legislação territorial no Brasil representou,
antes de tudo, a vitória dos grandes fazendeiros em detrimento de índios,
escravos, posseiros e agregados, camponeses desterrados, que, na crise do
trabalho escravo, tiveram seu trabalho subjugado ao cativeiro da terra.
Ao analisar a crise no trabalho escravo e a sua substituição pelo trabalho
livre, Martins26 explicou a metamorfose da renda capitalizada gerada no período
colonial. De acordo esse autor, “a renda capitalizada no escravo transformava-se
em renda territorial capitalizada: num regime de terras livres, o trabalho tinha que
ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”.
Em outras palavras isso quer dizer que, se as terras do país estivessem
livres, os camponeses, assim, como os homens livres que aqui chegassem,
necessariamente, iriam se estabelecer nos territórios ainda não ocupados pelas
grandes fazendas. Ao mesmo tempo as fazendas ficariam despovoadas sem
possibilidades de expansão, sem força de trabalho. Por isso, a elite dominante
instituiu o cativeiro da terra, como uma forma de subjugar o trabalho dos
camponeses sem terra e dos homens livres que fossem atraídos para o Brasil.
Desse modo, a discussão sobre o uso da terra e as condições de sua
apropriação, proposta pelo poder político dominado pelos grandes proprietários
de terras, resultou na Lei de Terras de 1850. Essa lei estabeleceu o pacto das
elites de 1850, mantendo a concentração fundiária e a disponibilidade de força de
trabalho para a grande lavoura comercial. A Constituição republicana de 1891 e o
Código civil de 1917 o manteve repactuando a questão. Mudou apenas a
concessão das terras devolutas, excluídas as terras de marinha e as da faixa de

26
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: LECH, 1981. p.32.
36
fronteira, que passaram com o pacto federativo para os estados, premiando,
assim, as oligarquias locais.

1.2 - A formação do mercado de terras.

A Lei de Terras de 1850, como já visto, regulamentou um conjunto de


normas que estabeleciam os procedimentos legais para tornar a terra equivalente
de mercadoria. Dessa forma, foi instituído o mercado de terras no Brasil.
A formação do mercado de terras no Brasil tem sua origem no pacto das
elites estabelecido na Lei de Terras de 1850 e retificado com a Constituição
republicana de 1891, a partir da qual as elites reivindicaram para si o direito de
titular as terras devolutas. Com a Constituição de 1891, portanto, as elites
estaduais passaram a transformar terras devolutas em propriedades privadas, via
ação discriminatória feita pelos órgãos competentes nos estados.
De acordo com Martins27,

“(...) com a primeira Constituição republicana, de 1891, as terras devolutas são


transferidas para os Estados e colocadas nas mãos das oligarquias regionais. Cada
Estado desenvolverá sua política de concessão de terras, começando aí as
transferências maciças de propriedades fundiárias para grandes fazendeiros e
grandes empresas de colonização, interessados na especulação imobiliária. Esse
processo caracterizou principalmente os Estados do sul e sudeste”.

Se antes as terras devolutas eram terras mantidas sob o domínio da União,


com o pacto republicano, elas passaram para o domínio dos governos estaduais.
Iniciou-se, assim, uma ampla confusão sobre o entendimento do que seria terra
pública e terra devoluta.
Na leitura oficial, de acordo com Cirne Lima28,

São terras públicas, terras pertencentes à União, e mantidas em seu domínio (art.20,
I, Const. de 1934; art. 36, a, Const. de 1937; art. 34, II, Const. de 1946), mas não
devolutas, pela circunstância de se acharem constitucionalmente aplicado a dados
usos públicos, são as reservadas pelo art. 64 da Constituição de 1891, para a defesa
das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais.(...)”.

27
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1995. p. 43.
28
CIRNE LIMA, Ruy. Op. Cit. 2002. p. 73.
37
Conforme Marés29, As terras públicas, portanto, seriam ocupadas para
algum uso público da Coroa ou do governo local como praças, escolas, prédios,
etc. Estas terras teriam que estar sendo usadas confirmando a idéia de que a
“propriedade” púbica tem seu assento no uso e na destinação.
E são terras devolutas,

"1) as que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem
forem havidas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial,
não incursas em comisso, por falta de cumprimento das condições de medição,
confirmação e cultura; 2) as que não se acharem dadas por sesmarias ou outras
concessões do governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas pela
lei; 3) as que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem
em título legal, forem legitimadas pela lei; 4) as que não se encontrarem aplicadas a
algum uso público nacional, provincial ou municipal (art. 3º)30”.

Nota-se que a interpretação oficial esta pautada na lógica da dominação


que negou a presença da ocupação indígena, afirmando que as terras no Brasil
encontravam-se desocupadas.
Para Marés31, com a legislação de 1891, as terras devolutas passaram a
ser não as desocupadas, mas as legalmente não adquiridas. A mera ocupação de
fato não gerava domínio jurídico, que exigia o título do Estado ou o
reconhecimento, pelo Estado, de um título anterior, ou, ainda, o uso público.
Ainda, que a terra estivesse ocupada por trabalhadores, índios, quilombolas,
pescadores, produtores de subsistência entre outros sem o consentimento do
Estado, não perdia sua qualidade jurídica de devoluta. E é exatamente aqui que
se encontra a sutileza do sistema:

“o que recebe a concessão, não necessitava sequer conhecer a terra, nem mesmo
demarcá-la; escolhia a terra correspondente quando quisesse e passava a ter o
direito de retirar dela todos os que ali viviam, porque a situação dos não-beneficiários
passava a ser ilegal. Para “limpar” poderia usar sua própria força ou a chamada força
pública, isto é, a política do Estado, como até hoje ocorre32”.

Dessa forma, as terras devolutas existem desde a Independência e podem


ser entendidas, também, como parte da terra pública, ainda não titulada e sem o
competente título de propriedade registrado em Cartório de Registro de Imóveis

29
MARÉS, Carlos Frederico. Op. Cit., 2003. p. 69.
30
CIRNE LIMA, Ruy. Op. Cit. 2002. pgs. 70, 71.
31
MARÉS, Carlos Frederico. Op. Cit., 2003.
32
Ibid. p. 70.
38
(CRI) próprio. Sobre as terras devolutas, ninguém possui título, mas pode possuir
a posse, legalizada ou não. Confundir terras devolutas com terras públicas ou,
ainda, “terras de ninguém”, é, no mínimo, querer reproduzir a ideologia que
argumenta a favor da disponibilidade para a apropriação privada de terras.
Desse modo, o grande alvo das políticas estaduais, pós-Constituição
republicana de 1891, foram as terras devolutas tidas como “terras de ninguém”.
Nesse processo, foi desenvolvida a constituição de um mercado de terras no
Brasil, muito embora, o processo de institucionalização da propriedade privada da
terra seja algo mais assentado na Lei de Terras de 1850.
No caso do mercado de terras no Estado de São Paulo, Monbeig33, ao
refletir sobre a fronteira do café nas primeiras décadas do século XX, retratou a
rapidez com que a formação de fazendas de café transformou-se em um negócio
lucrativo de “sociedades especializadas” na especulação de terras.
A valorização do café como produto de exportação, a abertura para a
imigração estrangeira, a busca de novas terras, a abertura de novas fazendas e a
rápida ocupação de novas terras (ainda, não absorvidas pela lógica do mercado),
favoreceram para que a venda de terras na franja pioneira paulista se tornasse
um negócio lucrativo para os fazendeiros e capitalistas vendedores de terras.
Assim, nas primeiras décadas do século XX, os governos estaduais, com
São Paulo à frente, e as companhias particulares iniciaram um vigoroso processo
de colonização estrangeira nas fazendas de café no Sudeste do país.
Com a Revolução de 1930, houve, conseqüentemente, o afastamento dos
setores até então dominantes, em especial, a elite agrária de São Paulo. Vargas
começou, portanto, a dar os primeiros estímulos à criação de projetos de
colonização nas áreas de fronteira com a chamada “Marcha para o Oeste”.
Foweraker34, ao analisar a luta pela terra, nas regiões de fronteira do
Paraná, do Mato Grosso e do Pará, encontrou uma história legal com resultados
distintos.
No caso do Paraná, após a Constituição republicana de 1891, o governo do
Estado assumiu o direito legal das terras devolutas e as titulou. No entanto sua
autoridade permaneceu apenas como pano de fundo para as ações dos principais

33
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Ed. Hucitec/Polis, 1984.
34
FOWERAKER, Joe. A luta pela terra. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982.
39
protagonistas: a rede ferroviária e as companhias colonizadoras, que foram
agraciadas com extensas concessões de terras dentro da faixa de fronteira.
Após a Revolução de 1930, o governo federal acusou o Estado do Paraná
de desordem na titulação das terras, uma vez que ele titulava terras na faixa de
fronteira, área de atuação federal, ignorando os procedimentos legais para
expedir os títulos. Além disso, muitas vezes, os títulos eram expedidos uns sobre
os outros. Esses confrontos foram se avolumando e, à medida que a terra
adquiriu preço, os interesses privados buscavam o seu controle legal.
Nesse processo, para Foweraker35, o governo federal “deixou o caminho
aberto para a atuação livre dos capitais privados e grupos econômicos que se
deslocaram para a linha de frente na batalha pela terra”.
No caso do Mato Grosso, o reduzido papel político do Estado contribuiu
para que uma única companhia (a companhia de Mate Laranjeiras)
monopolizasse a terra no sul do estado, e, por muitos anos, dominasse o governo
estadual. Essa situação modificou-se após os anos de 1940, quando Vargas
refutou o poder político da companhia Laranjeiras, fundou o Território Federal de
Ponta Porã, em 1943 e, um ano depois, anulou os direitos da companhia dentro
do Território. A intenção, implícita na fundação desse território, era de estimular o
desenvolvimento das regiões de fronteira mediante a colonização dentro da faixa
de fronteira, e o resultado principal dessa intervenção foi a liberação das terras no
sul do estado.
Ressentidos pela pouca participação na vida política do Estado, os
proprietários do sul se aliaram aos paulistas, na Revolta paulista de 1932,
almejando a independência. O Mato Grosso do Sul, novo território estadual, teve
seu centro em Campo Grande. O povoamento de terra que ocorreu após os anos
de 1930 foi politicamente vantajoso para o sul, chegando a ameaçar a
sobrevivência dos políticos do norte.
Ainda para Foweraker36, “o povoamento, entendido como uma questão
política, revelou que tanto os políticos do norte como os do sul tinham pretensões
especulativas sobre a terra. Dessa forma, a maioria das pressões políticas
exercidas se davam não em função das rivalidades regionais, mas com
finalidades lucrativas”.

35
Ibid. p.129.
36
Ibid. p.137.
40
No Estado do Pará, após os anos de 1930, com o declínio da borracha, o
interesse pelas terras públicas estaduais se restringia a uns poucos casos de
arrendamento das reservas de castanha.
O impacto da chegada da estrada Belém-Brasília, no final dos anos de
1950, dinamizou a região sul de Belém, causando um rápido desenvolvimento,
uma subida dos preços da terra e uma fusão de problemas fundiários no estado.
A estrada trouxe com ela uma onda de grileiros e especuladores de terras. Vastas
áreas de “terras públicas existentes foram vendidas em condições beirando a
anarquia”37.
De acordo com Foweraker38,

“nos anos 60, o governo federal criou a Amazônia Legal, definindo a área prioritária
da Amazônia a ser beneficiada com programas federais de desenvolvimento e de
incentivos fiscais e creditícios à entrada do capital privado (...). Com isso, nos anos
70, o governo federal, por intermédio do INCRA, passou a controlar diretamente toda
a terra até 100 km de cada lado de todas as estradas construídas, em construção ou
projetadas dentro da área da Amazônia Legal”.

Com pouca ou nenhuma clareza sobre suas áreas de atuação, INCRA e


Instituto de Terras do Pará (ITERPA) órgãos responsáveis pela política de terras
dentro do Pará, tiveram dificuldades para conhecer os limites precisos de suas
respectivas autoridades sobre a região. Desse modo, se configurou “na região de
fronteira a situação de autoridade dual, onde os limites entre as duas autoridades
não estão claramente definidas e os objetivos das duas autoridades podem
claramente divergir”39.
Assim, para esse autor, a história legal da terra na fronteira quase sempre
leva aos conflitos fundiários. Conflitos que muitas vezes são derivados da
autoridade dual e “se reproduzem, na realidade concreta, de forma violenta e
infinita, entre posseiros e camponeses de um lado, e os proprietários de terra, as
companhias madereiras e de colonização e seus pistoleiros alugados do outro”40.
Conforme Oliveira41, a abertura de novas frentes de ocupação na
Amazônia trouxe consigo a lógica contraditória do desenvolvimento do capitalismo

37
Ibid. p. 139.
38
Ibid. p. 140.
39
Ibid. p. 143.
40
Ibid. p.145.
41
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A fronteira amazônica mato-grossense. São Paulo, 1997. p.
143.
41
no campo brasileiro. “Assim, o mesmo processo que levou os capitalistas a
investirem na fronteira contém o seu contrário, a necessária abertura dessa
fronteira aos camponeses e demais trabalhadores do campo”.
Para o autor a etapa recente da ocupação da Amazônia se expressa na
fase monopolista do capitalismo. Isso quer dizer que a lógica do desenvolvimento
está ditada pela ação dos monopólios privados (nacionais e internacionais) e
públicos. “Não há mais disputa no e pelo mercado. Há tão somente a imposição
dos monopólios. A mercadoria que comanda o processo de ocupação é a
propriedade privada da terra”42.
A economia brasileira se internacionalizou nos últimos de 30 anos,
expandindo o trabalho assalariado e dando condições para a reprodução do
trabalho familiar. Porém, contraditoriamente, o campo brasileiro foi sacudido por
movimentos sociais de luta pela terra. Os governos militares procuraram
‘administrar’ essa contradição, reprimindo os movimentos populares e
possibilitando a transformação de grandes capitalistas nacionais e internacionais
em grandes latifundiários, a partir dos programas de incentivos fiscais da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) para projetos
agropecuários na Amazônia.
Desse modo, segundo Oliveira43, o processo de ocupação recente do
norte mato-grossense, assentado na abertura dos projetos agropecuários e nos
projetos de colonização privados, teve sua base na grilagem das terras indígenas
e na expropriação dos camponeses posseiros. No processo de expansão, os
latifúndios (com as empresas agropecuárias) desconsideram os direitos dos
posseiros e dos índios sobre as terras, instalando as condições para os conflitos.
A luta veio em diferentes formas de resistências indígenas e de posseiros.
Portanto, no processo de ocupação recente do norte mato-grossense e da
Amazônia, houve o aprofundamento da concentração fundiária (na fronteira agora
ocupada) com grandes latifúndios. Contraditoriamente, houve o crescimento e a
participação significativa dos posseiros nessa região.
Martins44 revelou com clareza e objetividade a constituição do processo de
ocupação na Amazônia.

42
Ibid. p. 136.
43
Ibid.
44
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência. São Paulo: Hucitec, 1980. Pp. 74/75.
42
“... o terreno vai sendo definido como se fosse constituído de faixas, cada uma
ocupada de forma social distinta e cada forma social em conflito com a outra.
Caracteristicamente, no limite mais interior do território estão as sociedades tribais.
No limite mais exterior está a sociedade capitalista plenamente constituída. Entre
ambas, está o posseiro que concebe a terra de modo completamente distinto do
capitalista, embora também esteja vinculado ao mercado como produtor simples de
mercadorias.
Tradicionalmente, o posseiro operou como desbravador do território, como
amansador da terra. A verdade é que, pressionado pelas empresas capitalistas
interessadas em desalojá-lo de suas terras foi freqüentemente utilizado para deslocar
os grupos indígenas para avançar sobre as terras deles, desalojando o índio porque
desalojado pelo capital. No caso mais recente e atual da ocupação das novas
regiões, como se dá na Amazônia, a verdade é que o capital amplamente estimulado
pelo Estado, já avança, ao mesmo tempo, sobre as terras de posseiros e terras
indígenas.
Prefiro, por isso, não falar em zona pioneira. Estamos de fato diante de dois
movimentos distintos e combinados de ocupação territorial, que ocupam de formas
distintas e conflituosas entre si territórios via de regra já ocupados por sociedades
tribais. Através do deslocamento de posseiros é que a sociedade nacional, isto é,
branca, se expande sobre territórios tribais. Essa frente de ocupação territorial pode
ser chamada de frente de expansão. Um segundo movimento é constituído pela
forma empresarial e capitalista de ocupação do território – é a grande fazenda, o
banco, a casa de comércio, a ferrovia, a estrada, o juiz, o cartório, o Estado. É nessa
frente que surge o que em nosso país se chama hoje, indevidamente, de pioneiro.
São na verdade os pioneiros das formas sociais e econômicas de exploração e
dominação vinculadas às classes dominantes e ao Estado. Essa frente pioneira é
essencialmente expropriatória porque está socialmente organizada com base numa
relação fundamental, embora não exclusiva, que é a de compradores e vendedores
de força de trabalho. Quando se dá a superposição da frente pioneira sobre a frente
de expansão é que surgem os conflitos pela terra”.

No caso do Nordeste, conforme Chandler45, após a Constituição


republicana de 1891, houve o fortalecimento de uma forma política que se
instalou no sertão com um único objetivo, garantir voto. Portanto, a Constituição
de 1891 e o Código Civil que a ela se seguiu mantiveram o sistema de acesso à
terra restrito aos pobres, embora, a propriedade das terras devolutas, agora,
transferida da União para os estados, tenha fortalecido o jogo político que se
instalou nos sertões para garantir que o “coronel” local votasse a favor do governo
do Estado. Na relação, os coronéis tinham assegurada a não-interferência em

45
CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p.26.
43
seus domínios. A força local de polícia sob controle do governo do Estado,
geralmente, dava apoio aos coronéis. Com isso, os coronéis conseguiam dominar
efetivamente muitas comunidades sertanejas. Embora, houvesse algumas que
fugissem à regra.
Para Chandler46, os moradores que não conseguiam a proteção de um
patrão e/ou coronel estariam fadados à perambulação pelo sertão, ao banditismo,
ao messianismo. Já as comunidades se transformavam em verdadeiras “selvas”,
“lugares sem lei”, onde cada um lutava pela sua sobrevivência.
A falta de instituições do Estado favoreceu a constituição de códigos de
direitos costumeiros reconhecidos por todos. As brigas entre famílias, as
rivalidades políticas, os conflitos fundiários eram resolvidos conforme a “lei dos
coronéis”, executada às escondidas. Portanto, o sistema político de poder e
justiça estava intrinsecamente atrelado ao poder dos coronéis na região dos
sertões nordestinos.
Conforme, Martins47, foi no governo de Getúlio Vargas que se

“estabeleceram as bases para um pacto político tácito, ainda hoje vigente, com
modificações, em que os proprietários de terra não dirigem o governo, mas não são
por ele contrariado. A Constituição de 1946 não alterou substancialmente esse pacto,
antes o reforçou. (...) uma garantia essencial da ordem era o dispositivo constitucional
que estabelecia como restrição às desapropriações de terra para fins sociais
(inclusive, pois, a reforma agrária) a obrigatoriedade da indenização prévia e em
dinheiro ao proprietário. Esse dispositivo tornava a reforma agrária economicamente
inviável (...)”.

Assim, o governo preferiu não interferir diretamente nas relações de


trabalho na área rural, embora tivesse melhorado substancialmente as condições
de vida dos trabalhadores urbanos. Consequentemente, se manteve na área rural
um fiel eleitorado que se alimentou continuamente de relações corruptas com o
clientelismo político.

As condições de vida dos pobres no campo eram desastrosas. Migrações,


fome, saques, medo, violência, resistência e luta foram conseqüências de crise na
sociedade sertaneja no início do século XX.

46
Ibid.
47
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1995, p. 72.
44
O agravamento das péssimas condições de vida entre os camponeses
favoreceu a formação de organizações camponesas, como o movimento das
Ligas Camponesas em Pernambuco. A intensificação dos conflitos no campo fez
com que, a partir de 1960, fosse criada a Superintendência de Desenvolvimento
do Nordeste (SUDENE) e a colonização passasse a ser a frente prioritária de
ação governamental.

Para Andrade48, admitindo a existência do problema agrário no Nordeste,


a SUDENE apresentou como solução a ampliação da oferta de terras, a partir da
abertura de novas frentes agrícolas no Maranhão e no sul da Bahia. Muito
embora, “a verdadeira “menina dos olhos” do sr. Celso Furtado era o Maranhão.
Por haver correntes migratórias espontâneas das zonas secas do Nordeste para o
Maranhão, onde há terras devolutas em abundância e onde a umidade permitiria
a existência de uma agricultura cabocla razoavelmente compensadora”.

Nesse processo, a teoria sucumbiu a realidade, e “os nordestinos não


esperaram a abertura do voluntariado por parte da SUDENE, se transferiram por
conta própria, nas condições as mais precárias possíveis, para a propalada
“Canaã Maranhense”49.

Com a abertura da estrada Belém-Brasília e da Belém-São Luís essa


migração camponesa se expandiu para a região Norte. Conforme Ianni50, o
crescente deslocamento de trabalhadores rurais e seus familiares, principalmente
para o sul do Pará, o norte de Goiás, o norte do Mato Grosso, Rondônia e o Acre,
significou, na prática, um processo de colonização espontânea, uma reforma
agrária de fato, realizada pelos trabalhadores rurais, sem interferência de
governantes, burocratas ou técnicos.

A colonização na área de fronteira, em grande parte, se deu via migração


espontânea de camponeses sem terra empobrecidos, que buscaram nos projetos
de colonização e nos projetos agropecuários financiados e estimulados pelas
agências de desenvolvimento SUDENE e SUDAM, a possibilidade de sua
reprodução social.

48
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. 2ªed. Recife. Ed. Brasiliense, 1964.
p.232.
49
Ibid. p.233.
50
IANNI, Otávio. Colonização e contra-reforma agrária na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1979a.
45
Conforme Andrade51, a facilidade de obtenção de créditos oriundos dos
projetos agropecuários aprovados pela SUDENE e pela SUDAM, foram decisivas
para que empresas da região Sudeste, sobretudo de São Paulo, instalassem
fazendas nas regiões Norte e Nordeste, promovendo o desmatamento, a
plantação de pastagens, o enquadramento dos trabalhadores rurais em projetos
de colonização dirigida e o aumento dos conflitos fundiários.

A política fundiária favoreceu a instalação de empresas do Sudeste e do


próprio Nordeste em terras de antigos ocupantes posseiros, em terras de índios e
em terras de mata, configurando uma situação na qual o mercado de terras se
fundiu com a reforma agrária e os conflitos na fronteira.

Segundo Andrade52, a expansão das grandes empresas em


empreendimentos fundiários é justificada pela facilidade de aquisição de terras a
baixo preço, pela facilidade de obtenção de recursos governamentais para a
aplicação dos projetos agropecuários e pela utilização de mão-de-obra barata, às
vezes até em regime de tipo “semi-escravidão”. Porém, a grilagem de terras e a
violência organizada, atingindo camponeses, índios e posseiros eram noticiadas
diariamente pela imprensa do país.

Os projetos de colonização nas terras devolutas nas regiões Norte e


Nordeste ficaram muito aquém das necessidades dos camponeses. Isso porque
apresentavam fragilidades, que iam desde a má localização das colônias até a
baixa fertilidade dos solos. Portanto, esses projetos colocaram os camponeses
em condições desfavoráveis frente à grande propriedade, abrindo um verdadeiro
abismo nas condições sócio-econômicas na região. Conforme Ianni53, toda
política de colonização posta em prática com o Programa de Integração Nacional
(PIN), que envolveu a Transamazônica e outra estradas, não foi se não um efetivo
programa de contra-reforma agrária na Amazônia, no Nordeste e nas outras
partes do Brasil.

Na relação mercado e política de terras, segundo Reydon y Ramos54, o


Estado teve um papel importante, sobretudo ao expedir leis de terras que

51
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. 6ª edição. Recife: Ed. da
Universitária da UFPE, 1998.
52
Ibid. p.225.
53
IANNI, Otávio. Op. Cit., 1979a.
54
REYDON, P. Bastiaan y RAMOS, Pedro. Introducción. In: REYDON, P. Bastiaan y RAMOS, Pedro
(orgs.). Mercado y politica de tierras. Campinas, São Paulo, Brasil: Unicamp. IE, 1996.
46
reforçaram a propriedade privada e permitiram que esta fosse perdendo o papel
social que teve nas sociedades antigas, para transformar-se na propriedade
privada da sociedade moderna. Apesar de todo esse processo, a terra não
chegou a ser totalmente uma mercadoria como outra qualquer. A terra foi
transformada em uma mercadoria especial, elemento central da propriedade
privada, a qual somente se pode ter acesso mediante o mercado. Por outro lado,
a idéia da terra como propriedade social também se desenvolveu nos intentos do
socialismo e na própria concepção camponesa da terra.
Desse modo, a reestruturação do poder que ocorreu com a Revolução de
1930 e a sua reafirmação na Constituição de 1946 reforçaram e reatualizaram o
pacto político dos militares com as oligarquias regionais, mantendo e ampliando a
exclusão dos camponeses das políticas sobre terra do Estado. Todo esse
movimento político se deu em conseqüência do avanço da organização dos
movimentos sociais no campo.

1.3 - Os movimentos sociais de luta pela terra e o regime militar.

Os movimentos sociais de luta pela terra começaram a ser gestados muito


antes da implantação do regime militar de 1964 no Brasil. É no resgate das lutas
coletivas, muitas vezes, escondidas nos meandros da história oficial, que se pode
encontrar o embrião da luta pela terra e pela reforma agrária.
De acordo com Oliveira55, “Palmares, Canudos, Contestado, greves nos
cafezais paulistas são exemplos de luta na história dos trabalhadores e dos
rebeldes. Lutas nas quais os trabalhadores foram forjando os movimentos sociais
de luta pela terra e pela dignidade humana”.
Nesse processo de luta, o século XX, além de intensificar os exemplos das
lutas camponesas pela terra, trouxe duas componentes novas.

“De um lado, a tentativa de resgate da condição de camponês autônomo frente à


expropriação, representada pelos posseiros e sua luta contra os fazendeiros grileiros.
De outro, o movimento originado na luta dos camponeses parceiros ou moradores
contra a expropriação completa no seio do latifúndio, que os transformava em
trabalhadores assalariados”56.

55
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A longa marcha do campesinato brasileiro. REA, 15 (43), São
Paulo, 2001.
56
Ibid. p. 18
47
Os conflitos no campo brasileiro durante todo o século XX tiveram um
componente essencial, a luta travada pelos camponeses contra o pagamento da
renda da terra. Foram exemplos desses conflitos a Revolta de Trombas e
Formoso, em Goiás, a guerrilha de Porecatu, no Paraná, e a formação das Ligas
Camponesas, no Nordeste brasileiro.
Para Oliveira57, com base em Martins58, a revolta de Trombas e Formosa
representou a expressão maior dos muitos conflitos e expulsões no campo
brasileiro de Goiás. Esse movimento passou pela relação dos latifundiários
aliados aos juizes contra os camponeses posseiros que tiveram suas posses
griladas em 1912. Nesse processo de luta, a participação do Partido Comunista
do Brasil (PCB) foi decisiva para a organização camponesa e a conquista da
região de Trombas e Formosa em 1964.
A guerrilha de Porecatu no Paraná, ocorreu num contexto em que, “as lutas
pela terra passaram pelas relações entre latifundiários e o Estado e as muitas
falcatruas realizadas pelos governantes no exercício do poder contra os
camponeses posseiros. Estes conflitos vão conter, como se viu em Trombas e
Formoso, a participação do Partido Comunista do Brasil”59.
Mas, segundo Oliveira60,

“foi com as Ligas Camponesas, nas décadas de 50 e 60, que a luta camponesa no
Brasil ganhou dimensão nacional. Nascidas muitas vezes como sociedade
beneficente dos defuntos, as Ligas foram organizando, no Nordeste brasileiro, a luta
dos foreiros, moradores, arrendatários, pequenos proprietários e trabalhadores da
Zona da Mata, contra o latifúndio”.

Assim, embora o movimento das Ligas Camponesas tenha sido um


movimento regional, ele deve ser entendido como uma manifestação nacional,
porque revelou para o país o estado de tensão e injustiças a que estavam
submetidos os trabalhadores do campo brasileiro.
Para Oliveira61,

“a compreensão do processo de expansão nacional do movimento das Ligas


Camponesas tem que ser entendido, também, no seio da discussão sobre o
desenvolvimento capitalista no Brasil, entre as diferentes tendências políticas da

57
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A geografia das lutas no campo. São Paulo: Contexto, 1999.
58
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1981.
59
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 1999. p.20.
60
Ibid. p.22.
61
Ibid. p.24.
48
esquerda. Fundamentalmente, com a orientação do Partido Comunista do Brasil, é
criada em 1954, em São Paulo, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas
do Brasil - ULTAB – com a finalidade de coordenar as associações camponesas
então existentes”.

Desse modo, a ULTAB tinha a função de articular e organizar, via Partido


Comunista, o processo de luta dos camponeses no país. Uma luta que,
teoricamente, deveria caminhar para uma revolução democrático-burguesa,
pensada como uma etapa necessária à revolução socialista. Entretanto, as cisões
ocorridas no interior do PCB, depois do primeiro Congresso de Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas no Brasil, em 1961, marcaram o início das divergências
entre os movimentos da ULTAB e as Ligas Camponesas, que apresentou a
proposta de realização da reforma agrária radical no país.
Ao dar voz aos camponeses, o movimento das Ligas quebrou o silêncio do
sofrimento. E, com isso, ganhou corpo e deu forma a organização camponesa na
luta pela terra, provocando o contra-ataque dos militares. A voz do movimento das
Ligas Camponesas foi duramente calada com o “movimento militar de 64, que
assumiu o controle do país, instaurou a perseguição e o ‘desaparecimento’ das
lideranças do movimento das Ligas Camponesas, e sua desarticulação foi
inevitável”62.
Desse modo, o espaço de tempo que antecedeu o golpe militar de 1964
esteve marcado pelo início de várias organizações camponesas na luta pela terra.
Nesse momento, a reforma agrária se tornou uma demanda ampla, disputada por
diferentes grupos sociais que buscavam traduzir, com ações políticas, a luta pela
terra existente em diversos pontos do país.
Segundo Martins63,

“o desenvolvimento do período de 1946 e 1964, a incorporação de novos territórios à


economia nacional, com o deslocamento da capital federal para o Centro-Oeste, a
ampliação da frente pioneira, em decorrência da abertura da rodovia Belém-Brasília,
a modernização, a reformulação da agricultura de exportação entre outros ocorridos
modificou profundamente as relações entre as classes sociais e políticas no País. (...)
O Partido Comunista era a favor da reforma agrária, a Igreja Católica exigia que o
dispositivo da Constituição de 1946 sobre a indenização em dinheiro fosse cumprido.
Nesse mesmo tempo as Ligas Camponesas falavam em uma reforma agrária radical,
se diferenciando dos dois grupos outros”.

62
Ibid. p.26.
63
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso. São Paulo: Hucitec, 1999. p.72/73.
49
No Congresso Nacional, por sua vez, as elites passaram a pensar em uma
composição política mais sensível às reformas sociais e a reforma agrária passou
a ter um lugar privilegiado nesse debate. Isto porque, no fundo, o que entrava em
discussão era a questão da propriedade da terra e as relações políticas
alicerçadas na manutenção do monopólio da propriedade privada da terra.
O golpe militar deflagrado no ano de 1964 trouxe consigo a criação da
Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e o começo do
processo de reforma agrária. Consequentemente, se estabeleceu um quadro de
impasses entre o governo militar e os grandes proprietários de terra.
Para Martins64, isto aconteceu porque,

“o golpe não teria sido possível sem a intervenção e a ação da classe dos
proprietários de terra.(...) As resistências e temores dos proprietários de terra, logo
que ficou claro que os militares estavam trabalhando num projeto de reforma agrária,
desdobraram-se em iniciativas para desestabilizar ou radicalizar o novo regime. O
regime militar, porém, produziu uma legislação suficientemente ambígua para dividir
os proprietários de terra e assegurar, ao mesmo tempo, o apoio do grande capital,
inclusive o apoio do grande capital multinacional”.

A proposta de reforma agrária dos militares postergou o problema dos


conflitos fundiários, calando a boca das lideranças dos movimentos sociais, e
conquistou o apoio dos latifundiários, garantindo ambigüidades na legislação do
Estatuto da Terra (ET).
A Lei 4.504 de 30 novembro de 196465, chamada de Estatuto da Terra, foi
a primeira Lei construída com o intuito de realizar a reforma agrária no Brasil. O
Estatuto da Terra introduziu novos conceitos que indicavam diferentes tipos de
propriedades da terra: o minifúndio, os latifúndios por extensão e por exploração e
a empresa rural. Os critérios de desapropriação foram precisos, ou seja, seriam
desapropriados minifúndios e latifúndios que não cumprissem com a sua função
social, sem direito à contestação judicial pelo proprietário, a não ser em termos de
valores indenizatórios. A desapropriação foi prevista mediante pagamento da
prévia e justa indenização em Títulos de Divida Agrária (TDA’s), resgatáveis no
prazo máximo de vinte anos, e tendo em vista a função social da terra.

64
Ibid. p. 78.
65
BRASIL. Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras
providências. Brasília, DF, 1964.
50
A terra devia ser utilizada: a) de modo que houvesse uma exploração que
favorecesse o bem-estar do proprietário e das famílias que nela labutavam; b) de
forma que mantivesse níveis satisfatórios de produtividade; c) de modo que
respeitasse o meio ambiente; e d) de forma que cumprisse a legislação
trabalhista. Combinados esses quatro itens, o proprietário estaria dando à terra
sua função social.
Desse modo, o regime militar estabeleceu sua proposta de reforma agrária,
muito embora a clareza dessa proposta desaparecesse na interpretação dos
conceitos operacionais criados para sua execução.
De acordo com Martins66,

“o regime militar procurou classificar usos e extensões de propriedade, de modo a


formular um conceito operacional de latifúndio e estabelecer, portanto, uma distinção
entre terras desapropriáveis e terras não desapropriáveis. O duplo conceito de
latifúndio, por extensão e por exploração, no fundo era mais radical do que o vago
conceito de latifúndio usado pelas esquerdas antes de 1964, porque incluía como
latifúndios terrenos não tão extensos, porém, mas explorados. Ao mesmo tempo,
incluía entre as terras desapropriáveis os minifúndios, ou ao menos os incluía nas
terras penalizáveis pela taxação, que era o principal instrumento da reforma. A
flexível categoria de empresa rural recebia as simpatias do Estado e escapava da
possibilidade de ser incluída nas desapropriações. O que indica, em princípio, uma
reforma agrária orientada para a mecanização econômica e para a aceleração do
desenvolvimento capitalista na agricultura”.

Assim, a intervenção militar não foi para fortalecer a organização política


dos camponeses, nem tampouco para fazer a reforma agrária, pois isso
representaria o fim do pacto firmado entre as elites desde a Lei de Terras. A
opção pela modernização dos latifúndios trouxe consigo a possibilidade da
reprodução ampliada do capitalismo no campo brasileiro.
Conforme Oliveira67, a idéia da chamada modernização da agricultura
presente no Estatuto da Terra “não vai atuar no sentido da transformação dos
latifundiários em empresários capitalistas, mas, ao contrário, transformou os
capitalistas industriais urbanos – sobretudo do Centro-Sul do país – em
proprietários de terras, em latifundiários”.
Para esse autor, a política de incentivos fiscais da SUDENE e da SUDAM
viabilizou a fusão dos capitalistas urbanos em proprietários de imensos latifúndios

66
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1999. p.78/79.
67
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit., 2001. p.186.
51
no Brasil. Essa aliança, contrária aos camponeses e aos movimentos sociais,
favoreceu a consolidação da propriedade privada da terra. Tal relação é parte
constitutiva do caráter rentista do capitalismo no Brasil68.
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pela política territorial do
governo militar voltada para a formação da empresa rural a partir dos incentivos
fiscais doados aos capitalistas, que se tornaram também proprietários de terra
rentistas, e por projetos de colonização, tidos como política alternativa à reforma
agrária.
No caso do Nordeste, um dos instrumentos mais utilizados para promover
a modernização da agricultura foi o Programa de Redistribuição de Terras e
Estimulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (Proterra).
De acordo com Oliveira69, o Proterra teve por objetivo promover o mais
fácil acesso do homem à terra, criar melhores condições de emprego, de mão-de-
obra, e fomentar a agroindústria nas áreas da SUDAM e SUDENE. O plano inicial
se restringiu apenas a algumas zonas da região considerada como prioritária para
a realização de reforma agrária: zona da mata e agreste pernambucano, zona do
brejo paraibano e sertão cearense.
Para todos os proprietários de terras com área igual ou superior a 1.000
(mil) hectares, situadas nessas áreas, o governo deu um prazo de 180 dias para
que apresentassem projetos de participação no Proterra, nas seguintes
proporções: 20% do latifúndio com área de mil ha; 30% para aqueles entre mil e 3
mil ha; 40% para os de área entre 3 mil e 5 mil ha e 50% para áreas superiores a
5 mil ha. O dono da propriedade ficou encarregado de apresentar um projeto de
venda e aproveitamento de uma parcela das terras, podendo escolher a área a
ser cedida e as pessoas que poderiam aproveitá-las. Apresentado o projeto ao
INCRA, depois de aprovado, o proprietário receberia uma ‘prévia e justa
indenização em dinheiro’ pelas terras, que seriam vendidas a pequenos
agricultores pelo Banco do Brasil.
Conforme Andrade70, vencido o prazo para entrega dos projetos ao
INCRA, em Pernambuco, a adesão foi de 119 proprietários de terras, entre os

68
Em várias obras MARTINS, José de Souza (1981; 1986; 1995) desenvolve esta concepção que
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit., 2001 tomou como referência.
69
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Integrar para (não) entregar. Campinas: Papirus, 1988.
70
ANDRADE, Manuel Correia de. Op. Cit. 1986.
52
quais se encontravam vários usineiros. Na Paraíba deveriam ser liberados 12.478
ha e, no Ceará, a área ultrapassou os 500.000 ha.
Para Oliveira71, os recursos para promover essa “reforma” seriam
provenientes de cotações orçamentárias, do Programa de Integração Nacional
(PIN) e do sistema de incentivos fiscais.

“Com isso, criava o governo do General Médici um programa que simplesmente


contrariava o Estatuto da Terra, que provia a desapropriação através de pagamento
com ‘Títulos da Dívida Agrária’. Através do PROTERRA, passava esta
desapropriação a ser feita ‘mediante prévia e justa indenização em dinheiro’ (alínea
“a” do artigo 3). Estava estabelecido mais um elo da ‘contra-reforma agrária’, ou seja,
uma ‘reforma a favor dos latifundiários’”.

Com o Golpe de 1964, verifica-se que o Estado encontrou formas de


atenuar as forças políticas dos movimentos camponeses. A instalação da ditadura
militar esgotou de vez a possibilidade da reforma agrária e promulgou o Estatuto
da Terra, reconhecendo, portanto, a necessidade de mudanças na questão da
propriedade fundiária no país. Embora o Estatuto tenha sido um documento sério,
tenha apresentado um caráter progressista e mostrado uma real preocupação
com os interesses dos trabalhadores do campo, foi antes de mais nada a
“’reforma agrária’ dos militares”72.
Dessa forma, a pressão feita pelos grandes proprietários de terra fez com
que os governos militares jamais o implantasse. Com isso, refez-se o pacto
político dos governos com a elite do país e, mais uma vez, o latifúndio não foi
combatido pelos capitalistas, que de fato se fortaleceram com o Estatuto da Terra.
Contraditoriamente, entrou em cena um elemento novo que trouxe consigo a
possibilidade da reforma agrária ampla e plural com respeito, dignidade e
possibilidade de construção da cidadania no campo. Foram as organizações
camponesas, fundamentais no encaminhamento da luta pela terra e pela reforma
agrária, também, durante o período que se convencionou chamar de “Nova
República”, como veremos mais adiante.
A luta pela terra, nesse período, intensificava-se e os conflitos no campo
colocavam para índios, posseiros e camponeses a necessidade da organização e
da luta coletiva pela terra.

71
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit., 1988. p.82.
72
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 1999.
53
Abriram-se, então, frentes de apoio à luta dos camponeses. A entrada da
Igreja Católica em defesa dos índios e posseiros, via Conselho Indigenista
Missionário (CIMI) e Comissão Pastoral da Terra (CPT), e por intermédio de
padres e agentes identificados com a Teologia da Libertação, deu maior
visibilidade à questão agrária no conjunto da sociedade. Denúncias públicas,
reuniões e leituras bíblicas fortalecendo o combate e a resistência foram ações
que definiram uma nova dinâmica na política nos conflitos fundiários, a favor dos
camponeses.
Outras frentes de luta foram os movimentos sociais. No período do regime
militar surgiram movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB); o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o
Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Esses movimentos levaram à tona a
necessidade de uma nova discussão sobre a reforma agrária e o questionamento
sobre o pacto político e econômico mantido entre o governo e a elite dos grandes
proprietários de terra.
Na luta do campesinato brasileiro, o MST tem se mantido, nesse início de
século XXI, por ser o único movimento social capaz de colocar o governo na
defensiva, fundamental no encaminhamento da política agrária do país.
De acordo com Oliveira73, criado no início dos anos de 1980, o MST, tem
como binômio de ação a lógica acampamento-assentamento. Conhecer o MST é
entender o processo de luta pela terra calcado nos acampamentos, portanto, nas
ocupações e na luta nos assentamentos. Assim, o MST articula, de forma
contraditória, a espacialização da luta à sua própria territorialização nos
assentamentos.
O MST tem desenvolvido, nas ocupações e nos assentamentos, ações
políticas fundamentais no processo de construção da consciência da luta do
campesinato brasileiro.

73
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 2001.
54
1.4 - A “Nova República” e a questão fundiária.

As mobilizações populares pelo fim do regime militar e a ampliação do


número de conflitos no campo, denunciados publicamente, trouxeram novas
esperanças para a sociedade civil de realização da reforma agrária. O governo da
“Nova República” assumiu a realização do primeiro Plano Nacional de Reforma
Agrária (PNRA). O INCRA, então, passou a elaborar o I PNRA, no qual foi
previsto o assentamento de 1,4 milhões de famílias ao longo de cinco anos.
De acordo com Oliveira74, ao ser anunciado o I PNRA, em um Congresso
de trabalhadores rurais, iniciou-se “a movimentação contrária dos setores
ruralistas que faziam parte do governo da ‘Nova República’ visando impedir a sua
implementação”.
A resposta dos latifundiários ocorreu com a organização dos
representantes dos grandes proprietários de terra, que criou a União Democrática
Ruralista (UDR). A UDR nasceu para garantir o direito de proteção da propriedade
da terra dos latifundiários. Com orientação à “militarização” dos latifúndios,
visando combater as ocupações de terra com a violência armada e, assim,
impedir a implantação do PNRA. Desse modo, a reação latifundiária intensificou a
violência no campo e uma força política contrária à realização do I PNRA se fez
presente no Congresso Nacional, a UDR praticamente centrou seu trabalho na
crítica à proposta do Plano Nacional. Como conseqüência disso, o I PNRA sofreu
mudanças retrasadas que inviabilizaram a concretização das metas previstas.
Conforme Pinto75, quando o Plano foi encaminhado para ser aprovado, as
pressões se multiplicaram e mudanças radicais foram permitidas. O autor
destacou duas: a que deixa os latifúndios (por dimensão e por exploração)
cumpridores de sua função social não passíveis de desapropriação, e a que torna
as áreas com alta incidência de arrendatários e posseiros não desapropriáveis. A

74
Ibid.
75
PINTO, Luís Carlos Guedes. Política agraria en Brasil. In: BASTIAAN, P. Reydon y RAMOS, Pedro
(orgs.). Mercado y políticas de tierras. Campinas, São Paulo, Brasil: UNICAMP, IE, 1996.
55
primeira criou a figura esquisita do latifúndio produtivo, e a segunda negou o
artigo 20 do Estatuto da Terra76.
Toda a mobilização política implementada pela UDR desarticulou
completamente a organização pensada para a implantação do Plano. Assim, o
governo Sarney deixou como saldo um número extremamente reduzido de
beneficiários do I PNRA. “Apenas 8% das terras previstas foram desapropriadas,
e 10% das famílias assentadas. Assim, o sonho de 1,4 milhões de famílias
assentadas, que havia sido anunciado em 1985 ficou reduzido a pouco mais de
140 mil” 77.
A mobilização da UDR durante a elaboração da Constituição Federal de
1988 articulou os segmentos contrários a qualquer dispositivo que permitisse a
desapropriação por interesse social de terras ociosas. Contando com o apoio dos
setores conservadores, ligados aos proprietários de terra, a UDR conseguiu, num
contexto de elaboração de uma Constituição considerada moderna e avançada,
articular seus interesses, utilizando várias manobras políticas e fazendo
prevalecer seus interesses imediatos. Tudo o que se incorporou à Constituição
Federal em termos de função social da terra e desapropriação por interesse social
foi anulado com a introdução do inciso II do artigo 185, que diz ser “a propriedade
produtiva” não suscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, não
definindo, portanto, o que se entende por propriedade produtiva. Tal dispositivo
abriu margem a graves conflitos fundiários no campo brasileiro.
Conforme Silva78, qualquer proposta de avaliação dos trabalhos ocorridos
na Assembléia Nacional Constituinte (ANC) precisa levar em conta o patamar em
que ela colocou o segmento dos trabalhadores rurais sem terra. Isto porque,

76
Art. 20. “As desapropriações a serem realizadas pelo Poder Público, nas áreas prioritárias, recairão
sobre: I) os minifúndios e latifúndios; II) as áreas já beneficiadas ou a serem por obras públicas de vulto;
III) as áreas cujos proprietários desenvolverem atividades predatórias, recusando-se a por em prática
normas de conservação dos recursos naturais; IV) as áreas destinadas a empreendimentos de
colonização, quando estes não tiverem logrado atingir seus objetivos; V) as áreas que apresentem
elevada incidência de arrendatários, parceiros e posseiros; VI) as terras cujo uso atual estudos levados
a efeito pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária comprovem não ser o adequado à sua vocação de
uso econômico”. BRASIL. Lei n. 4.504 de 30 de nov. de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra e dá
outras providências. Brasília, DF, 1964.
77
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 2001. p.200.
78
SILVA, José Gomes da. Buraco negro. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989. p. 199.
56
“a nova CF não diminuiu o terrível fosso que separa o sem-terra acampado debaixo
de uma lona do seu algoz da UDR. Pelo contrário, a Carta de 1988 aprofundou o
buraco da desigualdade, impedindo, definitivamente, que a questão agrária brasileira
pudesse ser resolvida por via pacífica.(...) Ao manter o malfadado inciso que isenta
de desapropriação a chamada “propriedade produtiva”, a ANC retrocedeu aos idos de
1946 e do ET e desdourou-se quando comparada à Carta outorgada pelos três
ministros militares em 17 de outubro de 1969”.

O autor continua mais adiante,

“o destaque a não suscetibilidade da desapropriação da “propriedade produtiva” trata-


se, na verdade, de uma deformação conceitual e uma impropriedade semântica,
escondendo uma armadilha legal e uma tática latifundiária. Consegue também [os
latifundiários], com esses artifícios, reduzir consideravelmente a área de terras
destinadas à realização da RA [Reforma Agrária] no Brasil”79 .

Silva chamou atenção para dois pontos cruciais: primeiro, o fato de que,
depois dos resultados da Constituição Federal de 1988, a reforma agrária só
poderá ser pensada se houver movimentos sociais na luta pela reforma agrária.
As chances de negociação pacífica se perderam no “buraco negro” da
Constituição. Segundo, a opção governamental pactuada com os latifundiários da
manutenção de ambigüidades conceituais para se inverter a lógica de
desapropriação, inserindo armadilhas contrárias à reforma agrária, e, portanto,
aos trabalhadores rurais brasileiros.
Para Martins80, na elaboração da Constituição Federal de 1988,

“os precários avanços na legislação fundiária da ditadura militar foram praticamente


anulados pelos constituintes. A utilização dos conceitos de “propriedade produtiva” e
de “propriedade improdutiva” introduziu uma ampla ambigüidade na definição das
propriedades sujeitas a desapropriação para reforma agrária, praticamente anulando
as concepções relativamente mais avançadas do ET”.

Para essa análise o autor partiu do princípio de que “no Brasil, o atraso é
um instrumento de poder” 81. Ou seja, a aliança político-social-econômica entre o
capital e a terra consolidada na Constituição Federal de 1988 se configurou em
uma aliança do atraso.
De acordo com Oliveira82,

79
Ibid. p. 201.
80
MARTINS, José de Souza. Op. Cit. 1999. p. 90.
81
Ibid. p. 13.
82
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 2001. p. 200.
57
“no governo Collor, a UDR praticamente assumiu o controle da Reforma Agrária no
Brasil, portanto, promoveu o abandono completo da Reforma Agrária. A queda de
Collor e a ascensão de Itamar Franco praticamente nada mudou(...). Até 1994, o
resultado da ação do Estado referente aos assentamentos rurais foi: de 1927 a 1963
foram assentados em projetos de colonização no Brasil, oficialmente, 53 mil famílias;
de 1964 a 1984, entre colonização e assentamentos, 162 mil famílias; de 1985 a
1994, foram assentadas 140 mil famílias. Estes dados permitem afirmar que a partir
das políticas do Estado brasileiro nunca se implantou uma política de acesso à terra
aos camponeses”.

Os dados permitem afirmar, ainda, o descaso para com os conflitos


existentes no campo e a lentidão com a qual vem sendo encaminhada a
possibilidade da reforma agrária no Brasil.
Como se o descaso do Poder Executivo não bastasse, na questão da
relação entre a legislação e o poder judiciário, há sérias contradições que
dificultam o processo da desapropriação. Exemplos disso são o artigo 185 da CF
de 1988 e a Lei n. 8.629 de 25 fevereiro de 1993 segundo os quais as pequenas e
médias propriedades, assim como as propriedades produtivas, independente de
seu tamanho, são propriedades não suscetíveis de desapropriação.
A Lei n. 8.629 de 25 fev. 199383, chamada de Lei Agrária, foi criada com o
objetivo de estabelecer a regulamentação dos dispositivos contidos na
Constituição relativos à reforma agrária. Com ela, juridicamente, não haveria mais
empecilhos à desapropriação das grandes propriedades improdutivas para fins de
reforma agrária. Contraditoriamente, a Lei complementar n. 76/9384 passou a
estabelecer um procedimento especial, chamado de Rito Sumário, para o
processo de desapropriação de imóveis rurais, por interesse social para fins de
reforma agrária, dando ao poder judiciário o prazo de 120 dias (art. 9) para decidir
se a propriedade é ou não improdutiva, portanto, passível ou não de
desapropriação.
A Lei n. 8.629 de 25 fevereiro 1993, Lei Agrária, apresenta dois sérios
problemas: primeiro, ao reafirmar a insusceptividade da desapropriação para fins
de reforma agrária da pequena e média propriedade rural, contribuiu para o

83
BRASIL. Lei n. 8.629 de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos
constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.
Brasília, DF, 1993.
84
BRASIL. Lei Complementar n. 76, de 6 de julho de 1993. Dispõe sobre o procedimento contraditório
especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para
fins de reforma agrária. Brasília – DF, 1993.
58
desmembramento de grandes propriedades improdutivas em várias outras
propriedades pequenas e médias (improdutivas), como uma forma de burlar a lei.
Segundo, ao conceituar a propriedade produtiva como “aquela que explorada,
economicamente e racionalmente, atinge, simultâneamente, graus de utilização
da terra e de eficiência na exploração(...)85”, tornou o conceito de propriedade
produtiva ininteligível, dando margem para complexas e demoradas disputas
judiciais. Além disso, ainda, a Lei de rito sumário, que possibilita aos proprietários
ações contestatórias, reduz e compromete toda a eficiência do instrumento de
desapropriação de terras.
Desse modo, o grande obstáculo na legislação que tem dificultado o
processo de desapropriação de terras para fins de reforma agrária, nos dias de
hoje, é resultado da própria Constituição Federal de 1988 e de sua legislação
ordinária.
Para Oliveira86, a Constituição de 1988, além de retroceder na questão da
reforma agrária, criou uma verdadeira contradição na legislação agrária brasileira.
Segundo o Estatuto da Terra, a terra produtiva é passível de desapropriação. O
Estatuto diz, claramente, que a função social da terra é a combinação de quatro
itens: terra produtiva, manutenção de justas relações de trabalho, cumprimento da
legislação ambiental e o não cultivo de drogas. No entanto, mesmo sendo
produtiva, mas se não cumprisse com a legislação trabalhista, a terra poderia ser
desapropriada. Em 1988, a Constituição Federal destacou o item “terra produtiva”
como critério. Com isso, instalou-se uma contradição na legislação, pois, se
antes, a “terra produtiva” que não cumpria com a legislação trabalhista poderia ser
desapropriada, passou a não ser mais. Assim, o Estatuto da Terra de 1964 nos
critérios de desapropriação para fins de reforma agrária é muito mais progressista
que a Constituição Federal de 1988.
Para a realização da reforma agrária, o Estatuto da Terra e a Constituição
Federal de 1988 se referem, especialmente, à desapropriação. No caso do
Estatuto, as desapropriações recairiam sobre os minifúndios e os latifúndios que

85
Artigo 6. BRASIL. Lei n. 8.629 de 25 de fevereiro de 1993.
86
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Contribuição dada durante o exame de qualificação. São Paulo:
USP, 2003.
59
não cumprissem a função social. Depois, a Constituição Federal de 1988
determinou que pequenas e médias propriedades não podem ser desapropriadas,
propriedades “produtivas” também não. Mesmo assim, o INCRA tem uma
trajetória que incorporou outros procedimentos que passou a chamar de reforma
agrária, como por exemplo, a distribuição da terra pública via projeto de
colonização, regularização fundiária, titulação e arrecadação. Considerando que a
terra é pública e, portanto, com sua distribuição não ocorre mudanças na
estrutura fundiária, isso não é reforma agrária de fato. A palavra reforma agrária
remete a uma estrutura fundiária existente e a uma relação da sociedade
capitalista com ela. Mas, essa é uma polêmica no seio do debate sobre legislação
fundiária e política de reforma agrária no Brasil.
A questão legal se agrava, ainda mais, com o comprometimento e a
seriedade dos juizes que, em sua maioria, atuaram e atuam em favor dos grandes
proprietários de terras e em prejuízo dos camponeses.
Nesse contexto, os governos da “Nova República” renovaram o pacto
social, político e econômico das elites. Primeiro, retrocedendo na possibilidade de
constituição da reforma agrária e segundo reafirmando a propriedade privada da
terra como sendo parte constitutiva da produção do capitalismo brasileiro rentista.
A presença do Estado nas questões relacionadas à política agrária se
manteve com o interesse explícito de promover mudanças e garantir a não
realização da reforma agrária no país.

1.5 – O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o projeto “novo


mundo rural” brasileiro.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso exerceu dois mandatos


seguidos: o primeiro de 1995 até 1998, e o segundo de 1999 até 2002. No
primeiro mandato, deu ênfase à política de estabilidade econômica e ao combate
à inflação, componentes do Plano Real, que deram o tom dos primeiros meses de
governo. Entretanto, a realidade dos conflitos no campo não tardou a se
apresentar, alterando substancialmente o quadro de “estabilidade” desse governo.

60
No primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, juntamente com outros movimentos sociais
e entidades de representação dos camponeses, retomaram as ações de
acampamento e ocupações de terra. Mas, foram os massacres de Corumbiara e
de Eldorado dos Carajás que explicitaram a violência policial, nos estados.
O massacre de Corumbiara ocorreu no Estado de Rondônia, em agosto de
1995, quando uma tropa de policiais militares tentou realizar uma ação de despejo
de mais de 500 famílias de trabalhadores sem-terra acampados na fazenda Santa
Elina. Na calada da noite, os policiais invadiram, violentamente, o acampamento e
humilharam, torturaram e mataram trabalhadores rurais. O massacre teve como
resultado doze mortos, nove desaparecidos e mais de cem feridos87.
Meses depois, em abril de 1996, no Estado do Pará, trabalhadores sem
terra que bloquearam uma estrada numa manifestação política foram cercados
pela polícia. Do enfrentamento, resultou a morte de 17 deles. As imagens
divulgadas na mídia revelavam a brutalidade da ação dos policiais. Corumbiara e
Eldorado dos Carajás recolocaram, de vez, o tema da reforma agrária como uma
prioridade na agenda nacional. Conforme o caderno Conflitos no Campo da
CPT88, no ano de 1998, foi registrado mais de mil conflitos espalhados no campo
brasileiro.
De acordo com Oliveira89,

“Os massacres de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás são exemplos ocorridos no


governo FHC. Ambos os massacres representam a posição das elites latifundiárias
brasileiras em não ceder um milímetro sequer em relação à questão da terra e da
Reforma Agrária. O apoio dos ruralistas à base de sustentação política do governo
FHC tem tido como contrapartida duas práticas governamentais: a primeira, posição
repressiva aos movimentos sociais; a segunda, no plano econômico, prorrogação –
não se sabe até quando – das dívidas destes latifundiários, que não as saldam”.

Os acampamentos e as ocupações de terras tornaram-se uma ação


política cotidiana dos movimentos sociais e entidades de representação dos
camponeses em luta pela terra. A resposta às pressões, feitas pelos movimentos
sociais, foi um projeto de reformulação da agricultura familiar e da reforma

87
Para mais informações ver MESQUITA, Helena Angélica. O massacre de Corumbiara – RO.
FFLCH/DG/USP, São Paulo, 2001.
88
A CPT Nacional apresentou um total de 1.100 conflitos no campo no ano de 1998. CADERNOS
Conflitos no Campo. CPT Nacional – Brasil, 1999.
89
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 2001. p.198.
61
agrária, denominado – O Novo Mundo Rural – projeto de reformulação da reforma
agrária em discussão pelo governo.
O “novo mundo rural”90 apresentou duas frentes de ação: a primeira,
agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo mundo
rural, e a segunda, política de desenvolvimento rural com base na expansão da
agricultura familiar e sua inserção no mercado.
A proposta central do projeto seria a de

“promover o desenvolvimento sócio-econômico sustentável, por meio da


desconcentração da base produtiva e da dinamização da vida econômica, social,
política e cultural dos espaços rurais, usando como vetores estratégicos o
investimento na expansão e fortalecimento da agricultura familiar, na redistribuição
dos ativos terra e educação e no estímulo a múltiplas atividades geradoras de renda
no campo, não necessariamente agrícolas”91.

O público alvo seria os agricultores familiares brasileiros, integrantes ou


não dos projetos de reforma agrária. Os objetivos do programa foram, entre
outros, os de criar novas bases políticas e institucionais em nível local, regional,
estadual e federal no país, criar e ampliar as oportunidades de renda das famílias
na agricultura familiar dentro e fora dos assentamentos da reforma agrária,
inclusive com atividades não-agrícolas, promover a expansão e o fortalecimento
da agricultura familiar e ampliar sua participação na produção nacional, e elevar a
eficiência, a eficácia e a efetividade dos programas e instrumentos de reforma
agrária e de expansão e fortalecimento da agricultura familiar.
As diretrizes estratégicas para a política de desenvolvimento do “novo
mundo rural” foram orientadas à distribuição do ativo terra, à inserção da
agricultura familiar no mercado nacional e internacional e à expansão da
agricultura familiar por meio dos assentamentos de reforma agrária, procurando
modelar de forma exemplar esses assentamentos.
Procurando romper com “a visão tradicional do rural que isolava a cidade
do campo”, o programa apresentou cinco linhas de ação estratégicas: a)

90
BRASIL. GOVERNO FEDERAL. Projeto Novo Mundo Rural. Brasília, DF, 1999.
91
Ibid. p.1.
62
expansão da agricultura familiar, com a ampliação dos instrumentos de obtenção
de terras, b) desconcentração do capital humano, com a ampliação da oferta de
ensino básico à família rural, c) desconcentração do capital físico, priorizando
instrumentos descentralizados em infra-estrutura social e econômica, d)
ampliação e desconcentração do capital social, com incentivos e apoio à
formação de associações de municípios, e e) desenvolvimento das atividades
produtivas, por meio do aperfeiçoamento das linhas de crédito destinadas à
agricultura familiar.
No “novo mundo rural”, a reforma agrária e a expansão da agricultura
familiar passariam pela,

“adoção de mecanismos que não proponham o abandono das desapropriações, mas


sim a incorporação de outros instrumentos que possam, a um só tempo, reduzir os
custos (aumentando a quantidade de beneficiários) e dar agilidade e transparência ao
processo. A instituição do Banco da Terra e a experiência recente do Projeto Cédula
da Terra apontam na direção de que a diversificação dos instrumentos para a
obtenção de recursos fundiários, em uma conjuntura em que as resistências dos
proprietários foram extremamente reduzidas, favorecerá a manutenção dos
resultados obtidos no atual governo”92.

O Fundo de Terras e da Reforma Agrária - Banco da Terra, sucedeu,


modificou e ampliou o Projeto piloto Cédula da Terra, desenhado e apoiado pelo
Banco Mundial, já em execução nos Estados do Ceará, Bahia, Maranhão,
Pernambuco e na região norte do Estado de Minas Gerais. O programa
promovido pelo Banco Mundial com o objetivo de aliviar a pobreza no Nordeste
brasileiro, seria parte da estratégia do Banco Mundial aplicada em países em
desenvolvimento, com outro objetivo não menos importante, ou seja, ativar o
mercado de terras e proporcionar os recursos para o alívio das dívidas rurais dos
proprietários falidos, evitando possíveis crises do sistema bancário.

Com o programa “novo mundo rural”, o governo Fernando Henrique


Cardoso demonstrou um esforço sistemático de se auto propagar através da
mídia, na expectativa de melhorar sua imagem desgastada. Pressionado pelas
constantes ocupações de terra e pelos acampamentos organizados pelos
trabalhadores rurais sem terra em movimento de luta pela reforma agrária, o
presidente adotou novos mecanismos de acesso à terra, com base na orientação

92
Ibid. p. 20/21.
63
do Banco Mundial. Assim, o programa “reforma agrária de mercado” do Banco
Mundial passou a ser parte constitutiva da proposta mais ampla de construção do
“novo mundo rural” brasileiro.

Negociado o acordo com o Banco Mundial, o governo federal, através do


Ministro do Desenvolvimento Agrário, justificou a sua opção pela “reforma agrária
de mercado” da forma como apontou Raul Julgmann93,

“os instrumentos clássicos para a promoção da reforma agrária têm demonstrado


certo esgotamento e, em alguns casos, usos inadequados, que sobrevalorizam terras
e oneram em demasia o orçamento público com desapropriações milionárias e que se
arrastam anos e anos em processos judiciais. Mantendo a importância estratégica da
desapropriação, estamos incorporando novos instrumentos que auxiliem o processo
de aceleração da reforma agrária”.

O Ministro do Desenvolvimento Agrário anunciou a incorporação de “novos


instrumentos que auxiliem o processo de aceleração da reforma agrária”. Quais
sejam: I) a introdução do mecanismo de mercado de terras. Nas operações de
aquisição de terra via mercado, o proprietário recebe em dinheiro e à vista, assim,
o mercado, e não a intervenção do Estado, passa a ser o instrumento principal de
acesso à terra; II) a descentralização da reforma agrária, as desapropriações são
atos unilaterais do governo, enquanto as compras são negociadas entre o
vendedor voluntário (proprietário da terra) e o comprador voluntário (associação
comunitária). Ao governo cabe o financiamento do empréstimo reembolsável ao
Fundo de Terras com juros e correção monetária; e III) a formação de novas
bases políticas institucionais em nível local, com a obrigatoriedade da formação
de associações comunitárias para participar do programa, o governo favoreceu a
clientelismo político nos municípios e negou a importância política da luta histórica
dos trabalhadores rurais, desmobilizando, por pouco tempo, movimentos sociais e
entidades de representação dos camponeses, como o MST e a CPT.

A proposta do Banco Mundial aliada à orientação política do governo


Fernando Henrique Cardoso definiu a opção pela continuidade de um projeto
pactuado com a elite agrária brasileira. O programa “novo mundo rural” foi a
expressão do projeto político governamental, utilizado para desmobilizar os
movimentos sociais na luta pela reforma agrária e negar a existência dos conflitos

93
JULGMANN, Raul. Introdução. In: Reforma agrária e desenvolvimento sustentável. Pedro
Sisnando Leite et al. (orgs.) Brasília: MDA, 2000. p.8.
64
no campo, designando transformações em curso no campo brasileiro e instalando
um paradigma a ser perseguido.

A matriz teórica do “novo mundo rural” tem representantes entre os que


discutem o desenvolvimento rural brasileiro, em destaque Ricardo Abramovay,
José Graziano da Silva e José Eli da Veiga. Esses autores partem da mesma
matriz teórica, porém divergem quanto aos caminhos que o Brasil deveria seguir
para o seu desenvolvimento rural. De um lado, estão os que acreditam que "a
reforma agrária não é mais viável"94, propondo, em seu lugar, uma estratégia
direta de combate à pobreza e à fome via investimentos em ocupações não
agrícolas na área rural. Do outro lado, encontram-se os que recusam essa
estratégia e acreditam que o combate à pobreza deveria conter ações que
envolvessem os pobres em “economias rurais mais dinâmicas”.
Para esses autores, no Brasil, a reforma agrária deveria ser voltada para o
fortalecimento da agricultura familiar, representada por uma “população cada vez
mais envolvida com novas atividades econômicas, a exemplo de indústrias,
turismo, lazer, comércio, artesanato, serviços profissionais especializados,
habitação e etc. A atividade agropecuária é cada vez mais dinâmica, exigindo dos
“agricultores”, quase “empresários” competitividade, visão econômica do produto
no mercado”95. Portanto, uma agricultura que disponha “de um mínimo de
condições favoráveis de infra-estrutura e serviços que estimulem o
"empreendedorismo”".96
Porém, apesar do ponto de discórdia entre os projetos propostos, eles
defendem uma mesma premissa: os camponeses são compreendidos como
pobres miseráveis ineficientes, ou seja, resíduo em extinção na sociedade
capitalista moderna, empreendedora, competitiva e eficiente. A reforma agrária
teria o objetivo de extinguir de vez os camponeses, criando um "novo mundo
rural", onde a agricultura familiar se constituísse em, "uma agricultura altamente
integrada ao mercado, capaz de incorporar avanços tecnológicos e de responder
às políticas governamentais"97. Esse é o ponto central da concepção de “novo
mundo rural” elaborada no governo Fernando Henrique Cardoso.

94
SILVA. José Graziano da. Velhos e novos mitos do rural brasileiro. In: REA/USP. 15 (43), São Paulo,
2001. p.44.
95
BRASIL. GOVERNO FEDERAL, Op. Cit. 1999. p. 4.
96
VEIGA, José Eli da. O Brasil rural ainda não encontrou seu eixo de desenvolvimento. In: REA/USP.
15 (43), São Paulo, 2001. p.107.
97
ABROMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário. São Paulo: Hucitec, 1992. p.22.
65
Essas idéias se configuram no projeto governamental que procurou manter
pactos políticos, econômicos e financeiros com a elite agrária brasileira via
programas como a “reforma agrária de mercado", desenhada pelo Banco Mundial
e implementada no Brasil como uma nova contra-reforma agrária.
O governo Fernando Henrique Cardoso, segundo Oliveira98, apresentou
uma política de resposta à pressão social por assentamentos. Como estratégias
políticas de enfrentamento aos movimentos sociais, e em especial ao MST, o
governo atuou em cinco frentes de ações: I) criminalização das lideranças do
MST, II) mudanças legais realizadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
(securitização das dívidas dos ruralistas, imposto territorial rural progressivo,
Projeto Cédula da Terra e o Banco da Terra, visando implantar uma autêntica
“reforma agrária de mercado”), medidas coercitivas (Medida Provisória 2.109, que
proíbe a vistoria por dois anos em imóveis ocupados e a Portaria MDA n. 62 de
27/03/2001, que exclui os assentados de reforma agrária devido a “atos de
invasão ou esbulho de imóveis rurais”), e, inscrição para assentamentos da
reforma agrária pelo correio, veiculada com propaganda televisiva em que se
afirmava que a “porteira está aberta para a reforma agrária, é só entrar e se
inscrever”; III) estímulo à criação de novos movimentos sociais que não adotam a
tática da ocupação como estratégia de luta; IV) realização de reuniões e
seminários com intelectuais que estudam a questão agrária, para auxiliarem na
elaboração de políticas e ações de governo e, principalmente, para formarem uma
espécie de frente de ação intelectual de crítica aos movimentos e seus
intelectuais orgânicos, V) ação da mídia que mobilizou o governo, os movimentos
e a opinião pública. As reportagens, procuravam impingir um caráter satânico às
lideranças do MST. A contra-propaganda, organizada a partir de grandes órgãos
de imprensa, que objetivava desmontar a imagem de apoio que a população
formou sobre o MST e a reforma agrária após a Marcha à Brasília, ocorrida em
abril de 1997.
Ao fazer a avaliação do governo Fernando Henrique Cardoso comparando-
o a governos anteriores (Sarney, e Collor /Itamar), Oliveira99 verificou, utilizando
os dados divulgados pelo INCRA, que nos oito anos deste governo foram

98
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Op. Cit. 2001.
99
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. El campesinado en Brasil. In: BERTONCELLO Y CARLOS
(Comp.). Processos Territoriales en Argentina y Brasil. Buenos Aires: Universidade de Buenos
Aires, 2003.
66
assentadas 524.380 famílias em 4.998 assentamentos rurais. Entre esses
assentamentos se incluem as regularizações fundiárias (as posses), os
remanescentes de quilombos, os assentamentos extrativistas, os projetos Casulo
e Cédula Rural, e os projetos de reforma agrária. A pressão social realizada pelos
movimentos sociais com a ampliação das ocupações obrigou o governo Fernando
Henrique Cardoso a ampliar os assentamentos. Esse fato mostra que a reforma
agrária, em vez de ser uma política propositiva do governo, foi uma necessidade
de resposta à pressão social.

Também na avaliação de Medeiros100, os oito anos do governo Fernando


Henrique Cardoso são vinculados pela importância da luta pela terra no resultado
significativo (em relação à períodos anteriores) dos assentamento rurais. Para a
autora,

“a veracidade dos números (das famílias assentadas no governo FHC) foi objeto de
intensa disputa entre governo e movimentos sociais, na medida em que muito do que
aparece contabilizado nos últimos anos refere-se a titulações concedidas a pessoas
que haviam muito já estavam na terra e que não poderiam ser consideradas
assentados no sentido estrito do termo, ou então a assentamentos criados no papel,
mas não de fato (ou seja, famílias que ainda não haviam sido assentadas
efetivamente)”.

Para Medeiros, a luta pela terra organizada pelos movimentos sociais


também foi decisiva no encaminhamento dos programas de assentamentos rurais
no país. Porém, os números de famílias assentadas divulgados e assumidos pelo
INCRA foram inflados, tendo em vista os procedimentos utilizados para
contabilizá-los, o que acabou colocando em questão, mais uma vez, a política
agrária do governo.

Não há, entretanto, como desconsiderar a importância dos assentamentos


rurais no país. De acordo com Leite, Heredia, Medeiros et al101, no relatório
Impactos dos Assentamentos foi possível constatar que

“a existência dos assentamentos como unidades territoriais e administrativas, que são


referência para políticas públicas, resulta numa ampliação das demandas de infra-
estrutura e em pressão sobre os poderes políticos locais, estaduais e federal. Desse

100
MEDEIROS, Leonilde. Reforma agrária no Brasil. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2003.
Pp. 73/74.
101
LEITE, Sérgio. HEREDIA, Beatriz. MEDEIROS, Leonilde. [et al.]. Impactos dos assentamentos –
Brasília: IICA: NEAD; São Paulo: Ed. UNESP, 2004. Pp. 260/261. Grifos dos autores.
67
modo, ao mesmo tempo em que podem ser vistos como ‘ponto de chegada’ de um
processo de luta pela terra, os assentamentos tornam-se ‘ponto de partida’ para uma
nova condição de vida, onde muitas vezes tudo está por fazer, desde a organização
do lote e construção do local de moradia até toda a infra-estrutura coletiva e de
serviços necessários à viabilização econômica e social das novas unidades de
produção familiar criadas. (...) em praticamente todos os aspectos, quando
compararam a situação atual no assentamento com a situação vivida anteriormente,
há por parte dos assentados uma significativa percepção de melhoria (...)”.

O governo Fernando Henrique Cardoso, com sua proposta de “novo mundo


rural” para o campo brasileiro, passou por diferentes momentos e estratégias de
atuação que tiveram como força social de oposição o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. Durante os oito anos de seu governo, na
contramão, os movimentos sociais e as entidades de representação dos
camponeses, em especial CPT e MST, encaminharam uma política de ações,
buscando evidenciar as terras improdutivas, a falsificação de títulos, as
irregularidades nos programas governamentais e a violência no campo. As
respostas do governo a isso tudo foram sempre duras e incisivas. Mesmo assim,
a história mostrou que não foi possível negar o movimento camponês, e os
acampamentos, as ocupações de terra, os conflitos no campo, os assentamentos
rurais têm evidenciado a continuidade do movimento de luta pela terra e pela
reforma agrária no país.

Apesar de duramente contestada, a concepção de “reforma agrária de


mercado”, desenhada pelo Banco Mundial e implementada pelo governo
Fernando Henrique Cardoso, persiste como instrumento no processo de
consolidação do desenvolvimento rural brasileiro no governo Lula, através do
Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). Essa permanência acontece
porque, conforme Oliveira102, o “núcleo duro” que compõe a base da política
agrária do governo Lula é o mesmo do governo anterior, isto é, a reforma agrária
é concebida como uma forma apenas de tirar uma parte da população da miséria.
Assim, fica de lado a dimensão econômica que se insere na projeção de um novo
modelo agrícola e a dimensão política que considera, de fato, a participação dos
camponeses nas políticas de desenvolvimento agrário do país.

102
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Palestra: Agronegócio e soberania alimentar. DG/FFLCH/USP.
São Paulo, 07/ 04/ 2005.
68

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