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CIRILO FOLCH GOMES, OSB

ANTOLOGIA
DOS
SANTOS PADRES
Paginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos

4? e d iç ã o (revista)
PREFACIO

A falta de textos em português, acessíveis aos estudantes de Teo­


logia e a tantas outras pessoas que se interessam pelo conhecimento
da antiga literatura crista, despertou-nos a idéia desta Antologia, cuja
1* edição teve boa acolhida.
Não pretendemos fazer obra de erudição, e sim oferecer um pa­
norama de textos seletos, em traduções feitas com seriedade, na base
não só do Migne ( que geralmente citamos, no intuito de facilitar a lo­
calização dos passos), mas, quando possível, das modernas edições
críticas.
O critério de seleção adotado foi quase sempre o do valor repre­
sentativo: pãginas onde aparecesse algo de característico de cada au­
tor. A este critério aliamos o do valor doutrinário, para proveito dos
estudantes de Teologia, e o da utilidade espiritual, pois são geralmente
páginas de grande fé e amor de Deus.
De cada um dos Padres damos somente breve notzda biográfica.
Não seria possível estender-nos na interpretação de seu significado
histórico, cultural e teológico, dentro dos limites <de uma Antologia,
que não se substitui a um tratado de Patrística. Assim, certas passa­
gens pedirão a introdução e o comentário de um professor ou a con­
sulta a Manual especializado, para serem devidamente valorizadas pelo
leitor que apenas se inicie nas ciêndas teológicas e na História da
Igreja.
Sem desconhecer os limites e imperfeições de nosso trabalho,
temos a certeza de que continuará a prestar serviço em nosso meio.
Esperamos que outras coletâneas e traduções se sucedam, enquanto
não pudermos ter acesso, em edições mais amplas, ao imenso tesouro
dos santos Padres.

O A u to r
IN TR O D U Ç Ã O

OS PADRES DA IGREJA

Falando de um modo genérico, diríamos que os “Padres” são os


santos teólogos da antiguidade. Eles constituem toda uma galeria de
grandes homens de £é, cuja palavra e cujos escritos geraram um pen­
samento cristão, que ficou como qualquer coisa de básico para os
séculos seguintes. Não são todos os Santos antigos — que foram nu­
merosos, paradigmáticos e deram vigor e afirmação ao cristianismo
nascente, mas nem sempre legaram à posteridade um patrimônio dou­
trinário.
Chamando-os teólogos estamos, sem dúvida, usando esta palavra
em sentido bastante amplo. Queremos dizer que deram certa expli­
citação à fé, não porém que tenham tentado sempre uma exposição
metódica, ou deitado as bases de uma reflexão exegética ou especula­
tiva de valor perene. Resta que foram santos da antiguidade, isto é,
gente da qual se pode esperar um testemunho válido da tradição, da
tradição mais próxima das origens. Fazem jus a um crédito especial
de autenticidade, mesmo porque aparecem como pensadores apai­
xonados pelo Evangelho, que não raro sofreram e deram a vida por
sua causa.
Historicamente, o título de “Padres” foi dado no início simples­
mente aos bispos; às vezes também aos ascetas, que nos desertos
ofereciam uma palavra espiritual, geradora de vida, aos que os pro­
curavam. A partir do século IV, recebiam o apelativo de “Padres da
Igreja” os pastores e mestres que tomaram parte no concílio de Ni-
céia (325) e personificavam o princípio da tradição, como anterior­
mente os “anciãos” no judaísm o1. Na época do concílio de Éfeso
(4 3 1 ), adquire plena vigência o recurso ao argumento dos “Padres”
neste sentido. Pouco depois, vemos Vicente de Lérins — um dos
primeiros, autores que ensaiaram sistematizar este tipo de questões
metodológicas — estender a outros escritores, não só do passado,
o mesmo título. Segundo ele, detém-no quem ensinou na unidade da fé
e da comunhão eclesiástica 12. Passava-se, ao mesmo tempo, a distinguir
dos “Padres” outros que seriam meramente escritores eclesiásticos,
quiçá até heterodoxos. Semelhantemente, no começo da eta moderna,
Melchior Cano, famoso elaborador de um tratado sobre as fontes da
teologia (De locis theologicis) 3, situava dentro de quatro característi­
cas a figura do “Padre”: 1) ortodoxia doutrinária; 2) santidade de

1 Cf. B. Stu der , em Mysterium sdutis, tr., Ed. Vozes, 1/3, p. 90.
2 Commonitorwm, c. 3 ( “magistri probabiles*); cf. c. 27 ( “beati Patres”): P.L.
50, 641, 676.
3 Obra póstuma, o De locis apareceu em Salamanca em 1563 e valeu a M.
Cano o título de “oai da metodoloeia teolóeica”.
10 INTRODUÇÃO

vida; 3) reconhecimento ao menos indireto, por parte da Igreja; 4)


antiguidade.
Esta conceituaçâo se tornou clássica, embora deva ser assumida
com certa elasticidade. A ortodoxia, para começar, não é preciso en­
tender-se de modo que exclua posições errôneas em tais ou quais pon­
tos, sendo aptes uma orientação geral dos escritos, em consonância
com o depósito genuíno da fé. Assim, segundo os concílios de Tren-
to e Vaticano I, o “acordo comum dos Padres” é critério normativo
na interpretação da Sagrada Escritura4; mas, como lembrava Pio
X II, na encíclica Divino Afflante Spiritu, as interpretações pessoais
dos Padres não gozam dessa normatividade56, pois eles não foram
apenas, como já assinalamos, representantes do magistério eclesiástico
em condições históricas de maior proximidade com as fontes e de de-
cisividade em questões basilares, mas também teólogos com suas pers­
pectivas pessoais.
A aprovação da Igreja se manifesta às vezes expressamente (co­
mo nos pronunciamentos feitos sobre sto. Agostinho) ó; outras ve­
zes consistindo no fato de virem citados determinados escritores, de
maneira honrosa, em concílios e documentos oficiais; podendo enfim
ser uma aprovação apenas implícita.
A antiguidade é uma característica também um tanto indefinida.
Em primeiro lugar não se deveria valorizá-la ao ponto de sugerir cer­
ta ruptura entre a época antiga e as fases seguintes da História da
Igreja. Se há uma distinção de fases nessa História, situa-se entre
o tempo apostólico e toda a era pós-apostólica. No primeiro período, a
Igreja está sendo constituída, da mesma forma que a recepção das
verdades reveladas. No segundo, cresce a Igreja como crescem o
conhecimento, a assimilação e a difusão das verdades, sob a guia do
Magistério, assistido pelo Espírito Santo. A esta fase pertencem os
Padres, por privilegiada que tenha sido sua condição de pioneiros.
E até onde se estenderia a “antiguidade”? Variam os parece­
res. Há autores que restringem a Patrística até à época do concílio
de Calcedônia (451), embora a maioria concorde em alongá-la até
aos séculos V II-V III, com Gregório Magno e Isidoro, no Ocidente,
e João Damasceno no mundo grego. É, com efeito«, o período em que
se assentam os alicerces das formulações doutrinárias, da liturgia e
do corpo disciplinar da Igreja. Surgirá um matiz diferente na era
carolíngia e depois, nas grandes cisões entre latinos e gregos, no
pensamento escolástico, etc. Não se pode negar um parentesco maior
de s. Gregório ou de s. Damasceno com a mentalidade anterior, o
que justifica certa linha divisória, mesmo se imprecisa.
Nem todos os escritores que incluímos na presente Antologia são
considerados “Padres” dentro dos critérios mencionados, pois, se

4 DS 1507; 3007.
5 DS 3831.
6 DS, Ind.: Augustinus.
OS PADRES DA IG REJA 11

faltam os heréticos, nossa lista abrange escritores que, ou não foram


reconhecidos como Santos, ou deixaram a comunhão eclesiástica por
algum cisma, ou cujas obras não gozaram de particular aprovação da
Igreja. Tais são os casos de Tertuliano, Orígenes, Novaciano, Eusébio,
etc., que estão porém em todas as Patrologias, pois produziram obras
notáveis e, apesar dos erros pessoais ou de doutrina, comungaram com
a grande mentalidade dos construtores da cosmovisão cristã, que foram
os Padres
De outro lado, excluímos os “Doutores” de épocas posteriores:
um título que a partir da Idade Média se aplica a teólogos de quais­
quer épocas, que se tenham sobressaído pela santidade e por seu
excepcional saber (um sto. Anselmo, um s. Boaventura, um sto.
Tomás de Aquino, um sto. Afonso de Ligório e outros). A esta cate­
goria pertencem de fato alguns Padres: Ambrósio, Jerônimo, Agos­
tinho, Gregório Magno, Hilário, Crisólogo, Leão e Isidoro, no mundo
ocidental e, entre os orientais: Basílio, Gregório Nazianzeno, Crisós­
tomo, Atanásio, Efrém, Cirilo de Jerusalém e Cirilo de Alexandria.

Dizíamos que os Padres visaram elaborar uma cosmovisão cristã.


Detectar uma “sabedoria”, de objeto universal, é aliás o fruto de
toda reflexão feita sobre a fé — cujo conteúdo é a palavra de Deus
reveladora de Seu desígnio sobre o mundo. Mas a teologia dos Padres
aspirou particularmente a uma visão de síntese. Seu grande tema foi
a “Economia”, a História da salvação iniciada desde a Criação e
visitada pelo Verbo Criador. Nem sempre o tema foi bem articulado
com a doutrina sobre Deus (pensemos na teologia anterior ao concílio
de Nicéia), mas o tratamento que teve, intimamente ligado à exegese
bíblica, um tratamento existencial, prático, por vezes místico mãisMo
que racional, dá a numerosas páginas patrísticas um interesse de grande
atualidade. A teologia de hoje revaloriza o enfoque histórico e salvífico
nelas presente e que, ao contrário, esteve por demais ausente na teolo­
gia do século passado7. Busca-se “um contato mais vivo com o Misté­
rio de Cristo e a História da salvação”, como disse o Vaticano I I 8, e
uma contribuição para isto pode ser tirada da leitura dos Padres. So­
bretudo porque despertam uma nova apreciação da leitura bíblica.
Com efeito, é impressionante vermos como eles fizeram da Sagra­
da Escritura um livro venerado, estudado, explicado, descobrindo nela
“páginas perfeitas porque ditadas pelo Verbo de Deus e pelo seu Es­
pírito” 9. Seus comentários assumem amplamente este princípio da auto­
ria divina, que nos convida a superar o plano da exegese filológico-
7 Cf. Y. Congar: “Une des limites les plus graves de la formation cléricale au
X IX e siècle avait été Pabsence de dimension historique”. In: Situation et tâches
présentes de la théologie, Paris, 1967, p. 28, n. 2.
8 Decr. Optatam Totius, n- 16.
9 iRENEti, Adv. Haer. I I, 28, 2.
12 INTRODUÇÃO

-crítica, em busca do sentido que Deus tenha querido manifestar atra­


vés dos hagiógrafos. É outro título de atualidade para a leitura dos
Padres.
H á enfim a aproximação que propõem a cada passo, da fé com
a oração, com a liturgia e com a vida moral.
Sua preocupação pela ortodoxia da fé não precisa ser encarecida.
Eles viveram intensamente o combate às heresias e a ambição das for­
mulações doutrinárias corretas. Mas não era uma preocupação acadêmi­
ca. Queriam servir à oração, queriam o contato com o culto e os sacra­
mentos, tinham um ardente zelo pela “ortopraxia” também, isto é, pela
fé operante na vida moral, nas obras de misericórdia corporais e espi­
rituais. Vejam-se as catequeses mistagógicas, que ainda hoje são exem­
plares no gênero, e os sermões sobre o amor aos pobres, sobre as
obrigações de justiça social — páginas estas tão atuais que Paulo VI as
recordava na Populorum Progressio 10*12. Eles não falaram em nenhuma
“teologia política”, mas não seria difícil encontrar, no que disseram,
inspiração para o que de melhor entendêssemos hoje por uma teologia
aberta para a encarnação social da justiça e do amor evangélicos.
Temos de referir-nos porém a certos limites, que nos impedem de
idealizar demais aquela plêiade de homens ilustres e santos, filhos
porém de sua época, dependentes de uma cultura superada, e cuja teo­
logia foi muitas vezes tateante. Nem sempre nos agrada a leitura dos
Padres, sua linguagem, seu estilo, suas carências de precisão. Tiveram
o senso da História, principalmente da História sagrada, mas não tan­
to o da ciência histórica, ou pelo menos não dispuseram dos recursos
necessários para uma exegese mais perfeita da Escritura, no plano li­
teral. Em filosofia foram ecléticos, tendendo a um platonismo ou neo­
platonismo cristão, que — por causa das deficiências inerentes a esse
instrumental — lhes impedia o acesso a uma especulação teológica
mais ampla e coerente. As categorias helénicas utilizadas proporcio­
navam a possibilidade de um diálogo com a cultura do tempo, cons­
tituíam um recurso apologético da maior importância, porque en­
cerravam idéias que pareciam tomadas de empréstimo à Revelaçãon .
De outro lado havia também ali sementes de heresias, a tentação
do emanatismo, do dualismo, do maniqueísmo; e os Padres estiveram
conscientes dos muitos limites que se lhes impunha a utilização, pela
doutrina da fé, dessas filosofias. Eis por que deviam corrigi-las a
todo momento e não podiam elaborar, com esse instrumental, uma
visão sistemática homogênea capaz de comparar-se, sob este ponto de
vista especulativo e global, às “Summae” medievais ,2.
10 Enc. Populorum Progressio, n ? 23.
n Cf. S. J u stin o , Apol., I , 44 (P.G . 6, 396 A ) ; Sto . A go stinh o , De civ. Dei,
V III, 11 (P.L, 41, 233); S. C irilo de A lexandria , Contra Julian., I I (P.G. 76,
373 A ); etc. Ver R. A rn o u , “Platonisme des Pères”, in Dict. Théol. Cathol., t.
X II, 2294s.
12 Cf. C. V agaggini, art. “Teologia", in Nuovo Dizionario di Teologia (a cura
di Q. Barbaglio e S. Dianich), Ed. Paoline, Roma, 1976, p. 1620.
OS PADRES DA IG REJA 13

Assim, as páginas dos Santos Padres não sempre satisfarão hoje


como orientações teológicas, apesar das muitas intuições geniais.
Mas num plano que não seja apenas o do estudo e sim o da orien­
tação de vida, importam como indicações do espírito cristão, pois
todas elas ensinam — dizia S. B ento 13— o reto caminho que
leva ao Criador.

Passemos agora a uma resenha de informações üteis para o


estudo da Patrologia, e que se acham mais desenvolvidas nos Manuais
especializados.
Costuma-se dividir a época patrística em três períodos princi­
pais:
1) o das origens até o concílio de Nicéia (325);
2 ) a chamada “idade áurea”, que vai desde então ao concílio
de Calcedônía (4 5 1 );
3) o declínio, daí aos séculos V II-V IIL

O período das origens interessa mais à crítica, por ser o dos


primeiros testemunhes da fé tradicional na divindade de Cristo e na
Trindade, e o das estruturas mais antigas da Igreja. Abrange os cha­
mados “Padres apostólicos” - - que tiveram relações mais ou menos
diretas com os Apóstolos: Clemente Romano, Inácio, Policarpo, Pa-
pias. . . sendo do mesmo tempo o escrito denominado Didaqué, Além
disto pertencem a esse período os autores seguintes do século II,
que redigiram escritos apologéticos e anti-heréticos: Justino, Atená-
goras, Ireneu etc.; e os que fizeram, do fim do século II ao início
dò século IV, os primeiros ensaios de sistematização doutrinária:
Orígenes, Tertuliano, Hipólito, etc.
No segundo período inscrevem-se os principais autores, desde um
sto. Atanásio a um sto. Agostinho. Tempo das obràs mais importan­
tes e das formulações doutrinárias basilares.
O título de “período de declínio” não se afigura bastante justo
para designar a era pós-calcedonense, pois inclui diversos Padres
de primeira grandeza, apenas menos numerosos do que os anteriores.
Estabelecem um traço de união entre o mundo antigo, greco-romano,
e a cristandade derivada dos povos bárbaros, os quais começam a
ser educados por obra de grandes missionários e sob o impulso princi­
pal de s. Gregório Magno.
Quanto às línguas das obras patrísticas, há que assinalar o
grego, o latim (desde o fim do século II e início do I I I ) , o siríaco,
o armênio e o copta.
O estudo do que se chama “Patrologia” coriieçou com s. Jerô-
nimo: na obra De viris illustribus, incluiu dados sobre 135 escritores
antigos (embora não se atendo somente aos cristãos). Resenhas se­
13 Regra, c. 73.
14 INTRODUÇÃO

melhantes vieram depois, de autoria de Genádio (séc. V ), Isidoro e


Ildeíonso (séc. V I), Fócio (séc. IX ) e outros.
A partir do século XVI vêm a lume as grandes Coleções, de
Roberto e Henrique Estêvão, dos irmãos Froben ( séc. X V I), dos bene­
ditinos da Congregação de s. Mauro (séc. X V II e X V III), etc. A
maior foi a realizada no século passado por J. P. Migne ( t 1857),
sob o título Patrologiae Cursus Completus, editada em duas séries:
a latina (221 volumes) e a grega (161 volumes). Apesar dos senões
e incorreções, continua prestando enorme auxílio até hoje. É a ela
que em geral iremos remeter o leitor, indicando os textos de nossas
traduções, sob as siglas respectivamente P.L. e P.G., conquanto te­
nhamos consultado textos críticos mais recentes, como os da coleção
“ Sources Chrétiennes” (S.C.) e outros, ainda em curso de publicação.
A literatura siríaca, copta, etc. vem sendo publicada em dois
conjuntos: o Corpus Scriptorum Cbristianorum Orientalium e a Patro-
logia Orientalis.
Ê vastíssimo o número de obras e monografias que aparecem
nos grandes centros culturais de nosso tempo e por isso começou a
sair, desde 1956, uma Bibliographia Patrística, editada por W.
Schneemelcher com a colaboração internacional de numerosos erudi­
tos.
SUBSÍDIOS BIBLIOGRÁFICOS

I. COLEÇÕES
M ig n e , Patrologiae Cursus Completus\ Série latina (P.L .); série grega (P.G .)
Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (CSEL): publicação da Academia de
Ciências de Viena, 186 6 ...
Die grieschischen christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte: publicação
da Academia de Ciências de Berlim, 1 8 9 7 ... (GCS)
Corpus Christianorum, edição da Abadia de St. Peter, em Steenbrugge, 1 9 5 3 ...
(CCL: série latina; CCG: série grega)
Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium, Louvain, 1 9 0 3 ... (CSCO)
Bibliothek der Kirchenväter, Munique, 1 9 3 1 ...
Sources Chrêtiennes, Paris, 1 9 4 1 ... (S.C.): cerca de 200 volumes aparecidos, geral­
mente em edição bilíngue (original e trad. francesa)
Na “Biblioteca de Autores Cristianos” (BAC) têm sido editados muitos volumes
com obras de Padres, com tradução espanhola
Ancient Christian Writers, trad. ingl., ed. Quasten e Plumpe, Washington (A .CW .)
Etc.

II. FLORILÉGIOS
Rouet de Tournel, Enchiridion Patristicum, 1965 (23* ed.)
R o uêt de J o u r n e l e D u t il l e u l , Enchiridion Asceticum, 1958 (5* ed.)
C. K ir c h , Enchiridion Fontium Historiae Ecclesiasticae Antiquae, 1960 (8; ed.)
R. S ierra B ravo, Doctrina social y económica de los Padres de la Iglesia. Colección
general de documentos y textos, Madri, 1967
A. H am m a n , Guia practica de los Padres de la Iglesia, tr., Buenos Aires, 1969
Etc.
J. V ives , Los Padres de la Iglesia (seleção até Sto. Atanásio), Barcelona, 1971
D. C asagrande , Enchiridion Marianum Biblicum Patristicum,.- Roma, 1974
S. A lvarez C ampos , Corpus Marianum Patristicum, Burgos, 1? vol., 1970
A. H e il m a n n -H. K raft , La teologia dei Padri. Testi dei Padri latini, greci, orientali,
scelti e ordinati per temi, tr. ital., Roma, 1975, 5 vols.

III. PATROLQGIAS
F. C ayré, Patrologie et Histoire de la Théologie, Paris, 1947, 3 vols.
J. Q u asten , Patrologia, tr. ital,, Ed. Marietti, 3 vols. (o 3? saiu em 1978); em tr.
esp., BAC, só saíram os 2 primeiros vols.
B. A lta ner e A. St u ib e r , Patrologia, tr. bras., Edições Paulinas, S. Paulo, 1972.

IV. TRADUÇÕES EM PORTUGUÊS.


É muito pouco o que se tem em nossa língua. A revista A Ordem, do Rio,
publicou uma série de traduções, entre os anos 1941 e 1949, algumas com boas intro­
duções; vários textos também saíram na Rev. Gregoriana (depois Liturgia e Vida),
a partir de 1958.

* Ampla bibliografia pode ser vista em B. A ltaner, Patrologia, tr,, Edições


Paulinas, S. Paulo, 1972, pp. 26ss; ou no manual de Quasten, que porém não existe
em português. O mais completo repertório é o que vem sendo editado periodica­
mente, desde 1956, por W . Schneemelcher, Bibliographia Patrística, Berlim,
16 SUBSÍDIOS BIBLIOGRÁFICOS

Mais atualizada e sistemática foi a coleção “Fontes da Catequese” (Ed. Vozes),


dirigida por Fr. A. Beckheuser ofm, que apresentou — de 1970 a 1978 — 14
volumes: Diàaquê; Cartas de Sto. Inácio de Antioquia; Carta de São Clemente Ro­
mano aos coríntios; Peregrinação de Etéria; Os Sacramentos e os Mistérios (Sto.
Ambrósio); A Instrução dos Catecúmenos (Sto. Agostinho); A unidade da Igreja
Católica (S. Cipriano); Sermões sobre o Natal e a Epifania (S. Leão); Carta a
Diogneto; Sermões sobre as coletas, a quaresma e o jejum de Pentecostes (S. Leão);
Catequeses Mistagógicas (S. G rilo de Jerusalém); Sermões sobre os Santos, jejuns e
ordenação episcopal (S. Leão); Catequeses pré-batismais (S. Cirilo de Jerusalém).
Está apenas o texto em vernáculo, acompanhado de notas explicativas e de boas
introduções.
Em Portugal foi iniciada a coleção “Origens do Cristianismo”, a partir de 1972,
com traduções baseadas na coleção “Sources Chrétiennes”: um total também de
14 obras até agora saídas ou anunciadas.
Afora isso, temos apenas publicações esparsas, sobretudo de Sto. Agostinho, S.
João Crisóstomo, S. Leão, pequenos florilégios, etc.
SÃO CLEMENTE DE ROMA
(t c. de 102)

S. Clemente foi o 3? sucessor de S. Pedro na Sé de Roma, em tempos de


Domidano e Trajano (de 92 a 102). No depoimento de santo Irineu ( t 202), "ele
viu os apóstolos e com eles conversou, tendo ouvido diretamente sua pregação e ensi­
namento”. Provavelmente foi ao mesmo que s. Paulo fez alusão em F1 4,3.
Cerca do ano de 96, s. Gem ente escreveu uma Carta à comunidade cristã de Co­
rinto, agitada então por grave dissensão interna. Ê importante observar que, como
Bispo de Roma, tenha dirigido uma exortação desse teor à distante igreja de Corinto:
isso atesta a consciência de seu primado universal como sucessor de Pedro. A Carta,
escrita em grego, e da qual apresentamos alguns trechos, foi altamente apreciada na
antígüidade, quase como se fosse um texto bíblico. Encerra testemunhos notáveis de
fé ha Sagrada Escritura, na Trindade, no Sacrifício eucarístico, na ressurreição dos
mortos, na origem divina das principais funções eclesiásticas. Refere ainda a estada
de s. Pedro em Roma. Termina por belíssima Oração, inspirada sem dúvida na liturgia
da época.
Outros dados sobre s. Gemente, como os que se acham nas “Pseudodementinas”
ou em documentos do século IV acerca do seu martírio, carecem de valor histórico.
Texto hilíngüe em S.C. 167 e BAC 65.

CARTA DE SÂO CLEMENTE AOS CORÍNTIOS 1

A Igreja de Deus que peregrina em Roma, à Igreja de Deus 1


que peregrina em Corinto: aos eleitos e santificadas na vontade de
Deus por nosso Senhor Jesus Cristo. Que a graça e a paz de Deus to-
do-poderoso se multipliquem entre vós, em Jesus Cristo!

I — Por causa de súbitas e sucessivas calamidades que nos so­


brevieram12, é com certo atraso, irmãos, que se volta nossa atenção
para os assuntos discutidos entre vós. Refiro-me a essa sedição es­
tranha, incompatível com eleitos de Deus, nefasta e ímpia, que pessoas
presunçosas e arrogantes promoveram e levaram a tal ponto de in­
sensatez, que vosso nome venerável, glorioso e digno do amor de
todos os homens, ficou seriamente denegrido.
1 O texto apresentado na coleção Migne (P.G., 1, 202ss>:*é incompleto, sendo ne­
cessário ir-se a uma edição crítica como a de F. X. Funk, Paires apostolici, Tíibingen,
1901 (texto grego) ou D. Morin, S. Clementis Romani ad Cor. epistulae versio anti­
quíssima, Maredsous, 1894 (versio latina).
2 Alusão à perseguição de Domiciano (81-96): cf. Suetônio, Domit. 11: “inopina-
ta saevitia”.
18 SÃO C LEM EN TE DE ROMA

Quem, na verdade, demorando-se entre vós, não tinha aprovado


vossa fé virtuosa e firme? Quem não admirava vossa piedade em
Cristo, sábia e discreta, ou deixava de proclamar vossa hospitalidade
generosa? Quem não vos felicitava por vossa ciência perfeita e segura?
Tudo fazíeis sem considerar a pessoas, e caminháveis na lei de
Deus, submissos aos dirigentes e prestando a devida honra aos an­
ciãos constituídos entre vós. Aos moços ensináveis a ter moderação no
espírito. Às mulheres ordenáveis que cumprissem seus deveres em
consciência santa, digna e pura, amando devidamente seus maridos,
fiéis à regra da submissão e organizando a casa de modo digno e
prudente.

2 II — Éreis humildes, sem arrogância, preferindo obedecer a man­


dar, mais felizes em dar que em receber. Contentes com o que Cristo
vos dava para a viagem da vida e, atentos às suas palavras, vós as
guardáveis cuidadosamente no coração, conservando presentes seus so­
frimentos. Assim, uma paz profunda e abençoada inundava a todos,
com insaciável desejo de fazer o bem, e se derramava sobre todos uma
plena efusão do Espírito Santo. Cheios de santas aspirações e de ale­
gria, estendíeis confiantemente as mãos a Deus todo-poderoso, implo­
rando sua misericórdia, se algum pecado involuntário houvésseis come­
tido. Lutáveis dia e noite pela comunidade dos irmãos, a fim de con­
servar íntegro, pela misericórdia e comum sentimento, o número dos
eleitos de Deus. Éreis sinceros, simples e sem rancor uns com os ou­
tros, abominando toda sedição e cisma. Choráveis as quedas do próxi­
mo, julgáveis vossas as suas faltas. Jamais vos arrependíeis de fazer o
bem, “prontos para toda boa obra” 3. Ornados por uma vida de virtude
e honra, tudo fazíeis no temor de Deus. Os preceitos e mandamentos do
Senhor estavam escritos no vosso coração.

3 I I I — Foi-vos dada toda glória e prosperidade, mas cumpriu-se a


Escritura: “o bem-amado comeu e bebeu, cresceu, engordou e rebelou-
-se ” 4. Brotaram ciúme e inveja, discórdia e sedição, perseguição e de­
sordem, guerra e cativeiro. Ergueram-se “os indignos contra os dig­
nos” 5, os obscuros contra os ilustres, os insensatos contra os prudentes,
os jovens contra os anciãos. A justiça e a paz fugiram de vós, por
haverdes abandonado o temor de Deus e deixado obscurecer-se a fé.
Já então não andáveis conforme a lei dos seus mandamentos nem vivíeis
de maneira digna de Cristo, mas, ao contrário, cada um se lançava
para os caminhos desejados por seu perverso coração, acolhendo a
inveja injusta e ímpia, aquela pela qual “a morte entrou ho m undo” 6.

3 T t 3,1.
4 D t 32,15.
5 Is 3,5.
CARTA AOS 'CORINTIOS 19

IV — Conforme o que está escrito: “Passado algum tempo, ofe- 4


receu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor; e também Abel, de
seu lado, ofereceu primogênitos dos rebanhos cóm suas gorduras. Ora,
o Senhor olhou com agrado para Abel e sua oblação, mas não olhou
para Caim e suas dádivas. Caim ficou extremamente irritado, seu sem­
blante se tornou abatido. O Senhor lhe disse: T o r que estás irado
e tens abatido o semblante? Se fizeres o bem, porventura tua oblação
não será agradável? Se fizeres o mal, o pecado estará à tua porta, es­
preitando-te, mas para que tu o domines’. Disse então Caim a seu ir­
mão Abel: ‘Saiamos ao campo’. E estando ambos no campo, Caim se
lançou sobre seu irmão Abel e o m atou”.
Vedes, irmãos, como o ciúme e a inveja produziram um fratricídio.
Igualmente por causa da inveja nosso pai Jacó precisou fugir da
presença de seu irmão Esaú. A inveja fez que José fosse perseguido
quase até a morte e chegasse à escravidão. Ela forçou Moisés a fugir
do Faraó, rei do Egito, quando ouviu de um de sua tribo: “Quem te
constituiu árbitro e juiz entre nós? acaso queres matar-me como ma­
taste o egípcio? ”
Por causa da inveja, Aarão e Maria precisaram ficar fora do
acampamento; e Data e Abirão, rebelados contra Moisés, servo de
Deus, deveram descer vivos ao Hadés. Por causa da inveja Davi sofreu
por parte de estrangeiros e foi perseguido por Saul, rei de Israel.

V — Mas deixemos os exemplos antigos e venhamos aos mili- 5


tantes que viveram mais perto de nós, sendo nobres exemplos de nos­
sa própria, geração.
P er ciúme e inveja foram perseguidos os que eram as supremas e
digníssimas colunas da Igreja, devendo sustentar seu combate até a
morte. Ponhamos ante os olhos os santos Apóstolos. Pedro, 'pfõt
iníqua inveja, teve de suportar não um ou dois, mas numerosos ■
sofrimentos; e depois de assim dar seu testemunho, caminhou para o
lugar da glória que merecera. Pela inveja e rivalidade, também Paulo
mostrou o galardão da paciência, tendo sido posto em grilhões seis ve­
zes, desterrado, apedrejado; e tornando-se arauto de Cristo no Oriente
e no Ocidente, alcançou a nobre fama de sua fé. Depois de ter ensi­
nado a todo o mundo a justiça, e depois de ter chegado ao limite do
Ocidente, dando seu testemunho entre os príncipes, partiu deste mun­
do, caminhou para o lugar santo, deixando-nos o mais alto legado de
sua paciência.VI

VI — A estes homens, de tal conduta e santidade, agregaram-se 6


muitos outres eleitos, os quais, após sofrerem pela mesma razão da
inveja inúmeros ultrages e tormentos, se converteram no mais belo
exemplo que pudéssemos ter.
Por inveja foram perseguidas mulheres, novas Danaides e Dir-
ces, que padeceram cruéis e sacrílegos suplícios, mas enfrentaram a
20 SÃO C LEM EN TE DE ROMA

carreira da fé, para receberem, frágeis de corpo, generosa recompensa.


A inveja separou as casadas de seus maridos, subvertendo-se o que fora
dito pelo pai Adão: “eis o osso de meus ossos e a carne de minha
carne ”. Inveja e contenda assolaram grandes cidades e destruiram
grandes nações.

7 V II — Tudo isto vos escrevemos, caríssimos, não só para ad­


moestar-vos como também para o recordarmos nós mesmos, nós que
estamos na mesma arena e vivemos o mesmo combate.
Renunciemos portanto a nossas vãs preocupações e voltemos à
gloriosa e veneranda regra de nossa tradição. Vejamos o que é bom,
agradável e aceito na presença de nosso Criador. Fixemos o olhar no
sangue de Cristo e vejamos quão precioso é ante a face de Deus, seu
Pai, o sangue vertido por nossa salvação, que alcançou graça de peni­
tência para todo o mundo. Percorramos as sucessivas gerações, vendo
como através delas o Senhor ofereceu a penitência aos que desejavam
converter-se a ela. Ncé pregou a penitência, e os que o escutaram se
salvaram. Jonas anunciou aos ninivitas a destruição de sua cidade,
e eis que se arrependeram de seus pecados, obtendo, por suas súpli­
cas, o perdão de Deus, e conseguindo a salvação, apesar de serem
estrangeiros em relação a Deus.

8 X X X III — Que faremos, pcis, irmãos? Iremos cessar de fazer


o bem, e deixar de lado a caridade? Não permita o Senhor que isso
aconteça. Apliquemo-nos, pelo contrário, a realizar, com zelo e entu­
siasmo, “ toda espécie de boa obra ” 7. Pcis o próprio Criador e Domi­
nador do universo se regozija com as suas obras. Com seu império
soberano firmou os céus e ornou-os ccm incompreensível sabedoria.
Separou a terra das águas e assentou-a sobre o. inabalável fundamen­
to da sua vontade; por sua ordem chamou à existência os animais
que andam na superfície da terra; por seu poder preparou o mar e
os animais que nele vivem, e os encerrou ali. Além de tudo isso, for­
mou com suas mãos sagradas e puras o homem, a mais excelente de
suas obras, que traz o sinal de sua imagem. Pois assim falou Deus:
“Façamos o homem, à nossa imagem e semelhança; e Deus fez o ho­
mem; homem e mulher ele os fez” 8. Terminando, então, toda sua
obra, ele os louvou e abençoou: “Crescei e multiplicai-vos” 9. Con­
sideremos que todos os justes se ornaram de boas obras e que o pró­
prio Senhor, ornando-se de boas obras, se regozijou com elas. Tendo,
pois, tal exemplo, entreguemo-nos, sem tardar, à sua vontade, e prati­
quemos com todo empenho as obras da justiça.

7 T t 3,1.
8 Gn 1,26s.
9 Gn 1,28.
CARTA AOS CORÍNTIOS 21

XXXVI — É este o caminho, meus amados, no qual encontra- 9


mos a nossa salvação, Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote das nossas ofe­
rendas, o chefe e auxiliador da nossa fraqueza. Por ele fixamos o
olhar nas alturas do céu, por ele contemplamos como em espelho a
face imaculada e soberana de Deus. Por ele, abrem-se-nos os olhos
do coração; por ele abre-se para a luz nossa curta e obscura inteli­
gência. Por ele, quis o Senhor que saboreássemos algo do conheci­
mento imortal, “ele, o esplendor da sua grandeza, e tanto maior que
os anjos, quanto os supera o nome que herdou” 10.
Pois está escrito: “Deus faz os ventos serem seus anjos e as
chamas do fogo seus servos” u . Mas do Filho diz o Senhor: “Tu és
o meu Filho, eu hoje te gerei, pede-me, e dar-te-ei as nações em
herança, os confins da terra em propriedade” 12. E diz-se outra vez:
“Assenta-te à minha direita, até que faça de teus inimigos escabelo de
teus pés” 13. Quais são esses inimigos? Os maus e os que resistem à
sua vontade.

XXXVII — Militemos, pois, irmãos, com toda a aplicação, sob 10


seus imaculados preceitos. Consideremos os soldados alistados sob os
nossos chefes, como escutam com disciplina, com docilidade, com sub­
missão, as ordens! Nem todos são comandantes ou oficiais à testa de
mil, de cem, de cinqüenta etc., mas cada qual em seu lugar executa
as ordens do superior ou dos chefes. Os grandes não podem existir
sem os pequenos, nem os pequenos sem os grandes. Em tudo há certo
tempero e disso deriva sua utilidade.
Tomemos o exemplo de nosso corpo: a cabeça sem pés nada é,
nein os pés sem a cabeça. Os menores membros do corpo são necessá­
rios e úteis ao conjunto e todos se ordenam para a conservação do
corpo inteiro.

X L II — Os apóstolos foram mandados a evangelizar pelo Se- 11


nhor Jesus Cristo. Jesus Cristo foi enviado por Deus. Assim, Cristo
vem de Deus e os apóstolos de Cristo. Esta dupla missão se sucede
em boa ordem, por vontade de Deus. Assim, tendo recebido ins­
truções, e estando plenamente convencidos pela ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo, e confirmados na fé pela palavra de Deus, saíram
os apóstolos a anunciar, na plenitude do Espírito Santo, a boa nova da
aproximação do reino de Deus. Iam pregando por campos e cidades,
batizavam os que obedeciam ao desígnio de Deus, e iam estabelecen­
do aos que eram as primícias dentre eles como bispos e diáconos dos
futuros fiéis, depois de prová-los no Espírito Santo. E isto não era
novidade, pois desde muito tempo estava escrito de: tais bispos e diá-
w H b l,3s.
n SI 103.4.
12 SI 2,7s.
13 SI 109.1.
22 SÃO C LEM EN TE DE ROMA

conos. Diz, com efeito, a Escritura em certo lugar: “estabelecerei os


seus bispos na justiça e seus diáconos na fé ” 14.
12 X L III — Que há de estranho que os apóstolos, a quem Deus
confiou o encargo dessa obra, tenham estabelecido os supra-ditos,
quando Moisés, o bem-aventurado “servo fiel em toda a sua casa” 15,
consignava nos livros sagrados os mandamentos que recebia? A Moisés
seguiram-se os outros profetas, acrescentando seu testemunho ao que
fora instituído por lei. E foi assim que, quando irrompeu a rivali­
dade em torno do sacerdócio e as tribos contendiam sobre a que
seria ornada com esse título glorioso, Moisés mandou aos doze chefes
de tribo que lhe trouxessem varas escritas com o nome de cada tribo.
Recebendo-as, amarrou-as e marccu-as com os selos dos chefes, de­
positando-as no tabernáculo do testemunho sobre a mesa de Deus.
Fechou depois a tenda e selou o fecho, como fizera com as varas,
dizendo: “Irmãos, a tribo cuja vara germinar é a que Deus para si
escolheu, a fim de exercer o sacerdócio e o culto”. Na manha seguinte,
convocou todo Israel, os seiscentos mil homens, mostrou os selos aos
chefes, abriu o tabernáculo e tirou de dentro as varas. Achou-se,
então, que a vara de Aarão não só brotara, mas até frutificara16.
Que pensais, meus amados? Não previa Moisés que isso ia acon­
tecer? É certíssimo que previa, mas agiu assim para que não se pro­
duzisse desordem em Israel, visando a glorificar o nome do verdadei­
ro e único Deus, ao qual pertence a glória pelos séculos dos séculos.
Amém.
13 XLIV — Também os apóstolos souberam, por nosso Senhor Jesus
Cristo, que haveria discórdia por causa do título episcopal. Por esta
causa e em perfeita previsão do futuro, instituíram os acima mencio­
nados e em seguida determinaram que, depois de sua morte, outros
homens provados recebessem em sucessão o seu ministério. A esses,
pois, que foram colocados pelos apóstolos, ou por outros homens
eminentes com o consentimento de toda a Igreja, e serviram irrepreen­
sivelmente ao rebanho de Cristo, de modo humilde, pacífico e digno,
recebendo por longo tempo e da parte de todos, testemunho favorá­
vel, a tais homens não achamos justo depor de seu ministério. Não
será, na verdade, pequena a nossa falta, se depusermos do episcopa­
do homens que, de modo santo e irrepreensível, ofereceram os
dons. Felizes os presbíteros que nos precederam na viagem para a
eternidade, os quais tiveram um fim perfeito e cheio de fruto: não
precisam temer que alguém venha removê-los de seu lugar. Dizemos
isto porque vemos que destituístes alguns do ministério, que o exer­
ciam de modo muito honroso.
m Is 60,17.
15 Nm 12,7.
16 Nm 17,16-26. Cf. ainda Fílon, Vita Moysis, I I ( I I I ) 21,175-180; Flávio Josefo,
Antiguidades judaicas, IV, 4,2.
CARTA AOS 'CORÍNTIOS 23

XLV — Sede, irmãos, cheios de emulação e zelo pelo que se 14


refere à salvação. Vós vos aprofundastes nas Sagradas Escrituras,
que são verdadeiras, que provêm do Espírito Santo. Bem sabeis que
elas estão isentas de injustiças e falsidades. Ora, ali não encon­
trareis justos sendo rechaçados por homens santos. Os justos foram
perseguidos, mas pelos ímpios; apedrejados, mas pelos criminosos;
mortos, mas pelos que abominavelmente os invejaram. E tais sofri­
mentos suportaram com glória. Que diríamos, irmãos? Acaso foi
Daniel lançado à cova dos leões por homens tementes a Deus? ou
Ananias, Azarias e Misael encerrados na fornalha ardente por gente
que cultua o Altíssimo? De maneira alguma. Quem eram os que faziam
isso? Indivíduos cheios de ódio e maldade, que enfurecidos maltra­
taram os servos de Deus, servos santos e imaculados. Ignoraram que
o Altíssimo combate pelos seus e cobre com escudo os que em cons­
ciência pura adoram seu santo nome. A ele a glória pelos séculos dos
séculos, amém. Mas os que perseveraram na paciência tiveram por
herança glória e honra, foram exaltados e inscritos por Deus no
livro de sua memória pelos séculos dos séculos. Amém.

XLV II — Tomai em mães a Epístola do bem-aventurado Paulo 15


apóstolo. Que vos escreveu, logo nos inícios do Evangelho? Na ver­
dade, divinamente inspirado, ele vos escreveu acerca de si mesmo, de
Cefas e de Apoio, porque já então formáveis partidos. Mas o partida­
rismo daquela época era um pecado menor, pois vos alistáveis no par­
tido de apóstolos autorizados e de um homem aprovado por eles.
Agora, porém, considerai os que vos perverteram e fizeram diminuir o
brilho de vossa afamada caridade. E vergonhoso, meus amados, ver­
gonhoso e indigno da vida em Cristo, ouvir dizer que a antiga e fir-
míssima Igreja dos coríntios se leyanta contra seus presbíteros por
causa de uma cu duas pessoas! E este rumor chegou., não só a nós,
mas ainda àqueles que pensam de modo diferente de nós, de modo
que por vossa insensatez fazeis blasfemar contra o nome do Senhor
e acarretais para vós mesmos grave perigo.

X L V III — Apressemo-nos, pois, em afastar tudo isso, e caiamos 16


aos pés do Senhor para suplicar-lhe, com lágrimas, que de nós se com­
padeça, nos reconcilie consigo, nos restabeleça na religiosa e santa
prática da caridade fraterna. Pois esta é a porta da justiça, que se
abre para a vida, conforme a Escritura: a Abri-me as portas da justiça;
entrando nelas confessarei ao Senhor, os justos entrarão por ela” 11.
Das numerosas portas abertas, esta é a da justiça, a saber, a que se
abre em Cristo. Bem-aventurados os que por ela entrarem e dirigirem
seus passos em santidade e justiça, cumprindo todas as coisas sem
perturbação. Alguém é capaz de explicar uma doutrina, alguém é sábio17
17 SI 117,19s.
24 SÃO C LEM EN TE DE ROMA

no discernimento das palavras, ou santo em obras? Tanto mais deve


humilhar-se quanto parece ser maior, tanto mais deve procurar o que
é de utilidade para todos e não só para si.

XLIX — Quem possui a caridade em Cristo cumpra o manda­


mento do Cristo. O vínculo da caridade de Deus, quem haveria de
descrevê-lo? Quem é capaz de exprimir sua beleza? A altura a que
conduz a caridade é inefável.. . A caridade nos une estreitamente a
Deus, a caridade cobre a multidão de pecados, a caridade tudo suporta,
é paciente. Na caridade não há baixeza nem soberba; ela não fomenta
divisões, não é sediciosa, a caridade faz tudo na concórdia. Na carida­
de foram aperfeiçoados os eleitos de Deus. Sem a caridade nada é
agradável a Deus. Na caridade nos acolheu o Senhor. Foi por cari­
dade para conosco que Jesus Cristo, Senhor nosso, dócil à vontade
de Deus, entregou por nós seu sangue, sua carne por nossa carne, sua
vida por nossas vidas.

18 LIV — Quem dentre vós fcr generoso, compassivo, cheio de


caridade, diga: — “Se sou causa da rebeldia, discórdia, divisão, re­
tiro-me e vou para onde quiserdes, estando pronto para cumprir as
decisões da comunidade; somente desejo que o rebanho de Cristo viva
em paz com seus presbíteros estabelecidos”. Quem proceder assim
conseguirá uma grande glória em Cristo, e em todos os lugares se
lhe fará boa acolhida: “porque do Senhor é a terra e tudo que ela
contém” 1S. Isto fizeram e hão de fazer os que vivem segundo Deus,
do que não cabe jamais arrepender-se.

19 LVII — Portanto, vós que causastes o início da rebeldia, subor­


dinai-vos aos presbíteros e deixai-vos corrigir para a paciência, do­
brando os joelhos em vossos corações. Aprendei a submeter-vos, de­
pondo a soberba e a orgulhosa arrogância da língua. Mais nos vale ser
pequenos e pertencentes aos rebanhos de Cristo, do que ser excluídos
da sua esperança apesar de prestigiados.

20 L V III — Obedeçamos, pois, a seu nome santíssimo e glorioso,


fugindo às ameaças proferidas pela Sabedoria contra os desobedientes,
a fim de repousarmos confiantes no santíssimo nome de sua majestade.
Aceitando nosso conselho, nada tereis de que vos arrepender. Porque,
vive Deus! vive o Senhor Jesus Cristo e o Espírito Santo, e também
a fé e a esperança dos eleitos! só aquele que praticar a humildade
com moderação contínua e sem queixas, os preceitos e mandamentos

ia SI 33,1.
CARTA AOS CORÍNTIOS 25

de Deus, será incluído e contado no número dos salvos por Jesus


Cristo, pelo qual llhe seja dada a glória pelos séculos dos séculos. 21
Amém.

LIX — Se, porém, alguns desobedecerem às admoestações que


por nosso intermédio ele mesmo vos dirigiu, saibam que se envolve­
rão em pecado e perigo não pequenos. Mas nós seremos inocentes
desse pecado, e pediremos com fervorosa prece e súplica 19, ao Cria­
dor do universo, que conserve intacto em todo o mundo o número
dos eleitos, por seu Filho bem-amado Jesus Cristo, por ele que nos
chamou das trevas à luz, da ignorância ao conhecimento do seu no­
me glorioso.
Fizeste-nos esperar em teu nome,
princípio da vida de toda criatura,
abriste os olhos de nosso coração para te conhecermos,
único nas alturas,
Santo que repousas no meio dos santos!
Tu que abates a insolência dos orgulhosos,
desfazes os pensamentos das nações,
levantas os humildes
e rebaixas os que se exaltam,
tu que enriqueces e empobreces,
fazes morrer e vivificas,
só tu és benfeitor dos espíritos
e Deus de toda a carne.
Tu mergulhas o olhar nos abismos,
e perscrutas as obras dos homens,
Tu, socorro dos que estão em perigo,
salvador e guardião de todós os espíritos! \
Tu multiplicas os povos sobre a terra
e escolhes dentre eles ós qué te amam,
por Jesus Cristo, teu Filho bem-amado,
por quem nos instruíste, santificaste, honraste.
Nós te rogamos, Senhor soberano,
sê nosso socorro e defensor,
Salva entre nós os oprimidos,
tem piedade dos humildes,
levanta os que caíram,
mostra-te aos que estão em necessidade,
cura os doentes,
reconduze os famintos de teu povo,
19 A grande Oração que se segue é considerada uma das mais antigas e belas da
literatura cristã. Oferece-nos um exemplo de como eram as Orações, muitas vezes
improvisadas pelo presidente da assembléia, no culto eucarístico (cf. s. Tustino,
V Apol. 67, 5 ).
SÃO C LEM EN TE DE ROMA

sacia os famintos,
liberta os prisioneiros,
reergue os débeis
encoraja os pusilânimes!
Que todos os povos te reconheçam
como único Deus,
a Jesus Cristo como teu Filho,
a nós como teu povo e as ovelhas de teu rebanho.

LX — És tu que fazes aparecer


a constante ordem do mundo
por meio das forças que operam nele.
Tu, Senhor, fundaste a terra.
Tu te conservas fiel em todas as gerações,
justo nos julgamentos,
admirável na força e magnificência,
sábio na conservação das coisas, criadas,
bom nas coisas visíveis,
fiel para os que têm confiança em ti.
Misericordioso e compassivo,
perdca-nos as faltas e injustiças*
nossas quedas e defeitos,
não consideres os pecados de teus servos e servas,
mas purifica-nos por tua verdade
e dirige nossos passos
a fim de caminharmos na santidade do coração
e fazermos o que é bom e agradável em tua presença
e na dos nossos chefes!
Sim, Senhor absoluto, faze brilhar sobre nós tua face
para que gozemos dos bens em paz,
para sermos protegidos por tua mão possante,
e nos livrarmos de todo pecado, pelo teu braço erguido,
para sermos salvos dos que nos odeiam injustamente!
Dá-nos a concórdia e a paz,
a nós e a todos os habitantes da terra,
como fizeste com nossos pais
quando te invocaram santamente na fé e na verdade.
Dá-nos sermos submissos
a teu nome poderoso e santo,
e a nossos chefes e governantes sobre a terra.

LXI — Tu, Senhor absoluto, lhes deste o poder de governar,


por tua força magnífica e inefável,
a fim de que nós, reconhecendo a glória e honra
que lhes concedeste,
nos submetêssemos a eles
CARTA AOS CORÍNTIQS 27

é não nos opuséssemos à tua vontade.


Concede-lhes, Senhor, saúde, paz, concórdia, constância,
para que exerçam sem tropeço a soberania que lhes confiaste.
Porque es, Senhor dos céus, rei dos séculos,
e concedes aos filhos dos homens
a glória, a honra, o poder sobre as coisas da terra.
Dirige, Senhor, seus conselhos
de acordo com o bem, segundo o que te é agradável
a fim de que exercendo com piedade,
ng paz e mansidão,
o poder que lhes deste,
te encontrem propício!
Só tu tens o poder de fazer isso
e de nos dar maiores bens ainda!
Nós te rendemos homenagem pelo grande sacerdote
' ; e protetor de nossas almas, Jesus Cristo,
por quem te sèja dada glória e grandeza,
agora e de geração em geração,
pelos séculos dos séculos. Amém.

L X II — Já escrevemos o bastante, irmãos, sobre o que convém 24


à nossa religião e é mais útil aos que desejam conduzir-se de modo
justo e piedoso, no caminho da virtude. Nada deixamos de tocar acer­
ca da fé, da penitência, da verdadeira caridade, da temperança, da
castidade e da paciência; lembramos nosso dever de agradar santa­
mente ao Deus poderoso em justiça, verdade e longanimidade.
Concordes e sem ressentimento, em paz e caridade, em constante
moderação, segui o exemplo dos patriarcas que vos temos recordado
e que agradaram pela sua humildade para com o Pai, Deus e Criador,
e para com cs homens. Tudo isso vos recordamos de boa vontade,
sabendo estar escrevendo a homens fiéis e distintos, atentos aos orá­
culos do ensinamento de Deus,

L X III — É justo, portanto, que os que se acercaram de tão 25


grandes exemplos, se submetam e, ocupando c lugar da obediência,
aceitem os que são guias de nossas almas a fim de acalmarmos uma
discórdia vã e chegarmos sem mancha ao fim que nos é pro­
posto na verdade. Grande alegria nos proporcionareis se, obedecendo
ao que vos escrevemos pelo Espírito Santo, cortardes pela raiz a ímpia
cólera da inveja, consoante a súplica que nesta carta fizemos pela paz
e concórdia.
Nós vos enviamos homens fiéis e sábios, que desde sua juventude
até a velhice vivem conosco, de maneira irrepreensível, os quais serão
testemunhas entre vós e nós. Isto fizemos para que vísseis que nossa
preocupação consistiu e consiste em pacificar-vos prontamente.
28 SÃO C LEM EN TE DE ROMA

26 LXIV — Quanto ao mais, o Deus que tudo vê, o Soberano


“dos espíritos e Senhor de toda carne* 20, que escolheu o Senhor
Jesus Cristo e por meio dele também a nós, para sermos seu povo
particular, dê a toda alma, que invocar o seu santo e glorioso nome,
fé, temor, paz, paciência, longanimidade, temperança, pureza e casti­
dade, para que todos agradem a seu nome, pelo nosso sumo sacer­
dote e chefe Jèsus Cristo, pelo qual seja dada a Deus glória e majesta­
de, honra e poder, agora e pelos séculos dos séculos. Amém.

27 LXV — Devolvei-nos prontamente, em paz e alegria, nossos en­


viados Cláudio Efebo, Valério Bito e Fortunato, para que quanto
antes nos tragam notícias sobre a harmonia e a paz, pelas quais tanto
pedimos, e assim mais depressa eu me alegre com a vossa firmeza. A
graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja convosco e com todos que
em qualquer lugar Deus chamou por Jesus Cristo. Por ele seja dada
glória a Deus, honra, poder e majestade, reino eterno desde todos
os séculos e para todos os séculos dos séculos. Amém.

Nm 16,22.
DIDAQUÉ (OU DOUTRINA) DOS DOZE APÓSTOLOS

A Didaquê é como um antiquíssimo manual de religião. Julga-se ter sido redi­


gida entre os anos 90 e 100, na Síria, na Palestina ou em Antioquia. Traz no título
o nome dos apóstolos, mas não pretende ser de autoria de algum deles.
Divide-se em 3 partes: a 1* (cap. 1-6) é um tratado de moral (os “dois cami­
nhos”, o da vida e o da morte, doutrina da Epístola do pseudo-Bamabé); a 2? (cap.
7-10) é um antigo ritual litúrgico e a 3? (cap. 10-15) contém instruções sobre a vida
comunitária.
Os antigos Padres mencionaram muitas vezes a Didaqué. Seu texto, porém,
parecia perdido até que em 1883 foi descoberto um manuscrito grego, e logo após
foram descobertos ainda outros fragmentos (em copta, grego e latim).

H á dois caminhos, o da vida e o da morte. Grande, porém, a 28


diferença entre ambos.
O caminho da vida é o seguinte: primeiro amarás a Deus, teu
criador, e depois a teu próximo, como a ti mesmo; e tudo que não
queres seja feito a ti, não o faças a outrem.
O ensinamento contido nestas palavras é o seguinte: bendizei
aos que vos amaldiçoam e orai por vossos inimigos; jejuai pelos que
vos perseguem. Com efeito, qual a vossa recompensa se amais os que
vos amam? Não é isso que os pagãos fazem? Quanto a vós, amai os
que vos odeiam e não tereis inimigos.
Afasta-te das paixões da carne e do corpo; se alguém te esbofe­
teia na face direita, volta-lhe também a outra e serás perfeito; se
alguém te pede para andar u’a milha, caminha duas com ele; se al­
guém toma o teu manto, dá-lhe também a túnica; se alguém tomou
o que é teu, não lho exijas de volta, pois não o podes. Dá a todos que
te pedem e não reclames (o que deste). Pois o Pai quer se dê parte
a todos nos dons que se recebem. Feliz o que dá, conforme o
mandamento, pois não será punido. Ai de quem recebe! Se alguém
recebe por ter necessidade, será absolvido; aquele que não tem ne­
cessidade, porém, dará contas do motivo e do fim para o qual rece­
beu. Posto na prisão, será examinado sobre sua conduta e não sairá
enquanto não devolver o último quadrante.1

1 O texto grego acha-se editado, por exemplo, por J. P. Audet, La Didachè. Ins-
tructions des Apôtres, Paris, 1958.
30 DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS

Mas também foi dito, sobre este ponto: molhe-se de suor a es­
mola nas tuas mãos, até que saibas a quem a dás.

29 Eis agora No caminho da morte. Ê, antes de tudo, mau e cheio


de maldição: assassinatos, adultérios, maus desejos, fornicações, furtos,
idolatria, práticas de magia, bruxaria, roubos, falsos testemunhos, hipo­
crisia, duplicidade, fraude, orgulho, malícia, arrogância, avareza, deso­
nestidade no falar, inveja, insolência, presunção, ausência de te­
mor de Deus. Caminho dos perseguidores dos homens de bem, dos
inimigos da verdade, amantes da mentira, ignorantes da recompensa da
justiça, dos que não aderem ao bem nem ao julgamento justo; dos que
estão despertos, não para o bem, mas para o mal; que estão longe
da doçura e da paciência, amam a vaidade, são gananciosos, não têm
piedade do pobre e não se preocupam com os aflitos, desconhecem o
seu próprio Criador, assassinos de crianças e corruptores da imagem de
Deus; afastam o indigente e oneram os oprimidos; advogados dos ricos
e juízes iníquos dos pobres, pecadores em tudo. Livrai-vos, filhos, de
toda essa gente!

V II

Quanto ao batismo, batizai assim: depois de terdes ensinado o


que precede, batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
em água corrente. Se não existe água corrente, batize-se em outra
água. Se não puder ser em água fria, faze em água quente. Se não
tens bastante, de uma ou de outra, derrama água três vezes
sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. An­
tes do batismo, jejuem: o que batiza, o que é batizado e outras pes­
soas que puderem. Ordena ao batizado que jejue um ou dois dias
antes.

IX

Quanto à Eucaristia, celebrai-a assim:


Primeiro, sobre o cálice:
Damos-te graças, Pai nosso,
pela santa videira de Davi, teu servo,
que nos deste a conhecer por Jesus, teu Servo.
Glória a ti nos séculos!
Depois, sobre o pão partido:
Damos-te graças, Pai nosso,
DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS 31

peía vida e pela sabedoria


que nos deste a conhecer por Jesus, teu Servo.
Glória a ti ncs séculos!
Assim como este pão, outrora disseminado sobre as montanhas,
uma vez ajuntado, se tornou uma só massa,
seja também reunida tua Igreja
desde as extremidades da terra, em teu reino,
pois a ti pertence a glória e o poder,
por Jesus Cristo, para sempre.
Que ninguém coma ou beba da vossa eucaristia se
não for batizado em nome do Senhor, pois a este respeito disse
de “Não deis aos cães o que é santo” 2.

Depois de vos terdes saciado, dai graças assim: 32


Nós te damos graças, Pai Santo,
pelo teu santo nome
que puseste em nossos corações,
e pelo conhecimento, pela fé e imortalidade
que-nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu Servo.
Glória a ti nos séculos!
Tu, Senhor onipotente,
tudo criaste para honra de teu nome;
e deste alimento e bebida aos homens,
para seu desfrute;
a nós porém, deste um alimento e uma bebida espirituais
e a vida eterna, por meio de teu Servo.
Antes de tudo, damos-te graças porque és poderoso.
Glória a ti nos séculos!
Lembra-te Senhor, de livrar do mal a tua Igreja,
e de torná-la perfeita em teu amor.
Congrega-a dos quatro ventos, santificada,
no reino que lhe preparaste,
pois a ti pertence o poder e a glória, para sempre!
Venha a graça e passe este mundo!
Hosana ao Deus de Davi!
Se alguém é santo, aproxime-se;
se alguém não é, converta-se!
M aranathá3. Amém.
Quanto aos profetas, deixai-os render graças p quanto quiserem.

2 M t 7,6.
3 Maranathá: invocação, em aramaico, significando “Senhor, vem!” (cf. ICor
16,22).
32 DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS

X IV

Reunidos no dia do Senhor, parti o pão e dai graças, depois


de confessardes vossos pecados, a fim de que vosso sacrifício seja
puro. Quem tiver divergência com seu companheiro não deve
juntar-se a vós antes de se reconciliar, para que não seja pro­
fanado vosso Sacrifício, conforme disse o Senhor: “Que em todo
lugar e tempo me seja oferecido um sacrifício puro, pois sou um
rei poderoso, diz o Senhor, e meu nome é admirável entre as
nações” 4.

XV

33 Assim, portanto, ordenais para vós hispos e diáconos dignos do


Senhor, homens dóceis, desinteressados, verazes e experimentados,
pois também exercem junto a vós o ministério dos profetas e dos
doutores. Não os desprezeis, porque eles são honrados, entre vós,
junto com os profetas e doutores.
Repreendei-vos uns aos outros, não na ira, mas na paz, como
tendes no Evangelho. E se alguém ofender a seu próximo, ninguém
lhe fale nem lhe dê ouvidos, até converter-se. Quanto às vossas
orações, esmolas e demais ações, procedei conforme está no Evangelho
de nosso Senhor.

4 Cf. Ml 1,11,
SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA
( t c. de 110).

Inácio foi em Antioquia o 3? Bispo. Seus escritos indicam ter conhecido pes­
soalmente os apóstolos s. Paulo e s. João. Cerca do ano 110, sob o imperador Trajano,
foi preso como cristão e conduzido a Roma para ser julgado. De caminho, ao aportar
em Esmirna e Trôade, dirigiu cartas às comunidades cristãs de Roma, £feso, Magnésia,
Trales, Filadélfia e Esmirna, bem como ao bispo são Policarpo. Em Roma consta ter
sido martirizado no Coliseu, conforme era seu vivo desejo.
Suas Cartas são consideradas jóias da literatura cristã mais antiga. Caracteriza-as
uma ardente piedade para com a pessoa de Jesus Cristo, Deus e homem, cuja carne e
sangue são, na eucaristia, remédio de imortalidade. Na Carta aos esmirnenses aparece,
pela primeira vez, a expressão “Igreja católica". Para santo Inácio, o bispo é, na igre­
ja local, o centro da ortodoxia e o ministro dos sacramentos. A Igreja de Roma é a
que tem no mundo “a presidência da caridade".
Texto bilíngüe em BAC 65, S.C. 10.

CARTA AOS EFÉSIOS


(P.G . 5, 644ss)

Inácio, também chamado Teóforo, a aquela que é abençoada,


grande pela plenitude de Deus Pai, predestinada antes dos séculos'*
a uma glória eterna e a uma inabalável unidade; . eleita, na paixão
verdadeira, pela vontade do Pai e de Jesus Cristo; à igreja digna
de louvor, que está em Éfeso, na Ásia, saudações efusivas e votos
de santa alegria em Jesus Cristo.

Tomei conhecimento, em Deus, do apreciado nome que gran­


jeastes em virtude de vossa apresentação correta, baseada na fé
e caridade em Cristo Jesus, nosso Salvador. Imitadores que sois de
Deus, vivificados no sangue de Deus, realizastes plénamente uma obra
conforme a vossa natureza l. Pois assim que soubestes que chegara da
Síria, algemado por causa do nome e esperança que nos são comuns,
vos apresentastes para me ver, a mim que espero, por vossa oração,
enfrentar em Roma as feras — e conseguir ser discípulo. Foi
assim, pois, que a toda vossa grande comunidade ^recebi em nome de

l Isto é, conforme à nova natureza. A expressão grega (suggenilción) sugere


o que procede não apenas da geração natural, mas da nova geração, sobrenatural, re­
cebida do batismo.2

2 - Antologia doa santos padres


34 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA

Deus, na pessoa de Onésimo, homem de indizível caridade, vosso


bispo segundo a carne. Rogo-vos que o ameis segundo Jesus Cristo,
e a ele vos assemelheis. Bendito seja quem vos concedeu a graça de
possuir tal bispo, do qual sois dignos.
Quanto a meu companheiro de trabalho, Burrus, vosso diácono
segundo Deus, em tudo abençoado, gostaria que permanecesse a meu
lado, para honra vossa e de vosso bispo. Também Crocos, homem
digno de Deus e de vós, que recebi como a imagem de vossa cari­
dade, muito me conforta. Conforte-o igualmente o Pai de Jesus
Cristo, e também a Onésimo, Burrus, Euplos e Frontão, pois neles
pude ver a todos vós segundo a caridade. Oxalá possa eu alegrar-me
convosco para sempre — se disso sou digno. Convém, portanto, glo­
rificardes de todos os modos a Jesus Cristo, que vos glorificou a vós,
a fim de que, totalmente unidos na mesma obediência, submissos ao
bispo e ao presbítero, sejais em tudo santificados.

35 Não vos dou ordens como se fora alguém. Se estou acorren­


tado por causa do Nome, não atingi ainda a perfeição em Jesus
Cristo. Agora apenas começo a me tornar discípulo, e vos falò como
a condiscípulos. Na verdade, eu é que precisaria ser ungido
(para a luta) 2 por vós, com fé, exortações, paciência, longanimidade.
Todavia, como a caridade não me permite silenciar acerca de vós, to­
mei a dianteira de exortar-vos a andar de acordo com o pensamento
de Deus, pois Jesus Cristo, nossa inseparável vida, é o pensamento
do Pai, assim como os bispos, estabelecidos até os confins do mundo,
se unificam no pensamento de Jesus Cristo.

3S Não deveis, portanto, ter com vosso bispo senão um só e mes^


mo pensamento — como aliás o fazeis. Vosso venerável presbitério,
digno de Deus, está unido ao vosso bispo, como as cordas à cítara.
Mas também vós outros haveis de formar um coro em con­
córdia, em harmoniosa carjdade, para que, recebendo na unidade
o tom de Deus, canteis com uma só voz por Jesus Cristo ao Pai
e assim ele vos ouça e vos reconheça, por vossas boas ações,
como membros de seu Filho. Vosso interesse está em vos con-
servades em unidade irrepreensível, para assim participardes sempre
de Deus.
37 Se, com efeito, em pouco tempo contraí laços tão íntimos
com vosso bispo — laços que não são humanos, mas espirituais —
quão mais felizes vos não considero, a vós que lhe estais tão intima­
mente unidos, , como a Igreja a Jesus Cristo, e Jesus Cristo ao Pai,
a fim de que tudo encontre sua harmonia na unidade.2
2 Hupaktphein é termo técnico para indicar a unção que se fazia no atleta antes
dele ingressar na arena para o combate. Ê o caso de santo Inácio, a caminho do
anfiteatro Flávio: ele é atleta de Cristo.
CARTA AQS EFÉSIOS 35

Ninguém se engane: afastar-se do altar é privar-se do pão de


Deus. Se a oração de um cu dois possui tanta força, quanto mais
a do bispo unido à Igreja! Quem, por conseguinte, não vem à as­
sembléia, é já um soberbo e se condenoú a si mesmo — como está
escrito: “Deus resiste aos soberbos” 3. Esforcemo-nos por não resistir
ao bispo, se queremos estar submissos a Deus.
Quanto mais se vê o bispo guardar silêncio, tanto mais reve- 38
rência se deve ter para com ele; pois aquele que o pai de família
envia para administrar sua propriedade deve ser recebido por nós
como o que o envia. Assim, o bispo deve ser considerado como se
fosse o próprio Senhor.
Aliás, o mesmo Onésimo não se cansa de louvar a vossa discipli­
na em Deus, dizendo que todos viveis segundo a verdade e nenhuma
heresia encontrou guarida entre vós. Pelo contrário, só dais ouvidos
a quem vos fala na verdade de Jesus Cristo.
Há homens que dissimuladamente se habituaram a andar por 39
toda parte fazendo alarde do Nome de Deus, mas o desonram por
suas obras. Evitai-os como a feras: são cães raivosos, mordem insi­
diosamente. Precavei-vos quanto a eles, são difíceis de curar. H á so­
mente um o Médico, ao mesmo tempo corporal e espiritual, gerado
e ingênito, Deus na carne, verdadeira vida na morte, filho de Maria
e de Deus, primeiro passível e depois impassível: Jesus Cristo nosso
Senhor.
Ninguém vos seduza, não vos deixeis enganar, sêde totalmente 40
de Deus. Se nenhuma discórdia, capaz de atormentar, lança raízes en­
tre vós, é que viveis segundo Deus. Sou vossa vítima, e ofereço-me
em sacrifício por vós, efésics, por vossa Igreja sempre celebrada. Os .
homens carnais não são capazes de realizar as i obras do espírito, nem
çs espirituais as da carne; do mesmo modo a fé não" pratica as obras
da infidelidade, nem a infidelidade as da carne. Porém, mesmo o que
fazeis segundo a carne é espiritual — pois tudo fazeis em Jesus Cristo.
Soube que alguns homens, portadores de má doutrina, vin- 41
dos de fo ra4, estavam de passagem (por aí). Não lhes permitistes, po­
rém, disseminá-la entre vós, tapando ouvidos para não receber o que
eles semeavam: lembrando-vos de que sois pedras do templo do Pai,
elevados para o alto pelo guindaste de Jesus Cristo, que é sua cruz,
com o Espírito Santo como corda. A vossa fé é vosso guia para o alto;
a caridade, o caminho que conduz a Deus. Por conseguinte, todos
sois também companheiros de jornada, portadores de Deus e de seu
templo, portadores de Cristo e da santidade, em tudo ornados com os

3 Pr 3,34; Tg 4,6; IPd 5,5.


4 Isto é, provavelmente de Esmima, onde mais grassava o docetismo.
36 SANTO IN ÁCIO DE ANTIOQUIÁ

mandamentos de Jesus Cristo. E regozijo-me a vosso respeito, porque


fui achado digno de me entreter convosço por meio destas linhas e de
vos felicitar, porque, em conformidade com a nova vida, nada amais
além de Deus.
42 Orai, igualmente, sem cessar5, pelos outros homens, pois em
relação a eles, há esperança de conversão, de chegarem a Deus.
Consenti-lhes que ao menos por vossas obras recebam vossa instrução:
às suas fúrias oponde mansidão, à sua jactância, humildade; às suas
blasfêmias, orações; a seus erros, firmeza na f é 6; à sua ferocidade,
docilidade; não vos preocupeis em rivalizar cota eles. Monstremo-nos
seus irmãos pela brandura. Esforcemo-nos por ser imitadores do Se­
nhor — quem jamais sofreu maior injustiça, quem foi mais despoja­
do, mais desdenhado? — para que assim, não haja entre vós alguma
planta do diabo, mas antes com toda a pureza e temperança, permane­
çais em Jesus Cristo, corporal e espiritualmente.
43 Eis os últimos tempos! Doravante, cubramo-nos de confusão e
temamos a paciência de Deus, para que não se tom e para nós motivo
de condenação. Das duas uma: ou temer a ira vingadora ou amar
a graça presente. O que importa é ser encontrado em Cristo Jesus,
para a verdadeira vida. Além dele nada vos agrade. Nele carrego as
minhas correntes, pérolas espirituais com as quais me seja concedido
ressurgir, graças à vossa oração, da qual desejo sempre participar,
para que me encontre na herança dos cristãos de Éfeso, que têm con­
cordado sempre com os apóstolos, na força de Jesus Cristo.
44 Sei quem sou e a quem escrevo: eu, um condenado, a vós
que já obtivestes misericórdia; eu, ainda em perigo, a vós já confirma­
dos. Passa por yós o caminho dos que são levados a Deus por uma
morte sangrenta7; sois companheiros, em divina iniciação, de Paulo,
este homem santificado, de quem foi dado testemunho, digno de
louvor -— em cujo rasto me seja concedido ser achado quando chegar
a Deus — e o qual, em todas as epístolas faz menção de vós em
Cristo Jesus.
45 Esforçai-vos, portanto, por vos reunir mais frequentemente, para
celebrar a eucaristia de Deus e o seu louvor. Pois quando realizais
freqüentes reuniões, são aniquiladas as forças de Satanás e se desfaz
seu malefício por vossa união na fé. Nada há melhor que a paz, pela
qual cessa a guerra das potências celestes e terrestres.

5 lTs 5,17.
6 Cl 1,23. _ . „
7 Por Éfeso, encruzilhada no caminho do Oriente a Roma, tinham necessaria­
mente que passar os que iam dar testemunho de Cristo em Roma, sendo assim
levados para Deus.
CARTA. AOS EFÉSlOS 37

Nada disso desconhecereis se tiverdes perfeitas a fé e a caridade 46


em Jesus Cristo, que são o princípio e o fim da vida: a fé o princípio,
a caridade o fim. A união das duas é Deus, e tudo mais que houver
de perfeição, delas deriva. Quem professa a fé não peca, quem possui
a caridade não odeia. “Pelo fruto se conhece a árvore” 8; do mesmo
medo, pelas obras se tomam manifestos os que professam pertencer a
Cristo. Agora, com efeito, não se trata apenas de professar a fé,
mas de saber se se persevera na prática da fé até ao fim.
Ê melhor calar-se e ser (cristão), do que falar e não ser. Ensinar 47
é boa coisa, desde que se ponha em prática o que se ensina. Há
porém um único Mestre, o qual "disse, e foi feito” 9; e mesmo o
que realizou em silêncio é digno do Pai. Quem possui verdadeira-
mente a palavra de Jesus, também lhe pode ouvir o silêncio, para
ser perfeito. Passará a agir pelo que diz e a se manifestar pelo que
silencia. Ao Senhor nada escapa; ao contrário, mesmo o que em nós
está oculto, lhe é presente. Façamos tudo, crendo que ele mora em
nós, para que sejamos seus templos e ele nosso Deus em nós. Assim
é de fato e assim se manifestará ante nossos olhos, se o amarmos
devidamente.
Não vos enganeis, meus irmãos: os que desonram famílias não 48
hão de possuir o reino de Deus l0. Na verdade,, se já os que pra­
ticam tais coisas segundo a carne devem morrer, quanto mais quem
corrompe, por doutrina perniciosa, a fé que é de Deus, fé pela
qual Jesus Cristo foi crucificado! O homem assim manchado irá
para o fogo inextinguível, e do mesmo modo que ele, todo o que
o ouve.
Se o Senhor deixou que perfumassem sua cabeça, foi para ínfun- 49
dir em sua Igreja a incorruptibilidade. Não vos deixeis ungir com or'* -
fétido ungüento dã doutrina do príncipe deste mundo, para que não -
vos leve ele cativos para longe da vida que vos é oferecida. Por que
não nos tornamos todos prudentes, se recebemos a sabedoria de Deus,
que é Jesus Cristo? Por que tolaffiente nos perdemos, desconhecendo
o dom que o Senhor realmente nós értviou?
Meu espírito entregá-se à cruz, cruz que é escândalo para os 50
infiéis, mas para nós salvação e vida eterna. “Onde está o sábio?
Onde o pesquisador”? 11 Onde a jactância dos que se dizem inte­
ligentes? A verdade é que o nosso Deus, Jesus, o Ungido, foi con­
cebido de Maria, segundo a economia divina; nasceu da estirpe de
Davi, mas também do Espírito Santo; nasceu e foi batizado para,
por sua paixão, purificar a água.
38 SANTO IN ÁCIO DE ANTIOQUIA

51 E permaneceram ocultos ao príncipe deste mundo a virgin­


dade de Maria e o seu parto, bem como a morte do Senhor: três
mistérios de clamor n , realizados no silêncio de Deus.
Pois bem, como foram manifestados aos séculos? Uma estrela
brilhou no céu, mais que todas as outras; sua luz era inexprimível,
sua novidade causava espanto. O s demais astros, juntamente com ç
sol e a lua,'rodearam a estrela em coro, enquanto a luz desta a
todos excedia. Surpreenderam-se os homens e perguntaram donde pro­
vinha essa estrela tão diferente das outras. D esde então toda a ma­
gia foi exterminada, todo laço de malícia supresso, extinta a igno­
rância, derrubado o antigo reino, pois Deus se manifestava em for­
ma humana para a “novidade da vida” eterna 1213. Começava a cum­
prir-se o plano de Deus. Daí essa universal comoção: tratava-se dá
extinção da morte.
52 Se Jesus Cristo se dignar, por causa de vossa oração, conce­
der-me esta graça e se assim for sua vontade; numa segunda car­
ta, que tenho a intenção de vos escrever, continuarei a expor a dis-
pensação divina, que apenas esbocei, relativa ao nòvo homem, Jesus
Cristo, e que se apóia na fé e caridade para ccm ele, na sua paixão
e ressurreição. E o farei com prazer, se o Senhor me manifestar que
todos vós, e cada um, vos reunis pela graça, na única fé e em Jesus
Cristo, da estirpe de Davi segundo a carne, ao mesmo tempo filho
do homem e Filho de Deus; se vos reunis, repito, para obedecer em
harmonia de sentimentos ao bispo e ao presbitério, partindo um
mesmo pão, o qual é remédio de imortalidade, antídoto contra a
morte e alimento que nos faz viver em Jesus Cristo para sempre.
53 Dou minha palavra por vós e pelos que enviastes para
honra de Deus. a Esmima, de onde vos escrevo, rendendo graças áo
Senhor, e tendo para com Policarpo a mesma dileção que vos dedico.
Lembrai-vos de mim, como Jesus Cristo de vós. Rezai pela Igreja da
Síria, donde, acorrentado como o último dos fiéis, sou arrastado para
Roma, pois fui achado digno de honrar a Deus.
Em Deus Pai e em Jesus Cristo, a nossa comum esperança,
saudações.

CARTA AOS ROMANOS


(P.G. 5, 68*696)

54 Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja, que recebeu miseri­


córdia pela magnanimidade do Pai altíssimo e de Jesus Cristo, seu
Filho unigénito; à Igreja amada e iluminada pela vontade daquele

12 Isto é, mistérios que deveriam ser anunciados a todo o mundo.


13 Rm 6,4.
CARTA AOS ROMANOS 39

que quis tudo o que existe, segundo a caridade de Jesus Cristo, nosso
Deus; à Igreja que preside, na região dos romanos, digna de Deus, ve­
nerável, bem-aventurada, louvável, digna de triunfo; a essa Igreja pura,
posta na presidência da caridade, seguidora da lei de Cristo e
adornada com o nome de Deus, — saúde, em nome de Jesus Cristo,
Filho do Pai. Aos que aderem pela carne e pelo espírito a todo man­
damento do Senhor, a vós que vos tornastes definitivamente repletos
com a graça de Deus e purificados de todo elemento estranho, desejo
uma alegria abundante e santa em Jesus Cristo nosso Deus.
À força de orações, alcancei a graça de ver vossas santas 55
faces. E recebi mesmo mais do que pedira pois, acorrentado no
Cristo, tenho a esperança de ir saudar-vos, se a vontade divina
me der a graça de chegar ao fim. O começo está bem orientado;
possa eu obter a graça de entrar sem impedimento na posse de mi­
nha herança.
Temo porém que a vossa caridade me seja prejudiciall. Pois, se
para vós é fácil fazer o que quiserdes (interceder ou não por mim),
para mim é difícil chegar a Deus, se não tiverdes compaixão de mim.
Na verdade, não vos quero ver agradando aos homens mas a 56
Deus, como de fato desejais. De minha parte jamais terei oportuni­
dade como esta para chegar a Deus; nem vós tendes obra melhor a
fazer do que simplesmente vos calardes. Pois, silenciando a meu res­
peito, serei uma palavra de Deus, mas se vos deixais levar pelo amor
a minha carne, serei apenas uma voz qualquer. Nada melhor podeis
fazer por mim do que deixar que eu seja sacrificado a Deus, enquanto
está preparado o altar do sacrifício. Então, reunidos num só coro na
caridade, cantareis ao Pài, em Jesus Cristo, por ter julgado o bispo
da Síria digno de ser enviado do Oriente para o Ocidente. É belo,
com efeito, ir do ocaso do mundo até ao seio de Deus, e ter nele o
meu levante.
Nunca tivestes inveja de ninguém e ensinastes os outros a não 57
tê-la. O que quero é justamente a prática do que ensinastes. Pedi
para mim apenas a força interior e exterior, para que não só eu
seja chamado cristão mas de fato o seja. Pois se me mostrar real­
mente cristão, merecerei também ser chamado, e quando tiver desapa­
recido do mundo, então serei de fato fiel a Cristo. Nenhuma osten­
tação é boa. Jesus Cristo mesmo nosso Deus, mais se manifesta quan­
do agora está oculto no Pai. Quando o cristianismo é odiado pelo
mundo, o que importa realizar não é mostrar a eloqüênda da palavra,
mas a grandeza da alma.
Escrevo a todas as Igrejas e informo-lhes que morro livre- 58
mente por Deus, se contudo não me impedirdes disso. Rogo-vos:

1 Sto. Inicio não quer que o impeçam de ser martirizado.


40 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA

não tenhais para comigo uma benevolência inoportuna! Deixai-me ser


pasto das feras, pelas quais chegarei a Deus. Sou o trigo de Deus,
moído pelos dentes das feras para tomar-me o pão puro de Cristo.
Acariciai, antes, as feras, para que venham a ser meu túmulo e
nada rejeitem do meu corpo. Assim, depois de morto não serei pesado
a ninguém ...^ Então, quando o mundo não puder mais ver meu
corpo, serei verdadeiramente discípulo de Cristo. Rogai a Cristo para
que, por esses dentes, me torne um sacrifício para Deus. Não vos
dou ordens, como Pedro e Paulo: eles eram apóstolos, eu um con­
denado; eles livres, eu até agora um escravo. Mas, se morrer, tor­
nar-me-ei um liberto de Jesus Cristo e ressuscitarei nele, inteiramente
livre. Por enquanto, aprendo nos ferros a nada desejar.
59 Da Síria a Roma, por terra e mar, dia e noite, já venho
lutando com as feras, pois estou acorrentado entre dez leopardos.
Refiro-me à escolta que me conduz, que se mostra tanto pior quanto
melhor é tratada. Contudo, nas suas injúrias eu muito aprendo, em­
bora “não seja por isso que sou justificado” 2.
Oxalá chegue eu às feras que me estão preparadas, oro para en­
contrá-las ávidas. Se for necessário, agradá-las-ei para que me devorem
depressa e não façam como diante de certos cristãos: atemorizadas,
nem ousaram tccá-los. Se não me quiserem espontaneamente, eu mes­
mo as forçarei. Tende piedade de mim: conheço bem o que me é
preferível. Agora começo a ser verdadeiro discípulo! Que nenhuma
coisa, visível ou invisível, me impeça de obter a posse de Jesus
Cristo! Fogo, cruz, encontro com as feras, dilaceramentos, esquar-
tejamentos, deslocamentos de ossos, mutilações dos membros, tritura­
ção do corpo, os mais perversos suplícios do diabo caiam sobre mim,
contanto que alcance a posse de Jesus Cristo!
60 Nada me valerão as delícias do mundo e os reinos deste
século. Melhor é para mim morrer por Jesus Cristo do que reinar até
as extremidades da terra. O que procuro é aquele que morreu e res­
suscitou por nós. Este é o momento do meu nascimento! Por favor,
irmãos, não me impeçais de viver, não queirais que eu morra! Não
ofereçais ao mundo quem deseja ser de Deus, não o enganeis com a
fascinação da matéria! Deixai-me receber a luz imaculada, porque
só então serei realmente homem! Permiti-me imitar a paixão do
meu Deus! Se alguém o possui em si mesmo, compreenda o que dese­
jo e compadeça-se de mim, considerando o que me impulsiona.
61 O príncipe deste mundo quer arrebatar-me e corromper
meus sentimentos em relação a Deus. Ninguém dos presentes quei­
ra ajudá-lo! Passai para o meu lado, isto é, para o lado de Deus! Não
sejais dos que invocam Jesus Cristo mas desejam o mundo! Não
habite entre vós a inveja! Se uma vez entre vós eu vier a suplicar (a
2 ICor 4,4.
CARTA AOS ESM IRNENSES 41
vossa intervenção para livrar-me da m orte), não me escuteis; ouvi,
antes, o que agora vos escrevo, pois é na plenitude da vida que ex­
primo meu desejo ardente de morrer. Minhas paixões foram crucifi­
cadas, não há em mim fogo para amar a matéria. Não há senão a
“água viva” que murmura dentro de mim e me diz: “Vem para o
Pai”! Não me deleito com o alimento da corrupção, ou com as
volúpias desta vida. Quero o “pão de Deus”, a carne de Jesus
Cristo, da raça de Davi, e a bebida do seu sangue, que é o amor in-
i corruptível.
Não quero mais viver segundo os homens; a realização d es-$2
te desejo depende, contudo, de vossa vontade. Tende pois boa
vontade, pára que também sejais apoiados. Com poucas palavras peço-
-vos: crede-me! Jesus Cristo, a boca que hão mente, pela qual o Pai
falou verdadeiramente, vos mostrará com que sinceridade escrevo isto.
Rezai para que eu vá até o fim. Não vos escrevo segundo a carne,
mas segudo o espírito de Deus. Se morrer, será por vossa benevo­
lência; se fot reprovado, será por vossa oposição.
r Lembrai-vos, nas orações, dá Igreja da Síria, que tem. a Deus 63
por pastor em meu lugar. Só Jesus será seu bispo, e a vossa ca­
ridade. Envergonho-me de ser contado entre seus membros, pois
hão sou digno disso, èu, o último de todos, um abortivo. Mas por
misericórdia sou alguém, se chego até Deus. Saúda-vos o meu espírito
e a caridade das Igrejas que me receberam, não como um simples
viajante, mas em nome de Jesus Çristo. Pois até os que segunao a
carne não se encontravam no meu roteiro vieram de várias cidades
á meu encontro.
: Escrevo esta de Esmima, por obséquio dos efésios, dignos de 64.
p serem bem-aventuràdos. Além de muitos outros, está comigo Crocos,
4 Que me é tão caro. Quanto aos que me precederam, da Síria a Roma,
para a glória de Deus, creio que já os conheceis; dizei-lhes que estou
perto; Todos eles são dignos de Deus e de vós; conviria que os con­
fortásseis com muita solicitude.
Escrevi esta nó nono dia antes das calendas de setem bro3. Cora­
gem até o fim, na esperança de Jesus Cristo^ Amém.

CARTA AOS ESMIRNENSES


(tP.G. 5, 708-717)

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja de Deus Pai e do 65


bem amado Jesus Cristo, agraciada em todos os dons pela divina
misericórdia, repleta na fé e na caridade e à qual não falta nenhuma

> 24 de agosto.
42 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA

graça; digna de Deus e portadora de santidade; à Igreja de Esmirna, na


Ásia, mil saudações, em espírito irrepreensível e na palavra de Deus.
Glorifico a Jesus Cristo, Deus, que vos deu tal sabedoria.
Pude realmènte verificar que vos achais unidos numa fé inabalável,
e como que pregados à cruz do Senhor Jesus Cristo em corpo e
espírito, consplidados na caridade pelo sangue de Cristo. Tendes a
firme convicção de que nosso Senhor é verdadeiramente “da estirpe
de Davi segundo a carne” 1, Filho dé Deus conforme a vontade e
o poder de Deus; de que nasceu verdadeiramente de uma virgem e
foi batizado por João, para que nele “se cumprisse toda justiça” 2;
de que foi verdadeiramente crucificado por nós, na cárne, sob Pôncio
Pilatos e o tetrarca Herodes, vindo disto, e da sua divina e beatíssima
paixão, fruto para nós. Foi assim que “levantou seu estandarte” 3
por todos os séculos, por meio de sua ressurreição, para congregar os
seus fiéis, tanto os do judaísmo como os gentios, no único corpo da
sua Igreja.
66 Foi por nossa causa a fim de sermos salvos, que ele verdadeira­
mente sofreu, como também verdadeiramente se reergueu a si mes­
mo. Sua paixão, ao contrário do que espalham certos infiéis, não
se deu só na aparência. Aparência é o que são eles próprios e con­
forme pensam lhes acontecerá: ficarão sem corpos e semelhantes a
demônios.
67 Eu, na verdade, aprendi e creio que Jesus Cristo, mesmo
após a ressurreição, permanece na carne. Quando se aproximou de
Pedro e seus companheiros, disse-lhes: “Tocai em mim, apalpai-me
e vede que não sou um espírito incorpóreo” 4. E, ao íntimo contato
de sua carne e de seu espírito, logo que o tocaram, creram; por isso
desprezaram a morte e tornaram-se vencedores dela. Depois de sua res­
surreição, comeu e bebeu com eles, como alguém que tem carne,
embora unido espiritualmente ao Pai.
68 Todas estas exortações vos dirijo, mesmo sabendo que tam­
bém é o vosso modo de pensar. O que quero é defender-vos das
feras em figura humana, as quais deveis, não só não acolher, mas
enquanto possível evitar, limitando-vos a rezar em sua intenção para
que se convertam, coisa difícil mas incluída no poder de Jesus
Cristo, nossa verdadeira vida.
Se somente na aparência foi tudo isso feito por nosso Senhor, en­
tão só na aparência também estou ligado a ferros. Para que então
me tereis entregue à morte, ao fogo, à espada e às feras? Mas estar
perto da espada é estar perto de Deus, estar entre as feras é estar
CARTA AOS ESM IRNÉNSES 43

com ele, e assim será se tudo for feito no nome de Jesus Cristo. Para
associar-me à sua paixão tudo suporto, vindo-me dele, homem per­
feito, a minha força.
Não o conhecendo, alguns o renegam, ou melhor, são por ele 69
renegados. Tais pessoas são antes advogados da morte do que da
verdade. Não se deixaram persuadir pelas profecias, pela lei de Moi­
sés, nem mesmo pelo Evangelho ou pelos sofrimentos de cada um
de nós. Pois a nosso respeito pensam o mesmo que sobre Jesus Cristo.
Realmente, que proveito me traz alguém que me louva, mas blasfema
meu Senhor, negando ter ele assumido a carne? Quem negar isto re­
nega-o totalmente e carrega consigo seu cadáver. Quanto aos seus
nomes, sendo de incrédulos, não os acho dignos de serem aqui escritos.
Quisera nem mesmo recordar-me deles enquanto não se convertam à
fé na paixão, que é nossa ressurreição.
Ninguém se iluda, ainda que sejam os habitantes do céu, os 70
anjos gloriosos, os príncipes visíveis ou invisíveis, se não crerem no
sangue de Cristo não escaparão ao julgamento. “Quem puder com­
preender compreenda” 5. Ninguém sé tome orgulhoso de sua própria
situação; pois a fé e a caridade, é que são tudo, e a elas nada se
antepõe. Atentai bem aos que professam doutrinas alheias à graça de
Jesus Cristo, que veio a vós; vede quanto a sua conduta se opõe
ao Espírito de Deus. Não se preocupam com a caridade, com as
viúvas, os órfãos, os oprimidos, os prisioneiros ou os libertos, com
os famintos ou os que têm sede.
Eles se abstêm da eucaristia e da oração, porque não confessam 71
ser a eucaristia carne do nosso Salvador Jesus Cristo, carne que
sofreu por nossos pecados e que o Pai, em sua bondade, ressuscitou.,^
Ora, os que em suas contestações recusam o dom de Deus, somente ]
encontram a morte. Melhor lhes seria celebrar a eucaristia, para te­
rem parte na ressurreição. Convém, pois, que deles vos afasteis e não
converseis a seu respeito, em particular ou ém público. Prestai atenção
aos profetas e em particular ao Evangelho, onde vemos manifestar-se
a paixão e cumprir-se a ressurreição. Fugi das divisões, como fontes
de males.
Segui ao bispo, vós todos, como Jesus Cristo ao Pai. Segui ao 72
presbítero como aos apóstolos. Respeitai os diáconos como ao pre­
ceito de Deus. Ninguém ouse fazer sem o bispo coisa alguma concer­
nente à Igreja. Como válida só se tenha a eucaristia celebrada sob
a presidência do bispo ou de um delegado seu. A comunidade se
reúne onde estiver o bispo e onde está Jesus Cristo está a Igreja
católica. Sem a união do bispo não é lícito batizar nem celebrar a

5 M t D ,12.
44 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA

eucaristia; só o que tiver sua aprovação será do agrado de Deus e


assim será firme e seguro o que fizerdes.
73 É de bom aviso que recobremos afinal o bom senso e, en­
quanto temos tempo, nos convertamos a Deus. Ê conveniente ter
sempre em vista a Deus e ao bispo. Quem honrar o bispo, por
Deus será honrado; quem agir à sua revelia serve ao diabo. Possa
a graça cumular-vos de todos os bens; dignos sois disso. Fostes para
mim motivo de conforto; o mesmo seja para vós Jesus Cristo. Presente
ou ausente, fui objeto de vossa caridade. Que Deus vos pague! Tudo
suportando por ele, chegareis a possuí-lo.
74 Fílon e Reas Agátopas, que me acompanharam por amor de
Deus, foram recebidos por vós como ministros de Jesus Cristo e
fizestes assim uma bela ação. Eles dão graças a Deus a vosso respeito,
porque lhes destes conforto em tudo. Nada disto será inútil para vós.
Por vós ofereço minha vida e meus ferros, que não desprezastes e
dos quais não vos envergonhastes. Também de vós não se envergonhará
Jesus Cristo, que é a fidelidade perfeita.
75 Vossa oração chegou à Igreja de Antioquia na Síria, de onde
venho, carregado com estes ferros preciosos aos olhos de Deus, sau­
dando-vos a todos, eu que nãó sou digno de pertencer a essa Igreja,
o último de todos. Mas tal honra foi a vontade de Deus que me con­
cedeu, e não o que me diz a própria consciência; foi a graça de
Deus, que peço me seja dada em plenitude; pelas vossas orações
possa eu chegar a Deus.
Para que se complete na terra e no céu a vossa obra, bem an­
daria a vossa Igreja se escolhesse, para a glória de Deus, um santo
embaixador que mandaríeis à Síria a fim de parabenizar os que re­
cobraram a paz, readquiriram a sua grandeza, restabelecendo o próprio
corpo daquela Igreja. Estou certo de que seria ação digna de vós
enviar assim algum dos vossos para concelebrar com eles a paz que
Deus lhes deu e a chegada ao porto, que lhes obtiveram vossas preces.
Sendo perfeitos, pensai também no que é perfeito, e se quiserdes fazer
o bem é certo que Deus está pronto a ajudar-vos.
78 Saúda-vos a caridade dos irmãos que se encontram em
Trôade; desta cidade vos escrevo por meio de Burrus, que, com
vossos irmãos efésios me enviastes e me tem sido sempre um
estímulo. É de desejar que todos o imitassem como perfeito exem­
plo de ministro de Deus. Em tudo lhe recompense a caridade de
Deus. Saudações a vosso santo bispo, ao venerável presbitério e aos
diáconos, meus colaboradores, e a todos vós em geral como em par­
ticular, saudações em nome de Jesus Cristo, na sua carne e em seu
sangue, na paixão e na ressurreição, em corpo e alma, na unidade
de Deus e na vossa graça, e misericórdia, paz e perseverança em tudo,
é o que vos desejo.
CARTA AOS ESM IRNENSES 45

Saudações às famílias de meus irmãos com suas mulheres e fi­


lhos, assim como às virgens, chamadas viúvas. Que vos faça fortes
à virtude do Pai. Saúda-vos Fílon, meu companheiro. Saudações à
família de Tavía, que rogo seja confirmada na fé e na caridade do
corpo e do espírito. Saudações a Alceu, nome que me é tão caro; ao
incomparável Dafnos, a Eutecno, e a cada um de vós em particular.
Cs meus votos de saúde, na graça de Deus!
SÃO POLICARPO
( t 156)

Bispo de Esmirna, s. Policarpo foi uma personalidade muito estimada por seus
contemporâneos. Conforme depõe santo Irineu, fôra discípulo direto de são João Evan­
gelista. Em 155 vemo-lo em Roma, a tratar com o Papa Aniceto de diversos assuntos
eclesiásticos, especialmente a data da celebração pascal. Combateu os hereges da época,
sobretudo Marcião. Em 156 foi condenado à fogueira. O relato de seu martírio, feito
por testemunha ocular, é o mais antigo documento que temos no gênero e que também
publicamos a seguir, depois da Carta de Policarpo aos cristãos de Filipos.
Texto bilíngüe em: BAC 65, SC 10.

CARTA AOS FILIPENSES


( P .G . 5, 1005-1016)

77 Policarpo e seus presbíteros à Igreja de Deus que vive como


peregrina em Filipos, misericórdia e paz de Deus todo-poderoso e
de Jesus Cristo, nosso Salvador, em abundância.
Congratulo-me grandemente convosco, em nosso Senhor Jesus
Cristo, pela alegria que tivestes ao acolher aqueles que são
as imagens da verdadeira caridade, e ao acompanhar, enquanto
possível, os presos por esses santos ferros, que são o diadema régio
dos verdadeiros eleitos de Deus e de nosso Senhor. Congratulo-me
também porque as firmes raízes da vossa fé, conhecida desde os primei­
ros tempos, permanecem até hoje e ainda produzem frutos para
nosso Senhor Jesus Cristo, que por nossos pecados consentiu em
descer até à morte e a quem "Deus ressuscitou, rompendo os grilhões
da m orte” 1, “e em quem crestes sem ter visto, com uma alegria
inexprimível e gloriosa” 2, da qual muitos querem partilhar. Sabeis
que "fostes salvos pela graça” 3, não pelas obras, pela vontade de
Deus, em Jesus Cristo.
Portanto, cingindo vossos rins, servi a Deus com temor e ver­
dade, abandonando o fútil palavreado e o erro da maioria, "crendo na­
quele que ressuscitou nosso Senhor Jesus Cristo dos mortos e lhe deu
glória ” 4 e trono à sua direita. A ele está submetido tudo que há nos
CARTA AOS F ILIPEN SES 47
céus e na terra, a ele serve tudo o que respira; ele virá como juiz
dos vivos e dos mortos, e de seu sangue Deus pedirá contas aos que
não lhe obedecem. “Pois o que o ressuscitou” dos mortos “também
nos ressuscitará” 5, se fizermos sua vontade, caminharmos em seus
mandamentos e amarmos o que ele amou, abstendo-nos de toda ini-
qüidade, cobiça, avareza, maledicência, falso testemunho, “não pa­
gando mal com mal, injúria com injúria” 6, agressão com agressão,
maldição com maldição, lembrando-nos do ensinamento do Senhor:
“Não julgueis e não sereis julgados, perdoai e ser-vos-á perdoados,
tende misericórdia e recebereis misericórdia, pois com a mesma me­
dida com que medirdes sereis medidos” 7; e ainda: “Bem-aventurados
os pobres e perseguidos por amor da justiça, pois deles é o reino
de Deus” 8.
Não é, irmãos, de mim mesmo que vos escrevo estas coisas so- 78
bre a justiça, mas porque me provocastes. Nem eu, nem qualquer ou­
tro semelhante a mim, pode competir com a sabedoria do bem-
-aventurado e glorioso Paulo que, estando entre vós, ensinou de viva
voz acs homens de então â palavra da verdade, com exatidão e
segurança, e depois de partir ainda nos escreveu uma epístola.
Se meditais sobre ela, podeis edificar-vos na fé que vos foi dada, e
que é a mãe de todos nós, seguida da esperança e precedida da
caridade para com Deus, Cristo e o próximo. Se alguém é possuidor
destas coisas já cumpriu o preceito da justiça, pois se possui cari­
dade está longe de todo pecado.
“A origem de todo os males é a cobiça” 9. Sabendo que “nada
trouxemos para o mundo e que, por outro lado, nada temos para
levar do m undo” 10*, armemo-ncs com as armas da justiça, e ensinemo-
-nos, primeiro a nós mesmos, a andar no mandamento do Senhor; em
seguida às mulheres a andar na fé que lhes foi dada, na cari--» ,
dade e castidade; a amar especialmente os próprios maridos com ?
toda a sinceridade, e depois a todos por igual, còm toda a conti­
nência, e a educar os filhos na disciplina dó temor de Deus; às viú­
vas a serem sábias nas coisas da fé do Senhor, a interceder ininterrupta­
mente por todos, a viver longe da calúnia, maledicência, falso teste­
munho, cobiça, e todo mal, cientes de que são altar de Deus, onde
todas as oferendas são inspecionadas com cuidado, pois nada escapa
a Deus, nas intenções, nos pensamentos, nos segredos do coração.
Sabendo, portanto, que “de Deus não se zomba” 11, devemos 79
andar de modo digno da sua lei e da sua glória. Da mesma forma, se­
jam os diáconos irrepreensíveis ante sua justiça, como servidores

5 2Cor 4,14.
* lP d 3,9.
7 M t 7,2; Lc 6,36-38.
8 Lc 6,20; Mt 5,3-10.
9 lTm 6,10.
10 lTm 6,7.
n G1 6,7.
48 SÃO POLICARPO

de Deus e de Cristo, não dos homens. Não sejam caluniadores


e dissimulados, mas isentos de cobiça, continentes, misericordiosos,
zelosos, andando segundo a verdade do Senhor que se fez servo
de todos. Se lhe somos agradáveis neste século, receberemos em tro­
ca o século vindouro, pois nos prometeu a ressurreição dos mortos. Se
vivermos de maneira digna, também “reinaremos juntos” com e le 12,
contanto que tenhamos fé. Igualmente, os mais moços sejam ir­
repreensíveis, cuidando antes de tudo da sua castidade e refreando
em si toda malícia. JÉ bom, com efeito, refrear os desejos do mundo,
pois “a concupiscência milita contra o espírito ” 13 e “nem os
fornicadores, nem os efeminados, nem cs infames herdarão o reino
de Deus” 14, nem eles nem os demais que fazem coisas fora de
propósito. É preciso absterem-se de tudo isso, submissos aos presbí­
teros e diáconos como a Deus e a Cristo. As virgens devem seguir uma
consciência imaculada e pura.
80 Também os presbíteros sejam compassivos, misericordiosos para
com todos, atentos ao que estiver errado; visitem os doentes, não
se descuidem das viúvas, órfãos e indigentes, mas “procurem sempre
fazer o bem na presença de Deus e dos homens” 15, abstenham-se
da cólera, da acepção de pessoas e dos juízos injustos. Longe deles
a cobiça. Não acreditem depressa no que é dito contra alguém,
hão sejam duros*nos julgamentos, sabendo que todos somos devedo­
res do pecado. Se rogamos ao Senhor que nos perdoe, devemos
também perdoar, pois estamos diante dos olhos do Senhor e
de Deus, e “é necessário que todos compareçam ao tribunal de Cristo,
e cada um preste contas de si mesmo” 16. Assim, sirvamos com
temor e reverência, conforme os preceitos dados por ele próprio, pelos
apóstolos que nos evangelizaram e pelos profetas que antecipadamen­
te pregaram a vinda de nosso Senhor. Sejamos zelosos no bem, man­
tendo-nos afastados dos escândalos, dos falsos irmãos e dos que le­
vam com hipocrisia o nome do Senhor, e assim enganam os homens
frívolos.
81 Pois, “todo aquele que não confessar que Jesus Cristo veio na
carne, é anticristo” 17, quem não confessar o testemunho da cruz é do
diabo, quem traduzir no sentido das próprias concupiscências as pa­
lavras do Senhor e disser que não há ressurreição é primogênito de
Satanás. Por isso, abandonando a futilidade da maioria e as falsas dou­
trinas, voltemos ao ensino que nos foi transmitido desde o começo,
“vivendo sóbrios para a oração” 18 e perseverando em jejuns, pedindo
em instantes preces a Deus, que tudo vê, “não nos deixe cair em

12 2Tm 2,12.
13 lP d 2,2.
H lC or 6,9s.
W Pt 3,4.
16 Rm 14,10-12.
17 ljo 4,2s.
1« lP d 4,7.
CARTA AOS FIL1PENSES 49

tentação*19. Conforme disse o Senhor: *o espírito, na verdade, é


pronto, mas a carne é fraca” 20.
Perseveremos firmes em nossa esperança e naquele que constitui
o penhor de nossa justiça, Jesus Cristo, que elevou sobre a cruz, no
seu próprio corpo, os nossos pecados21, ele “que não cometeu pecado,
e em cuja boca não foi achado nenhum dolo” 22, mas que por nós, para
que nele vivêssemos, tudo suportou. Tornemo-nos, assim, imitadores
da sua paciência, e glorifiquemo-lo sofrendo por seu nome. Foi este
o modelo que ele nos propôs em si, conforme cremos.

Que Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e este mesmo eter- 82
no pontífice, o Filho de Deus, Jesus Cristo, vos edifique na fé, na
verdade e em toda mansidão, sem ira, na paciência, lcnganimi-
dade, tolerância e castidade; e ainda vos dê parte entre os seus
santos, e a nós convosco, assim como a tcdos os que estão sob o
céu e ainda virão a crer em nosso Senhor Jesus Cristo e em
seu Pai, que o ressuscitou dos mortos. Orai por todos os santos.
Orai pedindo pelos governantes, e pelos magistrados e príncipes, as­
sim como pelos que vos perseguem e odeiam, e pelos inimigos da
cruz, a fim , de que o vosso fruto seja manifesto em tudo, para ser­
des perfeitos nele.
Vós me escrevestes, junto com Inácio, pedindo que, se alguém for
à Síria, leve também vossa carta. Não deixarei de fazê-lo, se tiver
ocasião favorável, quer vá eu mesmo, quer alguém que pòssa mandar
em meu nomé e no vosso.
Remeto, conforme pedistes, as cartas de Inácio, tanto as que
nos mandou como outras que tínhamos conosco. Vão presas a esta
carta. Podeis tirar das mesmas grande proveito, pois estão cheias de •-
fé, de paciência e dessa perfeita edificação que leva a nosso Senhor.
Quanto a vós, partidpai-me tudo que souberdes:'de certo sobre
Inácio e os que estão com ele.
Escrevi esta por Crescente, que já vos recomendei e agora mais
uma vez recomendo. Viveu conosco de modo irrepreensível e creio
que outro tanto fará ho meio de vós. Tende também por recomendada
a sua irmã, quando aí chegar. Permanecei incólumes no Senhor Jesus
Cristo, em estado de graça, vós e todos os Vossos. Amém.
50 SÃO POLICARPO

CARTA CIRCULAR DA IGREJA DE ESMIRNA

O M ARTÍRIO DE SÃO POLICARPO


(PG . 5, 1029-1045)

83 A Igreja de Deus, estabelecida em Esmirna, à Igreja de Deus es­


tabelecida em Filomélia e a todas as comunidades da Igreja santa e
universal, onde quer que esteja: a misericórdia, a paz e a caridade de
Deus Pai, de Jesus Cristo nosso Senhor, superabundem em vós.
Escrevemo-vos, irmãos, a respeito dos mártires e do bem-aventu­
rado Policarpo, cujo martírio foi, por assim dizer, o selo final, que pôs
termo à perseguição. Na verdade, quase todos os acontecimentos an­
teriores se efetuaram para que o Senhor nos mostrasse do céu o mar­
tírio narrado no Evangelho. Policarpo esperou tranqüilamente ser en­
tregue, como o Senhor, para que aprendêssemos, com seu exemplo,
a não ter em mira somente o que nos concerne, mas também os inte­
resses do próxim o1. Realmente, a caridade verdadeira e firme con­
siste em não desejar apenas a própria salvação, mas a dos irmãos.
Felizes, pois, e generosos todos estes martírios que se deram con­
forme a vontade de Deus. Pois é dever da nossa piedade tudo atri­
buir ao poder de Deus. Deveras, quem não admiraria a generosidade
desses mártires, a sua paciência e amor ao Mestre? Dilacerados pelos
açoites a ponto de se tornar visível a estrutura íntima da carne, das
veias e das artérias, suportaram tudo com tal firmeza que ps circuns­
tantes se compadeciam e choravam. Eles, porém, chegaram a tanto
heroísmo, que de nenhum se ouviu grito ou se viu lágrima. Assim,
esses generosos mártires de Cristo mostraram que naquela hora em
que sofriam não estavam mais no corpo; mais ainda, que o próprio
Cristo, presente, se entretinha com eles. Confiando unicamente na gra­
ça de Cristo, desprezavam os sofrimentos do mundo e, per uma hora
de tormento, se resgatavam do castigo eterno. O fogo dos algozes
cruéis parecia-lhes frio; pois, querendo fugir do fogo que não se apaga
etemamente, fitavam com cs olhos do coração os bens reservados aos
que perseveram até o fim — “bens que o ouvido não ouviu, os olhos
não viram, nem subiram ao coração do hom em "12, mas que o Se­
nhor lhes mostrava porque já não eram homens e sim anjos.
84 Com a mesma coragem, outros enfrentaram sofrimentos horríveis:
lançados às feras, estirados sobre conchas marinhas, torturados por to­
da sorte de suplícios, que o tirano prolongava para ver se seria pos­
sível induzi-los a renegar.
Mas apesar de Satanás ter maquinado muitas coisas contra eles,
graças a Deus nada alcançou. Pois Germânico fortaleceu pela heróica

1 F1 2,4.
2 ICor 2,9.
0 MARTÍRIO DE SÃO POLICARPO 51

resistência, no seu maravilhoso combate com as feras, a pusilanimidade


de outros. Querendo o cônsul persuadi-lo a ter compaixão da sua juven
tude, Germânico, ao contrário, com pancadas excitou a fera contra si,
na ânsia de livrar-se quanto antes da convivência daquela gente iníqua
e criminosa. Por isso o povo, espantado diante do heroísmo dos cris­
tãos, dessa raça que ama a Deus e é amada per ele, gritou: “Abaixo
os ateus ! 3 Tragam Policarpo!”
Um apenas, chamado Quinto, frígio e recentemente chegado
da Frigia, ao ver as feras, acovardou-se. Este, justamente, tinha
desafiado espontaneamente o poder público e incitado outros a faze­
rem o mesmo. Mas não resistiu às instâncias repetidas do procônsul,
fez juramento e ofereceu sacrifício. Eis por que, irmãos, não louva­
mos os que se entregam espontaneamente a si mesmos; de mais a
mais não é isso que ensina o Evangelho.
Policarpo, o mais admirável, longe de se perturbar ao receber 85
esta notícia, quis permanecer na cidade. Muitos, entretanto, o
persuadiram a retirar-se. E ele se retirou para uma pequena casa de
campo, a pouca distância, onde permaneceu, com poucos amigos,
nada fazendo senão rezar dia e noite por todos e por todas as igrejas
conforme o seu hábito. E quando rezava teve uma visão, três dias
antes de ser preso. Viu seu travesseiro pegando fogo. Voltando-se
para os que estavam com ele, disse-lhes: “Devo ser queimado vivo”.
Como prosseguissem em buscá-lo, transferiu-se Policarpo para
outra casa de campo. Logo depois chegaram seus perseguidores, e
como não o achassem, prenderam dois jovens escravos, um dos
quais, vencido pela tortura, lhês deu a indicação. Já então não lhe
era mais possível escapar, uma vez que os traidores eram de sua
própria casa.
Q chefe de polícia, que com razão tinha o nome de Herodes,
apressou-se em conduzir Policarpo para o estádio. Assim devia ele
obter sua parte na herança do Cristo a quem aderira; ao passo que
os traidores, parte no castigo de Judas.
Numa sexta-feira, mais ou menos pela hora da ceia, partiram
os perseguidores com um destacamento de cavalaria, armado na for­
ma habitual, “como se procurassem um ladrão” 4. Servia-lhes de guia
um escravo. Chegando alta noite, foram encontrar Policarpo no pri­
meiro andar da pequena casa. Teria tido tempo de buscar outro refú­
gio; mas não o quis, dizendo: “ Seja feita a vontade de Deus”. Infor­
mado da presença dos soldados, desceu e conversou com eles, que
ficaram pasmos vendo sua idade e sua calma, e perguntaram entre si
por que capturar com tanto empenho um ancião como aquele.
Policarpo, entretanto, mandou servir-lhes comida e bebida à 86
vontade e pediu-lhes apenas o prazo de uma hora para rezar livre-

3 “Ateus” aqui seriam os cristãos.


4 Mt 26,55.
52 SÃO PO L I CARPO

mente. Tendo eles consentido, Policarpo começou de pé a suâ oração;


a graça divina transbordava nele de tal maneira que pelo espaço de
duas horas não pôde interrompê-la. Todos os que o ouviram se en­
cheram de espanto e muitos se arrependeram de perseguir a um
ancião tão cheio do amor de Deus.
Concluindq a oração, na qual se lembrara de todos que havia
conhecido, grandes e pequenos, nobres e humildes e da Igreja católica
de toda parte dó mundo, chegou o momento da partida. Montando
um jumento foi conduzido para a cidade* já na manhã do grande
sábado. Vieram a seu encontro Herodes, o chefe de polícia, e Niceto,
seu pai, os quais o fizeram sentar-se consigo no carro e tentaram
persuadi-lo: “Que mal pode haver em dizer: César é Senhor, oferecer
o sacrifício, e dizer as coisas que o seguem, para salvar-se?” A prin­
cípio não respondeu, mas como insistissem, disse-lhes Policarpo: “Não
farei o que me aconselhais!” Perdida, assim, a esperança de seduzi-lo,
insultaram-no com palavras ameaçadoras e jogaram-no do carro com
tanta precipitação que feriu na queda a parte anterior da perna. Poli­
carpo nem sequer voltou-se, mas prosseguiu alegremente o caminho
para o estádio, depressa, como se nada houvesse sofrido. Aí, reinava
tal tumulto que ninguém podia fazer-se ouvir.
87 Quando ele entrou, foi ouvida uma voz do céu, dizendo:
“Coragem, Policarpo, seja homem! ” Ninguém viu quem falou, mas a
voz foi ouvida pelos irmãos presentes. No momento em que Policar­
po chegou è a multidão soube que estava preso, aumentou o
barulho.
Foi levado à presença do procônsul, que iniciou o interrogató­
rio, perguntando se de fato era Policarpo. Recebida a resposta afir­
mativa tentou persuadi-lo a renegar a fé: “Respeita a tua velhice”.
E seguiram-se cs argumentos usuais, em tais circunstâncias. “Jura
pela sorte de César, renega as tuas idéias e dize: Morte aos ateus!”
Policarpo então, voltando-se para a multidão do estádio, fixando fir­
memente com um olhar severo aquela ralé criminosa, elevou a mão
contra ela e disse, com os olhos voltados para o céu: “Morte aos
ateus”.
Insistiu ainda o procônsul: “Faze o juramento e eu te liberta­
rei. Insulta ao Cristo”. Respondeu Policarpo: “Há oitenta e seis
anos que o sirvo e nunca me fez mal algum. Como poderia blasfemar
meu Rei e Salvador?”
Como de novo insistisse, dizendo: “Jura pela sorte de César”*
replicou Policarpo: “Se esperas, em vão, que vá jurar pela sorte
de César, simulando ignorares quem sou, ouve o que te digo com
franqueza: sou cristão! Se, por acaso, quiseres aprender a doutrina
do cristianismo, concede-me o prazo de um dia e presta atenção!”
Disse-lhe o procônsul: “Experimenta persuadir o povo”. Respondeu-
-lhe Policarpo: “Julgo que diante de ti devo explicar-me, pois apren­
demos a honrar devidamente os príncipes e as autoridades estabeleci-
O M ARTÍRIO DE SÃO POLICARPO 53
das por Deus quando não são nocivas à nossa fé. Quanto àquela gen­
te, porém, não a julgo digna de ouvir a minha justificação”.
Nem com isso desistiu o procônsul: “Tenho feras”, disse, “às 88
quais te lançarei, se não te converteres”. “Faze-as vir”, respondeu Po-
licarpo; “impossível para nós uma conversão do melhor ao pior; o
bom é poder passar dos males à justiça”. De novo, o procônsul: “Se
não te convertes, se desprezas as feras, eu te farei consumir pelo
fogo”. Policarpo: “Ameaças com o fogo que arde um momento
e logo se apaga. Não conheces o fogo do juízo que há de vir e da
pena eterna onde serão queimados os inimigos de Deus. Mas, que es­
peras ainda? Dá a sentença que te apraz 1”
Proferindo estas e outras palavras, transbordaram nele a genero­
sidade e a alegria e no seu rosto resplandeceu a graça. Não somente
p interrogatório não o perturbou, mas foi o procônsul quem per­
deu a calma. Este mandou então o arauto proclamar por três vezes
no estádio: “ Policarpo acaba de confessar-se cristão”. Mal tinha anun­
ciado, a multidão de gentios e judeus de Esmima prorrompeu em
gritos furiosos e desenfreados: “Eis o mestre da Ásia, o pai dos cris­
tãos, o blasfemador dos nossos deuses, o que induz tantos outros a
não mais honrá-los com sacrifício e orações”. E assim gritando, exi­
giram do asiarca Filipe que lançasse um leão sobre Policarpo. Ele
recusou-se, observando que isso era impossível, pois os comba­
tes de feras haviam sido proibidos. Ocorreu imediatamente outra
idéia à multidão gritando, a uma só voz: “Que Policarpo seja quei­
mado vivo! ” Com efeito, era preciso que se cumprisse a visão do
travesseiro. Tinha-o visto em chamas, quando estava em oração e vol-
tahdorse para os fiéis que o rodeavam dissera em tom profético:
“Devo ser queimado vivo”.
E isso foi feito mais rapidamente do que falado. O povo saiu 89t
à busca de lenha nos armazéns e nos banhos, e, domo sempre nes­
tas ocasiões, os judeus eram os mais ardorosos. Armada a
fogueira, Policarpo despiu as suas vestes, desatou o cinto, tentou de­
samarrar as sandálias, o que há muito não fazia, pois os fiéis sempre
se apressavam em ajudá-lo, no desejo de tocar-lhe o corpo, no qual
muito antes do martírio já brilhava o esplendor da santidade de sua
vida. Rapidamente cercaram-no com as coisas trazidas para o fogo.
Quando os algozes quiseram amarrá-lo, disse-lhes: “Deixai-me livre.
Quem me dá forças para suportar o fogo, dar-me-á igualmente a de
ficar nele imóvel sem necessitar deste vosso cuidado”.
Não o fixaram, amarraram-lhe apenas as mãos. Policarpo, de mãos
ligadas às costas, cordeiro de escolha tomado de um grande rebanho
parà o sacrifício, holocausto agradável preparado aõ Senhor, olhando o
céu, disse:
“Senhor, Deus onipotente, Pai de Jesus Cristo, teu Filho amado
e bendito, pelo qual te conhecemos; Deus de toda a família dos justos
54 SÃO POLICARPO'

que vive na tua presença — eu te bendigo por me haveres julgado


digno deste dia "fe desta hora, digno de participar no número dos már­
tires, do cálice do teu Cristo para a ressurreição da vida eterna do
corpo e da alma, na incorruptibilidade do Espírito Santc! Recebe-me,
hoje, ccm eles, na tua presença como sacrifício agradável e perfeito
e o que me havias preparado e revelado realiza-o agora, Deus da ver­
dade. Por isto e' por tudo eu te louvo, te bendigo, te glorifico por teu
Filho, Jesus Cristo, nosso eterno Sumo Sacerdote no céu. Por ele,
com ele e o Espírito Santo, glória seja dada a ti, agora e nos séculos
futures. Amém”.
90 Prenunciado este amém e completa a oração, os algozes atearam
o fogo e levantou-se uma grande chama. Nós — a quem foi dado
ver — vimos um prodígio (e para anunciá-lo aos outros fomos pou­
pados): o fogo tomou uma forma de cupula, como a vela de um
barco batida pelo vento e envolveu o corpo do m ártir por todos os
lados. Ele estava no meio, não como carne queimada, mas como
um pão que se assa ou como ouro ou prata candentes, na fornalha.
Sentimos então um odor suave como o do incenso ou de outra essên­
cia preciosa.
Vendo, afinal, que o fogo não conseguia consumir o cor­
po, os ímpios mandaram o executor transpassá-lo com o punhal. E
quando isto foi feito, saiu da ferida tal quantidade dé sangue que
apagou o fogo. E toda a multidão ficou pasma ao verificar tão gránde
diferença entre os infiéis e os eleitos. Um destes era certamente Po­
licarpo, o admirável mártir, bispo da Igreja católica de Esmirna, que,
em nossos dias foi verdadeiramente apóstolo e profeta, pela doutrina,
pois toda a palavra saída da sua boca já foi ou será realizada.
Mas o espírito maligno, invejoso, perverso adversário do
povo dos justos, conhecendo a vida de Policarpo, imaculada desde
o começo, e vendo que agora, depois do seu admirável martírio, re­
cebera a coroa da imortalidade e entrara na posse da recompensa
eterna, que ninguém poderia mais disputar ou roubar, fez tudo
que pôde para impedir que seu corpo fosse levado por nós, embora
muitos desejassem possuir seus santos despojos Satanás sugeriu a
Niceto, pai de Herodes e irmão de Alceu, que fosse tér com o
governador para pedir-lhe que não entregasse o corpo. “ Seriam capa­
zes”, disse Niceto, “de abandonar o crucificado, para adorar a Poli­
carpo! ” — Disse tudo isso instigado e apoiado pelos judeus, que nos
espiavam quando queríamos tirar o corpo do fogo. Ignoravam que
nunca poderemos abandonar o Cristo que sofreu para a salvação dos
que se salvam no mundo inteiro, inocente pelos pecadores. Como
haveríamos de adorar a outro? Ao Cristo adoramos como Filho de
Deus, aos mártires amamos como discípulos e imitadores do Senhor,
dignos da nossa veneração pela fidelidade inquebrantável ao seu Rei
e Mestre. Oxalá pudéssemos unir-nos a eles e tomar-nos seus con­
discípulos I
O M ARTÍRIO DE SÃO POLICARPO 55

Vendo o centurião a oposição dos judeus, fez queimar publica- 91


mente o corpo, conforme o costume pagão. Deste modo pudemos mais
tarde recolher seus restos, mais preciosos do que pedras raras e mais
valiosos do que ouro, para depositá-los em lugar conveniente, onde
todos, quando possível, nos reunimos com a ajuda do Senhor, para
celebrar com alegria e júbilo o dia do seu nascimento pelo martírio,
em memória dos que combateram antes de nós, preparando-nos e
fortificando-nos para as lutas futuras.
Eis a história do bem-aventuradc Policarpo. Com os outros cris­
tãos de Filadélfia foi 0 duodécimo martirizado em Esmirna. Mas
dele principalmente se conservou a memória, e até os pagãos falam
dele em toda parte. Não foi somente mestre pela doutrina, foi
mártir extraordinário, cujo martírio conforme o Evangelho de
Cristo todos desejam imitar. Triunfou sobre o governador iníquo
por sua paciência e conquistou assim a coroa da incorruptibilidade.
Por isso participa da alegria dos apóstolos e dos justos, glorifica a
Deus, Pai todo-pcderoso, e bendiz a nosso Senhor Jesus Cristo, Sal­
vador das nossas almas e guia dos nossos corpos, Pastor da Igreja
católica espalhada pela terra..
Pedistes uma narração pormenorizada dos acontecimentos. Mas
por enquanto fizemos redigir, por nosso irmão Marcião, somente um
resumo. Lida ésta carta, mandai-a aos irmãos que moram mais longe
para que também louvem ao Senhor pelas escolhas que faz entre os
seus servos.
A Deus, que na sua graça e liberalidade pode fazer entrar no
seu reino eterno a todos nós por Jesus Cristo, seu Filho unigénito —
glória, honra, poder e majestade pelos séculos! Saudai todos os santos.
Saudações dos nossos e de Evaristo, que escreve esta carta, e de toda
a sua casa. "*> .
O santo Policarpo sofreu o martírio no dia dois do mês Xan- *
thicos5, sétimo dia antes das calendas de Março, mam sábado, à hora
oitava 6. Quem o prendeu foi Herodes, sob o pontificado de Filipe de
Trales, sendo procônsul Estácio Quadrado, no reinado eterno de nosso
Senhor Jesus Cristo, a quem sejam glória, honra, majestade e o trono
de geração em geração. Amém.

5 22 de fevereiro.
6 2 horas da tarde.
HERMAS
( t c. 160)

Hermas era irmão do papa s. Pio I, sob cujo pontificado compôs, em Roma, a
obra comumente chamada Pastor, onde narra as “revelações” que julgou receber.
O livro, em estilo apocalíptico, consta de 5 Visões, 12 Mandamentos e 10 Semelhan­
ças. Nas primeiras Visões, a Igreja aparece como uma senhora, a exortar os cristãos
a uma última penitência antes da volta do Senhor. A partir da 5- Visão, Hermes
recebe instruções de um anjo, vestido como pastor sempre com exortações à con­
versão e satisfação pelos pecados cometidos■após o batismo.

O PASTOR

Visão I I, 4: P.G. 2,898s (texto latino; o grego pode-se ver,


com tradução francesa, em “Sources Chrétiennes”, vol. 53).

92 Eis aqui, irmãos, outra revelação feita a mim durante o sono


por um jovem de grande beleza.
— A mulher idosa, das mãos da qual recebeste o pequeno livro,
perguntou, quem é, em teu parecer?
— A Sibila, respondi.
— Enganas-te, replicou.
— Quem é, pois?
— A Igreja!
— Por que é idosa? perguntei.
— Porque foi a primeira a ser criada, antes de todas as coisas:
por isso é idosa; por causa dela o mundo foi feito.
Mais tarde, tive uma visão em minha casa. A mulher idosa en­
trou, e perguntou-me se já havia remetido o livro aos presbíteros.
— Ainda não, respondi.
— Fizeste bem, pois tenho algumas palavras a acrescentar.
Quando terminar, levarás minhas palavras ao conhecimento de todos
os eleitos. Para isso, farás duas cópias do pequeno livro: enviarás uma
a Clemente e outra a Grapté. Clemente enviá-lo-á às outras cidades;
ele está incumbido disso. Quanto a Grapté, ele o usará para a instrução
das viúvas e dos órfãos. E tu farás leituras dele nesta cidade, aos
presbíteros que estão na chefia da Igreja.
O PASTOR 57
Visão I II , 1-7 (P.G. 2, 899-906)

(Hermas vê uma torre em construção: as pedras engastadas são os bens cristãos;


as imprestáveis são os pecadores: talhadas, poderão ser postas na torre).

A mulher idosa chegou enfim em companhia dos seis jovens 93


que eu já havia visto, e, aproximando-se, ouviu-me orar e confessar
meus pecados ao Senhor. Depois tocou-me e disse:
— Hermas, deixa de rogar unicamente por teus pecados; pede
também a justiça, a fim de que a obtenhas um pouco para tua casa.
Tomando-me então pela mão, levantou-me, conduziu-me a uma
cadeira e disse aos jovens:
— Ide trabalhar nà construção.
Quando os jovens partiram, nós ficamos e ela me disse:
— Senta-te aqui.
— Senhora, retruquei, deixai os presbíteros sentar primeiro.
— Faze o que té digo, replicou ela; senta-te.
Quis sentar-me à direita, mas impediu-me e levando-me pela
mãe fez-me sentar do lado esquerdo. Como eu perguntasse com tris­
teza porque não me havia deixado sentar à direita, disse:
— Isto te aflige, Hermas? O lado direito está reservado a ou­
tros, àqueles que já se tomaram agradáveis a Deus e que sofreram
por seu nome. Faltam-te ainda muitas coisas para sentares entre eles;
mas persevera, como o fazes, em tua retidão, e tomarás lugar com
eles, tu e todos aqueles que seguirem seus exemplos e suportarem o
que eles próprios já suportaram. ;
— Que suportaram eles? perguntei.
— Escuta, respondeu: 6 chicote, a prisão, grandes tribulações,
a cruz, animais ferozes, pelo nome de Deus. Eis porque a direita do,
lugar santo lhes está reservada, a eles e a qualquer que haja sofrido-
pelo nome de Deus; os outros ocuparão a esquerda. Mas todos, quer
estejam sentados à direita, quer à esquerda, têm parte nos mesmos
dons e nas mesmas promessas; o únicò privilégio dos primeiros é
sentar à direita e gozar de uma glória especial. Tu desejas tomar
lugar à direita com eles, mas tens ainda muitos defeitos. Serás puri­
ficado de tuás imperfeições; e todos os que expulsarem de seus cora­
ções á indecisão serão também purificados das faltas cometidas até
este dia.
A estas palavras a mulher quis afastar-se; mas caindo a seus pés,
conjurei-a em nome do Senhor a que me mostrasse a visão prometida.
Então tomou-me de novo pela mão,: levantou-me e fez-me sentar
sobre o banco, à esquerda. Ela própria sentou-se à direita. Depois
levantando uma varinha brilhante, disse-me:
— Percebes alguma coisa de grande?
— Senhora, respondi-lhe, não vejo nada.
— Vamos, replicou, olha: não percebes diante de ti uma grande
58 HERM AS

torre quase a se elevar sobre a água, com pedras quadradas e resplen­


dentes?
Com efeito, a torre, de forma quadrangular, era construída pelos
seis jovens que haviam vindo com a mulher idosa: outros homens, aos
milhares, traziam pedras tiradas, umas do fundo da água, outras da
terra, e as levavam aos seis jovens, que as tomavam para construir.
As pedras tiradas do fundo da água eram introduzidas, assim como
estavam, na construção, pois se ajustavam exatamente entre si, suas
partes se encaixavam; elas se soldavam, tão estreitamente unidas,
que não se viam suas junções e a torre parecia construída de um só
bloco. Quanto às outras pedras, tiradas da terra, umas eram rejeitadas,
outras empregadas na construção, outras quebradas em pedaços e
jogados longe da torre. Outras em grande quantidade, jaziam em tor­
no do edifício sem serem utilizadas para sua construção: pois um as
se desmanchavam, outras estavam rachadas, outras mutiladas; outras,
enfim, brancas e redondas, não podiam entrar na construção. Eu via
pedras serem lançadas longe da torre: umas caíam sobre a estrada,
mas sem ali ficar, e dali rolavam para um lugar inacessível; outras
caíam no fogo e queimavam; outras, enfim, caíam perto da água, sem
conseguir rolar até ela, apesar de quererem pela mergulhar.

* * *

94 Após mostrar-me esta visão, a mulher idosa ia afastar-se.


— Senhora, disse-lhe eu, de que me serve haver visto tudo
isso, se não compreendo o significado?
— Tu és bem curioso, respondeu-me, ao querer assim penetrar
no mistério da torre!
— Sim, senhora, disse-lhe; mas é para contar aos irmãos: sua
alegria será aumentada, e à descrição destas maravilhas aprenderão a
conhecer a grande glória do Senhor.
— Seguramente, replicou, este relato será ouvido por um grande
numero de homens; mas se é para uns causa de alegria, será para
outros fonte de lágrimas;. entretanto, mesmo estes últimos, se en­
contrarem ocasião de fazer penitência, alegrar-se-ão por sua vez.
Escuta, pois, a explicação das diversas alegorias da torre: tudo te
revelarei. Somente de agora em diante não me importunes mais sobre
revelações pois estas chegam a seu fim e já estão completas. Mas sei
que não cessará de reclamar, és insaciável. . .
A torre que viste ser construída sou eu, a Igreja, eu que te apa­
reci há pouco e até antes. Faze-me, pois, sobre a torre, todas as per­
guntas que quisere, e te responderei para que te alegres, tu e os
santos.
— Senhora, perguntei, por que a torre foi construída sobre
água?
O PASTOR 59

— Eu já te disse antes, respondeu-me, mas tu és um pesqui­


sador diligente, e tuas pesquisas fazem-te encontrar a verdade. Eis
por quê a torre foi construída sobre a água: porque vossa vida
foi e será salva pela água. A torre tem por fundamento a palavra
do Nome todo-poderoso e glorioso, e por sustentáculo a força in­
visível do Mestre.
* * *

— Senhora, respondi-lhe, está aí algo de maravilhoso. Mas oS 95


seis jovens que trabalham na construção, quem são, senhora?
— São os santos anjos de Deus, os primeiros a ser criados: a
eles o Senhor confiou suas criaturas para fazê-las prosperar, para
organizá-las e governá-las; por eles será executada a construção da
torre.
— E os outros, aqueles que trazem as pedras, quem são?
— São também os santos anjos de Deus, mas os seis primeiros
lhes são superiores. Por seus comuns esforços a torre se acabará; to­
dos se regozijarão em tom o dela, e glorificarão o Senhor por vê-la
concluída.
— Senhora, perguntei-lhe, queria saber a sorte e a significa­
ção das pedras.
— Não é, respóndeu-me, porque sejas entre todos o mais digno
destas revelações pois há outros homens que são superiores a ti
pela categoria, e que teriam mair direito que tu a estas visões, mas
para o nome de Deus ser glorificado estas visões te foram e te
seraò naostradàs em favor dos hesitantes, que se perguntam em seu
coração se tudo isto é real ou não. Dize-lhes que todas estas
coisas são verdadeiras, totalmente verdadeiras, seguras, certas e Seh)
fundadas.
* * *

— Eis agora o que concerne às pedras na construção. As pedras 96


quadradas é brancas que se ajustam exatamente entre si, são os
apóstolos, os bispos, ós doutores e os diáconos que caminharam pelas
santas vias de Deus e cumpriram com pureza e dignidade suas
funções de bispos, doutores e diáconos para o bem dos eleitos de
Deus; uns são mortos, outros vivem ainda; eles jamais cessaram de
fazer reinar entre si a concórdia, a paz, a deferência mútua: eis por
que, na construção da torre, suas junções se harmonizam tão bem.
— E as pédras já colocadas, quem são elas?
— São aqueles que constroem.
— E as que se ajustam tão perfeitamente com as outras já co­
locadas, quem são elas?
— São os que já sofreram pelo nome do Senhor.
60 HERM AS

— As demais pedras tiradas d a terra, gostaria ainda de saber,


senhora, quem representam.
— As pedras, disse então, que foram postas na construção
sem ser talhadas, são os homens cuja fidelidade o Senhor experimentou,
os que caminharam na via reta e observaram os mandamentos.
— E estas pedras que logo de chegada são postas na construção,
quem são?
— São homens novos na fé, mas fiéis: os anjos os formam na
prática do bem, porque não foi encontrado neles nenhum mal.
— As pedras refugadas e jogadas fora, que figuram elas?
— São os pecadores que desejam fazer penitência. Jogam-nos
não muito longe da tòfre porque, se se arrependem, poderão servir
à construção. Aqueles, pois, que se dispõem ao arrependimento serão,
quando fizerem penitência, firmes na fé; somente, é agora que eles
devem se converter, enquanto a torre está ainda em construção, pois
o edifício uma vez acabado, não haverá mais lugar para eles e serãq
definitivamente rejeitados, não lhes restando senão ficarem ao lado
da torre.
* * *

97 Queres saber o que representam estas pedras que foram que­


bradas longe da torre? São os filhos da iniquidade; sua fé é apenas
hipocrisia e não renunciaram totalmente ao mal. Também não há
para eles salvação, pois sua perversidade os torna impróprios à cons­
trução. Foram quebrados em pedaços e jogados longe devido à cólera
do Senhor, a quem irritaram. Quanto às outras pedras, que viste
sobre o solo em grande quantidade sem entrar na construção, umas,
as que estão se desfazendo, representam os homens que após haver
conhecido a verdade nela jamais perseveraram e não freqüentam os
santos: daí sua inutilidade.
—• E as pedras rachadas, quem são?
— São as pessoas que no fundo do coração guardam rancor umas
das outras e não fazem reinar a paz entre elas. Pela frente afetam
ares pacíficos, mas apenas viradas as costas, retêm no coração seus
ressentimentos; são as fendas vistas nas pedras. Quanto às pedras
mutiladas, são a imagem daqueles que abraçaram a fé e cuja vida está
na maior parte regulada sobre a justiça, mas com algumas ligações
ainda na iniqüidade: eis por que elas estão truncadas e incompletas.
— E estas pedras brancas redondas, que não podem entrar na
construção, quem são, senhora?
— Até quando, respondeu-me, permanecerás assim tão estú­
pido e inepto, obrigado a tudo perguntar, sem nada advinhar por
ti mesmo? São aqueles que têm fé, mas possuem ao mesmo tempo
O PASTOR 61
as riquezas deste mundo. Quando sobrevém uma perseguição, seus
negócios e suas riquezas os levam a renegar o Mestre.
— Senhora, repliquei, quando, pois, estarão prontos para a
construção?
— Quando estas riquezas que os seduzem forem cortadas; eles
estarão, então, em estado de ser utilizados por Deus. Aliás, assim
como uma pedra redonda não pode tomar-se quadrada sem ser talhada
e sem perder uma parte de si mesma, também os ricos deste mundo
não se podem tornar úteis ao Senhor se não após a supressão de
suas riquezas. Teu próprio exemplo te fará compreender melhor esta
verdade: quando eras rico, para nada servias, só agora és utilizável e
apto para a vida. Ponha-se cada um em estado de ser utilizado por
Deus! Nao foste tu mesmo uma destas pedras?
v * * *

Quanto às outras pedras que tu viste, lançadas longe da torre, 98


caindo sobre a estrada e de lá rolando para lugares inacessíveis,
são os que, após terem abraçado a fé, se deixaram em seguida
arrastar pelas dúvidas e abandonaram o caminho da verdade. Cren-
dorse capazes de encontrar uma via melhor, desgarram-se e cansam
de caminhar em países sem estradas. As pedras que caem no fogo
e àí queimam são os que se separaram definitivamente do Deus vivo,
jamaís entrando em seu coração o pensamento de fazer penitência,
escravos de suas paixões e das infâmias que cometeram. E estas pedras
<jue caem perto da água, sem conseguirem chegar até ela, queres saber
quem são? São os que ouviram a palavra de Deus e desejam receber
q batismo em nome do Senhor, mas, pensando na pureza exigida ^
péla verdade, mudam de parecer e põem-se novamente atrás de suas
más paixões.
* * *

A mulher idosa havia então terminado a explicação da torre. 99


Atrevi-me a perguntar ainda se todas as pedras, rejeitadas e im­
próprias à construção, podiam fazer penitência e encontrar lugar nesta
torre. Elas podem, (respondeu-me), fazer penitência, mas não entrar
ha construção desta torre. Encontrarão lugar em outro edifício muito
menos elevado, mas somente após haverem sofrido tormentos e posto
fim á seus pecados. Estes homens serão libertados de seus tormentos
por haverem ouvido a palavra da justiça. E esta libertação chegará para
eles no dia em que pensarem nas más ações que cometeram; do con­
trário, não haverá salvação para eles, devido à dureza de seus corações.
ARISTIDES DE ATENAS
(t C. 130)

É um dos primeiros apologistas cristãos, cuja Apologia — dirigida, ao que


parece, ao Imperador Adriano — só era conhecida através das notícias de Eusébio
e s. Jerônimo, até que foi descoberta uma versão siríaca, em 1889, no mosteiro
do monte Sinai. A partir dela pôde ser identificado o texto grego, contido na
Vida de Barlaão e Josafá (do século V II). Foi descoberto também um fragmento em
versão armênia.

A P O L O G IA 1

100 Eu, ó rei, por graça de Deus vim a este mundo e, depois de
considerar o céu, a terra, os mares, o sol e tudo o m ais,, admirei a
ordem do mundo. Compreendi, com efeito, que o mundo — e tudo
o que nele há — é movido necessariamente por outro, e entendi ser
Deus quem o move, o qual nele está escondido e lhe é oculto. Uma
coisa é clara: o que move é mais poderoso que o movido. Indagando
como seja esse que tudo move, uma coisa também me é clara: não
ser ele compreensível em sua natureza. Mesmo a investigação da rea­
lidade de sua direção não me ajuda nesse entendimento, pois ninguém
pode compreendê-la.
Apesar disso, posso dizer desse mcvente do universo, o Deus dé
todas as coisas, que ele tudo fez pelo homem. E então é evidente
a conveniência disto: que o homem tema a Deus e não aflija o
homem.
Posso dizer, em seguida, que Deus é ingênito, não feito, na­
tureza constante, sem princípio ou fim, imortal, perfeito e inefável.
Dizer perfeito significa a inexistência de qualquer defeito, a ausência
de qualquer necessidade nele, e ao contrário a necessidade que dele
têm todas as coisas. Dizê-lo sem princípio significa afirmar que
tudo o que tem princípio tem igualmente fim e é corruptível.
101 Ele não tem nome: o que tem nome é sempre coisa criada. Não
tem figura, não se compõe de membros: o composto é sempre
coisa criada. Não é macho nem fêmea; o céu não o circunscreve,

l O texto é apresentado aqui segundo a versão siríaca, tida como mais autêntica,
na base da tradução espanhola que se acha em Padres Apologistas Griegos, BAC,
n? 116, 1954.
APOLOGIA 63
sendo por ele circunscrito, como aliás tudo que é visível e invisível.
Não tem adversário, nada podendo ser mais forte que ele. Não sente
ira nem rancor; quem se poderia erguer centra ele? Não tem erro ou
esquecimento — em sua natureza — pois é todo sabedoria e entendi­
mento, e por ele subsiste o que subsiste. Não pede sacrifício, libação,
coisa alguma do que se vê: nada pede ao homem, ao passo que todos
devem recorrer a ele.
Assim, tendo expresso sobre Deus o que nosso entendimento pode 102
dizer, passemos agora ao gênero dos homens, e vejamos quais os que
participam da verdade, quais os que dela se apartam. Uma coisa
é clara a vós, ó rei: as estirpes de homens, neste mundo são quatro:
os bárbaros e os gregos, os judeus e cs cristãos. Os bárbaros atribuem
a origem de sua raça à sua religião de Crono, Rea e demais deuses.
Os gregos, a Helen, q u e . dizem descender de Zeus. De Helen foi
gèrado Eolc e Xuto; em seguida o resto da família, de Inaco e Fo-
reneu; e enfim, de Dánao — egípcio — de Cadmo e de Dionísio.
Os judeus, por seu turno, consideram a erigem de sua estirpe a
partir de Abraão, que gerou Isaac, do qual nasceu Jacó e que por
sua vez gerou doze filhes. Emigraram estes da Síria ao Egito, onde
foram chamados raça dos hebreus, em razão do nome de seu legis­
lador; e depois foram chamados judeus.
Já os cristãos contam o princípio de sua religião em Jesus Cristo,
chamado Filho de Deus Aliíssimo. Dizem que Deus desceu do céu,
tomando e assumindo a carne de uma virgem hebréia2, habitando na
filha do homem o Filho de Deus. Isso é ensinado pelo Evangelho,
que — assim é chamado entre eles — primeiramente foi pregado,
e encerra um poder que compreendereis se o lerdes.
Portanto, esse Jesus nasceu da estirpe dos judeus; cedo teve v
doze discípulos, para levar a efeito certa economia sua. Fci crucificado 1
pelos judeus, morreu e foi sepultado. Afirma-se que^depcis de três
dias ressuscitou e subiu ao céu. Saíram então seus doze discípulos
pelas várias partes do mundo ensinando a grandeza dele com toda
humildade e modéstia. Eis por que os que ainda hoje crêem naquela
pregação são chamados e conhecidos como cristãos.

Os cristãos, ó rei, vagando e buscando, acharam a verdade e, 103


conforme pudemos aprender de seus livros, estão mais próximos que
cs outros povos da verdade e do conhecimento certo, pois crêem
no Deus Criador do céu e da terra, naquele em quem tudo é e de
quem. tudo procede, que não tem outro Deus por companheiro
e do qual eles mesmos receberam os preceitos tjue guardam no
coração, com a esperança e expectativa do século futuro.

2 No te x to g re g o : “ d e um a s a n ta V irg e m ” .
64 ARISTIDES DE ATENAS

Por isso, não cometem adultério, não praticam a fornicação, não


levantam falso testemunho, não recusam devolver um depósito, não
se apropriam do que não lhes pertence. Honram pai e mãe, fazem o
bem ao próximo e, quando em juízo, julgam com equidade. Nãc ado­
ram os ídolos — semelhantes aos homens. O que não desejam lhes
façam os outros não o fazem também; não comem alimentos de
sacrifícios iddlátricos, pois são puros. Exortam os que os afligem,
a fim de fazê-los amigos. Praticam o bem para com os inimi­
gos. Suas mulheres, ó rei, são puras como virgens, suas filhas são
modestas. Seus homens se abstêm de toda união ilegítima e da
impureza, esperando a retribuição que terão no outro mundo. Aos
escravos e escravas, bem como a seus filhos — se os têm — persua­
dem a tornar-se cristãos, em razão do amor que lhes dedicam, e
quando se tornam, chamam-nos indistintamente irmãos. Não adoram
a deuses estranhos e vivem com humildade e mansidão, sem qual­
quer mentira entre eles. Amam-se uns aos outros, não desprezam as
viúvas. Protegem o órfão dos que o tratam com violência. Possuindo
bens, dão sem inveja aos que nada possuem. Avistando o foras­
teiro, introduzem-no na própria casa e se alegram por ele, como
se fora verdadeiro irmão: pois se dão o apelativo de irmãos, não
segundo o ccrpo, mas segundo o espírito e em Deus. Se um pobre
passa deste mundo, alguém, sabendo-o, encarrega-se —- na medida de
suas forças — de dar-lhe sepultura. Se conhecem um encarcerado ou
oprimido por causa do nome de seu Cristo, ficam solícitos a seu res­
peito e se possível libertam-no. Quando um pobre ou necessitado
surge entre eles e não possuem abundância de recursos para ajudá-lo,
jejuam dois ou três dias para obter o necessário para seu sustento.
Guardam com diligência os preceitos de seu Cristo, vivem re ta /e
mcdestamente — conforme lhes ordenou o Senhor Deus. Todas as
manhãs e horas louvam e glorificam a Deus pelos benefícios recebidos,
dando graças por seu alimento e bebida. Mesmo se acontece que
um justo — entre eles — passa deste mundo, alegram-se e dão grà-
ças a Deus, ao acompanharem o cadáver, como se emigrasse de um
lugar para outro. E assim como quando nasce um filho louvam a
Deus, também se ele morre na infância glorificam a Deus, por quem
atravessou o mundo sem pecados. Mas vendo alguém morrer na ma­
lícia e nos pecados, choram amargamente e gemem por ele, supondo-o
ir ao castigo.
Tal é, ó rei, a constituição da lei dos cristãos e tal a sua conduta.
SAO JUSTINO
( t c. de 165)

Nascido de família pagã, em Naplusa, antiga Siquém. Sempre buscando a verda­


de, freqüentou sucessivamente a filosofia estóica, a aristotélica, a pitagórica e a pla­
tônica. Só mais tarde um ancião, em Éfeso, lhe despertou o interesse pelo Novo
Testamento e o cristianismo. Neste reconheceu Justino ter achado ua única filosofia
proveitosa”. Batizado, não deixou a vocação de filósofo e professor, fundando uma
escola em Roma.
De sua obra só nos restam o “Diálogo com Trifão” e as duas “Apologias”. No
“Diálogo”, mostra ao rabino Trifão a divindade do cristianismo. As “Apologias” são
dedicadas ad imperador Antonino Pio e datam de cerca de 150, visando defender
C3 cristãos das acusações correntes. Temos nesses livros informações sobre os usos li-
túrgicos do século I I (batismo, celebração eucarística) e toda uma apologética de
grande importância. Em sua tentativa de conciliar a doutrina cristã com aspectos do
helenismo, a teologia de s. Justino se manifesta deficiente, por exemplo, na exposição
da doutrina trinitária (a relação entre o Logos e o Pai).
Foi martirizado em Roma, e conrerva-se um relatório do seu martírio.
Edição completa em grego e espanhol: BAC, 116.

DA P APOLOGIA (Cap. 65-67)


(P.G . 6, 428ss)

A reunião eucarística 1

Nós, depois de ter assim lavado 1 o que creu é aderiu à nossa 104
doutrina, o conduzimos até onde se encontram os que se chamam
irmãos, a fim de elevarmos fervorosas preces em comum por nós
mesmos, pelo que acaba de ser iluminado e por todos os demais
dispersos pelo mundo, suplicando que, uma vez conhecida a verdade,
tenhamos a graça de ser homens de boa conduta e observantes dos
mandamentos, para alcançarmos a vida eterna.
Terminadas as orações, damos mutuamente o ósculo da paz.
Apresenta-se, então, a quem preside aos irmãos, pão e um vaso de
água e vinho, e ele tomando-os dá louvores e glória ao Pai do universo
pelo nome de seu Filho e pelo Espírito Santo, e pronuncia uma longa
ação de graças em razão dos dons que dele nos vêái. Quando o pre­
sidente termina as orações e a ação de graças, o povo presente aclama
dizendo: Amém.
1 S. Justino acabava de discorrer sobre o Batismo.

3 • Antologia dos santos padres


SAO JU STIN O

“Amém" em hebraico quer dizer “assim seja”. Uma vez dadas


as graças e feita a aclamação pelo povo, os que entre nós se cha­
mam diáconos oferecem a cada um dos assistentes parte do pão,
do vinho, da água, sobre os quais se disse a ação de graças, e
levam-na aos ausentes.
105 Este alimento se chama entre nós “Eucaristia’’, não sendo lícito
participar dele senão ao que crê ser verdadeiro o que •foi ensinado
por nós e já1se tiver lavado no banho da remissão dos pecados e da
regeneração, professando o que Cristo nos ensinou.
Porque não tomamos estas coisas como pão e bebida comuns,
mas da mesma forma que Jesus Cristo, nosso Salvador, se fez carne e
sangue por nossa salvação, assim também se nos ensinou que por
virtude da oração do verbo, o alimento sobre o qual foi dita a ação
de graças ■— alimento de que, por transformação, se nutrem nosso
sangue e nossas carnes — é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus
encarnado. E foi assim que os apóstolos, nas Memórias por eles
escritas, chamadas Evangelhos, nos transmitiram ter-lhes sido ordenado
fazer, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: “Fazei isto
em memória de mim, isto é o meu corpo”. E igualmente, tomando o
cálice e dando graças, disse: “Este é meu sangue”, o qual somente á
eles deu a participar. É sabido que também isto, por arremedo, ensi­
naram os perversos demônios que se fizesse nos mistérios de M itra2,
onde nos ritos de iniciação se apresenta o pão e o vaso de água,
acompanhado de certas palavras, conforme podeis informar-vos a
respeito.
106 Quanto a nós, recordamos depois ccnstantemente entre nós
estas coisas, e os que temos posses socorremos os necessitados, pres­
tando assistência uns acs outros. Por tudo o que comemos ben*
dizemos sempre ao Autor de todas as coisas, por meio de seu Filho
Jesus Cristo e pelo Espírito Santo.
No dia que se chama do so l 3 celebra-se uma reunião dos
que moram nas cidades ou nos campos e ali se lêem, quanto 6
tempo permite, as Memórias dos apóstolos ou os escritos dos pro-
fetas.
Assim que o leitor termina, o presidente faz uma exortação é
convite para imitarmos tais belos exemplos. Erguemo-nos, então, e
elevamos em conjunto nossas preces, após as quais se oferecem pão,
vinho e água, como já dissemos. O presidente também, na medi­
da de sua capacidade, faz elevar a Deus suas preces e ações de
graças, respondendo todo o povo “amém”. Segue-se a distribuição
a cada um, dos alimentos consagrados pela ação de graças, e seu
envio aos ausentes, por meio dos diáconos. Os que têm, e querem,
dão o que lhes parece, conforme sua livre determinação, sendo a

2 Ritos do helenismo, então em voga.


3 Domingo.
DA; SEGUNDA APOLOGIA 67

èòleta entregue ao presidente, que assim auxilia os órfãos e viúvas,


os enfermos, os pobres, os encarcerados, os forasteiros, constituindo-se,
numa palavra, o provedor de quantos se acham em necessidade.
Celebramos essa reunião geral no dia do sol, por ser o primeiro,
aquele em que Deus, transformando as trevas e a matéria, fez o mun-
: do; o dia também em que Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou
dos mortos: pois convém saber que o crucificaram no dia anterior
ao de Saturno, e que no dia seguinte, dia do sol, apareceu aos apósto­
los e discípulos, ensinando as mesmas doutrinas que vos propomos.

DA I P APOLOGIA (Cap. 10 e 13)


(P.G . 6, 460-466)

: O Verbo e suas sementes

Nossa religião aparece mais sublime que todo ensinamento huma- 107
rio, pela simples razão de que o Verbo inteiro, que é Cristo, se ma­
nifestou por meio de nós, fez-se corpo, razão e alma.
; Forque tudo qué de bom disseram e acharam os filósofos e le­
gisladores fci por eles elaborado segundo a participação que tiveram
ho Verbo, pela investigação e pela intuição. Mas como não conhece­
ram ao Verbo inteiro, que é Cristo, se contradisseram também com
freqüência entre si. E os que antes de Cristo tentaram — na medida
de suas forças humanas — investigar e demonstrar as coisas de um
medo conforme ao Vérbo, foram levados acs tribunais como ímpios
e amigos de novidades. O que mais se empenhou entre eles, Sócrates,
foi acusado dos mesmos crimes que nós, pois diziam que introduzia «•,, .
novos deuses, por não reconhecer os que a cidade cultuava. Mas a J
verdade é que, expulsando da república a Homero e aos outros
Çpetas, ensinou os homens a rechaçarem os maus démônios que co­
meteram as abominações referidas pelos poetas, ao mesmo tempo que
os exortou ao conhecimento de Deus — para eles desconhecido —
per meio da investigação racional, dizendo: aAo Pai e artífice do
universo não é fácil de se achar, nem depois que o achamos é fácil
dizê-lo: a todos” h Foi isso justamente o.que nosso Cristo fez por sua
própria virtude. Porque a Sócrates ninguém deu crédito, até que deu
a vida pela doutrina, mas a Cristo, que em parte foi conhecido por
Sócrates ;— ele era e é o Verbo que está em tudo, foi ele quem peles
profetas predisse o porvir e que, fazendo-se de nossa natureza, por
si mesmo nos ensinou essas coisas — a Cristo, dizíamos, não só deram
crédito filósofos e homens cultos, mas também artesãos e pessoas to­
talmente ignorantes, as quais souberam desprezar a incerteza, o medo1

1 Cf. Platão, Timeu, 28, c.


68 SÃO JU STIN O

e a mcrte. Porque ele é a virtude do Pai inefável e não o vaso de um


verbo humano.

108 Também eu, ao perceber que os malvados demônios estenderam


um véu sobre cs divinos ensinamentos de Cristo, com o fim de apar­
tar os homens dos mesmos, desprezei aos que propalavam tais calú­
nias 2, tanto como ao véu dos demônios e à opinião do vulgo.
Confesso que minhas orações e esforços têm por meta mostrar:
-me como cristão, não que as doutrinas de Platão sejam alheias a
Cristo, mas porque nãc são totalmente semelhantes — como também
acontece com as dos demais filósofos (dos estóicos, por exemplo),
dos poetas e dos historiadores.
Cada um deles falou bem, vendo aquilo que tinha afinidade com
ele, da parte do Verbo seminal divino que lhe coube; mas é evi­
dente que em muitos pontos se contradisseram mutuamente, e assim
não alcançaram ciência infalível nem conhecimento irrefutável.
Porém, tudo que de bom está dito em todos eles, pertence-nos
a nós, cristãos, pois adoramos e amamos, depois de Deus, áo Verbo,
que procede do mesmo Deus ingênito e inefável; a ele, que por nosso
amor, se fez homem a fim de participar de nossos sofrimentos e curá-
-los. E todos os escritores só puderam, obscuramente, ver a realidade
graças à semente do Verbo depositada neles. Uma coisa é, com èfeitò;
o germe e imitação de algo que se dá conforme a capacidade; outra,
aquele mesmo de cuja participação e imitação se confere, segundo
uma graça que dele procede.

DIÁLOGO COM TRIFÃO (início)


(P.G . 6, 472-492)

109 Uma vez estava eu passeando de manhã, nas galerias do ginásio,


quando vieram a meu encontro alguns homens, um dos quais sau­
dou-me, dizendo:
— Bom dia, filósofo!
E passou a me acompanhar. O mesmo fizeram seus compa­
nheiros. Por minha vez saudei-o então.
— Que há de novo?
E ele:
— Em Argos aprendi com Corinto, o socrático, que não devia
desprezar ou pôr de lado os que usam essa veste, e sim acolhê-los
sempre com bondade, e freqüentá-los assiduamente, a fim de tirar
algum proveito desse convívio, seja para mim, seja mesmo para

2 S. Justino acabava de se referir às calúnias frequentemente levantadas contra


o comportamento dos cristãos.
DIÁLOGO. ÇOM .TRIFÃO 69

eles, pois constitui um bem para ambos se ao menos um dos dois


sai com lucro. Por isso sempre que vejo alguém com este trajo, de
boa vontade dirijo-me a ele, e foi com grande satisfação que agora
te saudei. Estes outros me acompanham, esperando agorá ouvir de ti
alguma palavra útil.
— E quem és tu, ó melhor dentre os mcrtais? 2, disse eu brin­
cando.
Deu-me logo com tcda simplicidade seu nome e origem:
— Chamo-me Trifão, disse, sou hebreu pela circuncisão, e refu­
giado por causa da guerra atual. Vivo a maior parte do tempo na
Grécia, em Corinto.
— Mas será possível, disse eu, que possas tirar tanto proveito da
filosofia quanto do teu legislador e dos profetas?
— Como? Acaso não se refere a Deus todo discurso filosófico? 110
E não é em torno de sua Unidade e de sua Providência, que giram sem­
pre as disputas filosóficas? Porventura não pertence à filosofia in­
quirir sobre a divindade?
— Sem dúvida, respondi, também pensamos assim, mas a maio­
ria nem se importa de saber se existe um só Deus ou muitos, se cui­
dam de nós ou não, como se tal conhecimento de nada adiantasse
para a nossa felicidade. Tentam até persuadir-me de que Deus se ocupa
com o universo em geral, com os gêneros e as espécies, mas não
comigo, contigo e com cada um em particular. Por isso, dizem, de
nada adiantaria que orássemos dias e noites a fio. Não é difícil com­
preender para onde os conduz tal modo de ver. Aqueles que assim
pensam nada temem e se julgam livres em todas as suas palavras e
ações; fazem e dizem o que querem, pois não temem castigo divino
nem esperam recompensa de Deus. Como, aliás, poderiam temer o u v
esperar, se afirmam repetirem-se sempre as mesmas coisas, se eu e tu *
viveremos novamente da mesma maneira no futuro, nem melhores
nem piores que agora? Outros existem que, supondo a alma imortal
e incorpórea, não crêem que deverão pagar por qualquer mal que
fizeram — pois todo incorpóreo é impassível — ou que, sendo a alma
imortal, precisem de Deus em alguma coisa.
Então, sorrindo amavelmente, disse:
— E tu, como pensas a respeite destas coisas, que opinião tens 111
a respeito de Deus, qual a tua filosofia? Peço-te que no-lo digas.
— Dir-te-ei, respondi, minha opinião. A filosofia é deveras um
grande bem, muito precioso aos olhos de Deus, a quem ela nos con­
duz e apresenta. Verdadeiramente são santos os que aplicam sua in­
teligência à filosofia. Todavia a maior parte ignora o que seja filo­
sofia, e a razão por que foi dada aos homens. D a contrário não exis­
tiriam platônicos, estóicos, peripatéticos, tecréticos, pitagóricos, sen­
do a filosofia uma só ciência.1

1 Homero, Ilíada, V II, 123.


70 SÃO JU S T IN O

Gostaria de expor por que razão se tornou múltipla. Aconteceu


que os sucessores dos primeiros que trataram da filosofia, e se tornaram
célebres, aderiram simplesmente aos seus predecessores sem investigar
por sua vez a verdade. Cada qual, admirando somente a firmeza, a tem­
perança de seu mestre, o inaudito das suas palavras, julgava verdade
apenas aquilo c[ue aprendera do mestre. Depois também estes trans­
mitiram aos seus próprios sucessores o que haviam aprendido, acresci­
do de mais um ou outro ponto no mesmo sentido, e então foram
chamados pelo nome do pai da doutrina,
112 Inicialmente, desejando muito entrar em contato com um des­
tes filósofos, fui ter com um estóico. Permaneci junto dele por longo
tempo, mas nada aprendi a respeito de Deus. Aliás, nem ele sabia
alguma coisa, nem julgava necessária essa ciência. Abandonei-c, por­
tanto, e dirigi-me a outro, que diziam ser peripatético. Este achava-se
a si mesmo sutilíssimo. Suportou-me os primeiros dias, mas depois pe­
diu que determinasse o seu salário, para que o nosso convívio não
fcsse infrutífero. . . Ora, per este motivo abandonei-o também, certo
cie que ele não podia ser filósofo. . . Com a alma ainda repleta do de­
sejo de ouvir o que é peculiar e interessante na filosofia, procurei um
pitagórico, que gozava de grande estima. Este homem muito se van­
gloriava de sua sabedoria. Quando tratei com ele, para tornar-me seu
ouvinte e pensionista, perguntou-me:
— Mas como? Já estudaste música, astronomia e geometria?
Acaso pensas perceber algo das coisas que conduzem à felicidade,
sem teres aprendido antes o que desprende a alma das coisas
sensíveis e a torna apta a perceber os objetos inteligíveis, a com
templar o próprio Belo e o próprio Bem?
E assim, louvando sempre essas ciências e dizendo-as muito ne­
cessárias, despediu-me, depois de eu ter confessado ignorá-las. Como
era natural, fiquei aborrecido por ver frustrada a minha esperança,
sobretudo porque julgava que ele sabia alguma coisa. Considerando
por outro lado o tempo que iria dispender com tais estudos, não
suportava a idéia da longa demora a que me tinha de submeter. Em
tal dificuldade pareceu-me bom procurar os platônicos, que também
gozavam de considerável reputação. Comecei a freqüentar assidua­
mente um sábio que se mudara, havia pouco, para a nossa cidade
e que era um dos platônicos mais em vista. Fiz progressos, e cada dia
adquiria novos conhecimentos. Entusiasmava-me sobremaneira com o
conhecimento das coisas incorpóreas, e a contemplação das idéias dava
asas a meu pensamento. Julgava ter-me tomado sábio em tão pouco
tempo, e totalmente esperava em breve ver o próprio Deus — pois tal
é o fim da filosofia platônica.
113 Com tais disposições de espírito, querendo cercar-me de com­
pleta solidão e escapar até aos rastros dos homens, dirigi-me para uma
localidade não longe do mar. Quando cheguei perto do lugar onde iria
ficar a sós comigo mesmo, um ancião de aparência respeitável pôs-se
DIÁLOGO COM TRIFÃO 71

a seguir-me a pequena distância. Seu aspecto era calmo e imponente.


Voltei-me e, parado, encarei-o com firmeza. Ele então perguntou:
— Conheces-me?
Neguei.
— Então por que me olhas assim?
:— Admire que tenhas conseguido chegar ao mesmo lugar que eu.
Não esperava ver um homem por estas bandas.
— Estou preocupado, disse ele, com òs meus; afastaram-se de
mim, e por isso estou à procura, para ver se não aparecem por aqui.
E tu, que queres neste lugar?
— Gosto deste gênero de distrações, onde, não havendo nada
que perturbe, posso à vontade conversar comigo mesmo. Este lugar
aqui facilita muito minha “filologia”.
— “Filologia?” replicou. És então amigo só de palavras, e não
das ações e da verdade? E nem procuras ao menos ser pragmático em
ve2 de sofista?
— Que ebra melhor poderá alguém empreender, disse eu, do
que mostrar que a razão tudo domina? abraçá-la, e elevado por ela,
contemplar os erros e as ocupações dos outros, e ver como nada
fazem que seja verdadeiramente são cu agradável a Deus? Sem a filo­
sofia e sem a reta razão é impossível achar em alguém a prudência.
Por isso convém que todos os homens se dêem ao estudo da filosofia.
Esta ocupação deve ser colocada em segundo e terceiro lugar. As coi­
sas que permanecem na dependência da filosofia são comedidas e dignas
de ser aceitas, porém as que não a seguem, ou são privadas do seu
auxílio, tornam-se pesadas e grosseiras para os que as têm de tratar.
-J- Então a filosofia conduz à felicidade? perguntou ele.
— Certamente, respondi, e ela só!
— Mas que é filosofia? e qual a felicidade que pode dar? Se
nada te proíbe dizê-lo, dize-o!
— Filosofia, disse eu, é ciência do ser e conhecimento da ver­
dade. E isso mesmo constitui a felicidade, o prêmio da sabedoria.
— E o que é que chamas Deus? perguntou.
— Aquilo que sempre é o mesmo e se comporta da mesma ma­
neira, e é a causa da existência dos outros seres: a isto chamo Deus.
Respondi deste modo ao ancião, e ele me ouvia com visível sa­
tisfação. Interrogou-me novamente:
— A palavra “ciência” não será um nome comum que significa
coisas diferentes? Em qualquer arte, aquele que a conhece recebe o
nome de “cientista”: por exemplo, na estratégia, na pilotagem, na
medicina. Será o mesmo no que se refere ao conhecimento das coi­
sas divinas e humanas? Existe porventura uma ciência que forneça
o conhecimento das coisas divinas e humanas, a compreensão da
divindade e da justiça que nelas se encontram?
— Sem duvida, disse eu.
72 SÃO JU S T IN O

<— Mas então? Conhecer o homem e Deus será o mesmo que


saber aritmética, astronomia ou qualquer outra coisa semelhante?
— Absolutamente.
— Neste caso não me deste uma resposta certa, disse ele. Adqui­
rimos algumas destas ciências por meio do estudo e de certos exercí­
cios, mas existem outras que se formam no próprio ato de ver. Se
alguém te diz que existe na índia um animal cujo aspecto não é se­
melhante ao dos demais, mas deste ou daquele modo, com muitas e
diferentes formas, não poderás conhecê-lo sem que primeiro o vejas,
nem te seria possível dizer uma palavra a respeito dele sem que
antes a tivesse ouvido de quem o viu pessoalmente.
— Não poderia, disse eu.
115 — Como então, replicou, podem os filósofos pensar correta­
mente ou ao menos dizer algo de verdadeiro sobre Deus, se dele não
têm a ciência, pois não o vêem nem ouvem?
— Mas, Pai, a divindade não é visível aos nossos olhos como os
outros seres vivos, porém é perceptível à inteligência, como diz Pla­
tão, com o qual estou de acordo.
— Possui então a nossa inteligência tamanho poder? Ou será me­
lhor dizer que percebe usando os sentidos? Acaso um homem poderá
ver Deus sem que o Espírito Santo o ilumine?
— Mas Platão, respondi, disse que justamente esta é a natureza
do olho da inteligência, dado a nós precisamente para tal fim.
Com a sua penetração podemos contemplar o próprio Ser por exce­
lência que é a causa de todos cs nossos conceitos, e não tem cor,
figura, tamanho, ou algo que se possa perceber com o olho corpóreo.
— Mas então qual a sua natureza?
— É aquilo, digo, que está acima de toda e qualquer essência,
inefável e inexplicável, único belo e único bem, que habita imedia­
tamente nas almas bem formadas devido às afinidades que apresentam
com ele e ao desejo que têm de contemplá-lo.
116 — Qual é a afinidade que temos com Deus? perguntou. Acaso
é a alma divina e imortal, ou parte da própria inteligência régia? Se­
rá possível que possamos atingir com o nosso entendimento a própria
divindade, como aquela inteligência a contempla, e deste modo con­
seguir desde já a felicidade?
— É óbvio.
— Porém as almas dos animais são porventura capazes de o
apreender? Ou uma é a alma do homem, e outra a do cavalo ou do
jumento?
— Não, respondi, são todas almas.
— Mas então, disse ele, algum dia os cavalos e os jumentos hão
de ver a Deus? Será até que já o tenham visto?
— Não, respondi; nem a maioria dos homens o há de ver, mas
somente aquele que viver conforme a justiça e fcr purificado pela prá­
tica desta e das demais virtudes.
DIÁLOGO COM TRIFÃO 73

— Portanto, acrescentou, já não é por sua afinidade com Deus


que o homem o contempla, nem por possuir inteligência, mas porque
é prudente e justo?
— Sim, respondi, mas também porque tem uma inteligência com
a qual atinge a Deus.
— M as. . . as cabras e as ovelhas ofendem a alguém?
— Não, a ninguém.
— Portanto, conforme teu raciocínio, também estes animais hão
de ver a Deus.
— Absolutamente. Pois o corpo, por sua própria natureza, lhes
serve de impedimento.
— Se estes animais, disse ele, recebessem a fala, fica sabendo
que com muito mais razão do que tu haveriam de injuriar c nosso
corpo. Por ora deixemos este assunto. Concedamos que seja como
afirmas; mas dize-me uma coisa só: é quando está no corpo que a
alma vê a Deus, ou quando está separada?
— Enquanto permanece na forma do homem, respondi, é possí­
vel que o consiga usando a inteligência; porém muito mais ainda, quan­
do, separada do corpo fica a sós consigo mesma, atinge completa­
mente e para sempre o seu amado.
— E quando volta novamente a um homem, conserva a lem­
brança do que viu?
— Acho que não, respondi.
— Qual é então a vantagem da alma que o contemplou? Que 117
tem a mais, a que vê, do que a que não vê, se nem se lembra do
fato de ter viste?
— Não sei o que dizer, confessei.
— E as que foram julgadas indignas da visão, que terão de
sofrer?
— Serão ligadas a corpos de feras; nisto consiste o seu castigo. -1
— Sabem porventura por que causa estão nestes corpos, e se
cometeram alguma falta?
—- Parece-me que não.
— Ccmo se vê, não tiram nenhum proveito do castigo. Aliás,
a meu ver, nem são castigadas, se não são capazes de sentir a pena.
— De acordo.
— Portanto, as almas não vêem a Deus, nem passam para ou­
tros corpos, pois em tal caso haveriam de saber que assim estavam
sendo castigadas e temeriam daí por diante cair em pecado, mesmo
per acaso. Todavia também eu afirmo quê elas possam saber que
Deus existe e que a justiça e a piedade são coisas boas.
— Tens razão, respondi.
— Portanto nada sabem do assunto estes filósofos, nem tam­
pouco são capazes de dizer o que seja a alma.
— É verdade, não são capazes.
74 SÃO JU S T IN O

118 — Aliás, não se deve dizer que a alma é imortal, pois se é


imortal é ingênita.
— Conforme os filósofos chamados platônicos, ela é ingênita
e im ortal. . .
— Porventura também achas que o mundo seja ingênito?
— Alguns o afirmam, mas não concordo com eles.
— E coih razão. Por que motivo nãc atribuir a alguma causa
a origem dos corpos, sólidos, resistentes e compostos, que se
transformam, desaparecem e aparecem cada dia? Mas se o mundo
foi gerado, é necessário que as almas também o tenham sido, e por­
tanto, que seja possível a sua não existência. Assim, se queres afir­
mar que elas foram geradas completamente independentes, e não na
mesma ocasião que os próprios corpos, convém acrescentar que elas
o foram tendo em vista os homens e os outros animais.
— É verdade.
— Logo não são imortais?
— Não, já que admitimos ter sido o mundo gerado.
No entanto, nãc quero dizer que as almas hão de ser destruídas:
seria sem dúvida uma enorme vantagem para os maus. Qual é, pois,
a solução? As almas dos homens piedosos ficarão num lugar bom, as
dos ímpios e malvados noutro muito mau, esperando o tempo do
juízo. E assim as primeiras, se forem julgadas dignas de Deus, nunca
mais hão de morrer; as outras, porém, serão punidas por tanto tem­
po quanto Deus quiser que existam e sejam castigadas.
119 — Não será o que dizes, perguntei, aquilo mesmo que Platão
insinua, no Timeu, a respeito do universo, quando afirma que este
último se acha sujeito à corrupção, por ter sido gerado, mas que
não será destruído nem destinado à morte por vontade do próprio
Deus? Achas possível estender simplesmente a todas as coisas aqui­
lo que disseste sobre a alma? Pois tudo que existe além de Deus,
cu alguma vez há de existir, é de natureza corruptível, capaz
de ser destruído e de voltar ao nada. Deus é o único verdadeiramente
ingênito e incorruptível, e por isso mesmo é Deus. As demais coisas
que existem foram geradas e são corruptíveis. Por este motivo mor­
rem as almas e são castigadas. Porque se fossem ingênitas não have­
riam de pecar, não estariam cheias de estultícia, não haveriam de ser
medrosas ou ferozes, nem jamais entrariam espontaneamente em cor­
pos de porcos, cabras ou cães; seria mesmo injusto obrigá-las a fazê-
-lo, se são ingênitas, pois um ser ingênito é igual, ou ao menos se
assemelha, a outro ser ingênito: um não é melhor que outro quanto ao
poder e à dignidade. Per isso não existem muitas coisas ingênitas. Pois
se existisse entre elas alguma diferença, não seria possível, caso a
procurássemos, encontrar a causa dessa diferença, mas lançando sem­
pre a nossa inteligência no infinito, repousaríamos, enfim, exaustos,
num Ingênito, que haveríamos de chamar a causa de tudo. Porven­
tura, pergunte eu, ignoravam estas coisas Platão e Pitágoras, os dois
DIÁLOGO COM TRIFÃO 75

grandes sábios, que foram para nós como um forte muro filosófico
e um apoio seguro?
— Não me importo, disse ele, se Platão ou Pitágoras, ou qual­
quer outro pense assim. Pois a verdade é esta; e nela poderás instruir-te.
A alma ou é a vida cu tem vida. Se é a vida, há de fazer outra
coisa viver, e não a si mesma, como o movimento antes move a
um outro que a si mesmo. No entanto, ninguém há de negar que a
alma vive; mas se vive, não vive porque seja a própria vida, mas
porque participa da vida. O ser por participação difere daquele do
qual participa. A alma participa da vida porque Deus quer que ela
viva. Portanto, se alguma vez Deus quiser que não viva, deixará de
participar da vida. A alma não é propriamente a vida, como Deus é.
Como o homem, que não aparece sempre c mesmo (pois nem sem­
pre o corpo está junto à alma, mas quando se torna necessário rcmpe-
-se esta harmonia, a alma abandona o corpo, e o homem já não exis­
te) assim também a alma: quando for necessário que já não exista,
há de abandoná-la o espírito vital e deixará de existir, voltando no­
vamente para onde foi tirada.
— Q)m que mestre poder-se-á doravante aprender, pergunto, se
nem ao menos esses disseram a verdade?
— Existiram, muito antes de todos estes que se dizem filósofos, 120
uns homens felizes e justes, aos quais Deus amava. Falaram movidos
pelo Espírito divino, e predisseram acontecimentos futuros que agora
se realizaram. Nós os chamamos Profetas. Eles foram os únicos a
contemplar a verdade e anunciá-la aos homens. Ninguém os fazia te­
mer, ninguém os confundia. Nunca foram vencidos pela ambição.
Limitavam-se a dizer o que haviam visto e ouvido, cheios do Espírito
Santo. Os seus escritos foram conservados até hoje, e quem os con­
sulta aprende muito no que diz respeito aos princípios, aos termos
e a todas as outras questões que um filósofo tem de tratar, inas des-
de que creia neles. Quando falavam não faziam uso de demonstração
filosófica, pois na qualidade de testemunhas fidedignas da Verdade
estavam acima de toda demonstração. Porém os fates que acontece­
ram e continuam a acontecer obrigam-nos a acreditar no que disseram,
ainda que disso fossem dignos já pelos milagres que realizaram, e por­
que davam glória ao Deus, Pai e Criador de todas as coisas, anuncian­
do aos homens o Cristo, seu Filhó e enviado. Milagres tais nunca
fizeram nem hão de fazer cs falsos profetas, cheios de espírito da
mentira e da imundície, se bem que ousem produzir alguns fenôme­
nos prodigiosos para aterrar os homens, e glorificar os espíritos do
mal e cs demônios.
Tu, porém, antes de tudo, pede que te sejam abertas as portas 121
da luz, porque só pede perceber e compreender estas coisas aquele
a quem Deus e seu Cristo concederam a inteligência.
Depois de me ter dito todas estas coisas e ainda muitas outras
que não posso repetir por faltar-me tempo, deixou-me o ancião, reco-
76 SÃO JU S T IN O

mendando que continuasse por mim mesmo a pensar sobre o assunto.


Nunca mais o vi, mas logo se acendeu um fogo em minha alma, pene-
trcu-me um grande entusiasmo peles Profetas, e pelos homens que
são amigos de Cristo. Refletindo comigo mesmo sobre as palavras do
ancião, acabei achando que eram a única filosofia segura e conveniente.
Assim, posso dizer que por causa desta filosofia também eu sou filó­
sofo. Quisera è(ue todos os homens, tomados do mesmo entusiasmo
que eu, não se apartassem dos ensinamentos do Salvador. Suas pala­
vras sãc fortes e temíveis, capazes de persuadir os que andam des­
viados do caminho reto; e contudo um suave descanso para os que as
meditam. Se portanto te interessa tua própria pessoa, e desejas a sal­
vação, já que tens fé em Deus e não és completamente um estranho,
podes alcançar a felicidade, desde que reconheças a Cristo e sejas
iniciado.

DIÁLOGO COM TRIFÃO


(Cap. 94-100: P.G. 6, 701ss)

122 Dize-me: — Não foi Deus que proibiu, por Moisés, fazer-se
imagem ou representação do que há no céu ou na terra? E no entanto
ele mesmo fez Moisés fabricar no deserto a serpente de bronze e a
pôr como sinal, por meio do qual se curavam os que tinham sido
mordidos pelas serpentes. E não vamos dizer que Deus seja culpado
de injustiça. Ele estava anunciando um mistério: o de que destruiria o
poder da serpente, responsável pela transgressão de Adão. Anunciava
a salvação para os que crêem naquele que estava figurado pelo sinal,
isto é, naquele que havia de ser crucificado e os livraria das morde­
duras da serpente: das más ações, idolatrias e iniqüidades. Do contrá­
rio, explicai-me por que Moisés erigiu como sinal a serpente de
bronze e ordenou fosse olhada pelos que eram mordidos, ficando eles
curados. E isso depois de proibir a fabricação de qualquer imagem.
Então, outro (interlocutor) dos que tinham vindo no segundo
dia, assim falou:
— Tens razão e não podemos achar outra explicação. Eu mes­
mo perguntei muitas vezes a nossos rabinos sobre isso e nenhum sou­
be explicá-lo. Continua, pois, tua exposição e a escutaremos como
a revelação de um mistério, porque até os ensinamentos dos profetas
podem ser desnaturados.
Prossegui:
— Assim como Deus mandou estabelecer c sinal da serpente de
bronze e não tem culpa nela, assim há na Lei a maldição contra os que
morrem crucificados e, não obstante, ela não recai sobre o Cristo de
Deus, por quem Deus salva todes os que cometeram ações dignas de
maldição.
DIÁLOGO COM TRIFÃO 77

Na realidade, todo o gênero humano se encontra debaixo da 123


maldição. Segundo a Lei de Moisés, fchama-se maldito aquele que
não persevera no cumprimento das prescrições da Lei; ora, ninguém
as cumpriu exatamente, como vós mesmos haveis de concordar.
Uns observaram as prescrições mais que outros. E se os que estão
sob a Lei estão evidentemente sob a maldição, por não a obser­
varem inteiramente, quanto mais as nações entregues à idolatria, à
corrupção dos menores e aos males que praticam? Se pois o
Pai do universo quis que seu Cristo carregasse, por amor ao gênero
humano, as maldições de todos, sabendo que o havia de ressuscitar
depois de crucificado e morto, por que falais, como de um maldito,
daquele que se dignou padecer tudo isso segundo a vontade do Pai?
Antes chorásseis por vós mesmos! Porque se é certo que foi seu pró­
prio Pai quem fez que elé tanto sofresse por amor do gênero humano,
não foi para servir ao desígnio de Deus que o fizestes sofrer, da
mesma forma que não era por piedade que matáveis os profetas. E
não digais: “Se o Pai quis que Cristo sofresse, a fim de curar, por
suas chagas, o gênero humano, então nós não cometemos nenhum
pecado”. Se o dizeis arrependendo-vos de vossos pecados, reconhecen­
do o Cristo e observando seus preceitos, digo-vos de antemão esta­
rem perdoados vossos pecados. Mas se maldizeis a ele e aos que
nele crêem, se os mandais matar — quando o podeis — como não
sereis impugnados de terdes lançado vossas mãos sobre ele, de terdes
agido como homens injustos, pecadores, extremamente obstinados e
insentatos?
, A Lei, que reza: “maldito quem está preso no madeiro” *,
reforça nossa esperança no Cristo crucificado, não porque Deus mal­
diga a esse crucificado, mas porque predisse o que haveríeis de fazei,
vós e vossos semelhantes, ignorando ser Jesus aquele que existe antes |
de todas as coisas, aquele que devia vir como sacerdote eterno de
Deus, rei e Messias.

Não foi por acaso que Moisés, quando Or e Aarão lhe susten- 124
tavam as mãos, se deixou ficar nessa postura até a tard e2. Pois o
Senhor também ficcu até a tarde sobre o lenho da cruz, tendo sido
ao entardecer que o sepultaram, e depcis ressuscitou, ao terceiro
dia.
Foi isto expresso pela boca de Davi: “Minha voz clamou
pelo Senhor e ele me ouviu de sua santa montanha. Adormeci e dor­
mi, em seguida me acordei, pois o Senhor me protegeu” 3. Também
por boca de Isaías foi dito de que modo ele devia morrer: “Eu
estendi minhas mãos sobre um povo incrédulo e contraditor, sobre
gente que não andava no bom caminho” 4. De sua futura ressurreição,

1 D t 2 1 ,2 3 . 2 E x 1 7 ,1 2 . 3 SI 3,5s.
diz o mesmo Isaías: “Seu túmulo foi retirado do meio dos homens” 5
E ainda: “Darei os ricos em troca de sua m orte” 6. ,
Em outras passagens, Davi fala da paixão e da cruz numa mis:
tericsa comparação: “Transpassaram minhas mãos e meus pés, com
taram todos os meus ossos. Eles me observaram e contemplaram!.
Dividiram entre si minhas vestes e lançaram sorte sobre minha túni­
ca” 7. Com" efeito, quando o crucificaram, perfuraram com cravpf
suas mãos e pés, repartiram suas vestes, tiraram sorte sobre as que
queriam escolher. ,n
Este Salmo pretendeis, em vossa cegueira, que não se aplique iip
Cristo, e não vedes que jamais em vosso povo se chamou rei
alguém cujas mães e pés tenham sido transpassados, morrendo neste
mistério — refiro-me à crucifixão — senão unicamente Jesus. rA
................ .................................................................................................................................................................................................. ;-.l

125 Vou, pois, demonstrar-vos que todo este Salmo foi dito em 're­
lação a Cristo, retomando alguns trechos. Suas palavras iniciâiá*
“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” anunciaraüd
desde os tempos antigos o que seria dito por Cristo. Com efeito;;
ao ser crucificado, ele bradou: “Meu Deus, meu Deus, por que;:tó |
abandonaste? ” 8 E as palavras seguintes aludem também ao qu^’-ell
haveria de realizar: “Longe de minha salvação as palavras dé niêtiS
pecados. Meu Deus, clamo de dia e não me ouvis; durante a nòitl
— e é coisa que não ignoro” 9. Foi assim que na noite em que ia;áêl
crucificado, tomando consigo três de seus discípulos, dirigiu-sé;Í|
monte das Oliveiras, situado junto ao templo de Jerusalém é $1
orou, dizendo: “Pai, se possível, passa de mim este cálice”. E poqiqp:
depois prosseguiu em sua oração: “Não seja feito ccmo eu quéfõ|
mas como tu queres” 10, mostrando em tudo isso ser homem passíveis
E para que ninguém objetasse: “então ignorava que haveria de so­
frer! ” acrescenta-se no Salmo: “e é coisa que não ignoro”. Da mésj
ma forma, Deus nada ignorava ao perguntar a Adão onde estava, òü
a Caim onde estava Abel, apenas querendo envergonhar cada um pe­
lo que fizera e para que até nós chegasse a consignação de tudo;
nas Escrituras; assim também Jesus manifestou não sua ignorância,
mas a dos que pensavam que ele não fosse o Cristo e supunham que
morreria e permaneceria na região da morte como homem comum.
O que segue: “Entretanto, tu habitas em teu santuário, ó glóm
de Israel!” 11 significava que ele haveria de realizar coisas dignas dé

4 h 65,2.
? I s 5 7 ,2 .
6 I s 5 3 ,9 .
7 SI 2 1 .
8 Cf. M t 27,46; Mc 15,34.
9 SI 21,2-3. Na tradução da Bíblia de Jerusalém: “durante a noite, e não há
silêncio para mim”.
10 M t 2 6 ,3 9 . l i SI 2 1 ,4 .
DIÁLOGO COM TRIFÃO 79

louvor e admiração, que após sua crucifixão haveria de ressuscitar 126


ao terceiro dia dentre os mortes, o que ele deve a seu P a i12. Por­
que já demonstrei que Cristo recebe os nomes de Jacó e Israel; e não
só na bênção de José e de Judá mostrei estarem proclamados miste-
riosamente os eventos de sua vida, mas também no Evangelho está
escrito que ele disse: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém
jçonhece o Pai senão o Filho, e ninguém conhece o Filho senão o Pai
:;e aqueles a quem o Filho o revelar” 13. Foi-nos revelado, pois, tudo
o que por sua graça nós aprendemos das Escrituras; sabemos ser
èle “o primogênito de Deus, anterior a todas as criaturas” 14, o
filho dos patriarcas, pois fez-se homem, sem formosura, sem beleza,
padecente15, assumindo a carne por meio de uma Virgem da linha­
gem dos patriarcas.
"Ele mesmo, em seus discursos, dizia ser preciso que “o Filho
IqO homem sofresse muito, fosse rejeitado pelos fariseus e escribas,
lâepois. crucificado, ressuscitando porém ao terceiro dia” 16. Dizia-se
jj&ftahto filho do homem, seja em razão de seu nascimento de uma
pyirgem que, como assinalei, era da raça de Davi, de Jacó, de Isaac
de Abraão, seja porque o próprio Adão era o pai destes que
I ^numerei e de quem Maria descende: pois sabemos que os pais das
fldulheres são também os pais dos filhos que elas geram.
A um de seus discípulos, que por revelação do Pai o reconhecera 127
ÍÉP; nome
çómo Cristo Filho de Deus, e que se chamava Simão, ele deu
de Pedro. Vemo-lo ainda chamado Filho de Deus nas
píemórias dos apóstolos, e como tal o confessamos, entendendo que
pjüocedeüí do Pai antes de todas as criaturas, pelo seu poder e
|fqntade. É também designado como Sabedoria, Dia, Oriente, Espada,
gédra, Vara, Jacó, Israel, e ainda de outras maneiras, nas pala-
ívras dos profetas.
Entendemos enfim que se fez homem por meio de uma Virgem, 4
sorte a ser finalizada a desobediência, oriunda dá serpente, por ali
mesmo onde havia começado. Eva era virgem e incorrupta; conce­
bendo a palavra da serpente, gerou a desobediência e a morte. Á
Virgem Maria, porém, concebeu fé e alegria quando o anjo Gabriel
lhe anunciou a bca nova de que o Espírito do Senhor viria sobre
ela, a Força do Altíssimo a cobriria com sombra, de modo que o
Santo, que dela nasceria, seria o Filho de Deus. Então respondeu
èla: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” 17. Da Virgem nasceu,
pois, Jesus, de quem falam tantas Escrituras, como demonstramos,
aquele por quem Deus destrói a serpente, e os anjòs e homens que
a elá se assemelham, libertando da morte os que se convertem das
obras más e nele crêem.

12 Cf. Jo 10,18. 13 Mt 11,22. M Q 1,15-17.


13 Cf. Is 53,2s. 16 Cf. Mc 8,31 e paralelos. n Lc 1,38.
MELITAO DE SARDES
(t C. 177)

Bispo de Sardes, na Lídia, considerado em seu tempo um dos “grandes lumi­


nares” da Ásia Menor. Escreveu, entre outras obras, uma Apologia, dirigida a Marco
Aurélio (c. 172). Recentemente foram descobertos papiros do século IV com o texto
quase completo de um Sermão “Sobre a Páscoa”, antes só conservado e cor.htcdo
parceladamente. Deve ter sido redigido entre 160-170, no estilo declamatório de um
“praeconium” (como o “Exsultet” do Sábado santo) mais do que de homilia. De
grande valor como expressão de fé cristológica. As apóstrofes a Israel devém ser
apreciadas no enfoque religioso e no contexto da época.
Edição bilíngue em SC, voL 123, com introdução, texto crítico, tradução fran­
cesa e notas de O. Perler.

SOBRE A PÁSCOA
(S.C. 123)

O m istério da Páscoa, a novidade do V erbo encarnado


(ibid. 1-11)

128 Foi lida a Escritura a respeito do êxodo hebreu, foram expli­


cadas as palavras do mistério: como a ovelha foi imolada e o povo
foi salvo.
Compreendei, pois, caríssimos! É assim
novo e antigo,
eterno e temporal,
corruptível e incorruptível,
mortal e imortal
o mistério da Páscoa:
antigo segundo a Lei,
novo segundo o Verbo;
temporal na figura,
eterno na graça;
corruptível pela imolação da ovelha,
incorruptível pela vida do Senhor;
mortal pela sepultura, na terra,
imortal pela ressurreição dentre os mortos.
Antiga a Lei, novo o Verbo;
temporal a figura, eterna a dádiva;
corruptível a ovelha, incorruptível o Senhor,
SOBRB A PÁSCOA 81

o qual, imolado como cordeiro, ressurgiu como Deus.


Pois, como a ovelha, foi levado ao matadouro,
mas não era ovelha;
como o cordeiro, não abriu a boca,
mas não era cordeiro.
Passou a figura, persiste a realidade.
Em vez do cordeiro, Deus presente,
em vez da ovelha, um homem,
e neste homem, Cristo, aquele que sustém todas as coisas.
Assim, o sacrifício da ovelha,
e a solenidade da Páscoa,
e a letra da Lei,
cederam lugar ao Cristo Jesus,
por causa do qual tudo sucedera na antiga Lei,
e muito mais sucede na nova disposição.
Pois a Lei se converteu em Verbo, o antigo em novo,
ambos saídos de Sião, e de Jerusalém.
O mandamento se converteu em dádiva,
a figura em realidade,
o cordeiro em Filho,
a ovelha em homem,
o homem em Deus.
Com efeito, aquele que nascera como Filho,
e fora conduzido como cordeiro,
sacrificado como ovelha,
sepultado como homem,
ressuscitou dentre os mortos como Deus,
sendo por natureza Deus e homem.
Ele é tudo:
enquanto julga, é lei;
enquanto ensina, Verbo;
enquanto gera, pai;
enquanto sepultado, homem;
enquanto ressurge, Deus;
enquanto gerado, Filho;
enquanto padece, ovelha;
ele, Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.
Tal é o mistério da Páscoa, como foi descrito na Lei
e como o acabamos de ler.

A s figuras do A ntigo T estamento, suplantadas pela realidade do N ovo


(39-45)

A salvação do Senhor e a realidade


foram prefiguradas no povo (judeu),
as prescrições do Evangelho prenunciadas pela Lei.
82 M ELITÃ O DE SARDES

O povo era como o esboço de um plano,


a Lei como a letra de uma parábola;
mas o Evangelho é a explicação da Lei e seu cumprimento,
e a Igreja o lugar onde isso se realiza.
O que existia como figura era valioso
antes que ocorresse a realidade,
maravilhosa a parábola antes que viesse a explicação.
O povo tinha seu valor antes que se estabelecesse a Igreja,
a Lei era admirável antes que refulgisse o Evangelho.
Mas quando surgiu a Igreja e se apresentou o Evangelho,
esvaziou-se a figura, sua força passou para a realidade,
a Lei se cumpriu, transfundiu-se no Evangelho. . .
O povo perdeu razão de ser quando veio a Igreja,
a imagem se fez abolida quando apareceu o Senhor.
O que antes era valioso perdeu seu valor,
frente à manifestação do que era realmente valioso por natureza.
Valioso era antes o sacrifício da ovelha,
agora perdeu o valor, por causa da vida do Senhor.
Valiosa era a morte da ovelha,
agora perdeu o valor, por causa da salvação do Senhor.
Valioso era o sangue da ovelha,
mas perdeu o valor, por causa do Espírito do Senhor.
Valioso era o cordeiro que não abria a boca,
mas perdeu o valor, por causa do Filho sem mácula.
Valioso era o templo terreno,
mas perdeu o valor, por causa do Cristo celeste.
Valiosa era a Jerusalém de baixo,
mas perdeu o valor, por causa da Jerusalém do alto.
Valiosa era a pequena herança,
mas perdeu o valor por causa da amplitude do dom.
Porque não foi em parte alguma da terra,
em nenhuma faixa estreita da terra
que se estabeleceu a glória de Deus,
e sim por todos os confins se derramou seu dom,
em toda parte armou sua tenda o Deus onipotente.
Por Jesus Cristo, a quem seja dada glória pelos séculos. Amém.

O pecado do homem
(47-56)

130 Deus, no princípio, tendo criado pelo Verbo o céu, a terra e


tudo o que neles se encerra, modelou do barro o homem e comuni­
cou-lhe seu sopro. Cclccou-o em seguida num jardim voltado para
o Oriente, o Eden, para que ali vivesse feliz. E deu-lhe um manda­
mento . . .
SOBRE A PÁSCOA 83

Mas o homem, sendo por natureza capaz do bem e do mal, co­


mo uma porção de terra capaz de receber sementes boas e más, es­
cutou ac conselheiro hostil e, tomando o fruto da árvore, transgrediu
ò mandamento, desobedeceu a Deus.
Por conseguinte, foi deixado neste mundo, como numa prisão de
condenados. Após muitos anos e após gerar numerosa prole, voltou
à terra, de cuja árvore colhera o fruto, legando a seus filhos esta
herança.. .
não a pureza, mas a luxúria,
não a imortalidade, mas a corrupção,
não a hcnra, mas a desonra,
não a liberdade, mas a escravidão,
não a realeza, mas a tirania,
não a vida, mas a morte,
não a salvação, mas a perdição.

Nova e terrível tomcu-se a ruína dos homens sobre a terra. Eis 131
o que lhes aconteceu: foram tiranizados pelo pecado, e levados a
lugares dé concupiscência, para viverem assaltados por prazeres insa­
ciáveis, pelo adultério, a fornicação, a impureza, os maus desejos, a
ccbiçà, ós homicídios, o derramamento de sangue, a tirania da mal­
dade e da injustiça. Era o pai lançando a espada contra o filho, o
filho erguendo a mão contra o pai, o ímpio golpeando a lactante, o
irmão ferindo seu irmão, o hospedeiro injuriando o hóspede, o
amigo assassinando seu amigo, o homem degolando o semelhante.
Todos se transformaram na terra em homicidas, fratricidas, parrici­
das, infanticidas. . . '
E com isso exultava o Pecado: colaborador da Morte, prece- *
dia-a nas almas dos homens e preparavá-lhe como alimento os cor­
pos mortos. Imprimia em toda alma sua marca, para fazer morrer os
que a traziam.
Toda carne, pois, caiu sob o pecado,
e todo corpo sob a morte.
Toda alma foi arrancada de sua morada de carne
e o que foi tirado da terra se dissolveu na terra,
o que foi dado por Deus se encarcerou no Hades.
Estava destruída a bela harmonia,
desfeito o belo corpo.
O homem dividido sob o poder da morte,
estranha desgraça a aprisioná-lò:
Era arrastado como cativo pelas sombras da morte,
jazia abandonada a imagem do Pai.
Eis a razão por que se cumpriu o mistério da Páscoa
no corpo do Senhor.
84 M ELITÃ O DE SARDES

O desígnio salvador em Cristo


(57-60; 66; 68; 70-71; 81-85; 92-93)

132 O Senhor havia ordenado de antemão seus próprios padecimen­


tos nos patriarcas, nos profetas e em todo o povo, pondo como seu
selo a Lei e os profetas. Pois o que devia realizar-se de modo inau­
dito e grandioso'estava preparado desde muito, a fim de que ao su­
ceder fosse crido, depois de tão vaticinado ( . . . )
Antigo e novo o mistério do Senhor;
antigo na figura, novo no dom.
Se vês a figura, verás a realidade ao longo de sua atuação.
Se queres contemplar o mistério do Senhor verás
Abel, assassinado como ele,
Isaac, aprisionado como ele,
José, vendido como ele,
Moisés, exposto como ele,
Davi, perseguido como ele,
os profetas padecendo como ele e por causa dele.
Contempla também o cordeiro degolado na terra egípcia,
que abateu o Egito e salvou a Israel por seu sangue ( . . . )
Aquele que veio dos céus à terra por causa do homem que sofria,
e se revestiu do hemem nas entranhas de uma Virgem,
aparecendo como homem.
Aquele que assumiu os sofrimentos de quem sofria,
tomando um corpo capaz de sofrer,
aquele que anulou os sofrimentos da carne,
destruindo ccm seu espírito imortal a morte homicida ( . . . )
Aquele que nos tirou da escravidão para a liberdade,
das trevas para a luz,
da morte para a vida,
da tirania para o reino eterno.
Que fez de nós um sacerdócio novo
e um povo escolhido para sempre,
Ele, a Páscoa de nossa salvação. ..
Ele, que se encarnou numa Virgem,
se deixou suspender na cruz,
foi sepultado na terra,
ressuscitou dos mortos,
foi arrebatado aos céus.
Ele, o cordeiro emudecido,
o cordeiro imolado,
nascido de Maria, a ovelha bela,
o cordeiro levado do rebanho ao matadouro,
sacrificado à tarde, sepultado à noite.
Não lhe quebraram os ossos no madeiro,
SOBRE A PÁSCOA 85

na terra não sofreu a corrupção,


mas ressurgiu dentre os mortos,
ressuscitou o homem das profundezas do sepulcro.
Ele, entregue à morte. Onde? No meio de Jerusalém.
Per que?
Porque curou os coxos,
purificou os leprosos,
trouxe a luz aos cegos,
despertou os mortos.
Por isto padeceu. . .

Por que cometeste, ó Israel, tão grande injustiça, 133


entregando teu Senhor a tais sofrimentos,
ele, teu amo,
ele, que te plasmou,
te criou,
te honrou,
te chamou Israel?
Não te mostraste “ Israel” pois não viste a Deus,
não reconheceste o Senhor,
não soubeste ser ele o primogênito de Deus,
aquele que foi gerado antes da estrela matutina,
aquele que fez brotar a luz,
fez brilhar o dia,
separou as trevas,
firmou o primeiro fundamento,
suspendeu a terra,
secou o abismo, í
estendeu o céu,
organizou o mundo,
dispôs no alto os astros,
fez resplandecer as estrelas,
fez os anjos celestiais,
fixou nas alturas os tronos,
modelou na terra o homem!
Ele, o que te escolheu e te guiou de Adão a Noé,
de Noé a Abraão,
de Abraão a Isaac, a Jacó e aos patriarcas;
aquele que te conduziu ao Egito e te protegeu e sustentou,
que iluminou teu caminho com a coluna de fogo,
te ocultou sob a nuvem,
e dividiu o mar Vermelho para atravessares suas águas.
Que dispersou teu inimigo,
te deu o maná do alto,
e a água da pedra.
Que te deu a Lei em Horeb,
e te fez herdar a terra,
que te enviou os profetas e suscitou teus reis ( . . . )
Verdadeiramente é amarga para ti esta figura dos ázimos,
conforme está escrito:
“Comereis pães ázimos com ervas amargas”.
Amargos para ti os cravos que afiaste,
amarga a língua que aguçaste,
amargas as falsas testemunhas que propuseste,
amargas as cordas que preparaste,
amarges os açoites que descarregaste,
amargo para ti fói Judas, a quem pagaste,
amargo Herodes a quem obedeceste,
amargo Cáifás, em quem confiaste,
amargo o fel que ofereceste,
o vinagre que cultivaste,
amargos os espinhos que ajuntaste,
amargas as mãos que ensangüentaste.
Entregaste teu Senhor à morte, no meio de Jerusalém. v>

O triunfo de Cristo
(100-105)

134 Ele, o Senhor, revestido do homem,


padecente, pelo homem que sofria,
atado pelo homem prisioneiro,
julgado em prol do culpado,
sepultado pelo que jazia na terra,
ressurgiu dentre os mortos e clamou em alta voz:
“Quem se levantará em juízo contra mim?
Venha defrontar-se comigo!
Eu libertei o condenado,
vivifiquei o morto,
reergui o sepultado.
Quem me irá contradizer?
Eu, o Cristo, destruí a morte,
triunfei do inimigo,
esmaguei o inferno,
manietei o forte,
arrebatei o homem para as alturas des céus.
Eu, o Cristo!
Vinde, pois, famílias dos homens manchadas por pecados,
recebei o perdão dos pecados!
Pois sou vosso perdão,
eu, a Páscoa da salvação,
SOBRE A PÁSCOA
o cordeiro imolado por vós,
a vossa redenção,
a vossa vida,
a vossa ressurreição,
a vossa luz,
a vossa salvação,
o vosso rei.
Eu vos elevarei à sublimidade dos céus,
e vos mostrarei c Pai que existe desde os séculos,
vos ressuscitarei por minha destra”.
A ele, o Cristo,
o Alfa e o Ômega,
o começo e o fim,
o inenarrável começo, o incompreensível fim,
o Rei,
a ele, Jesus,
o Chefe,
o Senhor,
o que ressurgiu dentre os mortos,
* /<• o que está assentado à direita do Pai,
o que conduz ao Pai e é conduzido pelo Pai,
a ele glória e poder pelos séculos. Amém.
OS MÁRTIRES DE LIÃO

Entre as roais antigas Atas de mártires está a Carta das igrejas de Lião e Viena
na Gália) às igrejas da Ásia e Frigia, sobre a perseguição ocorrida em Lião em
77-176. A Carta está conservada na História eclesiástica de Eusébio e constitui admi­
rável documento do espírito dos antigos mártires.

ATAS DO SEU M ARTÍRIO


(Texto em Eus., Hist. Eccles., V, 1-2: P.G. 20, 408ss; BAC, 349)

135 Os servos de Cristo residentes em Viena e Lião, na Gália, a


seus irmãos da Ásia e da Frigia, portadores da mesma fé e espe­
rança na redenção: paz, graça e glória por Deus Pai e por Jesus
Cristo, nosso Senhor.

A perseguição foi de uma violência tal neste país, a raiva dos pa­
gãos tão grande centra os santos, e nossos bem-aventurados mártires
sofreram tanto, que nós não saberíamos encontrar as palavras neces­
sárias para vos fazer uma descrição completa do que ocorreu. Pois
fei ccm todas as forças que entrou em ação o adversário, o diabo, pre­
parando assim um futuro reino nos infernos, onde possa desenca­
dear sua violência. Por toda parte esteve induzindo os seus ao combate
centra os servidores de Deus. Não somente nos rechaçaram das casas,
dos banhos e da praça pública, mas nos proibiram de aparecer em
qualquer parte.
Entretanto, a graça de Deus lutou por nós, afastando do perigo
os tímidos e opondo ao adversário colunas sólidas da fé, capazes
de resistir sem vacilar e de fazer voltar contra eles todo o choque do
Maligno. Os defensores caminharam para o martírio e tiveram de su­
portar ultrajes e suplícios, mas não se detiveram por tão pouco,
apressaram o passo para o Cristo e revelaram ao mundo que os so­
frimentos daqui de baixo nada são em comparação à glória que nos
espera lá no alto.
Primeiramente suportaram valentemente as brutalidades da mul­
tidão. Foram batidos, insultados, importunados. Seus bens foram
pilhados, atiraram-lhes pedras, encarceram-nos juntos. Eles suportaram
ATAS CO SEU M ARTÍRIO 89

tudo que uma populaça desenfreada quisesse fazer sofrer a odiosos ini­
migos. Em seguida fizeram-nos subir ao fórum. Lá, o tribuno e os
magistrados da cidade os interrogaram perante todos, e eles, confes­
sando sua religião, foram aprisionados, esperando a chegada do go­
vernador.
Quando este chegou, fê-los comparecer a sua presença e então 136
ficaram sujeitos às crueldades habituais contra os cristãos. Ora, um
de nossos irmãos, Vetius Epagathus, estava presente. Homem im­
pregnado de amor divino e de caridade, e tão perfeito que, apesar de
sua juventude, merecia o elogio dirigido ao sacerdote Zacarias: “an­
dou segundo as ordens e os preceitos do Senhor, e sua vida foi sem
mácula”. Sempre pronto a devotar-se pelos outros, cheio de zelo ao
serviço de Deus, possuía o ardor do Espírito. Um homem desta têmpera
não pôde suportar tantas ilegalidades no processo dos cristãos. Num
cúmulo de indignação, ele reclamou c direito de tomar a palavra,
para defender seus irmãos e provar que entre nós não há impiedade,
nem negação de Deus. Mas as pessoas que rodeavam o tribunal lan­
çaram clamores centra ele — era um homem muito conhecido —
e o governador rejeitou seu pedido, embora tão legítimo. Perguntou-
-lhe somente se era cristão. Ele, então, com voz forte, proclamou
ser cristão. O governador uniu-o ao número de mártires. Ele pensava
que seria o “paráclito” des cristãos, mas na verdade trazia consigo o
Paráclito, o Espírito de Zacarias. Havia-o demonstrado muito bem nes­
se excesso de caridade com que arriscara a própria vida para sal­
var seus irmãos.
Era e ainda é um verdadeiro discípulo de Cristo, que segue o
Cordeiro onde ele for.
A partir deste momento, estabeleceu-se uma cisão entre os cris- 137
tãos. Uns pareciam prontos para o martírio; cheios de ardor, corí-"*
fessaram sua fé até ao fim. Mas viu-se que não estavam nem
prontos, nem exercitados; débeis ainda, não podiam sustentar o es­
forço de um grande combate. Uma dezena deles falhou. Isso nos
causou profunda tristeza, grande dor, e quebrou o entusiasmo dos
outros que não tinham sido ainda presos e que, ao preço de mil
perigos, assistiam aos mártires sem deles se afastar. Nós fomos então
todos tomados de viva angústia, na incerteza que planava sobre a
confissão dos seguintes. Os suplícios que se lhes infligiam deixavam-
-nos sem pavor, mas, enquanto a coisa não chegava ao fim, nós
temíamos as deserções.
Entrementes, as prisões continuavam todos os dias, e os que
eram dignos vinham preencher as lacunas deixadas pelos apóstatas.
Foi assim que se encontraram reunidos na prisão todos os cristãos
fervorosos das duas Igrejas, os principais sustentáculos da religião em
nossos países. Foram presos, também, alguns pagãos, servidores dos
nossos, pois o governador havia dado ordem oficial de procurar-nos
a todos. Essas pessoas, por influência pérfida de Satanás, tomaram-se
90 OS M ÁRTIRES DE LIÃO

de medo ante os tormentos infligidos aos santos. Impelidos pelos


soldados, caluniaram-nos, dizendo que fazíamos refeições dignas de
Tiestes, que éramos incestuosos como Édipo 1. Acusavam-nos de hor­
rores tão monstruosos que não os podíamos mencionar, nem mesmo
imaginá-los ou crer que seres humanos os tenham jamais cometido.
Esses rumçres tiveram crédito e todos puseram-se em raiva con­
tra nós. Pagãos que até então se haviam mostrado moderados a nos­
so respeito, por motivos de parentesco, puseram-se a odiar-nos e ran­
geram os dentes contra nós. Era a realização da palavra do Se­
nhor: “Tempo virá em que qualquer que vos matar estará pensando
servir a Deus”.
138 Os santos mártires não fizeram mais, desde então, senão sofrer
suplícios indescritíveis. Satanás ambicionava fazê-los proferir, tam­
bém eles, alguma blasfêmia.
Levada ao paroxismo, a cólera da populaça, do governador e
dos soldados abateu-se sobre o diácono Sanctus de Viena, sobre Ma-
turus, ainda simples neófito, mas valente atleta, sobre Átala, originá­
rio de Pérgamo, que havia sido sempre a coluna e o sustentáculo dos
cristãos daqui, e enfim, sobre Blandina. Por ela, Cristo nos ensinou
que aquilo que é vil aos olhos dos homens, sem aparência e de pou­
co preço, é julgado digno de grande glória junto a Deus, quando é ani­
mado de amor por ele, amor que não se contenta de fórmulas vãs>
mas se prova per atos. Nós todos temíamos por Blandina; e sua se­
nhora segunda a carne, que combatia nas fileiras dos mártires, temia
por sua serva, em razão de sua frágil compleição, suponde que lhe
faltasse firmeza para confessar a fé. Ora, ela se mostrou tão corajosa,
a pento de cansar e desencorajar os carrascos.
Desde pela manhã tiveram estes que se revesar para torturá-la
cada vez mais. À tarde confessaram-se vencidos, pois não tinham mais
nada a fazer-lhe. Espantavam-se que ela tivesse ainda um sopro de
vida, tanto seu corpo estava despedaçado e transpassado; é afir­
mavam que um só destes suplícios seria suficiente para causar-lhe a
morte. Mas a bem-aventurada, como um valoroso atleta, renovava as
forças ao confessar a fé. Esta lhe era um conforto em seus sofri­
mentos, era-lhe um alívio o dizer: “Eu sou cristã e entre nós não
há nada de m al”.
139 Sanctus, superior a tudo, também suportou com valor sobre-
-humano todas as torturas dos carrascos. Os ímpios esperavam que
tormentos prolongados e cruéis lhe arrancariam a confissão de algum
crime. Ele cs enfrentou com inquebrantável coragem. Não lhes disse
o nome, nem de que país vinha, nem sua cidade natal, nem se era
escravo ou livre; mas a todas as perguntas respondia em latim: “Sou
cristão”. Foi a única resposta que ele repetiu cada vez, em lugar do

1 A mesma acusaçio é referida por Atenágoras: cf. adiante. Tiestes, conforme a


mitologia grega, comeu em banquete os próprios filhos, sem o saber.
ATAS DO SEU M ARTÍRIO 91
nome, da cidade, da raça e do resto. Os pagãos não conseguiram
mais nada.
O governador e os carrascos rivalizavam então em crueldade con­
tra ele. E quando as torturas habituais foram esgotadas, fizeram aque­
cer lâminas de bronze e lhas aplicaram, ardentes,, nos pontos mais
sensíveis do corpo. Estas partes de seu corpo queimavam, mas ele, sem
vacilar, permanecia inabalável e firme na afirmação de sua fé. E a
fonte celeste de água viva que brota do seio de Cristo lhe era
força e frescor. Seu pobre corpo era a prova das torturas sofridas, não
sendo mais que uma chaga e contusão, tão desconjuntado que já não
tinha a forma humana. O Cristo, que sofria nele, conquistava mag­
níficos títulos de glória, esmagando Satã, o adversário, e mostran­
do aos outros, com proveito, que nada há de temível quando reina o
amor do Pai, nada de doloroso quando se trata da glória de Cristo.
Dias após, os ímpios recomeçaram a torturar o mártir. Suas
carnes estavam inchadas e inflamadas, mas os carrascos esperavam
que, recomeçando as mesmas torturas, triunfariam sobre ele — dado
que já nem podia suportar o contato das mãos — ou então que
expiraria em meio aos tormentos, atemorizando os outros. Não
somente nadâ disso aconteceu a Sanctus mas, contra toda expecta­
tiva, seu corpo ferido se restabeleceu e se reergueu nestes novos suplí­
cios; ele retomou o aspecto de um homem e o uso de seus membros.
Pará Sanctus também, esta segunda tortura não foi tormento, mas
cura.
Biblis, uma daquelas que havia renegado a fé, parecia já ser presa 140
do diabo. Este, a fim de melhor possuí-la para a condenação, fê-la
conduzir à tortura, na esperança de fazê-la repetir as impiedades que
nos abatiam. Ela estava, com efeito, tão débil e tão pouco corajosa!
Mas eis que em meio aos tormentos, recobrou consciência e despertou ' *
de um profundo sono. A pena temporal recordou-lhe o castigo eter­
no da geena. Eis que então ousou desmentir tudo em face dos calunia­
dores: “Como, diz ela, pessoas destas comeriam crianças, pessoas
que não sabem sequer nutrir-se do sangue de animais sem razão?”
Desde então não cessou de se confessar cristã e puseram-na no grupo
dos mártires.
Estes cruéis tormentos tornavam-se, pois, sem efeito graças ao
Cristo que fortificava seus amigos. O diabo imaginou novos ardis:
amontoar os mártires em um calabouço infecto e na escuridão, os
pés violentamente separados per uma trave — até c quinto buraco;
acrescentar a isto as maldades dos carcereiros furiosos. Possuídos pelo
diabo, eles estavam mais ferozes que nunca. Assim, a maioria pereceu
asfixiada na prisão. O Senhor havia querido que estes desaparecessem
assim, para fazer brilhar melhor seu poder. Alguns, com efeito, tão
cruelmente ferides peles suplícios, que pareciam ir morrer apesar
dos maiores cuidados, levaram a melhor na prisão. Sem nenhum so­
corro humano, mas reconfortados pele Senhor, recuperavam o vigor do
92 OS M ÁRTIRES DE LIÃO

corpo e da alma, fortaleciam os outros e os encorajavam. Outros, ao


contrário, noves, que vinham presos, mas não haviam recebido em sua
carne a sagração dos suplícios, não podiam suportar o horror de ser
assim amontoados e morriam na prisão.
141 O bem-aventurado Potinc, então bispo de Lião, tinha mais de
noventa anos. De saúde muito fraca, mal podia respirar, tão gasto
estava seu corpo. Mas o arder do Espírito lhe deu forças, pois dese­
java o martírio. Arrastaram-no ac tribunal, o corpo alquebrado de
velhice e de enfermidade, a alma intacta.
Por ela devia triunfar o Cristo. Foi levado ao tribunal pelos sol­
dados. Os magistrados da cidade e toda uma populaça o acompanha­
vam, atirando-lhe insultos de todo gênero, como se ele fosse o Cristo
em pessoa. Seu testemunho de fé foi esplêndido. O governador per­
guntou-lhe qual era o deus dos cristãos. “ Se fordes digno, disse
ele, sabê-lo-eis”. Então arrastaram-no brutalmente e maltrataram-no
mais ainda. Os mais próximos davam-lhe pontapés ou socos, sem
respeito, apesar de sua idade avançada. Os que estavam mais longe
lançavam-lhe tudo que lhes caía às mãos. Cada qual pensava fazer
grave pecado não o ultrajando, pois assim vingaria seus deuses. O
mártir já mal respirava quando o jogaram na prisão. Aí morreu dois
dias depois.
Realizaram-se então cs desígnios grandiosos de Deus, e os ho­
mens conheceram a misericórdia infinita de Jesus. Nossa comuni­
dade de fiéis raramente viu tal triunfo, mas era bem segundo o espí­
rito de Cristo. Ei-lo:
142 Aqueles que haviam renegado a fé desde sua detenção ficaram
também presos com os mártires, partilhando seus sofrimentos, pois
nessas circunstâncias a apostasia nada lhes servia. Os verdadeiros con­
fessores da fé eram aprisionados como cristãos sem outro motivo de
acusação; aos outros, aprisionavam-nos como homicidas e impudicos.
Seu castigo era duas vezes mais duro que o de seus companheiros.
Estes, com efeito, encontravam um reconforto na alegria do martírio,
na esperança das promessas, no amor de Cristo e no Espírito do Pai.
Os apóstatas, ao contrário, eram torturados pelo remorso, ao ponto
de serem reconhecíveis ao passarem entre, os outros.
Os confessores caminhavam cheios de alegria, o rosto rebrilhan­
do de glória e de graça. Suas próprias correntes tornavam-se um no­
bre enfeite, como no vestido de uma noiva as franjas bordadas de
ouro. Difundiam o suave odor de Cristo, tanto que vários deles se
perguntavam se estavam perfumados. Mas os apóstatas passavam, os
olhos baixes, humilhados, repulsivos e feios. Assim, os próprios pa­
gãos os insultavam e chamavam-nos de velhacos e sujos. Acusavam-
-nos de homicídio e eles haviam ainda perdido o nome que lhes fa­
zia honra, sua glória e sua vida. Este espetáculo revigorou os outros,
e cs que ainda eram presos confessavam a fé sem hesitação, sem mais
pensar em cálculos diabólicos.
ATAS DO SEU M ARTÍRIO 93

. . . Após tantos sofrimentos, seu martírio afinal apresentou uma 143


variedade de grande beleza. Com flores de tcda espécie e de todas
as cores, teceram uma coroa e ofereceram-na ao Pai. Em troca, os
valentes atletas, vencedores de incontáveis combates, bem mereciam
a coroa magnífica da imortalidade.
Pois Maturus, Sanctus, Blandina e Átala foram conduzidos às
feras no anfiteatro para alegrar os olhos dos pagãos sem coração.
Era um dia de combate contra as feras, feito expressamente por causa
dos nossos.
Maturus e Sanctus sofreram novamente no anfiteatro toda sorte
de tormentos como se antes não tivessem sido torturados. Mas eles
eram como atletas, já vencedores do adversário em outros combates
e que travavam então a batalha decisiva pela coroa. Vieram ainda as
chicotadas, segundo os usos do país, os ferimentos das feras e tudo
que o povo delirante reclamava aos gritos provenientes de todos os
lados; enfim, a cadeira de ferro onde os corpos, tostando, exalavam um
odor de gordura. Mas os pagãos não estavam saciados. Sua raiva redo­
brava contra os mártires, querendo vencer sua resistência.
Apesar de tudo, nada puderam arrancar de Sanctus, a não ser a
confissão de fé que ele repetia desde o princípio. Para terminar, pois
a vida dos mártires resistia ainda após toda essa luta, degolaram-nos.
Nesse dia, os mártires oferecidos em espetáculo bastaram para substi­
tuir os duelos de gladiadores e suas peripécias.
Blandina, suspensa a um poste, devia servir de presa às feras de- 144
sencadeadas. Vendo-a assim, como crucificada e orando em voz alta,
os combatentes se sentiam mais valentes. Em plena luta, eles olha­
vam sua irmã e criam ver nela, com os olhos do corpo, o Cristo
crucificado por eles, a fim de assegurar aos crentes que aqueles
que sofrem por sua glória viverão para sempre com o Deus vivó7 >
Entretanto nenhuma das feras tocou Blandina naquele dia. Ti­
raram-na do poste e tornaram a levá-la para a prisão. Guarda-
vam-na para outro combate. Suas vitórias repetidas no decorrer de
tantas provações tornavam assim para a pérfida Serpente um revés
sem remédio e para nesses irmãos um aguilhão à bravura. Ela, a
pequena, a frágil, a desprezada, mas revestida de Cristo, o grande
e invencível Atleta, havia rechaçado várias vezes o Adversário. Ela
devia merecer no último combate cingir a coroa de imortalidade.
Átala também foi imperiosamente reclamado pela populaça, pois 145
era muito conhecido. Entrou na arena, pronto para a luta, seguro da
beleza de sua causa. Havia-se exercitado bravamente no exército cris­
tão e fôra sempre para nós uma testemunha da verdade. Fizeram-
-no dar a volta do anfiteatro. Levavam em sua frente um car­
taz onde se lia em latim: “Átala, o cristão”. O povo estava en­
raivecido contra ele. Mas o governador, sabendo que era cidadão
romano, fê-lo reconduzir à prisão onde se encontravam os outros
cristãos. Mandou notificar a César e esperou a resposta. Esta delonga
94 OS M ÁRTIRES DE LIÃO

não foi tempo perdido para os mártires. Sua paciência manifestava


bem a misericórdia infinita de Cristo. Nos sobreviventes vivia a
recordação dos mortes, e os mártires perdoavam os que não haviam ou­
sado ser mártires. Tudo isso constituiu grande alegria para a
Igreja, nossa mãe virginal: os filhos que ela havia suposto mortos,
recebia-os vivos. Sob a conduta dos verdadeiros mártires, a maioria
dos apóstatas experimentou novamente suas forças. Tornavam-se con­
cebidos pela segunda vez na vida da graça, a vida reacendia-se neles.
Aprendiam a confessar sua fé. E foi vivos e refortalecidos que se
apresentaram ao tribunal. Deus que em sua bondade não quer a
morte do pecador, mas seu arrependimento, os sustentava com sua
graça, quando o governador os interrogou de novo. César havia, nes­
se ínterim, respondido que fossem golpeados os obstinados e libertes
os apóstatas.
A festa solene do país acabava de começar e havia grande
afluência de estrangeiros. O governador fez trazer os bem-aventura­
dos a seu tribunal, e o cortejo desfilou, com aparato teatral, para o
prazer do povo. Após nevo interrogatório, fez decapitar os que
eram conhecidos como cidadãos romanos, e enviou os demais às feras.
Os que antes haviam renegado ao Cristo glorificaram-no então
magnificamente, confessando sua fé contra a expectativa dos pagãos.
Tinham sido interrogados à parte, cGmo pessoas a serem conquistadas,
declararam-se cristãos e foram reunidos ao grupo dos mártires.
Ficavam excluídos somente os que não haviam tido jamais qual­
quer traço de fé, que não haviam compreendido o símbolo do traje
nupcial, que não tinham o temor de Deus. Eram os filhos da perdição
que, por sua apostasia, blasfemaram contra os caminhos de Deus. To­
dos os outros permaneceram no corpo da Igreja.
146 Perto do tribunal, estava de pé certo Alexandre. Vindo da Frigia,
estabelecera-se como médico nas Gálias havia longos anos. Era univer­
salmente conhecido por seu amor a Deus e sua franqueza de lingua­
gem, e havia recebido do céu o dom do apostolado. Ora, durante os
interrogatórios, ele fazia sinais com a cabeça aos acusados, enccrajan-
dc-os a proclamar a fé. As pessoas que rodeavam o tribunal percebe­
ram que se entregava a este trabalho de gerar para a Igreja novos
filhes. O povo então, furioso de ver os antigos apóstatas confessarem
de novo o Cristo, reclamou aos berros contra Alexandre e acusou-o de
responsável por isso. O governador fê-lo comparecer e perguntou-lhe
quem era. “Cristão”, respondeu Alexandre. Furioso, o governador o
condenou às feras.
No dia seguinte, Alexandre entrava no anfiteatro com Átala. Pois
o governador, para agradar ao povo, entregava novamente Átala às
feras. Eles passaram então por todos os instrumentos de torturas ima­
ginadas para o anfiteatro e sustentaram um combate duríssimo. Enfim
foram degolados. Alexandre, sem um gemido, sem um murmúrio, en­
treteve-se tedo o tempo com Deus, no fundo do coração. Átala,
ATAS DO SEU M ARTÍRIO 95

sentado sobre a cadeira de ferro e com o corpo queimado, havia dito


em latim ao populacho, ao sentir o cheiro de gordura queimada que
subia de sua carne testada: “Vede: o que vós fazeis é comer homens.
Nós não comemos homens, e não fazemos nenhum m al”. Pergunta­
ram-lhe que nome dava a Deus. “Deus”, respondeu ele, “não tem
nome como um homem”.

Após todos estes martírios, no último dia dos embates indivi- 147
duais, Blandina fei levada de novo com Pcnticus, um jovem de uns
quinze anos. Cada dia, faziam-nos vir ao anfiteatro para lhes mostrar
os suplícios dos outros. Queriam forçá-los a jurar pelos ídolos. Sua
resistência calma e o desprezo que testemunhavam aos deuses pagãos
levantaram contra eles o furor do povo, que foi implacável ante a ju­
ventude do rapaz e perdeu todo respeito pelo sexo de Blandina.
Sujeitaram-nos a horrores e fizeram-nos passar por todo o ciclo dos
suplícios. Entre golpes, esforçavam-se per fazê-los jurar contra Deus,
mas não conseguiram. Ponticus era encorajado por sua irmã, e os
pagãos percebiam que ela o exortava e estimulava. Ele suportou
bravamente todas as torturas e entregou a alma.

A bem-aventurada Blandina foi a última. Qual nobre mãe 148


que deu entusiasmo a seus filhos e os enviou vencedores perante
o rei, ela sustentou por sua vez os mesmos combates que seus filhos
no martírio e apressou-se a reunir-se a eles. Toda contente e na ale­
gria da partida, parecia convidada a um festim de núpcias e não jo­
gada às feras. Após os chicotes, as feras, a grelha, puseram-na nurna^
rede, para ser atirada a um touro. Lançada ao ar por várias vezes* *
pelo animal, não sentia mais nada, toda na esperança das recompen­
sas prometidas, entregue à sua conversação com Cristo. Finalmente
degolaram-na, e os próprios pagãos confessaram que jamais, entre
eles, mulher alguma padecera taiítos e tão cruéis sofrimentos.

Entretanto isto não foi suficiente para saciar-lhes o furor e a 149


crueldade contra os santos. Excitados pelo diabo, que é fera, essas
tribos selvagens e bárbaras dificilmente se apaziguavam. Em seu fu­
ror, voltaram-se para os cadáveres. Vencidos, não se envergonhavam,
sendo incapazes de raciocinar como homens. Ao contrário, o re-
.vés cs enraivecia como a feras. E o governador também demonstrava
contra nós o mesmo ódio injusto. Cumpria-se assim a palavra da Es­
critura: “O ímpio mergulhará em sua impiedade, e o justo será mais
justo ainda”. Uma guarda montada noite e dia nos impedia de sepul­
tá-los. Também expuseram o que as feras e os carrascos haviam dei­
xado dos corpos: aqui carnes em farrapos, lá despojos carbonizados,
96 OS M ÁRTIRES DE LIÃO

e ainda cabeças cortadas com corpos mutilados. Tudo isso ficou ali
por muitos dias, sem sepultura, guardado por soldados. Entre os pa­
gãos, uns ralhavam e rangiam os dentes contra os mártires: gostariam
de poder fa2ê-los sofrer ainda. Outros escarneciam caçoando dos
mortos e glorificavam seus ídolos por terem assim castigado aos
cristãos. Alguns, mais moderados e aparentemente tocados por um
pouco de compaixão: “Onde está seu D eus?” “De que lhes há ser­
vido a religião que eles amaram mais que sua vida?” Eram assim di­
versas as reações.
Entre nós reinava grande luto: não podíamos inumar os corpos.
Impossível contar com a noite. O dinheiro não seduzia os guardas e
nossos rogos não os comoviam. A vigilância nãc relaxava, como se
houvesse grande proveito em privar nossos mortos de sepultura.

150 Durante seis dias, os corpos dos mártires ficaram expostos em


pleno ar e insultados de todas maneiras. Em seguida queimaram-nos,
e quando foram reduzidos a cinza, os ímpios as varreram e jogaram
no Ródano, que corre ali perto, para não restar sobre a terra a me­
nor relíquia dos mártires. Fazendo isso, os pagãos criam vencer a
Deus e impedir os mortos de ressuscitar.
“É preciso”, diziam eles, “ tirar dos cristãos até a esperança
da ressurreição. Foi graças a esta crença que eles introduziram entre
nós uma religião estranha e nova e que eles desprezam as torturas,
prontificando-se em caminhar para a mcrte com alegria. Vejamos ago­
ra se vão ressuscitar e se Deus pode socorrê-los e arrancá-los de nos­
sas mãos”.

UMA ANTIGA INSCRIÇÃO


Epitáfio de A b êrc io 1
(Kirch, EFHE, 133)

Cidadão de uma ilustre pátria,


construí, em vida, este túmulo
para nele repousar meu corpo um dia.
Chamo-me Ábércio.
Sou discípulo de um santo Pastor
que seus rebanhos de ovelhas apascenta
sobre os montes e planícies.

1 A inscrição é a mais importante da antigüidade cristã. Composta na Ásia Menor,


no fim do século II. Abércio, bispo de Hierápolis, fizera uma viagem a Roma, depois
à Síria, e a relata em linguagem figurada. O Pastor é Cristo, a Rainha a Igreja,
o Peixe a E u c a ris tia .
UM A ANTIGA INSCRIÇÃO 97

Tem ele grandes olhos que tudo veem.


Ensinou-me as Escrituras da verdade e da vida.
Enviou-me até Roma
para contemplar sua majestade soberana
e ver a Rainha em vestes e sandálias de ouro.
Lá conheci um povo
assinalado com resplandecente sinal.
Fui também à planície da Síria.
Vi cidades, como Nísibe, para além do Eufrates.
Em toda parte achei irmãos
e por companheiro tive Paulo.
Em toda parte guiou-me a fé
que me serviu de alimento
um Peixe de fonte, grande, puro,
pescado por uma santa Virgem,
que o dava a seus amigos.
Ela possui um vinho delicioso
e o serve misturado ao pão.
Eu, Abércio, ditei este texto,
fi-lo gravar em minha presença,
aos setenta e dois anos.
O irmão que por acaso o ler
queira orar por Abércio!
E ninguém ponha outro túmulo
per cima do meu,
sob pena de multa:
duas mil peças de ouro para o fisco romano,
e mil para Hierápolis, minha ilustre pátria.
ATENÁGORAS
(t C. 180)

Era filósofo em Atenas. Autor da Súplica pelos cristãos, apologia oferecida em tom
respeitoso a Marco Aurélio e seu filho Cômcdc; e do tratado Sobre a ressurreição
dos mortos.
Seu estilo é agradável e procura ser acolhedor em relação à cultura grega.
Pensamento filosófico e teológico superior ao dos outros apologetas. Textos impor­
tantes sobre as relações das Pessoas divinas.
Ed. em grego e espanhol: BAC, 116.

SÚPLICA PELOS CRISTÃOS


(cc. 3 e 10: P.G. 6, 895-898; 907-909)

152 Lançaram-nos três acusações; ateísmo, banquetes de Tiestes, in­


cestos de Édipo. Se isso é verdade, se existe entre nós quem viva
como animais, então não poupeis a ninguém, puni radicalmente esses
crimes, condenai-nos à morte com nossas mulheres e filhos, destruí­
mos totalmente! Aliás, cs próprios animais não vivem assim, não ata­
cam seus congêneres, copulam conforme a lei da natureza e só no
tempo de procriar, sem licenciosidade; eles reconhecem, inclusive,
os que os ajudam. Se pois existe alguém mais selvagem que os ani­
mais qual será o castigo proporcional a tais crimes?
Se, pelo contrário, não há em tudo isso mais que fabulações e vãs
calúnias — naturalmente o mal se opõe à virtude e a lei divina faz
que os contrários se guerreiem — certificados de que não somos cul­
pados desses crimes, mandareis, não que os confessemos *, mas que
se vos faça um inquérito sobre nossa vida, nossas opiniões, nosso
zelo, nossa obediência para convosco, para com vossa casa e vosso
império; agindo assim, não nos estareis concedendo algo mais que a
nossos perseguidores, aos quais venceremos dando, sem hesitação,
nossas próprias vidas em favor da verdade.

153 Nós não somos ateus. Reconhecemos a existência de um único


Deus, incriado, eterno, invisível, impassível, incompreensível, que1

1 O texto desta passagem é dúbio. Baseamo-nos na tradução francesa de G.


Bardy, em “Sources chrétiennes”, n? 3, p. 79.
SÚPLICA PELOS CRISTÃOS 99

não pode ser circunscrito num lugar, que só pode ser atingido pelo
espírito e pela razão, que está envolto de luz, de beleza, de espírito
e forças inenarráveis, por quem o universo foi criado e ordenado, por
quem o mesmo é conservado, mediante o Verbo que está com ele.
Eis o que mostrei claramente.
Reconhecemos também, com efeito, um Filho de Deus. E não 154
se ache ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Pois não é
da mesma forma como vossos poetas o imaginam, ao falarem de deu­
ses que são como os homens, não é assim que pensamos nós sobre
Deus Pai ou sobre o Filho. O Filho de Deus é Verbo do Pai em idéia
e em poder. Tudo foi feito por meio dele, sendo um o Pai e o Filho.
O Filho está no Pai e o Pai no Filho, por unidade e poder do espírito,
e assim o Filho de Deus é espírito e verbo de Deus.
Se em vossa inteligência superior, quereis examinar o que sig­
nifica o Filho, di-lo-ei em poucas palavras. O Filho é o primeiro re­
bento do Pai, não que seja criado — pois desde o começo Deus,
que é eterno espírito, tinha em si o Verbo, era eternamente racional
— mas porque procede (de Deus), ao contrário das coisas materiais
que foram inicialmente sem qualidades e oriundas de terra inerte,
as mais espessas misturadas às mais leves, de maneira a haver para
elas uma idéia e uma energia. O Espírito profético está também de
acordo com este raciocínio, pois diz ele: “O Senhor me constituiu
princípio de seus caminhos para as suas obras” 2.
Na verdade, o Espírito Santo, que age através dos que falam 155
em profecias é, dizemos, uma emanação de Deus, de quem brota e
em quem reentra como um raio de sol.
Como, portanto, não se admiraria alguém de ouvir chamar ateus
os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo,
ensinando ser único seu poder e sua distinção na ordem? 4
Nossa doutrina teológica aliás não pára aí, pois acrescentamos
existir uma multidão de anjos, ministros que Deus Criador e organi­
zador do mundo, através do Verbo que dele procede, repartiu e or­
denou a fim de se ocuparem com os elementos, os céus, o mundo,
o seu conteúdo e a sua harmonia.

A vida dos cristãos


(;i b i d c. 11-12)

Entre nós encontrareis por certo muita gente simples, artesãos, 156
velhinhas. . . que, se pela palavra não são capazes de argumentar
em favor de sua religião, mostram ccm as obras a boa escolha
que fizeram. JÉ gente que não se aplica a decorar discursos, mas
pratica boas ações: não ferem quem os fere, não levam aos tribunais
2 Pr 8,22.
100 ATENÁGORAS

quem os espolia, dão a todos que lhes pedem e amam ao próximo


como a si mesmos. Ora, se não crêssemos num Deus acima do gênero
humano poderíamos levar vida tão pura? Não seria possível. É na
persuasão de que de nossa vida presente prestaremos contas a Deus,
nosso Criador e Criador do mundo, que optamos por uma vida mo­
derada, caritativa e desprezada, crendo não ser possível sofrer mal
algum (mesmo''se nos tirem a vida), comparável à recompensa que
receberemos do grande Juiz, por uma vida humilde, caridosa e boa.
'Platão dizia que Minos e Radamanto tinham que julgar e castigar
os maus; nós dizemos que nem Minos, Radamanto ou o pai deles
escaparão ao juízo de Deus.
Vemos aliás serem tidos por piedosos os que adotam como con­
ceito de vida o “comamos e bebamos porque amanhã morreremos” 1
e que consideram a morte um sono profundo; nós, ao contrário te­
mos a vida presente como de curta duração e de pequena estima,
ccmovendo-ncs pelo desejo de chegar a conhecer o verdadeiro Deus
e o Verbo que está nele, qual a comunhão que há entre o Pai e o
Filho, o que seja o Espírito, qual seja a unidade de tão grandes rea­
lidades e a distinção entre os assim unidos, o Espírito, o Filho e o
Pai; sabemos que a vida que esperamos é superior a tudo quanto
se possa expressar por palavras, desde que possamos chegar a ela
puros de toda iniqüidade, desde que amemos extremosamente a nos­
sos amigos — conforme diz a Escritura: “ se amais aos que vos
amam e retribuís aos que vos fazem bem que recompensa esperais?”12.
Pois bem, não haveremos de ser prezados como religiosos os que
assim somos e vivemos tal tipo de vida, receosos de uma condenação?

O matrimônio cristão
(ibid., c. 33)

157 Tendo a esperança da vida eterna, subestimamos as coisas da


vida presente e mesmo os prazeres do espírito: cada um de nós tem
por mulher a que desposou segundo as leis que já estabelecemos, e
com a finalidade da procriação. Porque assim como o lavrador, uma
vez lançada a semente à terra, aguarda a colheita e não continua
semeando, assim para nós a medida do desejo é a geração dos filhos.
É fácil mesmo achar entre nós muitos homens e mulheres que chega­
ram celibatários até a velhice, na esperança de alcançarem uma
intimidade maior com Deus. Pois bem, se permanecer na virgindade e
no celibato nos avizinha mais de Deus, ao passo que o pensamento
e desejo de copular nos afasta, então se até fugimos dos pensamentos
quanto mais das obras? Nossa religião, com efeito, não está em esme­
rados discursos, mas na demonstração e no ensino dados pelas obras;

1 Cf. Is 22,13; Sb 2,6; lC cr 15,32.


2 M t 5 ,4 6 .
SÚPLICA PELOS CRISTÃOS 101

por isto, cu cada um fica como nasceu ou casa-se uma só vez. O


segundo matrimônio é um adultério decente3. Diz a Escritura: “quem
deixa sua mulher e se casa com cutra comete adultério” 4, não sendo
permitido a alguém abandonar a mulher que deflorou e casar-se com
cutra. Quem se separa de sua primeira mulher, mesmo depois da
morte, é um adúltero encoberto, transgride a indicação de Deus, que
no princípio criou apenas um homem e uma mulher.

O aborto
( i b i d c. 35)

Os que sabem que não suportamos sequer a vista de uma 158


execução capital segundo a justiça, ccmo nos irão acurar de assassi­
nato ou de antropofagia? Quem dentre vós outros não gesta das
lutas de gladiadores cu de feras, e hão preza os que as organizam?
Quanto a nós, porém, pensamos que o ver morrer se aproxima do
matar e per isto nos abstemos de tais espetáculos. Como poderemos
matar, nós que nem queremos ver matarem, para não nes mancharmos
ccm tal impureza? Ao contrário, afirmamos: os que praticam o
aborto cometem homicídio e irão prestar contas a Deus, do aborto.
For que razão haveríamos de matar? Não se pode conciliar o pensa­
mento de que a mulher carrega no ventre um ser vivo, e portanto
objeto da Providência divina, com o de matar cedo o que já iniciou
a v id a .. .

3 Vê-se nesta concepção um rigorismo que não tem apoio na tradição da Igreja.
4 Mc 1 0,11 e p a r a le lo s .
SÃO TEÓFILO DE ANTIOQUIA
( t após 181)

De origem mesopotâmica, converteu-se ao cristianismo quando já adulto, toman-,


do-se bispo de Antioquia.
Por volta do ano 180, compôs os 3 livros a Autólico, de caráter apologético. Ou­
tras obras suas estão perdidas.
No que escreve sobre o “Logos”, em Deus, antes da Criação do mundo, seu pen­
samento é impreciso ou de formulação deficiente, como aliás em outros autores da
época, com terminologia e categorias emprestadas à cultura grega.
Edição bilingüe em: BAC 116; SC 20, etc.

DOS “LIVROS A A U TÓ LICO” 1


(L.I., caps. 2-3: P.G. 6, 1025ss)

A s condições morais do conhecimento de Deus

59 Se me dizes, agcra: “Mostra-me teu Deus”, poderia responder-


-te: “Mostra-me o homem que és e te mostrarei o Deus que é m eu”.
Apresenta, pois, para contemplar, os olhos de tua alma, e para escutar,
os ouvidos de teu coração. Porque aqueles que veem com os olhos
do corpo vêem o que se passa na vida e sobre a terra, conhecem a
diferença entre a luz e a obscuridade, o branco e o negrc, o feio e o
belo, o que é harmonioso, bem proporcionado, e o que é sem ritmo
e proporção, o que é desmedido e truncado. Também assim para o
que cai sob o ouvido: os sons agudos, graves, os agradáveis. Ora po­
der-se-ia falar de modo análogo sobre os ouvidos do coração e os
olhos da mente, dizendo que lhes é possível perceber a Deus.
Deus é percebido pelos que podem vê-lo depois que se lhes
abriram os olhos da mente. Todos têm olhos, mas alguns só os têm
velados, ficando inaptos para ver a luz solar. Se os cegos não vêem,
não é porque a luz solar não brilhe: a causa está neles mesmos, em
seus olhos.
Assim acontece também contigo: os olhos de tua mente estão
velados por tuas faltas e más ações. Devemos ter a mente pura como

1 Seguindo um gênero literário usual na Antiguidade, S. Teófilo se dirige teori­


camente a um indivíduo (às vezes fictício), no caso: Autólico, para instruí-lo, mas
v is a n d o a g e n e ra lid a d e d o s le ito re s .
DOS “ livros a autólico 1 103

um espelho diáfano. Se há ferrugem no espelho, não se divisa a face


do homem nele; quando há uma falta no homem, também não pode
ele ver a Deus. Mostra-te, pois, em pessoa: és adúltero, devasso,
ladrão, espoliador, sensual, colérico, injuriador, irascível, invejoso,
bazófio, insolente, grosseiro, avarento, irreverente para com os pais,
pronto para vender teus filhos? Às pessoas que cometem tais faltas
Deus não se revela, a não ser que se purifiquem de toda mancha.
Nessas condições, tudo permanece obscuro para : ti, sendo como a
escama que se forma no olho quando não pede contemplar a luz do
sol. Assim, tuas ofensas te mergulham nas trevas e não podes ver 160
a Deus.
Então dir-me-ás: “Descreve-me o aspecto de Deus, tu que o vês”.
Escuta-me: o aspecto de Deus é inefável, inexprimível, e não
pode ser contemplado com os olhos da carne. Sua glória o torna sem
limite, sua grandeza sem fronteiras, sua altitude acima de toda idéia,
sua força incomensurável, sua sabedoria sem par, sua bondade ini­
mitável, sua benevolência indizível. Se o chamo Luz, designo o que
é sua criatura; se o chamo Palavra, designo seu princípio2; se o
chamo Razão, sua inteligência; se o chamo Sopro, sua respiração;
se o chamo Sabedoria, designo o que dele procede; se o chamo Po­
tência, designo o poder que tem; se o chamo Força, designo seu
princípio ative; se o chamo Providência, sua bondade; se o chamo
Reino, sua glória; se o chamo Senhor, digo-o Juiz; se o chamo Juiz,
digo-o Justo; se o chamo Pai, digo-o tudo.; se o chamo Fcgo, no­
meio sua ira. Perguntarás: “Deus pode irar-se?” Acredito-o eu: ira-se
contra os que fazem o mal, e é benigno, bondeso e misericordioso
centra os que o amam e o veneram. Porque ele é o educador dos
piedosos, o Pai dos justos, o Juiz que pune cs ímpios.

Os escritos bíblicos e a cosmogonia


(i Ibid., 1. 2, caps. 9, 10, 14, 15)

Os homens de Deus, portadores do Espírito Santo e profetas, 161


inspirados pelo mesmo Deus e cheios de sua sabedoria, foram ins­
truídos por Deus, e santos e justos. Por isto foram dignos de ser
instrumentos de Deus, e de participar de sua sabedoria, com a qual
falaram sobre a criação do mundo e sobre todas as outras coisas. A
propósito de pestes, fomes, guerras, fizeram predições; e não foram
um ou dois profetas, mas um grande número que, segundo os tem­
pos e as circunstâncias, se acharam entre cs Hebreus, da mesma
forma que entre os Gregos há a Sibila; todos discorreram unanime­
mente tanto sobre eventos que lhes são anteriores como sobre outros

2 O princípio pelo qual fez tudo, is to é, na concepção teológica de s. Teófilo,


c p a r e n te m e n te m u i to im p e r f e ita , o V e rb o . A id é ia g e ra l d o te x to é q u e a essê n cia
d iv in a tr a n s c e n d e o s a tr i b u t o s o p e r a tiv o s q u e p o ssa m o s n o m e a r.
104 SÃO T EÓ FILO DE ANTIOQUIA

posteriores e que ainda se desenvolvem ante nossos olhes; assim,


estamos certos de que acontecerá no futuro como o que já se cumpriu
no passado.
Em primeiro lugar, eles concordaram em nos ensinar que Deus
tirou do nada todas as coisas. Nada houve que fosse coetâneo com
Deus: ele mesmq é seu lugar, ele de nada precisa, sendo anterior aos
séculos. Mas quis criar o homem para fa2er com que este o conhecesse.
E então preparou para ele o mundo — pois c que é criado tem suas
necessidades, ao contrário do Incriado, que de nada necessita.
162 Deus, portanto, tendo em suas próprias entranhas a seu Verbo
imanente (endiâtheton), gerou-o com sua própria sabedoria, emitin-
dc-o antes de todas as coisas. Teve este Verbo como ministro de
suas obras, tudo fazendo por meio dele: chama-se Princípio, porque
é o Princípio e o mestre de tudo que foi criado por sua mediação.
Este, pois, que é espírito de Deus, princípio, sabedoria, e potência do
Altíssimo, desceu sobre os profetas e falou por sua boca a respeito
da criação do mundo e de tudo o mais: cs profetas não existiam
quando o mundo era feito, mas sim a Sabedoria de Deus que nele
estava e seu santo Verbo que sempre estava com Ele. Eis por que
a Sabedoria pronuncia as seguintes palavras, por boca de Salomão:
“Quando ele preparava os céus, eu estava com ele; quando consoli­
dava as bases da terra, eu o assistia em sua obra” \
163 Moisés, vivendo muitos anos antes de Salomão — ou me­
lhor, o Verbo de Deus, servindo-se dele como de um instrumento —
disse: “no princípio foram criados por Deus o céu e a terra” 4. An­
tes de proferir o nome de Deus — que não se deve pronunciar em
vão — fala do “Princípio” e da “criação”. A Sabedoria divina pre­
via os palradcres que chamariam Deus coisas que não o são. Assim,
para que o verdadeiro Deus seja conhecido por suas obras, para que
se saiba que, em seu Verbo, Deus fez o céu, a terra e tudo o que en­
cerram, diz: “no Princípio foram criados por Deus o céu e a terra”.
Depois, a propósito da criação, explica: “ a terra estava invisível e
informe, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus pairava
sobre as águas”.
Desta maneira começa o ensino da Santa Escritura: como foi
criada e nascida de Deus uma matéria, com a qual ele fez e organizou
o mundo.

164 A terra, tornada visível, permanecia porém informe. Deus a or­


ganizou e a ornamentou com todas as variedades de ervas, semen­
tes e plantas.
Considera, de resto, que variedade, que abundância! Há aí uma
manifestação de ressurreição, que nos dá uma indicação da realidade
DOS “ livros a autólico 105

futura da ressurreição de todos os homens. Refletindo, como não nos


maravilhamos de ver que de uma semente de figo nasça uma figueira?
que de minúsculas sementes nasçam árvores gigantescas?
E o mundo, poderíamos dizer, assemelha-se ao mar. O mar, sem
os rios e as fontes que nele descarregam sua alimentação, estaria res­
sequido pelo sal desde há muito. Também o mundo: sem a lei de
Deus e os profetas que lhe despejam como fontes a doçura e a mi­
sericórdia, a justiça e o ensino das santas vontades de Deus, estaria
já extinto pela abundância de sua malícia e de seu pecado.
No mar há as ilhas. Umas são habitáveis, • têm boa água, um
solo fértil, margens abordáveis, portos de refúgio contra as tempes­
tades; assim foi que Deus deu ao mundo, agitado pela tempestade
des pecados, comunidades, queremos dizer santas Igrejas, onde se
acham, como nos portos facilmente abordáveis das ilhas, as doutrinas
da verdade; lá se refugiam os que aspiram ser salvos, os que se
fascinaram pela verdade e querem escapar à ira e ao julgamento de
Deus.
E há outras ilhas, rochosas, sem água, estéreis, selvagens, inós­
pitas, ende se chocam os navios e perecem os que aí desejam aportar;
tais são as doutrinas do erro, quero dizer as heresias, causadoras da
ruína dos que se lhes avizinham, pois não estão sob a palavra da ver­
dade. Os piratas enchem de passageiros seus navios para depois os
despedaçarem sobrè os recifes e cs fazerem perecer; assim, os que
erram longe da verdade acham sua ruína nos próprios erros.

No 49 dia surgiram os luzeiros. Deus, em sua presciência, sabia 165


quais seriam as bagatelas difundidas por vãos filósofos: “ Dos astros,,
diriam eles, provém o que cresce sobre a terra”, como para deixa- ?•
rem Deus de lado. Foi, pois, em sinal da verdade que plantas e
sementes brotaram antes dos astros: o que vem depois não produziu
q que surgiu antes.
E cs luzeiros encerram o sinal e tipo de um grande mistério.
O scl é o símbolo de Deus, a lua o símbolo do homem. Como o
sol difere grandemente da lua, .em força e glória, Deus difere imensa­
mente da humanidade. Como o sol está sempre cheio e nunca dimi­
nui, também Deus permanece sempre perfeito, cheio de poder, inte­
ligência, sabedoria, imortalidade e todos os bens. Já a lua diminui
cada mês, como que morrendo, pois é o tipo do ser humano; depois
renasce e aumenta, simbolizando a ressurreição que virá.
Da mesma forma, cs três dias que precedem o aparecimento dos
luzeiros, são tipos da T rindade5: de Deus, de seu Verbo e de sua

5 Aparece aqui, pela primeira vez na literatura cristã, a palavra Trindade ( “Triás” )
aplicada a Deus. O fato, porém,' de Teófilo u sá -la como um termo corrente, sem ne­
c e s s id a d e d e e x p lic a ç ã o , fa z p e n s a r q u e n ã o e r a seu autor.
Sabedoria. No quarto tipo está o homem, que precisa da luz; temos
assim Deus, Verbo, Sabedoria, Homem. Eis por que no quarto dia
foram criados os luzeiros.
A disposição dos astros sugere a economia e dispensação dos
justos, dos religiosos, dos que seguem a lei e os preceitos de Deus.
Os astros de primeira grandeza, os mais brilhantes, são como os
profetas, permanecendo sem se desviarem, sem mudarem de posição.
Os astros de categoria inferior quanto ao brilho são tipos do povo
dos justos. Quanto aos que mudam de posição e vão de um para
outro lugar, os chamados planetas, são tipos dos homens que se afas­
tam de Deus, abandonando suas leis e seus profetas.

A criação do homem e o pecado original


(.ibid., 1. 2, c. 18, 22, 24, 25, 27)

166 E eis que se chega à criação do homem. Não há termos bastante


grandes à disposição do homem para exprimirem a sua criação; toda­
via, a Sagrada Escritura se utiliza de uma breve fórmula. Nas pala­
vras de Deus: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”,
indica inicialmente a dignidade do homem. Todo o universo Deus
criara por uma palavra, como se tudo fosse acessório; e só a criação
do homem julgou digna de ser obra de suas próprias mãos. Mais ain­
da! Como se tivesse necessidade de auxílio é achado dizendo: “Fa­
çamos c homem. . . ” Não diz “Façamos” a ninguém mais senão a seu
Verbo e a sua Sabedoria0.

167 Dir-me-ás: “Pretendes que não se deva situar a Deus num deter­
minado lugar; como dizes então que ele passeia no paraíso? ” 67 Es­
cuta-me: o Deus e Pai de todas as coisas não é localizável, pois não
há local onde não esteja; mas o Verbo, pelo qual criou todas as coisas,
e que é seu poder e sua sabedoria, revestiu-se da figura do Pai e
Senhor universal, e foi ele que veio ao paraíso sob a figura de Deus,
entretendo-se com A dão8. Pois a própria Sagrada Escritura nos en­
sina que Adão dizia ter ouvido sua v e z 9. Que outra voz seria senão
o Verbo de Deus, que é também seu Filho? Não no sentido em que
os poetas e mitógrafos dizem que filhos de deuses nascem de có­
pulas, mas segundo o que a verdade manifesta sobre o Verbo, que
existe sempre imanente no seio de Deus.

6 Em s. Teófilo, como em sto. Iteneu (cf. C o n tra H e r., 4,20), o Espírito Santo
é dito a Sabedoria.
7 Gn 3,8.
8 Está aqui uma deficiência na concepção de s. Teófilo (e de outros apologetas),
a idéia de que a transcendência do Verbo é menor do que a do Pai, de sorte que
só ele pode aparecer.
9 Gn 3,10.
Antes que algo fcsse feito, ele o tinha como seu conselheiro, 168
aquele que é sua inteligência e seu sentimento. E quando Deus de­
cidiu realizar tudo o que havia deliberado, engendrou externamente
esse Verbo 101, como primogênito antes de toda criatura, sem por isto
ficar privado do Verbo mas sim engendrando-o e permanecendo sem­
pre em conversação com seu Verbo. Daí o ensinamento das Sagradas
Escrituras e de todos os inspirados, entre os quais João, quando
diz: — “no princípio era o Verbo; e o Verbo estava em Deus” n .
Ele mostra que no princípio só havia Deus e que nele estava o Verbo.
Depois acrescenta: “E o Verbo era Deus; tudo foi feito por meio de­
le e sem ele nada foi feito”. O Verbo, portanto Deus, e nascido de
Deus. E cada vez que o Pai universal o quer, envia-o a determinado
lugar; lá ele se acha, se faz ouvir e ver, como um enviado, em de­
terminado lugar.

Deus pôs o homem, como dissemos, no paraíso para que o 169


cultivasse e o guardasse; e ordenou-lhe que comesse de todos os
frutos, inclusive o da árvore da vida, exceto porém o da árvore
da ciência.
Deus trasladou o homem da terra, da qual fora feito, ao paraíso,
e lhe conferiu um princípio de progresso, segundo o qual podia desen­
volver-se, chegar à perfeição e até mesmo ser divinizado, ter a imorta­
lidade e subir ao céu ( com efeito, o homem foi posto numa situação
intermediária, nem completamente mortal nem absolutamente imor­
tal, mas capaz das duas coisas; da mesma forma a região do paraíso,
per sua beleza era intermediária entre o mundo e o céu).

A árvore da ciência era em si boa, e igualmente seu fruto. Não *170


era ela que continha a morte (como alguns imaginam), mas a deso­
bediência. No fruto havia apenas a ciência, e esta era um bem,
desde que comido como devia ser feito. Mas por sua idade real,
Adão era ainda uma criança e por isto não podia receber ainda a
ciência 12. Em nossos dias, quando nasce uma criança, não pode desde
logo comer pão, deve primeiro ser aleitada e só mais tarde, em ida­
de mais desenvolvida, recebe o alimento sólido. O mesmo aconteceria
com Adão. Não fei por ciúme, como pensam alguns, que Deus lhe
ordenou de não comer da árvore da ciência. Ele queria prová-lo em
sua obediência às prescrições divinas. Queria também que o homem
prolongasse seu tempo de simplicidade e integridade, como criança. É

10 Falando sobre os dois estados do Verbo, anterior à Criação do mundo e emi­


tido para realizá-la, Teófilo mostra mais uma ambiguidade de sua teologia, ao
menos a nível da expressão terminológica.
11 Jo 1,1-2.
12 A mesma curiosa interpretação em sto. Ireneu, Contra Her., 4,38.
108 SÃO T E Ó F IL O DE ANTIOQUIA

uma lei não só divina, mas humana, a da submissão aos pais na sim­
plicidade e inocência. Se as crianças devem submeter-se aos pais,
quanto mais ao Deus e Pai universal! E não é normal que as crian­
ças tenham pensamentos acima de sua idade; os pensamentos devem
crescer com a idade.

171 Mas dirá alguém: “Morrer não pertencia à natureza do homem?”


N ã o 13. Ele era então imortal? Também não o diríamos. Portanto
ele não era nada? Não é o que estamos afirmando. Veja-se: de nas­
cença o homem não era mortal mais do que imortal. Se tivesse sido
criado imortal desde o princípio, teria sido criado um deus. De outro
lado, se fosse criado mortal, teria parecido que Deus foi a causa de
sua morte. Não foi criado portanto nem mortal nem imortal, mas
— como dizíamos há pouco — capaz das duas coisas. Pendia assim
para a imortalidade seguindo o mandamento de Deus. Receberia a
imortalidade como recompensa, seria divinizado. Se porém pendesse
para as obras da morte, desobedecendo a Deus, se tornaria por si
mesmo causa de sua morte. Pois Deus o criou livre e dono de si.
Ora, o que o homem tinha procurado para si por sua incúria
e desobediência 14,~Deus lhe concedeu em seu amor misericordioso
para os homens que lhe obedecem. Da mesma forma que, desobede­
cendo, o homem tinha atraído para si a morte, passou a poder pro­
curar para si a vida eterna mediante a obediência a Deus. Porque
Deus ncs proporcionou uma lei e santos mandamentos: quem os
pratica pode ser salvo e, quando vier a ressurreição, obter em herança
a incorruptibilidade.

13 “Natureza” (p h y s is ) pode ser entendida aqui no sentido de condição nativa,


não no de essência humana.
14 Passagem um tanto estranha, para significar que a morte se torna princípio de
vida.
CARTA A DIOGNETO
(P.G . 2, 1168ss)

No início do século I I I aparece esta formosa obra, de autor desconhecido, onde se


louva a beleza do ideal cristão.

Vendo, ó excelentíssimo Diogneto, teus grandes esforços para 172


conhecer a religião dos cristãos, sobre cs quais te vens informando
com aberto interesse e meticulosa curiosidade, ávido de conhecer 0
Deus no qual creem e o seu culto, a razão por que desprezam o
mundo e a morte, por que não cultuam os deuses dos gregos nem,
dé outro lado, observam a superstição dos judeus; qual o amor re­
cíproco que os une e por que, afinal, essa nova raça ou instituição
semente agora apareceu e não antes; acolho o teu inflamado zelo e
suplico a Deus, que nos dá o dizer e o ouvir, me dê palavras
que te possam tom ar melhor, e te dê ouvi-las sem entristecer quem
as proferiu.
Eia, pois, purificando-te dos teus preconceitos e desembaraçan­
do-te da mentalidade que te engana, ternando-te um homem radical­
mente novo (já que virás a ser, como tu mesmo o confessas, o ou- *
vinte de um verbo novo), vê, não só com os olhos mas também
com o pensamento, de que substância ou espécie são os chamados
deuses.
Não é um deles pedra, como esta que pisamos? Não é outro
bronze, em nada melhor que outros objetos forjados para o nosso
use? Não é outro madeira, e madeira às vezes apodrecida? Outro,
prata, com sentinela a vista, para não ser roubado? Outro, ferro
deteriorado pela ferrugem, ou barro não mais nobre do que o usado
nos serviços mais vis? Não são,* acaso, todos eles, matéria corruptível?
Não foram fundidos a ferro e fogo? Não foi a um o escultor quem mo­
delou, a cutro 0 bronzista, a outro o ourives, a outro o oieiro? E
antes de terem recebido pela técnica do artífice a forma atual, não
eram, como ainda são, matéria transformável? E não poderão tornar-
-se semelhantes a esses deuses os utensílios da mesma matéria, que
atualmente possuímos, se encontrarem tais artistas? Ou não podem
cs coisas que presentemente adorais tornar-se, por mão de homem,
objetos iguais aos outros? Não são surdos, cegos, inanimados? Não
110 CARTA A DIOGNETO

são insensíveis, imóveis? Não apcdrecem e se deterioram? É a isto


que chamais, servis e adorais como deuses, tornando-vos afinal seme­
lhantes a eles!
173 Odiais os cristãos porque não os consideram deuses. Vós, porém,
que supondes louvá-los, acaso nãc os desprezais muito mais? Não zom­
bais deles e os insultais, quando aos de pedra e barro venerais sem
polícia, ao passo que aos de prata e ouro fechais à chave de noite e,
de dia, pondes sob custória de guardas, para não serem furtados?
E, com as oblações com que cuidais honrá-los, antes os castigais, se é
que têm sentido; se, porém, são insensíveis, vós mesmos o manifestais,
cultuando-os com sangue e fumaça de matérias gordurosas. Quem
de vós toleraria que se lhe aplicasse igual tratamento? Homem algum
suportaria voluntariamente tal castigo, sendo dotado de sensibilidade
e razão. Mas a pedra suporta-o: é insensível. Não pondes assim à
prova sua sensibilidade? Acerca da recusa que professam os cristãos
de servir a esses deuses, muito mais teria a dizer-te; mas se o qüe
aí está não parece suficiente, julgo excessivo dizer mais.
174 Agora, porém, creio-te ávido principalmente de ouvir sobre a
diferença entre o culto divino dos cristãos e o dos judeus.
Estes, com efeito, fazem bem de se abster do culto acima refe­
rido e venerar ao Deus único e Senhor de tudo; laboram, porém,
em erro cultuando a Deus de modo idêntico ao que foi descrito.
Pois as coisas que os gregos, dando prova de loucura, oferecem a
ídolos surdos e insensíveis, os judeus pensam oferecer a Deus como
se delas necessitasse, o que é evidentemente mais estultície do que
religião. Aquele que fez o céu, a terra e tudo que há neles, e que
dispensa a todos nós o necessário, não pode carecer do que ele
mesmo dá aos que supõem trazer-lhe algo. De fato, os que pen­
sam conferir alguma coisa a Deus pelo sangue, pela gordura das
vítimas, pelos holocaustos, cuidando ainda honrá-lo com tais louvores,
em nada parecem diferir dos que prestam a ídolos surdos as mesmas
honrarias, uns prestando-as a coisas impossibilitadas de recebê-las, ou­
tros pensando ajuntar algo a quem de nada precisa.

175 Os cristãos não diferem dos demais homens pela terra, pe­
la língua, ou pelos costumes. Não habitam cidades próprias, não
se distinguem por idiomas estranhos, não levam vida extraordinária.
Além disso, sua doutrina não encontraram em pensamento ou cogita­
ção de homens desorientados. Também não patrocinam, ccmo fazem
alguns, dogmas humanos. Mas, habitando, conforme a sorte de
cada um, cidades gregas e bárbaras, é acompanhando os usos locais
em matéria de roupa, alimentação e costumes, que manifestam a
admirável natureza de sua vida, a qual todos reputam extraordinária.
Habitam suas pátrias, mas ccmo estrangeiros. Participam de tu­
do como cidadãos, mas tudo suportam como estrangeiros. Qualquer
CARTA A DIOGNETO 111

terra estranha é pátria para eles; qualquer pátria, terra estranha. Ca­
sam-se e procriam, jamais lançam fora o que geraram. Têm a mesa
em comum, não o leito. Vivendo na carne, não vivem segundo a
carne. Na terra vivem, participando da cidadania do céu. Obe­
decem às leis, mas as ultrapassam em sua vida. Amam a todos,
sendo por todos perseguidos. Desconhecidos, são assim mesmo con­
denados. E quando entregues à morte, recebem a vida. Na pobreza,
enriquecem a muitos; desprovidos de tudo, sobram-lhes os bens.
São desprezados, mas no meio das desonras senterc-se glorifica­
dos. Difamados, mas justos; ultrajados, mas benditos. Injuriados,
prestam honra. Fazendo o bem, são punidos como malfeitores; casti­
gados, rejubilam-se como revivificados. Os judeus hostilizam-nos como
alienígenas, os gregos os perseguem, mas nenhum de seus inimigos
pode dizer a causa de seu ódio.
Para resumir numa palavra, o que é a alma no corpo, são os 176
cristãos no mundo: ccmo por todos os membros do corpo está di­
fundida a alma, assim os cristãos por todas as cidades do universo.
Habita a alma no corpo, mas não procede do corpo; assim os cristãos
habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível é
enclausurada num corpo visível: os cristãos, conhecidos enquanto
estão no mundo, têm uma religião que permanece invisível. A carne
odeia a alma sem ter recebido injúria, mas apenas porque ela não a
deixa gozar os prazeres; aos cristãos odeia o mundo sem ter sido
injuriado por eles e só porque renunciam aos prazeres. A alma ama
o corpo e os membros que a odeiam; também os cristãos amam os
que os odeiam.
A alma está encerrada no corpo, mas é ela que o sustenta.
Os cristãos, per sua vez, estão encerrados no mundo como num cár-
cère; mas são eles que o sustentam. A alma habita um tabernáculo’ .
mortal. Os cristãos peregrinam através de bens corruptíveis, na expec- *■
tativa da celeste incorruptibilidade.
Maltratada quanto a alimentos e bebidas, a alma se aperfeiçoa;
também os cristãos, afligidos por castigo, cada dia mais aumentam
em número. Deus coloccu-os num posto tal que não lhes é lícito
desertar.
Não foi, como já disse, invenção terrestre o que se lhes trans­
mitiu; nem julgam ter sob sua vigilante guarda uma concepção mortal.
Não lhes foi confiada a dispensação de mistérios humanos.
Mas foi o próprio Deus invisível, verdadeiramente Senhor e Cria- 177
der de tudo, que do alto dos céus colocou entre cs homens a Ver­
dade, o Logos santo e incompreensível, e o inseriu firmemente nos
seus corações. Não, como pode alguém conjecturar, enviando aos
homens algum ministro, anjo, ou principado, algum daqueles que go­
vernam as coisas terrenas ou dos que têm a seu cargo o cuidado das
coisas celestes, e sim mandando o próprio Artífice e Autor de tudo,
aquele por meio de quem criou as coisas e encerrou o mar nos
112 CARTA A DIOGNETO

seus limites; a cujos mistérios os elementos obedecem fielmente;


aquele de quem o sol recebeu a medida a seguir; aquele a quem a lua
obedece, brilhando durante a noite, e os astros como a lua; no
qual todas as coisas foram distribuídas, especificadas e subordinadas:
o céu e o que nele existe, a terra e o que ela contém, o mar e c que
nele se encontra, o fogo, o ar, o abismo, o que está nas alturas, nas
profundezas e rio espaço intermediário. Foi a esse que Deus enviou.
Mas, pergunto, tê-lo-á mandado para exercer tirania e incutir
terror, como alguém poderia pensar? De modo algum. Mandou-o
com clemência e mansidão. Foi um rei enviando seu filho rei, Deus
enviando Deus; mandou-o como homem aos homens. Mandou-o num
ato de salvador, agindo pela persuasão, não pela violência. Enviou-o
ccmo quem chama, não como quem persegue, como quem ama, não
como quem condena. Enviá-lo-á ruturamente para julgar e aí sim, quem
enfrentará a sua parusia?
178 Não vês, pois, os cristãos lançados às feras para renegarem seu
Senhor, e jamais serem vencidos? Não vês como cresce o seu número
quanto mais supliciados? Tais coisas não parecem obra de homem; são
a força de Deus, indícios de sua vinda.
Quem, efetivamente, foi capaz de saber o que era Deus, antes
que ele mesmo viesse? Acaso acolhes as vas idéias dos filósofos, ti­
dos por fidedignos? Alguns disseram que Deus é o fogo (aquilo para
onde estão caminhando, chamam Deus. . . ) . Outros, a água. Outros,
enfim, qualquer dos demais elementos criados. Mas, se fosse aceitá­
vel qualquer desses raciocínios, poderia semelhantemente declarar-se
Deus qualquer das demais criaturas.
A verdade é que tais coisas são mitos e enganos de
charlatães impostores. Nenhum homem o viu nem conheceu, foi ele
mesmo que se mostrou. E manifestou-se pela fé, por cujo meio exclu­
sivamente foi concedido ver a Deus.
Realmente, o Senhor é autor de tudo, Deus, que fez todas as coi­
sas e as dispôs em ordem, não só amou os homens, mas
foi paciente para com eles. Ele sempre foi, é e será benigno e bom,
sem ira e veraz. Só ele é bom. E tendo concebido um grande e inefá­
vel desígnio, só a seu Filho o comunicou. Enquanto mantinha em mis­
tério e conservava em segredo o seu sábio plano, parecia descuidar-se
e desinteressar-se de nós. Quando, porém, revelou pelo seu Filho
amado e fez aparecerem as coisas que estavam preparadas desde o
princípio, no-las apresentou todas de uma só vez, e nos fez parti­
cipar dos seus benefícios, e ver e compreender coisas que nenhum
de nós teria esperado.
179 Tudo, porém, ele sabia em si, com o Filho, segundo a econo­
mia divina. E até o tempò precedente, deixou-nos, como queríamos,
presas de impulsos desregrados e dominados pelo prazer e pela con­
cupiscência. Certamente não se alegrava com nossos pecados, tole-
rava-cs; nem por outro lado ccmprazia-se com aquele tempo de ini-
CARTA A DIOGNETO 113

qüidade, mas preparava este, de justiça; a fim de que nós, que ou-
trcra fôramos, em razão de nossas obras, demonstrados indignos da
vida, fôssemos agcra feitos dignos pela benignidade de Deus; e nós
que evidenciáramos ser impossível ir por nós mesmos ao reino de
Deus, nos tornássemos disso capazes na potência de Deus.
E quando se consumou o auge da nossa iniqüidade e ficou bem
patente que o estipêndio desta, castigo e morte, era iminente, veio
o tempo que Deus preestabelecerá para manifestar, de então por
diante, a sua bondade e força. Õ sublime humanidade e caridade de
Deus! que não nos odiou nem perdeu, nem se vingou, mas, pelo
contrário, foi paciente. Suportou-nos ccm misericórdia, e os nossos
pecados tomou-os ele mesmo, entregando como preço da nossa reden­
ção o próprio Filho, o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus,
o justo pelos injustos, o incorruptível pelps corruptíveis, o imortal
pelos mortais. Que outra coisa efetivamente poderia cobrir os nos­
sos pecados senão a sua justiça? Em quem era possível que fôssemos
justificados, nós, iníquos e ímpios, a não ser unicamente no Filho de
Deus? 0 doce substituição, ó imperscrutável disposição, ó benefício
imprevisto, ser a injustiça de muitos recoberta em um só Justo e a
justiça de um só justificar a muitos injustos. Tendo, pois, demonstra­
do, no tempo anterior a incapacidade de nossa natureza para alcan­
çar a vida e agora, ao contrário, tendo manifestado o Salvador capaz
de salvar até o que não era possível, quis, por ambas as coisas, que
tivéssemos fé na sua benignidade e o tomássemos como tutor, pai,
mestre, conselheiro, médico, pensamento, luz, honra, glória, fortaleza,
vida, e nos despreocupássemos do que comer ou à é como nos vestir.
Se também aspiras a esta fé e a recebes, trata primeiro 1 de conhe- 180
cer o Pai. Deus realmente amcu com caridade os homens. Por causa
deles fez o cosmos, submetendo-lhes todas as coisas da terra; deii-
-lhes razão, inteligência, só a eles permitiu còntemplá-lo nas altu­
ras, formou-os à própria imagem, enviou-lhes seu Filho unigénito,
prcmeteu-lhes o reirio dos céus, que dará aos que o amam. Que
gáudio, pensas, te encherá quando o conheceres? Ou quem assim te
amcu primeiro? Amando-o, porém, serás imitador da sua benignidade.
Não te admires de poder o homem tornar-se imitador de Deus.
Pode-o, querendo Deus. De fato, não é o oprimir o próximo, nem o
querer mais do que os mais fracos, nem enriquecer, e violentar os
inferiores, que constitui a felicidade. Nem tão pouco pode alguém
com ações imitar a Deus: tais coisas estão fora da sua grandeza.
Mas aquele que toma sobre si o ônus do próximo, aquele que de­
seja, no que é superior, beneficiar a quem menos possui, e sub-
ministra aos necessitados o que possui, recebido de Deus, torna-se
deus dos beneficiados e é imitador de Deus.

1 O texto grego apresenta-se defeituoso aqui.


114 CARTA A DIOGNETO

Então verás, ainda na terra, que Deus reina nos céus. Come­
çarás a falar os seus mistérios. Amarás e admirarás os que são tortu­
rados por não quererem renegar a Deus. Condenarás a impostura e o
erro do mundo quando tiveres compreendido que o verdadeiro viver
está no céu e, desprezando aquilo que aqui parece morte, temeres a
morte real, reservada para os condenados ao fogo eterno, que atormen­
tará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Então admirarás os
que suportam pela justiça o fogo momentâneo e os considerarás fe­
lizes, quando tiveres compreendido tal fogo.
Não me entretenho com coisas estranhas, nem faço pesquisas
absurdas, mas, feito discípulo dos apóstolos, torno-me doutor das
gentes, subministrando dignamente o que me foi entregue, aos que se
fazem discípulos da verdade. Quem, com efeito, retamente instruído
e gerado pelo Logos amigo, não se esforçará por aprender claramente
tudo que foi manifestado aos discípulos? Foi a estes que c Logos,
quando apareceu e livremente falou, revelou tais coisas, incom­
preendido pelos infiéis, mas pregando aos discípulos que, achados
por ele fiéis, conheceram os mistérios do Pai. Por esta causa, Deus
enviou o Logos, para se revelar ao cosmos. E este, desprezado pelo
povo escolhido, anunciado por meio dos apóstolos, foi crido pelas
gentes. Ele é que, existindo desde o princípio, apareceu como novo,
como tal foi achado, e renasce sempre novo no coração dos santos.
Ele, o sempiterno, que hoje é chamado Filho, pelo qual é enriquecida
a Igreja e, como graça divina, se multiplica nos santos, dando inteli­
gência, abrindo os mistérios, anunciando cs tempos, exultando sobre
os fiéis, dando aos que procuram observar os juramentos da fé ul­
trapassando as tradições dos pais.
E agora o temor da lei é celebrado com cânticos, a graça dos
profetas é conhecida, afirma-se a fé dos Evangelhos, a tradição dos
apóstolos é mantida e exulta a graça da Igreja. Se não hostilizares
essa graça, saberás quando o Logos fala por meio dos que escolheu,
quando lhe apraz. Pois, de tudo aquilo que nos foi revelado, impeli­
dos pela vontade imperativa do Logos, fomos levados a dizer com fadi­
ga, tcrnamo-nos co-participantes convosco pela caridade.
SANTO IRENEU
(t c. de 202)

Natural da Asia Menor e discípulo de são Policarpo, foi 'bispo de Lião, na Gália.
Interveio junto aos papas Eleutério e V ítor no que tange à : repressão da heresia mon-
tanista e na querela sobre a comemoração da Páscoa.
Grande adversário do gnosticismo, escreveu a Refutação da falsa Gnose (obra co-
mumente chamada Adversus Haereses) e também a Demonstração da Preparação Apostó­
lica, obra esta descoberta em 1907 numa tradução armênia. Fragmentes ainda de cartas
suas foram conservadas por Eusébio.
Segundo são Gregório de 1'ours ( t 594), santo Ireneu terá morrido mártir.
É considerado o “príncipe dos teólogos cristãos”, no sentido cronológico de pri­
meiro.
Em seus escritos salientam-se vários pontos: a importância atribuída à Tradição
■apostólica oral; o primado da Igreja de Roma (fundada por Pedro e Paulo); a dou­
trina da "recapitulação” da humanidade pecadora, em Cristo, o segundo Adão. De
grande interesse a sua Cristologia. Como são Justino (e depois Tertuliano) Ireneu se
refere a Maria como à nova Eva, diferente da primeira por sua obediência à palavra de
Deus, o que a tornou “causa de salvação* para o gênero humano.
Excelente edição crítica está aparecendo na coleção “Sources Chrétiennes”, 100,
152, 153, 211 (livros I I I , IV e V do Adv. Haer.). Em S.C. 62: tradução francesa da
D e m o n stra ç ã o , do armênip; em A.C.W., 16, tradução inglesa.

CONTRA AS HERESIAS

A Tradição dos A póstolos e a Igreja de Roma


(1. III, 1,1-2; 2,1-2; 3,1-3; 4,1; P.G. 7, 844ss; S.C. 34)

O Mestre de todas as coisas deu a seus apóstoJos *o poder de 182


pregar o Evangelho. É por meio deles que conhecemos a verdade, is­
to é, o ensino do Filho de Deus. Foi a eles que o Senhor disse:
“ quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza
e despreza aquele que me enviou ” l.
Com efeito, não tivemos conhecimento da economia de nossa
salvação por outros que não os pregadores do Evangelho. Este Evan­
gelho, que eles primeiramente pregaram, depois, pela vontade de
Deus, eles nos transmitiram em Escrituras a fim de se tom ar “o
fundamento e a coluna” de nossa f é 12.

1 Lc 10,16.
2 Cf, lTm 3.15.
Não se pode dizer que tenham pregado antes de possuírem o
“conhecimento perfeito” 3, como alguns afirmaram audaciosamente
presumindo até corrigir os apóstolos. Porque depois que Nosso Senhor
ressurgiu dos mortos e foram os apóstolos revestidos da força do
alto pela vinda repentina do Espírito Santo, ficaram eles repletos
de dons e tiveram o “conhecimento perfeito”. Desde então parti­
ram “até os extremos da terra”, proclamando a boa nova dos bens
que Deus nos ènvia e anunciando aos homens a paz do céu: eles
possuíam, todos igualmente e cada um em particular, o Evangelho
de Deus.
183 Mateus precisamente, entre os hebreus, e também em sua pró­
pria língua, fez aparecer uma forma escrita de evangelho, ao tempo
em que Pedro e Paulo evangelizavam e fundavam a Igreja em Roma.
Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro,
nos transmitiu igualmente por escrito a pregação de Pedro. Da mes­
ma forma Lucas, o companheiro de Paulo, consignou em livro o evan­
gelho pregado por este. Enfim João, o discípulo do Senhor, o mesmo
que reclinou sobre seu peito, publicou também o Evangelho durante
a estadia em JÉfeso.
184 Ora, todos estes nos legaram a seguinte doutrina: um só Deus,
Criador do céu e da terra, anunciado pela Lei e pelos Profetas; e
um só Cristo Filho de Deus.
Quem não lhes dá assentimento despreza os que tiveram parte
com o Senhor, despreza o próprio Senhor, despreza enfim o Pai;, e
assim se condena a si mesmo, pois resiste e se opõe á sua salvação
— e é o que fazem todos os hereges.
Quando estes são arguidos a partir das Escrituras, põem-se a
acusar as próprias Escrituras: os textos estão corrompidos, são apó­
crifos, não concordam, é impossível achar neles a verdade se se
ignora a tradição. Porque — (prosseguem dizendo) — essa verdade
não foi transmitida por escrito e sim de viva voz, conforme disse
Paulo: “Nós falamos da Sabedoria entre perfeitos, não da sabedoria
deste m undo” 4.
185 Tal sabedoria é a que cada um pretende ter achado por si
mesmo, quer dizer, é o fruto de sua imaginação, tanto que eles
não veem inconveniente em atribuí-la ora a Valentirio, ora a
Marcião, ora a Cerinto, Basílio ou qualquer outro que contesta
(a Igreja) sem ter dito uma só palavra salutar. Cada um deles chega
ao cumulo de “se pregar a si mesmo” 5 ao falsear a regra da
verdade.

3 Os gnós ticos pretendiam que esse "conhecimento perfeito” faltara aos Apóstolos
ou, se foram iniciados nele, não o transmitiram a todos mas somente a alguns, de mo­
do secreto.
4 lCor 2,6. Texto eleito da Gnose.
5 Cf. 2Cor 4,J>
CONTRA AS HERESIAS 117

Quando então passamos a apelar para a tradição que vem dos


apóstolos e se conserva nas igrejas pelas sucessões dos presbíteros,
opõem-se à tradição. Pretendem ultrapassar em sabedoria não apenas
os presbíteros mas os apóstolos, e ter achado a genuína verdade.
Os apóstolos teriam misturado prescrições da Lei às palavras do
Salvador. E não só os apóstolos, mas até o Senhor tem palavras pro­
venientes ora do “Demiurgo”, ora do “Intermediário”, ora da “Supre­
ma potência” 6. Quanto a eles mesmos, é sem a menor dúvida, sem
mistura, em estado puro, que conhecem o Mistério escondido: eis
a pior das blasfêmias contra o Criador!
Ocorre pois não se harmonizarem nem com as Escrituras nem
com a tradição.
Contra tais adversários precisamos lutar, caríssimos! Eles se insi­
nuam como serpentes e buscam escapar por todos os lados. Por isso
de todos os lados será preciso enfrentá-los para ver se podemos,
rebaixando e confundindo seu orgulho, levar alguns a se converterem
à verdade. Se à alma, dominada pelo erro, não é fácil recuperar-se,
também não é absolutamente impossível que se afaste do erro ao ter
ante os olhos a verdade.
Assim, todos os que desejam a verdade podem perceber em 186
qualquer igreja a tradição dos apóstolos manifestada no mundo in­
teiro. E nós podemos enumerar os que os apóstolos instituíram
como bispos nas igrejas, bem como suas sucessões até nossos dias:
nada ali foi ensinado ou reconhecido que se assemelhe ao delírio de
tais indivíduos.
Se realmente os apóstolos tivessem conhecido “mistérios secre­
tos” e os tivessem ensinado aos “perfeitos”, à parte, em desvantagem
dos demais, tê-lo-iam feito em primeiro lugar àqueles aos quais confia­
ram as igrejas. Eles queriam, com efeito, que seus sucessores, receben­
do o poder de ensinar em seu próprio lugar, fossem absolutamente*
“perfeitos” e irrepreensíveis em tu d o 7: sua conduta perfeita haveria
de ser um bem imenso, sua queda uma grande calamidade.
Ora, dado que seria demasiadamente longo, num volume como
este, enumerar as sucessões de todas as igrejas, tomaremos a má­
xima igreja, muito antiga e conhecida de todos, fundada e construída
em Roma pelos dois gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo; mos­
traremos que a tradição que ela tem, dos mesmos, e a fé que anunciou
aos homens, chegaram até nós por sucessões de bispos. Isto servirá
à confusão dos que, de qualquer forma por presunção ou por van­
glória, por cegueira ou por erro doutrinário, constituem agrupamentos
ilegítimos.
Porque é com esta igreja (de Roma), em razão de sua mais po- 187
derosa autoridade de fundação, que deve necessariamente concordar
6 Referência às doutrinas gnósticas, que distinguiam do supremo Pai o Demiurgo
(Criador) e outras entidades.
7 Cf. lTm 3,2; T t 1,6-7.
Í18 SANTO IR EN EU

toda igreja, isto é, que devem concordar os fiéis procedentes de qual­


quer parte, ela, na qual sempre, em benefício dos que procedem de
toda parte, se conservou a tradição que vem dos apóstolos 8.
Depois de ter fundado e edificado a Igreja, os bem-aventurados
apóstolos transmitiram a Lino o cargo do episcopado; deste Lino faz
menção Paulo nas suas cartas a Tim óteo9. Anacleto o sucedeu. Depois,
em terceiro lugar a partir dos apóstolos, é a Clemente que cabe o
episcopado. Ele tinha visto os próprios apóstolos, estivera em relação
com eles; sua pregação ressoava-lhe aos ouvidos; sua tradição estava
presente ainda aos seus olhos. Aliás, ele não estava só; havia em sua
época muitos homens instruídos pelos apóstolos. Ao tempo desse
Clemente, pois, uma dissensão grave ocorreu entre os irmãos de Co­
rinto; a Igreja de Roma dirigiu então aos coríntios um escrito muito
importante para reconciliá-los na paz, reanimar sua fé e anunciar-lhes
a tradição que tinha recebido recentemente dos apóstolos: um só Deus
Onipotente, Criador do céu e da terra, que modelou o homem, pro­
duziu o diluvio, chamou a Abraão, fez sair seu povo do Egito,
falou a Moisés, estabeleceu o regime da Lei, enviou os Profetas,
preparou o fogo para o diabo e seus anjos.
188 Que esse Deus seja anunciado pelas Igrejas como sendo também
o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, todos os que quiserem podem
verificar segundo o mesmo documento. Podem assim conhecer a tra­
dição apostólica da Igreja, pois tal carta é mais antiga que os fautores
dos erros atuais, os quais inventam mentirosamente “outro Deus su­
perior ao Demiurgo”, ao Criador de nosso universo.
A Clemente sucede Evaristo; a Evaristo, Alexandre; em seguida,
em sexto lugar a partir dos apóstolos, é instituído Sixto; depois Te-
lésforo, também glorioso por seu martírio; depois Higino, Pio, Ani-
ceto; Sotero, sucessor de Aniceto e agora Eleutério detém o episco­
pado, em 129 lugar a partir dos apóstolos 10.
É nesta ordem e “sucessão” que a tradição dada à Igreja desde
os apóstolos, e a pregação da verdade, chegaram até nós. E está aí
uma prova muito completa de que é única e sempre a mesma, a fé
vivificadora que, na Igreja desde os apóstolos, se. conservou até o
dia de hoje e foi transmitida na verdade.

189 Sendo nossas provas de tal monta, não é preciso ir procurar


alhures a verdade, tão fácil de se haurir na Igreja, pois os aposto-

8 Texto célebre, que comporta toda uma literatura. Ver S.C., vol. 34. p. 414ss.
Em latim: "Ad hanc enim ecdesiam, propter pctentiorem prindpalitatem, necerse est
omnem convenire ecclesiam, — hoc est eos qui sunt undique fideles, — in qua sem-
per, ab his qui sunt undique, conservata est ea quac est ab apostolis Tr adi tio ”.
9 Cf. 2Tm 4,21. ■
10 Ireneu nos conserva aqui um documento de grande valor: a lista dos bispos de
Rema desde s. Pedro. Seu contemporâneo Hegesipo também se refere a uma lista de
pontífices romanos (cf. Eusébio, Hist. eccl., IV, 22,2), a qual se reencontra em Júlio
Africano (c. de 221). Outra fonte se acha na Crônica de Hipólito (séc. I I I ) .
CONTRA AS HERESIAS 119

los, como num rico celeiro, aí depuseram a verdade, em sua ple­


nitude, a fim de q u e . todo o que desejar possa tirar dela a bebiba
da v id a 11. Nela está o acesso à vida; todos os demais são saltea­
dores e ladrões12. Por isto é necessário evitá-los, e de outro lado
amar com extremo amor tudo o que é da Igreja, retendo fortemente
a tradição da verdade.
Pois bem, se ainda que apenas uma questão de detalhe pro­
vocasse a discussão, não se haveria de recorrer às igrejas mais antigas,
àquelas onde viveram os apóstolos, para se esclarecer a questão? E se
os apóstolos não tivessem deixado quaisquer Escrituras, não se haveria
de seguir a ordem da tradição que eles legaram aos mesmos aos quais
confiaram as igrejas? 13

Refutando as teorias gnósticàs


(liv. III, 16,6: P.G. 7,926ss; S.C. vol. 211)

Àqueles dos quais acabamos de falar, mesmo se de boca con- 190


fessam um só Jesus Cristo, tripudiam consigo mesmos ao falarem di­
versamente do que pensam. Seus diversos discursos, como já mos­
tramos, apresentam de uin lado o que padeceu e nasceu: é Jesus; de
outro o que desceu sobre este retornou ao céu: é o Cristo. Um é
procedente do Demiurgo, óu da “economia”, nasceu de José, é capaz
de sofrer, dizem eles; o outro “desceu das regiões invisíveis e inex­
primíveis” : é “invisível, inapréensível, impassível”. Afastam-se assim
da verdade, pois pelo pensamento se afastam daquele que é o ver­
dadeiro Deus.

Não sabem que o Verbo, Filho Unigénito desse Deus, e sempre


presente ao gênero humano, se uniu à obra que ele mesmo plasníÜU^
e a impregnou (de sua divindade), conforme aprouve ao Pai. Esse
Verbo feito carne é Jesus Cristo nosso Senhor, aquele que sofreu por
nós, ressuscitou por nossa causa e voltará na glória do Pai para res­
suscitar toda carne, manifestar a salvação e fazer brilhar a regra do
justo juízo no universo, a si submetido. Não há, pois, senão um só
Deus Pai, como temos demonstrado, e um só Cristo Jesus, nosso Se­
nhor, que veio através de toda a “economia” e recapitulou tudo em
si mesmo.
Nesse “tudo” está incluído o homem, plasmado por Deus. Por- 191
tanto ele também recapitula o homem em si mesmo, tornando-se
de Invisível visível, de Incompreensível compreensível, de Impassível
passível, de Verbo homem. Recapitulou tudo em si mesmo, de sorte
que, como o Verbo de Deus tem a primazia sobre o mundo supra-
120 SANTO IR EN EU
•celeste, espiritual e invisível, tenha também a soberania sobre o
mundo visível e corporal, assumindo em si o primado (universal).
Ele, enquanto se coloca na posição de Cabeça da Igreja, atrai tudo
a si no momento oportuno.
Porque nada há nele de desordenado ou intempestivo, como nada
de incôngruo em seu Pai. Todas as coisas, conhecidas de antemão
pelo Pai, são realizadas depois pelo Filho, segundo toda conveniência,
tudo naturalmente, no momento oportuno. E por isto, quando Maria
desejou apressar o maravilhoso sinal do vinho, querendo participar,
antes do tempo, do cálice do “ resumo ” l, o Senhor conteve sua pressa,
dizendo-lhe: “Mulher, que importa isto a mim e á ti? Ainda não
chegou a minha hora” 12. Ele aguardava a hora pré-conhecida do Pai.
Pela mesma razão, quando às vezes os homens quiseram prendê-
-lo foi dito: “ninguém pôs a mão sobre ele, porque sua hora ainda
não chegara” 3: a hora de seu aprisionamento, o tempo de sua Paixão,
conhecido antecipadamente pelo Pai, como o diz também o Profeta
Habacuc: “Será ao aproximar dos anos que te tornarás conhecido e
quando vier o tempo tu te mostrarás; será quando minha alma estiver
perturbada por tua ira que te lembrarás de tua misericórdia” 4. Paulo
igualmente diz: “quando veio a plenitude do tempo, Deus enviou
seu Filho” 5.
Tais textos mostram com evidência que tudo que foi pré-conce-
bido pelo Pai, N osso Senhor cumpriu segundo a ordem, o tempo e a
hora previstos e côngruos, ele que é na verdade sempre um e o
mesmo, embora rico e múltiplo. Porque é à “rica e múltipla” vontade
do Pai que ele serve, sendo, como é, o Salvador dos que são salvos,
o Senhor dos que se lhe submetem, o Deus das coisas criadas, o
Filho Unigénito do Pai, o Cristo que foi anunciado e o Verbo encar­
nado quando veio a plenitude do tempo, quando o Filho de Deus de­
via tornar-se o Filho do homem.

A unidade do Cristo Jesus


(liv. I I I , 16, 8: P.G. 7, 926ss)

Estão fora da economia (da salvação) todos os que, a pretexto


de ciência (g n o se), põem de um lado Jesus, de cutro o Cristo, de­
pois o Unigénito e ainda o Verbo, depois o Salvador que (dizem

1 “Resumo” ( “compendium” ): trata-se do cálice que resume e concentra em si


todos os mistérios da salvação: o cálice da Eucaristia, “o maravilhoso sinal do vinho”,
do qual o milagre de Caná é prefiguração. Não há aqui nenhuma imperfeição em Maria
(do contrário Jesus seria cúmplice ao realizar o milagre), mas apenas a revelação do
poder de intercessão que ele dera à “Cheia da graça”. Cf. E. Sagnard, S.C., vol. 34,
pp. 424-428.
2 Jo 2,4.
3 To 7,30.
CONTRA AS HERESIAS 121

esses discípulos do erro) é uma emissão dos eões decaídos. Vistos


de fera são ovelhas; pela linguagem exterior que mantêm, assemelham*
-se a nós, falam como nós, mas no fundo são lobos! Sua dou­
trina é homicida; de um lado inventam diversos “deuses”, imaginam
diversos “Pais"; de outro diminuem e dividem o Filho de Deus.
Foi desses tais que o Senhor mandou que nos guardássemos.
E seu discípulo João, na epístola citada anteriormente, prescreveu
que deles fugíssemos, dizendo: “Muitos sedutores têm saído pelo
mundo afora, os quais não proclamam Jesus Cristo que se encarnou.
Quem assim fala é sedutor e anticristo. Acautelai-vos, para que
não percais “o fruto de vosso trabalho” 6. E acrescenta, em sua epís­
tola: “Muitos falsos profetas se levantaram no mundo. Eis como se
reconhece o Espírito de Deus: todo espírito que proclama que Jesus
Cristo veio na carne é de D eus, e todo espírito que divide Jesus não
é de Deus, mas do anticristo” 7.
Estes textos se assemelham aos do Evangelho: “O Verbo se
fez carne e habitou entre n ós” 8. E por isto João diz ainda em
sua epístola: “Quem crê que Jesus é o Cristo, nasceu de D eu s” 9.
João nãc conhece senão um único e mesmo Jesus Cristo, pa­
ra quem as portas do céu se abriram10 em sua Ascensão na carne
e que, igualmente, voltará nessa mesma carne na qual padeceu, para
nos revelar a glória do Pai.
Paulo também está de acordo com esses textos. Assim, escreve 193
na Epístola aos romanos: “ . . .mais ainda cs que recebem a abundân­
cia da graça e da justiça para sua vida, reinarão pelo ú n ic o Jesus
Cristo” 11.
Ele não conhece um Cristo que se tivesse evolado de Jesus;
não conhece um Salvador, do alto, que fosse incapaz de sofrer —
como dizem esses por aí. Se, com efeito, foi um o que sofreu e outro *
o que permaneceu em natureza impassível, se um foi o que nasceu
e outro o que desceu sobre o que nasceu — e mesmo o abando­
nou mais tarde — não é mais “único” aquele que se nos apresen­
ta: são dois. Ora, o Apóstolo não conhece senão um único Je­
sus Cristo, que nasceu e padeceu. Diz ainda, na mesma epístola:
“Acaso ignorais que todos cs que fomos batizados, no Cristo Jesus,
foi em sua morte que fomos batizados?. . . e assim como Cristo res­
suscitou dentre cs m ortos. . . também nós devemos caminhar numa
neva vida” 12.
Em outro texto, assinala que foi o Cristo quem sofreu e que
ele é também o Filho de Deus, o qual morreu por nós e nos remiu,
122 SANTO IR E N E U

por meio de seu sangue, no momento prê-estabelecido: “Quando nós


éramos fracos, Cristo, no momento prefixado, morreu pelos ím­
pios . . . Deus fez brilhar seu amor por nós, porque quando ainda
éramos pecadores Cristo morreu por nós; portanto, muito mais agora
que somos justificados pelo seu sangue seremos salvos por ele, da
ira. Se, quando>,éramos inimigos, fcmos reconciliados com Deus pela
morte de seu Filho, com muito mais razão, estando já reconciliados,
seremos salvos por sua vida” 13.
Paulo declara aqui manifestamente ter sido o mesmo o que foi
preso, padeceu e derramou seu sangue por nós, o mesmo que é o
Cristo, c Filho de Deus, e o mesmo também o que ressuscitou e foi
elevado aos céus. Diz ele globalmente: “Cristo morreu; mais ain­
da, ressuscitou, ele que está à direita de D eus” 14. E acrescen­
ta: “Sabemos que Cristo, ressurgido dentre os mortos, não morre
mais” 15.
194 Ele estava prevendo, pelo Espírito, as divisões desses maus mes­
tres, e falava então como para lhes retirar todo pretexto. Diz:
“Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habi­
ta em vós, aquele que ressuscitou a Cristo. . . dentre os mortos, vivi­
ficará também vossos corpos m ortais” 16.
Pouco falta para que não clame aos que desejam ouvir: “Não
vos enganeis! Só há um e mesmo Cristo Jesus, Filho de Deus, qué
per sua paixão nos reconciliou com Deus, ressuscitou dos mortos e
está à direita do Pai; ele, o perfeito em tudo, que não retribuía
aos que o golpeavam, nem proferia ameaças enquanto padecia; que,
sofrendo a tirania, orava ao Pai para que perdoasse seus algozes.
Foi ele quem verdadeiramente nos salvou, o Verbo de Deus, p Filho
unigénito dc Pai, o Cristo Jesus, nosso Senhor”.
Os apóstolos, com efeito, poderiam ter dito que o Cristo desceu
sobre Jesus 17, que o Salvador, oriundo do alto, desceu sobre o Jesus
da economia, que o Cristo das regiões invisíveis desceu sobre o filho
do Demiurgo. Mas absolutamente nada disseram assim! Se tives­
sem pensado assim, tê-lo-iam expresso! O que disseram foi: o Espírito
de Deus desceu sobre ele como uma pomba, aquele Espírito de que
Isaías falara nestes termos: “o Espírito de Deus repousará sobre
ele ” I8, ccmo já explicamos antes; e ainda: “o Espírito do Senhor
está sobre mim: eis por que me ungiu” 19, o Espírito do qual o
Senhor disse: “não sereis vós que falareis, mas o Espírito de vosso

1? Rm 5,8-10.
14 Rm 8,34.
15 Rm 6,9.
16 Rm 8,11.
17 Santo Ireneu alude aqui às diversas e mitológicas concepções que os gnósticos
tinham sobre Jesus Cristo.
18 Is 11,2.
19 Is 61,1.
CONTRA AS HERESIAS 123

Pai falará em v ó s ” 20, dizendo também, quando entregou aos dis­


cípulos o poder da regeneração em Deus: “Ide, ensinai a todas as
nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo” 21.
Foi esse mesmo Espírito que ele prometera, através dos profetas, 195
derramar nos últimos tempos scbre cs servos e servas, a fim de
profetizarem22. Eis por que esse Espírito desceu também sobre c Fi­
lho de Deus, tornado filho do homem, habituando-se com ele a residir
no gênero humano, a “repousar” entre os homens, a habitar na obra
modelada por Deus — realizando neles a vontade do Pai e renovan­
do-os, a partir de sua vetustez, em vista da novidade do Cristo.
Fci este Espírito que Davi pediu para o gênero humano, ao di­
zer: “com teu Espírito que dirige, confirma-me!” 23
Foi ele ainda que, como diz Lucas, desceu — após a Ascen­
são do Senhor — sobre os discípulos, no dia de Pentecostes: é ele
que tem o poder de introduzir as nações na Vida, e de abrir-lhes
o N ovo Testamento. Eis por que, em harmonia, todas as línguas
cantavam um hino a Deus! É o Espírito que conduz à unidade as
raças distantes, oferecendo aò Pai as primícias de todas as nações.
Por essa razão, o próprio Senhor nos prometeu enviar o Es­
pírito Paráclito: para nos adaptar a Deus. Assim como a farinha
não pode formar a pasta enquanto está seca, sem água não pode
tornar-se pão; assim, todos nós não poderíamos tornar-nos “um ” no
Cristo Jesus sem a “Água” que vem dc Céu. E como a terra árida
não frutifica se não recebe a água, também nós, que antes éramos
como “o lenho seco” 24, jamais daríamos frutos de Vida sem a
Chuva livremente descida do Alto. Porque nossos corpos receberam,
pelo banho (batism al), a unidade que os faz incorruptíveis, mas nos­
sas almas a receberam pelo Espírito. Um e outro são necessários?
ambos nos comunicam a vida de Deus.

A infelicidade dos que rejeitam a Igreja


(liv.III, 24,1; P.G. 7, 966)

A pregação da Igreja apresenta por todos os lados firme soli- 196


dez, perseverando idêntica e beneficiando-se, como pudemos mostrar,
com o testemunho dos profetas, apóstolos e seus discípulos, teste­
munho esse que engloba o começo, o meio e o fim, isto é, a totali­
dade da “economia” de Deus e de sua operação infalivelmente orde­
nada à salvação do homem, fundamento de nossa fé. Eis por que esta
fé, que recebemos da Igreja, guardamos com cuidado, como um de-

20 M t 1 0 ,2 0 .
21 M t 28,19.
22 J1 3,1-2.
23 SI 50,13.
24 L c 2 3 ,2 1 .
124 SANTO IR EN EU

pósito de grande valor, encerrado em vaso excelente e que, sob a


ação do Espírito de Deus, se renova e faz renovar o próprio vaso
que a contém. Pois como fôra entregue o divino sopro ao barro mo­
delado, foi confiado à Igreja o “Dom de D eu s” *, a fim de que to­
dos os seus membros pudessem dele participar e ser por ele vivifica­
dos. À Igreja foi entregue a comunhão com Cristo, isto é, o Espírito
Santo, penhor da incorruptibilidade, confirmação de nossa fé e escada
de nossa ascensão para Deus: “na Igreja”, foi dito, “Deus colocou
apóstolos, profetas, doutores” 12 e tudo o mais que pertence à opera­
ção do Espírito. Deste Espírito se excluem os que, recusando-se a
aderir à Igreja, se privam a si mesmos da vida, por suas falsas dou­
trinas e depravadas ações. Porque onde está a Igreja está o Espírito
de Deus, e onde está o Espírito de Deus está a Igreja e toda graça.
Ora, o Espírito é Verdade. Assim, os que dele não participam são
também os que não estão sendo nutridos e vivificados pelos peitos da
Mãe, os que não têm parte na fonte límpida que brota do Corpo
de Cristo, os que “escavam cisternas dessecadas” 3, buracos da terra,
os que bebem a água poluída do pantanal. Eles fogem da Igreja
para não serem desmascarados e rejeitam o Espírito para não serem
instruídos. Tornando-se estranhos à verdade, é fatal que se precipi­
tem em todo erro e pelo erro sejam sacudidos; fatal que pensem
a cada momento diversamente sobre as mesmas coisas, nunca tendo
doutrina estável, sendo sofistas de palavras mais que discípulos da
verdade. Porque não estão fundados sobre a única Rocha, mas sobre
a areia, a areia dos muitos saibros.

A revelação do Pai pelo Filho


(Iiv. IV, 6,1; P.G. 7, 896; S.C. 100)

197 Para mostrar aos discípulos ser ele próprio o Verbo a quem se
deve o conhecimento do Pai, e para censurar a pretensão judaica de
possuir a Deus sem admitir o seu Verbo, pelo qual Deus é co­
nhecido, dizia o Senhor: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai e
ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser
revelar” h É o que está escrito em Mateus, também em Lucas e em
Marcos; João emitiu esta passagem. Mas os que pretendem saber mais
que os apóstolos, modificam o texto da seguinte forma: “Ninguém
conheceu o Pai senão o Filho, nem o Filho senão o Pai, e aquele a
quem o Filho quiser revelar”; e explicam no sentido de que o verda­
deiro Deus não foi por ninguém conhecido antes da vinda de nosso
Senhor: o Deus pregado pelos profetas não seria, dizem eles, o Pai
de Cristo.

1 C f. J o 4 ,1 0 .
2 ICor 12,11.
3 Tr 2 ,1 3 .
1 M t 1 1 ,7 ; L c 1 0 ,2 2 . A q u e p assa g em d e M c e s ta r ia a lu d in d o I r c n c u , a se g u ir?
CONTRA AS HERESIAS 125

Ora, mesmo que Cristo tivesse começado a existir no momento de 198


sua vinda como homem; que o Pai só se tivesse lembrado de cuidar
dos homens a partir do tempo de Xibério César; que fosse demons­
trado não ter estado o Verbo sempre presente à obra que plasmou;
mesmo assim, em vez de se imaginar falsamente um outro Deus, seria
preciso ir em busca das causas de tal omissão e descuido de sua parte.
Pois nenhuma pesquisa haveria de mudar a Deus, e esvaziar de
objeto nossa fé no Criador, naquele que nos sustenta por sua obra
criadora: da mesma forma que nossa fé no Filho, também nosso amor
pelo Pai deve permanecer firme e inalterável. E Justino diz com
razão no tratado contra Marcião: “Eu não teria crido no próprio
Senhor se ele tivesse anunciado outro Deus distinto de nosso Criador,
de nosso Autor, de nosso Sustentador. Foi da parte do Deus único, da­
quele que fez o mundo e nos modelou, que sustem e dirige tudo, que
veio para nós o Filho unigénito, recapitulando em si a obra que plas­
mara; é daí que minha fé nele é sólida e inalterável meu amor pelo
Pai, sendo o Senhor quem nos dá uma e outra coisa”.
Porque ninguém pode conhecer o Pai sem o Verbo de Deus, 199
isto é, se 0 Filho não o revela; nem conhecer o Filho sem o beneplá­
cito do Pai. Este beneplácito do Pai se realiza no Filho, pois 0 Pai
envia, ao passo que o Filho é enviado e vem. O Pai, por invisível que
seja para nós, é conhecido por seu próprio Verbo e, embora inex­
primível, é expresso por ele; reciprocamente, o Verbo não é conhe­
cido senão pelo Pai: tal é a dupla verdade que o Senhor nos deu a
conhecei. E assim o Filho revela o conhecimento do Pai por sua
própria manifestação: o conhecimento do Pai é a manifestação do
F ilho2, pois todas as coisas são manifestas pela mediação do Verbo.

A s “m ãos* de Deus *
(liv. IV. 7,4: P.G. 7, 991; S.C. 100)

Por isto se apartaram de Deus os judeus: porque não receberam 200


seu Verbo e julgaram poder conhecer a Deus pelo próprio Pai, sem
o Verbo, isto é, sem o Filho. Era ignorar aquele que, sob alguma for­
ma humana, se entretivera com Abraão, e depois com Moisés ao
dizer-lhe: “Eu vi a aflição de meu povo no Egito e desci para liber­
tá-lo” 1. Estas manifestações era o Filho, o Verbo de Deus, quem rea­
lizava e desde o princípio. Com efeito, o Pai não precisava de anjos
para criar o mundo e modelar o homem, em vista do qual criava
o mundo; mas nem por isto estava desprovido de ajuda para a fa­
bricação das coisas a serviço da economia. . . Ele possuía um mi­
nistério de inefável riqueza, sendo assistido, em todas as suas obras,

2 “Agnitio enim Patris est Filii manifestado: omnia enim per Verbum manifestan-
tur”.
1 E x 3,7-8.
126 SANTO IR EN EU

por aqueles que são a uma vez sua Progenitura e suas Mãos, a saber,
o Filho e o Espírito, o Verbo e a Sabedoria, aos quais por sua vez
ministram, submissos, todos os anjos.

A criação do homem
(liv . I V , 14,1-2: P .G . 7 , IOIOs; S .C 1 0 0 )

201 N o com eço. . . não foi porque necessitasse do homem que Deus
plasmou Adão, e sim para ter alguém no qual depusesse seus bene­
fícios. Pois não só antes de Adão, mas antes de toda a criação, o
Verbo glorificava o Pai, embora permanecendo n ’Ele, e era glorificado
pelo Pai, consoante a palavra: “Pai, glorifica-me com a glória que
eu tinha junto de ti antes que fosse feito o mundo” l .
Nem foi tampouco porque necessitasse de nossos préstimos que
nos mandou segui-lo, mas para nos proporcionar a salvação. Porque
seguir o Salvador é participar da salvação, como seguir a luz é par­
ticipar da luz. Quando alguém está na luz, não a faz luzir mas é ilu­
minado e abrilhantado por ela; nada lhe confere, beneficia-se por ela
e por seu clarão. Da mesma forma no serviço de Deus: a D eus nada
se confere, ele não precisa do serviço dos homens; estes, sim, que o
servem e o seguem, dele recebem a vida, a incorruptibilidade e a
glória eterna. Ele lhes dá seus benefícios porque o servem e porque o
seguem, sem nada receber em troca, pois é perfeito e sem carência.
Se Deus solicita o serviço dos homens é para poder — Ele, bom e
misericordioso — conceder seus benefícios aos que perseveram em
servi-lo. Deus de nada precisa, mas o homem precisa da comunhão
de Deus: a glória do homem é perseverar no serviço de D e u s12.
Por isto dizia o Senhor aos discípulos: “não fostes vós que me
escolhestes, mas eu que vos escolhi” 3, indicando não o glorificarem eles
por estarem seguindo-o, mas serem glorificados por seguirem o Filho
de D eu s. . .
Assim, D eus, desde o começo plasmou o homem em vista de
seus dons. Escolheu os patriarcas, em vista de sua salvação; for­
mou um povo, para ensinar-lhe em sua ignorância a seguir a Deus;
foi preparando os profetas para habituar o homem, sobre a terra, a
portar o seu Espírito e a ter comunhão com Deus. Ele, que de nada
necessita, oferecia comunhão aos que dele necessitavam. Aos que lhe
eram agradáveis ia desenhando, como arquiteto, c edifício da sal­
vação; aos que não enxergavam, no Egito, se fazia de condutor;
aos turbulentos, no deserto, doava uma Lei, perfeitamente adaptada;
aos que ingressavam na boa terra, proporcionava a conveniente heran­
ça; enfim, aos que se voltavam para seu Pai, presenteava com um

1 Jo 17,5.
2 “In quantum enim Deus nullius indigens, in tantum homo indiget. Dei commu-
nione. Haec enim gloria hominis, perseverare ac permanere in Dei servitute”.
5 Jo 15,16.
CONTRA AS HERESIAS 127

novilho gordo e a mais esplêndida veste para se cobrirem 4. Ia desta


forma, de múltiplas maneiras, dispondo o gênero humano para a “sin­
fonia” da salvação...

O homem, criado por Deus e destinado a vê-lo


(liv. IV, 20,1.3.4.5.7: P.G. 7, 1032ss; S.C. 100)

Não se pede conhecer a Deus segundo sua grandeza, pois é im- 202
possível mensurar o Pai. Mas, segundo seu amor — e este nos con­
duz a Deus por seu Verbo — cs que lhe obedecem aprendem sem­
pre que existe um grande Deus, Criador por si mesmo de todas
as coisas.
Ora, entre estas estamos nós com o nosso mundo. Portanto,
também nes e tudo que o mundo encerra, femos feites por Ele. É
o que diz a Escritura: “Deus plasmou o homem do limo da terra,
insuflando-lhe um sopro de vida” i. Não foram os anjos que o fizeram
ou plasmaram — cs anjos não poderiam fazer uma imagem de Deus!
— nem qualquer outro ser fora do verdadeiro Deus, qualquer potên­
cia distante do Pai universal. Nem Ele teria necessidade desses para
realizar o que em seu íntimo predestinara fazer, como se acaso não
tivesse suas próprias mãos! Sim, desde sempre há junto dele o Verbo
e a Sabedoria, o Filho e o Espírito, pelos quais e nos quais fez
tedas as coisas, livremente, com toda independência. Foi aos mesmos
que o Pai se dirigiu, dizendo: “façamos o homem à nossa imagem e
semelhança” 2. Fci, pois, per si mesmo que temou a substância das
criaturas, o modelo das coisas feitas, a figura das coisas que foram or­
denadas . . .
Já temos mostrado que o Verbo, isto é, o Filho, esteve sempre 203
com o Pai. Mas também a Sabedoria, o Espírito, estava igual­
mente junto dele antes de toda a criação, conforme dito per boca de
Salomão: “Deus pela Sabedoria fundou a terra, preparou c céu pela
Inteligência; por sua Ciência brotaram os abismos e as nuvens distila­
ram o orvalho” 3. . .
Assim, não há senão um só Deus, que pelo Verbo e pela Sabe­
doria tudo fez e harmonizou. É ele o Criador, e o que fixou este
mundo para o gênero humano. Ignoto, por sua grandeza, a todos os
seres que fez — não havendo quem tenha perscrutado sua elevação
— é porém sempre conhecido, segundo seu amor, graças àquele
por meio de quem criou o universo: seu Verbo, nesso Senhor Jesus
Cristo, aquele que nos últimos tempos se fez hemem entre os homens,
para reunir c fim ao Princípio, o homem a Deus.

4 Cf. a parábola do filho pródigo, em Lc 15,22-23; ao vs. 25 refere-se a “sinfonia”.


1 Gn 2,7.
2 Gn 1,26.
3 Pr 3,19-20.
128 SANTO IR EN EU

Eis porque os profetas, depois de terem recebido do mesmo


Verbo o carisma profético, prenunciaram sua vinda segundo a carne,
pela qual se realizou o entrelaçamento e a comunhão de Deus ccm o
homem, segundo o beneplácito do Pai. Desde o começo, realmente, o
Verbo anunciou que Déus seria viste pelos homens, conversaria e
falaria com eles^ sobre a terra, se tornaria presente à sua obra, para
salvá-la, para se deixar perceber por ela, para “nos libertar das mãos
de todos os que nos odeiam ” 4, isto é, de tede espírito de transgres­
são; e para que servíssemos a Deus “em santidade e justiça todos os
dias de nossa vida” 56: o homem, abraçado ao Espírito de Deus,
chegaria à glória do Pai . . .
Certo, segundo sua grandeza e inenarrável glória, “ninguém
verá a Deus e continuará a viver” ó, sendo o Pai inapreensível; mas
segundo seu amor, sua bondade para com os homens, segundo sua
onipotência, ele concederá aos que o amam o privilégio da visão di­
vina — predita pelos profetas — pois “o impossível aos homens
é possível a Deus” 7.
204 Por si mesmo, o homem jamais poderá ver a Deus, mas se Deus
quer pede ser visto pelos homens, pelos que Ele quer, quando quer
e como quer. Deus pode tudo! Foi visto outrora segundo o modo
profético, por intervenção do Espírito; visto depois segundo a graça da
adoção, por mediação do Filho; e será visto mais tarde no Reino
dos céus segundo a paternidade, se o Espírito prepara o homem para
o Filho de Deus, se o Filho o conduz ao Pai, e se o Pai lhe dá a in­
corruptibilidade e a vida eterna, que resultam da visão de Deus
para os que o veem.
Assim como os que contemplam a luz estão na luz e participam
de seu esplendor, os que contemplam a Deus estão nele e participam
de seu esplendor. E é vivificante o esplendor divino! Serão, pois,
vivificados os que contemplam a Deus.
Eis o motivo pelo qual o Inapreensível, Incompreensível e In­
visível se torna apto a ser visto, compreendido e captado pelos
homens: para vivificá-los! Pois se sua grandeza é inescrutável,
também sua bondade é inefável e, graças a ela, Deus se faz ver e
concede a vida acs que o veem: seria impossível viver sem a vida,
mas não há vida senão pela participação de Deus, participação que
consiste em vê-lo e gozar de sua bondade. ..
Assim, desde o começo, o Revelador do Pai é o Filho, que
está desde o começo ccm o Pai: as visões proféticas, a diversidade
das graças, seus ministérios, a glorificação paterna, tudo isto, à manei­
ra de uma melodia bem composta e harmonizada, o Filho foi desdo­
brando para os homens, em determinados momentos e para seu pro-

4 Lc 1,71.
5 I.c 1,74-75.
6 E x 3 3 ,2 0 .
7 Lc 18,27.
CONTRA AS HERESIAS 129
veito. Pois onde há composição, há melodia; onde há melodia há pre­
visão dos mementos; onde há previsão há bom proveito.
O Verbo se tornou assim o dispensador da graça do Pai para o 205
proveito dos homens, em vista dos quais realizou grandes “econo­
m ias”, mostrando Deus aos homens e apresentando o homem a Deus,
salvaguardando a invisibilidade do Pai, a fim de não vir o homem
a desprezar a Deus, a fim de ter sempre para onde progredir. E
ao mesmo tempo tornando-lhes Deus visível pelas múltiplas “econo­
mias”, impedindo-os de se privarem totalmente: d ’Ele e de perde­
rem até a existência. Porque a glória de Deus é o homem vivo,
e a vida do hemem é a visão de Deus. Se já a revelação divina através
da criação dá a vida a todos os seres que vivem sobre a terra, quanto
mais a manifestação do Pai pelo Verbo não dá a vida aos que vêem
a Deus!

O sacrifício da nova aliança


(liv. IV, 17,1.5.6; 18,1.4.5.6: P.G. 7, 1019ss; S.C. 100)

Os profetas atestam copiosamente que Deus prescreveu as obser- 206


vâncias contidas na Lei, sem todavia precisar do obséquio dos filhos
de Israel. O próprio Senhor ensinou abertamente que se Deus pede
aos homens uma oblação, é com vistas ao bem daquele que oferece,
isto é, do homem ( . . . ) Aos discípulos aconselhou oferecessem as
primícias da criação a D eus, que delas não precisa, para não se mos­
trarem estéreis e ingratos. Ele mesmo tomou o pão, que provém da
criação, e dando graças, disse: “isto é meu corpo”. Da mesma forma
o cálice, também proveniente da criação a que pertencemos, declarou-o
seu sangue, ensinando ser a nova oblação da Nova Aliança h É esta
a oblação que a Igreja recebeu dos apóstolos e, no mundo inteiro, ■
oferece ao Deus doador de nosso sustento, como primícias dos dons
divinos na Nova Aliança.
Vaticinava a este respeito Malaquias, entre os doze profetas, 207
com os seguintes termos: “não acho nenhum agrado em vós, diz
o Senhor todo-poderoso, nenhuma oferta de vossas mãos me é agra­
dável; porque do nascente ao poente, meu nome é grande entre as
nações e em todo lugar se oferecem ao meu nome o incenso, sacri­
fícios e oblações puras; sim, meu nome é grande entre as nações, diz
o Senhor todo-pederoso” 2. O profeta anunciava claramente que o
primeiro povo cessaria de fazer oblações a D eus, ao passo que em toda
parte outro sacrifício lhe seria oferecido, este puro. E então seu no­
me seria glorificado entre as nações.
Ora, que outro nome é glorificado entre as nações senão o de
nosso Senhor, por quem o Pai é glorificado e também o homem?

1 M t 2 6 ,2 8 .
* Ml 1,10-11.5

5 * Antologia dos santos padres


130 SANTO IR EN EU

Mas, porque é o nome de seu próprio Filho — que Ele fez nascer
homem — declara-o seu. Como um rei que tivesse gravado o retrato
do filho, dizendo ser seu próprio retrato — por ser de seu filho e
por ter sido o gravador — assim ocorre com o nome de Jesus
Cristo, que através do mundo é glorificado na Igreja: o Pai declara
seu, pois é de $eu Filho e porque ele mesmo o gravou quando o con­
signou para a salvação dos homens ( . . . ) .
208 Portanto, a oblação da Igreja, que o Senhor prescreveu fosse ofe­
recida por todo o mundo, é reputada sacrifício puro e agradável jun­
to de Deus. Ele não precisa de nosso sacrifício, mas quem o ofe­
rece se terna honorificado pela dádiva que oferece, quando é aceita.
Pòis pela dádiva se manifestam a honra e a veneração que tributamos
ao Rei, esta dádiva que o Senhor nos quer ver oferecendo com toda
simplicidade e inocência: “se levares tua dádiva diante do altar”,
ensina ele, “e te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa-a
ante o altar e vai primeiro reccnciliar-te com o irmão; depois virás e
a oferecerás” 3. Importa oferecer a Deus as primícias de suas criatu­
ras, como dizia Moisés: “não te apresentarás ao Senhor teu Deus
com as mãos vazias” 4. Expressando-lhe reconhecimento por meio das
coisas que ele mesmo concedeu, o homem receberá a honra que
promana dele ( . . . ) .
As assembléias dos hereges não fazem a oblação que convém.
Uns dizem haver outro Pai, distinto do Criador; e então, oferecendo-
-Ihe dons extraídos de nosso mundo criado, supõem-no ambicioso de
bens alheios! Para outros, nosso mundo resulta de uma queda, de
uma ignorância e de uma paixão; e então, oferecendo os frutos dessa
ignorância, paixão e queda, pecam contra seu próprio Pai e o ul­
trajam mais do que lhe rendem graças!
209 Aliás, como terão a certeza de que o pão eucaristizado5 é o corpo
do Senhor, e o cálice seu sangue, se não o dizem Filho do Autor
do mundo, seu Verbo, aquele pelo qual a árvore frutifica, as fontes
jorram, a terra produz a erva, a espiga e o trigo?
Como haverão de pretender então que a carne está destinada
à corrupção e não participará da vida, a carne nutrida pelo corpo do
Senhor e por seu sangue? Mudem seu modo de pensar! Quanto a
nós, nossa idéia concorda com a Eucaristia e a Eucaristia vem confir­
má-la, pois oferecemos a Deus o que é seu, proclamando ao mesmo
tempo a comunhão e união entre a carne e o Espírito: da mesma
forma que o pão terreno, após receber a invocação de Deus, já não
é pão comum, mas Eucaristia, constituída de duas coisas, uma terres­
tre e outra celeste, também nossos corpos, que participam na Euca­
ristia, não são mais corruptíveis, possuem dentro deles a esperança
da ressurreição.

3 M t 5,23-24.
4 D t 1 6 ,1 6 .
5 N o te x t o g re g o : “ to n e u c h a ris te th é n ta á r to n ” .
CONTRA AS HERESIAS 131

N ós fazemos a oferenda a Deus como a Alguém que, sem dela 210


precisar, aceita nossa gratidão por seus dons, nosso desejo de consa­
grar a criação. Deus nac precisa do que é nosso, mas nós precisamos
cferecer-lhe algo. Afirmava Salomão: “quem se compadece do pobre
empresta a D eus” 6. Sim, ele aceita nessas boas ações sem de nada
carecer, a fim de nos dar em retribuição seus próprios bens. Por isso
diz o Senhor: “vinde, benditos de meu Pai, recebei o reino prepara­
do para vós, pois tive fome e me destes de comer, tive sede e me
destes de beber, fui estrangeiro e me acolhestes, nu e me vestistes,
enfermo e me visitastes, preso e viestes a m im” 7. Por nossa causa o
Senhor pede aquilo de que não necessita, a fim de não sermos esté­
reis. Outrora, ele, o Verbo, prescrevera ao povo a realização de
oblações, a fim de aprenderem a servir a Deus. Da mesma forma quer
que ofereçamos ccntinuamente nossas dádivas ao altar.

O plano de Deus, a Eucaristia, a Igreja


(liv. V, cap. 2, 18, 19, 20; P.G. 7, 1123ss)

Levianos de todo são os que desprezam a dispensação de Deus, 211


ao negarem a salvação da carne, ao repelirem a sua regeneração,
dizende-a incapaz de incorrupção. Ora, se não há salvação para a
carne, então o Senhor não nos remiu com seu sangue, e o cálice da
eucaristia já não é a comunhão de seu sangue, c pão que partimos
não é a comunhão de seu corpo. Com efeito, não há sangue se não
há veias, músculos e o mais que pertence a esta substância humana,
que o Verbo de Deus verdadeiramente se fez, ele que nos resgatou por
seu sangue: “Nele temos a redenção por seu sangue, a remissão dos
pecados” 1. Dado que nós, seus membros, nos alimentamos de cói- <
sas criadas, (as quais, aliás, ele mesmo nos oferece — fazendo er­
guer-se o sol e cair a chuva conforme sua vontade), também quis
fosse seu sangue o cálice de vinho, extraído da Criação, para com ele
robustecer nosso sangue; quis fosse seu corpo o pão, também prove­
niente da Criação, para com ele robustecer nossos corpos. Se, pois,
a mistura do cálice e o.pão recebem a palavra de Deus tornando-se a
eucaristia do sangue e do corpo de Cristo, pelos qums cresce e se
fortifica a substância de nossa carne, como se haverá de negar à car­
ne, assim nutrida com o corpo e sangue de Cristo, e feita membro
de seu corpo, a aptidão para receber o dom de Deus, a vida eterna?
É o que diz o bem-aventurado Apóstolo, na Carta aos efésios: “Somos
membros de seu corpo, de sua carne e de seus ossos” 2. Isto ele não
dizia de algum espírito invisível, pois “um espírito não tem ossos nem

6 Pr 19,17.
7 M t 25,34-36.
i Q 1,14.
132 SANTO IR EN EU

carne” 3, mas da condição real do homem, a qual comporta carnes,


nervos e ossos, e. é nutrida com o cálice que é sangue de Cristo e
com o pão que é seu corpo.
212 Assim como a muda da videira, depositada na terra, depois
frutifica, e o grão de trigo, caído no solo e destruído, ressurge multi­
plicado, pela ação do Espírito de Deus que tudo sustém; e em se­
guida pela arte' des homens se fazem dessas coisas vinho e pão, que
péla palavra de Deus se tornam a eucaristia, corpo e sangue de Cristo;
assim também nossos corpos, alimentados com a eucaristia, ao serem
depositados na terra e aí destruídos, vão ressurgir um dia para a
glória do Pai, quando a palavra de Deus lhes der a ressurreição. O
Pai reveste de imortalidade o que é mortal, dá gratuitamente a incor-
rupção ao que é corruptível, pois o poder de Deus se manifesta na
fragilidade. Evitaremos, pois, vangloriar-nos e ergulharnos diante
de Deus, corrompendo nossa mente e julgando possuir a vida por
nós mesmos; ao ccntrário, aprenderemos, por experiência, que pela
bondade divina, não por nossa natureza possuímos a eternidade;
não nos apartaremos do verdadeiro pensar sobre Deus, não ignorare­
mos nossa natureza. Conheceremos o poder de Deus e o benefício
dele recebido, sem errarmos a respeito do modo de ser das coisas
divinas e das coisas humanas.
Acaso não foi por esta razão que Deus permitiu houvesse em
nós a corrupção da morte? Acaso não foi para que, assim instruídos,
em tudo nos aplicássemos, e não ignorássemos a Deus e a nós
mesmos?

213 O Senhor realizou seu admirável plano, não às custas de criação


alheia, mas de sua própria; não mediante algo brotado da ignorância
e da decadência, mas da sabedoria e do poder do Pai. Ele, com efeito,
não era um injusto que cobiçasse o bem alheio, não era um pobre in­
capaz dfe suscitar a vida em obras próprias, de servir-se de sua criação
para nela realizar a salvação. A criação teria podido pcrtá-Lo, se
fosse obra da ignorância e da decadência? Ora, que o Verbo de
Deus, após ter-se encarnado, tenha sido suspenso ao lenho é sabido,
os próprios hereges confessam o Crucificado. Como, então, o produto
da ignorância e da decadência houvera suportado aquele que encerra
o conhecimento de todas as coisas e é verdadeiramente perfeito?
Como uma criação separada do Pai haveria de suportar seu Verbo?
Ainda que fosse feita pelos anjos — quer estes ignorassem ao Deus
superior a tudo, quer o conhecessem, como o Senhor disse: “Eu
estou no Pai e o Pai está em mim” 4 — como poderia a obra dos
anjos suportar simultaneamente o Pai e o Filho? Como uma criação

3 2Cor 12,9.
4 J o 1 4 ,1 1 .
CONTRA AS HERESIAS 133

exterior ao Plerom a5 haveria de suportar aquele que encerra todo


o Pleroma? Sendo isso impossível e inverossímil, só é verdadeira a
mensagem que a Igreja proclama, segundo a qual a mesma criação,
que subsiste pelo pcder, pela arte e sabedoria de Deus, se tornou
portadora do seu Verbo: no plano invisível ela é sustentada pelo
Pai e no plano visível é portadora de seu Verbo. Esta é a verdade.
O Pai, que porta ao mesmo tempo a criação e seu próprio Verbo, Ele,
juntamente com o Verbo, dá o Espírito a todos, conforme sua von­
tade páterna: a alguns dá-o conforme a condição da criatura, isto é,
como um espírito criado; a outros, conforme a adoção, isto é, um
espírito que procede de Deus e é uma nova geração. Assim se mani­
festa o único Pai, que está acima de todas as coisas, através de todas,
em todas. Acima de todas, o Pai, que é a Cabeça de Cristo; através de
todas, o Verbo, que é a Cabeça da Igreja; e em todos nós o Espírito,
que é a água viva oferecida por Deus aos que nele creem retamente,
aos que o amam e sabem ser “um o Pai que está acima de tudo,
através de tudo e em todos nós” 6.
Disso dá testemunho João, o discípulo do Senhor, quando diz
no Evangelho: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus e o Verbo era Deus. Ele, no princípio, estava com Deus. Tudo
foi feito por elè, e sem ele nada foi feito”. Em seguida, a respeito
do Verbo, quando diz: “Estava neste mundo e o mundo foi feito
por ele e o mundo não o conheceu. Mas a todos os que o rece­
beram deu o poder de se tornarem filhos de Deus, aos que crêem
em seu nome”. Quando quer significar sua dispensação enquanto
homem, diz: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. E fi­
nalmente: “Nós vimos a sua glória, glória própria do unigénito do
Pai, cheio de graça e verdade” 7.

Se o Senhor veio de um modo manifesto até seu próprio domí- 214


nio; se foi portado por sua própria criação — que ele mesmo porta
em si; se recapitulou3 por sua obediência sobre o lenho a desobe­
diência antes perpetrada mediante o lenho; se a sedução — de
que Eva fora vítima, quando ainda virgem destinada ao seu ma­
rido — se essa sedução foi dissipada pela boa nova da verdade mag-
nificamente anunciada pelo anjo a Maria, também virgem desposada
— pois da mesma forma que aquela fora seduzida pela palavra de
um anjo, a ponto de se afastar de Deus e transgredir sua palavra,

5 Tetmo técnico do gnosticismo, de sentido complexo, designando a totalidade do


mundo espiritual em Deus. São Paulo usa várias vezes a mesma palavra, mas em outro
sentido (Rm 11,25; 15,29; Cl 1,19; 2,9; etc.).
« E f 4 .6 .
7 Jo 1,1-14.
6 A “recapitulação” é uma idéia cara a santo Ireneu. O Plano divino, desfeito pélo
pecado, foi reconstruído de um modo mais admirável em Cristo, como sob um novo
“czmit” e, neste sentido, recapitulado.
134 SANTO IB EN EU

também esta foi instruída sobre a boa nova pela palavra de um


anjo, e por obediência a sua palavra, chegou a ser portadora de
Deus; e da mesma forma que aquela fora seduzida para desobede­
cer a Deus, esta se deixou persuadir a obedecer a Deus, para ser
— ela, a Virgem Maria — a advogada de Eva, de sorte que o gê­
nero humano, submetido à morte por uma virgem, fosse dela liber­
tado por uma' Virgem, tornando-se contrabalançada a desobediência
de uma virgem pela obediência de outra; se, pois, ainda uma vez,
o pecado do primeiro homem recebeu sua cura pela retidão do
primogênito, se a prudência da serpente foi vencida pela simplicidade
da pomba e se assim foram quebrados os grilhões que nos submetiam
à morte; — são então estúpidos todos os hereges, que ignoram a
“economia” de Deus, que ignoram sua obra para com os homens e,
cegos diante da verdade, contradizem sua própria salvação, uns
introduzindo outro Pai, diverso do Criador; outros, pretendendo
que o mundo e sua matéria constitutiva foram obra dos anjos; outros,
afirmando que essa matéria, imensamente distante de seu pretenso Pai,
se teria formado por si mesma e seria inata; outros, declarando-a oriun­
da, na própria esfera de ação do Pai, da decadência e da ignorância.
Outros ainda desprezam a vida visível do Senhor, não admitindo sua
encarnação. Há os que, desconhecendo a dispensação da Virgem,
o dizem gerado por José. Alguns propalam que nem a alma nèm o
corpo podem receber a vida eterna, e sim apenas o “homem interior”,
que pretendem identificar com o intelecto, julgado apto para se ele­
var à perfeição. Outros admitem que a alma se salve, mas negam parte
ao corpo, nessa salvação vinda de Deus. Tudo isso, já expusemos em
nosso V livro, e — no 2’ livro — mostramos sua inconsistência.
215 Ora, todos esses hereges são de muito posteriores aos bispos,
aos quais os apóstolos entregaram as Igrejas: demonstramo-lo com
cuidado no livro 3*. Necessariamente, pois, tais hereges, cegos pa­
ra a verdade, mudam sempre de direção e disseminam suas dou­
trinas de modo discordante e incoerente. Ao contrário, o caminho
dos que pertencem à Igreja cerca o universo inteiro e, possuindo
a firme tradição dos apóstolos, faz-nos ver que todos possuímos
a mesma fé. Sim, todos ensinamos a existência de um mesmo Deus
Pai, temos fé idêntica no plano da encarnação do Filho de Deus, re­
conhecemos o mesmo dòm do Espírito, aplicamo-nos aos mesmos
preceitos, observamos na Igreja a mesma forma de oração, esperamos
a mesma vinda do Senhor e aguardamos a mesma salvação do homem
integral, isto é,,d a alma e do corpo.
216 Ê realmente verdadeira e firme a pregação da Igreja, onde apa­
rece a única via de salvação em todo o mundo. Com efeito, à
Igreja foi confiada a luz de Deus, e portanto a “sabedoria” de
Deus, pela qual ele salva os homens, “clama nas ruas, eleva sua voz
nas praças, prega nas esquinas ruidosas, à entrada das portas, da
CONTRA AS HERESIAS 135

cidade” 910. Por toda a parte a Igreja anuncia a verdade: ela é o can­
delabro de sete luzes lu que transporta a luz de Cristo.
Os que abandonam a pregação da Igreja acusam de ignorância os
santos presbíteros, não percebem que muito mais vale ser homem sim­
ples, mas religioso, do que filósofo sutil, mas blasfemo e atrevido.
Assim são os hereges ao pretenderem descobrir algo além da verdade.
Os que adotam as doutrinas heréticas acima referidas seguem cami­
nhos vários, múltiplos, inseguros; não tendo as mesmas sentenças
acerca das mesmas coisas, são ccmo cegos conduzidos per cegos, e irão
cair merecidamente na cova da ignorância, aberta sob seus pés:
estão sempre procurando sem jamais encontrarem a verdade.
Convém evitar suas sentenças e precaver-se atentamente pa- 217
ra não ser por eles incomodado; convém refugiar-se na Igreja e ser
educado em seu grêmio, nutrido com as santas Escrituras do Se­
nhor. Pois a Igreja está plantada neste mundo como o Paraíso.
“Comereis do fruto de toda árvore do Paraíso” 11, diz o Espírito
de Deus; isto é: comei de toda Escritura do Senhor, não co­
mais, porém, com um senso mais elevado do que convém nem vos
envolvais nas dissenções dos hereges, que pretendem possuir o co­
nhecimento do bem e do mal, lançando sobre Deus, que os criou,
suas ímpias proposições. Pretendem compreender acima da medida
da compreensão. Diz o Apóstolo: “não saber mais do que con­
vém, mas saber com prudência! ” 12 para não sermos expulsos do
Paraíso da vida por comermos de um conhecimento como o dos
hereges, que prova mais do que convém. Nesse Paraíso o Senhor
coloca os que ouvem seu preceito, “recapitulando em si tudo o que
existe no céu e sobre a terra” 13. As coisas do céu são espirituais,
as da terra estão na medida do homem. A todas elas o Senhgr
recapitulou em si mesmo, unindo ao Espírito o homem, colocando o*
Espírito no homem. Tornou-se assim a Cabeça do Espírito e fez do
Espírito a Cabeça do homem, o Espírito em quem vemos, ouvimos e
falamos.

9 Sb 9,15.
10 Ap 2,1.
11 Gn 2,16.
12 Rm 12,3.
13 Cl 1,20.
CLEMENTE DE ALEXANDRIA
(t c. d e 2 1 5 )

T i t o F lá v io G e m e n t e n a s c e u p ro v a v e lm e n te e m A te n a s , p o r v o lta d e 1 50. C o n v e r­
t i d o a o c r is tia n is m o , v ia jo u p e la I tá lia , S ír ia , P a le s tin a e fix o u -se e m A le x a n d ria , o n d e
fo i a lu n o d o fa m o s o P a n te n o , a q u e m s u c e d e u c o m o p ro f e s s o r a p a r ti r d e 2 0 0 .
D u r a n t e a p e r s e g u iç ã o d e S e tím io S e v e ro ( 2 0 3 ) , d e ix o u o E g ito , p a s s a n d o à S íria
e Á s ia M e n o r , o n d e m o r r e u a n te s d e 2 1 5 .
S u a g r a n d e e m p re s a fo i t e n ta r a a lia n ç a d o p e n s a m e n to g re g o co m a fé c r is t l . " C o ­
m o a L e i fo r m o u o s h e b r e u s , a filo so fia fo r m o u o s g re g o s p a r a o C r is to ” . É u m d o s
p r im e ir o s d o u to r e s q u e fiz e ra m “ te o lo g ia ” . D e s u a s o b ra s te m o s a Exortação aos gregos
( o u Protréptico, o b r a d e a p o lo g ia ) , o Pedagogo ( in s tru ç õ e s c a te q u é tic a s ) , as Tapeçarias
( o u Stromata, s o b r e v á r io s a s s u n to s ) e tc . S e u Hino ao Cristo Salvador, co m o q u a l d á
c o n c lu sã o a o Pedagogo, é d o s m a is b e lo s p o e m a s d a a n tig u id a d e c ris tã . S e p e la fo r m a
s e i n s p ir a n a l i te r a t u r a g re g a clá ssic a, te m u m fu n d o e s s e n c ia lm e n te b íb lic o , r e to m a n d o
o te m a , d e s e n v o lv id o n o liv ro , d o V e rb o d iv in o co m o e d u c a d o r d o s fiéis.
E d iç õ e s e m g re g o e fr a n c ê s : S .C . 7 0 , 1 0 3 , 2 , 3 0 , 3 8 , 2 3 , 158.

“ PROTRÉPTICO” OU EXORTAÇÃO AOS GREGOS


( C a p . 1 2; P .G . 8 , 2 3 7 -2 4 5 )

218 Fujamos do costume 1, ccmo de um promontório difícil, como da


ameaça de Caribdes ou das Sereias da fábula. Ele sufoca o homem,
desvia-o da verdade, afasta-o da Vida, é uma rede, um abismo, um
precipício, um mal devorador:
“Para longe dessa fumaça, para longe dessas vagas afasta teu
navio” 12.
Fujamos, marujos companheiros meus, fujamos das ondas que
vomitam fogo: há nelas um ilha do mal onde se amontoam ossos
e cadáveres; há nelas uma cortesã a cantar voluptuosamente, tentan­
do seduzir-vos com sua música:
“Vem até cá, célebre Ulisses, orgulho dos helenos, pára teu
navio a fim de ouvires uma divina voz” 3.
Ela te atrai, ó navegante! e recordando teu renome, procura,
ccmo prostituta, encantar aquele que é o orgulho de gregos. Dei-

1 C o s tu m e , r o tin a . G r a n d e o b s tá c u lo p a r a a c o n v e rs ã o ao c r is tia n is m o e r a , e n tr e o s
g re g o s , u m a a t i t u d e c o n s e rv a d o ra , a p e g a d a aos h á b ito s m e n ta is d e su a tra d iç ã o : “ n ã o
é ra z o á v e l m u d a r u m h á b i t o q u e n o sso s p a is n o s t r a n s m itir a m ” (c f. Protréptico,
ccp. 1 0 ).
2 Odisséia, 12.
3 Ib id .
EXORTAÇÃO AOS GREGOS 137

xa-a fazer sua presa entre os cadáveres! O Sopro celeste te auxilia!


Passa ao largo da volúpia enganadora:
“Que uma mulher não vá, com seus atavios no corpo, fa­
zer-te desfalecer; seu palavreado adulador nada quer mais que tua
riqueza” 4.
Impele o navio para além desse canto, que gera a morte. Basta
desejares e vencerás a ameaça que paira sobre ti. Preso ao lenho5, es­
tarás livre da corrupção; o Logos de Deus será teu piloto, o Espírito
Santo te fará aportar nos ancoradouros dos céus, lá onde tu contem­
plarás meu Deus, lá onde serás iniciado em seus santos mistérios e
gozarás de bens celestes e arcanos, desses bens que nos são reservados
e dos quais “o ouvido não ouviu, o desejo não ascendeu ao coração
do homem” 6.
“Parece-me estar vendo dois sóis e duas Tebas” 7, diz um per­
sonagem arrebatado, em transe idolátricò e inebriado por simples qui­
mera.
Quanto a mim, inspira-me pena tua embriaguez, e não posso se­
não exortar um espírito, assim transviado, a que peça a temperança
da razão à doutrina da Salvação; pois o Senhor quer a conversão do
pecador e não sua m orte8.
Vem, pois, ó insensato, e não mais com o tirso na mão, nem
coroado de hera! Larga tua mitra, deixa tua pele de cabra e retoma
a razão! Eu te mostrarei o Logos e os mistérios do Logos, valendo-
-me de tuas próprias imagens.
Eis a montanha querida de Deus e que não serve de teatro a 219
fábulas trágicas como o Citefon, mas está consagrada aos dramas da
Verdade. É uma montanha onde reside a temperança, suas florestas
abrigam a pureza; nela não se vêem os transes das irmãs de Sêmele9
outrcra batidas pelo raio, essas mênades 10, que recebem sua impüffa >
iniciação na participação das carnes; nela se acham as filhas de D e u s/
puras ovelhas que revelam os veneráveis mistérios do Logos, unidas
em coro ressoante de sabedoria. Esse coro é o dos justos, o canto é
o hino do Rei universal, as virgens são as que dedilham a lira, os
anjos os que cantam — e à glória divina — cs profetas os que
falam .. . E o som da música se difunde, o cortejo segue, os eleitos se
apressam no grande desejo de receber o Pai. Aproxima-te, ó ancião,
deixa Tebas, as adivinhações e o culto de Baco, deixa-te levar pela
mão até a Verdade! Vem, eu te dou o lenho para te apoiares nele
apressa-te, Tiresias, crê! Tu verás! O Cristo brilha mais que o sol,

4 C f. H e s ío d o , Trav.
5 A lu s ã o ta lv e z a U lis s e s p r e s o a o m a s tro d o n a v io a o ap ro x im a r-se d a ilh a d a s
S e re ia s , m a s o s im b o lis m o é o d a C ru z d e C ris to .
6 l C o r 2 ,9 .
7 E u r í p e d e s , Bacch.
8 Ez 18,23.32; 33,11.
9 S e m e ie : D i v in d a d e g re g a , a m a n te d e Z e u s , d o q u a l te v e D io n ís io .
10 Mênades cu “possessas”, mulheres dedicadas ao culto de Dionísio.
H IN O AO CRISTO SALVADOR1
(P.G. 8, 681-683; S.C. 158)

223 Freio de incautos potrinhos, Ó Verbo inexgotável,


asa de certeiro pássaro, ó tempo-eternidade,
firme leme dçs navios, ó luz que não se extingue,
pastor de régios cordeiros! ó fonte de piedade!
Tu constróis a virtude
Reúne os teus filhinhos, daqueles que, vivendo,
pede à inocência deles a Deus, por serem santos,
hino e louvor sinceros; um hino vão erguendo.
cantem seus lábios puros
aquele que os conduz O Jesus Cristo, leite
reinando sobre os santos. que nos desceu do céu
Verbo que vences tudo, pelos sagrados seios
Filho do Pai altíssimo, da esposa virginal,
juiz que tudo sabes, premida pelos dons
és força dos que lutam da eterna sapiência.
e eterno regozijo
dos séculos sem fim. E, quanto a nós, filhinhos,
de lábios sem malícia,
Da raça dos mortais sempre a sugar o seio
tu és o salvador, do Verbo maternal,
pastor e agricultor; possa nos saciar
freio seguro e leme, o espiritual orvalho!
asa que leva aos céus
a grei purificada. Com cs mais singelos hinos,
Tu és o pescador cantemos sem disfarce
daqueles que escaparam do Cristo a realeza:
ao pélago do mal: juntemos nossas vozes,
peixes que o pão da Vida pagandodhe o tributo
atrai pela doçura pelas lições de Vida.
longe da tempestade.
Do Filho onipotente
Santíssimo pastor formemos o corteio:
de espirituais cordeiros, um coro de pacíficos.
conduze como um rei Hinos ao Deus da paz
teus filhos inocentes: cantemos, povo sábio,
sobre os teus passos, Cristo, em Cristo transformados.
caminhem para o céu!

1 T ra d u çã o d e D . M a r c o s B a rb o sa .
SOBRE A SALVAÇÃO DOS RICOS
( P .G . 9 , 6 0 3 -6 5 2 )

Os que fazem discursos elogiando os ricos devem ser tidos por 224
aduladores, penso eu, pois afetam pagar caro o que não merece
agradecimento; e além disto, por ímpios e insidiosos. ímpios, por­
que a honra que se deve a Deus — o único perfeito e bom, “de
quem tudo provém, por meio de quem tudo existe, para o qual tudo
é ” 1 — prestam-na a homens pecadores e postos sob o juízo de Deus.
Insidiosos, porque agem como se já não bastassem as riquezas para
desvanecer seus possessores, corrompê-los e desviá-los, como se fosse
preciso inebriá-los ainda com novos louvores. Levam-no assim a
menosprezar tudo que não sejam as mesmas riquezas, de onde lhes
está vindo sua honra.
Como diz o provérbio, ateiam lenha ao fogo, ajuntam luxo ao lu­
xo, acrescentam uma carga à riqueza, novo peso ao peso, quando o
melhor seria diminuir o gravame da enfermidade, tantas vezes mor­
tal! Pois é assim que se segue a humilhação ao que antes foi exalta­
ção, conforme a palavra divina123.
De minha parte, penso melhor ajudar os ricos com razões e
meios que lhes facilitem a salvação. Primeiro, suplicando isso a Deus;
segundo, curando suas almas ccm a graça do Salvador, iluminando-as
e condúzindo-as à posse da verdade. Somente quem chega à verda­
de, e ao mesmo tempo a traduz nas boas obras, conseguirá o galardão
da vida eterna. Ora, a oração, que há de durar até o último dia da
vida, pede uma alma robusta e serena, e a ação requer uma disposição
boa e constante, que há de estender-se a todos os mandamentos do
Salvador.
Apesar disto, talvez não seja tão simples, mas antes completa, 225
a razão por que a salvação pareça mais difícil aos ricos do que ao$
pobres. Uns, com efeito, ouvem com simplicidade a palavra do Salva­
dor: “é mais fácil o camelo passar pelo fundo de uma agulha do que
o rico entrar no reino dos céus” \ e chegam a desesperar de si,
como se já não pudessem obter a vida eterna, entregando-se então
cada vez mais ao mundo, apegando-se à vida presente como se fosse
única, apartando-se cada vez mais do caminho para a outra vida, sem
averiguar a quem interpela o Salvador ou de que maneira o impossível
para os homens é possível para Deus. Outros entendem ccrretamente
a palavra do Senhor, mas se descuidam das obras salvíficas e não
se preparam devidamente para alcançar o que esperam. Refiro-me
sempre aos ricos que conhecem o Salvador e sua gloriosa redenção.
Não me refiro aos que desconhecem a verdade.

1 Rm 11,35.
2 M t 2 3 ,1 2 .
3 M t 1 9 ,2 4 .
Ora, os que amam a verdade e igualmente a seus irmãos, os
que não atacam petulantemente os ricos chamados à fé, nem tam­
pouco os lisonjeiam gananciosamente, convém que primeiro lhes ti­
rem com boas razões todo desespero e lhes expliquem os oráculos do
Senhor, os quais não excluem a herança do reino celeste aos que
obedecem os mandamentos. Convém, em segundo lugar, recordar-lhes
que seu temer é irrazoável e que, se desejarem, o Senhor os acolherá
de bom grado. Mas será preciso também iniciá-los misticamente na
maneira pela qual, com obras e disposições de espírito, se soergue á
esperança, sempre na suposição de que não lhes está fechada a salva­
ção e de que não se lhes abre sem esforço. Se usássemos de uma
comparação, diríamos acontecer aqui o mesmo que entre os adetas.
Entre estes, quem desespera de vencer e obter o prêmio já
nem se inscreve entre os concorrentes. De outro lado quem tem uma
boa esperança, mas não se impõe os devidos exercícios, também fica
sem o prêmio e sua esperança falirá.
226 Semelhantemente, quem possui muitas riquezas da terra não
se tenha por excluído dos galardões do Senhor, desde que seja fiel
e compreenda a magnificência da bondade de Deus; nem de outro
lado espere cingir-se com a coroa da imortalidade se não se exercita e
combate, se não se cobre de pó e suor. Submeta-se ao Verbo como
ao diretor dos exercícios, a Cristo como ao presidente do certame.
O regime alimentar a que se há de sujeitar seja o Novo Testamento
do Senhor. Os exercícios, os mandamentos divinos; a boa forma,
as disposições interiores: a caridade, a fé, a esperança, o conheci­
mento da verdade, a moderação, a mansidão, a misericórdia, a mo­
déstia. Desta sorte, quando a trombeta der o sinal da carreira e da
saída deste mundo, do estádio desta v id a4, apresente-se vencedor,
com boa consciência, ante o presidente dos jogos, digno de retornar
à Pátria, ecroado e aclamado pelos anjos.
Que o Salvador, pois, nos conceda expor a verdade salutífera a
nossos irmãos, primeiro naquilo que diz respeito à própria esperan­
ça, depois no que diz respeito ao que leva a ela. Ele dá a "graça aos
que precisam e ensina aos que desejam aprender, destrói a ignorân­
cia e dissipa o desespero, na maneira mesma como introduz seus dis­
cursos sobre os ricos, discursos que são interpretativos de si pró­
prios. Com efeito, nada como ouvir novamente as palavras do Evan­
gelho, as quais nos perturbaram porque as temos escutado de maneira
errônea5.

227 Formula-se ao Senhor e Mestre uma pergunta que a ninguém


mais conviria senão a ele. Pergunta-se à Vida acerca da vida, ao Sal-

4 C f. l C o r 9 ,2 4 .
3 Clemente insere aqui a passagem do jovem rico: Mc 10,17-31.
vedor sobre a salvação, ao Mestre sobre a síntese de sens ensinamentos,
à Verdade sobre a verdade, à Imortalidade sobre a imortalidade, à
Palavra sobre a palavra do Pai, ao Perfeito sobre o perfeito descan­
so, ao Incorrupto sobre a verdadeira incorrupção. Formula-se ao Se­
nhor uma pergunta sobre aquilo mesmo pelo que ele descera ao
mundo, e que constituía o objeto de seu ensino: a vida eterna. Ora,
como Deus, ele sabia o que ia ser perguntado e qual a resposta que
ele próprio, ao interrogar por sua vez, haveria de receber. Quem,
mais do que ele, era profeta dos profetas e senhor de todo espírito
profético? Quando o chamam bom, faz desta palavra a ocasião para
começar o ensinamento, levando o discípulo ao Deus bom, primeiro
e único dispensador da vida eterna, da vida que o Filho comunica,
recebida do Pai.
Assim, o maior dentre os ensinamentos sobre a vida eterna de- 228
ve ser imediatamente impresso na alma, a saber: o reconhecimento
do Deus eterno, a compreensão de que Deus é o primeiro, o supremo,
o único, o bom. O princípio inabalável e fundamental para a vida,
é a ciência de Deus, do Deus eterno que nos doa o eterno, do Ser
do qual tudo recebe o ser e a permanência no ser. A ignorância de
Deus é a morte. O conhecimento de Deus, o relacionamento com ele,
seu amor: eis a única coisa que é vida.
A primeira recomendação que Jesus faz a quem busca a verdadei­
ra vida é a de conhecer àquele que ninguém conhece, exceto o Fi­
lho e exceto quem recebe a revelação do F ilho6. Trata-se portanto
de conhecer a grandeza do Salvador e a nova graça, a qual sendo
dada pelo Filho, supera a dada pelo servo, conforme diz o Apóstolo:
“a lei nos foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade por obra
de Jesus Cristo " 7. Realmente, se a lei de Moisés fosse capaz de pro­
porcionar a vida, teria sido inútil a descida do Salvador, sua paixão
por nossa causa, seu itinerário percorrido do nascimento ao fim. E
inútil teria sido que o jovem rico, após ter observado desde cedo*
todos os mandamentos, se viesse a prostrar ante ..outra instância para
solicitar o prêmio da vida imortal.
Ele não só cumprira a Lei, mas a cumprira desde a infância. ..
Que há de especial se a velhice não se entrega ao pecado? O lutador
admirável é o que, desde o verão da existência, se mostra amadure­
cido como se já vivesse precocemente a idade provecta. Contudo,
por grande que fosse tal lutador, estaria bem consciente de que, se
quanto à justiça nada lhe faltava, quanto à vida tudo lhe faltava.
E então pede-a ao único capaz de concedê-la. Quanto à Lei, estava
seguro desde muito tempo; ei-lo porém súplice ante o Filho de Deus.
De uma fé passa a outra. Como alguém que não se sente seguro na
barca da Lei, como o viajante que navega, ele busca o Salvador.

6 M t 1 1 ,1 7 .
7 Jo 1,17.
229 Jesus não o repreende, por não ter de fato cumprido toda a Lei,
antes o ama e felicita por seguir fielmente a instrução recebida. En­
tretanto, no que concerne a vida eterna, declara-o imperfeito, por
não ter realizado o que a perfeição requer. Operário da Lei, sem
duvida, mas ainda deficiente quanto à vida eterna. Ninguém con­
testa que a Lei era boa, pois “o mandamento é santo” 8, no sentido
de uma função de pedagogia e de instrução prévia9, a caminhar pa­
ra a culminânçia da lei de Jesus e para a graça. Mas a plenitude da
Lei é Cristo, que justifica todo o que crê. E Jesus, não sendo escra­
vo, não faz escravos mas filhos, irmãos, co-herdeiros seus, todos os
que cumprem a vontade de seu Pai.
“Se queres ser perfeito” 10: logo, ainda não o era, pois o perfeito
não se aperfeiçoa. E disse divinamente “se queres”, indicando a
faculdade de livre arbítrio daquele com quem falava. Ao homem,
enquanto livre, cabia a escolha; a Deus cabe dar, como Senhor e
Juiz que é. Ele dá aos que querem, se esforçam e pedem, a fim de
que sua salvação brote deles mesmos. Deus não força a ninguém, a
violência lhe é inimiga. Ele atende aos que buscam, dá aos que pedem,
abre aos que batem à porta 11.
Assim, se queres, se realmente, sem te enganares a ti mesmo,
queres obter o que te falta, “uma coisa te falta”, a única coisa que
permanece, aquilo que é bom e está acima da Lei, o próprio dos que
vivem.
Infelizmente o jovem que desde a infância observava a Lei, e
tão alto proclama sua observância, não foi capaz de comprar a única
coisa própria do Salvador, para assim chegar à desejada vida eterna.
E retirou-se triste, pesaroso pelo mandamento daquela vida que viera
suplicar.

230 Ora, que o moveu à fuga e o fez deixar o Mestre, deixar a sú­
plica, a esperança e os esforços já iniciados? A palavra “vende tudo
o que tens”! E que quer dizer ela? Não o que levianamente pensam
alguns. O Senhor não nos manda lançarmos fora os bens e nos afas­
tarmos de toda riqueza. O que ele deseja é desterrarmos da alma
os vãos juízos sobre as riquezas, a cobiça desenfreada, a avareza, as
solicitudes, os espinhos do século, que sufocam a semente da verda­
deira vida.
Não é grande façanha, digna de emulação, carecer dos bens mas
não ter a tendência para a vida eterna. Se o caso fosse este, os que
nada possuem, os destituídos de todo auxílio, que diariamente passam
mendigando pelos caminhos, sem conhecimento de Deus e de sua jus-
tiça, seriam, pelo simples fato da extrema indigência, os mais fe­
lizes e amados por Deus, os únicos que alcançariam a vida eterna.
Aliás, nem é novidade o renunciar às riquezas em prol dos necessi­
tados e pobres, pois também isto foi feito por muitos antes da vinda
do Salvador: por uns, com o fim de se dedicarem às letras e por amor
da sabedoria morta; per outros, com o fim de obtenção da fama
e da vã glória: Anaxágoras, Demócrito, C rates.. .
Portanto, que diz o Senhor como coisa nova, própria de Deus,
como única coisa que vivifica e difere do que não salvou antes os
homens? que nos indica e ensina o novo homem, o Filho de Deus?
Não nos manda o que simplesmente dá na vista e outros já fizeram,
mas algo maior, mais divino e mais perfeito, aí significado, a saber:
desnudarmos a alma das paixões, arrancarmos e projetarmos longe
o que é alheio ao espírito. Eis o ensinamento próprio do crente, eis
a doutrina digna do Salvador! Assim, os que antes do Senhor depre­
ciaram os bens exteriores, sem dúvida abandonaram e perderam suas
riquezas, mas as paixões de suas almas, penso eu que ainda as au­
mentaram. Porque, imaginando terem feito algo de sobre-humano,
vieram a cair na soberba, na petulância, na vã glória e no menosprezo
dos demais.
Como então haveria o Salvador de recomendar aos que irão viver 231
para sempre algo nocivo à vida, que ele santamente promete? Pode
acontecer que alguém, embora renunciando ao peso dos bens e rique­
zas, mantenha o desejo de tudo isso na alma. Desprendeu-se dos bens
mas ao sentir falta deles e ao desejá-los de novo, está duplamente
atormentado: por tê-los deixado e por desejá-los. Porque na ver­
dade é impossível carecer do necessário e não estar preocupado para
obtê-lo; mas com isto o espírito se desvia das coisas mais importantes.
Quão mais proveitoso é o contrário! Possuir, de um lado, o
suficiente, não ter que angustiar-se para procurá-lo, e de outro lado
poder ajudar aos que precisam. Se ninguém tivesse nada, como have-i
ria comunhão de bens entre os homens? Não é claro que essa dou­
trina do abandono de tudo iria contrariar outros ensinamentos do
Senhor? “Fazei amigos com as riquezas da iniqüidade, a fim de que
quando precisardes vos recebam nos eternos tabernáculos” 12. “Tende
tesouros nos céus, onde as traças e a ferrugem não os consomem nem
os ladrões podem roubar” 13. Como dar de comer ao que tem fome,
de beber ao que tem sede, vestir o nu, acolher o desamparado —
coisas todas que devem ser feitas sob a ameaça do fogo eterno e das
trevas exteriores — se não se tem com que fazê-lo?
Ademais, o próprio Senhor, hospedando-se na casa de Zaqueu e 232
Mateus, que eram ricos e publicanos, não lhes ordena desfazerem-se
das riquezas, mas — impondo um justo juízo e rechaçando a injus-

12 Lc 16,9.
13 Mt 6,19.
uça — termina por dizer: "hoje veio a salvação a esta casa, porque
também este homem é filho de Abraão” 14. Elogiava assim o uso das
riquezas, enquanto mandava que servissem à comunicação — a dar
de beber ao que tem sede, de ccmer ao faminto, à acolhida do pere­
grino, à vestiçlo do nu. Se não é possível obviar a tais necessidades
sem haveres, e se o Senhor ordena o despcjamento dos haveres,
está então mandando que se dê e não se dê, se dê de comer e não
se dê de ccmer, etc., o que seria absurdo pensar.
Portanto,' não há que abandonar os bens capazes de ser úteis a
nosso próximo. Aliás as posses se chamam “bens” porque com elas
se pode fazer o bem, e foram previstas por Deus em função da utili­
dade dos homens. São coisas que aí estão, destinadas, como matéria
ou instrumento, ao bom uso nas mãos de quem sabe o que é um
instrumento. Se se usa o instrumento com arte, ele vale; do contrário,
não presta, embora sem culpa disto.
Instrumento assim é a riqueza. Se usada corretamente, presta
serviço à justiça. Se usada incorretamente, serve à injustiça. Por na­
tureza está destinada a servir, não a mandar. Não há que acusá-
-la do que não lhe cabe, isto é, do não ser nem boa nem má. A
riqueza não tem culpa. Toda a responsabilidade cabe ao que pode
usá-la bem ou mal, conforme a escolha que estabelece, isto é, se­
gundo a mente e o juízo do homem, ser livre e capaz de manejar
por próprio arbítrio o que recebe em mãos. O que importa destruir
não são as riquezas, mas as paixões da alma que impedem o bom
uso das mesmas. Tornado bom e nobre, o homem pode empregá-las
bem e generosamente. Assim, a renúncia a tudo que possuímos, a
venda de todas as posses, há de ser isto entendido nõ sentido das
paixões da alma.

M L c 1 9 ,9 .
ORÍGENES
(c. 184-254)

N a s c e u e m A le x a n d ria , p o r v o lta d o a n o 184. S eu p a i, L e ô n id a s , m o rre u m a rtiriz a d o


e m 2 0 2 . U m f o r te d e s e jo d o m a r t í r i o a r d ia ta m b é m n a a lm a d o jo v e m , q u e e sc re v e ra
a o p a i, q u a n d o n a p ris ã o : HN ã o v á s m u d a r d e d e c isã o p o r c a u sa d e n ó s ” .
E m 2 0 3 , o b is p o D e m é tr io o c o lo c o u à f r e n te d a esc o la c a te q u é tic a d e A le x a n ­
d r i a , e a li O r íg e n e s p o d e m a n if e s ta r se u g ê n io , c o n q u is ta n d o v a s to re n o m e e a tra in d o
o u v in te s a t é p a g ã o s .
E m 2 1 2 v is ito u a I g r e ja d e R o m a , d e p o is p e rc o rr e u a G r é c ia e a P a le s tin a , o n d e
fo i o rd e n a d o . J ú l ia M a m m a e a , a g e n ito ra d o im p e ra d o r A le x a n d re S e v e ro , fê -lo v ir a
A n tio q u ia ( S í r i a ) p a r a o u v ir s u a s liçõ es.
P o r v o lta d e 2 3 2 e n t r o u e m c o n f lito co m o b is p o D e m é trio , d e A le x a n d ria , tra n s ­
fe rin d o -s e e n tã o p a r a C e s a ré ia ( P a l e s t i n a ) , o n d e f u n d o u o u tr a e sc o la , se m e lh a n te à d e
A l e x a n d ria . L á te v e c o m o d is c íp u lo o f u t u r o são G r e g ó rio T a u m a tu r g o , q u e lh e d e d i­
c o u g r a n d e v e n e ra ç ã o . M o r r e u e m 2 3 4 , e m c o n s e q ü ê n c ia d e m a u s tra to s s o frid o s d u ­
r a n te a p e r s e g u iç ã o d o im p e r a d o r D é c io .
A p ó s s u a m o r te , O r íg e n e s fo i a lv o d e co n d e n a ç õ e s e te v e seu s e s c rito s p a rc ia l­
m e n te d e s t r u í d o s . N in g u é m g r a n je o u ta n to s a d v e rs á rio s e a d m ira d o re s c o m o ele . Ê in e ­
g á v e l q u e s u s te n ta r a a lg u m a s o p in iõ e s in c o m p a tív e is co m a d o u tr in a d a I g r e ja , le v a d o
p e r s e u a le g o ris m o n a in te r p r e ta ç ã o d a B íb lia e p e la in flu ê n c ia d a filo s o fia p la tô n ic a .
M a s d e o u t r o l a d o é c e r t o q u e s u a i n te n ç ã o e x p r e s -a fô ra s e m p re a d e s e r “ u m h o m e m
d a I g r e j a ” e d e n ã o s e a f a s ta r ja m a is d o M a g is té rio ec lesiástico .
S u a f e c u n d id a d e l ite r á r ia u l tr a p a s s a a d e to d o s os P a d re s e a b r a n g e o b ra s b íb lic a s
( d e r e c o n s tr u ç ã o crítica: Hexaplas; c o m e n tá rio s ; h o m ilia s ) , a p o lo g é tic a s, te o ló g ic a s, es­
p ir i t u a i s e tc . E n t r e as q u e fic a ra m a té n ó s , d is tin g u e m -s e o s C o m e n tá rio s b íb lic o s ( a
M a te u s , J o ã o , C â n tic o d o s C â n tic o s , E p . aos r o m a n o s ) , a A p o lo g ia Contra Celso, o t r a ­
t a d o Dos Princípios ( q u e p o d e s e r c o n s id e ra d o o p rim e iro m a n u a l d e te o lo g ia e o n d e
e s tã o as f o n te s d a s ac u sa ç õ e s q u e r e c e b e u ) , o t r a ta d o Da oração, a Exortação ao fff&r-^
tírio e tc . ’
A lg u m a s o b ra s , e m e d iç ã o b i lín g u e : S .C . 1 2 0 , 1 6 2 , 1 5 7 , 1 3 2 , 1 3 6 , 147, 1 5 0 , 6 7 , 7 ,
16 , 2 9 , 7 1 , 3 7 , 8 7 , 1 4 8 . V e r H . C ro u z e l, Bibliographie critique d’Origène, L a H a y e ,
1 9 7 1 ; P . N a u ti n , Origène. Sa vie et son oeuvre, B e a u c h e s n e , P a ris , 1 9 77.

DO COMENTÁRIO AO CÂNTICO DOS CÂNTICOS


O conhecimento de Deus através de suas obras
( P .G . 13, 1 7 2 s)

O apóstolo Paulo nos ensina que o “invisível Deus” se tornou 233


“manifesto” através das coisas visíveis1, mostrando assim que este
mundo visível contém um ensinamento sobre o mundo invisível, que
esta terra contém certas imagens das realidades celestes, de sorte a
podermos elevar-nes a partir das coisas de baixo até as coisas doi

i Rxq 1,20.
alto e a degustar, e de certo modo entender, o que é celeste através
do que é terrestre.
Deus reproduziu a imagem das coisas celestes nas da terra,
dando a estas certa analogia ccm aquelas, a fim de as tornar mais
compreensíveis em sua multiplicidade e em seu significado. O mes­
mo Deus, que fez o homem “à sua imagem e semelhança” 2 parece
ter querido dar também às outras criaturas uma semelhança com cer­
tos arquétipos celestes. E a semelhança é tanta que mesmo o grão
de mostarda, “a menor de todas as sementes” 3, tem seu analogadc no
reino dos céus, e então, por essa lei natural que o faz a menor das
sementes (mas capaz de se tom ar maior que as outras árvores, abri­
gando nos ramos os pássaros do céu), ele representaria para nós não
só uma realidade celeste mas todo o reino dos céus.
234 Neste sentido é possível que as outras sementes terrestres en­
cerrem igualmente analogias e sinais das coisas celestes. E se isso é
verdadeiro para as sementes, deve sê-lo também para as plantas,
e se é verdadeiro para as plantas, deve sê-lo para os ani­
mais, aves, répteis ou quadrúpedes. É lícito pensar ainda o seguin­
te: a mostarda não é apenas análoga ao reino dos céus por causa dos
pássaros que abriga em seus ramos, mas encerra outra imagem, a da
perfeição da fé ( “quem tem uma fé grande como um grão de mos­
tarda poderá dizer a esta montanha: desloca-te, e ela se deslocaráH:
é possível, portanto que as outras realidades também não se limitem
a manifestar de uma única maneira a figura e a imagem das realidades
celestes; será de várias maneiras que elas serão imagens e fig u ras.. .
Assim podemos pensar que os outros seres, sementes, plantas,
raízes, animais, que estão ao serviço das necessidades dos homens,
encerrando, além disso, a figura e imagem do mundo invisível,
têm essa função de elevar a alma e conduzi-la à contemplação das
coisas celestes. É talvez isso o que quer dizer o porta-voz da divina
Sabedoria, quando se exprime assim: “Foi ele quem me deu a ver­
dadeira ciência de todas as coisas, que me fez conhecer a constituição
do mundo e as virtudes dos elementos, o começo, o fim e o meio dos
tempos, a sucessão dos solstícios e a mudança das estações, os ciclos
do ano e as posições dos astros, a natureza dos animais e os instintos
dos brutos, o poder dos espíritos e os pensamentos dos homens, a va­
riedade das plantas e as propriedades das raízes; tudo que está escon­
dido e tudo que está aparente eu conheço” 4.
Mostra-se-nos assim, sem sombra de dúvida, que tudo que se
vê está em relação com algo de oculto, isto é: cada uma das reali­
dades visíveis é um símbolo e nos reporta a uma correspondente rea­
lidade invisível.

2 G n 1 ,2 7 .
3 M t 1 3 ,3 1 ss.
4 Sb 7,17-21.
Acaso esta passagem da Escritura não explica e esclarece a ques- 235
tão de que nos ocupamos? O escriba da divina sabedoria diz, no
fim de sua enumeração, ter adquirido a ciência “de tudo que está
escondido e de tudo que está aparente”.
Ora, é impossível ao homem conhecer algo das realidades in­
visíveis e ocultas se não percebe sua imagem e analogia nas coisas
visíveis; assim, creio que aquele que fez tudo ccm sabedoria deu a cada
uma das espécies criadas a capacidade de encerrar uma lição, um
ensinamento sobre as coisas invisíveis e celestes, a fim de que o es­
pírito humano pudesse servir-se delas como de degraus para se elevar
ao entendimento espiritual e encontrar nas coisas celestes o prin­
cípio das terrestres. Então, instruído pela sabedoria de Deus, poderá
igualmente declarar: “ tudo que está escondido ou aparente eu co­
nheço”.

DO COMENTÁRIO AO CÂNTICO DOS CÂNTICOS


Uma figura da Igreja
( P .G . 13, 1 0 6 s)

A rainha veio de Sabá. A Igreja, realizando a figura, vem das 236


nações pagãs escutar a sabedoria do verdadeiro Salomão, do ver­
dadeiro Príncipe da Paz, nosso Senhor Jesus Cristo. A Igreja tam­
bém a ele vem “com enigmas e questões” 1, julgados insolúveis.
E todos os problemas que lhe propõe a respeito do conhecimento
do verdadeiro Deus e das criaturas do mundo, ou da imortalidade
da alma e do julgamento futuro (toda uma série de temas obscuros
e problemáticos para ela e para seus sábios, os filósofos pagãos),
são problemas que ele sabe resolver, Ela vem pois “a Jerusalém”,
isto é, à “contemplação da paz”, com grande comitiva e equipagem,
pois não saiu de um só povo como a sinagoga (que só abrangia* 4
os judeus), mas com ela vêm todos os povos do mundo, e traz
consigo, como está dito, presentes dignos de Cristo, “perfumes sua­
ves”, isto é, boas obras que sobem a Deus à maneira de um suave
perfume.
Vem carregada “de ouro”, isto é, munida das ciências e discipli­
nas que pôde aprender antes de ter acesso à fé, à escola comum da
Ciência. Traz uma “pedra preciosa”, na qual se pode reconhecer a no­
breza dos costumes. Ê assim, paramentada, que se apresenta ao Prínci­
pe da Paz, e lhe abre o coração, reconhecendo e lamentando os pe­
cados do passado, dizendo-lhe “tudo o que tinha no coração”. Eis
por que o Cristo, que é “nossa paz” 12, “lhe confiou por sua vez
todos os seus segredos, não havendo um só que o rei não lhe tenha
transmitido e revelado”.

1 l R s lO ^ s s ,
2 Ef 2,14.
150 ORÍGENES
Ela “visitou o palácio que ele havia construído”, isto é, segura­
mente, os mistérios de sua encarnação, sendo sua humanidade a “ca­
sa” que “a sabedoria construiu”. E ela viu “os manjares da mesa de
Salomão”, esses manjares, penso, dos quais fala c Senhor quando
diz: “meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e reali­
zar suas obras” 3.
“Viu os apartamentos de seus servos”, isto é, sem dúvida, a
hierarquia eclesiástica com suas funções, episcopal e sacerdotal. “Viu
igualmente o serviço de seus oficiais”, isto é, a ordem dos diáconos
que servem na santa liturgia. Não deixou de observar “seus unifor­
mes”, os quais penso serem as vestes com que Cristo recobre os des­
tinatários destas palavras: “vós todos que vos batizastes no Cristo,
vós vos revestistes do Cristo” 4.
237 Havia ainda “os copeiros”, que me parecem ser os doutores,
que distribuem a palavra de Deus ao povo e preparam a sagrada
doutrina como um vinho que “regozija o coração” de seus ouvintes.
Ela pôde ver “cs holocaustos” de Salomão, isto é, os mistérios
das súplicas e das preces dos fiéis. Tudo isso pôde ver no palácio
do Príncipe da Paz, que é o Cristo, ela, a rainha, “negra, mas bela”.
Estupefata, então declarou: “Era tudo verdade, o que tinha
ouvido em meu país, sobre ti e tua sabedoria!” Mas foi por causa
da palavra, na qual reconheci a Palavra da verdade, que vim ter
contigo. Sim, todas as palavras ouvidas em meu país, da boca dos
sábios deste mundo e des filósofos, não eram a verdade. Só é verdade
essa Palavra que está em ti.
Perguntar-se-ia, porém, como é que a rainha pôde dizer ao rei:
“Eu não cria no que eles me diziam”. Pois não teria vindo ao Cristo,
se não tivesse dado crédito a eles.
O problema talvez possa ser resolvido assim: “Eu não cria no
que eles me diziam”, porque não apoiava minha fé sobre eles, que
me falavam de ti, e sim sobre ti mesmo; não cria em homens,
mas em ti, Deus meu. Deles posso ter aprendido alguma coisa, mas
foi a ti que eu vim.

COMENTÁRIO AO EVANGELHO SEGUNDO SAO JOÃO


( t r e c h o d a I n tr o d u ç ã o : P .G . 1 4 , 2 6 -3 2 ; S .C . 1 2 0 )

238 Já que nossa atividade e nossa vida estão consagradas a Deus


— pois aspirando aos bens superiores, nós as queremos, salvo en­
gano, como primícias tomadas dentre primícias — minhas pesquisas,

3 To 4 .3 4 .
4 G 1 3 ,2 7 .
COMENTÁRIO AO EVANGELHO SEGUNDO SÃO JOÃO 151

desde o dia em que nos separamos um do o u tro *, poderiam acaso


versar sobre outra coisa que não o estudo do Evangelho?
Sim., ousamos dizer que o Evangelho constitui as primícias de
todas as Escrituras. Mas então não seria preciso que as primícias
de minha atividade, desde o retomo a Alexandria, versassem sobre
as primícias da Escritura?
Sabemos, com efeito, que as primícias e cs primeiros frutos não
são a mesma coisa: oferecemos as primícias após a colheita, os pri­
meiros frutos, antes. E não seria falso dizer que entre as Escrituras
transmitidas pela tradição e consideradas como divinas em todas as
Igrejas de Deus, a Lei de Moisés constitui os primeiros frutos e o
Evangelho as primícias. Forque, após os frutos dos profetas, que
se sucederam até o Senhor Jesus, germinou a Palavra perfeita.
Alguém, contudo, objetará talvez a propósito desta explicação que 239
estamos fazendo. Dirá que aos evangelhos se seguiram ainda os Atos
e as Cartas dos apóstolos e, portanto, não estaria certo dizer que eles
sejam as primícias de toda a Escritura. Responder-lhe-íamos que nas
epístolas, transmitidas até nós, se acha o pensamento de homens
sábios no Cristo e assistidos por ele, mas os quais têm necessidade,
pára serem cridos, do testemunho da Lei e dos Profetas. Eis por que
se dirá que as palavras dos apóstolos são sábias, dignas de crédito,
mui justas, mas não se comparam a aquele: “eis o que diz o Se­
nhor tcdc-poderoso” 12.
A este propósito, observo que Paulo, dizendo: “ toda Escritu­
ra é inspirada por Deus e ú til” 3, inclui nisso seus próprios escritos.
Ao escrever, porém: “não é o Senhor quem o diz, mas eu” 4, ou:
“instituo esta regra em todas as igrejas” 5, cu ainda: “os sofrimentos
que padeci em Antioquia, Icônio e Listra” 6, ou coisas semelhantes,
não. parece que tais passagens, embora revestidas de uma autoridade í
apostólica, não têm o valor absoluto das palavras diretamente emi­
tidas por Deus?
De outro lado, convém assinalar que o Antigo Testamento não 240
é um evangelho, pois não mostra “aquele que deve vir”; apenas o
anuncia. Ao contrário, todo o Novo Testamento é Evangelho, pois
não somente diz, no início: “eis o Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo” 7, mas contém louvores e ensinamentos diversos
daquele por quem o evangelho é um Evangelho.

1 O r íg e n e s se d irig e n e s te C o m e n tá rio a c e r to A m b ró s io , p e s s o a ric a q u e se co m ­


p r o m e te r a a f o r n e c e r-lh e e s te n ó g r a fo s e co p is ta s .
2 2Cor 6,18.
3 2Tm 3,16.
4 lCor 7,12.
5 lCor 7,17.
6 2Tm 3,11.
7 Jo 1,29.
152 ORÍGENES
Aliás, desde que Deus estabeleceu na Igreja apóstolos, profe­
tas e evangelistas como pastores e como doutores8, se considera­
mos qual é a tarefa do evangelista — ora, não é precisamente narrar
ccmo o Salvador curou um cego de nascença9, ressuscitou um morto
já em decomposição ou realizou tal ou qual milagre, mas o evange­
lista se deixa reconhecer em suas palavras de exortação para susci­
tar a fé quanto> a Jesus — não hesitaremos em dizer que os escri­
tos apostólicos são, à sua maneira, um evangelho.
Se se recusa nossa segunda explicação, afirmando-se que erra­
mos ao chamar todo o Novo Testamento um evangelho, pois as epísto­
las não levam esse título, responderemos que em numerosas passagens
das Escrituras dois ou mais objetos são designados pela mesma pa­
lavra, a qual só é tomada em sentido próprio para um deles. Assim,
embcra o Senhor tenha dito: “não deis a ninguém na terra o nome
de mestre” 10, o Apóstolo declara que mestres foram estabelecidos
na Igreja. Eles não serão mestres, pois, no sentido estrito em que
o termo é tomado no Evangelho. Assim, nem todo pormenor das
epístolas será considerado como um evangelho, se se compara ao re­
lato das ações, sofrimentos e palavras de Jesus.
Resta que o Evangelho constitui as primícias de toda a Es­
critura, e a ele consagraremos as primícias dos trabalhos que espe­
ramos empreender.
241 De minha parte, penso que os quatro evangelhos são como os
elementos da fé da Igreja ■ — esses elementos com os quais se edi­
fica o mundo reconciliado com Deus no Cristo, como o diz Paulo:
“Deus estava em Cristo reconciliando consigo o m undo” 11. Deste
mundo Jesus assumiu o pecado, pois é ao mundo da Igreja que se
refere a palavra: “eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo” 12. E eu penso que as primíciàs dos evangelhos se acham
no texto que nos pedes para explicar, enquanto possível, isto é,
no evangelho de João, o qual, para falar daquele cuja genealogia
os outros traçaram, começa por onde ele não tem genealogia.
Com efeito, Mateus, escrevendo para judeus que esperavam o
filho de Abraão e de Davi, diz: “Genealogia de Jesus Cristo, filho
de Abraão” 13; e Marcos, sabendo bem o que escrevia, pôs: “ Início
do Evangelho” M, cujo fim nós encontramos em João, isto é, nó
Verbo que existia no princípio, no Verbo de Deus. E Lucas tam­
bém reserva àquele que repousou sobre o peito de Jesu s15 os
discursos maiores e mais perfeitos sobre Jesus. Nenhum deles mos-

8 I C o r 1 2 ,2 8 .
9 J o 9 ,1 .
10 M t 2 3 ,8 .
« 2 C c r 5 ,1 9 .
12 J o 1 ,2 9 .
13 Mt 1,1.
M Mc l.i.
15 Jo 13,25.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE MATEUS 153

trou sua divindade de modo tão absoluto como João que lbe fez
dizer: “eu sou a luz do m undo” 16, “eu sou o caminho, a verdade
e a vida” 17, “eu sou a ressurreição” 18, “eu sou a porta” 19, “eu
sou o bom pastor” 20 e, no Apocalipse, “eu sou o alfa e o ômega,
o começo e o fim, o primeiro e o últim o” 21.
É preciso dizer, pois, que de todas as Escrituras os evangelhos 242
são as primícias e, entre os evangelhos, as primícias são o evange­
lho de João, cujo sentido ninguém pode captar se não se reclinou
sobre o peito de Jesus e se não recebeu de Jesus a Maria por mãe.
E, para ser outro João, é preciso tornar-se tal que, como João,
se ouve designado por Jesus como sendo o próprio Jesus. Ora, se­
gundo aqueles que têm dela uma opinião sã, Maria não tem outro
filho senão Jesus; portanto, quando Jesus disse a sua mãe: “Eis
aí teu filho” 22 e não: “Eis, esse homem é também teu filho”, é
como se lhe dissesse: Eis aí Jesus, a quem tu geraste. Com efeito,
quem quer que tenha chegado à perfeição “não vive mais, porém
Cristo vive nele” 23 e, se Cristo vive nele, dele é dito a Maria: Eis
aí teu filho, o Cristo.
Será necessário dizer que entendimento seja necessário para se
interpretar dignamente a palavra depositada nos tesouros frágeis
da linguagem comum, a letra que todos lêem, a palavra tornada
sensível e que todos pedem ouvir? Para se entender esse Evangelho
é preciso poder-se dizer com a verdade: “Nós temos a mente de
Cristo, e é assim que conhecemos as graças de Deus”.

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE MATEUS


( 1 0 ,1 ; P .G . 1 3 , 8 3 6 s; S .C . 1 6 2 )

A casa de Jesus

“Então, despedindo as turbas , entrou em sua casa . E os discípulos


se aproximaram dele, dizendo: explica-nos a parábola do joio no
cam po " (M t 13,36).
Quando Jesus está com as turbas não está em casa, pois, as 243
turbas se acham fora; e a obra de seu amor pelos homens consiste
mesmo em abandonar a casa e ir aos que não podem vir a ele. Mas
depois, quando falou suficientemente às turbas, ele as deixa e vai pa­
ra sua casa, onde cs discípulos vêm juntar-se, também não ficando
dia, por causa do mistério segundo o qual todo homem, ao nascer,
pode fazer suas as palavras de Davi: “fui concebido no pecado” 3.
Na regeneração pela água, todo homem, engendrado a partir do alto
na água e no Espírito, se terna livre do pecado e •— ouso dizer —
puro, ao menos “em espelho e enigma” 4. Mas na cutra geração,
quando o Filho do homem aparecer sentado no trono de sua glória,
todo aquele que tiver obtido tal regeneração em Cristo estará frente
a elé, “face a face”, absolutamente puro do pecado; e a esta regenera­
ção se chega passando pelo batismo da regeneração.

SOBRE OS PRIN C ÍPIOS


(liv. III, c. 6; P.G. 11, 333)

A imagem e semelhança de Deus


Depois de dizer Deus: “façamos o homem à nossa imagem e 245
semelhança”, prossegue o narrador: “E o fez à imagem de Deus” l,
sem acrescentar nada acerca da semelhança. Isto indica que em sua
primeira criação o homem recebeu a dignidade de imagem de Deus,
mas que a perfeição da semelhança está reservada para a consuma­
ção total; até que o mesmo homem, com seu próprio esforço dili­
gente por imitar a Deus, possa consegui-la. Desta sorte, lhe é dada
desde o princípio a possibilidade da perfeição através da dignidade
da imagém, e depois, no final, através das obras que faz, o homem
alcança a plena realização dela à semelhança de Deus. O apóstolo
João declara estas coisas mais lucidamente ao dizer: “Filhinhos meus,
ainda não conhecemos o que seremos, mas quando se nos revelar o
referente a nosso Salvador poderemos dizer sem dúvida: seremos
como ele ” 2

CONTRA CELSO
(Ü v . 4 ,1 -6 ; P .G , 11, 1 0 2 8 -1 0 3 6 ; S .C .- 1 3 6 )

Nos três livros precedentes, santo amigo Am brósiol, expus com 246
pormenores o que me veio à mente em resposta ao tratado de Celso.
Passo agora a um quarto livro, visando as objeções que se seguem e
escrevendo-o depois de orar, por Cristo, a Deus. Sejam-me conce­
didas palavras como as de Jeremias, quando o Senhor lhe falava:
“eis que pus minhas palavras, como fogo, em tua boca e te estabe­
leci sobre as nações e os reinos, para arrancares e demolires, para

3 SI 5 0 ,5 .
4 lCor 13,12.
1 Gn 1,27.
2 ljo 3,2.
1 V e r a tr á s , p á g . 151 n o t a 1.
156 ORÍGENES
arruinares e destruíres, para edificares e plantares” Ia. Preciso de pala­
vras capazes de arrancar as idéias contrárias à verdade, de toda alma
iludida pelo tratado de Celso ou por idéias semelhantes às suas.
Preciso também de conceitos capazes de demolir as falsas sentenças
e as pretensões do edifício de Celso, semelhante ao dos que diziam:
“vamos construir uma cidade e uma torre cujo ápice atinja o céu!” 2
Preciso de unia sabedoria que destrua as potências altaneiras que
se elevam “contra o conhecimento de D eu s” 3, que destrua a potência
da empáfia de Celso elevada contra nós. Mas, não devo limitar-me
a arrancar e destruir esses erros, devo plantar, no lugar do que foi
arrancado, a plantação do campo de D e u s4, devo construir, em lugar
do destruído, o edifício de Deus e o templo da divina glória. Por
isso devo orar ao Senhor, dispensador dos dons mencionados em
Jeremias, a fim de que me conceda palavras aptas para erguerem o
edifício de Cristo, para implantarem a lei espiritual e as respectivas
palavras dos profetas.
247 D evo sobretudo estabelecer, contra as presentes objeções de
Celso ( seguintes às que já vim os) como foi realmente predito o
advento de Cristo. Na verdade, ele se volta ao mesmo tempo contra
os judeus e contra os cristãos: os primeiros, que recusam estar rea­
lizada a vinda do Cristo mas ainda a esperam; os segundos, que
professam ser Jesus o Cristo predito. Afirma ele: "eis a pretensão de
certos cristãos e dos judeus: um Deus, ou Filho de Deus, conforme
uns desceu, conforme outros descerá sobre a terra para julgar seus
habitantes: um intento tão mesquinho que não são necessárias muitas
palavras para refutá-lo”.
Ele parece falar com exatidão quando diz que não só alguns
judeus, mas todos creem que alguém descerá sobre a terra; ao passo
que apenas certos cristãos dizem já ter descido. Ele quer indicar aqui
os que estabelecem, por meio das Escrituras judaicas, a vinda de Cristo
já realizada, ao mesmo tempo que insinua a existência de seitas que
negam ser o Cristo Jesus a pessoa profetizada5.
Já deixei claro anteriormente, da melhor maneira possível, que o
Cristo tinha sido profetizado; por isto não voltarei às inúmeras provas
deste ponto, para evitar repetições. Mas vê que se ele tivesse querido,
com lógica ao menos aparente, derrubar a fé nas profecias e na vinda
futura ou passada do Cristo, devia citar as profecias a que nós, cristãos
ou judeus, recorremos nos debates. Poderia assim, ao menos aparente­
mente, afastar da adesão a elas e da fé em Jesus Cristo os que se sen­
tissem atraídos por seu caráter supostamente enganoso. Porém, seja

Ia J r l ,9 s .
2 Gn 11,4.
1,4.
3 2Cor 10,5.
4 l C o r 3 ,9 .
3 R e fe rê n c ia às s e ita s g n ó s tic a s ; c f. I, 49.
CONTRA CELSO 157

por incapacidade de responder às profecias sobre o Cristo, seja por


ignorância total quanto a elas, não cita uma só passagem profética,
apesar de haver tantas. Pensa impugnar cs textos proféticos sem
mostrar o que ele chamaria o seu caráter enganoso. Ele ignora, em
todo caso, não dizerem os judeus, simplesmente, que o Cristo Deus
ou Filho de Deus descerá, conforme expliquei antériormente.
Mal acaba de asseverar que, segundo nós, o Cristo desceu e,
segundo os judeus, descerá como Juiz, acha poder impugnar essa idéia
como tão mesquinha que não merecesse refutação. Diz ele: “que
intento teria Deus para tal descida?”
Não percebe que, segundo nós, o intento da descida é, primeiro,
converter “as ovelhas perdidas da casa de Israel” 6 e, segundo, retirar
aos antigos judeus, por causa de sua incredulidade, “o Reino de D eu s”
e confiá-lo a outros vinhateiros, os cristãos, que “darão contas” “no
tempo oportuno, dos frutos do Reino de D eus” 7, sendo cada ação
um fruto do Reino.
Apresentei estas razões, entre outras, para responder à questão 248
de Celso: “que intuito teria Deus para sua descida?” Ele passa a
inventar uma série de intuitos que nem são dos judeus nem nossos.
“Seria para vir aprender o que se passa entre os hom ens?”, pergunta.
Nenhum de nós disse que o Cristo tenha vindo para aprender o que
se passa entre os homens! Depois, como se alguém tivesse concedido
que foi para aprender o que se passa entre os homens, trata de res­
ponder por si mesmo a questão: “mas não conhece ele tudo?”
Então, como se disséssemos que sim, formula nova pergunta: “ter-se-á
pois que, conhecendo tudo, ele não reforma os homens, não pode
reformá-los por seu poder divino?”
Quanto disparate nestas palavras! Incessantemente, por meio dç
seu Verbo que desce, nas sucessivas gerações, às almas pias e as faz ‘
amigas de Deus e profetas, Deus reforma os que ouvem suas palavras;
e no tempo da vinda de Cristo, ele reforma pelo ensinamento do
cristianismo, não os recalcitrantes, mas os que escolheram o melhor
caminho, que agrada a Deus.
Não sei depois que reforma Celso desejaria realizada quândo põe 249
outra questão: “ser-lhe-ia impossível reformar (os homens) por
sèu poder divino, sem enviar alguém votado, por natureza, para tal
propósito?”
Será que Celso pensava numa reforma produzida por divinas
visões, e que, retirando subitamente a malícia, implantasse a vir­
tude? Poderíamos perguntar se isto fosse conveniente ou até sim­
plesmente possível. Admitamos que seja possível; mas então que seria
de nossa liberdade?. . . Como seria louvável a adesão à verdade, e dig­
na de aprovação a recusa do erro? Aliás, supondo a coisa possível e

6 M t 1 0 ,6 ; 1 5 ,2 4 .
7 M t 2 1 ,4 3 .4 1 .
158 ORÍGENES
conveniente, por que não por imediatamente outra questão, calcada so­
bre a afirmação de Celso: Seria impossível a Deus criar, por sua onipo­
tência uma humanidade desnecessitada de reforma, desde logo virtuosa
e perfeita, sem a existência da menor malícia? Concepção capaz de
seduzir a gente simples e ignorante, mas não quem examina a natu­
reza das coisas! Pois destruir a liberdade da virtude é destruir sua
própria essência. O assunto se prestaria a um estudo especial. Os
gregos trataram dele em livros sobre a Providência. Jamais subscreve­
riam a proposição de Celso: “Ele conhece mas não reforma, e ser-lhe-ia
impossível reformar por seu poder divino”. Eu mesmo diversas ve­
zes tratei do assunto, da melhor maneira que pu d e8. E as divinas
Escrituras o demonstram aos que podem compreendê-las.
Retorquiríamos contra Celso o que ele mesmo nos objeta, a nós
e aos judeus: — Então, meu caro, o supremo Deus conhece, ou não, o
que se passa entre os homens? Se admites que há um Deus e uma
Providência, como teu tratado permite v e r 9, necessariamente ele co­
nhece. E se conhece, por que não reforma? Não será preciso explicar
por que, conhecendo, ele não reforma? Tu que em tua obra não te
mostras epicurista, pois indicas reconhecer a Providência, não te dás
ao trabalho de dizer por que Deus, conhecendo tudo que se passa
entre os homens, não cs reforma e não os livra do mal por seu poder
divino. N ós, porém não nos acanhamos de dizer que ele envia inces­
santemente ministres que reformam os homens. (É por um dom de
Deus que se acham na humanidade as doutrinas incitadoras das mais
altas virtudes).
Ora, entre os ministros de Deus há diferenças: alguns pregam
em toda a pureza a doutrina da verdade e.realizam uma perfeita
reforma: tais foram Moisés e os profetas. Mas, superior à obra de
todos, está a reforma operada por Jesus, que quis curar não apenas
cs habitantes de um canto da terra, e sim, enquanto delê dependia, os
do mundo inteiro, pois veio como “Salvador de todes os ho­
m ens” 10.
250 Mas depois temos outra dificuldade do prezadíssimo Celso. N ão
sei por que razão, ele nos argüi sobre o qué diríamos: “Deus em pessoa
descerá sobre os hom ens”. Seguir-se-ia, segundo ele, que “Deus aban­
dona seu trono”. Ignora a potência de Deus, ignora que “o Es­
pírito do Senhor enche o universo, e que, unindo todas as coisas,
sabe tudo c que se diz! ” 11 Celso não consegue compreender a pala­
vra: “porventura não preencho eu o céu e a terra?” 12 Não vê que,
segundo a doutrina dos cristãos, todos nós temos em Deus “a vida, o
movimento, o ser” 13, segundo ensinou Paulo aos atenienses. Então,
CONTRA CELSO 159

mesmo quando o Deus do universo desce por sua própria potência,


com Jesus, na existência humana; mesmo quando o Verbo, “no prin­
cípio com Deus” e Deus m esm o14, vem até nós, não abandona seu
lugar, não deixa seu trono, como se houvesse um lugar vazio, depois
outro cheio com ele e que antes não o teria contido! Ao contrário,
a potência e a divindade de Deus vêm por aquele que ele quer e no
qual acha um lugar, sem qualquer deslocamento, sem deixar um
posto vazio para ocupar outro. Como também não falamos em sentido
local, quando dizemos que ele abandona ou habita alguém. Dizemos
que a alma do ímpio, imerso no vício, é abandonada por Deus,
e explicamos que a alma do homem que deseja viver, vive e
progride na virtude, é repleta ou se torna participante do Es­
pírito divino. Para Cristo descer aos homens, para Deus se voltar
a eles, não se faz necessário pensar que abandone um elevado
trono, ou que mude as coisas cá de baixo, conforme pensa Celso ao
escrever: “mudar as coisas cá de baixo seria revolucionar e destruir
o universo”. Se ocorresse dizer que se mudam coisas pola presença
da potência de Deus e pela vinda do Verbo aos homens, diríamos
sem hesitar: muda-se a perversidade em virtude, a licenciosidade em
temperança, a superstição em piedade, tudo isto que significa abrir
a alma à vinda do Verbo de Deus.
Se desejas ter minha resposta a questões ainda mais ridículas de 251
Celso, ouve mais esta: “Deus, sendo desconhecido pelos homens,
e julgando-se assim diminuído, terá talvez querido fazer-se reconhe­
cido, para deixar-se comprovado aos crentes e incrédulos, da mesma
forma como os intrusos ávidos de ostentação? Que ambição excessi­
va e humana se iria atribuir a D eus!”
Minha resposta é que ele, desconhecido por causa da malícia
dos homens, quis ser reconhecido, não por julgar-se diminuído, mas*
porque seu conhecimento liberta da infelicidade quem o conhece.
Nem é para comprcvar-se a si mesmo, humilhando crentes e incré­
dulos, que habita em alguns por sua misteriosa e divina potência
ou lhes envia seu Cristo; é para afastar de toda infelicidade os cren­
tes que acolhem sua divindade e para tirar aos incrédulos ocasião de
excusa pela falta de fé, a pretexto de não terem ouvido seu ensina­
mento.
Sendo assim, que argumento extrairia de nessa doutrina essa
idéia de um Deus assemelhado a intrusos ávidos de ostentação?
Ele está longe de ser ávido de ostentação para conosco quando
deseja fazer-nos conhecer e compreender sua excelência. Deus quer
implantar em nós a felicidade que nasce nas almas pelo fato de
ser conhecido por nós; seu anseio é fazer-nos entrar em sua intimidade,
por meio do Cristo e da incessante vinda do Verbo. A doutrina
cristã não atribui a Deus, portanto, nenhuma ambição humana.

14 J o 1,1-2.
TERTULIANO
(t c. 220)

C a rta g in ê s , h o m e m g r a n d e m e n te c u lto , e r a a d v o g a d o e m R o m a q u a n d o , p o r
v o lta d o a n o d e 1 9 5 , se c o n v e rte u a o c r is tia n is m o , p a s s a n d o d e s d e e n tã o a s e r v ir
à Ig r e ja em C a rta g o , c o m o z e lo so c a te q u is ta . A o q u e p a re c e , p e r m a n e c e u s e m p re
le ig o . E m 2 0 7 ro m p e u co m a Ig r e ja , a d e rin d o à h e re s ia d e M o n ta n o .
In te lig ê n c ia p e n e t r a n t e , m a s c a rá te r e x a lta d o e in tra n s ig e n te , T e r tu lia n o é a u to r
d e o b r a s p o lê m ic a s, e x p o s ta s d e fo rm a ló g ica, em e s tilo e x tre m a m e n te o rig in a l e la tim
b r i l h a n t e , q u e à s v e z e s m a is d e s lu m b ra m d o q u e c o n v e n c e m . C o m b a te u in ic ia l­
m e n te o p a g a n is m o e o ju d a ís m o , d e p o is o g n o stic ism o , o m o d a lis m o e, p o r fim a
Ig r e ja C a tó lic a .
S e u s e s c rito s m a is im p o r ta n te s sã o : Apologético, Prescrição contra os hereges,
Contra Marcião, Contra Praxéias ( o n d e , p e la p rim e ira v e z é u s a d a a p a la v ra “ T r i n i t a s ” ) ,
O testemunho da alma. O u t r a s o b ra s v ersam s o b re te m e s m o ra is e a sc ético s. D o p e ­
r í o d o m o n ta n is ta são : Sobre a pudicidade, Sobre o manto, e tc .
M o d e r n a e d iç ã o c r ític a : C C L I . I I Tertulliani Opera (1 9 5 3 -1 9 5 4 ).

« APOLOGÉTICO m
OU “DEFESA D OS CRISTÃOS CONTRA OS G E N T IO S”
( C a p . 1: P .L . 1, 3 0 6 -3 1 7 )

252 Se não ves é livre, ó magistrados do império romano — que


fazeis vossos julgamentos em público e no mais eminente lugar
desta urbe; se não vos é livre o examinar aos cibos da multidão
a causa dos cristãos; se o temor ou o respeito humano vos levam
a afastar-vos, apenas nesta presente ocasião, das regras estritas da
justiça; se o ódio do nome cristão, como sucedeu ultimamente, va­
lendo-se de delações domésticas, fecha o caminho a qualquer de­
fesa judiciária; que a verdade possa ao menos chegar até vós pelo
canal secreto de nossas cartas! Ela não pede favor, porque a per­
seguição não a intimida. Nossa religião sabe que seu destino é ser
estrangeira sobre esta terra e que sempre terá adversários. É no
céu que ela tem sua sede, suas esperanças, seu crédito e sua glória.
A única coisa a que aspira é não ser condenada sem ter sido ou­
vida. Que podereis temer da parte de vossas leis, se permitis à ver­
dade o difundir-se na sede de seu império? Acaso o poder das leis
se manifestaria melhor na condenação da verdade sem antes a es­
cutar? Mas além do escândalo que tal injustiça acarreta, dais a im­
pressão de que vos recusais a ouvi-la porque sabeis não poder con-
“ defesa dos cristãos contra os g en tios 1 161

dená-la se a tendes ouvido. Eis nossa primeira advertência: a de


que existe um ódio contra tão-scmente o nome dos cristãos.
Vossa ignorância mesma, que pareceria dever escusá-lo, é pre­
cisamente o que atesta essa injustiça e a torna ainda mais grave.
Que há de mais injusto do que cdiar o que não se conhece, ainda
que isso que não se conhece seja em si odiável! Não pede ser a
ignorância, mas o conhecimento do crime o que pode causar vosso
ódio e torná-lo legítimo. Sem tal conhecimento, como justificar vosso
ódio? Se ediais sem esse conhecimento, acaso não vos poderia
ocorrer que odiásseis o que não merece ser odiado?
Daí nós concluirmos: que não nos conheceis enquanto nos
odiais, e que nos odiais injustamente enquanto não nos conheceis.
Vossa ignorância é testemunha que vos condena, depondo contra
vós.
Todos os que antes nos odiavam, por desconhecerem o que 253
somos, cessam de nos odiar desde que nos conhecem. Logo se tor­
nam cristãos; e deveis convir que o fazem com conhecimento de
causa. Eles começam por detestar o que eram e a professar o que
detestavam. Seu número é imenso atualmente. Daí a queixa de que
a cidade está ameaçada, de que os campos, as ilhas, as vilas estão
cheias de cristãos, de que todas as idades, sexos e condições correm
para alistar-se entre eles.
E não concluís que há algo de bom, oculto em nossa religião?
Não, não quereis renunciar às suspeitas injuriosas, não quereis as-
segurar-vos por vós mesmos da verdade: só nesta ocasião a curio­
sidade está morta. Vós vos comprazeis em ignorar ò que outros
aspiram a conhecer, e pretendeis julgá-los! Mereceis bem mais a cen­
sura de Anacarsis do que aqueles que julgavam os músicos sem
serem deles. Vós vos comprazeis em ignorar, porque já vos deci- <
distes a odiar. Vós pré-julgais o que ignorais, como se, conhecem
do-c, já não o pudésseis odiar. Entretanto, aprofundando a verdade,
ou veríeis que não há motivo de ódio, e neste caso deveríeis cessar
de odiar injustamente; ou descobriríeis motivos de cdiar e entóp^.
ao invés de extinguir vosso ódio, tomá-lo-íeis mais duradouro pàMiL
que legítimo.
“Mas enfim”, dizeis, “disso que um grande número , c
mens abraçam o cristianismo, não se segue que ele seja Jbom^
tos não abraçam cada dia cs vícios! Quantos não se fazemel
da virtude!” ,
Ninguém o nega. Mas entre cs que são a r r ^ t t d o ^
não há os que ousem fazê-lo passar por virtude. Á; na
o mal pelo temer ou pela vergonha. Os maus procura:
tremem, ao serem descobertos; negam, se são acusai
fessam seus males senão a preço de torturas, ou a '
fessam; enfim, condenados, fazem-se a si mesmos
suras, desesperam, ou, não querendo reconhecer-S

6 • Antologia dos santos padres


162 TERTULIANO
mal que confessam, atribuem-no ao destino, à sua estrela, ao desgarra-
mento de suas paixões.
Ora, porventura se viu isso entre .os cristãos? Quando é que um
cristão enrubesce, ou se arrepende, se não apenas por não ter sido
sempre cristão? Se é denunciado como tal, orgulha-se disso; se é
acusado, não se defende; interrogado, confessa-o em alta voz; con­
denado, dá graças! Que estranha espécie de mal, que não tem ne­
nhum dos caracteres do mal, nem temor, nem vergonha, nem ro­
deios, nem arrependimento, nem retratação! Que mal é esse, do qual
o culpado se alegra e cuja acusação é objeto de seus desejos, cujo
castigo faz sua felicidade? Não haveríeis agora de tachar de fa­
natismo aquilo mesmo que sabeis ig n o r a r ...

D A PRESCRIÇÃO D OS HEREGES
(XIII-XV, XVII, XIX, XX: P.L. 2,31-38; S.C 46)
A re g ra d a f é

254 A regra de fé — pois é preciso conhecermos desde logo p


que professamos — consiste em crer: não há senão um Deüs,
o Criador do mundo, que tirou o universo do nada por meio de
seu Verbo, emitido antes de todas as coisas; esse Verbo, chamado
seu Filho, apareceu em nome de Deus e sob diversas figuras aos
patriarcas, se fez ouvir pelos profetas e enfim desceu, pelo espírito e
poder de Deus, ao seio da Virgem Maria, onde se fez carne, pas­
sando a viver como Jesus Cristo; em seguida pregou a Nova Lei e a
nova promessa do reino dos céus; fez milagres, foi crucificado, res­
suscitou ao terceiro dia, foi elevado aos céus e se assentou à direita
do Pai; enviou em seu lugar a força d ó Espírito Santo para guiar os
fiéis; virá um dia em glória para levar os santos e dar-lhes o gozo
da vida eterna e das promessas celestes, bem como para condenar os
profanos ao fogo perpétuo, após a ressurreição de uns e outros na
restituição da carne.
Tal é a regra que Cristo estabeleceu, como demonstraremos,
e que não há de suscitar entre nós quaisquer questões senão as
provenientes das heresias e formuladas pelos hereges.
Contudo, desde que se mantenha inalterado o conteúdo, po­
deis pesquisar e discutir quanto quiserdes, dando azo à curiosida­
de, se algum ponto vos parecer ambíguo ou obscuro. Tendes, aliás,
sempre algum irmão dotado do carisma da ciência, ou que freqüen-
ta gente capacitada e que, sendo curioso como vós, também faz suas
pesquisas. Em suma, é melhor ignorar o que não é preciso saber,
se se conhece o que se deve. “Foi tua fé que te salvou”, disse C risto l ;

I Mc 1032.
DA PRESCRIÇÃO DOS HEREGES 163

não disse: “foi tua versatilidade nas Escrituras” 2. A fé consiste nu­


ma regra, ela tem sua lei, e a salvação está na observância dessa
lei. Já a versatilidade é apenas curiosidade, e tem sua glória na
fama de perícia. Que a versatilidade ceda à fé, que a glória ceda à
salvação! A o menos não lhe ponham obstáculos ou silenciem.
Nada saber contra a regra é tudo saber.
Admitamos que os hereges não sejam inimigos da verdade, que 255
não sejamos aconselhados a fugir deles: para que então serve ouvir
gente que ainda se confessa em busca da verdade? Se eles realmen­
te a buscam, ainda nada acharam de certo, e quaisquer sejam os
pontos onde pareçam manter-se provisoriamente, já que estão em
busca mostram sua incerteza. Assim, se tu estás como eles, à pro­
cura, e voltas os olhos para gente que também está à procura, diri­
gindo tua dúvida para a dúvida deles, tua incerteza para a sua
incerteza, fatalmente serás um cego levado por cegos ao precipício.
Eles fingem estar à procura para insinuar-nos seus escritos,
aproveitando-se de nossa solicitude; mas assim que travam contacto
conosco passam a sustentar o que antes diziam apenas estar investi­
gando. Saibamos repeli-los, de modo a verem que os estamos re­
negando, não a Cristo. Porque se estão em busca, nada sustentam;
se nada sustentam, ainda não creram; e se ainda não creram não
são cristãos. Mas dizem eles que crendo estão em busca, pois sua
busca visa a defender sua fé. Ora, antes mesmo de defendê-la
renegam-na, pelo fato de estarem em busca e de, portanto, nada
sustentarem. Não são cristãos, mesmo diante de si próprios, quanto
mais diante de nós! Se se aproximam fraudulentamente, que fé po­
dem discutir? Que verdade podem defender pessoas que no-la su­
gerem através da mentira? “Mas eles falam na base das Escrituras<
e é segundo estas que argumentam”. Pudera! Como haveriam de
falar das coisas da fé sem recorrerem aos livros da fé?
Eis-nos, portanto, no centro de nosso objeto. Para cá nos diri- 256
gíamos e tudo até cá foi preâmbulo a este ponto, que nos faz
encontrar os adversários exatamente cnde nos provocam. Eles ante­
põem as Escrituras diante de alguns, impressionando-os com isso
e durante o combate vão fatigando os fortes, seduzindo os fracos,
deixando escrúpulos nos medíocres. Precisamente aqui deveríamos
barrá-los declarando-os incapazes de qualquer discussão na base das
Escrituras. Eles as consideram sua força, e querem usá-las, mas é pre­
ciso antes, observar-se a quem compete a posse das Escrituras, a fim de
não se admitirem a isso cs que não têm tal direito.

2 “Versatilidade”: tradução da palavra “exercitado”, que tem em Tertuliano


u m m a tiz p e jo r a tiv o . A s s im , e le to le ra a p e s q u is a te o ló g ic a , m a s e x c lu i a filo só fica :
c f. R . F . R e fo u lé , o . p ., “ S o u rc e s c h r é tie n n e s ” , n ? 4 6 , p . 107.
164 TERTULIANO
257 H á certos livros da Escritura que a heresia não aceita. Os que ela
aceita, não admite integralmente, acomodando-os a seu sistema por
adições e cortes; e quando os aceita integralmente, falseia-os imagi­
nando interpretações diferentes. Tanto fica impedida a verdade pela
alteração do sentido quanto pelo erro do cálamo. É claro qué as
frívolas conjecturas não querem reconhecer ás passagens que as anu­
lam; e então se apóiam sobre outras que falsamente combinaram ou
escolheram por sua ambiguidade. Que resultado obterás, ó ho­
mem versado nas Escrituras, se em outro lugar se negar o que
afirmas, ou se afirmar o que negas? Nada conseguirás senão perder
a vez discutindo e encolerizar-te blasfemando.

258 Não se há de recorrer, pois, em tal caso às Escrituras; não se


deve levar a luta para um terreno onde a vitória é nula, incerta ou
insegura. Mesmo que pelo confronto dos textos não se viessem a pôr
no mesmo plano as duas partes, a ordem das coisas pediria que pri­
meiro se apresentasse a questão que no momento é a única a ser de­
batida: a quem compete a fé, a fé à qual se referem as Escrituras?
Por quem, por meio de quem e a quem a doutrina que nos faz cris­
tãos foi transmitida?
Porque onde parecer estar a verdade da doutrina e da fé cris­
tã, aí estará a verdade das Escrituras, a verdade das interpretações
e de todas as tradições cristãs.
259 Jesus Cristo, nosso Senhor — permita-se-me falar assim: quem
quer que tenha sido, de qualquer Deus tenha sido Filho, de
qualquer matéria tenha sido feito ccmo homem-e-Deus, qualquer
tenha sido a fé por ele ensinada, qualquer a recompensa que te­
nha prometido — ele declarava durante sua estada na terra quem
era, quem fôra, qual a vontade do Pai que estava executando,
que deveres prescrevia ao homem; e isto fazia tanto em público, diante
do povo, como nas instruções particulares dadas aos discípulos, en­
tre os quais escolhera doze principais, para estarem a seu lado e se­
rem destinados ao magistério das nações. Assim, tendo expulso
um dentre estes, ordenou aos demais onze, no momento dè re­
tom ar ao Pai após a ressurreição, que fossem ensinar as nações
e batizá-las em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Por
conseguinte, os apóstolos (termo que significa enviados) escolhe­
ram logo, por meio de sorte, um décimo segundo, Matias, para to­
mar o lugar de Judas, conforme autorizava a profecia do salmo da-
vídico. Eles receberam a força prometida do Espírito Santo para
realizarem milagres e falarem as várias línguas. Foi inicialmente na
Judéia que estabeleceram a fé em Jesus Cristo e fundaram igrejas,
partindo em seguida para o mundo inteiro a fim de anunciarem a
mesma doutrina e a mesma fé. Em todas as cidades iam fundando
igrejas das quais, desde esse momento, as outras receberam o en­
xerto da fé, a semente da doutrina, e ainda recebem cada dia, para
“CONTRA PRAXÉIAS” 165

serem igrejas. É por isso mesmo que serão consideradas como apostó­
licas, na medida em que forem rebentos das igrejas apostólicas.
É necessário que tudo se caracterize segundo sua origem. Assim,
essas igrejas, por numerosas e grandes que pareçam, não são outra coisa
senão a primitiva Igreja apostólica da qual procedem. São todas primi­
tivas, todas apostólicas e todas uma só. Para atestarem sua unidade, co­
municam-se reciprocamente na paz, trocam entre si o nome de irmãs,
prestam-se mutuamente os deveres da hospitalidade: direitos todos
estes regulados exclusivamente pela única tradição de um mesmo
sacramento.
A partir daí, eis a prescrição que assinalamos. Desde o momento 260
em que Jesus Cristo, nosso Senhor, enviou os apóstolos para pre­
garem, não se podem acolher outros pregadores senão os que Cristo
instituiu. Pois ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem
o Filho tiver revelado. Ora, não se vê que Cristo tenha revelado
a outros senão aos apóstolos enviados à pregação, e exatamente à
pregação do que lhes tinha revelado.
É qual a matéria da pregação, isto é, o que lhes tinha revelado
o Cristo?
Aqui ainda assinalo esta prescrição: para sabê-lo é necessário ir às
igrejas fundadas pessoalmente pelos apóstolos, por eles instruídas
tanto de viva voz quanto pelas epístolas depois escritas.
Nestas condições, é claro que toda doutrina em acordo com
a dessas igrejas apostólicas matrizes e fontes originárias da fé de­
ve ser considerada autêntica, pois contém o que tais igrejas re­
ceberam dos apóstolos, os apóstolos de Cristo e Cristo de Deus.
A o contrário, toda doutrina deve ser pré-julgada como provenien­
te da mentira se se opõe à verdade das igrejas dos apóstolos, jj e
Cristo e de Deus. i
Resta, pois, demonstrar que nossa doutrina, cuja regra formula­
mos acima, procede da tradição dos apóstolos e, por isto mesmo, as
demais precedem da mentira. N ós estamos em comunhão com as igre­
jas apostólicas, se nessa doutrina não difere da sua: eis o sinal da
verdade.

“CONTRA PR A X É IA S”
(c c . 1-2; P .L . 2 , 1 7 7 -1 8 0 )

D e diversas maneiras o demônio mostra sua hostilidade à 261


Verdade. Pretende por vezes golpeá-la simulando defendê-la. Faz-se
de campeão do único Senhor, do Todo-pcdercso, do Criador do
mundo, mas para extrair da divina unidade uma heresia1. Diz que o

1 P ra x é ia s te r i a s id o h e r e g e m o d a lís ta . D is tin g u ia e m J e s u s o e le m e n to h u m a n o
( " o F iJ h o ” ) e o d iv in o ( “o P a i " ) . E m J e s u s , p o is , o P a i n a sc e u e p a d e c e u . D a í o
n o m e d e p a trip a s s ia n is m o d a d o à h e re s ia .
166 TERTUUANO

próprio Pai desceu à Virgem, dela nasceu e depois padeceu, sendo


ele mesmo Jesus Cristo.
A serpente cochilou. Porque quando tentou Jesus Cristo após
o batismo de João, ei-lo tentado como “Filho de D eu s”; estando en­
tão pacífico que Deus tem um filho, conforme as Escrituras, a partir
das quais se forjava a tentação: “se tu és o Filho de Deus, ordena
que estas pedras se tornem pães” 2; e de novo: “se és o Filho de
Deus, atira-te daqui abaixo, pois está escrito que ele — o Pai, evi­
dentemente — mandou aos anjos que cuidassem de ti, que em suas
mãos te amparassem para que teu pé não se fira contra uma pedra” 3.
Ou acusará (o demônio) os evangelhos de erro, e dirá: “que Mateus
e Lucas falem assim, mas quanto a mim o que houve é que me
aproximei do próprio Deus, tentei o Todo-poderoso frente a frente;
ital foi o escopo de minha tentação e de outra sorte, se se tratasse do
Filhe de Deus, talvez eu não me abaixasse para tentá-lo”?
262 Não! ele é que mente desde o princípio4, e assim o faz também
todo homem a quem subornou, como Praxéias. Pois este foi o primeiro
a importar da Asia para Roma tal espécie de perversidade — um
homem aliás de caráter inquieto e inchado de orgulho pelo fato de
simplesmente ter sofrido um pouco de tédio na prisão5*; aliás, mesmo
que tivesse entregue, seu corpo para ser queimado nada teria aprovei­
tado pois não tinha o amor de Deus, cujos dens espirituais expulsou.
Com efeito, naquele tempo o bispo de Roma estava prestes a reco­
nhecer as profecias de Montano, Prisca e M aximilaó, e por isto
oferecia a reconciliação às igrejas da Ásia e da Frigia; mas este ho­
mem, por suas falsas asserções a respeito dos próprios profetas e de
suas igrejas, e pela insistência quanto às decisões dos predecessores
do bispo, forçou-o-tanto a retirar as cartas de paz já emitidas quanto
a desistir de seu projeto dè receber os dons espirituais. Assim, Pra­
xéias realizou dois negócios demoníacos: expulsou a profecia e in­
troduziu a heresia, afugentou o Paráclito e crucificou o Pai. O joio
de Praxéias. foi semeado sobre o trigo e germinou, ao tempo em que
muitos dormiam na simplicidade da doutrina.

263 E assim, após certo tempo, um Pai que nasceu, um Pai que
sofreu, o próprio D eus onipotente, é anunciado como Jesus Cristo.
N ós contudo, como sempre, e tanto mais agora (porque melhor ins­
truídos pelo Paráclito, que introduz em toda a verd a d e)7, crendo

2 M t AX
3 IbítL; cf. SI 91,lis.
4 .To 8 ,4 4 .
3 P ra x é ia s t e r ia s id o a p r is io n a d o p o r c a u sa d a fé.
ó A lu s ã o a o p a p a V í t o r (1 9 2 - 2 1 9 ). E le , n u m p rim e iro m o m e n to , te ria m o s tr a d o
s i m p r t ia p a r a c o m o m o v im e n to m o n ta n is ta , q u e p r e s u m ia p o s s u ir as g ra n d e s re v e la ç õ e s
d o P a rá c lito .
7 J o 16,15.
A RESSURREIÇÃO DA CARNE 167

num só Deus cremos na dispensação — como chamamos a “econo­


m ia” 8 — segundo a qual o único Deus tem também um. Filho,
sua Palavra que procede dele, pela qual tudo foi feito e sem a qual
nada foi fe ito 9; (cremos que) esse Filho foi enviado pelo Pai à
Virgem e dela nasceu, homem e Deus, filho do homem e filho de
Deus, sendo chamado Jesus Cristo; (cremos que) ele sofreu, morreu
e foi sepultado, em conformidade com as Escrituras, e, tendo sido
exaltado pelo Pai e retornado ao céu, está assentado à mão direita
do Pai e virá julgar os vivos e cs mortos; (cremos também que)
de acordo com a promessa ele enviou do Pai o Espírito Santo Pará-
clito, sántificador de todos aqueles que crêem no Pai, no Filho e no
Espírito Santo. Que esta R egra10* nos tenha sido comunicada desde 264
o princípio do Evangelho, desde muito antes dos primeiros hereges —
para não falarmos do Praxéias de ontem — prova-o tanto a posteri­
dade dos hereges quanto a novidade do Praxéias de ontem. Assim
igualmente contra todos os hereges em geral seja assumido, desde já,
ser verdadeiro o que é anterior, e adulterado o que vem depois. Con­
tudo, salva esta prescrição, dê-se lugar a discussões ulteriores, para
instrução de algumas pessoas, ao menos a fim de se evitar que tal
ou qual erro pareça estar sendo condenado sem exame prévio, prin-
cipaímente um erro como o presente, que pretende possuir a simples
verdade, sem alterações, pelo fato de pensar impossível a crença num
único Deus se não se diz também que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo são o mesmo e único. Como se ele :rião fosse .também único
pelo fato de tudo derivar dele, quanto rà unidade da substância, man­
tendo-se todavia o mistério da “economia” que dispõe a unidade na
trindade, e estabelece o Pai, o Filho e o Espírito Santo comó três:
três não pela qualidade e sim pela seqüência, não pela substância e
sim pelo aspecto, não pelo poder mas pela manifestação, sendo pois íle
uma substância, de uma qualidade e de um poder, enquanto do único
Deus são enumeradas estas seqüências, estes aspectos e manifestações,
no nome do Pai, do Filho è do Espírito Santo 11.

A RESSURREIÇÃO D A CARNE
(c. 12; P.L. 2, 856$)

Ergue teu olhar aos exemplos oferecidos pelo divino poder! O 265
dia morre transformando-se em noite e submergindo nas trevas.

8 “Sub hac tamen dispensatione, quam btxovo^Xav dídmus”.


9 J o 1,1-3.
10 " R e g r a " d a fé: a d o u t r i n a a p o stó lic a .
“ T r e s a u te m n o n s t a t u s e d g ra d u , n e c s ú b s ta n tia s e d fo rm a , n e c p o te s ta te sed
s p e c ie , u n i u s a u te m s u b s t a n t i a e e t u h iu s s ta tu s e t u n iu s p o r e s ta tis , q u ia u n u s D e u s
e x q u o e t g ra d u s is ti e t fo r m a e e t s p ec ie s in n o m in e P â t r i s e t F ilii e t S p ir itu s S a n c ti
d e p u t a n tu r " .
168 tertuliano

Obscurece o esplender do mundo, tudo se turva, se apaga, silencia,


desfalece; trevas e silêncio por toda parte. Choramos então a luz per­
dida, ei-la porém que ressurge com seu séquito, com sua riqueza,
com o sol, idêntica, íntegra, perfeita sobre a terra inteira. Ela mata sua
morte, isto é, a noite; espatifa seu sepulcro, isto é, as trevas; e tudo
reconquista até que de novo suba a noite, também com seu séquito,
pois reaparece'o raiar das estrelas, extinto pela claridade da manhã,
voltam os planetas, eclipsados pelo periódico Gcultamento; da mesma
forma como refulge cada mês o disco lunar após ter minguado em
suas fases.
Regressam ano por ano os invernos e os estios, as primaveras e os
outonos, com o verde, os bagos e os frutos. Pois o céu impõe uma
norma à terra: revestir as árvores depois de despejá-las, restituir a cor
às flores, espalhar de novo a relva, exibir sementes iguais às que
foram consumidas e, até, não antes que tenham sido consumidas. Que
admirável processo! espolia e salva, retira para devolver, destrói para
prclificar. Pois faz mais rico e sadio c que exterminou: traz lucro
sobre o estrago, taxa sobre o consumo, ganho sobre a perda. Diria eu
de uma vez por todas: a criação inteira é um contínuo alternar-se!
Tudo que foi reaparece, o que se corrompe se renova; volta a seu
estado depois que se foi, recomeça depois de acabar. E é para surgir
que acaba, nada se perde senão pára ser salvo!
Este alternar-se periódico das coisas é um testemunho da res­
surreição dos mortos. Deus a indicou primeiro nas obras e de­
pois nos escritos; proclamcu-a com seu poder antes que com sua
voz. Deu-te a natureza como mestra para oferecer-te em. seguida
a proclamação, a fim de poderes aceitar imediatamente, ao escutares,
a lição que já viste realizada em toda parte, não duvidando então que
D eus ressuscita a carne, Ele que tudo restitui à condição primeva. E
se todas as coisas ressurgem para o proveito do homem, ao qual são
destinadas, mais até, para o proveito'do seu corpo, como haveria de
sossobrar exatamente a carne, em prol da qual nada se perde?

A ALMA
(c. 58; P.L. 2, 795s)

Q estado das almas antes da ressurreição


266 "Todas as almas estão no além?” — perguntas. Sim, queira-se
ou não. E lá já existem também os suplícios e confortos.. . Por que
não admitirias que as almas lá se achem, aguardando o Juízo, numa
espécie de antecipação deste? “Porque se deve ressalvar a eficácia do
Juízo divino”, respondes, "não ocorrendo assim haver uma antecipa­
ção da sentença; além disto porque é preciso aguardar a ressurreição
da carne, companheira das obras e portanto companheira na retribui­
ção”. Mas então que sucederá nesse intervalo de tempo? Dormiremos?
O BATISMO 169

Mas nem ncs vivos as almas dormem, pois o sono é próprio do


corpo, como própria do corpo é a morte, cujo espelho é o sono.
Ou pretendes que lá nada se faça, lá para onde tende toda a
humanidade e onde reside toda esperança? Dizes que o Juízo se ante­
ciparia? Por que não dizer que simplesmente tenha começado? D i­
zes que estaria concluído? Por que não o dizer simplesmente prepa­
rado? Ademais, não parece sumamente injusto que no além os peca­
dores estejam hem e os inocentes não ainda? Que? Pretendes, após
a morte, um espaço de duração em que a esperança permanece con­
fusa e a expectativa incerta? Não seria melhor falar antes num exame
da vida e numa terrível preordenação do Juízo? Acaso a alma espera
sempre pelo corpo para sofrer ou gozar? Não se basta, ao contrário,
para experimentar alegria ou dor? Quantas vezes o corpo está intacto
e só ela se atormenta pela ira, pela revolta, pelo tédio, por vezes até
sem consciência disto? Quantas vezes, nas aflições do corpo, a alma
encontra uma secreta alegria, e então se afasta da inoportuna compa­
nhia do corpo?
Também portanto lá no além poderá sofrer e alegrar-se sem a
carne, se mesmo com a carne intacta sabe sofrer, se quer, e gozar,
se quer. Se isso lhe é possível em vida, quanto mais, por decreto de
D eus, depois da morte!
Mas nem todas as obras a alma realiza com o ministério da carne;
e de fato o castigo divino golpeia os simples pensamentos e
os meros atos da v o n ta d e .. . Por isto, aparece conveniente que a
alma seja punida, ainda antes de esperar a carne, por aquilo que co­
meteu sem a associação da carne; e da mesma forma, que se rejubile
sem a carne pelos pensamentos pies e bons, para os quais não teve
necessidade da carne.

O B A T ISM O 1
(c c . 1, 2 , 6 , 2 0 : P .L . 1, 1 3 0 5 -1 3 0 9 , 1 3 1 4 s, 1 3 3 2 ; S .C . 3 5 )

Vamos tratar de nosso sacramento da água, que lava os delitos 267


contraídos ao tempo da cegueira original e liberta para a vida eterna.
Isto não será inútil para a instrução dos que ainda estão sendo for­
mados, e até mesmo dos que já creem, mas ainda não puderam apro­
fundar as raízes dos bens recebidos, estando, pela ignorância, sujei­
tos às tentações da fé.
Surgiu há pouco entre nós uma víbora das mais venenosas, da
seita dos Cainitas12, cuja doutrina seduziu muitos. Que ela pretenda

1 O De baptismo, d e T e r tu lia n o , é a p rim e ira m o n o g ra fia q u e e n s a ia u m a te o lo g ia


d o b a tis m o , e já is to in d ic a s u a im p o rtâ n c ia .-
2 A s e ita d o s C a in ita s c o n s ta v a d e g n ó stic o s e x tre m a d o s , q u e em s u a o p o s iç ã o ao
A n tig o T e s ta m e n to , p r e te n d ia m re a b ilita r p e rs o n a g e n s tais c o m o C aim e o u tro s . E m
C a rta g o , s e u p rin c ip a l r e p r e s e n ta n t e e r a Q u in tila , m u lh e r, a o q u e p a re c e , d e g ra n d e
a tiv id a d e p ro s e litis ta .
170 TERTULIANO
destruir antes de mais nada o batismo, compreende-se. Víboras, co­
bras, serpentes, procuram em geral os lugares áridos, sem água; ao
passo que nós, pequenos peixes, assim denominados a partir de nosso
IC H T Y S3, Jesus Cristo, na água nascemos e nos salvamos permane­
cendo nela. Assim, essa terrível mulher, que normalmente nem teria
direito a ensipar, encontrou o meio excelente para matar os peque­
nos peixes: fazê-los abandonar a água.
Realmente, ccmo é grande a virulência da heresia, quando quer
minar os fundamentos da fé, arruiná-la, impedir que receba nossa
adesão! Nada choca tanto a mente humana como o contraste entre
a simplicidade aparente das obras de Deus e a grandeza dos efeitos
prometidos para as mesmas. E é este o caso aqui (no batismo): tudo
se passa com a maior simplicidade, sem encenação, sem aparato, sem
luxo: o» homem desce à água e mergulha, ao mesmo tempo que se
pronunciam algumas palavras. Ele irá sair um pouco mais limpo
exteriormente, ou até nem isso. E então parecerá incrível que possa
ter alcançado a eternidade! Pois — que dúvida? — é na aparência
exterior, na ostentação e no luxo que as solenidades dos ídolos ba­
seiam sua autoridade e a exigência de sua fé. Ó miserável increduli­
dade, que recusas a Deus o que lhe é próprio: a simplicidade, o
poder! Pois não é? não é admirável que um banho possa dissolver a
morte? Mas acaso por ser admirável há de perder seu crédito? Ao
contrário, aí está mais uma razão de credibilidade! Então não con­
vém que as obras de Deus sejam estupendas e causem admiração?
Também nós nos admiramos delas. Más cremos nelas! Ao
contrário dos incrédulos, que se admiram porque não têm fé: admi-
ram-se por estimarem vazio o que é simples, impossível o que é grande.
Mas que seja exatamente a estultícia que julgas; em dois pon­
tos a palavra de Deus te deu, antecipadamente, o desmentido de
tuas conclusões: “o que é estulto para o mundo, Deus escolheu para
confundir os sábios” 4, e ainda: “o que é difícil aos homens é fácil
para Deus” 5. Ele, sábio e poderoso —* mesmo os que o desconhecem
não contestariam isto — tomou para material de sua obra o contrá­
rio da sabedoria e do poder, tomou o estulto e o impossível, fazendo
sobressair a força naquilo que a desafia.

268 Não é na água que recebemos o Espírito Santo6. Mas ali pu­
rificados, somos preparados, pelo ministério do Anjo, para receber

3 ICHTYS, em grego, significa peixe. Era usada a palavra (e a representação)


para designar Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador, por conter as iniciais destes
nomes.
4 lCor 1,25.
5 Lc 18,27.
6 Para Tertuliano a imersão na água é completada pela imposição das mãos, de
modo a só então conferir plenamente o dom sobrenatural (cf. De ressurrectione car-
ttiSj 8).
O BATISMO 171

o Espírito. Mais uma vez acontece que a figura precede a realidade:


assim ccmo João foi o precursor do Senhor, preparando seus cami­
nhos, também o Anjo que preside ao batismo prepara a vinda do
Espírito Santo, apagando os pecados mediante a invocação da Fé,
sigilada Ho Pai, no Filho e no Espírito Santo. Se cada palavra de
Deus se apóia sobre três testemunhas, quanto mais não ocorre isso
com Seu dom! Por força da bênção batismal, temos como teste­
munhas da Fé os mesmos Três que lhe conferem a promessa da sal­
vação. O próprio número dos nomes divinos bastaria para fundar a
esperança de nossa fé. Mas o testemunho da fé e a promessa da sal­
vação incluem ainda a menção da Igreja, porque onde estão os Três,
o Pai, o Filho e o Espírito Santo, também aí está a Igreja, Corpo
dos T rê s7.

Vós, pois, benditos, esperados pela graça de Deus, vós que saís do 269
santíssimo banho do novo nascimento, e pela primeira vez estendeis
as mãos juntam ente com os irmãos e diante de vossa mãe (a Igreja),
pedi ao Senhor, como dom especial de sua graça, a abundância dos
carismas! “Pedí e recebereis” 8, disse ele. Aliás, já buscastes, já achas­
tes, já batestes à porta e já vos foi aberta. Peço-vos então uma
coisa: lembrai-vos ainda, quando orardes, de Tertuliano pecador.

7 A idéia subjacente é a de que fora da Igreja não pode haver verdadeito batismo,
uma posição que será comum entre os autores africanos do século III. O papa sto.
Estêvão porém (254-257) definirá a validade do batismo conferida por hereges: cf.
Dz 46s.
s Mt 7,7.
SANTO HIPÓLITO
(c. 160-235)

Embora seus dados biográficos sejam confusos, consta ter sido discípulo de santo
Ircneu e se ter tomado célebre na Igreja de Roma, onde Orígenes o ouviu pregar.
Adversário de Calixto, chefiou um cisma, quando este foi eleito papa. Acusava o
papa de sabelianismo (heresia sobre a Santíssima Trindade) e de laxismo em doutrina
moral. Mais tarde, reconcUicu-se com a Igreja e morreu mártir, sendo sepultado de
medo honroso pelo papa Ponciano. Seus discípulos lhe erigiram uma estátua onde ins­
creveram o catálogo (incompleto) dé suas ebras.
Escreveu Philosophuménq, Syntagma e outras obras anti-heréticas, entre as quais
o fragmento “Contra Noeto", de combate ao modalismo; escritos exegéticos (foi .o 1?
exegeta cristão, de grande valor e influência); escritos litúrgicos, entre os quais a Tra­
dição apostólica, Onde retrata os uses litúrgicos de Roma no início do século I I I (c.
218): ordenações, catecumenato, batismo e confirmação, jejuns, ágapes, eucaristia, ofí­
cios e horas de oração, sepultamento etc.
N.B.; H á hoje quem distinga o exegeta e o autor das obras polêmicas. Foi lançada
até a hipótese de três diferentes personagens, distinguindo-se então dois “polemistas":
o bispo, autor do “Contra Noeto” e do “Syntagma", e o autor dos “Philosophumena”,
que seria também o personagem da estátua do Latrão. Ver a respeito a obra coletiva,
“Ricerche su Ippolito", Institutum Patristicum Augustinianum, Roma, 1977.
Edições: S.C. 11, -4, 27; P. Nautjn, Hippolyte. Contre les hérestes. Fragment. Et.
et êd. critique, Paris, 1949; Pbilosopbumena, tr. de A. Siouville, Paris, 1928.

TRADIÇÃO APOSTÓLICA
(S .C 11)

Eleição e consagração dos bispos


(cap. 2-3)

270 Sejaí ordenado bispo quem for irrepreensível e tiver sido eleito
per todo o povo. Uma vez designado e aceito por tedos, reúna-se
o povo juntamente com o presbitério e os bispos presentes, no do-
minge. Com o consentimento de todos, imponham os bispos sobre
ele as mãos, permanecendo imóvel o presbitério. Mantenham-se todos
em silêncio, orando em seu coração pela descida do Espírito. A.
seguir, um dos bispos presentes, instado por todos, impondo a mão
• sobre o que é ordenado bispo, reze dizendo:
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias
e Deus de toda consolação, que habitas as alturas e baixas o olhar
para o que é humilde, tu, que conheces todas as coisas antes de
nascerem, tu que deste as leis da tua Igreja pela palavra da tua
TRADIÇÃO APOSTÓLICA 173
graça, elegendo desde o princípio a raça dos justos de Abraão, cons­
tituindo os chefes e os sacerdotes; tu, que não deixaste sem adminis­
tração o teu santuário; tu, que, desde o início dos séculos te
aprouveste em ser glorificado neste que escolheste, derrama agora a
força que vem de ti — o Espírito de chefia que deste a teu Filho
querido, Jesus Cristo, e que ele concedeu aos santos apóstolos, os
quais constituíram por toda parte a tua Igreja, teu Templo, para glória
e louvor perpétuo do teu nome.
Pai, que conheces os corações, concede a este servo, que es­
colheste para o episcopado, apascentar teu santo rebanho e de­
sempenhar irrepreensivelmente diante de ti o primado do sacerdó­
cio, servindo-te noite e dia. Concede-lhé tornar incessahtemente pro­
pícia a tua face, oferecer as oblações da tua santa Igreja e, com
o espírito do sacerdócio superior, ter a faculdade de perdoar os
pecados segundo a tua ordem, distribuir os cargos segundo o teu pre­
ceito; dissolver quaisquer laços, segundo o poder que deste aos
ápóstolos; ser do teu agrado pela brandura e pureza de coração,
oferecendo-te um perfume agradável; per teu Filho Jesus Cristo,
pelo qual a ti a glória, o poder e a honra — ao Pai e ao Filho, com
o Espírito Santo na santa Igreja, agora e pelos séculos dos séculos.
Amém.

A Eucaristia
(cap. 4)

Logo que sé tenha feito o bispo, ofereçám-lhe todos o ósculo 271


da paz, saudando-o por se ter tornado digno.
Apresentem-lhe os diáconos a oblação e ele, impondo a mão
sobre ela, dando graças com tode o presbitério, diga: ^ t
— O Senhor esteja convosco.
Respondam todos:
— E com o teu espírito.
— Corações para o alto!
— Já os temos no Senhor.
— Demos graças ao Senhor.
— É digno e justo.
E prossiga então:
Graças te dames, Deus, por meio de teu Filho querido, Jesus
Cristo, que nos últimos tempos nos enviaste, Salvador e Redentor,
mensageiro da tua vontade, teu Verbo inseparável, por quem fi­
zeste todas as coisas e que, segundo teu agrado, enviaste do céu
ao seio de uma Virgem; onde, ao ser encerrado, tomou um corpo para
revelar-se como teu Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem. Ele,
cumprindo a tua vontade — e obtendo para ti um povo santo —
ergueu as mãos enquanto sofria, para salvar do sofrimento os que
confiaram em ti. Ele, entregando-se voluntariamente à paixão a fim
174 SANTO HIPÓLITO
de destruir a morte, quebrar as cadeias do demônio, esmagar os
poderes do mal, iluminar os justos, estabelecer a Lei e dar a
conhecer a Ressurreição, temeu o pão e deu graças a ti, dizendo:
Tomai, comei, isto é o meu Corpo que por vós será imolado.
Tomou, igualmente, o cálice, dizendo: Este é o meu Sangue, que
por vós será derramado. Quando fizerdes isto, fá-lc-eis em minha
memória.
Por isso, lembrando-nos de sua morte e ressurreição, oferece­
mos-te o pão e o cálice, dande-te graças porque nos consideraste
dignes de estar aqui, diante de ti e de te servir.
E te pedimos que envies o teu Espírito Santo à oblação da santa
Igreja. Reúne em um só rebanho todos os que recebemos a euca­
ristia na plenitude do Espírito Santo para o fortalecimento da nossa
fé na Verdade, concede que te louvemos e te glorifiquemos, pelo teu
Filho Jesus Cristo, por quem te é dada a glória e a honra — ao
Pai e ao Filho, com o Espírito Santo na tua santa Igreja, agora e pelos
séculos dos séculos. Amém.

CONTRA N O E T O 1
(c. 10-11)

O Verbo e a criação do mundo


272 Sendo simples, não tendo nenhum ser coetâneo a si, Deus quis
criar o mundo. Pensou-o, desejou-o e por sua palavra o produziu12. O
mundo então passa a existir ante ele, segundo sua vontade. Nada
é co-etemo a Deus.
Nada havia fora de Deus, embora, sendo só, ele fosse múl­
tiplo, porque não existia sem Verbo, sem Sabedoria, sem Poder,
sem Decisão3. Tudo existia nele e ele era tudo. Quando quis,
e como quis, no tempo que determinou, fez manifestar-se seu Verbo,
pelo quaj tudo fez.
Quàndo ele quer, faz; quando projeta, realiza; quando fala,
mestra o efeito de sua palavra; quando se põe a modelar, mani­
festa sua sabedoria. Pois tudo que foi feito resulta de seu Verbo e

1 A heresia de Nceto foi o modalismo. Hipólito a descreveu nos Phüosophumena


da seguinte maneira: “A heresia de Noeto se resume numa palavra: o Pai e 6 Filho
são idênticos. Ê sempre o mesmo Deus que vem chamado, ora Pai, ora Filho, segundo
as circunstâncias'’. £ prossegue atribuindo (mas erroneamente) a mesma heresia a
Calixto: “Foi sobre a doutrina ds Noeto que Calixto forjou sua própria heresia. Para
Calixto, Deus, o Espírito, o Verbo, são um só e mesmo. Este único se encarnou: a car­
ne é o Filho, e o ser divino que reside nessa carne é o Pai. Assim, Calixto incide tanto
no erro de Noeto como no de Teódoto" (P h i l o s X, 31).
2 No grego: <pBe.y%iíii£voç etwíjaev.
3 ftXoyoç-, fttropoçr. áSúvaxoç1, áPoúXiyroc. Cf. a passagem de Ireneu, em Contra
Her. IV, 34,1; e de Teófilo em A d Autol. I, 7; etc. Por analogia com estes lugares
pusemos em maiusculas o que, porém, também poderia ter sido posto em minúsculas
como referência a atributos divinos. Seja-nos permitido remeter o leitor a nosso livro: A
doutrina da Trindade eterna, Ed. Lumen Christi, Rio, 1979, pp. 238-241.
PHILOSOPHUMENA 175

de sua Sabedoria; por seu Verbo cria, por sua Sabedoria or­
dena. Ele criou, pois, como quis, porque era Deus. Mas como chefe,
conselheiro e ministro da criação, engendrou o Verbo. Esse Verbo,
que ele tinha em si e que era invisível ao mundo criado, torna-o
visível. Enunciando-o primeiro como voz e gerando-o luz de luz, emi­
te-o como Senhor para a Criação: sua própria Inteligência. E esta, que
era inicialmente visível semente a ele e invisível ao mundo criado,
torna-a visível, a fim de que o mundo, vendo-a, possa ser salvo
graças a tal manifestação.
Desta forma houve um C utro em relação a Deus. Mas dizendo
Outro não digo dois Deuses; penso numa luz produzida por uma
luz, na água que sai de uma fonte, num raio que emana do sol.
A potência é uma, vem do ser que é tudo. O Pai é tudo e é dele
que vem a potência que é o V erbo4. O Verbo é a Inteligência que,
aparecendo no mundo, se manifestou como Filho de Deus. Tudo
vem dele; só ele procede do Pai.

PHILOSOPHUMENA
(liv. X, 30-33; G.C.S. 26, 285-292)

A verdadeira doutrina

Por ordem divina, Abrão deixou a cidade de Haran, na Mesopo- 273


tâmia, para se estabelecer no país que se chama hoje Palestina e
Judéia, outrora terra de Canaã. Já temos tratado desse país, porme-
ncrizadamente, em outras obras. Foi assim que se originou o cresci­
mento do povo judaico na Judéia. Esta terra recebeu o nome Tde
Judá, o quarto filho de Jacó; e seu reino se chamou reino de Judá,
por alusão ao homem do qual saiu a dinastia ( . . . ) Todos esses
antigos patriarcas eram homens piedosos e são anteriores aos po­
vos que cultivaram a filosofia.
Ponde-vos portanto à sua escola, gregos e egípcios, caldeus e
vós, homens de todas as raças; aprendei de nós, que somos amigos de
Deus, a conhecê-lo e à criação bem ordenada da qual ele é o autor.
Nossas palavras não se inspiram no vão desejo da elegância, mas no
desejo de demonstrar Deus graças ao conhecimento que temos da
verdade e à sabedoria que praticamos.
Deus é um, e o primeiro. Sendo o Criador e Senhor de tudo,
era ele único e nada existia ao mesmo tempo que ele: nem caos in­
finito, água imensa ou terra firme, nem ar condensado ou fogo
ardente, nem ar transparente ou abóbada azul do céu: ele era único,
só consigo mesmo.

4 SiivajAiç1 Aó-foç-.
178 SANTO HIPÓLITO
gerações, emitindo predições cuja verdade é fácil de se demonstrar
— não só quando se dirigiam aos contemporâneos, mas mesmo quan­
do profetizavam eventos seguintes, na série das gerações. Quando
falavam de coisas passadas, lembravam-nas aos homens; falando de
coisas presentes, visavam sacudi-los da negligência; predizendo o
futuro, atemorizam-nos a nós que vemos cumprirem-se coisas preditas
de longe e assim aguardamos os eventos anunciados para o futuro.
277 Tal é a nossa crença, ó homensí Não nos deixamos levar
por vãs palavras, por movimentos súbitos do coração ou pela elo-
qüência de belos discursos, embora saibamos não ser incrédulos an­
te as palavras inspiradas pelo poder divino.
Todas essas prescrições Deus as dava ao Verbo e o Verbo se
fazia ouvir promulgando-as. Pela mediação dos profetas pretendia
desviar o homem da desobediência. Sem visar reduzi-lo à escravidão
pela força e a coação, interpelava sua liberdade para uma opção vo­
luntária. Ora, esse Verbo o Pai enviou mais tarde para falar, não
mais através de um profeta — ele não queria que o Verbo fosse ape­
nas como que subentendido por meio de obscuras pregações ■
e sim para se manifestar claramente acs (nossos) olhos9. Deus -—
afirmc-o — o enviou a fim de que o mundo fosse tocado de espanto
e confusão à vista daquele que já não ditava mais ordens por boca
de profetas, que já não atemorizava a alma pela aparição de um anjo,
mas pessoalmente se fazia presente e falava10.
Sabemos que esse Verbo assumiu corpo de uma- Virgem; que
portou em si o velho homem dando-lhe um novo modo (de ser);
que percorreu as diversas idades da vida para se tom ar presente a
toda idade e propor a todos os homens, como alvo a ser atingido,
o homem que está nele. A fim de mostrar, por seu exemplo, que
Deus nada criou de mau e que o homem é livre, capaz de querer
e de não querer, senhor de escolher isto ou aquilo.
278 Sabemos que esse homem é feito da mesma massa que nós; se
não o fosse, em vão nos proporia a lei de imitá-lo como mestre. Se
esse hcmem fosse de outra substância, como me haveria de comandar,
a mim que sou fraco por natureza, para agir comc ele? Onde estariam
sua bondade e justiça? Não, para indicar que não era diferente de
nós, suportou a fadiga, quis sofrer a fome, não recusou a sede, repou­
sou e dormiu, aceitou o padecimento, sujeitou-se à mcrte, e manifes­
tou sua ressurreição. Em tais diferentes circunstâncias, ofereceu como
primícias o homem que está nele (sua humanidade) a fim de não te
desencorajares no sofrimento mas, reconhecendo-te homem, esperares,
também tu, o que p Pai deu a esse homem.
Eis a verdadeira doutrina sobre a Divindade, ó gregos e bárbaros,
caldeus e assírios, égípcios e líbics, índios e etíopes, celtas, latinos se-

5 <JtXV avtoiJfcE «pavepwôfjvai.


10 áXV aÚTÒv ■rcapávTa tòv XeXaX-nxâTa.
PHILOSOPHUMENA 179

nhores de exércitos, e vós todos, habitantes da Europa, da Ásia e


da Líbia! Eu me faço vosso conselheiro, eu, discípulo do Verbo que
ama os homens, e que também os amo. Acorrei, vinde receber de
nós o conhecimento do verdadeiro Deus e de sua bem ordenada
criação. Não vos prendais aos sofismas de artificiosos discursos, às
promessas vazias dos hereges plagiários! Prendei-vos à augusta sim­
plicidade da verdade! Será pelo conhecimento desta que escapareis
à ameaça iminente do fogo e do julgamento, ao sombrio espetáculo
do Tártaro, não iluminado pela voz do Verbo; à ameaça das chamas
inextinguíveis da Geena, ao olhar terrífico dos anjos castigadores que
reinam no Tártaro, ao verme que corrói incansavelmente o corpo.
Graças ao conhecimento do verdadeiro Deus, escaparás a tais 279
desgraças e terás um corpo imortal e incorruptível como a própria
alma; receberás em partilha o reino dos céus por terdes reconhecido
durante a vida terrestre o Rei celeste; serás familiar de Deus e coer-
deiro de Cristo, para sempre estarás livre dos padecimentos, sofrimen­
tos e moléstias. Pois te terás tornado um deus. Todas as provações
que suportaste sendo homem, Deus as enviara porque eras homem;
todos os atributos que convêm à um deus, Deus te prometeu dar
quando fores deificado, gerado para a imortalidade. A máxima é:
“conhece-te a ti mesmo”, conhecendo o Deus que te fez. Porque para
o homem a quem Deus chama, conhecer-se a si mesmo resulta em ser
conhecido de Deus n .
Não sejais portanto inimigos de vós mesmos, ó homçns! Não
hesiteis: em olhar para trás. Porque Cristo é o Deus que reina sobre
tudo, que ordenou a purificação do pecado, e renovou o velho homem;
que, desde o princípio chamou o homem sua imagem, atestando sua
ternura para contigo.
Se tu prestas ouvido a seus sublimes preceitos, se por tua bõnt-
dade imitas a sua, serás semelhante a ele e ele te cumulará de honras:
Deus não é pobre, ele que também te fez. deus, para a sua glória.

li Cf. lC or 13,12.
METÓDIO DE OLIMPO
(•&. III)

Ncda de predso conhecemos sobre a biografia deste autor. Teria sido bispo de
Olimpo, na Lícia, conforme antigos documentos. Deixou, de qualquer modo, diversas
obras nas quais se vê que combateu o espiritualismo exegético de Orígenes, cuja
influência porém sofreu. Seu escrito mais importante, conservado em original grego,
é O Banquete (ou Diálogo sobre a virgindade), inspirado, quanto à forma, no Simpósio
de Platão.

“BANQUETE”
(c. 16; P.G. 18, 168, 172; S.C. 95)

Não existe o destino


280 Quem sentencia não ser o homem árbitro de si próprio mas
um ente movido pelas leis invencíveis e não escritas dò destino, insulta
a Deus, apresentando-o como causa e autor do mal humanõ. Pois se ele
tem o timão do universo e coordena com sua inefável e incompreen­
sível sabedoria todos os movimentos dos astros^ e depois os astros, por
sua vez, conferem à vida as qualidades do bem e do mal, vinculando
assim os homens, D eus então aparece como a fonte distribuidora
dos males. Ora, sabemos que Deus não é a origem de todôs os nos­
sos desastres e desgraças. Portanto, não existe o destino.
Quem possui ao menos algo de bom senso admite que Deus
é bom, justo, sábio, veraz, benéfico, e não é causa do mal, não está
sujeito às paixões e a coisas semelhantes. E se aos justos aborrece
a injustiça, também o Deus justo alegra-se com a justiça e abomi­
na a injustiça. Deus não é causa da injustiça. . .
A própria existência da lei atesta, por si, que não há o destino
prefixado no nascimento, pois inculca que a virtude deve ser apren­
dida e pode ser alcançada pelo exercício; que, ao contrário, o vício
deve ser apartado; como oriundo da falta de educação. Logo, não
há o destino.
Se dependesse do destino que nós façamos o mal aos outros, ou
eles a nós, para que serviriam as leis? Serviriam para defender-nos
dos maus? Mas se há fatalidade no governo divino, então seria me­
lhor que os maus já não viessem simplesmente à existência, antes
que, vindo, devessem ser corrigidos pelas leis. Ora, Deus é bom e sá­
bio, e opera o melhor. Logo, não existe o destino. São na verdade a
‘banquete 3 181

educação e cs hábitos a causa dos pecados, ou então as paixões da


alma e os apetites do corpo; de qualquer forma, seja qual for a causa,
Deus não é o autor do mal.
Sendo melhor ser justo do que injusto, por que então o homem
não se tornaria justo imediatamente, desde o nascer? Se existem o
estudo, a educação, as leis, tendentes a faze-lo cada vez melhor,
é porque ele é livre e dono de si, não mau por natureza. Se cs maus
o fossem por destino e decreto da Providência, não teriam nem de­
veriam ser punidos por lei: estariam vivendo conforme sua natureza,
sem poder modificar-se. C u, dizendo de outro modo, se nem se de­
veriam louvar os bons, por viverem sua natureza — o destino, sendo
a causa de sua virtude — também não poderiam ser condenados os
maus por qualquer juiz justo, por viverem segundo a própria na­
tureza.
. Quem vive segundo sua natureza não peca; não é ele que se fez
assim, foi feito, vive como que movido por uma necessidade inelu­
tável. Neste caso, ninguém seria mau. No entanto, existem os maus,
e a maldade è censurável e contrária a Deus; e a virtude, cara e
digna de todo elogio, tendo Deus estabelecido a lei para castigo dos
culpados. Logo, não existe a fatalidade.
SÃO CIPRIANO
( t 258)

Cecílio G priano nasceu em Cartago no in íd o do século I II. Convertido à fé em


246, foi, poucos anos mais tarde, ordenado presbítero e tomado bispo de Cartago e
primaz da África Latina. Era casado.
Por ocasião da perseguição de Décio. em 250, que acarretou inúmeras apostasias,
predsou refugiar-se nos arredores da ddade, onde continuou1a governar sua diocese por
meio de cartas.
Ccntrariamente à decisão da Igreja de Roma, não quis admitir a validade do
batismo conferido por hereges. De outro lado, é autor do belo tratado Sobre a unidade
da Igreja Católica. Morreu mártir em 258.
Seus escritos são de cunho pastoral. N o De lapsis (sobre os que apostataram na
perseguição), narra ao vivo o drama sofrido pelos cristãos, a força de uns, o fracasso
de outros. Escreveu ainda Sobre a oração do Senhor, etc. Deixou 65 cartas.
Ed. bilíngüe: BAC 241 (Tratados e Cartas).

SOBRE A UNIDADE DA IGREJA


(P.L. 4, 510ss)

281 Excrta-nos o Senhor: “vós sois o sal da terra” 1. Ele quer


que sejamos simples até a. inocência, e todavia, prudentes; portanto,
irmãos caríssimos, nada nos convém mais que a precaução. Vigilantes
e solícitos, devemos precaver-nos contra as insídias do traiçoeiro ini­
migo, para não nos descuidarmos quanto à salvação, nós que nos re­
vestimos do Cristo, sabedoria de Deus Pai.
A perseguição não é o único perigo, nem é tudo que
abate os servos de Deus. A precaução torna-se aliás mais fácil
diante do adversário declarado: o ânimo se dispõe para o combate ao
ver de frente o inimigo. Este se torna terrível e perigoso quando se
insinua furtivamente, quando, aparentando paz, serpeia por sendas
ocultas — daí seu nome de serpente! Tal é sua astúcia, sua capa­
cidade de enganar o homem em invisíveis e enigmáticas trapaças.
Foi assim què mentiu no princípio do mundo e frustrou a credulidade
desprevenida de uma alma rude e nova, seduzindo-a com palavras
enganadoras; foi assim que se aproximou veladamente do próprio
Senhor para tentá-lo, como se pudesse de novo enganar e surpreen-i

i M t 5,13.
SOBRE A UNIDADE DA IGREJA 183

der. Foi, porém, percebido e rechaçado. Justamente por ter sido


reconhecido e descoberto, foi abatido.
Daí uma advertência exemplar para nós: fugir dos caminhos
do velho homem, andar atrás das pisadas de Cristo vencedor, a
fim de que nossa imprudência não nos envolva nos laços da morte,
mas ao contrário, previdentes no perigo, gozemos da imortalidade.
Só podemos gozar da imortalidade guardando os mandamentos 282
de Cristo, que expulsaram e venceram a morte. Ele próprio nos
admoesta dizendo: “se queres alcançar a vida, guarda os manda­
mentos” 2; e ainda uma vez: “se fizerdes o que eu ves mando,
já não vos chamo servos mas amigos” 3. Estes são chamados por
ele fortes e estáveis, fundados na pedra em sólida base, consoli­
dados em firmeza imóvel e inabalável, contra todas as tempesta­
des e furacões do século. “Quem ouve minhas palavras e as cum­
pre, compará-lo-ei a um homem sábio que edificou sua casa sobre
a pedra. Caiu a chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos
e se desencadearam sobre aquela casa e ela não desabou, pois fôra
construída sobre a pedra” 4. Devemos apoiar-nos em suas palavras,
aprender a fazer o que ele fez e ensinou. Aliás, como pode de­
clarar que acredita em Cristo, quem não cumpre o que Cristo man­
dou fazer? Necessariamente vacilará, se extraviará, arrebatado pelo
sopro do erro. Será sacudido como o pó que o vento afasta todo
aquele que não conserva a verdade do caminho salutar.
Não só as coisas claras requerem precaução, também as ilusões 283
sutis de uma astuta cilada o exigem. Em nossos dias veio a luz
para os povos, brilhou a luz da salvação para os homens que
suspiravam péla liberdade; os surdos recebem a boa nova da gra­
ça espiritual, os cegos abrem os clhos para Beus, os doentes
recuperam . a eterna salvação, os coxos correm à Igreja para óf&r^
com cânticos e súplicas. Mas o inimigo, desmascarado e derrotado
pela vinda de Cristo, ao ver seus ídolos desprezados, seus tem­
plos abandonados pela multidão dos crentes, trama — que ha­
verá de mais astuto e sutil? — trama nova emboscada para iludir
os incautos, sob o rótulo do próprio nome de cristãos. Inventa
heresias e cismas para subverter a fé, corromper a verdade e que­
brar a unidade. Assalta e engana com o desvio do novo caminho,
aqueles que não pôde manter na cegueira da antiga estrada. Rouba
homens da própria Igreja e cs imerge, inconscientes, em outras tre­
vas, deixande-os pensar que se aproximam da luz e escapam à noite
do século. Continuam a se dizer cristãos sem guardarem a boa nova
de Cristo, os seus preceitos e sua lei! Julgam ter luz e caminham
nas trevas! O inimigo sedutor e mentiroso que, nas palavras do
apóstolo, se transforma em anjo de luz, apresentando seus ministros
2 M t 19,17.
184 SÃO CIPRIANO
como ministros da justiça, anunciando a noite como dia, a perdição
como salvação, o desespero como prêmio da esperança, a perfídia
sob pretexto da fé, o Anticristo sob o nome de Cristo, lhes escurece
e frustra a verdade pela sutileza, propondo como verdadeiras coisas
ilusórias. Isto se dá, caríssimos irmãos, porque não mais se volta à
origem da verdade, não se vai mais a sua fonte, nem se guarda a dou­
trina do magistério celeste.
Não há necessidade de argumentos, de um grande e longo tra­
tado, para quem considera e reflete sc ire estas coisas. JÉ fácil pro­
var a fé, a verdade está compendiada. O Senhor diz a Pedro: “Eu
te digo que és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja
e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves
do reino dos céus e o que ligardes na terra será ligado também nos
céus, e tudo aquilo que desligardes na terra será também desligado
nos céus” 5.

264 E ao m esmoó, depois da O Senhor edifica sua Igreja


ressurreição diz: “Apascenta mi­ sobre um só, embora conceda
nhas ovelhas” 7. Assim o Senhor igual poder a todos os apóstolos
edifica sobre ele a Igreja e lhe depois de sua ressurreição, di­
confia suas ovelhas para apascen­ zendo: “Assim como o Pai me
tá-las. Se bem que dá igual poder enviou eu vos envio. Recebei o
a todos os apóstolos, constitui Espírito Santo; se perdoardes os
uma só cátedra e dispõe, por sua pecados de alguém, ser-lhes-ão
autoridade, a origem e o motivo perdoados, se os retiverdes, ser-
da unidade. Por certo os demais -lhes-ão retidos” 8. No entanto, pa­
apóstolos eram como Pedro, mas ra manifestar a unidade, dispõe
o primado é dado a Pedro e a por sua autoridade a origem des­
unidade da Igreja e da cátedra é ta mesma unidade partindo de um
assim demonstrada. Todos são pas­ só. Sem dúvida os demais apósto­
tores, mas, como se vê, um só los eram, como Pedrò, dotados de
é o rebanho apascentado pelo igual participação na honra e no
consenso unânime de todos os poder; mas o princípio parte da
apóstolos. unidade para que se demonstre
Julga conservar a fé, quem ser única a Igreja .de Cristo. O
não conserva esta unidade reco­ Espírito Santo, em nome do Se­
mendada por Paulo? Confia estar * nhor, designa esta mesma Igreja

* M t 16,18$.
6 Aqui começa o famoso capitulo 4 desta obra de sio Ciprianõ. A partir dos di­
ferentes manuscritos existentes chega-se a uma dupla versão do mesmo, que apresen­
tamos em duas colunas (cf. M. Bévenot, °St. Cyprian’s de Unitate chap. 4 in the Light
of the manuscripts", in Analecta Gregoriana, X I , Roma, 1937; e também a tradução
de P. de Labriolle, apresentada na Coleção "Unam Sanctam”, Cerf, 1942). Umas das
versões insiste mais que a outra no primado do papa. Serão ambas genuínas, isto é,
provenientes de sio Ciprianõ em ocasiões diferentes? A resposta não é fácil.
7 To 21,16.
8 j o 20,21-23.
SOBRE A UNIDADE DA IGREJA 185

na Igreja, quem abandona a cáte­ una, no Cântico, dizendo: “Uma


dra de Pedro sobre a qual está só é minha pomba, minha per­
fundada a Igreja? feita; ela é a única para sua mãe,
a escolhida pela que lhe deu o
ser” 9. Julga conservar a fé quem
não conserva esta unidade da
Igreja? Confia estar na Igreja
quem se opõe è resiste à Igreja?
Quando o próprio bem-aventura­
do apóstolo Paulo ensina a mes­
ma coisa e mostra o mistério da
unidade dizendo: “Um corpo e
um espírito, uma esperança da
vossa vocação, uma fé, um batis­
mo, um D eu s” 10.

Principalmente nós, que presidimos a Igreja como bispos, de- 285


vemos manter e defender firmemente esta unidade, dando provas
da união e indivisibilidade do episcopado. Que ninguém iluda per­
versamente a comunidade dos irmãos, nem corrompa a fé na verdade
com pérfida prevaricação. O episcopado é único e dele possui por
inteiro cada bispo a sua porção. A Igreja é uma só, embora abran­
ja uma multidão pelo contínuo aumento de sua fecundidade. As­
sim como há uma luz nos muitos raies do sol, uma árvore em
muitos ramos, um só tronco fundamentado em raízes tenazes, muitos
rios de uma única fonte, assim também esta multidão guarda a uni­
dade de origem, se bem que pareça dividida por causa da inu­
merável profusão dos que nascem. A unidade da luz não compor­
ta que se separe um raio do centro solar; um ramo quebrado da4
árvore não cresce; cortado da fente, o rio seca imediatamente.
D o mesmo modo a Igreja do Senhor, como luz derramada, estende
seus raios em todo o m u ndo, ; e é uma única luz que se difunde
sem perder a própria unidade. Ela desdobra os ramos por toda terra,
com grande fecundidade; estende-se ao longo dos rios, com toda
liberalidade, e no entanto é uma na cabeça, uma pela erigem,
uma só mãe imensamente fecunda. Nascemos todos de seu ventre,
somos nutridos com seu leite e animados por seu espírito.
A esposa de Cristo não pode ser adulterada, d a é incorrupta 286
e purá, não conhece mais que uma só casa, guarda com casto pudor
a santidade do único tálamo. Ela nos conserva para Deus, en­
trega ao Reino cs filhos gue gerou. Quem se aparta dà Igreja e
se junta a uma adúltera, separa-se das promessas da Igreja. Quem dei­
xa a Igreja de Cristo não alcançará cs prêmios de Cristo. É um estra-

9 Ct 4,8.
w Ef 4,4-6.
186 SÃO CIPRIANO
nho, um profano, um inimigo. Não pode ter Deus por Pai quem
não tem a Igreja por Mãe. Se alguém se pôde salvar, dos que figuram
fora da arca de Ncé, também se salvará o que estiver fora da
Igreja. O Senhor nos admoesta e diz: “Quem não está comigo está
contra mim, e quem não ajunta comigo, dispersa” 11. Torna-se ad­
versário de Cristo quem rompe a paz e a concórdia de Cristo; aquele
que noutra parte recolhe, fora da Igreja, dispersa a Igreja de Cristo.
O Senhor diz: “Eu e o Pai somos um ” n -y está ainda escrito do Pai,
do Filho e do Espírito Santo: “E estes três são um ” 13. Quem crê
nesta verdade fundada na certeza divina e adere aos mistérios celes­
tiais não abandona a Igreja ou dela se afasta, por causa da diversi­
dade das vontades que se entrechocam. Quem não mantém esta unida­
de também não mantém a lei de Deus, a fé no Pai e no Filho, não
conserva a vida nem a salvação.
287 Este sacramento da unidade, este vínculo da concórdia, que une
inseparavelmente, está indicado no Evangelho pela túnica de nosso Se­
nhor Jesus Cristo que não foi dividida nem rasgada: dentre os que
disputavam por sorte a veste de Cristo vestiria o Cristo quem a
recebesse íntegra e a possuísse cómo túnica incorruptível e indivi­
sível. A Escritura divina declara dizendo: “ Quanto à túnica, porém,
como erá sem costura, tecida numa só peça, disseram entre si:
Não a rasguemos, decidamos por sorte de quem será” 14. Ela tra­
zia a unidade vinda do alto, isto é, do céu, do Pai e que não
pode ser quebrada por quem a recebe ou a possui, sendo ganha
inteira, inseparavelmente radicada em sólido fundamento. Quem
rasga ou divide a Igreja de Cristo não pode possuir a veste de Cristo.
Por outro lado, enfim, quando Salomão estava para morrer e seu
reino havia de ser dividido, o profeta Aquias dirigiu-se no campo
ao rei Jeroboão, com as vestes cindidas em doze trapos, dizendo: “Tira
para ti dez destes trapos pois diz o Senhor: ‘Eis que divido o reino
nas mãos de Salomão, dar-te-ei dez cetros, dois hão de ficar com ele
em vista de Davi meu servo, e de Jerusalém, cidade santa onde colo­
carei meu nome’ ” 15.
O profeta Aquias rasgou suas veste porque deviam ser divi­
didas as doze tribos de Israel. Como, porém, o povo de Cristo não
pode ser dividido, sua túnica, tecida e coerente, não é dividida pelos
que a possuem; íntegra, conjunta e indivisível, mostra a concórdia
do povo que se revestiu do Cristo. No mistério e no sinal da veste a
unidade da Igreja foi manifestada.
288 Quem há tão ímpio e perverso, tão enlouquecido pelo delírio da
discórdia que julgue poder, que ouse dividir a unidade de Deus, a
A-OR4ÇÃO DO SENHOR 187

veste do Senhor, a Igreja de Cristo? O próprio Senhor admoesta e


ensina no Evangelho com estas palavras: “e haverá um único
rebanho e um só pastor” 16. Pensa alguém que em um só lugar
poderá haver muitos rebanhos e vários pastores? Também o apósto­
lo Paulo, insinuando esta mesma unidade, suplica, exorta e reco­
menda: “rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo,
que digais a mesma coisa e não haja cisões entre vós; sede propensos
ao mesmo espírito e à mesma sentença” 17. Ainda outra vez: “supor­
tai-vos mutüamente no amor da paz, tudo fazendo per conservar a
unidade do espírito no laço da paz” 18. Acreditas que pedes subsistir
afastado da Igreja, procurando para ti outras moradas? Disseram a
Raab, que prefigurava a Igreja: “Reúne contigo, em casa, teu pai,
tua mãe, teus irmãos, toda tua família e quem ultrapassar a porta
de tua casa responderá por s i” 19.
D o mesmo modo, como o mistério da Páscoa significa na lei do
Êxodo a mesma unidade, o cordeiro que é morto figurando a Cristo
deve ser comido numa só casa. Deus disse: “será comido em uma só
casa; não lançareis a carne fora da casa” 20. A carne de Cristo, do san­
to do Senhor, não pode ser lançada fora. E não há para os fiéis outra
casa senão a Igreja.

D o livro sobre
A ORAÇÃO D O SENHOR
(P.L. 4, 541-555)

Quais são, caríssimos irmãos, os mistérios da oração do Senhor? 289


Quantos e quão grandes são eles, condensados em palavras bre­
ves mas prenhes de força espiritual, que nada emitem e fazem
dessa oração um compêndio da doutrina celeste?
Diz ele: “Assim deveis orar: Pai-ncsso, que estais nos céus”.
O homem novo, renascido e restaurado para D eus, pela graça,
diz, logo de início, P a i, porque já começou a ser filho. “Veio para
o que era seu e os seus não o receberam. A todos, porém, que o
receberam, deu o poder de se tornarem filhos de D eus, a todos os
que crêem em seu nom e” l . Assim, aquele que crê em seu nome e se
torna filho de Deus, há de começar imediatamente a dar graças e a
confessar-se filho de Deus. E ao dirigir-se a Deus, chamando-o de

16 Jo 10,10.
17 ICor 10,1.
18 Ef 4,2s.
19 Js 2,18s.
20 Ex 12,46.
1 Jo 1,1ls.
188 SÃO CIPRIANQ
Pai que está no céu, indica também, por suas primeiras palavras da
vida neva, que renunciou ao pai terreno e carnal, que reconhece
o Pai que principiou a ter no céu. Pois está escrito: “Quem diz a seu
pai e a sua mãe, não os conheço, e a seus filhos, não sei quem sois,
este guardou os teus preceitos e conservou o teu testamento” 2. Tam­
bém o Senhor ensinou que não devemos chamar a ninguém “pai”, na
terra, porque só existe para nós um Pai que está nos céus. E respondeu
ao discípulo que fizera menção do pai falecido: “Deixa aos mortos
que sepultem os seus m ortos” 3. Ele havia dito que o seu pai estava
morto, contudo o Pai dos crentes vive.

290 Como é grande, portanto, a indulgência do Senhor! Ele nos en­


volve com a abundância de sua graça e bondade, a ponto de querer
que o chamemos Pai, ao elevarmos a Deus nessa oração, de modo
que assim como Cristo é Filho, nós também sejamos chamados filhos.
Se o próprio Cristo não nos tivesse permitido orar dessa maneira,
quem de nós ousaria pronunciar tal nome de Pai? Por isso devemos
estar conscientes de que se damos a Deus tal apelativo precisamos
agir como filhos seus, para que assim como nos alegramos com Deus
Pai, também se alegre Ele conosco. Vivamos, portanto,»como tem­
plos de D eus, para que se note que Ele habita em nós. Que nossa
ação não seja indigna do Espírito, para que não nos aconteça ter co­
meçado a ser do céu e pensar e praticar c que não é celeste nem
espiritual. Com efeito, o Senhor nos adverte: — “Eu glorificarei
os que me glorificam e desprezarei os que me desprezam” 4. Igual­
mente diz o bem-aventurado Apóstolo: “Não sois vossos. Fostes com-
pradçs por um grande preço. Glorificai a Deus trazendo-o em vosso
corpo” 5.

291 Dizemos a seguir: “Santificado seja o vosso nom e”, N ão por­


que pretendamos que Deus seja santificado por nossa oração,
mas pedimos que seu nome seja santificado em nós. D e resto, por
quem poderia ser santificado o santificador? Mas, como disse ele:
“sede santos, que eu também sou santo” 6, suplicamos a perseverança
naquilo que começamos a ser pela santificação do batisnio. Ora­
mos assim todos os dias, necessitamos diariamente de santificação
a fim de purificar-nos continuamente dos pecados de cada dia. E o
Apóstolo nos indica qual a santificação que nos é conferida pela
misericórdia de Deus: “N a verdade, fostes perversos, d e v a sso s.. .
mas fostes lavados, justificados e santificados em nome de nosso

2 Dt 33,9.
3 M t 8,22.
4 lSm 2,30.
5 lC or 6,19.
6 Lv 20,26; Pd 1,16.
A ORAÇÃO DO SENHOR 189

Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso D eus” 7. Diz que


estamos santificados em nome de Jesus Cristo e no Santo Espírito
do nosso Deus. Oramos para que esta santificação permaneça em nós.
E ccmo o Senhor, nosso juiz, recomendou ao que foi por ele curado
e vivificado, não reincidisse em pecado, a fim de não lhe acontecer algo
pior, fazemos continuamente èsta prece, suplicamos dia e noite, seja
mantida em nós, pela proteção de Deus, a santificação e vivificação
que recebemos de sua graça.
Segue-se a petição: “Venha a nós o vosso reino”. Desejamos que 292
o reino de Deus se torne presente a nós, como havíamos desejado
que o seu nome fosse santificado em nós. Pois quando é que
Deus não reina? Quando poderia começar para ele um reino que
sempre existiu e nunca deixará de existir? Pedimos, pois, que venha
a nós o vosso reino, aquele que nos foi prometido por Deus e obtido
pela paixão de Cristo. Nós, os que servimos neste século como ser­
ves, esperamos rèinar com Cristo vitorioso, conforme a promessa:
“Vinde, benditos de meu Pai, apossai-vos do reino que vos está pre­
parado desde o começo do m undo” 8. Pcde-se dizer que o próprio
Cristo seja o reino de Deus ao qual queremos chegar, cada dia, e cujo
advento pedimos que se abrevie. Pois se ele é a nossa ressurreição,
porque nele ressuscitamos, podemos igualmente conceber que ele seja
também o reino, uma vez que nele havemos de reinar. E com razão
pedimos o reino de Deus, isto é, o reino celeste, pois há támbém o
reino terrestre, ,mas quem renunciou ao século está acima desse reino
e das suas honras.

Ajuntamos a seguir: “ Seja feita a vossa vontade assim na terra 293


como no céu”. Não que Deus deva ser rogado a fazer o que Ele mes­
mo quer, mas nós devemos fazer o que Ele quer. <
Quem o impediria de fazer o que quer? Nós, todavia, per­
turbados como somos pelo diabo, que pretende impedir-nos de
seguir a Deus com toda a alma e ação, rogamos que se cumpra em
nós a vontade de Deus, para o que é indispensável sua ajuda
e proteção. Ninguém é forte por suas próprias forças, mas graças
à indulgência e misericórdia de Deus. Até o próprio Cristo indica a
fraqueza do homem qüe ele mesmo carregava, dizendo: “Pai, se
possível, afasta de mim este cálice” 9. E acrescentou imediatamente,
deixando aos discípulos o exemplo de que não deveriam fazer a pró­
pria vontade, mas a de Deus: “contudo, não se faça o que eu
quero, mas o que tu queres”. O mesmo ele diz em outro lugar:
“Não desci dó céu para fazer a minha vontade, mas a daquele que
me enviou” 10.

7 ICor 6,9s.
* Mt 25,34.
9 M t 2639.
10 Jo 638.
190 SÃO CIPRIANO
Se o Filho esteve atento no cumprir a vontade do Pai, quanto
mais deve estar o servo em relação ao Senhor. São João nos exorta
igualmente, em sua epístola, a cumprir a vontade do Pai: “Não ameis
o mundo, nem ó que está no mundo. Se alguém ama o mundo, a ca­
ridade do Pai não está nele. Pois tudo qúe está no mundo é concupis­
cência da carne, concupiscência do mundo. O mundo passará, e igual­
mente a sua cbncupiscência; aquele, porém, que cumprir a vontade
de Deus permanece eternamente * 11. Os que quisermos permanecer
eternamente devemos, pois, cumprir a vontade do eterno Deus.
Ora, a vontade de Deus é a que Cristo praticou e ensinou.
Humildade na vida, estabilidade na fé, veracidade nas palavras, justiça
no agir, misericórdia nas obras, disciplina nos costumes, não saber
injuriar, tolerar a injúria recebida, manter a paz ccm os irmãos, que­
rer a Deus com todo o coração, amando-o como Pai e temendo-o
ccmo Deus; nada prepor ao Cristo, porque ele também nada pre-
pôs a nós; aderir inseparavelmente à sua caridade, unir-se à sua
cruz ccm firmeza e fé e, quando houver luta por seu nome e
honra, manifestar na palavra e constância, com que o confessarmos
diante dos juízes, a firmeza de nosso combate; manifestar enfim na
morte a paciência pela qual somos coroados. Isso é ser co-herdeiros
de Cristo, isso é praticar o preceito de Deus, isso é cumprir a von­
tade do Pai!
Pedimos que seja feita a vontade do Pai assim na terra como no
céu, pois em ambos cs casos está em jogo nessa segurança e sal­
vação. Possuímos um corpo da terra e um espírito do céu, somos a
um tempo terra e céu. Oramos para que em ambos, corpo e
espírito, seja feita a vontade de Deus. Na verdade, há luta entre a
carne e o espírito, e essa discórdia diária àçarreta-nos embaraços para
fazer o que queremos. D e um lado o espírito procura o que é celeste,
o divino; de outro lado a carne cobiça o secular, o terreno. Por isso
pedimos que pelo auxílio de D eus se estabeleça a harmonia entre
ambos, que graças à sua vontade, realizada na carne e no espírito,
seja salva a vida per ele renascida.

294 Pode-se ainda, irmãos caríssimos, entender de outra maneira.


Ccmo o Senhor quer e exige que amemos até os inimigos, que ore­
mos até pelos que nos perseguem, pode-se entender que devamos
pedir também pelos que ainda são terra e não começaram a ser
celestes, para que neles se realize a vontade de Deus, a vontade que
Cristo cumpriu conservando e reintegrando o homem. O Senhor já
não chama seus discípulos te rra , mas sal da terra, e o Apóstolo diz
que o primeiro homem é limo da terra, ao passo que o segundo é
celeste; portanto, nós, que devemos ser semelhantes ao Pai — (o qual

n l jo 2,159$.
A ORAÇÃO EO SENHOR 191

faz nascer o sol sobre bens e maus, chover sobre justes e in­
justos) — seguindo o conselho de Cristo, cramos e pedimos numa
única prece pela salvação de todos. Assim como a vontade de Deus
foi feita no céu, isto é, em nós — que pela fé nes tornamos céu —
assim se faça também na terra, isto é, nos que ainda não crêem, que
ainda são terrenos pelo primeiro nascimento a fim de começarem a ser
celestes pelo renascimento na água e no Espírito.
Prosseguindo, dizemos: “O pão nosso de cada dia nos dai 295
hoje”. Podemos tomar este pedido tanto no sentido espiritual como
no literal, pois os dois modos de entender servem divinamente à
nossa salvação. O Cristo é o pão da vida, e este pão não é de todos,
é nosso. E assim como dissemos Pai nosso, porque é Pai dos que
entendem e crêem, dizemos também pão nosso, porque é pão para
aqueles que comçm o seu corpo. Pedimos que este pão nos seja dado
diariamente a fim de que, estando no Cristo e recebendo diariamente
a eucaristia ccmo alimento de salvação, não venhamos a ser sepa­
rados do Corpo de Cristo e tornar-nos alguma vez proibidos de par­
ticipar do pão celeste, afastados da comunhão, por causa de algum
grave pecado. Ele próprio disse: “Eu sou o pão que desci do
céu. Se alguém comer do meu pão viverá eternamente. E o pão que
eu darei é a minha carne para a vida do mundo” 12. Dizendo viver
eternamente quem comer deste pão, fica evidente que viverão sempre
os que pertencem ao seu corpo e recebem a eucaristia, pelo direito
da comunhão, ao mesmo tempo que se passa a temer que alguém seja
s.éparado do corpo de Cristo e afastado da salvação, pela interdição
de participar do pão. Devemos orar para que tal não aconteça, como
ele mesmo nos adverte: “se não comerdes a carne do Filho dc homem
e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” 13. Por isso
pedimos que o pão nosso, isto é, Cristo, nos seja dado diariamente.t
Vivendo nele, não nos afastaremos de seu corpo e de sua santificação.
Pode-se, na verdade, interpretar de cutra maneira estas pala- 296
vras. Pode-se entender que nós, que renunciamos ao século e rejei­
tamos as suas riquezas e pompas, pelà fé da graça espiritual, não
peçamos senão o alimento indispensável para o nosso sustento, con­
forme a palavra do Senhor: “Quem não renunciar a tudo que
possui, não pode ser meu discípulo” 14. Quem, portanto, seguindo
a palavra do Mestre, renunciou a tudo e começou a ser discípulo de
Cristo, deve pedir o alimento para o dia que passa e não estender os
seus desejos em longos pedidos. Assim ele preceituou, dizendo: “Não
penseis no dia de amanhã, porque o dia de amanhã trará os seus
cuidados. Basta a cada dia a sua própria pena” 15. Assim, o discípulo
de Cristo, proibido de preocupar-se com o dia de amanhã, pede ape-
192 SÃO CIPRIANO
nas o alimento de cada dia. Aliás, seria estranho e contraditório pe­
dirmos que o reino de Deus venha a nós em breve e ao mesmo
tempo cuidarmos de viver no mundo mais longamente. Também o
Apóstolo aconselha, fortalecendo e consolidando nessa fé e esperança:
“Nada trouxemos para este mundo; e nada, na verdade, podemos
levar. Se temos o que comer e vestir, estejamos contentes; Os que
desejam enriquecer, caem na tentação, nc laço e em muitos desejos
nocivos que lançam o homem ria perdição e na morte. Com efeito, a
raiz de todos os males é a cobiça; por ela alguns se afastaram da fé
e acarretaram para si muitas dores” tó.
297 Esta doutrina ensina, não só que as riquezas devam ser despre­
zadas, mas que são perigosas, achando-se nelas a raiz dos males que
afagam e enganam, por disfarces e seduções, a cega mente humana.
Daí, Deus ter respondido ao rico insensato que pensava nos seus
bens terrenos e se vangloriava da abundância dos seus frutos:
"Insensato, esta noite ainda, entregarás a tua alma; para quem
ficará o que preparaste?” 17 Alegrava-se o insensato com seus fru­
tos na noite em que ia morrer, preocupava-se com a abundância de
alimento no momento em que a vida já se afastava.
O Senhor ensina, ao contrário, tornar-se perfeito e íntegro
quem vende tudo o que possui e dá aos pobres. Prepara este seu
tesouro no céu. Diz o Senhor que só pode segui-lo e imitar a
glória de sua paixão quem não está ligado por interesses parti­
culares e então, pronto e sem empecilhos, está livre para acompanhar
com a própria pessoa a doação já feita dos bens. Em preparação para
isso aprenda-se a orar dessa maneira e a descobrir assim como se
deve ser.

298 Pedimos a seguir por nossos pecados, dizendo: —- “Perdoai as


nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores”. Depois
do socorro do alimento, o perdão do pecado. Quem é alimentado
por Deus, viva também em Deus; cuide não só da vida presente e
temporal, mas sobretudo da eterna, à qual se pode chegar se os
pecados são perdoados, pecados que o Senhor, no Evangelho, chama
dívidas: “Perdoei toda a tua dívida, porque me pediste” w.
Mas, quão necessária, quão salutar e previdentemente se nos ad­
verte que somos pecadores e devemos rogar pelos nossos pecados! Pois
ao pedirmos a misericórdia de Deus, tomamos consciência de nós
mesmos. Para que ninguém se contente consigo, presumindo-se ino­
cente, nem aVance ainda mais para a morte, exaltando-se, está essa
ordem de rezarmos cada dia pelos próprios pecados, lembrando-nos
que pecamos diariamente. Disso aliás também nos previne João,

W íTm 5,7ss.
17 Lc 20,20.
1« M t 18,32.
A ORAÇÃO DO SENHOR 193

na epístola: “Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a


nós mesmos e a verdade não está conosco. Se, porém, confessarmos
nossos pecados, o Senhor é fiel e justo para perdoá-los” 19. Aqui estão
duas idéias: devemos rogar pelos nossos pecados, e conseguiremos a
indulgência quando o fizermos. Por isso, diz-se que c Senhor é fiel
no cumprimento de sua promessa, isto é, fiel nò perdão dos pecados:
ensinou-nos a orar nessa intenção, prometendo a indulgência e a mise­
ricórdia de um Pai.
Mas vem logo indicada, claramente, a condição segura e o pe- 299
nhor de nossa prece, a maneira em que devemos fazê-la: peçamos
para nós o perdão das dívidas na medida em que perdoarmos aos
nossos devedores; não podemos conseguir o que pedimos para
cs nossos pecados, se não fizermos o mesmo em relação aos nossos
devedores. N esse sentido, lê-se em outro lugar: “Na medida em que
medirdes, sereis medidos” 20. Assim, aquele servo que recebera do
senhor o perdão de toda a sua dívida e a seguir não quis fazer o
mesmo para o companheiro, foi preso e encarcerado. O senhor re­
tirou-lhe o perdão porque lhe faltou indulgência para com o companhei­
ro. Outra vez, mais fortemente ainda, Cristo propõe, entre seus pre­
ceitos, este princípio: “Se ides orar e tendes alguma coisa contra
alguém, perdoai-o antes, para que o vosso Pai celeste, igualmente,
vos perdoe os pecados. Se porém não perdoardes, vosso Pai do
céu também não perdoará os vossos pecados” 21. Não te restará, pois,
a menor escusa no dià do juízo, quando fores julgado conforme tua
sentença. Como fizeste, assim te será feito.
Deus preceituou que devemos ser pacíficos, concordes e unâni­
mes em sua casa. Ele quer que perseveremos tais como nos fez
pela geração do segundo nascimento, a fim de que permaneçamos^
na sua paz os que vivemos em Deus e tenhamos uma só alma e
um só sentir os que temos um só Espírito. Deus não aceita o sacri­
fício do dissidente. Manda que volte do altar e se reconcilie antes
com o irmão para ser benigno e obter a benignidade de Deus. O
máximo sacrifício, aos olhos de Deus, é a nossa paz e concórdia
fraternal, é o povo reunido na unidade do Pai, do Filho e do
Espírito Santo.

Manda-nos ainda o Senhor que digamos na oração: “E não nos 300


deixeis cair em tentação”. Isto mostra que o adversário nada pode
contra nós sem uma permissão de Deus. Assim, vcltar-se-á para o
Senhor todo nosso temor, zelo e devoção; pois nada é possível
ao Maligno, no sentido de tentar-nos, sem a divina permissão.

w ljo 1,8.
20 M t 7,2.
21 M t 6,14.

7 - Antologia dos santos padres


194 SÃO CIPRIANO
Prcva-o a diviná Escritura: “V eio Nabucodonosor, rei da Babilônia,
a Jerusalém e atacou-a: o Senhor entregou-a em suas mãos” 22.
E o poder contra nós é dado a ele segundo os nossos pecados,
pois está escrito: “Quem entregou Jacó ao massacre e Israel aos espoli-
dores? Não foi Deus, contra quem pecaram, cujas vias não quiseram
seguir e cuja lei não quiseram ouvir, que dirigiu para eles a ira de
sua alma?” 23 E também a respeito de Salomão, quando pecou e se
afastou dos caminhos dc Senhor: “O Senhor excitou Satanás contra
Salomão” 24.
D e duas maneiras é dado poder contra nós: para castigo, quan­
do pecamos; para glória, quando somos provados. Isso aparece con-
crètamente no caso de Jó, por revelação do próprio Deus: “Eis,
tudo que é dele coloco em teu poder; cuida, porém, de nele não
tocares” 2526.
N o Evangelho, diz o Senhor sobre o tempo da paixão: “N e­
nhum poder terias contra mim, se não te fosse dado do alto” z5.
Rogando para não cair em tentação, lembramo-nos de nossa
fraqueza e miséria, e não nos exaltarrmos insolentemente, conside­
rando crgulhosamente algo como nosso, não julgaremos nossa glória
a confissão do martírio. Pois, ensinando-nos a humildade, diz o Se­
nhor: “Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito está
pronto, mas a carne é fraca” 27. Antepõe, assim, a confissão humilde
e submissa à prece, atribui tudo a Deus a fim de obteres da sua mise­
ricórdia o que pedires com temor e reverência.
301 Depois disto tudo, completando a oração, vem a petição final
que, numa síntese brevíssima conclui todos os nossos pedidos e sú­
plicas. Dizemos em último lugar: — “Livrai-nos de todo o m al” —
abrangendo com esta palavra as adversidades que o inimigo possa
maquinar contra nós neste mundo. Contra todas as tramas suas es­
taremos firmes e seguros se Deus nos livrar delas, se conceder seu
auxílio acs que Lho suplicam e imploram. Tendo dito: “Livrai-nos
do m al”, nada mais resta a pedir, pois já pedimos, de um a.só vez,
a proteção de Deus contra o mal; conseguida essa proteção estamos
seguramente guardados contra as maquinações do diabo e do mundo.
Cem efeito, que se poderá temer no mundo se se tem a Deus por
guardião?

22 Dn 1,1-2.
23 Is 12,25s.
24 lRs 1,14.
25 Jó 1,12.
26 To 19,11.
27 Mt 26,41.
CARTA SOBRE O MARTÍRIO 195

Trecho de uma
CARTA SOBRE O M ARTÍRIO
(P.L. 4, 251-256)

Cipriano aos mártires e confessores em Cristo nosso Senhor, e em 302


Deus Pai, perpétua saudação!
Exulto de alegria e dou graças, irmãos valorosos e felizes, por
conhecer vossa fé e vossa coragem, que ilustram a mãe Igreja. Ela
foi agora glorificada, quando, por causa de vosso testemunho, rece­
bestes a sentença que vos exilou e fez confessores de Cristo.
A confissão tcrna-se tanto mais honrosa quanto mais duro foi
o sofrimento; crescendo a luta, cresce a glória. N3o vos afastastes
da luta, por medo dos tormentos; ao contrário, torturados, avan­
çastes com maior fidelidade e bravura em direção ao certame deci­
sivo. Alguns já foram coroados, outros estão próximos de o serem.
Mas todos que estiveram na prisão permanecem — como glorioso
exército -— animados da força de combater, da maneira que convém
ao soldado de Cristo nos acampamentos divinos, isto é, sem se sen­
tirem abalados por seduções, atemorizados por ameaças, esmorecidos
per torturas: pois “aquele que está em nós é maior do que o que está
no mundo” 1, e os padecimentos terrenos podem menos que a pro­
teção divina! Isto foi comprovado no glorioso combate dos irmãos
que se mostraram capazes. de levar também outros a vencerem as
torturas, dando exemplo de perseverança e fidelidade, lutando até
vencerem as hostes inimigas.
Como vos louvarei, irmãos fortíssimos? como hei de proclamar 303
a valentia de vosso coração e a constância de vossa fé? Suportastes
a dura luta até o fim, sem ceder; antes, foram cs suplícios que ce-’
deram diante de vós. O fim aos padecimentos, que os tormentos não
davam, deram-no as coroas. A luta, muito penosa todo o tempo, não
pôde derrubar a fé robusta, e só conseguiu levar mais depressa ao Se­
nhor os homens de Deus. A multidão presente assistiu admirada a luta
de Deus, luta espiritual, certame do Cristo; viu os servidores de
Cristo confessando com voz altiva e com alma incorrupta o poder
de Deus, sem armas deste mundo, simplesmente auxiliados pelas ar­
mas da fé. Os terturados estavam mais fortes que os carrascos; os
membros feridos e dilacerados venciam as mãos que os golpeavam
e estraçalhavam. O longo suplício não foi bastante para superar a fé,
se bem que ao se descobrirem as vísceras, já não eram membros, mas
feridas o que se estava torturando nos serves de Deus. O sangue
jorrou — para extinguir o fogo da perseguição e apagar as chamas
do inferno. Que espetáculo aos olhos do Senhor! quão sublime,
grande e agradável a Deus, era ver a fidelidade ao compromisso,

y l j o 4,4.
196 SÃO CIPRIANO
a dedicação dos seus soldados, conforme a palavra do Espírito Santo
no salmo: “Preciosa aos olhos do Senhor a morte de seus justos” 2.
Preciosa a morte que compra a imortalidade com o preço de sangue,
e recebe uma recompensa pela perfeição da virtude. Cristo deve ter
ficado alegre, d e , o protetor da fé, que lutou e venceu nos seus
servidores, e dá aos que crêem o que eles desejam adquirir! Presen­
ciou seu comSate, sustentou, fortificou e animou seus soldados e
arautos, pois já uma vez venceu a morte por nossa causa e sempre
triunfa em nós. “Quando fordes entregues”, disse d e , “não pensds
no que havds de dizer, pois na hora vo$ será dado o que falar;
não sereis vós que falareis, mas o Espírito de vosso Pai falará em
v ó s” 3.
A presente luta deu prova disto. Uma palavra cheia do Espírito
Santo foi emitida por boca de um mártir, naquele momento em que
o felicíssimo Mapálico dizia ao procônsul, ao ser torturado: “amanhã
hás de ver o combate!”
E o que ele disse, atestando o vigor de sua fé, o Senhor cum­
priu, pois o servo de Deus foi coroado após a sua luta c elestia l.. .
É este o combate de que ncs fala o bem-aventurado Paulo e no qual
devemos competir para obter a coroa incorruptívd. . . 4 É o combate
predito pelos profetas, proporcionado pelo Senhor, realizado pelos
apóstolos e, com o qual, Mapálico desafiou o procônsul, em seu no­
me e no dos companheiros. E não faltou à promessa. Enfrentou o
combate que prometera, recebendo a merecida palma.
Meus votos são os de que todos os outros sigam este mártir fe­
liz e seus companheiros de fé resoluta, pacientes na dor, vitoriosos
no suplído; a fim de que a perfeição da virtude e o prêmio celeste
unam os que uniram a confissão e a passagem pelo cárcere; a fim de
que enxugueis, com vosso júbilo, as lágrimas da Igreja, que chora
o malogro e a desgraça de muitos outros; a fim de que vosso exem­
plo possa persuadir outros a se manterem firmes na fé. Se fordes
chamados à linha de frente, se raiar o dia de vossa luta, combatei
varcnilmente, dentes de fazê-lo sob os olhos do Senhor, e de che­
gar à sua glória por meio da confissão de seu n o m e .. .

2 SI 115,15.
3 Mt 10,19s.
4 Cf. lCor 9,24s.
NOVAÇIANO
(t C. 257)

Em Roma, onde era presbítero, foi o primeiro teólogo que escteveu em latim,
pois os precedentes escreviam em grego. Fez-se sagrar bispo em 251, por ocasião
de um movimento dsmático, de cunho rigorista, o qual, pàtrocinado por seu nome,
se estendeu à Gália, África e ao Oriente, com prolongamentos até o século VI.
Mesmo os adversários de Novaciano reconheceram em seu tempo seu preparo cultural,
onde se nota grande influência de Tertuliano. Segundo o historiador Sócrates, morreu
mártir provavelmente durante a perseguição de Valeriano. Sua obra principal chama-se
De Trinitate, composta provavelmente antes de 251.
Edições críticas no Corpus Christianorum, ser. latina, IV (Turnhout, 1971); tam­
bém na coleção Corona Patrum, Turim, 1975, com introdução e notas de V. Loi.

D o livro
SOBRE A TRIN D A D E
(cc. 14-16; P.L. 3, 936-944)

A divindade de Cristo
Persiste o herege em duvidar que Cristo seja Deus, embora ele 304
o tenha demonstrado por tantos fatos e asserções que estão na Es­
critura. Se Cristo é apenas homem, como então, ao vir a este mmv
do, “veio para o que era seu ” l , ao passo que o homem não fez ?
nenhum mundo? Se Cristo é apenas homem, como se diz na Escritura
que “o mundo foi feito por meio d ele”, enquanto não se diz que o
mundo tenha sido criado por meio do homem, mas que este foi cria­
do depois do mundo?
Se Cristo é apenas homem, como não descende apenas da estirpe
de Davi, sendo “o Verbo que se fez carne e habitou entre nós” 2?
D e fato, embora o primeiro homem não provenha de estirpe alguma,
nem por isto foi formado pela união do Verbo e da carne, não é o
Verbo feito carne que habitou entre nós.
Se Cristo é apenas homem, como então “aquele que vem do
céu dá testemunho do que viu e ouviu” 3, ao passo que nenhum
homem veio do céu, onde não poderia ter nascido? Se Cristo é ape­
nas homem, como se afirma que as realidades visíveis e invisíveis,
os tronos, as potestades e as dominações foram criadas por meio
198 NOVACIANO
dele e n e le 4, se não puderam ser feitas por meio de um homem
as potências celestes, que deviam existir antes do homem?
Se Cristo é apenas homem, como é invocado presente em toda
parte, ao passo que poder estar presente em todo lugar não é pro­
priedade natural do homem e sim de Deus? Se Cristo é apenas ho­
mem, como nas> orações se invoca um homem como mediador, enquan­
to invocar um homem é sabido ser ineficaz para obter a salvação?
Se Cristo é apenas homem, por que se coloca nele a esperança, ao
passo que nas Escrituras se diz ser maldita a esperança posta no
homem? Se Cristo é apenas homem, por que não é lícito renegá-lo
sem ruína para a alma, enquanto na Escritura se afirma que o pe­
cado cometido contra o homem pode ser perdoado?
Se Cristo é apenas homem, como João Batista lhe dá testemunho
dizendo: “aquele que vem após mim foi feito antes de mim porque
existia antes de m im ” 5, ao passo que Cristo, como homem, tendo
nascido depois de João, não poderia ser-lhe anterior, só o podendo
ser enquanto Deus?
Se Cristo é apenas homem, como “aquilo que faz o Pai, fá-lo
igualmente o Filho” 6, se o homem não pode realizar obras semelhan­
tes às obras celestes de Deus? Se Cristo é apenas homem, como “da
mesma forma que o Pai possui em si a vida, também deu ao Filho
possuí-la em s i” 7? Pois o homem não pode possuir em si a vida
segundo o exemplar de Deus Pai, não possui a eterna glória, é feito
de matéria sujeita' à: m orte..
Se Cristo é apenas homem, como afirma: “eu sou o pão da vida
eterna, eu que desci dò céu” 8? Um homem não pode ser pão de
vida, sendo mortal, nem pode ter descido do céu, não existindo no
céu a fragilidade da matéria. Se Cristo é apenas homem, como diz
que “ninguém jamaiy viui o Pài, senão aquele que é de Deus, e que
por isto viu a D eus” 9? Pois, se Cristo é apenas homem, não pôde
ter visto a Deus, ao qual nenhum homem pode ver. Se, porém, vem
de Deus, viu-o, e assim fez-nos compreender ser mais do que um
homem: viu a Deus!:
Se Cristo é apenas homem, por que diz: “e se vísseis o Filho
do homem subir onde estava antes” 10? Ora, ele desceu do céu; exis­
tiu, então, no céu, desde que para lá retomou aq subir. Se foi envia­
do pelo Pai celeste, certamente não é só homeih, pois, como disse­
mos, não teria, vindo do céu. Enquanto homem, não existiu lá, mas
sim para lá subiu onde não estivera antes. D e lá desceu, ao contrário,
o Verbo de D eus, o qual lá esteve, o Verbo — repito — e também
SOBRE A TRINDADE 199

Deus, por meio do qual foram feitas todas as coisas, sem o qual nada
foi feito. Portanto, não um homem desceu do céu, mas o Verbo divi­
no, Deus.
Se Cristo é apenas homem, como afirma ele: “mesmo se dou 306
testemunho de mim mesmo, meu testemunho é verdadeiro, pois sei
de onde vim e para onde vou; vós ignorais donde vim e para onde
vou; vós julgais segundo a carne” 11. Eia! também aqui afirma que
retornará para lá de onde atesta ter vindo antes, ter sido enviado
do céu. Desce de cnde veio, e regressa ao lugar de onde desceu. Se
Cristo fosse apenas homem, não teria vindo de lá, nem partiria para
lá de onde não veio ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como afirma: “ sois daqui de baixo, eu
sou lá de cima; vós seis deste mundo, eu não sou deste mundo” 12? Se
todo homem é deste mundo — e por isto Cristo está neste mundo
— será talvez ele apenas homem? Absolutamente não. Considera o
que diz: “eu não sou deste m undo”. Acaso estaria mentindo, pois
seria deste mundo, se fosse apenas homem? Se não mentia, não é
deste mundo; portanto não é apenas homem, não sendo deste mundo.
E para não deixar obscuro quem era, acrescenta expressamente de
onde era: “eu sou de cima”, isto é, do céu, onde não pode chegar o
homem, que não foi feito no céu. É pois Deus, sendo de cima, não
deste mundo, embora de certo modo seja também deste mundo, pelo
fato de não ser somente Deus, mas também homem. Assim como
não é deste mundo segundo a divindade do Verbo, é deste mundo
segundo a fragilidade do corpo assumido; pois é homem unido a
Deus, Deus conjugado ao homem ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como diz ele: “Saí de D eus e vim ” 13?
quando se sabe que o homem foi feito por Deús, hão que tenha saído
de Deus. Se o homem não saiu de Deus, o Verbo divino — eTei
sim — saiu de Deus, e a respeito dele foi escrita a palavra: “ meu
coração emitiu uma Palavra boa” 14. Porque ele é de Deus, está
junto de Deus; mas porque não saiu de Deus sem finalidade, justa­
mente per isto fez todas as coisas, conforme a palavra: “ todas as
coisas foram feitas por meio dele e sem ele nada foi feito” 15. É ele
o Verbo pelo qual tudo foi criado. “E o Verbo”, continua a Escritura,
“era Deus”: Deus portanto procedeu de,Deus, se o Verbo procedente
é Deus.
Se Cristo é apenas homem, como diz: “quem guardar minha 307
palavra não verá a morte para sempre” 16? Não ver jamais a morte,
que é senão a imortalidade? Mas a imortalidade está associada à di­
vindade, pois imortal é a divindade. A imortalidade é fruto da divin-
U To 8,14.
200 NOVACIANO
dade. Tcdo homem, ao contrário, é mortal, e dele não pode provir
a imortalidade. Entretanto, “quem guardar minha palavra”, afirma
Cristo, “não verá a morte para sempre”. Portanto, o Verbo divino
confere a imortalidade, e através dela a divindade. Se não pode obter
a prestação da imortalidade para outrem, quem é mortal, e se esta
palavra diz que,C risto nos confere a imortalidade, então certamente,
não será somente homem ( . . . )
308 Se Cristo é apenas homem, como afirma: “ antes de Abraão eu
sou” 17? Nenhum homem pode ser anterior àquele do qual descen­
de; não pode ocorrer que algo seja anterior ao que lhe dá origem. Mas
Cristo diz ser anterior a Abraão, embora descenda de Abraão. Por­
tanto, ou ele mente e engana, se, descendente de Abraão, não existiu
antes de Abraão, ou não engana, sendo também Deus, que existiu
antes de Abraão ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como diz: “conhecereis as minhas ove­
lhas e as minhas ovelhas me seguirão; e lhes dou a vida eterna, de
sorte que jamais perecerão” 18? Tcdo homem mortal está preso à lei
da mortalidade, não pode conservar-se eternamente, e com maior
razão não poderá conservar a outrem eternamente ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, que significa o que diz: “eu e o Pai
somos uma só coisa” 19? De que modo “eu e o Pai somos uma só
coisa”, se ele não é Deus e Filho, o qual, por esta razão, pode dizer-
se “uma só coisa” com Deus, enquanto dele nasce, e dele procede;
sendo portanto Deus? Quando os judeus ouviram a afirmação julgaram-
-na blasfema — pois Cristo se proclamava Deus — e quiseram ape­
drejá-lo. Ele porém repeliu os adversários com o exemplo e testemu­
nho da Escritura. “ Se a Lei”, disse, “chamou deuses os homens aos
quais foram dirigidas as palavras, e a Escritura não pode falhar,
como dizeis que blasfema aquele que o Pai consagrou e enviou a este
mundo, porque disse: eu sou filho de Deus” 20? Com estas palavras
não negou ser Deus; pelo contrário, confirmou. Com efeito, desde
que são simplesmente chamados deuses aqueles aos quais foram diri­
gidas as palavras de Deus, com maior razão é Deus aquele que a
todos supera. Contudo, refutou Cristo de maneira adequada a odiosa
blasfêmia atribuída, explicando sua exata relação com Deus: ele
quer ser tido como Deus de tal modo que seja o Filho e hão o
próprio Pai. Disse, por isto, ter sido enviado, e assinalou ter reali­
zado muitas obras da parte do Pai, querendo ser tido como
o Filho, não como o Pai. E na última parte de sua refutação fez
menção do Filho, não do Pai, dizendo: “vós dizeis que blasfemo por­
que disse: eu sou Filho de Deus”? Desta forma, relativamente à
acusação de blasfêmia, afirma-se o Filho, não o Pai; relativamente
SOBRE A TRINDADE 201

à sua divindade, mostra ser Filho e ao mesmo tempo Deus, ao dizer:


“Eu e o Pai somos uma só coisa”. Ele é, portanto, Deus, mas Deus
de um medo tal que seja o Filho, não o Pai.
Se Cristo é apenas homem, como assevera ele: “todo o que me 309
vê e crê em mim, não morrerá etemamente” 21? Ora, quem crê num
simples homem se diz maldito; nesta passagem, ao contrário, quem
crê em Cristo, ao invés de maldito, se diz que não morrerá eterna­
mente. Assim, se fosse somente homem, qual o pretendem os here­
ges, como então quem nele crê não morrerá jamais, estando escrito
que é amaldiçoado o homem que confia no homem? ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, como se afirma que o Parádito re­
ceberá do que é dele, para anunciar? O Parádito nada pode receber
da criatura humana; ao contrário, ele concede ao homem a ciência!
O Parádito nada aprende do homem, ele1 instrui o homem sobre o
futuro! Portanto, ou o Parádito não recebeu do Cristo homem o
que deve anunciar, porque o homem nada lhe pode conferir e só
pode dele receber, e neste caso Cristo engana e m e n te .. . ou então
não nos engana, como de fato é, e o Parádito recebeu de Cristo
o que anuncia. Mas se recebeu de Cristo, Cristo é superior aò Pará-
clito 22 ( . . . )
Se Cristo é apenas homem, por que estabeleceu para nós uma
regra de fé como a que reza: “esta é a vida eterna: que conheçam a
ti, Deus único e verdadeiro, e aquele a quem enviaste, Jesus Cristo” 23?
. . . Deveria ter acrescentado: “e o homem a quem enviaste, Jesus
Cristo”. Não o fez. Unindo-se a Deus, quis pela união ser reconhecido
também como Deus, qual realmente é.
Se Cristo é apenas homem, como afirmou ele: “e agora, glorifica- 310
-me com a glória que eu tive junto de ti, antes que o mundo fos­
se” 24? Se antes que o mundo fosse, ele teve glória junto de Déite,
e possui o esplendor juntamente com o Pai, então existiu antes do ■
mundo ( . . . ) . Porque ninguém poderá possuir algo se antes não
existisse ele próprio, o possessor. Mas Cristo tem a glória antes da
criação do mundo; logo, existiu antes da criação do mundo ( . . . )
Nem se queira chamar a isto predestinação, pois dela não se
fala, e então estariam acrescentando algo os que o pensam; mas está
escrito: ai dos que acrescentam ou retiram algo! Não se pode, por­
tanto, afirmar o que não é possível acrescentar. Retirada a predestina­
ção, da qual não há menção no texto, Cristo teve subsistência antes
da criação do mundo *— ele, o Verbo por meio do; qual todas as
coisas foram feitas. . .

21 Jo 11,26.
22 A linguagem de Novaciano é aqui incorreta. Deveria dizer somente que o
Parádito, que procede do Pai, procede também do Filho, o qual neste sentido (não
cronolóaico nem de dignidade) lhe é anterior.
23 Jo 173.
24 Jo 173-
SANTO ATANÁSIO
( t 373)

Nasceu em Alexandria, cerca de 295. Jovem, aderiu ao monaquismo nos deser­


to; do ügito, onde conheceu de perto Santo Antão, *'o poi dos monges” ( t 356).
Dcpôis, tomado diácono da igreja de Alexandria, foi, com seu bispo Alexandre ao
concílio ecumênico de Nicéia (325), onde se distinguiu pelo combate à heresia ariana.
Em 328 era bispo de Alexandria. Prosseguiu sempre como o paladino da luta anti-
•ariana, o que lhe acarretou sete cncs de exílio e muitos sofrimentos. Dele disse são
Grcgório de Nazianzo: "O que foi para Sansão a cabeleira, foi Atanásio para a
Igreja”.
Obras: 3 Discursos contra os arianos; Contra os pagflos; Sobre a Encarnação do
Verbo; Vida de Antão, etc.
hm edição bilíngüe: S.C. 15, 18, 56.

Do livro
CONTRA OS PAGÃOS
(P.G. 25, 76-90; S.C. 18)

311 Não é desordem o que se vê no universo, mas ordem, não


desproporção e desarmonia, e sim cosmos, a organização coerente
de um cosmos. Torna-se, pois, necessário refletir e conceber uma
idéia do Senhor que uniu e compôs todos esses elementos, pro­
duzindo sua harmonia. Embora sendo ele invisivel aos olhes, é pos­
sível, a partir da ordem dos elementos contrários, imaginar o chefe,
o ordenador, o rei de todos os seres. Numa cidade, composta de
numerosos e diferentes habitantes, pequenos e grandes, ricos e po­
bres, jovens e velhos, homens e mulheres, se percebemos ali uma admi
nistração organizada, e a concórdia entre habitantes tão diferentes
— os ricos não sendo contra os pobres, nem cs grandes contra os
pequenos, nem os jovens contra os velhos, tedos vivendo pacifica­
mente na igualdade de seus direitos — se percebemos tudo assim, com­
preendemos, necessariamente, que a presença de um chefe preside a
harmonia, mesmo quando não o vemos. Porque a deserdem é sinal da
ausência de autoridade, ao passo que a ordem revela o chefe.

312 Não se deverão imaginar vários autores e criadores do mundo,


mas ccnfcrme a piedade e a verdade devemos crer que o de-
CONTRA OS PAGÃOS 203

miurgo dessa criação é único, o que, aliás, a criação manifesta cla­


ramente. Sinal seguro da unidade do criador é que o mundo não
é múltiplo, mas sim único. Ora, se houvesse vários deuses, haveria
também vários mundos. Mas muitos absurdos se seguiriam, se hou­
vesse vários deuses organizadores do mundo ou se houvesse vários
mundos. Primeiro, se este mundo único tivesse sido produzido por
vários, mostraria a fraqueza de seus autores: uma só obra fora
realizada por vários. Isso atestaria a insuficiência do conhecimento
de cada um para concluir a obra, pois, bastando um criador, por
que outros viriam suplementar a ação? Ora, supor em Deus uma
insuficiência é impiedade e pecado gravíssimo. Com efeito, entre os
homens, um artista não passa por perfeito, mas; por medíocre, se não
consegue concluir sozinho sua cbra, só podendo fazê-lo com au­
xílio alheio.
£ se cada um fosse capaz de realizar a obra total, e no entanto
todos trabalhassem participando de uma obra comum, seria ridículo
trabalhar assim por sua glória e para não passar por incapaz, pois é
absurdo falar-se de glorípla entre deuses.
É se cada qual por si só fosse capaz de criar o universo, para
que então o trabalho de muitos? Aliás, pareceria ímpio e absurdo
pensar numa obra única com tantos artífices, já que a razão natural
prova sçr o único e perfeito superior ao múltiplo.
Poder-se-ia acrescentar que se o mundo fosse feito por diversos,
haveria movimentos diversos e dissemelhantes, cada um voltando-se
para um autor, com o que se reencontraria a desordem e a confusão.
O navio pilotado por vários não seguirá na direção reta, a lira tangida
por vários não emitirá som harmonioso. Assim, se a criação é uma e
um o cosmos, se há nele ordem, é preciso supor que um só é o Senhor,
Rei e Demiurgo.

Mas quem é então esse Criador? Eis o que importa indicar e 313
dizer, pcis a ignorância disto poderia fazer-nos cair numa impiedade
semelhante à precedente. Penso, porém, que ninguém hesita a este
respeito. Se nossa exposição mostrou não serem deuses aqueles dos
quais falam cs poetas, se conseguirmos convencer de erro os que
divinizam a criação, e se, de modo geral, demonstramos ser a idolatria
dos pagãos simplesmente impiedade e irreligião, faz-se necessário, já
que tais deuses foram derrubados, que a religião verdadeira esteja
entre nós, que o Deus ao qual adoramos e pregamos seja o único
verdadeiro Deus, o Senhor da criação e o Demiurgo de toda substân­
cia. Quem é ele, senão o totalmente Santo, aquele que está acima de
toda substância criada, o Pai de Cristo, que como um excelente piloto,
por sua própria sabedoria e em sua própria Palavra, que é o Crista,
204 SANTO ATANÁSIO
nosso Senhor e Salvador, governa e ordena o universo para a nossa
salvação, e age como bem lhe parece? Este mundo é muito bom,
realmente, tal como foi feito e nós o vemos, pois Deus o quer assim,
e ninguém duvida disso. Se a criação se movesse sem razão, se o
universo fosse conduzido pelo acaso, poder-se-iam perfeitamente pôr
em dúvida nossas afirmações. Mas como o mundo foi produzido com
ra 2ão, sabedoria e ciência, estando ornado de toda beleza, é preciso
que aquele que o preside e o organizou não seja outro senão o Verbo
de Deus.
314 E não falo do verbo que foi misturado a cada uma das cria­
turas, inserido nelas, e que alguns chamam o verbo seminal, inani­
mado, incapaz de raciocinar oú de pensar, agindo unicamente graças
a uma arte extrínseca e com a ciência daquele que o inseria na cria­
tu r a 1. Não penso também no verbo dos seres racionais, composto de
sílabas, e que se faz ouvir no ar. Falo do próprio Verbo do Deus
bom do universo, Deus vivo e atuante, diferente de todos os seres
produzidos e de toda a criação, único Verbo do bom Pai, o qual
organizou este universo e o iluminou por sua providência. Sendo
o bom Verbo, foi ele quem dispôs a ordem das coisas, que adaptou
os contrários entre si, constituindo uma grande harmonia. Foi ele
que, potência de Deus e sabedoria de D eus12, fez o giro do céu,
suspendeu a terra e, sem que ela se apóie sobre algo, a mantém
por sua própria vontade. Pela luz que dele recebe, o sol ilumina a
terra e a lua recebe a medida de sua claridade. Por ele, a água é
suspensa nas nuvens, as chuvas orvalham a terra, o mar guarda seus
limites, a terra se cobre da verdejante coma de inúmeras plantas.
E se algum infiel pusesse em dúvida tais afirmações, questionando se
o Verbo de Deus existe, mostrar-se-ia louco ao duvidar do Verbo de
Deus, pois tudo o que vê subsiste pelo Verbo e pela Sabedoria
de Deus, nada subsistindo se não foi produzido por um Verbo divino,
como o dissemos.
Esse Verbo, pois, não é, como o verbo humano, composto de
sílabas, é a imagem absolutamente semelhante do Pai. Os homens,
compostos de partes saídas do nada, têm também um verbo com­
posto e inconsistente. Mas Deus é, e não é composto; também seu
Verbo é, e não é composto, é o Deus único e unigénito, o Deus
bom procedente do Pai como de boa fonte, aquele que ordena e
sustenta o universo.
315 A causa pela qual o Verbo, o Verbo de Deus, veio até as cria­
turas, é verdadeiramente admirável, e mostra que não conviria fos­
sem as coisas de outro modo como são. A natureza das coisas, con­
siderada em si mesma, e enquanto brotada do nada, é fugaz, frágil,
mortal; mas o Deus de todas as coisas é por natureza bom e exce-

1 Santo Atanásio assinala a distinção entre o Logos pessoal e o logos seminal


dos estóicos.
2 Cf. ICor 1,24.
SOBRE A ENCARNAÇÃO DO VERBO 205

lente, e ele ama os homens. Um ser bom não teria inveja de ninguém;
assim também ele não recusa a ninguém o ser, querendo que todos
sejam, pára poder mostrar-lhes seu amor. Vendo que por si mes­
ma a natureza criada se esvai e se dissolve, para evitar isso, para
evitar que tudo volte ao nada, ele, após ter tudo criado por seu
eterno Verbo, após ter dado o ser à criação, não a abandona ao
impulso e às flutuações naturais, capazes de aniquilá-la: em sua bon­
dade, por seu Verbo que também é Deus, governa e mantém toda a
criação.

Assim, contemplando o céu e vendo a ordem, a beleza e a luz 316


dos astros, é pcssível ter-se uma idéia do Verbo autor dessa ordem.
Igualmente, quando sé pensa no Verbo de Deus, pensa-se em Deus
seu Pai.
Dele procedente, o Verbo é com razão chamado o Intérprete e
o Mensageiro do Pai; e isto se pode ver a partir do que ocorre entre
nós.
Realmente, quando o homem emite seu verbo, nós concebemos
ser espírito a fonte desse verbo; e voltando a atenção para o verbo,
nosso raciocínio vê o espírito cujo sinal ele representa. Com maior e
mais razão, profunda, vendo o poder do Verbo, nós concebemos uma
idéia de séú Bom Pai, como disse o próprio Salvador: “Quem me
viu, ''viu meu P ai” 3.

SOBRE A ENCARNAÇÃO DO VERBO


(P.G, 25, 112; S.C. 18)

A s conveniências da Encarnação

Esta grande obra realmente convinha sob todos os aspectos à 317


bondade de Deus. Se um rei construiu uma casa ou vila, e esta, por
negligência dos moradores vem a ser assaltada por ladrões, ele não
a abandona; defende-a e protege-a como coisa própria, considerando,
não o descaso dos locatários, mas o que lhe convém a si. Com maior
razão, o Verbo divino do boníssimo Pai, vendo o gênero humano, sua
criatura, desandar para a corrupção, não o abandonou; mas, pela
oferta de seu próprio corpo, extinguiu a morte que se associara aos
homens, por seu ensinamento corrigiu as negligências deles, por seu
poder restaurou a raça humana. Disto podemos persuadir-nos con­
sultando os teólogos enviados por Deus e lendo seus escritos, onde
se tem que: “o amor de Cristo nos impele a este pensamento, o de
que se um só morreu per todos, todos morreram; ora, ele morreu por

y jo i4,ii.
206 SANTO ATANÃSIO
todos, a fim de que não vivêssemos mais para nós, mas para aquele
que por nós morreu e ressuscitou, nosso Senhor Jesus Cristo” l.
Lemos ainda: “nós vemos aquele que foi posto um pouco abaixo dos
anjos, Jesus, coroado de glória e honra por causa dos sofrimentos de
sua morte, a fim de que assim, pela graça de Dèus, sua morte apro­
veite para todos os homens” 12. A seguir, a Escritura indica por que
318 nenhum outro, àenão o Verbo de Deus, se devia encarnar: “convinha
que aquele, para quem tudo é e por quem tudo é, desejando levar
um grande número de filhos à glória, aperfeiçoasse pelo sofrimento o
autor da salvação deles” 3. Por aí se indica não caber a outro, mas
ao Verbo de Deus, que tinha feito no princípio os homens, reerguê-
-los da corrupção que os atingira. Se o Verbo assumiu um. corpo, foi
para oferecê-lo em sacrifício em prol dos corpos semelhantes ao seu —
o que também ensinam as Escrituras: “como os filhos participam da
carne e do sangue, ele participou dessas mesmas coisas, a fim de des­
truir por sua morte o demônio, que tinha o império da m orte” 4.
Pois, pelo sacrifício de seu corpo, ele acabou com a lei que pesava
sobre nós, renovou para nós o princípio da vida, dando-nos a espe­
rança da ressurreição. Antes, foi por causa dos homens que a morte
dominou sobre os homens; agora, pela encarnação do Verbo de Deus
ela foi destruída, pois ressurgiu a vida, como diz o Apóstolo, porta­
dor de Cristo: “por um homem veio a morte, e por um homem a
ressurreição dos mortos; da mesma forma que todos morrem em
Adão, em Cristo todos serão vivificados” 3. Já não mais morremos
como condenados, e sim como os que irão despertar; aguardamos a
ressurreição universal, que a seu tempo nos mostrará o Senhor Deus,
aquele que a criou e no-la concede. Eis a primeira razão da Encarnação
do Salvador.

SOBRE A ENCARNAÇÃO DO VERBO


(P.G. 25, 117s, 121s; S.C. 18)

A recriação do homem

319 Dado que os homens se tinham pervertido na irracionalidade e


que a impostura dos falsos deuses propagava por toda parte Sua som­
bra, eclipsando o conhecimento do verdadeiro Deus, que havería
de fazer o Senhor? Guardar silêncio frente à situação e deixar os
homens iludidos, ignorando seu Deus? Mas então para que houvera
criado o homem à sua imagem? Ocorria simplesmente tê-lo criado
sem razão; ou, do contrário, não o deixar viver a vida dos irracionais.

1 2Cor 5,14-15.
2 Hb 2,9.
3 Hb 2,10.
4 Hb 2,14-15.
3 ICor 15,21-22.
SOBRE A ENCARNAÇÃO DO VERBO 207

Para que lhes houvera também comunicado, desde o início, a noção de


Deus, se agcra não se mostravam dignos de a receber? Melhor fôra
não a ter conferido no princípio. Pois que glória advém para o
Criador, se os homens, suas criaturas, não o adoram e até pensam ser
feitos por algum outro? Tê-los-ia criado para outros?
Um rei, mesmo humano, não permite que suas cidades se en­
treguem a estranhos e se submetam a eles. Adverte os súditos, en­
via-lhes mensageiros e, se necessário, vai em pessoa tentar comovê-los:
unicamente para evitar que sirvam a senhor alheio e se inutilize a
cbra sua. Com mais razão, Deus não se apiedaria da criatura a fim
de evitar que errasse longe de si e fosse servir a fantasmas inexisten­
tes? Tanto mais que tal erro seria causa de ruína para o ser que um
dia participou da imagem de Deus!
Que haveria pois de fazer o Senhor, senão renovar o que era 320
ncs homens a divina imagem, a fim de por ela chegarem ao seu
conhecimento? Mas como se realizaria isto de outro modo que não
pela presença da própria Imagem de Deus, nosso Salvador Jesus
Cristo?
Sim, a coisa não seria realizável jamais por homens, pois tam­
bém foram criados segundo a imagem; nem por anjos, que não são
em sí mesmos imagens. Veio, pois, o próprio Verbo de Deus, Ima­
gem do Pai, a fim de recriar o humem segundo a divina imagem;
e se esta obra não se podia fazer sem destruição, sem a corrupção
da morte, convinha que ele assumisse um corpo mortal, para nele
destruir a morte e renovar os homens segundo a divina imagem.
Com vistas a tal obra nenhum outro se credenciava mais que a pró­
pria imagem do Pai.
Se aos poucos se apagou uma efígie impressa na madeira, pelo
acumulo da pátina exterior, pode acontecer que sua renovação s ó " ^
torne possível, ali no mesmo material, pela presença do modelo,
cujos traços se desfiguraram. Não se irá recusar o material onde a
figura fora antes impressa, mas se procurará compor nova imagem h
Da mesma forma, o Filho santíssimo do Pai celeste, sendo a imagem
do Pai, veio até nossa região, visando renovar o homem criado se­
gundo seu modele, visando remir os pecados daquele que estava
perdido, a fim de reencontrá-lo; conforme as palavras da Escritura:
“eu vim para encontrar e salvar o que estava perdido” 12. Assim,
dirá também ele aos judeus: “se alguém não renascer, não poderá
ver o reino de Deus” 3, aludindo, não a um renascimento a partir
da mulher, ccmo pensaram os judeus, mas ao renascimento que é a
recriação da alma segundo a imagem divina.

1 Esta passagem foi transcrita pelo papa Adriano I, em carta referente ao culto
das imagens e lida no 2? Concílio de Nicéia (787): cf. Mansi, X II, 1067 c.
2 Lc 19,10.
3 Jo 3,5.
210 SANTO ATANÁSIO
por tua Reverência e p er causa do desprezo, da audácia satânica dessa
gente, redigi a presente carta, do medo que pude, esperando que a
completes no que talvez falte, com tua sabedoria, e se realize assim
a refutação da ímpia heresia.
324 Quanto aos arianos, inicialmente, tem-se que essa opinião não
é estranha a eles. Pois uma vez que negaram o Verbo de Deus, é
natural que vociferem também contra seu Espírito. Por isto não será
preciso dirigir-lhes refutações em acréscimo às feitas precedente­
mente 5.
325 Quanto aos que erram sobre o Espírito, convirá proceder de cer­
to “modo” — como diriam eles mesmos 6 — no propósito de res­
ponder-lhes. Poderíamos espantar-nos de seu disparate: não querem
que o Filho de Deus seja uma criatura — e nisto pensam correta­
mente — mas então como suportam ouvir que o Espírito do Filho é
uma criatura? Se, em razão da unidade do Verbo com *o Pai, não
querem que o Filho seja uma das coisas chegadas à existência, mas
pensam, com razão, ser ele o artífice 7 das obras (divinas), por que
então ao Espírito Santo, que possui com o Filho a mesma unidade
que este com o Pai, chamam criatura? Por que não reconheceram
que, se não separando do Pai o Filho, salvaguardam a unidade de
Deus, separando do Verbo o Espírito já não salvaguardam mais a
única divindade da Trindade, mas a dividem, inserindo-lhe uma na­
tureza estranha, de outra espécie, e acarretando assim igualdade
ccm as coisas criadas? Além disto, tal concepção não apresenta a
Trindade como uma realidade única, mas como constituída de duas
diversas naturezas, se difere, conforme pensam, a substância do Espíri­
to. Que idéia de Deus há de ser esta, formada de Criador e criatura?
Ou bem já não há Tríade, mas Díade com uma criatura, ou, se há
Tríade, como de fato há, por que põem entre as criaturas, que vêm
abaixo da Tríade, o Espírito da Tríade? Tal seria, mais uma vez, di­
vidir a T rindade8.
Funesta a respeito do Espírito Santo, sua doutrina também não
é boa a respeito do Filho, pois se aqui fosse correta, sê-lo-ia igual­
mente a respeito do Espírito, que procede do Pai e que, sendo pró­
prio do Filho, vem dado por este a seus discípulos e a todos cs que
crêem nele. Desta forma desgarrados, não poderão enfim ter uma
fé sadia a respeito do Pai, porque os que resistem ao Espírito —
como dizia o grande mártir E stêvão 9 — negam o Filho, e negando
o Filho já não têm o Pai.

5 Sto. Atanásio parece referir-se a seus Discursos contra os Arianos.


6 Alusão ao processo empregado pelos adversários, que viam nos textos bíblicos
“medos” de falar (Tpáitot), donde lhes veio o nome de Trópicos.
7 Aihuovpyóç = Criador.
8 Tp\Aç, a palavra grega empregada, ora traduzimos por Tríade, ora por Trin­
dade, para respeitar os matizes do contexto.
* At 7,51.
DA PRIMEIRA CARTA A SERAPIÂO 2 11

Por que todo esse desvario? Em que lugar das Escrituras acha- 326
ram a designação de anjo dada ao Espírito? Não é preciso que
repita agora o que já disse alhures. Ele foi chamado Consolador, Es­
pírito de filiação, Espírito de Deus, Espírito do Cristo. Em parte
alguma, anjo, arcanjo, espírito ministrante — como o são os anjos;
ao contrário, é ele mesmo ministrado por Gabriel, que disse a Maria:
“o Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com
sua sombra” 10*. Se as Escrituras não chamam o Espírito um anjo,
que excusa invocam aqueles tais para dizerem tal temeridade? Mes­
mo Valentim, que lhes inspirou a nefasta idéia, dava distintamente
a um o nome de Paráclito e a outros o de anjos, ainda se atribuindo
a todos a mesma “idade” 11

O sentido das palavras divinas refuta absolutamente a linguagem 327


herética dos que desatinam contra o Espírito. Eles porém, sempre hos­
tilizando a verdade, tiram — conforme dizes — não mais das Escri­
turas, onde nada achariam, mas de seu próprio coração, o que eructam
dizendo: se o Espírito não é criatura, nem um dentre os anjos, mas
procede do Pai; é então filho, e neste caso ele e o Verbo são irmãos.
Mas se é irmão, como o Verbo é unigénito? e como não são iguais,
pois um é designado após o Pai e outro após o Filho? Se o Espírito
provém do Pai, como não é também engendrado, e Filho, mas sim­
plesmente “Espírito Santo”? Enfim, se é o Espírito do Filho, tèr-se-á
que o Pai é avô do E s p ír ito ..,
São os gracejos que se permitem cs infames, presunçosos no
perscrutar as profundezas de Deus, a quem ninguém conhece senão
o Espírito de Deus, vilipendiado por eles. Séria preciso não responder
a. eles, mas sim, conforme o preceito do Apóstolo12, depois de os ter
admoestado còm palavras, como as que já escrevemos, recusá-los sim-'
plesmente como hereges; ou dirigir-lhes perguntas dignas das que
nos põem, exigindo da mesma forma as respostas. Digam-nos se o
Pai também provém de outro pai, se um outro foi gerado com ele
e se são assim irmãos, qual o seu nome, quem é seu pai, avô, quem
seus ancestrais. Alegarão que a coisa nãó é esta. Pois bem, informem-
-ncs como 0 Pai existe sem ter sido gerado per outro pai; como teve
um filho sem ter sido gerado também como filho. Questão ímpia,
por certo, mas os que se permitem tais remoques é justo serem tra­
tados da mesma ferma, para que o absurdo e a impiedade da questão
os leve a perceber sua própria insensatez. Pois nada disso é verdade,
Deus nos livre! e não se admite a colocação de tais questões sobre a

10 Lc 1,35.
n Conforme o gnóstíco Valentim, quando o Paráclito foi enviado, foram envia­
dos também os anjos da mesma idade. Di-lo sto. Atanásio em passagem anterior
desta carta, aqui suprimida, talvez apoiado em sto. Ireneu (Contra Her. I. 4,5).
12 T t 3,10.
212 SANTO ATANÁSIO
Divindade. Deus não é como o homem para ousarmos pesquisar coisas
humanas a seu respeito.

328 Aquele que não é santificado por outro, nem apenas participante
da santificação, mas de cuja santidade participam as criaturas e se
tornam santificadas, como seria um dentre as criaturas, da mesma
forma que os que dele participam? Para afirmá-lo seria preciso dizer
que também o Filho, por meio de quem todas as coisas foram feitas,
é uma dessas coisas feitas.
O Espírito é chamado vivificante, pois a Escritura diz: “Aquele
que ressuscitou a Jesus Cristo dentre os mortos, vivificará também
vossos corpos mortais por meio de seu Espírito, que habita em vós” 13.
O Senhor é a vida em si e “o autor da vida”, conforme P ed ro 14;
ora, o mesmo Senhor dizia: “a água que eu darei ao fiel se tornará
nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna”, e “ele dizia
isto do Espírito, que deveriam receber os que creem nele” D. As
criaturas são vivificadas pelo Espírito; como então se aparentam a
Ele, que não tem a vida por participação, mas é fonte de participação
e vivifica as criaturas? Como poderia ser do número das criaturas,, vi­
vificadas nele pelo Verbo?

329 É também por meio do Espírito que nós participamos de Deus.


P er isto diz s. Paulo: “não sabeis que sois o templo de Deus e que
o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de
Deus, Deus o destruirá; pois o templo de Deus, que sois vós, é san­
to 16. Se o Espírito fosse criatura, nós não teríamos, por meio dele,
participação de Deus, estaríamos sempre associados à criatura, sempre
estranhos à natureza divina, não participando dela em nada. Mas,
se somos ditos participantes do Cristo e participantes de Deus,
tem-se que a unção, o sigilo, que está em nós, não é de natureza cria­
da, é da natureza do Filho, o qual, por meio do Espírito que nele
está, nos une ao Pai. Foi o que João ensinou, já o dissemos, ao es­
crever: “Sabemos que permanecemos em Deus e ele permanece em
nós, pois nos deu de seu Espírito” 17. Ora, se pela participação do
Espírito nós nos tornamos participantes da natureza divina, insensato
será dizer que o Espírito pertence à natureza criada e não à de
Deus.
SANTO HILÁRIO DE POITIERS
(c. 316-367)

Nascido de família pega, recebeu a formação filosófica e literária de seu tempo.


Através da leitura da Bíblia, foi levado à fé. Em 350, clero e povo de Poitiers o
elegism bispo, apesar de ser casado.
Organizou a resistência dos bispos gauleses contra a heresia ariana, lá repre­
sentada por Saturnino de Aries. Exilado pelo imperador Constândo, passou vários
anos na Asia Menor, onde conheceu os grandes teólogos de língua grega e compôs
sua obra Sobre a fé, comumente conhecida como Sobre a Santíssima Trindade. Como
inquietasse cs arianos do Oriente, foi devolvido à Gália em 360, onde conseguiu que
prevalecesse o Credo de Nicéía. E chamado o “Atanásio do O ddente" e está incluído
entre os Doutores da Igreja.
Obras: Comentários bíblicos; Sobre a fé ou Contra os Arianos; obras polêmicas
e históricas; hinos; religiosos (os primeiros compostos no O ddente cristão).
Em S.C. 19, o opúsculo: Tractatus Mysteriorum, ed. bilíngue.

Do Tratado
“ SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE”
(extrato do livro V III)
(PX. 10, 240-249)
A unido entre o Pai e o Filho

, “Eu e o Pai semos uma só coisa” 1. Ccmo cs hereges não 330


podem negar estas palavras, ditas de modo tão absoluto, corrom­
pem-nas e falseiam-nas no sentido de sua impiedade, para torná-las
condenáveis. Tentam limitá-las a uma simples unanimidade, como
se no Pai e no Filho a unidade fosse só de vondade e não de nature­
za, isto é, como se fossem eles uma só coisa, não pelo que são,
mas pelo que querem.
A tal interpretação adaptam, a seu modo, aquele passo dos Atos
dos Apóstolos onde se diz; “a multidão des crentes era um só cora­
ção e uma só alma ” 2. Almas e corações em numere plural podem unifi­
car-se pela convergência das vontades a um único objeto. Servem-se
também os hereges do que está escrito aos coríntics: “quem planta e
quem rega são um só” 3. Nesses dois haveria unidade moral, por­
quanto não difere o ministério instituído para a salvação.
214 santo h ilár io de poitiers

331 Abusam também daquilo que disse o Senhor, quando rogou ao


Pai a salvação das nações que creriam em si: “Não só por estes rogo,
mas também pelos que hão de crer em mim mediante a sua pa­
lavra, a fim de que todos sejam um, assim como tu, Pai, és em
mim e eu em ti; que eles também sejam um em nós” 4. Ora,
como os homens não podem dissolver-se em Deus, nem misturar-se
num conglomerado indistinto, sua unidade lhes virá só de uma
vontade unânime. Quando os homens fazem o que é do agrado de
Deus — argumentam — a harmonia dos espíritos os associa. Logo,
concluem, não é a natureza, mas a vontade que os unifica.
Ignora a sabedoria quem a Deus ignora. E como a sabedoria
é o Cristo, está fora da sabedoria quem ignora o Cristo ou só o
conhece através dessa gente que prefere ver no Senhor de majes­
tade, no Rei dos séculos e Deus unigénito, uma simples criatura,
em vez do verdadeiro Filho. E se se obstinam são ainda mais estultos
na defesa de sua mentira. Deixando de lado pòr ora a questão da
unidade do Pai e do Filho, podemos perfeitamente refutá-los com
as mesmas armas que empregam.
332 De fato, quando se diz que a alma e o coração dos fiéis eram
um, pergunto se isso não acontecia pela fé comum. Sim, pela fé é que
o coração e a alma dos fiéis eram uma só coisa. Interrogo agora
se essa fé é uma ou múltipla. Uma só, certamente, como aliás
já o Apóstolo no-lo assegura, pregando ser uma a fé, um o Se­
nhor, um o batismo, uma a esperança e um só Deus. Ora, se pela
fé, isto é, pela natureza de uma só fé, todos eram um, como não
aceitarás física a unidade des que são um pela natureza da única fé?
Todos, na verdade, tinham renascido para a inocência, a imor­
talidade, o conhecimento de Deus, a fée à esperança. E se essas
coisas não podem divergir entre si, pois também a esperança é uma
só, e Deus é único, único é o Senhor, e único o banho regenerador,
quem poderia dizer que elas são unificadas mais pelo acordo de von­
tade que por própria natureza? E que, igualmente, só pela vontade
são unificados os que renasceram para aqueles bens? Se, porém, fo­
ram, antes, regenerados para a natureza de uma mesma vida e eter­
nidade, (pelo que seu coração e sua alma se faziam um só), não
podemos aqui falar de mera unidade moral: muitos são um só na
regeneração da mesma natureza.
Não estamos falando de nós mesmos, nem arranjamos algu­
mas citações falsificadas, corrompendo o sentido das palavras para ilu­
dir os nossos ouvintes. Mantendo a forma da sã doutrina, só acolhe­
mos e prezamos o que é genuíno. O Apóstolo, em verdade, ensina,
ao escrever aos gálatas, que a unidade dos fiéis lhes vem da
natureza dos sacramentes: “ todos os que fostes batizados em Cris­
to, vos revestistes de Cristo; não há mais nem gentio nem grego,

4 Jo 17,20.
“ sobre a santíssim a tr in d ad e ” 215

servo nem livre, homem nem mulher: todos seis um só em Cristo


Jesus” 5. Se, pois, tantes são um só, apesar da grande diversidade
de nações, condições e sexo, quem poderá supor que isso lhes
vem do mero consenso moral? Não será, antes, da unidade do
sacramento, um só batismo, onde todos se revestiram do único Cristo?
Que vem aqui fazer a mera concórdia das vontades, quando eles são
um só, precisamente porque se revestiram do Cristo único, mediante a
realidade do batismo único?
Quando diz a Escritura serem um só o que planta e o que 333
rega, não é também porque, renascidos eles mesmos de um só
batismo, constituem, por sua vez, um ministério único na admi­
nistração do banho regenerador? Não fazem, porventura, a mesma
coisa? Nâc são um só em um só? Ora, os qíie são um só pela mes­
ma coisa, são assim por natureza, não apenas por vontade. Torna­
ram-se um, e são, ao mesmo tempo, ministros da mesma coisa e do
mesmo poder.
Sirvo-me sempre das alegações opostas pelos tolos, para demons­
trar sua tolice. £ claro: sendo a verdade firme e imutável, tu­
do o que uma inteligência perversa e insensata arranja para con­
tradizê-la, vindo em senddo oposto, há de aparecer forçosamente
falso e estulto.
Procurando enganar-nos os heréticcs arianos com o texto que
diz: “eu e o Pai somos uma só coisa”, aduziram também outra
palavra do Senhor, para levar a que se pensasse (em vez da uni­
dade de natureza e da não diversa divindade) numa simples união
de mútuo amor e concórdia de vontades. É este o texto: “para
que todos sejam um só; assim como tu, Pai, és em mim e eu em
ti, que eles também sejam um em nós”. Exclui-se, evidentemente,
das promessas evangélicas quem se exclui da fé das mesmas. O cri-,
me da inteligência ímpia faz perder a esperança, que é simples.-
Ora, não ter o conhecimento daquilo que constitui o objeto da
fé, merece não castigo, mas prêmio, pois o maior estipêndio da fé
é esperarmos o que não conhecemos. A última loucura da impie­
dade é, ou não crer nas coisas que conhece, ou corromper o co­
nhecimento do que deve crer.
Mas ainda què a impiedade mude o sentido daquelas palavras. 334
nem por isso perdem o verdadeiro significado. O Senhor roga ao
Pai para que os què crerem nele sejam um só e, como ele mesmo
está no Pai e o Pai nele, também sejam neles um só. Per que
vens agora introduzir a simples concórdia, a unidade de alma
e coração, fundada exclusivamente na harmonia das vontades? Se­
ria assim, com plena propriedade da expressão, se o Senhor, ao
dirigir-se ao Pai, tivesse usado termos como estes: Pai, assim como
nós queremos uma só coisa, também eles queiram uma coisa, e se-

5 G1 3,27.
jamos todos um só pela concórdia das vontades.. . Terá acaso a
própria Palavra ignorado a significação das palavras? Não saberá
a Verdade dizer coisas verdadeiras? Falou estultamente a Sabe­
doria? Aquele que é a Força terá sido incapaz de dizer o que
queria? Ora, ele falou, enunciando os puros e verdadeiros mis­
térios da fé evangélica. Nem se limitou a falar para só mostrar,
mas ensinou à nossa fé nestas palavras: “que todos sejam um
só; assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que eles também
sejam um em nós”. O pedido do Cristo é, primeiro, “para que todos
sejam um só”; em seguida, mostra o modelo da unidade a seguir,
nestas palavras: “assim como tu, Pai, és em mim e eu em ti, que
eles sejam também um em nós”. Ccmo o Pai está no Filho e o
Filho no Pai, assim todos sejam um no Pai e no Filho, segundo o
modelo e a forma da sua unidade!
335 Mas porque só ao Pai e ao Filho compete a unidade por natureza
(pois Deus não pode ser de Deus, nem o Unigénito provir do Pai
eterno, senão na sua original natureza), assim também, para que
se ressalve ao Filho a sua essência de origem e se reconheça à sua
divindade a mesma verdade da Fonte de onde ela procede, eis que
o Senhor, solícito em dissipar toda dúvida à nossa fé, se apressa
a ensinar-nos nas citadas palavras a natureza dessa absoluta unidade.
Segue-se, pois: “a fim de que o mundo creia que tu me enviaste”.
O mundo vai crer na missão do Filho, se todos os que crerem nele
forem um no Pai e no Filho.
E como serão, logo acrescenta: “e eu lhes darei a glória que tu
me deste”. Pergunto então se glória é o mesmo que “vontade”.
Vontade é inclinação da mente, glória é reflexo ou dignidade da na­
tureza. Logo, o que o Filho deu aos seus fiéis não é vontade, mas
glória, aquela que ele recebeu do Pai. Se, com efeito, tivesse dado
não glória, mas vontade, já nossa fé não teria prêmio, pois estaria
obrigada por uma vontade prefixada e não livre 6. A doação da glória
constitui o bem indicado nas palavras que se seguem: “para que
sejam um como nós o somos”. É para que sejam todos um, que
a glória por ele recebida do Pai é dada aos crentes. São todos
um só na glória concedida, pois não é outra a que ele dá senão
a que ele recebe, nem para outro fim é dada senão para que todos
sejam um. E, como pela glória dada pelo Filho aos fiéis, todos são
um, pergunto como há de ter o Filho uma glória menor do que
a do Pai, se aos próprios crentes a glória do Filho eleva à uni­
dade da glória do Pai. Som o aspecto da esperança humana, a palavra
do Senhor será talvez insólita, mas seguramente não é infiel. Pois,
embora fosse temerário esperar isso, seria irreligioso deixar de crer

6 Sto. Hilário não quer negar que a fé seja um dom de Deus, o que, aliás,
expressamente afirma em outros lugares deste mesmo tratado (como, por ex., 1.
V III, n. 30). Aqui só afirma, sem entrar em maiores distinções, que a fé supõe
vontade livre.
" sobre a santíssim a trindade 217

no autor tanto da fé quanto da esperança ali contida. Bem, trata­


remos melhor deste assunto a seu tempo. Por ora, baste-nos ver
que nossa esperança não é vã ou temerária. Concluindo: todos
são um pela glória que o Filho recebe do Pai e confere aos fiéis.
Afirmo a fé e ao mesmo tempo fico sabendo a causa da unidade.
Só falta compreender melhor a razão por que essa glória dada ao
cristão é capaz de fundar tal unidade.
Não querendo o Senhor deixar algo incerto, referiu-se a um 336
efeito da sua ação física, quando exclamou: “para que todos sejam
um, como nós somos um só. Eu neles e tu em mim para que sejam
perfeitos na unidade” 7.
Tenho vontadè de perguntar agora aos que pretendem exis­
tir entre Pai e Filho imidade puramente moral, se hoje o Cristo
está em nós na verdade da natureza, ou numa simples concórdia de
vontades.
Se, com efeito, o Verbo se fez carne, e se na Ceia dó Senhor
nós, tomamos verdadeiramente esse Verbo-carne, como não há de
permanecer , ele em nós fisicamente ? 8 Nascido homem, não assu­
miu, de modo inseparável, a natureza mesma de nossa carne? E
np mistério do seu corpo, dado a nós em comunhão, não juntou
ele à natureza de sua carne sua divindade eterna? Logo, todos são
um só, porque no Cristo está o Pai e em nós o Cristo.
Quem nega que o Pai esteja fisicamente em Cristo, deve
primeiro negar que ele mesmo esteja fisicamente em Cristo e o
Cristo em si. É porque em Cristo está o Pai, e em nós o Cristo,
que nós scmps também feitos uma só coisa.
Se é verdade que Cristo assumiu a carne de nosso corpo, e que 337
o homem nascido de Maria é Cristo; se é verdade que nós reee-
bemcs em mistério a carne de seu corpo (e por isso mesmo sere­
mos um, pois o Pai está nele e ele em nós), cómo ousam asseverar
uma unidade puramente moral, quando pelo sacramento a proprieda­
de natural (da carne assumida por Cristo e por nós comida) é
mistério da perfeita unidade?
Não se deve falar das coisas de Deus segundo o espírito do
homem e do século. Nem numa pregação violenta e imprudente.
Da pureza das palavras divinas devemos excluir a perversidade de
um entendimento ímpio e estranho. Leiamos simplesmente o que
está escrito e entendamos o que lermos: é o modo de exercitar a
perfeita fé. Tudo que dissermos da realidade física de Cristo em
nós, ou foi dele mesmo que aprendemos, ou então é ímpio e estul­
to o que afirmamos. Mas ele mesmo diz: “Minha carne é ver­
dadeiramente comida e meu sangue verdadeiramente bebida. Quem

7 Jo 17,22.
® “Fisicamente”, isto é, não apenas afetivamente.
218 SANTO HILÁRIO DE POITIERS
come a minha carne e bebe o meu sangue, fica em mim e eu nele” 9.
Quanto à verdade da carne e do sangue, não há lugar para dúvida:
é verdadeiramente carne e verdadeiramente sangue, como vemos,
pela própria declaração do Senhor e per nossa fé em suas pala­
vras. Esta carne, uma vez comida, e este sangue, bebido, fazem
que sejamos também nós um em Cristo, e o Cristo em nós. Não
é isto verdade? Não o será para os que negam ser Jesus Cristo ver­
dadeiro Deus! Ele está, pois, em nós por sua carne e nós nele, e
ao mesmo tempo o que nós somos está com ele em Deus.
338 Jesus mesmo atesta quão realmente estejamos nele pelo mis­
tério da comunhão de sua carne e sangue, dizendo: “o mundo
já não me vê; vós, porém, me vereis, pois eu vivo e vós vivereis;
pois eu estou no Pai e vós em mim, e eu em vós” 10. Se tencionou
referir-se apenas a uma unidade de vontade, por que estabeleceu
esta graduação e ordem na consumação da unidade? Não foi se­
não para que se cresse que ele está em nós pelo mistério dos
sacramentos, como está no Pai pela natureza da sua divindade, e
nós nele, por sua natureza corporal. Ensina-se, portanto, que pelo
nosso Mediador se consuma a unidade perfeita, pois enquanto nós
permanecemos nele, ele permanece no Pai, e, sem deixar de permane­
cer no Pai, permanece também em nós, e assim nós subimos até
à unidade do Pai! Ele está no Pai fisicamente, segundo a origem
de sua eterna natividade, e nós estamos nele fisicamente, enquanto
também está em nós fisicamente.
Quão real seja esta unidade em nós, atesta-c, dizendo: “Quem co­
me a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim é eu ne­
le” 11. Só aquele no qual o Senhor estiver poderá estar nele. Ele
somente assume a carne daquele que o receber.
Já tinha o Senhor ensinado antes o mistério desta perfeita uni­
dade, ao dizer: “Assim como me enviou o Pai, que vive, e eu vivo
pelo Pai, o que comer a minha carne também viverá por mim” 12.
Ele vive, pois, pelo Pai e do mesmo modo como vive pelo Pai nós
vivemos por sua carne.
Toda comparação, realmente, se emprega para determinar a for­
ma que se quer dar a entender. Seu fim é fazer-nos atingir uma reali­
dade segundo o modelo proposto.
339a Esta é, pois, a causa de nossa vida: que, por sua carne, tenha­
mos o Cristo em nós. Nós somos corporais, mas destinados a viver
por ele segundo a mesma condição em que ele vive pelo Pai. Se,
portanto, vivemos por ele, fisicamente, segundo a carne, isto é, al­
cançando a natureza de sua carne mesma, como é que ele não
tem fisicamente o Pai, segundo o espírito, se é pelo Pai que ele
“SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE" 2X9
vive? Vive realmente pelo Pai; sua origem por geração não lhe con­
fere uma natureza diversa, e é pelo Pai que é o que é, nunca se
separando por qualquer dissemeíhança sobrevinda. Por sua geração
tem em si o Pai na força da mesma natureza.
Se quisemos recordar tudo isto foi porque os hereges, afirman­
do mentirosamente uma simples unidade moral entre o Pai e o Filho
usavam o exemplo de nossa própria unidade com Deus. Para eles,
era como se, unidos ao Filhó e ao Pai por mero vínculo de obséquio
e vontade religiosa, estivéssemos excluídos de qualquer comunhão
física pelo sacramento da came e do sangue. Ora, a verdade é que,
pela comunicação da própria honra do Filho e pela existência do
próprio Filho em nós por sua carne, e de nós nele, de modo corpo­
ral ;e inseparável, se tem de professar o mistério de uma unidade
real e verdadeira.
EUSÉBIO DE CESAREIA
(t c. de 340)

Sem condições para ser considerado um Padre da Igreja, Eusébio é importante,


todavia, por causa de sua obra, uma História eclesiástica que é documento de ines­
timável valor, sem o qual pouco saberíamos sobre os três primeiros séculos da His­
tória da Igreja.
Natural da Palestina, estudara em Cesaréia, na escola ali fundada anteriormente
por Orígenes. Desde 313 foi bispo da cidade, exercendo grande influência sobre
o imperador Constantino, quer por sua erudição, quer por sua posição equívoca
assumida na controvérsia ariana. Após o Concílio de Nicéia, manifestou-se do lado
dos semi-arianos. Caráter fraco, é considerado o tipo dos bispos de côrte e de
política.
Em edição bilíngue a Hist. e c l e s BAC, 349.

HISTORIA ECLESIÁSTICA
(liv. II, c. 23; P.G. 20, 208s)

O martírio de s. Pedro e s. Paulo


339b Estando Nero nc poder, realizou práticas ímpias e tomou as
armas contra a própria religião do Deus do universo. Descrever de
que malvadez foi capaz este homem não é tarefa da presente ebra,
pois muitos já transmitiram seus feitos em precisos relatos e poderá
talvez alguém agradar-se de aprender deles a grosseira demência des­
se estranho homem, que, levado por ela e sem a menor reflexão,
produziu a morte de inumeráveis pessoas e a tal extremo fez chegar
seu ardor homicida que não se deteve ante os entes mais próximos
e caros, fazendo perecer sua mãe, seus irmãos, sua esposa e muitíssi­
mos outros familiares, mortos de várias maneiras, como se fossem
adversários e inim igosl.
Mas deve-se saber que ao dito faltava acrescentar ter sido ele
o primeiro imperador que se mostrou inimigo da piedade para com
Deus.
Dele faz menção o latino Tertuliano, quando diz:
“Consultai vossas memórias. Nelas encontrareis que Nero foi
o primeiro a perseguir esta doutrina, sobretudo quando, após ter

1 Sobre essas vítimas de Neto tem-se o depoimento de Tácito (A n n a l 14, 3-8;


51-56; 15,48-63; etc.).
submetido o Oriente*, era cruel em Roma para com todos. Nós
nos gloriamos de ter alguém como ele por autor de nosso castigo, pois
quem o conhece pode entender que Nero nada condenaria que não
fosse um grande bem ” 23.
Ele, portanto, proclamado primeiro inimigo de Deus entre os
que mais o foram, levou sua exaltação ao ponto de fa2er degolar os 340
Apóstolos. Diz-se efetivamente que, sob seu império, Paulo foi deca­
pitado na mesma Roma, e Pedro foi crucificado. E desta referência
dá fé o título de Pedro e Paulo que predominou para os cemitérios
daquele lugar até o presente.
Não menos o confirma um varão chamado Caio4, o qual viveu
quando Zeferino era bispo de Roma. Disputando por escrito com
P rodo, dirigente da seita catafriga5, diz, acerca dos mesmos lugares
em que estão depositados os despojos sagrados dos mencionados
apóstolos, o que segue:
“Eu, pprém, posso mostrar-te os troféus dos apóstolos, pois, se
fores ao Vaticano 6 cu ao caminho de Õstia, encontrarás os troféus
dos que fundaram esta igreja”.
Que os dois sofreram martírio na mesma ocasião, afirma-o Dio-
nísio, bispo de Corinto, na correspondência travada com os romanos,
com os termos seguintes:
“Nisto também vós, por meio de semelhante admoestação, con­
jugastes as plantações de Pedro e Paulo, a dos romanos e a dos co­
rindos, porque, depois de plantarem ambos em nossa Corinto, ambos
nos instruíram e, depois de ensinarem também na Itália, no mesmo
lugar, sofreram os dois o martírio na mesma ocasião” 7.
Sirva igualmente isto para maior confirmação dos fatos narrados.

2 O “Oriente” da versão grega de Tertuliano saiu da frase “cum maxime Romae


orientem”, particípio referido ao cristianismo. O texto original fica, pois, alterado,
mas não a verdade histórica, já que. de fato, á vitória sobre os partos, que permi- \
tiu a conquista do Oriente, pode aatar-se de 64, o ano da perseguição neroniana.
Cf. A. V. D e l g a d o o.p., Eusébio de Cesarea. Historia Ecclesiastica, t. 1, BAC, 1973,
p. 114, n. 213.
3 Tertuliano, Apologelicum, 5,4 (escrito em 197).
4 Escritor de fins dò século I I e começos do I I I , autor dé um Dialogo contra
Prodo. Cf. Eusébio, Hist. Ecl., I I I , 28,1; V I, 20,3.
3 “Catafriga”, transliteração de x a x à Qpòyaç. Corresponde à seita Montanista,
da qual um dos dirigentes era P rodo (cf. Tertuliano, Adv. Vai., 5: “Proculus nos-
t e r . ..
6 Sobre Os trabalhos de exeavação no Vaticano, reladonados com o túmulo de
s. Pedro, ver M. G uarducci , Pietro ritrovato: il martírio, là tomba, le reliquie. Mi­
lão, 1969. A 26 de junho de 1968, Paulo VI anundava em alocução que, depois
de “pacientíssimos e cuidadosíssimos” estudos realizados sobre as relíquias achadas
nos túmulos do? apóstolos, se chegou à conclusão de que “as relíquias de s. Pedro
foram identificadas de uma maneira que podemos considerar convincente”: Acta
Apostol. Sedis 60 (1968 ) 464-465.
7 Eusébio adiante (IV , 23,9ss) d ta outras passagens da carta de Dionísio de
Corinto co papa Sotero (166-174). Esta passagem é predosa: confirma a visita de
s. Pedro a Corinto, insinuada per s. Paulo (IC or 1,12) e nos proporciona a notícia
explídta mais antiga de que Pedro e Paulo sofreram, ambos, o martírio na Itália,
“na mesma ocasião”. Cf. D elgado, ibid., n. 221.
222 EUSÉBIO DE CESARÉIA

HISTÓRIA ECLESIÁSTICA
(liv. III, c. 39; P.G. 20, 296-300)

“O s escritos de Papias 9

341 De Papias têm-se cinco livros, intitulados: “Explicações dos


discursos do Senhor”. Deles faz menção Ireneu, como dos únicos
que Papias tivesse escrito, dizendo textualmente: “Estas coisas Pa­
pias, também ele ouvinte de João, familiar de Policarpo, homem
antigo, as atesta por escrito em seu 4? livro, pois escreveu cinco” l .
É o que diz Ireneu. Entretanto, Papias, no prefácio de seus
livros, não se apresenta jamais como tendo ouvido ou visto os san­
tos apóstolos, mas como alguém que apenas recebeu de outros, que
os haviam conhecido, as coisas que se referem à fé. Eis suas pró­
prias palavras:
“E eu não hesitarei em acrescentar às minhas explicações, a
fim de garantir sua verdade, o que aprendi outrora dos antigos e re­
tive muito bem. Porque eu não sentia prazer junto aos palradores,
como o faz a maioria, mas junto aos que ensinam a verdade; não
me agradavam os que aludem a estranhos preceitos, mas os que recor­
dam os preceitos dados pelo Senhor à fé, oriundos da própria ver­
dade. Se por acaso eu encontrava alguém que tivesse estado na com­
panhia dos antigos, examinava os ditos dos antigos, a saber: o
que disseram André ou Pedro, Filipe, Tomé, Tiago, João, Mateus,
ou algum outro dos discípulos do Senhor; e o que dizem Aristião
e o antigo João, discípulos do Senhor. Eu não pensava que as coisas
que provêm dos livros me fossem tão úteis quanto as que provêm
de uma palavra viva e duradoura”.
342 Observe-se aqui como Papias menciona duas vezes o nome de
João; assinala o primeiro dos dois com Pedro, Tiago, Mateus e os
demais apóstolos, indicando assim claramente c evangelista; quan­
to ao segundo João, coloca-o com outros fora do número dos
apóstolos, após interromper sua enumeração; fá-lo precedido por
Aristião e o designa comumente como um antigo12. Assim, por estas
mesmas palavras se mestra a verdade da opinião segundo a qual
houve na Ásia dois homens ccm esse nome, como há em Éfeso dois
túmulos que ainda no presente são ditos os de João. É necessário
atender a isso, sendo verossímil que foi o segundo João (se não
se quer que tenha sido o primeiro) o que contemplou a revelação
transmitida sob o nome de Jo ã o 3.

1 Adv. kaer., V, 33.


2 Literalmente, a palavra "presbíteros” pode ser tomada na acepção de "antigo”
cu na da função sacerdotal (padre, bispo). Os dois sentidos seriam possíveis naquela
época, embora o primeiro seja mais provável: cf. B. de Solages, Critique des Évangiles
et méthode bistorique, Toulouse, 1972, 61-72.
•5 Eusébio trai aqui sua posição refratária à aceitação do Apocalipse.
HISTÓRIA ECLESIÁSTICA 223

Papias, de quem falamos agora, reconhece ter recebido as palavras


dòs apóstolos por meio dos que os freqüentaram. De outro lado,
diz ter sido pessoalmente ouvinte de Aristião e de João, o antigo, e
na verdade alude várias vezes a seus nomes nos seus livros, a fim
de relatar o que ensinaram.
Não nos pareceu inútil referir tais coisas, sendo conveniente 343
acrescentar às palavras de Papias, aqui transmitidas, outras onde
narra fatos extraordinários e ainda algumas coisas que lhe teriam
chegado por via de tradição. Ele já lembrou, no que precede,
que o apóstolo Filipe estagiara em Hierápolis com suas filhas. Deve­
mos agora mencionar que Papias, então vivo nesses tempos, diz ter
aprendido uma história maravilhosa das filhas de Filipe. Conta a
ressurreição de um morto, ocorrida em seu tempo, e ainda outro fato
extraordinário, relativo a Justo -r— cognominado Barsabás — o qual
teria bebido veneno mortífero sem nada sofrer, por mercê do Senhor.
Esse Justo é o mesmo que os apóstolos, após a Ascensão do
Salvador, colocaram com Matias, orando para que a sorte comple­
tasse seu número, dando substituição ao traidor Judas. Di-lo o livro
dos Atos com as seguintes palavras: “Eles colocaram dois ho­
mens, José, chamado Barsabás, apelidado Justo, e Matias, e oraram
dizendo. . . ” 4
O mesmo Papias relata ainda outras coisas, recebidas por tra- 344
dição oral, certas parábolas estranhas do Salvador, ensinamentos bi­
zarros e mitos da mesma espécie. Diz, por exemplo, que haverá mil
anos após a ressurreição dos mortos, quando então o reino de Cristo
terá lugar corporalmente sobre esta terra. Penso que supõe isso
por má compreensão dos escritos apostólicos, não entendendo o que
disseram em figuras e de modo simbólico. Parece, com efeito, ter sido
pessoa de espírito acanhado; é o que se depreende de seus livros.*
Contudo, induzia grande número de escritores eclesiásticos a adotarem
as mesmas opiniões, apoiados em sua antigüidade, como se deu com
Ireneu e outros que pensavam assim.
Em sua obra pessoal, transmite igualmente outras explicações dos
discursos do Senhor, devidas a Aristião, que mencionamos acima,
e tradições de João, o antigo. A elas remetemos os que desejarem
conhecê-los. Aqui acrescentamos às palavras já reportadas a tradição
que ele expõe nestes termos, a respeito de Marcos, o autor do Evan­
gelho:
“E eis o que dizia o antigo: Marcos, intérprete de Pe- 345
dro, escreveu com exatidão, mas sem ordem, tudo aquilo de que
se lembrava a respeito das palavras e atos do Senhcr. Pois embora
não tivesse ouvido nem acompanhado o Senhor, mais tarde, como
disse, acompanhou a Pedro. Este dava seus ensinamentos conforme
as necessidades, mas sem fazer uma síntese das palavras do Senhor.

4 At 1,23.
224 EUSÉBIO DE CESARÉIA
Assim, Marcos não errou escrevendo conforme se lembrava. Seu pro­
pósito, com efeito, não era senão o de nada deixar de lado do
que tinha ouvido, e nada falsear naquilo que reportava”.
Eis o que Papias conta de Marcos. Sobre Mateus, diz: “Mateus
coligiu, pois, em língua hebraica as palavras (os logia) e cada um
os interpretou como foi capaz”.
O mesmo Papias se serve de testemunhos tirados da 1* Epístola
de João e P de Pedro. Expõe também outra história a respeito
da mulher acusada de muitos pecàdos diante do Senhor, a que se
alude no Evangelho segundo os hebreus, j
Era necessário que acrescentássemos isto ao que havia sido dito.
SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
(t 3M )

Bispo de Jerusalém e valoroso guardião da fé professada no Concílio de Nicéia


sobre a consubstancialidade do Verbo com o Pai. Quando ainda presbítero, foi autor
das Catequeses mistagógicas, sermões de grande importância, pronunciados na igreja
do Santo Sepulcro, durante a Quaresma e Semana de Páscoa, sobre os Sacramentos
(batismo, confirmação, eucaristia) e sobre a liturgia de Jerusalém. Esteve presente
ao I I Concílio Ecumênico, realizado em Constantinopla em 381.
Em edição bilíngue: S.C. 126.

IV CATEQUESE MISTAGOGICA

O Corpo e o Sangue de Cristo


(P.G . 33, 1097-1105; S.C. 126)

Quarta catequese mistagógica e leitura da Carta aos coríntios: 346


"Quanto a mim, recebi do Senhor o que também vos transmiti” etc.
Esta doutrina de são Paulo é bastante para produzir plena
certeza sobre os divinos mistérios pelos quais obtendes a dignidade
de vos tornardes concorpóreos e consangüíneos de Cristo. Há pouco,
realmente, proclamava o Apóstolo, na leitura: “Na noite em que o
Senhor Jesus Cristo foi entregue, tomou o pão e dando graças» q
partiu e deu a seus discípulos, dizendo: Tomai e comei, este é à
meu corpo. E tomando o cálice, e dando graças, disse: Tomai e be­
bei, este é o meu sangue” 1.
Quando, pois, ele mesmo declarou do pão: “isto é o meu
corpo”, quem ousará duvidar?
E quando ele asseverou categoricamente: “isto é o meu san­
gue”, quem ainda terá dúvida, dizendo que não é?
Outrora, em Caná da Galiléia, por sua vontade mudara a
água em vinho, e não seria também digno de fé, ao mudar o vinho
em sangue? Convidado para núpcias corporais, realizou estupendo
milagre. Não devemos agora confessar, com muito mais razão, que
ele deu em gozo acs amigos do esposo 2 o seu próprio corpo e
sangue?
É, portanto, com toda a segurança que participamos de certo
modo do corpo e sangue de Cristo: em figura de pão é deveras

lCor 11,23s.
M t 9,15 8

8 - Antologia dos santos padres


226 SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
o corpo que te é dado, e em figura de vinho o sangue, para que,
participando do corpo e sangue de Cristo, te tornes concorpóreo
e consangüíneo dele. Passamos a ser assim cristóforos, isto é, por­
tadores de Cristo, cujo corpo e sangue se difundem por nossos
membros. £ então, como diz são Pedro, participamos da natureza
divina3.
347 Outrora> Cristo disputando com os judeus dizia: “Se não co­
merdes a minha carne e não beberdes o meu sangue, não tereis a
vida em vós” 4.
Eles não entenderam espiritualmente essas palavras e, escanda­
lizados, voltaram-lhe as costas, pensando que os incitava à man-
ducação carnal.
Também no Antigo Testamento, havia os pães de proposição5;
sendo, porém, coisas da antiga aliança, com ela terminaram. Mas
no Novo Testamento há um pão celeste e um cálice de salvação,
que santificam o corpo e a alma, correspondendo o pão ao corpo
e o Verbo à alma.
Não trates, por isto, como simples pão e vinho a este pão e
vinho, pois são respectivamente corpo e sangue de Cristo, con­
soante a afirmação do Senhor. E ainda que os sentidos não o
possam sugerir, a fé no-lo deve confirmar com segurança. Não julgues
a coisa pelo paladar. Antes, pela fé enche-te de confiança, não du­
vidando de que foste julgado digno do corpo e sangue de Cristo.
O bem-aventurado Davi te fala, também ele, acerca do poder
deste mistério, quando diz: “Preparaste diante de mim uma mesa
contra aqueles que me oprimem” 6. O que deseja dizer é o se­
guinte: “Antes da tua vinda os demônios haviam preparado para
os homens uma mesa contaminada, infecta e dotada de poder dia­
bólico, mas depois que vieste, Senhor, preparaste diante de mim
outra mesa”.
Quando o homem diz a Deus: — “preparaste uma mesa
diante de mim” — que pode significar senão a mesa mística por
Deus preparada, em oposição à dos demônios? Em resumo, é esta
a; verdade:. — aquela mesa; tinha comunhão com os demônios, esta,
porém, tein comunhão com o Deus verdadeiro.
“Ungiste com óleo minha cabeça” 7. Ele ungiu tua cabeça com
óleo na fronte, por um sinal que gravou em ti, a fim de que te
tornes a marca do sinete, coisa santa de Deus.
“E quão precioso é o teu cálice que me embriaga! ” 6 Ouves aqui
falar daquele cálice que Jesus tomou nas mães, dando graças e di-
QUINTA CATEQUESE MISTAGÓGICA 227

zendc: “Este é o meu sangue que será derramado por muitos em


remissão dos pecados” 9.
Por isso Salomão exprimindo a mesma graça diz, no Ecle- 348
siastes: “Vem, come com alegria o teu pão”, o pão espiritual. Esse
“vem” chama com a voz da vocação que salva e dá a felicidade;
“e bebe o teu vinho de bom grado”: o vinho espiritual. “E o óleo
se derrama sobre a tua cabeça (vês aqui como até o crisma místico
ele designa?) “e em todo o tempo sejam cândidas as tuas vesti­
mentas, porque tuas obras foram aceitas por Deus” 10. Antes de te
achegares, eram tuas obras “vaidade das vaidades” 11. Mas, depois
que depuseste as velhas vestimentas e te revestiste das que são
espiritualmente brancas importa que permaneças sempre vestido de
branco. Não queremos com isso dizer que te seja necessário estar
sempre trajado com vestes alvas; mas com as verdadeiramente
brancas e esplêndidas, as vestes espirituais, para dizeres com o bem-
-aventurado Isaías: “Exulta, minha alma, no Senhor porque ele me
vestiu com as vestes da salvação e me envolveu com uma túnica
de justiça” 12.
Aprendendo estas coisas, compenetrado de que aquilo que pare­
ce pão não é pão, apesar de sensível ao paladar, mas corpo de
Cristo, e de que aquilo que parece vinho, não é vinho, embora o
pareça ao gosto, mas sangue de Cristo; e certo, ainda, de que foi
sobre isso que Davi profetizou antigamente nos salmos: “o pão
confirma o coração do homem para que com o óleo brilhe de ale­
gria a sua face” 13, confirma, pois, teu coração, recebendo como
espiritual esse pão, e faze brilhar a face de tua alma. Oxalá que
tendo descoberto essa face em consciência pura, e contemplando
como em espelho a glória do Senhor, possas caminhar de glória
em glória no Cristo Jesus, nosso Senhor, a quem seja dada tocTa*
a honra e poder e glória, pelos séculos dos séculos. Amém.

V CATEQUESE M ISTAGÓGICA

A celebração eucarística
(P.G. 33, 1109-1128; S.C. 126)

Quinta catequese mistagógica, e léitura da Carta católica de 349


Pedro: “Renunciando, pois, a toda malícia, falsidade e maledicência”
228 SÃO CHULO DE JERUSALÉM
Nas reuniões precedentes pudestes ouvir, por um dom que de­
vemos à filantropia de Deus, muita coisa sobre o batismo, a crisma
e a comunhão do corpo e sangue de Cristo. Agora, precisamos ir
adiante e coroar o edifício de vosso proveito espiritual.
Vistes, com efeito, a ação do diácono derramando água nas
mãos do sacerdote e dos presbíteros que rodeiam o altar de Deus.
Não era para'asseio corporal que lhes dava água. Não se trata disto.
Nem, aliás, teríamos entrado na igreja sem antes nos lavarmos.
Essa ablução é, na verdade, um símbolo: significa que deveis puri­
ficar-vos de todos cs pecados e prevaricações. Como as mãos repre­
sentam a ação, sua ablução indica claramente a pureza e inocência dos
nossos atos. Não ouviste o bem-aventurado Davi iniciar-te precisa­
mente nessa verdade, ao dizer: “Lavarei entre os inocentes minhas
mãos e circundarei, Senhor, o vosso altar” 2? Assim, a loção das
mãos é feita para significar a inculpabilidade.
350 Depois, clama o diácono: “Recebei-vos uns aos outros e oscule­
mo-nos todos mutuamente”. Não entendais este ósculo como os que
os amigos trocam entre si nas ruas. Não é assim este ósculo. Ele
une as almas entre si, prometendo-lhes o perdão recíproco das in­
júrias. Este ósculo é sinal exterior de que as almas se fundem e o
rancor é banido. Por isto disse Cristo: “Quando levares tua oferta
ao altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra
ti, deixa sobre o altar a tua oferta e vai primeiro reconciliar-te com
ele; depois vem e faze tua oferta” 3. O ósculo é, deste modo, recon­
ciliação e por isso é santo, como em certa passagem o proclamava
são Paulo: “Saudai-vos uns aos outros com ósculo santo” 4, e Pedro:
“Saudai-vos com ósculo de caridade” 5.
351 Em seguida, exclama o sacerdote: “Corações para o alto!”
Verdadeiramente, naquela hora, a mais tremenda de todas, é pre­
ciso ter o coração voltado para cima, para Deus, e não para baixo,
para a terra e as coisas deste mundo. Equivale isso a ordenar a todos
que nesse instante larguem as preocupações da vida, os cuidados do­
mésticos, e tenham o coração no céu junto de Deus misericordioso.
Respondeis então: “N osso coração está em D eu s”, dando nesta con­
fissão vosso assentimento. Ninguém, portanto, lá esteja que, depois
de ter pronunciado “nosso coração está em D eus”, ainda continue
com o espírito preso às solicitudes da vida. Porque devemos ter
sempre a lembrança de Deus e se isso é impossível à nossa fraqueza,
precisamos desejá-lo sobretudo nessa hora.
Em seguida o sacerdote diz: “Demos graças ao Senhor”. Na
verdade, é preciso agradecer a Deus o ter-nos chamado, apesar de
indignos, a tão grande graça. Sendo inimigos, Deus nos reconciliou

2 SI 25,6.
3 M t 5,23s.
4 Rm 16,16; lCor 16,20.
3 lP d 5,14.
QUINTA CATEQUESE MISTAGÓGICA 229

consigo e nos fez dignos do Espírito da filiação. A esse convite, res­


pondeis: “É digno e justo”, isto é, com nossa ação de graças prati­
camos um ato digno e justo. Quanto a Deus, opera ele uma ação
que não é apenas justa, pois está acima do justo, beneficiando-nos
e tornando-nos capazes de tão grandes bens.
Depois, fazemos menção do céu, da terra e do mar, do sol e da
lua, dos astros e de toda a criação racional e irracional, visível e
invisível, dos anjos, arcanjos, virtudes, dominações, dos principados e
potestades, dos tronos e querubins de muitas faces, dizendo como
Davi: “Glorificai o Senhor com igo” 6. Mencionamos também os se­
rafins que Isaías contemplou, no Espírito Santo, de pé, em volta do
trono de Deus, escondendo o rosto com duas asas, cs pés com outras
duas, e com mais duas esvoaçando e dizendo: “Santo, Santo, Santo
é o Senhor dos exércitos” 7. É, pois, a fim de fazer parte dos exércitos
celestes no seu canto de louvor, que nós pronunciamos aqui esta do-
xclogia, recebida dos serafins.
Após nos termos santificado por estes hinos espirituais, supli- 352
camos a D eus, Amigo dos homens, que envie o Espírito Santo so­
bre as oblatas postas nc altar, e faça o pão corpo de Cristo, o
vinho sangue de Cristo. Pois, tudo que o Espírito Santo atinge fica
santificado e transmudado.
Depois de consumado o sacrifício espiritual, o culto incruento,
rogamos a D eus, sobre aquela hóstia de propiciação, em favor da
paz geral das igrejas, da estabilidade do mundo, dos reis, dos exér­
citos e seus aliados, pelos enfermos, pelos oprimidos e em geral por
todos os necessitados, pelos quais suplicamos e oferecemos este sa­
crifício.
Em seguida, mencionamos os que já dormiram: prim eiro,-os
patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, para que Deus em virtude'
de suas preces e intercessões, receba nossa oração. Depois, rezamos
pelos nossos santos pais e bispos falecidos, e em geral por todos
os que já dormiram antes de nós. Acreditamos que esta oração apro­
veitará sumamente às almas pelas quais é feita, enquanto repousa
sobre o altar a santa e temível vítima.
Quero, neste ponto, convencer-vos por um exemplo. Sei que 353
muitos dizem: “Que aproveita à alma que passou deste mundo,
em pecado ou sem ele, sé a recordo na oferenda?” Se um rei
porventura, banir cidadães subversivos, mas depois os súditos fiéis
tecem uma coroa e a oferecem ao rei pelos que estão cumprindo
pena, não é certo que lhes concederá o perdão do castigo? Da mes­
ma forma, nós, oferecendo a Deus preces pelos mortos, sejam
ou não pecadores, oferecemos, não coroa tecida por nossas mãos, mas
Cristo santificado por nossos pecados; assim, tornamos propício o
Deus amigo dos homens aos pecados nossos e deles.
6 SI 33,4.
7 Is 6,2-3.
230 SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
354 Em seguida, recitamos aquela prece que o Senhor ensinou aos
discípulos, e na qual, de consciência pura, damos a Deus o título
de Pai, dizendo: “Pai nosso, que estais no céu”. Ó supremo amor
de Deus pelos homens! Aos que o abandonaram com repulsa e caí­
ram na maior malícia, foi conferido o dom dessa anistia e participa­
ção da graça, dom tão grande que permite invocar a Deus como Pai!
“Pai nosso, que estás nos céus”. uCéus”, aqui, podem ser também
aqueles que trazem a imagem daquele que é celeste e nos quais Deus
habita e transita.
“ Santificado seja o vosso nome”. O nome de Deus é santo por
natureza, quer o digamos, quer não. Como, porém, ele é às vezes
profanado na pessoa dos pecadores, consoante a palavra: “por causa de
vós o meu nome é blasfemado entre as nações” 8 — então rezamos
para que em nós seja santificado o nome de Deus. Não que de não
santo passe a santo, mas porque se torna santo em nós quando,
santificados, praticamos ações dignas dessa santificação.
“Venha a nós o vosso reino”. JÊ o privilégio da alma pura
dizer com franqueza: “Venha a nós o vosso reino”. Só o que es­
cutar são Paulo quando diz: “não reine o pecado no vosso corpo
m ortal ” 9 e se apresenta puro nas ações, pensamentos e palavras,
esse dirá: “Venha a nós o vosso reino”.
“Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu”. Os
divinos e bem-aventurados anjos de Deus fazem a vontade de Deus,
como dizia Davi salmodiando: “Bendizei ao Senhor, todos os anjos,
poderosos pela força, que fazeis a sua vontade” 19. Da mesma for­
ma, tu que oras, é como se dissesses: “Como nos anjos é feita a
vossa vontade, assim também sobre a terra, em mim, ela se faça,
Senhor! ”
355 “O nosso pão substancial dai-ncs hoje”. O pão comum que
comemos não é “substancial”. Só este pão santo é substancial, isto
é, ordenado para ser substância da alma. Este pão não desce ao
ventre para ser expelido11, mas é distribuído à tua natureza inteira,
servindo à alma e ao corpo. A palavra “hoje” equivale a “cada dia”,
como na expressão de são Paulo: “enquanto podemos dizer: hoje” 12.
“Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos aos
que nos têm ofendido”. Temos, com efeito, muitos pecados; caímos
por palavras e cogitações, e praticamos inúmeras ações dignas de
condenação. E, "se dissermos que não temos pecado, mentimos”, como
diz João 13. Instituímos um pacto com Deus, rogando que nos perdoe
as faltas assim como perdoamos ao próximo as suas ofensas. Pen­
semos, pois, no que recebemos, em troca do que damos e, sem

8 Is 52,3.
9 Rm 6,12.
10 SI 102,20.
11 Mt 15,17.
12 Hb 3,13.
QUINTA CATEQUESE MISTAGÓGICA 231

esperar nem adiar, perdoemo-nos uns aos outros. As ofensas que


sofremos são pequenas, leves e de fácil solução. Mas as nossas contra
Deus são grandes e têm necessidade de sua misericórdia. Cuidado,
não venhas, por causa de pequenas e leves faltas cometidas contra
ti, impedir o perdão divino de teus muitos e graves pecados.
E “não nos deixeis cair em tentação”. Ensina o Senhor a
pedir que de todo não sejamos tentados? Se assim é, como então
se fala em outro lugar do “homem não tentado, não aprovado” 14,
e se diz: “Considerai, irmãos, motivo de grande alegria ver-vos
envolvidos em todo tipo de provações” 1516? Mas entrar em tentação
não poderá equivaler a ser submerso nela? A tentação, de fato, asse­
melha-se a uma torrente de travessia perigosa. Os que não se deixam
afogar nas tentações são como os bons nadadores que atravessam sem
ser arrastados; os que não são assim, entram e são tragados. Foi isto
que aconteceu a Judas, para usar de um exemplo: entrando na
tentação da avareza, não nadou, afundou e se afogou em corpo e
espírito. Pedro também entrou em tentação, na da negação, mas não
foi a fundo e, nadando valentemente, conseguiu ser libertado.
Guve ainda em outra parte, o ccro dos santos invencidos; ren­
dem graças a Deus porque os tirou da tentação: “Provastes-nos,
Deus, experimentastes-nos como a prata ao fogo, conduzistes-nos até
às armadilhas, pusestes aflições sobre as nossas cabeças, caminhamos
pelo fogo e a água, e levastes-nos ao refrigério” tó. Este alívio con­
siste na liberação da tentação.
“Mas livrai-nos do Maligno”; Se a expressão: “não nos deixeis
cair em tentação” significasse absoluta imunidade à tentação, não
se diria agora: “mas livrai-nos do Maligno”. Este Maligno é nosso
adversário, o demônio, do qual queremos ser livrados. Depois de
acabada a oração, dizes: “Amém”. Com esta palavra, que significa*
“assim seja”, selas e ratificas o que está contido na oração que o
próprio Deus ensinou.
Terminando, diz o sacerdote: “Para os santos as coisas san- 356
tas”. Coisas santas são as que estão depositadas sobre o altar e
receberam a descida dc Espírito Santo. Santos sois vós, feitos dignos
do Espírito Santo. Aos santos convêm as coisas santas. Dizeis,
então: “Um só é o Santo, um o Senhor, Jesus Cristo”. Na verdade,
ele é o único santo por natureza; nós o somos, não por natureza,
mas por participação, pelas obras e pela oração.
Ouvis, em seguida, a voz do cantor que vos convida por uma
divina melodia à comunhão dos santos mistérios, dizendo: “Provai
e vede como é saboroso o Senhor” 17. Não ireis, porém, pensar no
paladar corporal, mas na fé que não hesita. Porque se trata de sabo-

14 Edo 34,9.
15 Tg 1,2.
16 SI 65,10-12.
17 SI 30,9.
232 SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
rear não o pão e o vinho, mas o corpo e o sangue de Cristo dos
quais eles são o sinal.
357 Ao te aproximares, não o faças com as mãos estendidas nem
com cs dedos separados. Faze com a esquerda como um trono
no qual se assente a direita, que vai conter o Rei. E, no côncavo da
palma, recebe> o corpo de Cristo, respondendo: “Amém”. Com se­
gurança, então, depois de santificados teus olhos pelo contato do
santo corpo, recebe-o, cuidando para nada perderes. Porque senão,
seria como se perdesses um de teus próprios membros. Dize-me,
com efeito: se alguém te oferecesse palhetas de ouro, não as tomarias
com cuidado, velando para nada perderes em prejuízo teu? Deixarás,
então, de te esforçares para que nada tombe do que é muito mais
precioso que o ouro e as pedras preciosas? 18
Depois de teres comungado do corpo de Cristo, achega-te tam­
bém ao cálice de seu sangue. Não estendas as mãos, mas, inclinado,
em postura de adoração e de respeito, dizendo “amém”, santifica-te,
tomando também dò sangue de Cristo. E enquanto os teus lábios
estiverem ainda umedecidcs, toca com as mãos o sangue e com
ele santifica cs olhos, a fronte e os outros sentidos. Depois, aguar­
dando a oração, dá graças a Deus que te fez digno de tão grandes
mistérios.
Conservai invioláveis estas tradições, guardai-as sem falha. Não
vos aparteis da comunidade, não vos contamineis pelo pecado para
não vos privardes dos mistérios sagrados e espirituais. Que o Deus
de paz vos santifique totalmente e que o vosso corpo, alma e espírito
sejam guardados íntegros para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo,
a quem a glória, honra e poder, com o Pai e o Espírito Santo, agora
e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

18 A recomendação de velar para que nada se perca das espécies eucarísticas se


acha também em outros documentos antigos: na Tradição apostólica, n? 32; em Tertu-
liano, De corona, I II , 4; em Origines, ln Exodum Hom. X III, 3; em são Crisóstomo,
De hoc quod non indigne accedendum sit ad divina mysteria; em são Jerônimo, Tract.
de Psalmo 147.
SÃO BASÍLIO
(c. 329-379)

De nobre e santa família da Capadócia. Entre outros parentes, seus irmãos Gre-
gório (de Nissa) e Pedro são venerados como santos. Sua avó Macrina, discípula de
são Gregório Taumaturgo, exerceu decisiva influência sobre súa formação. Frequentan­
do as escolas superiores de Cesaréia, Constantinopla e Atenas, tomou-se íntimo amigo
de são Gregório Nazianzeno. Brilhante carreira se lhe abria à frente, mas preferiu
tomar-se monge. Depois, ordenado sacerdote, dedicou-se à cura de almas e rigorosa
ascese. Em 370 foi chamado ao episcopado, na sede de Cesaréia, e como metropolita
da província da Capadóda. -
Nà atividade pastoral criou um grande hospital para indigentes, e foi assim um dos
mais antigos organizadores dessa forma de caridade cristã.
Combateu o arianismo e o apolinarismo, resistindo ostensivamente ao imperador
Valente, ariano.
Conhecido como “o romano entre os gregos”, pela precisão e clareza de sua
doutrina, distingiihi-se pelo que escreveu sobre a Santíssima Trindade, sendo sua
a fórmula -três hipóstases e uma essência”. E o autor de um Comentário ao Hexaé-
meron ( = obra dos 6 dias, Gênesis), de Sermões e de duas Regras monásticas.
Algumas obras em edição bilíngüe, na col. SC., 17, 17 bis, 26, 160; Lettres,
tr. dè Y; Courtonhe, collection des Universités de France, 3 tomos, Paris, 1966, etc.

PROFISSÃO D E FÉ - -
(P.G . 31, 675-692)*

Quando conheci, por graça do bom Deus, a obrigação que me 358


impunha vossa piedade, aliás bem conforme ao amor de Deus no
Cristo, dé yos fazer por escrito uma profissão da santa fé, inicial­
mente pensei em minha pequenez e fraqueza, hesitando em corres­
ponder a vosso pedido. Mas lembrando-me das palavras do Apósto­
lo: “sustentai-vos mutuamente na caridade * 1 e: “é crendo no
coração que se obtém a justiça e professando em palavras que se
obtém a salvação” 2, julguei perigoso resistir-vos e calar minha
profissão de fé. Pus então minha confiança em Deus, segundo a
palavra: “não que sejamos capazes por nós mesmos de conceber
alguma coisa ccm o procedente de nós, mas nossa capacidade vem

* Uma tradução francesa foi publicada >r L. Lèbe osb, em St. Basile. Les règles
mordes ei portrdt du chrétien, ed. Mare >us, 1969, 3847.
1 Cf. 4,2.
2 Rm 10,10.
234 SÃO BASÍLIO
de Deus” \ Ele nos fez capazes — e por causa de vós — de ser­
mos ministros da Nova Aliança, “não da letra, mas do espírito” 4.
Ora, bem o sabeis, é próprio do ministro guardar íntegro e in­
tato o depósito que lhe confiou o bom Mestre, em favor de seus
companheiros. Per conseguinte, o que aprendi da Escritura inspirada
devo igualmente comunicar-vos, procurando atender a vossas necessi­
dades e agradar a Deus. Entretanto, se o próprio Senhor, em quem
o Pai pós seu agrado5, em quem estão escondidos todos os tesouros
da sabedoria e da ciência ó, e que, após ter recebido do Pai todo poder
e julgamento7, afirma: “Ele me prescreveu o que devo dizer e ensi­
nar , e também: “o Espírito não fala de si mesmo, mas diz o que
ouviu” 9, com muito mais razão devo eu pensar e agir em nome de
nosso Senhor Jesus Cristo.
Durante longo tempo em que precisei combater as heresias, à
medida que brotavam — o que fazia seguindo o exemplo de meus
predecessores — achei preferível adaptar-me ao desvio provocado pelo
demônio e usar, para reprimir ou confundir as blasfêmias proferi­
das, expressões correspondentes a elas, ora umas, ora outras, segun­
do as necessidades dos fracos, e às vezes mesmo expressões que
não eram bíblicas, embora não estranhas ao sentido correto das
Escrituras.
Mas agora, para atingir nosso objetivo presente, o meu e o
vosso, achei conveniente ficar na simplicidade da pura fé, e dizer-
-ves — cedendo à vossa exigência no Cristo — o que aprendi da
Escritura divinamente inspirada. Evitarei, pois, termos e palavras que
não estiverem literalmente na Escritura, ainda que exprimissem
o mesmo pensamento dela. O que for alheio à letra e ainda contiver
um sentido diverso do que se acha na pregação des santos, afastare­
mos totalmente como estranho e incompatível com a sadia fé.
359 A fé é, pois, um assentimento dado sem reserva ao que se ouve
dizer, na convicção de ser verdadeiro tudo o que foi proclamado na
graça de Cristo.
Abraão a possuía, segundo está atestado: “ele não hesitou em
sua fé, mas manteve-se firme nela. e deu graças a Deus, persuadido
de que é poderoso para cumprir o que prom eteu” 10. Se pois o Se­
nhor é digno de fé em suas palavras n , se todos os mandamentos
são seguros, confirmados nos séculos dos séculos, realizados na ver­
dade e na justiça12, é manifestamente uma fraqueza da fé e prova
PROFISSÃO DE FÉ 235

de orgulho rejeitar qualquer ponto do que está escrito, ou introdu­


zir o que não está. Com efeito, nosso Senhcr disse: “minhas ove­
lhas conhecem minha voz” 13, e o disse depois de ter afirmado: “elas
não seguem ao estranho, mas dele fogem pois não conhecem a voz
do estranho”. E o Apóstolo, estabelecendo confronto com as coisas
humanas, proíbe o acréscimo às Escrituras inspiradas, dizendo: “quan­
do um testamento está em forma boa e conveniente, ninguém deve
anuiá-lo ou acrescentar-lhe algo” 14.
Resolvemos, pois, evitar sempre, e sobretudo agora, qualquer ex­
pressão ou pensamento alheios ao ensino do Senhor, porque nosso
objetivo, o vosso e o meu, difere muito dessas proposições sobre as
quais fui levado a falar ora de um modo, ora de outro. O que
importava então, com efeito, era refutar uma heresia ou anular os
artifícios do demônio, ao passo que no momento se trata apenas de
confessar a verdadeira fé e pô-la em evidência. Não podemos então,
falar agora nos mesmos termos. Ninguém se utilizaria dos mesmos
meios para cultivar o solo e para ir à guerra, uns sendo instrumen­
tos de trabalho e. outros armas de combate. Ninguém usaria a mesma
linguagem, com a qual refuta os adversários, para a exortação na sã
doutrina. Um é o modo de persuadir, outro o de exortar.; uma a
simplicidade de professar em paz e piedade, outra a dificuldade de
resistir a uma doutrina enganadora.
Assim, usando de discernimento, empregaremos as expressões
úteis à manutenção e edificação da fé.

Mas antes de vir a minha profissão de fé, será preciso deixar


bem claro não me ser possível exprimir pela palavra nem captar
pela inteligência a grandeza e a glória de Deus, nem designá-lá"op
concebê-la numa só palavra ou num só pensamento.
É por uma multidão de palavras, adaptadas a nosso uso, que
a Escritura inspirada mal a esboça, como através de um espelho,
para aqueles que têm um coração puro. O conhecimento face a face
e perfeito será concedido, conforme a promessa, apenas no século
vindouro para os que forem dignos. No tempo presente, seja Paulo
ou seja Pedro, dizemos que ele vê realmente o que vê e não se
engana nem se ilude, mas vê através de um espelho e confusamente.
Aceitando com gratidão o conhecimento imperfeito, aguarda na ale­
gria o conhecimento perfeito. O apóstolo Paulo atesta isso quando
introduz sua afirmação por estas palavras: “quando eu era menino,
( recém-instruído com os primeiros elementos dos oráculos divinos)
falava cçmo menino, pensava como menino; agora que sou homem
(e me apresso a chegar à estatura da plenitude de Cristo) libertei-me
236 SÃO BASÍLIO
das coisas de minha meninice * 15 e tais foram meu progresso e meu
avanço na ciência das coisas de Deus, que minha instrução no culto
judaico corresponde à atividade intelectual do menino, enquanto meu
conhecimento nc Evangelho convém antes ao homem adulto.
Da mesma forma, se ao conhecimento que será revelado no
século vindouro aos dignos se compara o que agora se julga ser o
conhecimento perfeito, este parecerá curto e indistinto e tão mais
distante da caridade futura quanto é distante da visão face a face
a que se tem através do espelho.
Não será menor a superioridade do conhecimento futuro em
relação ao desta vida: demonstram-no os discípulos do Senhor, com
Paulo e João. Quando eles pareceram dignos de ser chamados pe­
lo Senhor para viver em sua companhia, ser per ele enviados em
missão e receber os carismas espirituais, então aconteceu que depois
de lhe ter dito: a a vós é dado conhecer os mistérios do reinò dos
céus” 15, depois de lhes ter sido outorgado tal conhecimento daquilo
que a outros era ocultado, ainda ao aproximar-se a paixão, ouviram
do Senhor as palavras: “tenho muitas coisas a dizer-vos, mas não as
podeis suportar agora” 17.
Resulta deste e de outros semelhantes textos que não se ter­
mina jamais de perscrutar a Escritura inspirada e é impossível pene­
trar nes mistérios divinos, ficando sempre à frente um progresso
a se fazer, de sorte que a perfeição dista de nós até o momento
em que “o perfeito aparece, quando o imperfeito for abolido” 18.
361 Eis porque não nos podemos contentar com uma só palavra para
designar simultaneamente todas as glórias de Deus, e nenhuma palavra
pode ser empregada sem risco, em seu sentido integral. Assim, se
alguém diz: “Deus”, não está indicando o “Pai”, e se diz “P ai”, ain­
da não está indicando: “Criador”, precisando acrescentar depois:
“Bondade”, “Sabedoria”, “Poder” e todos os demais atributos men­
cionados na Sagrada Escritura. Prosseguindo: a palavra “P ai”, se a
empregamos para Deus absolutamente no mesmo sentido que tem
entre nós, estaremos faltando ao respeito, pois ela envolve a paixão,
o sêmen, a ignorância, a fraqueza e todas as outras coisas desse
gênero. O mesmo se dirá da palavra “Criador” : nós, para criarmos
alguma coisa, precisamos de tempo, de materiais, de instrumentos,
de auxílios, e tudo isso é o que temos de expurgar ao máximo da
idéia de Deus.
Se tedas as inteligências se reunissem para compreendê-lo e todas
as línguas se juntassem para proclamá-lo, ainda assim nada se con­
seguiria de condigno. Salomão, o sábio, expõe esse pensamento com
PROFISSÃO DE FÉ 237

toda clareza: “eu disse: tornar-me-ei sábio; .eis que a sabedoria se


retirou longe de mim, mais ainda do que já estava” 19, não que
fugisse, mas porque ela aparece mais incompreensível aos qué Deus
faz conhecê-la melhor. A Sagrada Escritura deve, assim, servir-se de
vários termos ou expressões para nos dar uma idéia, ao menos par­
cial e confusa da glória de Deus.

Nós cremes, pois, e confessamos nossa fé no único Deus ver- 362


dadeiro e bom, Pai tede-podereso, criador de todas as coisas, Deus
e Pai de nosso Deus e Senhor Jesus Cristo; no único Filho do Pai,
nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, único verdadeiro, por quem tudo
foi feito 20, tanto as coisas visíveis como as invisíveis, e em quem tudo
subsiste 21; que estava no princípio junto de Deus e era D eus72, e em
seguida, conforme as Escrituras, apareceu sobre a terra e habitou
com cs homens 23, que sendo de condição divina não reteve avidamente
sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo,
por seu nascimento da Virgem, a condição de servo e manifestando-se
sob o aspecto de homem, quando então cumpria, segundo a ordem
do Pai, tudo o que estava escrito dele e sobre ele, tornando-se obe­
diente até a morte, e morte de cruz 24; ressuscitando dentre os mortos
ao terceiro dia, conforme as Escrituras, mostrou-se aos santos apósto­
los e a outros, como está escrito25; subiu aos céus e está assentado
à direita do Pai, de onde voltará, no fim dos tempos, para ressusci­
tar todos os homens e dar a cada um a retribuição de seus atos, indo
os justos para a vida eterna e o Reino celeste, enquanto os pecadores
serão condenados ao eterno castigo23, lá onde c verme não morre e o
fogo não se extingue27. Creio igualmente no único Espírito Sapto,
o Paráclito, cujo selo recebemos para o dia da redenção28; Espírito <
de verdade, Espírito de adoção, no qual clamamos Abba, P a i29; que
distribui e opera os dons de Deus em cada um conforme convém30,
conforme lhe apraz31; que ensina e sugere tudo o que ouviu do
F ilho32; que é bom, guiando cada um em toda a verdade e fortifi­
cando os fiéis na fé segura, na confissão exata, no culto santo e na
238 SÃO BASÍLIO
adoração em espírito e verdade33, de Deus Pai, de seu Filho único,
nosso Deus e Senhor Jesus Cristo, e dele mesmo.
363 O nome dado a cada um indica claramente um atributo que
lhe é próprio e, de cada um se predicam, com toda piedade, diversas
propriedades particulares. O Pai existe em seu caráter próprio de
Pai, o Filho em seu caráter próprio de Filho e o Espírito Santo
em seu caráter pessoal, mas nem o Espírito Santo fala por si mesmo 34,
nem o Filho faz algo per si mesmo35; o Pai enviou o F ilho36 e o
Filho envicu o Espírito Santo37.
Assim pensamos e assim nos batizamos na Trindade consubs­
tanciai, segundo a ordem do Senhor Jesus Cristo: “Ide, ensinai todas
as nações, batizai-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
fazendo-as observar todos cs mandamentos que vos dei” 38. É ob­
servando esses mandamentos que lhe manifestamos nosso amor” 39
e merecemos nele permanecer, como está escrito40; se não os obser­
vamos, manifestamos o contrário, pois: “aquele que não ama, diz
o Senhor, não guarda meus mandamentos” 41 e ainda: “aquele que
tem meus mandamentos e os guarda, esse me ama” 42.
364 Admira-me grandemente ouvir palavras como a do Senhor: “não
vos alegreis per expulsardes os demônios, mas porque vossos nomes
estão escritos no céu” 43, e ainda: “nisso reconhecerão serdes meus
discípulos: se vos amardes uns aos outros” 44. Donde, o Apóstolo,
para mostrar a necessidade da caridade em tudo, acrescenta este tes-
temunto: “ainda que eu fale todas as línguas, dos homens e dos
anjos, se não tiver a caridade, serei como um bronze que soa e como
um címbalo que retine; se tiver o dom da profecia e conhecer todos
os mistérios e ciências, se tiver uma fé tal que transporte montanhas,
se não tiver a caridade, nada serei” 45. E pouco depois: “as profe­
cias desaparecerão, o dom das línguas cessará, o dom da ciência se
extinguirá” 46; “atualmente três coisas permanecem: a fé, a esperança
e a caridade, mas a maior das três é a caridade” 47. Ora, admira-me
ouvir tantas declarações (e ainda outras semelhantes) do Senhor e
do Apóstolo, e no entanto ver os homens mostrar solicitude e incli­
nação pelas coisas perecíveis, não se preocupando pelas que permane-
PROFISSÃO DE FÉ 239

cem e caracterizam o cristão; ver até cs homens oporem-se aos que


as procuram, dando cumprimento à palavra: “eles não entrarão nem
deixarão os outros entrarem” <8.
Eis por que vos peço que ponhais fim a toda pretensão su­
pérflua e a todo palavreado importuno, que vos contenteis com
as palavras do Senhor e dos santos, e tenhais pensamentos dignos
de vossa vocação celeste, a fim de levardes uma vida digna do
Evangelho de Cristo e do reino do céu, preparado para todos os
que guardam os mandamentos de Deus Pai, segundo c Evangelho de
Jesus Cristo, Deus e Senhor nosso, no Espírito de santidade e de
verdade.
Ante a insistência de vossa piedade, temos crido necessário e 365
oportuno repetir tudo isso e manifestar claramente nosso pensamen­
to a vós todos e, por vós, aos nossos irmãos no Cristo, a fim de
vos dar uma garantia plena no nome de nosso Senhor Jesus Cristo.
Não deve ocorrer, com efeito, que o espírito de alguns seja levado à
dúvida por causa do que poderíamos tér dito diversamente ou em
outros termos, sempre na medida em que estávamos obrigados a re­
futar os argumentos alegados pelos adversários da verdade; ou por
causa das atribuições de erros, que nos fazem os que nos atribuem
suas próprias fraquezas, no intento de seduzir os simples. Dessa gente
deveis acautelar-vos, como gente estranha à fé evangélica e apostólica,
e também à caridade, lembrados da palavra do Apóstolo: “ se alguém,
dentre nós mesmos ou até um anjo do céu, vos anunciasse um evange­
lho diferente do que vos temos anunciado, seja anátema” 4849. Lembrai-
-vos igualmente da palavra: “guardai-ves rdcs falsos profetas” 50 e desta
outra: “mantende-vos à distância de todo irmão que vive de modo
irregular e não seguindo a tradição recebida de nós” 51. Conformai-vos
à regra dos antigos, pois estais “edificados sobre o fundamento do$
apóstolos e dos profetas, com nosso Senhor Jesus Cristo como pedrà
angular, ele, em quem o edifício, perfeitamente coordenado, se eleva
para formar um. templo santo no Senhor5253.
“Que o Deus de paz vos santifique totalmente. Que todo o
vosso ser: espírito, alma e corpo sejam conservados irrepreensíveis
para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Deus, que vos chama,
é fiel e tudo aperfeiçoará”
Julgando ter-vos exposto com suficiente clareza o que diz
respeito à verdadeira fé, vamos, em nome de nosso Senhor Jesus
Cristo, apressar-nos a cumprir a promessa no tocante à moral. Tudo
o que, até agora, encontramos proibido ou aprovado no correr do

48 Lc 11,52.
49 G1 1,8.
50 Mt 7,15.
51 2Ts 3,6.
52 EÍ 2,20.
53 íTs 5,23s.
240 SÃO BASÍLIO
Novo Testamento, esforçar-nos-emos por condensar em regras sumá­
rias para o fácil entendimento de todos, notando para cada regra
o número dos capítulos correspondentes da Escritura, seja do Evan­
gelho, seja do Apóstolo, seja dos Atos, a fim de que o leitor de cada
regra, percebendo por acaso o número inscrito ao lado, procure pes­
soalmente a Escritura e encontre o texto sobre o qual está baseada
a regra escrita.
Na verdade, teria gostado de colocar também ao lado as refe­
rências correspondentes ao Antigo Testamento, mas premido pela
necessidade — pois os irmãos me urgem o cumprimento de uma
velha promessa -— lembrei-me do que foi dito: “Dai ocasião ao sá­
bio e ele será mais sábio” 54. Assim, cada qual terá uma boa ocasião
de ir ao Antigo Testamento e certificar-se por si mesmo da con­
cordância dos textos da Escritura inspirada, mesmo se, para aqueles
que têm fé e estão convencidos da verdade das palavras do Senhor,
uma só dentre elas já bastasse. Eis por que também pensamos não
ser necessário, mesmo para o Novo Testamento, citar todos os textos,
mas apenas alguns55.

“SOBRE O ESPÍRITO SANTO”


(Caps. 9 e 18, P.G. 32, 108s; 148ss.; S.C. 17 bis)

366 Sobre o Espírito Santo, examinemos quais são as nossas no­


ções comuns, tanto as que .sobre ele nos são colhidas da Escritura,
como as que recebemos da tradição não escrita dos Padres.
Antes de tudo perguntamos: — Quem, ao ouvir os nomes do Es­
pírito Santo, não sente elevar-se a alma e erguer-se o pensamento
até à natureza suprema? Pois é dito o Espírito de Deus, Espírito da
verdade, que procede do Pai, Espírito reto, Espírito régio.
Santo Espírito é sua apelação própria e peculiar, a qual indica
o que há de mais incorpóreo e puro de toda composição e matéria.
Eis por que o Senhor, ensinando à mulher que pensava adorar a Deus
em determinado local, como se o Incorpóreo fosse redutível ao lu­
gar, dizia-lhe: “Deus é Espírito” 1. Não aconteça pois que, ao ouvir
falar do Espírito, imagine alguém uma natureza circunscrita, sujeita a
mudanças e alterações, semelhante às criaturas. Não. Subindo em pen­
samento para o mais alto, há de pensar na essência inteligente e de
infinito poder, de grandeza sem limites, insusceptível de medida por
tempos e séculos, pródiga de seus próprios bens. É para ele que se
volta tudo que tem carência de santidade. É para ele que tendem
todos os seres que vivem segundo a virtude e dele recebem o hálito

54 P r 9,9.
55 S e g u e m e n t ã o 8 0 “ R e g ra s m o r a is ” .
J J o 4 ,2 4 .
“SOBRE O ESPÍRITO SANTO” 241

de vida, o auxílio necessário ao fim que a sua natureza lhes traçou.


Ele aperfeiçoa todas as coisas, sem de nada precisar. Vivendo sem
desgaste, é vivificante, Não cresce ou evolui, pois é por si imedia­
tamente pleno e completo, estável em si mesmo, e em toda a parte
presente.
Origem da santificação, luz que só a inteligência pode perceber
e dá a toda potência racional como que o lume necessário à in­
vestigação da verdade. Inacessível por natureza, mas atingível por
graça. Enchendo tudo por sua virtude, mas só participável pelos
santos, aos quais nãc se dá por uma só medida, mas distribui a força
conforme á proporção da fé. Simples na essência, múltiplo nas po­
tências. Está todo em cada um e todo em toda parte. Distribuído
sem nada sofrer, é participado sem perder a integridade. Como um
raio de scl, cujo benefício desce ao que do mesmo usufrui como se
fera esse o único, e ainda ilumina a terra e o mar e se mistura ao
ar, assim também desce o Espírito a cada um dos que são capazes de re­
cebê-lo, como a um único, mas infunde a todos a graça suficiente e
integral. E é segundo a medida de cada coisa, e não segundo a me­
dida de seu poder, que dele fruem todos os seres que dele parti­
cipam.
A união do Espírito com a alma não é aproximação local (como 367
te, poderias avizinhar corporalmente do Incorpóreo?), mas o afasta­
mento das paixões que se comunicaram à alma por sua amizade com
a carne, e a afastaram de Deus. Aproximar-se do Paráclito é purifi­
car-se da deformidade contraída pela maldade, é voltar à beleza
nativa, como que devolvendo à imagem régia, depois de purificá-la,
sua forma antiga. E ele, como o sol, achando c olhar purificado,
môstrar-se-á em si mesmo a imagem do Invisível. Então, na bem-aven­
turada visãò dessa imagem, verás a inefável beleza do Arquétipo, i
Por ele se dá a ascensão dos corações, por ele os fracos são
conduzidos, por ele se consuma a perfeição dos fortes. Iluminando
cs que estão puros de toda mancha, toma-cs espirituais pela co­
munhão que têm consigo. E assim como os corpos transparentes,
quando recebem um raio de luz, se tomam também luminosos, pas­
sando a emitir novo esplendor, assim as almas portadoras do Espí­
rito, rebrilhando do Espírito, tomam-se por sua vez espirituais, e
podem lançar a outras os seus próprios raios. Daí, a presciência do
futuro, o entendimento des mistérios, a visão do oculto, a variedade
dos carismas, a vida celeste, o convívio dos coros angélicos, a infi­
nita alegria, a perseverança em Deus, a semelhança com E)eus, o ul-
trapassamento de todo desejo, a divinização.
São estas, em resumo e em poucas palavras, as noções comuns
que temos do Espírito Santo e que, a partir de suas próprias expres­
sões, aprendemos a pensar sobre sua grandeza e dignidade, bem
como sebre as operações que realiza.
242 SÃO BASÍLIO

Não há senão um só Deus Pai, um só Filho Unigénito, um só


Espírito Santo. Nós enunciamos separadamente cada uma das hipós-
tases 1 e, quando precisamos enumerá-las em conjunto não o fazemos
de maneira que possa induzir a uma concepção politeísta.
Com efeito, não procedemos por adição, partindo da unidade e
chegando à pluralidade, pois não dizemos: um, dois e três, nem:
primeiro, segundo e terceiro. De um segundo Deus nunca se ouviu
falar, pois adorando ao “Deus de Deus” estamos confessando a ca­
racterística das hipóstases e permanecemos na “monarquia” 12 sem
fragmentar a “ teologia” 3: em Deus Pai e em Deus Unigénito estamos
contemplando como que uma só forma que se reflete, que se
espelha no imutável da divindade. O Filho, com efeito, está no Pai
e o Pai no Filho: este é como aquele e aquele como este, sendo
assim uma só coisa. Por conseguinte, segundo a propriedade das Pes­
soas 4 eles são um e outro, mas segundo a comunhão de natureza são
uma só coisa.
Como não são dois Deuses, se são um e um? Da mesma forma
que não dizemos dois reis quando consideramos o rei e sua imagem.
Forque o poder não se duplica, a glória não se divide, e assim como
nos submetemos a uma só autoridade e a um só peder, também a
glória que lhes tributamos é única: a henra da imagem passa ao pro­
tótipo. Ora, o que a imagem é aqui por imitação, o Filho é (em
Deus) por natureza. No campo da arte a semelhança se baseia na
figura; na simplicidade da natureza divina, a unidade se funda na
comunicação da divindade.
O Espírito Santo, igualmente, é Unidade e o designamos se­
paradamente, mas ele se liga por meio da Unidade que é o Filho
à Unidade que é o Pai, dando conclusão à bem-aventurada Trindade,
digna de todo louvor. Sua intimidade com o Pai e o Filho se mani­
festa claramente pelo fato de não ser ele designado entre as criaturas
mas à parte; ele não é uma unidade resultante da agregação de múl­
tiplos elementos, mas é totalmente um, como o Pai e o Filho,
achando-se portanto tão longe da natureza criada quão distante se
acha a unidade, da composição e da multiplicidade. O Espírito
Santo está tão estreitamente unido ao Pai e ao Filho quanto a Uni­
dade à Unidade.
Aliás, a prova de sua comunhão de natureza decorre ainda do
fato de ser dito “de Deus”, não como todas as coisas são “de Deus”,
mas no sentido de que precede “ de Deus” como o Sopro da divina
boca, não por geração como o Filho. Por “boca” evidentemente não

1 H ip ó s ta s e : o s u b s is te n te d is tin to , a “ p e s s o a " .
2 M o n a r q u ia : p a la v ra e q u iv a le n te a m o n o te ís m o , n o c o n te x to p a trís tic o .
3 “Teologia” tem o sentido aqui de doutrina referente à Divindade.
4 “Pessoa” treduz prósopen.
'SOBRE O ESPÍRITO SANTO1 243

estamos falando de algo de corpóreo, nem, por “ sopro” de uma


exalação fu g az.. . Entenda-se a “boca” de um modo digno de Deus
e o “sopro” como uma essência viva, apta para santificar. Exprime-
-se assim a intimidade divina do Espírito, ao mesmo tempo que se
deixa inexpresso o modo próprio de seu subsistir.
Dizemo-lo ainda “Espírito de Cristo”, em razão de estar unido 370
intimamente e naturalmente a Cristo. Assim, “ se alguém não possui o
Espírito de Cristo não é de Cristo” (Rm 8,9). Eis por que só o
Espírito glorifica dignamente o Senhor: “Ele me glorificará”, disse
Jesus (Jo 16,14), não como a criatura, mas como o Espírito da
verdade, que faz resplandecer em si mesmo a Verdade, e como
Espírito de sabedoria que revela, em sua majestade, o Cristo, poder
de Deus e sabedoria de Deus. Ccmo Paráclito, exprime em si a bon­
dade do Paráclito que o enviou5 e em sua própria dignidade mostra
a grandeza daquele de quem procede. Há, pois, uma glória natural
— como a luz, glória do sol — e uma glória extrínseca, livremente
prestada aos seres que a merecem. Esta última é aliás de dois tipos:
o Filho glorifica seu pai e o servo seu patrão, conforme diz o pro­
feta6. Uma, glória servil, prestada (a Deus) pela criatura; outra,
dir-se-ia familiar, prestada pelo Efcpíritió. Assim, o Senhor difcia dê
si mesmo: “Eu te glorifiquei sobre a terra, completando a obra que
me confiaste” (Jo 17,4). E da mesma forma disse do Paráclito:
“Ele me glorificará porque receberá do que é meu e vo-lo dará a
conhecer” (Jo 16,14). O Filho é glorificado pelo Pai, que declara:
“Eu o glorifiquei e o glorificarei ainda” (Jo 12,28). Da mesma forma
o Espírito é glorificado pelo fato de estar em comunhão com o Pai
e o Filhò, e também conforme este testemunho do Unigénito: “ todo
pecado e blasfêmia vos será perdoado, mas a blasfêmia contra o Es­
pírito não o será” 7.
Quando, sob o influxo de uma iluminação, fixamos os olhos na 371
beleza da Imagem do Deus invisível8 e por ela nos elevamos à
Contemplação do Arquétipo, lá está o Espírito de conhecimento, inse­
paravelmente presente, oferecendo em si o poder de ver. a Imagem
aos que amam a contemplação da Verdade. Ele não a faz manifes­
tar-se como de fora, mas a mostra em si: “ninguém conhece o Pai se­
não o Filho” 9 e também “ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor,
senão no Espírito Santo” 10. Note-se que não se diz: pelo Espírito,

5 A p a la v r a “ P a rá c lito * ( = a d v o g a d o ) d e sig n a n o 4 ’ e v a n g e lh o o E s p í r i t o S an ­
t o e n a 1? C a r ta d e s. J o ã o ( 4 .6 ) o C r is to ce le ste . O c o n te x to d e s. B a s ílio s u g e re a
p ro c e s s ã o d o E s p í r i t o a p a r t i r a o P a i e d o F ilh o , coroo ig u a lm e n te o s u g e re sto . A ta-
n á s io e m e s c rito s q u e i n s p ir a r a m s. B a s ílio (c f. B . P r u c h e , Basile de Césarée,
Traité du Saint-Esprit, c o l. “ S o u rc e s C h ré tie n n e s * , v o l. 17, p . 1 9 6 ).
6 M l 1 ,6 .
7 M t 1 2 ,3 1 .
« Q 1,15.
9 M t 1 1 ,2 7 .
w l C o r 12,3
244 SÃO BASÍLIO
mas no Espírito. “Deus é Espírito e os que o adoram devem adorá-
-lo em espírito e verdade” n , como ainda está escrito: “em tua luz
veremos a luz” 112. Por outras palavras: na iluminação do . Espírito
veremos “a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem ao mun­
d o ” 13. É em si mesmo que o Espírito mostra a glória do Filho
único e é em si mesmo que concede aos verdadeiros adoradores o
conhecimento' de Deus.
O . caminho do conhecimento de Deus vai portanto do Espírito,
que é um, ao Filho que é um, ao Pai, que é um e, em sentido inverso,
a bondade essencial, a santidade natural, a dignidade régia provêm do
Pai, pelo Unigénito, até o Espírito. É assim que confessamos as
hipóstases sem ferir a doutrina da monarquia.

11 Jo 4,24.
12 5>1 35,10.
13 Jo 1,9.
SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
(329-390)

Um dos maiores oradores cristãos de todos os tempos, natureza sensível e in­


quieta, ao mesmo tempo que inclinada à contemplação. Nascido em Nazianzo (Capadó­
cia), era filho do bispo local, por quem foi ordenado padre. Nutriu durante toda a
vida . grande amizade por são Basílio, que o sagrou bispo. Dividindo os dias entre a
solidão monástica e os encargos pastorais, em Nazianzo, desempenhou importante
papel na luta anti-ariana. Por ocasião do l 9 Concílio Ecumênico de Constantinopla,
encontrou oposições que o levaram a demitir-se, quando então pronunciou seu famoso
Discurso de adeus ao povo e aos bispos.
Sua exposição da doutrina trinitária lhe mereceu o título de “teólogo”, que o
Concílio de Calcedônia mais tarde confirmou. Deixou algumas dezenas de Discursos
extremamente brilhantes, dos quais 5 são ditos “teológicos”, pois versam sobre a
doutrina trinitária. Também se conservam algumas de suas cartas e numerosas poesias.
Em S.C. 149 e 208: textos grego e francês da Paixão de Cristo e das Cartas
teológicas.

DUAS CARTAS A SAO B A S ÍL IO 1


(P.G . 37, 24-32)

Podes tripudiar à vontade sobre nossas coisas e criticar nossa 372


terra, em tom de pilhéria ou falando sério; não importa. Sorrindo,
ou mostrando ciência, estarás gozando de nossa amizade e o que vem
de ti nos agrada, de qualquer modo seja. Mas se tripudias é, penso
eu, menos para brincares que para me atraíres a teu lado, e se bem
entendo, queres fazer como os que põem a barreira no rio a fim de
desviar o curso: é assim que te interpreto.

1 São Basílio, que sempre fora amigo de são Gregório, apesar da diversidade de
temperamento, quis atraí-lo para seu mosteiro, situado no Ponto, às margens do rio
íris. Lá esteve tão Gregório durante algum tempo, mas depois, achando que não po­
dia deixar seus velhos pais, regressou a Nazianzo. Trocou então com Basílio várias
cartas a propósito de tua estada no mosteiro. Reproduzimos duas dessas cartas, escritas
pouco antes do ano de 361 e nas quais se entrevê a face humana — e não apenas
rcbrenatural — da profunda amizade desses dois santos. Na primeira Carta, Gregório
ironiza a respeito do local, que Basílio descrevera de modo entusiástico. Na segunda
não esconde o quanto lhe agradaria levar vida de monge na comunidade de Basílio.
Ver: Grêgoire de Nazianze. Poèmes et Lettres, íntr., seleção, trad. e notas de P.
G allay, Lyon, 1941. Do me'mo autor: St. Grêgoire de Nazianze. Lettres, 2 vol., publ.
pele Assoe. Güilhaume Budé, Paris, 1964.
246 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
Quanto a mim, admiro tua terra do Ponto, ccm seu céu escuro,
terra que parece de exílio: penhascos erguidos por sobre as cabeças,
feras bravias que aparecem para atormentar, desertos pedregosos,
cavernas de r a to s .. . a isso dais por aí os belos nomes de lugar de
meditação, mosteiro, escola. . . Essas florestas de plantas selvagens,
essa coroa de >montanhas escarpadas que em vez de coroar aprisionam
a gente, essa atmosfera acanhada, esse sol que se deseja em vão e
apenas surge como através de uma chaminé — ó cimérios do P onto2*,
que não estais condenados somente a uma noite de seis meses mas,
como se diz de certos povos, jamais viveis um instante sem obscuri­
dade, sendo vossa existência como uma longa noite ininterrupta, uma
“sombra da m orte” para falarmos com a E s c r itu r a M a s quero ainda
elogiar aquela estrada tão estreita (aonde leva ela? ao Reino ou ao
Hades? Não sei, em atenção a teu nome admitamos que leva ao
Reino) 4; e ainda, no meio de todo o v o sso .. . (como direi? men­
tirei, dizendo o vosso Éden, ccm uma fonte aberta em quatro partes
para irripar a terra?) . . . o vosso deserto seco e árido, que só um Moi­
sés poderia fertilizar batendo com a vara na rocha! Realmente, por toda
parte, quando não há rochas o que há são barrancos, e quando não
são barrancos são espinheiros, e quando não são espinheiros são pre­
cipícios. . . O camiimo que passa por cima, ladeado de abismos e
em declive nos dois lados, obriga os passantes a se encolherem é
caminharem com muita cautela. . . Em baixo atroa o rio, que é para
vós aí o calmo Estrimão de Anfípclis5 — só que nele os peixes não
nadam mais que as pedras, e não se espraia para formar um lago,
terminando em rem oinhos.. . Que amador das palavras altissonantes
és tu e que arquiteto de novos nomes! Esse rio é enorme, assustador,
seu estrépito abafa a salmodia cantada lá no alto. Nada são, em
comparação a ele, as Cataratas e Catadupas6, a ressoar noite e dia.
É tão impetuoso que não se pede atravessá-lo, tão lodoso que não
se pode beber sua água; de bom mesmo só tem isto: não leva de
roldão a casa quando se enfurece em torrentes e tempestades!
Eis nossas impressões sobre essas ilhas onde vivem os fortunados
que s o is .. . E tu não venhas gabar-te agora das anfratuosidades lu­
nares que mais estrangulam do que protegem, na subida da montanha;
nem das massas rochosas, que ameaçam as cabeças fazendo viver vida
de Tântalo; nem das brisas passageiras ou dos vapores do solo,
irritantes, que despertam quem desfalece; nem das aves que cantam,
sim, mas de fome, e esvoaçam, mas na solidão. Dizes que se vai a

2 O s c im é r io s te r i a m s id o , c o n fo rm e a le n d a , u m p o v o q u e h a b ito u n a s tre v a s :
c f. Odisséia, c a n t o X I , 14 ss.
y S l. 2 2 .4 .
4 J o g o d e p a la v ra s e n t r e o n o m e d e B a s ílio e a p a la v ra re in o ( “ b a s ilé ia ” ) .
5 S ão G r e g ó r io a lu d e à c a r t a d e sã o B a s ílio n a q u a l o r i o Í r i s e r a c o m p a ra d o a o
Estrimão.
6 Referência às cachoeiras do rio Nilo.
DUAS CARTAS A SÃO BASÍLIO 247

essa região por causa da caça; acrescenta ainda: e para visitar os


mortos que sois!
Tudo isso talvez seja demasiado longo para uma carta, porém,
demasiado breve para uma comédia. Enfim, se aceitas de bom grado
a brincadeira, fazes bem; do contrário, acrescentaremos ainda muita
coisa mais!

IX

O que escrevi anteriormente sobre a estada no Ponto foi gra- 373


cejo, não falava seriamente, mas agora escrevo sério. “Quem me
restituirá o estado daqueles dias de cutrora” 7? Dias em que, jun­
tamente contigo, considerava delícias as aflições! (Pois os incômo­
dos voluntariamente assumidos mais valem que os prazeres involun­
tários). Quem me restituirá o canto dos salmos, as vigílias, as ele­
vações à Deus ria oração, e aquela nossa vida, por assim dizer, ima­
terial e incorporai? aquela união de sentimentos e de espírito, sob
tua conduta? aquela emulação e aquele ardor pela virtude, que
nós mesmos confirmamos por regrais e leis? Quem me dará aquele
zelo no estudo da palavra divina e aquela luz que ambos achávamos
sob a orientação do Espírito?
Ou então, para passar às coisas menores e mais leves, quem
me dará aquelas ocupações diárias, os trabalhos manuais, o bosque
para abater, as pedras para quebrar, as árvores para plantar e regar,
aquele plátano — um plátano de ouro, mais precioso que o de
X erxès8 — sob o qual vinha assentar-se, não um rei vestido deli­
cadamente, imas um monge contrito? Esse plátano fui eu que plan­
tei, foi Apoio — isto é, tua Excelência — que o regou, contudo*
foi Deus que o fez crescer para nossa honra e para ficar como
lembrança de nossos trabalhos, uma lembrança como aquela vara
florida de Aarão, que se conservou ria arca, segundo a Escritura diz
e nós cremos 9.
Mas se é fácil formular tais anelos, é difícil realizá-los. Aju­
da-me, inspira-me a virtude, labora comigo e obtém, por tuas pre­
ces, que conservemos o que já conquistamos, em vez de vê-lo dis-
sipar-se pouco a pouco, como a sombra ao cair do dia. Porque na
verdade respiro eu mais a ti que ao próprio ar e minha vida é es­
tar contigo, seja na realidade seja pela lembrança da mente, quando
estás longe.

7 J6 29,9.
8 A lu s ã o a o p lá ta n o que X e rx es m andou r e c o b rir d e o u ro , pot c a u sa de sua
b e le z a .
9 Nm 17,8-10.
248 SÃO GREGÓRIO NÁZIANZENO

POEMA SOBRE A NATUREZA HUMANA 1


(P.G., 37, 753-766)
374 Ontem, abatido pela tristeza, sozinho e longe de todos, assen­
tei-me à sombra de um bosque, meditando em meu coração. Gosto
desse reméçlio nos sofrimentos, o de me entreter sileneiòsamente
comigo mesmo. O murmúrio da brisa, junto ao chilrear dos pássaros
e ao sussurro das ramagens, trazia prazer ao coração aflito. As ci­
garras, no alto das árvores, cantando sonoramente ao sol, acrescen­
tavam um ruído que acabava de encher o bosque. Perto ainda, um
córrego de água pura vinha banhar-me os pés e deslizava da mata
como orvalho refrescante. Eu, porém, absorvido na dor, hãó cuidava
de nada disso, pois o espírito em tais condições se recusa a qualquer
prazer. Interiormente agitado, entregava-me a uma luta onde eram
minhas palavras que se debatiam. Quem fui? quem sou? quem serei?
Não sei responder claramente, como não o sabem tampouco os mais
sábios que eu. Envolto por uma nuvem, ando errante sem nada pos­
suir, mesmo em sonhos, de tudo aquilo que desejo, Sim, somos
peregrinos na terra e sobre todos nós se erguem a nuvem ,azul da
carne. Mais sábio do que eu é quem melhor sabe expulsar a mentira
loquaz de seu coração.
375 Eu sou. Explique-se-me o que é isso. Uma parte de mim já se
foi, sou outro neste instante, e outro serei ainda se continuo a
existir. Nada é estável. Assemelho-me ao curso de um rio turbulento
que sempre avança sem nada ter fixo. Dir-me-ás o que squ em
tudo isso? Ensina-me ao menos o que sou para ti. Permaneço aqui uni
momento, mas cuida que eu não fuja de t i . . . Nao atravessarás
de novo o rio do mesmo modo como o atravessaste, não reverás o
mortal que já viste uma vez.
Existi inicialmente na carne de meu pai, depois minha mãe me
acolheu e provenho de ambos. Fui em seguida uma carne confusa,
massa informe, antes que homem, sem palavras nem espírito, tendo
na mãe meu túmulo. Sim, nós estamos duas vezes no túmulo,; pois
nossa vida também se termina na corrupção. E sta: vida que percorro,
vejo que se despende em anos que me trazem o funesto envelheci­
mento. E se, partindo da terra, sou acolhido numa vida sem fim,
como se diz, vê se a vida não contém a morte, e se a morte não é
para ti a vida, contrariamente ao que pensas.
376 Nada tenho sido. Por que sou sem cessar avassalado pelos males,
como se não mudasse jamais? Pois só os males, entre os mortais,
são imutáveis, inatos, inseparáveis, e não envelhecem. Apenas saído
do seio de minha mãe, verti a primeira lágrima; e haveria de en­
contrar tantas e tão grandes calamidades! Derramava lágrimas an-1
1 Apresentamos em prosa a tradução desta famosa peça, redigida originalmente
em verso. Cf. P. G allay, o . c . Lycn, 1941.
POEMA SOBRE A NATUREZA HUMANA 249

tes de tocar a vida! Ouvimos falar de uma região, como outrora


Creta, onde não havia animais ferozes, e de outra isenta da neve.
Mas nunca se ouviu de um mortal que deixasse esta vida sem que
tristes penas o atingissem. A doença, a pobreza, o parto, a morte,
o ódio, os maus, as feras do mar e da terra, as dores: eis a vida!
Conheci muitos males sem alegria, mas não conhed jamais a alegria
completamente isenta de sofrimento, desde o fatídico fruto que de­
gustei e o inimigo invejoso que me marcou com o signo da amargura.
Carne, eis o que devo dizer-te, a ti, tão difícil de se curar, ini­
miga suave, a quem a luta jamais abate, fera atroz que cruelmente
acaricias, fogo que refresca — ó coisa espantosa! Mais espantoso
porém seria se acabasses por te tornares minha amiga!
E tu, ó minha alma, ouvirás por tua vez a linguagem que te 377
convém. Quem és? donde vens? qual o teu ser? quem te estabeleceu
como sustentáculo de um morto? Quem te ligou aos tristes grilhões
da vida, sempre inclinada para as coisas da terra? Como foste mis­
turada ao grosseiro, tu que és sopro? à carne, tu que és espírito? ao
pesado, tu que és leve? São qualidades que se opõem mutuamente
e se com b atem ... Se vieste à vida, engendrada ao mesmo tempo
que a carne, quanto então essa união tem sido perniciosa para mim!
Sou imagem de Deus e me tornei filho da torpeza. Temo que o de­
sejo tenha sido a causa do nascer de algo tão digno de honra. Um ser
fugidio me gerou e sofreu a corrupção. Eis-me então homem, mas
cessarei de sê-lo e me tornarei cinzas: são estas minhas últimas
esperanças?
Ào contrário, se és celeste, quem és tu e donde vens? Aspiro
sabê-lo, instrui-me! Se tens o sopro de Deus por origem e Deus
inesmo por destino — como julgas — rejeita o vício e acreditarei
em ti! Porque não convém que o puro seja maculado, mesmo letfe-,
mente; as trevas não pertencem ao sol, o filho da luz não vem'
do espírito mau. Como és atormentada a tal ponto por Belial, tu
que intimamente estás unida ao Espírito divino? Se com tal ajuda
ainda te inclinas para a terra, então é grande a violência de tua
maldade!
E se não vens de Deus, qual a tua natureza? Ah! temo ser pre­
sa de vão orgulho: Deus me plasmou, depois houve o Paraíso, o
Éden, a glória, a esperança, o preceito, o dilúvio destruidor do
mundo, a chuva de fogo, e a seguir a Lei, esse remédio escrito, e
finalmente o Cristo, que uniu sua natureza à nossa para trazer so­
corro a meus sofrimentos através de seus divinos sofrimentos, para
divinizar-me graças a sua condição humana; e apesar de tudo isso
mantenho um espírito indómito, sou como o javali furioso que se
mata precipitando-se sobre o ferro!
Que bem se acha na vida? A luz de Deus? Mas as trevas in- 378
vejosas e odiosas dela me afastam! Não me beneficio dela. Os maus
não me dominam sob todos cs aspectos? Por que, apesar de todos
250 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
os meus sofrimentos, não lhes sou ao menos igual? Estou abatido
até a terra, até ao cabo de minhas forças; o temor divino me fez
vergar; dia e noite me abatem preocupações; o orgulho derrubou-
-me ao seduzir-me traiçoeiramente, calcou-me aos pés. Cita-me tudo
o que há de terrível: o negro Tártaro, o Flégeton2, os tormentos,
os demônios que são ps carrascos de nossa alma. Tudo isso os maus
têm como fábulas, só considerando o que está diante de si e é bom.
O temor do castigo não corrige sua maldade. Mas preferiria ver os
maus impunidos, mesmo no futuro, antes que me afligir agora por
castigos devidos à sua m aldade!3
379 Mas por que então cantar assim as dores dos homens? A dor
se estende sobre toda a nossa e stirp e .. . Alias, nem a terra é sem
abalos, os ventos agitam o mar, as horas se sucedem em delírio,
a noite põe fim ao dia, a tempestade obscurece o ar, o sol tira a
beleza às estrelas, as nuvens tiram-nas ao sol, a lua se renova, o
próprio céu não é senão parcialmente brilhante por seus astros. E tú,
Lúcifer, tu estavas outrora entre os coros angélicos, e agora, invejoso,
tombaste vergonhosamente dos céus.
Mas, ó Trindade, reino venerável, sê-me propícia! Nem vós esca­
pastes à língua dos efêmeros insensatos! O Pai, primeiro, depois o
Filho em sua majestade, e enfim o Espírito do grande Deus foram
objetos de injúrias.
Aonde, porém, infeliz aflição, tu me arrastas? Calá-te! Acaso,
tudo não é pequeno em relação a Deus? Cala-te diante do Verbo!
Não, não foi em vão que Deus me criou! (Eis que estou indo
contra o que eu mesmo cantei: são as fraqueza^ de nosso esp írito .. . )
Agora és trevas, um dia serás razão e compreenderás tudo, seja vendo
a Deus, seja devorando-te pelo fogo.
Quando meu espírito me fez ouvir estes cantos, minha dor sere­
nou. E assim tarde deixei o bosque sombrio e voltei à vida, ora
alegrando-me com um pensamento, ora consumindo o coração no
sofrimento, o espírito sempre em luta!

Trechos do 5’ DISCURSO TEOLOGICO


(sobre o Espírito Santo)
(P .G . 36, 1 3 3 -1 7 2 )

380 Se houve tempo em que não existisse o Pai, houve em que não
existisse o Filho. Se houve tempo em que não existisse o Filho,
houve em que não existisse o Espírito. Se o Um existe desde o prin-

2 " P h l e g e t o n ” = d o d o in fe r n o , n a l i te r a tu r a a n tig a .
3 O u t r a i n t e r p r e ta ç ã o : " M e u s s o fr im e n to s s ã o ta is q u e , p a r a me l i b e r ta r d e le s,
a c e i t a d a v e r i m p u n id o s o s m a u s ” .
I p I N T O DISCURSO TEOLÓGICO 251

dpió, igualmente existem os Três. Se o degradas — falo ousadamen-


também não exaltarás os dois outros. Pois a que serve uma di-
Émdade imperfeita? Que divindade pode ser se é imperfeita? E como
será perfeita se algo lhe falta, como a santidade, que lhe faltaria se
lhe faltasse o Espírito? Acaso dever-se-á pensar em outra santidade?
$las então qual seria ela, se não existisse desde o princípio? Pois
É)eus teria existido de modo imperfeito se carecesse do Espírito.
B se o Espírito não existisse desde o princípio, seria da mesma classe
e ordem que eu, mesmo que me tivesse precedido; e assim de que
maneira me divinizaria e me uniria a Deus?
o Mas julgo ser melhor tratar deste assunto com maior profundi­
dade. Da Trindade aliás já temos discorrido.
Quanto ao Espírito Santo, os saduceus negaram sua existência, 381
como também a dos anjos e da ressurreição, por incrível que pareça,
sendo tantos os testemunhos a respeito no Antigo Testamento. Já en-
•tre os pagãos, aqueles que mais se distinguiram em questões teoló­
gicas e se aproximaram de nós, de certa forma pensaram o Espírito
através de alguma imagem — diria eu — mesmo se o exprimiram
com outro nome, chamando-o por exemplo a mente universal, a inte­
ligência exterior, etc.
f Em nosso tempo alguns o têm pensado como uma força, outros
como uma criatura, outros como Deus, outros enfim não se decidem
por nenhuma destas opiniões, por respeito, dizem, à Escritura, que
não é explícita num sentido ou em outro. Eles então não veneram
o Espírito Santo, embora também não o desprezem, ficando numa
situação intermediária, ou antes, numa situação deplorável.
Entre os que crêem na divindade do Espírito Santo, alguns se
limitam à piedade interior, outros têm a coragem de ser piedosos
também na expressão oral. >
E ainda conheço os tais que "medem” a Divindade. Admitem,
Como nós, os Três, mas pondo entre cs mesmos grandes diferenças,
dizendo que um é infinito quanto à essênda e o poder, outro infi­
nito só quanto ao poder, e outro finito quanto aos dois aspectos. Os
tais, que assim pensam, imitam a seu modo os que designam aos Três
como respectivamente Criador, Colaborador e Ministro, acreditando
que a categoria e as qualidades implicadas por estes nomes corres­
pondam a diferenças reais.
Mas não nos dirigimos aqui aos que não crêem na existência
do Espírito Santo e acs pagãos que deliram a respeito dela. Não
desejamos, como diz a Escritura, que “o óleo dos pecadores” venha
untar nosso discurso. Com os demais então, eis como iremos discutir:
deve-se considerar o “Espírito Santo” subsistente em si mesmo ou em
outro? No primeiro caso seria uma substância, no segundo um aci­
dente, conforme a linguagem dos eruditos. Se acidente, tratar-se-ia de
uma força de Deus: poderia com efeito tratar-se de outra coisa ou
ser a força de outro? A idéia de força pareceria a mais consentânea,
252 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
livre de toda composição. Mas se o Espírito Santo fosse uma força
obedeceria a um impulso, não agiria por si mesmo, e cessando o
impulso não existiria mais, como ocorre com toda ação. Ora, lemos
que o Espírito Santo atua, pronuncia palavras, segrega determinados
apóstolos*, se aflige12, se irrita e faz tantas coisas que supõem um
ser dotado de movimento e não um simples movimento. Se, porém,
é uma substância e não um acidente, então será preciso considerá-lo
uma criatura ou o próprio Deus. Pois não se pode entender um ser
intermediário, que nao fosse uma ccisa ou outra. Se é criatura, como
nele cremos ou por ele somos aperfeiçoados? Não é o mesmo crer em
algo ou crer algo: no primeiro caso referimo-nos à Divindade, no
segundo a qualquer coisa. Mas se o Espírito é Deus não é algo
criado, produzido, não é servo como nós, não merece um nome de
humildade e inferioridade!
382 Eis agora tua língua a preparar objeções. Dirás: Ele é então
gerado cu não gerado. Se não gerado, haverá dois princípios. Se
gerado, pode-se ainda distinguir: gerado pelo Pai ou pelo Filho. Se
pelo Pai há dois Filhos e irmãos, talvez gêmeos, talvez não, como
ocorre nos seres corpóreos. Se gerado pelo Filho, ei-lo então um
Deus neto.
Haverá algo de mais absurdo? É porém o que pretendem ós ho­
mens sábios para maldizer e ineptos para escrever o bem. Quanto
a mim, se julgasse necessária a divisão, recusaria tais nomes. Pois
pelo fato de que, em razão de uma excelsa relação o Filho assim
se chama (dado que não teríamos outro modo para designar alguém
que precede de Deus e lhe é consubstanciai), não se segue déver-se
transferir toda nomenclatura terrena dé parentesco a Deus. De outra
forma também se diria que Deus é de gênero masculino porque se
chama Pai. Ou que a Divindade é de gênero feminino como o quer
a palavra; que o Espírito é de gênero neutro porque não gera. E até,
na linha das velhas fábulas de Marcião e Valentino, que Deus é
hermafrodita, gerando o Filho com sua divina vontade.
Como porém não admitimos absolutaménte a divisão inicial
entre gerado e não gerado, exclusiva de qualquer termo médio, de­
saparecem com ela as idéias de irmãos e neto. Como efeito, onde pões
aquele que, por sua procedência, deve estar entre as duas partes de
tua divisão, conforme consta do ensinamento teológico do Salvador?
A não ser que se omita, em nome de algum terceiro Testamento, a
palavra evangélica: “o Espírito Santo, que procede do P ai” 3, tem-se
que admitir ser ele procedente e não criatura, precedente mas não
gerado, e enfim Deus que está entre o Inengendrado e o Gerado.
Assim, Deus aparece superando as insídias daquela divisão.
383 Qual é então a processão do Espírito? perguntarás. Dize pri-

1 A t 1 3 ,2 .
2 E f 4 ,3 0 .
3 Jo 15,26.
(JÜÍNTO PISCURSO TEOLÓGICO 253

meiro em que consiste a ausência de geração, no Pai, e a geração


no Filho, penetrando num mistério divino. Se nós não conseguimos
sequer conhecer o que temos ante os pés, se não conseguimos contar
a areia do mar, as gotas da chuva, cs dias do século, haveremos de
penetrar nas profundezas de Deus e sondar a natureza arcana, su­
perior a todo raciocínio e discurso?
Mas, continuará o cbjetante, que falta ao Espírito para ser Fi­
lho? Se nada lhe falta, por que não é Filho? — Nada lhe falta,
respondemos nós, porque nada falta a Deus; mas a diferença de
manifestação dos Três, e de sua mútua relação, acarreta-lhes a diferen­
ça dos ncmes. Nada falta ao Filho para que fosse Pai, pois a filiação
não é uma deficiência, e nem por isto ele é o Pai. Senão, seria preci­
so dizer que algo falta ao Pai para que seja Filho, pois o Pai não
é o Filho. Sem deficiências ou graus de subordinação na essência
divina, quando se diz “ser inengendrado, ser gerado e proceder”
designam-se o Pai, o Filho e o Espírito Santo, e assim se mantém
â distinção das três Hipóstases da única natureza e dignidade do ser
divino. O Filho, com efeito, não é Pai, pois só há um Pai, mas é o
que é ó Pai; o Espírito, que procede de Deus, não é Filho, pois só
há um Filho, mas é o que é o Filho. Os Três são Um, se consideras
a divindade, e o Um são Três se consideras as propriedades. E nem
a unidade favorece ( a heresia de) Sabélio, nem a trindade favorece
a perniciosa divisão, hoje propalada.
Pará nós, só há um Deus, pois uma só divindade, e os que 384
precedem da unidade a elà se referem, (embora nós creiamos que se­
jam três), porque um não é mais Deus, nem outro é menos Deus;
um não é antes, nem outro depois; não estão divididos quanto à
vontade nem distribuídos quanto ao poder; nada do que se encontra
nos seres divididos aqui tem lugar; e para tudo dizermos numa
palavra: a Divindade está sem divisão nos que se distinguem, como'
sé três sóis tivessem a fusão de sua luz ao se penetrarem mutua­
mente. Portanto, se consideramos a divindade, a causalidade primeira,
a potência, é a unidade o que nos aparece; e se consideramos aque­
les nos quais está â divindade, que procedem da Causa primeira
sem intèrvalo de tempo e com igualdade de glória, então são três
os qüe adoramos.

Mas ora! dir-se-á talvez, òs gregos não admitem, conforme seus 385
melhores filósofos, também uma só divindade — da mesma forma
que no gênero humano uma só humanidade — e não obstante
falam de vários Deuses, da mesma forma que dos muitos homens?
Acontece que neste caso o que é comum só é único enquanto con­
siderado pelo pensamento, distinguindo-se os indivíduos uns dos ou­
tros e estando divididos pelo tempo, pelas paixões e pelas próprias
faculdades.
254 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
386 Houve duas grandes mudanças, que também se chamam dois Tes­
tamentos e, por sua importância, dois terrem otos4: uma, a mudança
do culto dos ídolos para a Lei, outra a passagem da Lei para o Evan­
gelho. E há ainda um terceiro terremoto anunciado pela Escritura,
o da passagem desta vida para a futura, totalmente livre de movimen­
to e agitação.
Aconteceu porém algo de semelhante nos dois Testamentos. O
quê? O fato de que não vieram de um só impulso. E por quê? Seria
interessante sabê-lo: para que não fôssemos violentados mas levados
pela persuasão! Realmente, o que não é voluntário não dura, como
vemos em exemples da natureza. O que é voluntário, isto sim é tan­
to mais duradouro e firme. E assim difere o que vem da força tirâ­
nica e o que vem da divina benignidade. Deus não quis, de modó
algum, impor seus benefícios, quis dá-los aos desejosos de merecê-los.
Procedendo como pedagogo e médico, foi eliminando alguns ritos an­
tigos, parcialmente admitindo outros, com a tolerância de quem sabe
temperar e adoçar seus remédios. Não é fácil deixar-se de uma
vez o que se prezou durante longo tempe! Por isto a Lei ini­
cialmente manteve os sacrifícios, abolindo os ídolos; depois manteve
a circuncisão, abolindo os sacrifícios; e enfim, por mudanças gra­
duais chegaram ao Evangelho os que primeiro tinham passado de
pagãos a judeus e depois de judeus a cristãos. Veja-se o testemunho
de Paulo, que primeiro praticava a circuncisão e as purificações, mas
adiante dirá: “se ainda eu prezasse a circuncisão por qüe haveria de
ser perseguidor? ” 5 Cedeu à prática antes de chegar à perfeição.
387 A partir daí pode-se entender o que se passou com a doutrina
sobre a Divindade. Também neste caso ocorreu uma mudança, em­
bora não pela abolição do que foi revelado antes e sim por acesso
progressivo a uma perfeição maior. A coisa se deu do seguinte modo.
O Antigo Testamento manifestou claramente o Pai e obscuramente
o Filho. O Novo manifestou o Filho e obscuramente indicou a di­
vindade do Espírito. Hoje o Espírito habita entre nós e se dá mais
claramente a conhecer.
Porque teria sido inseguro pregar abertamenté o Filho antes de
ser reconhecida a divindade do Pai; ou, antes de ser reconhecida a
divindade do Filho, impor-se, por assim dizer, a do Espírito Santo.
Poder-se-ia temer que, como as pessoas sobrecarregadas de alimentos
ou postas de súbito ante a luz do sol, fôssemos prejudicados por
aquilo que ainda não podíamos suportar. Era muito melhor que,
por adições parciais e, como diz Davi, per ascensões de glória em
glória, brilhasse progressivamente o esplendor da Trindade.
Por isto, penso eu, o Espírito se comunicou aos discípulos de
maneira singular e adaptando-se à capacidade de cada um; no início

4 Alusfo ao terremoto de monte Sinai, quando foi dada a Lei (Ex 1 9 ,1 8 s)e ao
do Calvário (M t 27,51). Em seguida se alude ao do fim do mundo (Hb 12,26).
5 G1 5,11.
tàtôÜRSO SOBRE O AMOR AOS POBRES 255

do Evangelho aperfeiçocu-lhes as forças, depois da Paixão de Cristo


fõi-Ihes insuflado e só após a Ascensão lhes apareceu nas línguas de
fogo. Pelo próprio Cristo foi sendo revelado aos poucos, conforme
$e Vê, prestando atenção aos textos. “Eu rogarei ao P ai”, disse ele,
“e ele vos enviará outro Paráclito, o Espírito da verdade” 6. Por
tais palavras indicava não estar referindo-se a uma Potência diversa
ou adversária da divina. Adiante dirá ainda que o Espírito seria en­
viado em seu n o m e7 e então, omitindo a palavra “rogarei”, conser-
vàva a referente ao envio. Depois dirá: “eu o enviarei” 8, para mos­
trar sua autoridade, e enfim dirá que o Espírito “virá” 9, indicando
o poder do mesmo Espírito.
Vede ccm o a luz foi chegando aos poucos, e a ordem pela qual
Deus se fez revelar a nós. Essa ordem também temos de respeitar
per nossa vez, não enunciando tudo sem certo prazo, nem tampouco
Omitindo a revelação de toda a verdade. Porque uma coisa seria
imprudente e a outra ímpia. Uma correria o perigo de ferir os de
fora, a outra o de afastar nossos próprios irmãos.
Aquilo então que talvez já aflorou à mente alheia mas julgo fru­
to de meu pensamento quero agora formular. O Salvador conhecia
certas coisas que ele achava que os discípulos ainda não podiam su­
portar, embora já estivessem repletos de copiosa doutrina. Por isto
ás ocultava. Mas acrescentava que o Espírito, quando viesse, lhes en­
sinaria tu d o 10. Penso pois que entre tais coisas estava a própria
divindade do Espírito Santo, a ser declarada mais abertamente quan­
do, após a ressurreição do Salvador, o conhecimento de sua própria
divindade estivesse corroborado por tal milagre insigne. Que há de
maior que isso, para ser prometido pelo Salvador, para ser ensinado
pelo Espírito? Nada mais digno da grandeza de Deus do que tal
objeto da divina promessa e do divino ensinamento! *

DISCURSO SOBRE O AM OR AOS POBRES


(P.G . 35, 857-910)

Irmãos e companheiros de pobreza — (pois somos todos po- 388


bres, os que necessitamos da divina graça, ainda se, mensurados por
pequenas medidas, possamos parecer mais ricos uns que os outros)
— recebei este discurso sobre o amor à pobreza. Recebei-o não pobre­
mente mas ambiciosamente, a fim de conseguirdes a riqueza do reino

6 Jo 14,16s.
7 J o 1 4 ,2 6 .
* J o 16,7 .
9 Jo 16,8.
10 Jo 16,12; 14,26.
256 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
dos céus. E orai comigo para que minha palavra vos possa alimentar
ricamente, repartindo entre vós o pão espiritual, fazendo-vos chover
alimento do céu, como Moisés 1, e nutrindo com alguns poucos pães
milhares de pessoas, como o fez Jesus, o verdadeiro Pão, o Autor da
verdadeira vid a2.
389 Pois bem, gostaria de ir ao assunto discorrendo sobre as virtu­
des, tentando determinar aquela que sobrepuja as demais e ganha en­
tre todas a palma da vitória. Tarefa aliás não fácil, como não seria
fácil ir escolher num jardim, cheio de perfumadas flores, a mais bela
e suave: ora uma, ora outra, haveria de solicitar nosso olhar, nosso
olfato, convidando-nos a apanhá-la incontinenti. Penso entretanto
que possa abordar o assunto fazendo as seguintes comparações.
Bela coisa são a fé, a esperança e a caridade, as “três" de que
fala o Apóstolo. Como é bela a fé veja-se em Abraão, justificado por
e la 3. Come é bela a esperança veja-se no exemplo de Henoque, o
primeiro a invocar o nome do Senhor4, e depois na multidão dos
justos que sofreram por causa da mesma esperança. Quão bela seja
a caridade atesta-o Paulo, pronto para padecer até gravemente por
causa de sua caridade pelo povo de Israel5; atesta-o sobretudo o
próprio Deus, cujo nome é Caridade!
Bela coisa é a hospitalidade, como vemos no exemplo de Ló
de Sodoma, não porém sodomita pelos costumes; e no de Raab, a
meretriz, que não o era pela intenção, pois foi elogiada e salva por
sua hospitalidade6.
Belo é o amor fraterno, como atesta Jesus, que não apenas se
dignou chamar-se nosso irmão, mas também quis sofrer por nosso
amor.
Bela coisa é a humanidade: veja-se outra vez Jesus, que além
de preparar o homem para todas as obras boas7, adicionou-lhe a ima­
gem exemplar das coisas belas e celestiais, e além disto se fez, ele
próprio, homem.
Bela é a paciência e por isto ele não somente recusou as legiões
de anjos contra os perseguidores que vinham prendê-lo, não só re­
preendeu a Pedro por desembainhar a espada, mas curou a orelha do
soldado ferido. E o mesmo faria Estêvão, discípulo de Cristo, orando
pelos que o apedrejavam8.
Bela coisa é a mansidão, como vemos em Moisés e Davi, elogia­
dos por ela mais que tu d o 9, e como vemos no seu Mestre, aquele

1 E x I 6 ,1 4 s ; cf. SI 7 7 ,2 5 .
2 Mt 14,15ss; Jo 6,35.
3 Gn 15,6.
4 Gn 4,26.
3 Rm 9,3.
6 J s 2 ,l s s .
7 E f 2 ,1 0 .
8 At 759.
9 Nm 12,3; SI 131,1.
DISCURSO SCBRE O AMOR AOS POBRES 257

que não discute nem grita, cuja voz não se ouve nas praças, e que
não resiste aos que o prendem.
Bela coisa é o zelo. Vemos em Finéias, que atravessou com
lança a madianita e o israelita 10, a fim de desagravar Israel; ou como
vemos nos que após ele disseram: “ tive ardente zelo do Senhor” 11,
“tenho per vós um ciúme de Deus” 12, “o zelo de tua casa me de­
vera” 13. Diziam-no e sentiam-no.
Bela é a mortificação do ccrpo, e por isto Paulo se mortificava 14,
atemorizando, com o exemplo de Israel, os que confiam em si mes­
mos e se entregam ao corpo. Jesus mesmo jejuou e assim venceu
ao tentador 15.
Bela é a oração e a vigília, e por isto o Senhor vigiou e orou
antes de padecer. Bela a castidade e a virgindade, e por isto Paulo
dita leis a respeito, emitindo um juízo justo sobre a relação entre
p matrimônio e a virgindade. Por isto também Jesus quis nascer
de uma Virgem, honrando a geração, porém mais ainda a virgindade.
Bela é a abstinência, e asçim Davi, quando teve em poder a água
da cisterna de Belém, não quis beb er10, para não satisfazer à própria
necessidade às custas do sangue alheio.
Belas coisas são o deserto e a tranquilidade, como nos ensinam
o Carmelo de Elias, o deserto de João, c monte ao qual se retirava
Jesus pata estar em silêncio consigo mesmo 17. Bela é a frugalidade,
que se vê em Elias hóspede da viúva 18, em João coberto de peles
de camelo, e em Pedro alimentando-se de tremoços comprados por
um vintém.
Bela a humildade, cujos exemplos seriam numerosos, e antes de
todos estaria o do Salvador e Senhor, que se humilhou assumindo a
forma de servo 19, apresentou a face aos perseguidores, foi contado >
entre os malfeitores 10, ele que tira o pecado do mundo, e enfim se
comportou como um serve, lavando os pés dos discípulos.
Bela coisa a pobreza, ó desprezo do dinheiro, atestado por
Zaqueu e sobretudo por Cristo. Zaqueu, quando Cristo entrou em
sua casa, por pouco não renunciava ao que tin h a21. E Cristo definiu
com isto a perfeição ao jovem rico22.

io N m 2 5 ,7 .
n l R s 1 9 ,1 4 .
12 2Cor 11,2.
13 SI 68,10.
14 lCor 9,27.
15 M t 4 ,l s s .
16 2Sm 23,15.
17 Mt 14,23.
18 l R s 17,9 .
19 F1 2.6.
20 I s 5 0 ,6 .
21 Lc 19,8.
22 Mt 19,21.9

9 - Antologia dos santos padres


258 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
Bela é a contemplação, bela a ação; aquela, porque se ergue
do terreno e penetra no santo dos santos, elevando nossa mente;
esta, porque hospeda a Cristo, dele cuida e lhe mostra o amor nas
obras.
Cada uma dessas virtudes é um caminho de salvação e conduz
às diversas moradas celestes; pois assim como há várias maneiras de
se viver, há diversas moradas na casa de D e u s23, que se destinam a
cada um segundo seus merecimentos. Portanto, pratique cada qual
uma virtude, pratique muitas delas, se possível todas! O importante
é caminhar e desejar ir avante, seguindo as pisadas daquele que nos
conduz pelo caminho estreito e pela pequena porta, à amplidão da
bem-aventurança celeste.
390 Pois bem, se conforme Paulo e o próprio Cristo, devemos con­
siderar a caridade o primeiro e o maior dos mandamentos, síntese da
Lei e dos profetas, acho eu que a parte principal da caridade é o
amor aos pobres, a misericórdia compassiva para com nossos seme­
lhantes. Não há culto melhor que sé possa prestar a Deus, pois ele
tem predileção pela misericórdia e pela verdade24, prefere a miseri­
córdia ao julgamento25. Ele, que mede com justiça e põe a misericór­
dia em sua balança, não quer que se pague de outra forma a benigni­
dade, senão com benignidade.
Assim, a todos os pobres devemos abrir o coração, a todos os
que padecem calamidade, seja por que for, pois devemos alegrar-nos
cóm cs que se alegram e entristecer-nos com os tristes 26. Sendo
homens, devemos pagar o tributo da bondade aos homens, seja qual
for a causa pela qual estiverem padecendo necessidade: por orfandade,
desterro, crueldade alheia, temeridade dos senhores, inclemência dos
patrões, ferocidade de bandidos, insaciabilidade de ladrões, confis­
cação ou naufrágio: todos são igualmente miseráveis e olham para
nossas mãos da mesma forma como olhamos para as de Deus
quando precisamos de algo.

391 H á alguns para os quais a única miséria está na carência de re­


cursos, que pode ser remediada pelo tempo, pelo trabalho, por um
amige ou parente, pela simples mudança das circunstâncias. Já os
enfermos, porém, não os atormenta menos a doença do que a po­
breza; privados de trabalhar e atender às próprias necessidades, é
sempre neles maior o medo da enfermidade que a esperança de cura;
esta, único alívio dos infelizes, pouco os ajuda. À pobreza acrescen­
ta-se a doença como um segundo mal e mais atroz, o mesmo que
está na boca do vulgo quando quer levantar uma maldição. E depois
DISCURSO SCBRE O AMOR AOS POBRES 259

há ainda o isolamento, pois ninguém quer aproximar-se e ver os en­


fermos, todos fogem como se fossem malditos. Então, para eles, mais
grave do que a doença é sentirem-se repugnantes por sua desgraça.
De minha parte, não posso contemplar sem lágrimas cs sofrimentos
desses homens, cuja simples recordação me entristece; e o mesmo
quisera que vós sentísseis, com lágrimas fugindo das lágrimas. E sei
que bem assim o sentem, entre os presentes, os que amam a Cristo
e aos pobres, os que desejam obter misericórdia de Deus!
Espantoso e lamentável espetáculo temos ante os olhos, incrível
mesmo: homens que ao mesmo tempo estão mortos e vivos, muti­
lados na maior parte de seus membros, e dos quais já não se pode
saber quem são, de onde vêm. Dir-se-ia até que já não são homens,
mas restos de homens. Como senhas de identidade repetem os nomes
de seus pais e mães, de fceus irmãos e povos: — Sou filho de fulano,
fulana é minha mãe, meu nome é tal ou qual, tu foste outrora meu
amige e conhecido. Precedem assim porque não se lhes haveria de
reconhecer a antiga forma. Homens mutilados, privados de dinheiro,
de parentes e amigos, até de seus próprios ccrpos.
Hcmens singulares entre os miseráveis, que parecem detestar-se
é simultaneamente pedem compaixão; já não sabem que membros do
córpo hão de deplorar mais, se cs que já não possuem ou se os que
ainda lhes sobraram; se cs que a enfermidade consumiu ou se os que
lhe servirão de pasto. Alguns perecem miseravelmente, outros se
conservam para a miséria ulterior; uns desaparecem antes de serem
enterrados, outros não há a quem dar-se para serem enterrados. É
assim que se mostram insensíveis a tais infelizes até as melhores
pessoas e as mais humanas, esquecidas de que somos carne e de
que estamos revestidos de humilde corpo, estando tão longe de cui­
dar dos que são de nossa estirpe a ponto de querermos até fugir .
deles para pôr em segurança nossos corpos. Não faltam casos em que '
alguém se aproxime de um morto antigo e fétido, que agüente a
hediondez de um animal e o saiba cobrir de terra, porém fuja até
de respirar o ar desses doentes.

São tais as calamidades que padecem os enfermos, irmãos nossos 392


segundo Deus, possuidores de natureza idêntica à nossa, formados do
barro do qual fomos todos criados no princípio. Foram feitos, como
nós, de nervos e ossos, revestidos de pele e carne, como todos, con­
forme diz Jó ao filosofar sobre nossos sofrimentos e ao desprezar o
que em nós é aparência. Ou, para falar melhor, eles receberam a
mesma imagem de Deus que todos nós e talvez a conservam mais
do que nós, embora estropiados nos corpos. Eles se revestiram, se­
gundo o homem interior, do mesmo Cristo que nós; foi-lhes dado o
mesmo Espírito. Participam de idênticas leis, dos mesmos divinos
oráculos e testamentos, das comunidades, dos sacramentos, da espe-
260 SÃO GREGÓRIO NÀZIANZENO
rança. Por eles também morreu Cristo, que tira o pecado do mundo.
São herdeiros da vida eterna, apesar de fracassados na vida presente.
São sepultados juntamente com Cristo e com ele ressuscitam. Pade­
cendo com ele serão glorificados com e le 27.
Que faremos, pois, nós? Nós que herdamos um grande e novo
nome, o do próprio Cristo; nós, que somos nação santa, sacerdócio
régio, povo particular e e le ito 28, seguidor de obras boas e salvíficas29;
nós, discípulos do Cristo manso e benigno, que carregou sobre si nos­
sas enfermidades30, se humilhou a ponto de assumir nossa carne e
se fez habitar neste tabernáculo terrestre, sofrendo por nosso amor a
fim de que nos enriquecêssemos de sua divindade? Tendo tal exem­
plo de misericórdia e compaixão, qüe pensaremos e que faremos com
esses miseráveis? Vamos desprezá-los, passar por eles de largo, aban-
doná-lcs como cobras ou feras? D e maneira alguma, irmão! Isso
não nos conviria, ovelhas que somos de Cristo, do bom pastor que vai
em busca da ovelha desgarrada e fortalece a frágil. Nem aliás condiz
com a natureza humana, que tem por lei a compaixão e pela debilidade
comum, nos ensina pela piedade e humanidade.
393 Consentiremos que eles suportem o relento, enquanto habita­
mos casas esplêndidas, ornadas de toda espécie de pedras raras, co-
ruscantes de curo e prata, ornadas de mosaicos e pinturas variegadas,
que são ilusão para os olhos? E umas habitamos, outras estamos ain­
da construindo. . . para quem? Talvez nem mesmo vão ser de nossos
herdeiros e sim de estranhos, quiçá de inimigos e invejosos. Consen­
tiremos então que aqueles doentes sofram sob seus farrapos ( queira
Deus não lhes faltem os farrapos!) enquanto nos regalamos com vesti­
mentas suaves de finos tecidos, de linho e seda? Destas, algumas nos
servirão para nossa indecência mais que para nosso adorno (pois as­
sim julgo tudo que é inútil e supérfluo); outras guardaremos nas
arcas, como inutilidades destinadas ao consumo da traça e do tempo.
Consentiremos pois que eles não tenham o necessário para co­
mer (ó delícias minhas, ó misérias deles!) e permaneçam ante nossas
portas, desfalecidos de fome, sem meios até corpóreos para pedir? Pois
destituídos de voz, não se queixam; sem mãos não as podem esten­
der para pedir; sem pés não pedem andar até aos ricos; sem res­
piração não podem entoar seus lamentos, e o que é o maior dos ma­
les, (a cegueira), têm pelo mais leve, pois dão graças por não verem
a desgraça que sofrem!
394 Esta é a condição deles. E nós, deitados em confortáveis e altos
leitos, entre cobertas luxuosas, nos irritamos até de ouvir a voz dos
que pedem! Parece-nos necessário que até o próprio chão exale
perfume de flores, inclusive fora de tempo; nossa mesa há de estar

27 Rm 8,17.
28 lP d 2,9.
29 T t 2,14.
30 Is 53,4;
DISCURSO SGBRE 0 AMOR AOS POBRES 261

igualmente perfumada com os mais requintados perfumes, para amo­


lecermos mais e mais; queremos ter a nosso lado meninos enfeitados,
de cabelos soltos e caras asseadas, com adornes mais do que con­
vêm a olhos desonestos; uns para segurarem cs copos na ponta des
dedos e com a maior elegância; outros para com foles produzirem
artificialmente ar fresco sobre nossa cabeça e refrescarem com as
mãos as massas de carne.
Nossa mesa queremos opulenta de carnes, provenientes em abun­
dância de todos os elementos: do ar, do mar e da água. E queremos
apurar as artes dos cozinheiros para afagar sempre mais este ventre
globoso e ingrato, esta carga pesada e fonte de males, fera insaciável
e infidelíssima, destinada a ser destruída junto com os alimentos des­
truídos. . .
Aos pobres basta que se fartem de água. Nós, nós temos ânforas
de vinho de onde bebemos até a embriaguez, pelo menos os mais in­
tempérantes. E ainda fazemos críticas aos vinhos, recusamos um,
filosofamos sobre outro, achando uma lástima se não se adiciona
ao vinho da terra algum outro dos famosos vinhos exóticos. Parece
uma obrigação que sejamos regalados e que vivamos no luxo, pois
do contrário 'nos envergonharíamos de não ser tidos por escravos
do ventre e do que está sob o ventre.
Mas que é isto, irmãos e amigos? Por que estaremos também 395
enfermes na alma, com uma enfermidade assim mais grave do que
a física? Esta é involuntária, a outra temos voluntariamente; uma
termina com a vida presente, a outra nos acompanha ao sairmos des­
te mundo; uma é objeto de compaixão, a outra de ódio (pelo menos
por parte de quem tem certos entendimentos). Por que não ajuda­
mos a natureza, enquanto temos tempo? Por que, carne que somos,
não suportamos a humildade da carne? Como nos entregamos ao pra­
zer entre as calamidades de nossos irmãos? Deus me livre de ser eu
rico, enquanto eles estão na indigência; de gozar de saúde robusta,
se não trato de cuidar das chagas deles; de posSuir comida de sobra
e de vestir-me bem , de ter enfim um teto, se não lhes proporciono
um pedaço de pão e não lhes deu, segundo minhas capacidades, uma
parte das vestimentas, se não os acolho sob meu teto!

Imitemos a suprema e primeira lei de Deus, que faz chover so- 39$
bre os justos e os pecadores, que faz nascer o sol para todos. Ele
abriu para todos cs animais terrestres a terra, com suas fontes, rios
e bosques; deu de graça os ares às naturezas aladas, deu a água . aos
peixes, deu a todos cs primeiros elementos da vida, não dominados
pelo poder, não circunscritos pela lei, não separados por fronteiras.
Não; todos esses elementos de vida ele os propôs em aberto e de
mode farto, para que nada faltasse, honrando assim, pela igual-
262 SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO
dade da dádiva a igualdade da natureza, e mostrando ao mesmo tem­
po a riqueza de sua própria bondade.
Já os homens, mal acabam de enterrar ouro, prata, vestes supér­
fluas, pedras preciosas, ou coisas do gênero, e que são sinais da
guerra e da tirania primitiva, eis que já se erguem soberbos para
negar a misericórdia aos infelizes, mesmo parentes. Nem sequer com
o supérfluo querem ajudar ao necessitado — ó tolice e maldade!
Deveriam pelo menos considerar que a pobreza e a riqueza, o que
chamamos liberdade e a escravidão, e outras coisas semelhantes, se
introduziram tardiamente na linguagem humana, à maneira de fra­
quezas comuns, em conseqüência da maldade e como invenções desta.
Mas no princípio, como diz a palavra evangélica, não foi assim 31.
Aquele que criou o homem no princípio e o deixou livre, submetido
apenas à lei do mandamento, fê-lo rico entre as delícias do Paraíso. E
o mesmo quis para todo o gênero humano, através da semente
do primeiro homem. A liberdade e a riqueza seriam a observância
do mandamento; a verdadeira pobreza e escravidão, sua transgressão.
Foi depois que se introduziram na vida a inveja e as contendas,
depois que a astuta tirania da serpente nos foi atraindo cada vez
mais pelas insídias do prazer, armando os mais audazes contra os mais
fracos, e então rompeu-se a unidade da linguagem comum, a avareza
amputou o que havia de nobre na natureza, assumindo a lei como
auxiliar do poder. Considera a igualdade primitiva, não a distinção
posterior, não a lei dc hcmem poderoso, mas a do Criador. Ajuda,
conforme tuas forças, a natureza, honra a liberdade primigênia, res­
peita a ti mesmo, cobre a desonra de tua linhagem, socorre a enfer­
midade e ajuda a indigência.
Tu, robusto, ajuda o enfermo; tu, rico, ajuda o necessitado. Tu,
que não caíste, ajuda ao que caiu e está atribulado; tu, que estás ani­
mado, ajuda ao desalentado; tu, que gozas de prosperidade, ao que
sofre na adversidade. Dá graças a Deus por seres um dos que podem
fazer o benefício e não um dos que necessitam recebê-lo; agradece por
não teres que olhar as mãos alheias como outros olham para as
tuas. Não sejas rico apenas p o t tua opulência, mas por tua piedade,
não só pelo ouro mas pela virtude (e até, somente pela virtude!).
Faz-te estimar pelo teu próximo sendo melhor que ele, faz-te um
deus para o infeliz, imitando a misericórdia de Deus.

397 Aquele que dá esmola — diz o apóstolo — dê com alegria32.


Assim, o bem que for feito se duplicará pela boa graça, da mesma
forma que o que se faz com pena e por força não tem graça nem
beleza. Há que festejar, e não que lamentar-se, quando se faz o bem.

31 Mt 19,8.
32 Rm 12,8.
DISCURSO SOBRE O AMOR AOS POBRES 263

“Se tirares a atadura — diz o profeta — e não levantares a m ão” . . . 33


Eu entendo por estas palavras a escassez e 0 exame, ou a dúvida
e a palavra de murmuração sobre o futuro. Quão grande e maravi­
lhoso será este! Quão grande será o prêmio! “Brilhará de manhã tua
luz e tua salvação aparecerá prontamente ” 34. E quem não deseja
a luz e a salvação?
Move-me ainda a bolsa de Cristo, que nos exortava ao cuidado
dos pobres e ao acordo entre Paulo e Pedro, quando, na repartição
dos campos de pregação do Evangelho, se reservaram ambos o cuidado
dos pobres 3536. Além de ter o mesmo Senhor definido a perfeição ao
jovem rico como a doação de todos os bens aos pobres. Pensas que
a humanidade para com c próximo não seja obrigação, mas coisa fa­
cultativa? não seja lei, mas apenas exortação? Bem que o desejaria
eu mesmo e bem que assim o pensaria! Mas me aterroriza o lembrar-
-me da mão esquerda e dos cabritos30, das imprecações que lançará
q soberano Juiz. Imprecação não porque se tenha roubado ou co­
metido sacrilégios e adultérios, não porque se tenha feito algo de
proibido. Nada disto atrai a condenação, mas sim o não se ter cui­
dado do próprio Cristo na pessoa dos pobres.
Èm conclusão, se me quereis prestar crédito, servos de Cristo,
irmãos e co-herdeiros, enquanto ainda é tempo, visitemos a Cristo,
cuidemos de Cristo, alimentemos a Cristo, vistamos a Cristo, acolha­
mos a Cristo, honremos a Cristo; não só sentando-o à nessa mesa,
como fizeram alguns 37, nem só oferecendo-lhe ungüentos, como Ma­
ria38, ou a sepultura como José de Arimatéia, ou o necessário para
a sepultura, como Nicodemos, que só amava pela metade a Cristo.
Nem o honremos apenas com curo, incenso e mirra, como os magos
antes destes que acabamos de mencionar. Não, o Senhor de todas
as coisas quer mais a misericórdia do que o sacrifício, mais que milha­
res de cordeiros as entranhas de compaixão. Demos-lha por meio dos
pobres e dos que jazem prostrados, a fim de que, ao sairmos deste
mundo, nos recebam eles nes eternes tabernáculos, no mesmo Cristo
Senhor nosso, a quem seja dada a glória pelos séculos. Amém.

33 Is 48,6.
34 Ibid. 8.
35 GI 2,9ss.
36 Alusão ao discurso de Jesus sobre o Juízo final: M t 25.
37 Lc 736.
3« Jo 12,3.
tfA CRIAÇÃO DO HOMEM" 265

Eis per que o homem é trazido por último na criação, não que
seja relegado com desprezo à última categoria, mas porque, desde seu
nascimento, convinha que fosse b rei de todos esses domínios. Um
bom dono de casa não introduz seu convidado senão após ter arruma­
do tudo para a refeição, arranjado e decorado suficientemente a casa
e a mesa; então, pronta a ceia, traz o convidadç. Da mesma forma,
aquele que, em sua infinita riqueza, é o hospedeiro de nossa natu­
reza, decora antes a morada com belezas de toda espécie e prepara este
grande festim com iguarias variadas, e só então introduz o homem
para confiar-lhe, não a aquisição de bens ainda futuros, mas o gozo
do que já se lhe oferece. Assim, criando-o, Deus lança um du­
plo fundamento para a mistura do divino ao terrestre, e faz que,
por essa dupla característica, o homem tenha naturalmente uma dupla
fruição: a de Deus, por sua natureza divina; a dos bens terrestres,
pela sensação, que é da mesma ordem desses bens.
Precisamos também considerar que, ao pôr cs fundamentos do 399
universo e de suas partes constitutivas, o poder divino realiza co-
mõ que de improviso suas obras, ordenando simplesmente que
venham à existência. Para a formação do homem, ao contrário,
há antes uma deliberação e, segundo a descrição da Escritura,
Uffi plano é estabelecido previamente pelo Criador, determinando
0 ser vindouro, sua natureza, o arquétipo donde ele trará a finali­
dade, o gênero de atividade, o exercício de suas potencialidades. A
Escritura considera tudo isso antecipadamente, como que mostran­
do nó homem uma dignidade anterior a seu nascimento. Com efeito,
ele recebe o comando do mundo, antes mesmo de existir: “Deus diz”,
conforme as palavras de Moisés, “façamos c homem à nossa imagem
e semelhança; que ele governe os peixes do mar, os animais da terra,
OS pássaros dos céus, os viventes e toda a terra”.
Coisa espantosa! O sol foi criado sem uma deliberação prece-:
dente; O céu também. E nc entanto nada os iguala na criação. São
maravilhas,' mas para cuja criação uma palavra é suficiente. A Es­
critura não indica de onde vêm, nem como surgem. É assim que cada
coisa em particular, o éter, os astros, o ar, o mar, a terra, os ani­
mais, as plantas, e todos os seres, vêm, por uma palavra, à existência.
Somente para criar o homem o Autor do universo se adianta com
circunspecção: prepara inicialmente a matéria que o comporá, confi­
gura-a à beleza de um arquétipo, depois, segundo a finalidade que
lhe compete, compõe-lhe uma natureza conforme com ele e relativa
às atividíades humanas, que ém seu divino plano lhe prefixou!
Os artistas terrenos imprimem aos instrumentos a forma corres- 400
pendente ao uso que deles farão. Assim também o melhor dos artistas
fabrica nossa natureza como uma criação adaptada ao exercício da
realeza. E pela superioridade devida à alma, e até pela aparência do
ccrpo, ele dispõe tudo de tal maneira que c homem esteja apto ao
exercício de um poder régio. Esse caráter régio, com efeito, que o
266 SÃO GREGÓRIO DE NISSA
eleva muito acima das outras condições, a alma espontaneamente o
manifesta por sua autonomia, por sua independência, pelo fato de,
em sua conduta, ser ela dona de seu próprio querer. D e que é
próprio tudo isto, senão de um rei?
Acrescentai ainda que sua criação à imagem da natureza divina
mostra precisamente ter ele desde o princípio uma natureza régia.
De accrdo 'ccm o uso comum, cs retratistas dos príncipes, além
da representação dos traços, exprimem a dignidade real pelas vestes
de púrpura e confeccionam uma imagem tal que nos leva a . dizer:
“é o rei”. Assim a natureza do homem, criada para dominar o mun­
do, devido a sua semelhança ccm o Rei universal, foi feita como
umà imagem viva que participa do Arquétipo pela dignidade e pelo
nome: a púrpura não a envolve, não há cetro ou diadema para
significar sua dignidade (o próprio Arquétipo não os tem ), mas em
lugar de púrpura ela está revestida da virtude, a mais real das ves­
tes; em lugar de cetro, ela tem o apoio de uma feliz imortalidade;
em lugar de diadema real, traz uma coroa de justiça, de sorte que
tudo nela manifesta sua dignidade régia, por sua exata semelhança
com a beleza do Arquétipo.
401 A beleza divina não é o resplendor externo de uma bela apa­
rência; ela consiste na indizível bem-aventurança de uma vida per­
feita. Assim como os pintores, ao representarem uma personagem
sobre a tela, arranjam as tintas e cores segundo a natureza do tema
que pretendem retratar, imaginai igualmente aquele que nos modela:
as cores, quanto à sua beleza, são aqui as virtudes que ele deposita
e faz florir em sua imagem para manifestar o poder que lhe per­
tence. A variada gama de cores postas nessa imagem, e que re­
presentam verdadeiramente a Deus, nada tem a ver com o verme­
lho, o branco ou outra mistura de cores, com o negro que serve
a escurecer as sobrancelhas e os olhos, e cuja dosagem certa põe em
relevo a sombra cavada pelos traços; nada tem com o que os
pintores pudessem inventar. Em lugar de tudo isto, pensai na pu­
reza, na liberdade espiritual, na bem-aventurança, no afastamento
de todo mal, e em tudo o mais que pode formar em nós a seme­
lhança ccm a Divindade. Foi com tais cores que c Autor de sua
própria imagem desenhou nossa natureza.
Se considerais outros caracteres da beleza divina, vereis que
também quanto a eles se conserva uma semelhança na imagem que
nós somos. A Divindade é Espírito e Verbo: “N o com eço”, de fa­
to, “era o V erbo”. E segundo Paulo, os profetas “têm o Espírito
de Cristo” falando neles. Ora, a natureza humana não está longe des­
tes atributos: em vós mesmos, vedes a razão e o pensamento, imita­
ção daquele que é em verdade Espírito e Verbo.
Deus é ainda Amor e fonte de amor. João, o sublime, diz:
“c amor vem de D eus” e “Deus' é amor”. O modelador de nossa
natureza pôs também em nós essa característica: “N isto, diz ele, com
“oração catequética ” 267
efeito, todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns
aos outros”. Portanto, se o amor está ausente, todos os traços da
imagem em nós se tornam deformados.
A Divindade, enfim, tudo vê, tudo ouve, tudo perscruta. Vós
também, pela vista e pelo ouvido, percebeis as coisas e pelo pensa­
mento podeis examinar e perscrutar o universo.

D A GRANDE “ORAÇÃO CATEQUÉTICA”


(Caps. 14, 15, 29 e 30; P.G. 45, 45ss)

Por que motivo, pergunta-se, Deus se humilhou a ponto de deixar 402


a fé desconcertada ante o fato de que ele, Ser incompreensível pela
mente e inexprimível pelas palavras — pois transcende toda concei-
tuação e capacidade — tenha vindo imiscuir-se no invólucro abjeto
e vil da natureza humana, fazendo que suas obras sublimes e
celestes se afigurassem aviltadas por tal mistura?
Não nos falta absolutamente a resposta que convém a Deus.
Desejas saber o motivo pele qual Deus nasceu entre os homens? Se
abstraísses da vida os benefícios que recebeste de D eus, não poderias
certamente indicar as coisas através das quais reconheces a Deus. Re­
conhecemos o Benfeitor através dos benefícios que recebemos. Obser­
vando o que acontece avaliamos a natureza daquele que atua. Se por­
tanto o indício e a manifestação própria da divina natureza é sua be­
nevolência para com os homens, aí tens a resposta desejada, o motivo
por que Deus veio aos homens.
Nossa natureza estava afligida pela enfermidade e precisava dê
um médico. O homem decaído precisava de alguém que o reerguesse.
Morto, tinha necessidade de quem o vivificasse. Era preciso que
fosse reconduzido ao bom caminho pois dele se apartara. Invocava a
luz o prisioneiro das trevas. Buscava um redentor o cativo, o agrilhoa­
do, o escravo. Serão acaso fúteis e indignas estas razões, de levarem
Deus a descer à humanidade, tanto afligida pela infelicidade e pela
miséria?
Mas, dir-se-á, o homem poderia ser salvo, permanecendo Deus 403
na impassibilidade. Pois aquele que tudo criou pelo poder e aceno de
sua vontade, não poderia com a mesma divina autoridade reconduzir o
homem ao estado inicial, se o quisesse, ao invés de percorrer um lon­
go itinerário, assumindo a natureza humana, aderindo a esta vida por
meio da geração, depois transitando as idades e enfim morrendo para
chegar pela carne à meta da ressurreição? (Como se não fosse pos­
sível àquele que permanece na divina glória salvar o homem por um
simples ato de império, mas devesse percorrer todo esse circuito).
268 SÃO GUEGÓRIO DS N1SSA

Convém, portanto, opor a tais objeções a verdade de nossa dou­


trina para que nada prejudique a fé nos que procuram examinar o
mistério.
Primeiramente consideremos o que é contrário à virtude. Cer-
tamente o contrário é o vício, e nada mais. Como as trevas são o
contrário da luz e a morte o contrário da vida. Pois da mesma forma
que entre as' criaturas nada se opõe à luz cu à vida, senão o que se
define propriamente de modo contrário, não portanto a pedra, a ma­
deira, a água, o homem ou outra das coisas que existem, mas apenas
as trevas e a morte; também nada se dirá contrário à virtude senão
o que se possa definir como vício.
Se então disséssemos que D eus nasceu no vício, poderia ser nos­
sa fé impugnada per um cbjetante: estaríamos afirmando algo de
inconveniente à natureza divina. Não seria possível admitir que a pró­
pria Sabedoria em si, a Bondade, a Incorrupção ou outro qualquer
nome sublime que se formule, se passe para seu contrário.
Sim, Deus é a verdadeira virtude, mas nenhuma natureza con­
traria a virtude a não ser o vido. Então, se ele não nasce no vício mas
na natureza humana, que em si não é má, por que tal nascimento
lhe seria inconveniente? A noção de virtude não é contrária à na­
tureza do homem. As propriedades da essência humana tais como
partidpar da razão e da inteligênda, ser capaz da dência, etc. não
repugnam à noção de virtude.

404 Passando adiante, tentam os objetantes investir por outros lados


contra o que dizemos. Assim se expressam: Se o fato (da Encarnação)
é conveniente a Deus, por que adiou tanto esse benefído? Se desde
o prindpio houve o v id o , por que hão impediu que aumentasse a
seguir?
Quanto a isto o pouco que temos para dizer é que o adiamen­
to do benefído se deu por uma razão de sabedoria e providênda
referente à cura de nossa natureza. Quando em nossas doenças do
corpo se forma uma secreção purulenta os médicos costumam espe­
rar que atinja certo grau e venha à superfíde para empregarem
os remédios. Assim também o Médico do universo esperou que
o mal do vício, uma vez contaminando a natureza humana, se exte­
riorizasse totalmente. Por isto não usou de sua terapia imediatamente
depois da inveja e do fratricídio de Caim, pois ainda não se haviam
manifestado os pecados do tempo de N oé, o gravíssimo mal dos ha­
bitantes de Sodoma, a luta dos egípcios contra D eus, a soberba dos
assírios, as sevídas des judeus contra os santos, o infantiddio cruel
de Herodes e todos os outros crimes depois consignados na literatu­
ra e na história — pois muitas vezes e de muitos modos haveria
de germinar a raiz do vido! Foi depois que este atingiu a culminân-
: 0 NATAL DE CRISTO 269

cia de suas manifestações produzidas pela cusadia dos homens, que


vèio o remédio destinado a curar toda a doença.
Se alguém insistir objetando e disser que mesmo após a divina
terapia ainda continua a pecar a vida humana, apelarei para um
exemplo simples e conhecido. A serpente, mesmo depois de receber
o golpe mortal na cabeça, continua movimentando a c a u d a ... da
mesma forma o vício, atingido por ferimento mortal, persiste manifes-
tando-se como que em restos de vida.
Mas e por que — dirão ainda — a graça de Deus não chega a 405
todos cs homens? Alguns se aproximam da fé mas muitos outros
h ã o ... Será qué Deus não quis conceder.seu benefício a todos, de
modo copióso, ou será que não o pôde? Uma e outra coisa seria
indigna de Deus! Se a fé é um bem, por que não é dada a todos
essa graça?
Ora, se esta objeção se fundasse nalguma asserção nossa de que
a vontade divina desse a uns a vocação da fé, deixando outros priva­
dos dela, sem dúvida a objeção constituiria uma dificuldade contra
ò mistério. Mas como pode acusàr a Deus pelo fato de o Verbo não
cbter senhorio sobre todos, se existe uma vocação oferecida a todos,
a qual não faz discriminação de dignidade, de idade, de raça (e por
isto mesmo nos primórdios da pregação ocorreu que, por inspiração
divina, os ministros da palavra falaram repentinamente a língua de
todos os povos, para ver-se que nenhum estava excluído dos bens
da salvação)! Aquele que tinha livre poder em relação a todos,
quis dar-nos a honra de deixar-nos alguma coisa em nosso poder, e
esta é a livre opção do livre arbítrio, dono de seu pensamento. Eis
por que há de se imputar a culpa aos que não vieram a fé, antes
que àquele que os chamou ao consenso. Aliás, quando Pedro fez sua
alocução diante de muitos judeus, e três mil aderiram à fé, não teve ,
culpa de que os outros também presentes não houvessem crido. Não
seria justo que o indivíduo que por própria vontade se apartou dà
fé, num momento de oferta comum da graça, imputasse a outro que
não a si mesmo essa atitude.

D O SERMÃO SOBRE O NATAL D E CRISTO


(P.G . 46, 1128ss)

O nascimento virginal do Senhor

Ouve a exclamação de Isaías: “um menino nasceu para nós, um 406


filho nos foi dado!” 1. Aprende do mesmo profeta como isso acon-

1 Is 9,5.
270 SÃO GREGÓRIO DE NISSA

teceu. Foi acaso segundo a lei da natureza? D e modo algum, res­


ponde o profeta. Pois não está sujeito às leis da natureza aquele
que é o Senhor da natureza. D e que maneira então nasceu esse filho?
“Eis — diz o profeta — uma virgem conceberá e dará à luz um
filho, o qual receberá o nome de Emanuel”, que significa “Deus
conosco” 2. O acontecimento admirável! Uma virgem se torna mãe
permanecendo virgem! Considera a nova ordem da natureza. Qual­
quer outra mulher, se permanece virgem, não pode tornar-se mãe;
tornando-se mãe, já não conserva a virgindade. N este caso porém
as duas qualidades se mantêm. A mesma pessoa é mãe e virgem.
A virgindade não a impediu de gerar, o parto não lhe tiroü a virginda­
de. Era conveniente que, vindo para fazer os homens íntegros e incor­
ruptos, o Salvador fizesse seu ingresso na vida humana a partir da
integridade total, consagrada a ele sem r ese r v a ...
E isto parece-me que o grande Moisés tenha conhecido anteci­
padamente, através da luz na qual se lhe manifestou o Senhor Deus
e quando a sarça ardia incandescente mas não se consum ia3. " I r e i
e verei este grande espetáculo”, disse ele, referindo-se, penso eu, não
a uma aproximação local mas a uma aproximação no tempo. O que
então estava prefigurado no fogo e no arbusto tcrnou-se, no mo­
mento oportuno, claramente revelado no mistério da Virgem. Da
mesma forma que a sarça ardente não se consumia, também a Virgem
não se corrompeu gerando a Luz.

DA “V ID A DE M OISÉS”
(P.G . 44, 368b; S.C. 1 bis)

O maná

407 Outra coisa que não se deve deixar passar sem refletir: depois
da travessia do mar, depois que a água se faz doce durante a viagem
(símbolo do progresso na virtude), depois do delicioso período em
que cs hebreus encontram as fontes e as palmeiras, e são desseden-
tados junto à rocha, começam a faltar as previsões trazidas do Egito.
Nessa situação, carentes de todo alimento estranho, chega-lhes do
céu um alimento a uma vez variegado e o mesmo. Sua aparência é
sempre a mesma, mas as qualidades são várias, “adaptando-se a cada
um conforme seu desejo” 1.
Que aprendemos disso? As purificações pelas quais devemos
purificar-nos da vida egípcia e estranha, esvaziando a alma de todo
alimento impuro, preparado por estranhos, para podermos receber

2 Is 7,14; Mt 1,23.
3 Ex 3,2.
"VIDA DE M OISÉS” 271

com alma pura o sustento que desce do céu. Este sustento, não é o
trabalho da terra que o semeia e produz para nós, é um pão que se
: obtém pronto e sem labor: desce do céu e é encontrado sobre o solo.
Percebes qual o verdadeiro manjar figurado por tal episódio. O pão,
descido do céu, não é algo de incorpóreo: como haveria de nutrir
nosso corpo algo de incorpóreo? £ um pão corpóreo. Mas a matéria,
de que consta, não se produz pela semeadura e pelo trabalho do
homem; a terra, sem sofrer mudança alguma, se vê coberta do divi­
no alimento, feito para os famintos. O mistério da natividade virginal,
eis o que está ensinado antecipadamente por tal milagre! O pão,
não produzido pela terra, é pois o Verbo, que adapta seu efeito às
disposições dos que o recebem, graças à diversidade de suas quali­
dades. .Realmente, ele sabe ser não só pão, sabe tornar-se carne,
legume, e tudo que desejem os que o recebem: ensina-o Paulo, o
idivino apóstolo, o qual nos oferece em suas obras esse alimento,
jtornando sua própria palavra carne sólida para os perfeitos, legume
para ps fracos, leite para os que são como criancinhas.
r , O que a história (bíblica) relata sobre o maná é instrutivo para 408
a vida espiritual. Ali, cada um pode recolher a porção que lhe interessa,
sem que a diferença de vigor dos que recolhem acarrete excesso ou
deficiência no satisfazer às suas necessidades. Com isto, penso eu,
um conselho vem dado de modo geral aos que procuram sua subsis­
tência nas coisas materiais: não exceder os limites das próprias neces­
sidades, saber que há apenas uma medida para todos no uso dessas
coisas, e ela é o sustento quotidiano. Se te serves de mais do que o
necessário, teu ventre não irá ultrapassar sua capacidade, não poderá
dilatar-se com o excesso. Assim, como diz a história (bíblica), aquele
qúe tomava a mais não levava vantagem, pois não tinha onde pôr
ò supérfluo; e o que tomava menos não ficava frustrado, pois tomava
segundo a medida de sua necessidade. '
Quanto aos que deixam de reserva o supérfluo, lemos na his­
tória que este se estragava: a Escritura brada assim aos ambiciosos
que o excedente das necessidades, acumulado por instinto de ente-
souramento, se transformará no dia seguinte, isto é, na vida futura,
em verme para séu possuidor. Quem me lê compreende facilmente:
o verme aqui designa aquele outro que não acaba e que alimenta a
concupiscência.
Ficava sem estragar-se apenas o que se reservara para o sábado. 409
Percebemos um conselho, o de usarmos de liberdade na aquisição das
coisas que não sofrem a corrupção e elas se tornarão úteis para nós
quando, após esta vida de preparação, isto é, após a morte, estiver­
mos na impossibilidade de adquirir mais. Com efeito, o dia anterior
ao sábado é, na realidade, conforme o nome indica, preparação
( parasceve) do sábado: a parasceve é a vida presente, durante a
qual nós armazenamos os bens da vida futura, na qual nenhuma das
atividades atualmente possíveis se exercerá: agricultura, comércio, vida
272 SÃO GREGÓRIO DE NISSA

militar etc. Nós viveremos então num lazer perfeito de todas estas
atividades, recolheremos os frutos das sementes que tivermos plan­
tado durante a vida atual, incorruptíveis se tiverem sido boas semen­
tes, perecíveis e miseráveis se tiverem sido assim os frutos dos tra­
balhos atuais. “Quem semeia no Espírito, diz a Escritura, recolherá
do Espírito a vida eterna; quem semeia na carne recolherá da carne
a corrupção” 2. Mas só a preparação do que é bom vem chamada
propriamente parasceve, e é sancionada como tal pela Lei, que deixa
de lado os bens incorruptíveis; para estes não há parasceve, nem a rea­
lidade nem o nome. Pois não merece dizer-se preparação o que sé
termina na privação dos bens, merece dizer-se falta de preparação.
Portanto, a história prescreve aos homens a única preparação, a que
consiste nas boas obras, deixando tacitamente supor, aps capazes de
entender, que existe outra preparação. Ocorre aqui algo de semelhante
com o alistamento militar: o comandante do exército começa por dar o
soldo, depois dará o sinal para a guerra. Assim também os soldados
engajados na luta pela virtude recebem inicialmente seu místico soldo,
e só depois se engajam na guerra contra os estrangeiros, já então sob
a conduta de Jesu s3, sucessor de Moisés.

DA “VIDA DE S. GREGÓRIO TAUMATURGO *


(M.G. 46, 909s)

Uma aparição de Maria Santíssima

410 Constrangido a receber o jugo do episcopado, Gregório, depois


das solenidades de costume, pediu ao bispo, que o designara, algum
tempo para conhecer mais exatamente o mistério da fé, durante
o qual, sem consultar carne e sangue — para falarmos como o Apósto­
lo 1 —- haveria de implorar a Deus que lhe manifestasse os aspectos
difíceis da doutrina. Ele não começaria realmente o ofício da prega­
ção da palavra antes que a verdade lhe fosse revelada mediante uma
aparição.. .
Estava, pois, meditando certa vez, por toda uma noite, a respeito
do significado e dá expressão da Fé, com grande agitação de pensa­
mentos no espírito, porque havia, também naquele tempo, pessoas
que adulteravam a pia e sincera doutrina da religião, criando, com
argumentações capazes de impressionar, incertezas até para os dou­
tos e prudentes. Eis então que lhe aparece, nessa noite de vigília, al­
guém em figura humana, de aspecto senil, mostrando pelo ornato e
composição da veste um augusto e sagrado esplendor, ao mesmo

2G L 6,8.
3 Jesus, em hebraico, é o mesmo nome que Josué, o sucessor imediato de Moisés.
i G1 1,16.
“ vida de s. gregório taumaturgo* 273
tempo que, pelo encanto da face e de todo o seu aspecto, um gran­
de poder. Aterrorizado com a visão, Gregório ergueu-se do leito para
melhor averiguar o que seria e por que razão ocorria. A aparição,
porém, tranqüilizou-o, dizendo com voz branda ter vindo por ordem
divina a fim de revelar a verdade da fé a respeito dos assuntos
que estavam sendo controvertidos e postes em dúvida. Recobrou
élè o ânimo ao ouvir estas palavras e passou, com um misto de ale­
gria e espanto, a fitar o ancião, o qual em seguida estendia a mão em
sinal de lhe mostrar o que aparecia do outro lado. Acompanhando
ccm o olhar esse gesto, viu Gregório nova aparição, distinta da pri­
meira: alguém, em figura feminina, de aspecto mais excelente e su­
blime que o da condição humana. Mais uma vez atemorizou-se, e
afastando o clhar, que não pedia suportar a visão, hesitava cabisbaixo
sobre o sentido da cena, maravilhosa sobretudo pela luz que irradiava,
cerno se fôra um facho aceso, na escuridão da noite. Impedido de
enfrentá-la ccm os olhos, limitava-se a escutar o que falavam as duas
figuras. Conversavam a respeito do assunto doutrinário sobre o qual
ele mesmo estivera questionando. Da conversação recebia então um
verdadeiro conhecimento da doutrina da fé e além disto certificava-se
de quem eram os dois interlocutores, pois se chamavam um ao outro
pelo próprio nome. Ouviu que a figura feminina exortava o evange­
lista João a expor e explicar ao jovem bispo o mistério da verdadei­
ra piedade, e ouviu que ele dizia estar pronto a atender, com todo
o gosto, à Mãe do Senhor. Depois, feita a explicação de maneira mui­
to apropriada e bem definida, tudo desapareceu ao olhar de Gregó­
rio, que imediatamente se pôs a redigir a instrução recebida. Foi
baseado nela que fez mais tarde sua pregação na igreja e deixou aos
pósteros o legado de uma doutrina aprendida do alto e, em confor­
midade com a qual, o povo daquela cidade pôde ficar imune de to^a
heresia, até o dia presente. Ora, as palavras desse místico ensinamen-*
to são as seguintes:

“Um só Deus, Pai do Verbo vivente, que è a sabedoria subsis- 411


tente e a potência, a figura (xopa^ÚP) eterna. G erador perfeito do
perfeito, Pai do Pilho unigénito.
Um só Senhor, único procedente do único, D eus procedente de
Deus, sinete e imagem da divindade, V erbo eficaz, sabedoria que abra­
ça a composição do universo, e potência realizadora de toda a Criação.
Pilho verdadeiro do Pai verdadeiro, invisível saído do invisível, incor­
ruptível saído do incorruptível, imortal do imortal, eterno do eterno.
Um só Espírito Santo , que de Deus se origina e tem sua exis­
tência, e que pelo Pilho fo i manifestado aos homens. Imagem do
Filho, perfeito saído do perfeito, vida causa dos viventes, fonte santa,
santidade dispensadora de santificação, no qual se manifesta Deus Pai,
que está acima de todos e em todos, e D eus Filho, que pervade to ­
dos os seres.
274 SÃO GREGÓRIO DE NISSA

Tríade perfeita, que não está dividida nem alienada pela glória>
pelà eternidade, pelo reino. Nada há pois que seja criatura ou servo
na Tríade, nada de adventício, que antes não existisse e depois fosse
ali introduzido. Jamais faltou o Filho ao Pai, ou o Espírito ao Filho.
Sem mudança e alteração, é sempre a mesma Triade" 2

Se alguém quiser assegurar-se desta profissão de fé ouça a Igreja,


na qual Gregório pregava e onde estas palavras ainda se conservam,
exaradas por sua própria mão.

2 O texto deste "Cíedõ*’ se âchá tatnb^m em P.G. 10, 984; cf. RJ,, 611.
PRUDÊNCIO
(348 e. 405)

' Aurélio Prudêncio Clemente, natural da Espanha, é considerado o maior dentre


os poetas do século IV, comparado a Horácio. Durante longos anos dedicado à vida
política, a tudo renunciou para consagrar-se à piedade. Seu gênio poético foi criativo,
desenvolvendo-se nos planos épico e lírico.
Tem vários livros de hinos, conservados em numerosos manuscritos antigos. Al­
guns foram inseridos na Liturgia romana (festa dos santos Inocentes, Epifania).
Edição crítica em CCL, t. CXXVI. Em espanhol: BAC, 58 ( “Obras completas de
Aurélio Prudêncio").

H IN O DA M A N H A 1
(P.L. 59, 785-796)
Ó noite, ó treva, ó nuvens, Pois surge o dia, e todos 412
não mais fiqueis aqui; entregam-se ao labor:
já surge a doce aurora, juízes e operários,
ò Cristo vem: parti! artista ou professor.

Rasgou-se c véu da terra, A ti, Cristo, buscamos,


desceu do sol um raio: de todo o coração,
as coisas tomam cores, cantando de joelhos,
já voltam do desmaio. chorando de emoção.
<
Também ao sol divino, Penetra a nóssa mente,
contrito o coração, embebe a nossa vida,
desfaz-se logo a treva lavando em tua luz
da Humana escuridão. a alma envaidecida.

Em vão as nossas faltas Tu fazes como o leite


escondem-se com medo; o mais negro pecado:
a nova luz revela o ébano em cristal
o mais sutil segredo. por ti é transformado.

Na sombra age o ladrão, Já surge a luz dourada,


a noite é um convite; a treva dissipando,
a luz, contrária ao crime, que as almas ao abismo,
roubar já não permitè. aos poucos vai levando.

1 Tradução de D. Marcos Barbosa. E stio aqui apenas as principais estrofes.


276 PRU0ÊNCIQ

Que a luz nos traga a paz, Do alto, nossos atos


>ureza ao coração; Deus vê constantemente:
Í onge a palavra falsa,
o pensamento vão.
solícito nos segue,
da aurora ao sol poente.

Decorra caindo o dia: Juiz e testemunha,


que a mão, a língua, o olhar, penetra a mente humana:
não venham na impureza ninguém engana a Deus,
o coração manchar. e Deus jamais se engana.

H IN O DA E P IF A N IA 1
(P.L. 59, 901ss)

413 Os que buscais o Cristo, Belém, cidade única,


ao alto a vista erguei, só ela pôde ver
e logo tereis visto num corpo como o nosso
sinal de grande rei. o Salvador nascer.

Pois uma estrela nova, Aflito, Herodes ouve


vencendo a luz do dia, que um rei nasceu ali,
que Deus já veio à terra trazendo em suas mãos
aos homens anuncia. o cetro de Davi.

Vejamos no menino “Guardas, correi depressa,


o sol que não descora, (exclama em seu furor),
que a tudo precedeu, enchei de sangue o s ; berços,
gerado antes da aurora. matai meu sucessor!”

É o rei do povo hebraico, Salve, nascentes rosas,


também o rei das gentes, na vida mal entradas,
outrora prometido por mãos tão criminosas
de Abraão aos descendentes. das hastes decepadas. . .

Os magos, vendo a estrela, A história dos martírios


correm com seu tesouro, bem cedo começais:
prostrados oferecem com palmas e com lírios
o incenso, a mirra, o ouro. ao pé do altar brincais.

O ouro é dado ao Rei, E a ti, cruel Herodes,


ao Deus, o incenso puro; que te aproveita isto?
mas fala do sepulcro Em meio a tantos mortos,
da mirra o pó escuro. . . ileso sai o Cristo.

1 Tradução (das principais estrofes) de D. Marcos Barbosa.


NO PARA ANTES DA REFEIÇÃO

H IN O PARA ANTES DA R E FEIÇ Ã O 1


(P.L. 59, 796ss)

0 bom crucificado, autor da luz,


ó criador de toda criatura,
ó Verbo feito carne em virgem santa,
porém antes do sol, do mar, da terra,
existente no Pai!

Abaixa o teu olhar, eu te suplico,


inclina a tua face salvadora
e dá-nos contemplar teu rosto calmo,
a fim de partilharmos desta mesa
em tua honra e nonié.

Porque sem ti, Senhor, não há doçura,


e nada satisfaz a nossa fome,
se antes não descer a tua bênção
sobre estes alimentos e bebidas,
que a fé terna sagrados.

Tenha gosto de Deus nossa comida,


possa o Cristo jorrar em nossos copos,
reine eterna a Santíssima Trindade
sobre os nossos trabalhos e lazeres,
nossas vidas e ações.

Não me cubro de pétalas de rosas,


nem procuro os aromas de um perfume,
mas o néctar da graça que àté nós
em suave fragrância se derrama
do coração do Pai.

Deixa de lado, Musa, aquelas heras


que coroam as frontes dos convivas,
mas aprende a tecer guirlandas místicas:
versos sagrados cinjam teus cabelos
de louvores a Deus.

Que tarefa mais grata à nossa alma,


filha amada do céu, gota de luz,
senão cumprir alegre o seu dever
de entoar ao Criador ação de graças
pelos frutos da terra?

1 Tradução de D. Marcos Barbosa.


278 PRUDÊNCIO

415 Tu és, ó Cristo, a pomba poderosa


que põe ém fuga a ave de rapina;
o cordeiro de neve que no aprisco
impede ao lobo abrir a enorme boca;
'i tu dominas o tigre.
Deus cheio de riqueza, ouve as preces,
as orações que agora te fazemos:
restaure a refeição os nossos corpos
e jamais o alimento imoderado
possa prejudicar-nos.
Não haja para nós bebida amarga,
nem por ventura chegue ao nosso alcance
o que houver de mortal ou de nocivo;
mas saiba moderar-se o nosso gosto,
incólume a saúde.
Deste à serpente haver presenciado
a ímpia refeição que trouxe aos corpos
miserável doença e morte certa;
e baste uma só vez à criatura
morrer por seu pecado!
Fruto de um sopro, força incandescente,
morrer não pede a alma que procede
da boca do Senhor sentado ao trono,
ao insuflar a vida ao escuro barro,
artista e criador.
Que o Senhor nos conceda após a morte
recuperar o corpo que perdemos,
reunindo na cova o pó disperso
e fazendo surgir de antiga cinza
nossa primeira forma.
Eu creiò (e minha fé não é vazia)
que os corpos como as almas viverão,
pois lembro que na sua humanidade
foi que voltou do limbo à vida plena
o Deus vitorioso.
E espero firmemente que o meu corpo,
após ter repousado entre perfumes,
por Cristo que da terra saiu vivo,
será também chamado do sepulcro
até cs astros de fogo. ..
SAO JOAO CRISÓSTOMO
(c. <fe 354-407)

O mais conhecido dentre os Padres da Igreja grega. Natural de Antioquia, ali


pasceu a mocidade, vivendo monasticamente, tendo como mestre Deodoro de Tarso
c colega Tecdoro de Mopsuéstia. Ordenado presbítero em 386, tornou-se famoso^ pre­
gador e mais tardè patriarca de Constantinopla. Sua eloquência lhe valeu o título,
dado pela posteridade, de Crisóstomo ( = boca de ouro),
No exercício zeloso d a s. funções pastorais, atraiu irritações na corte. Falsas sus­
peitas sobre sua ortodoxia levaram-no ao exílio, na Armênia. Morreu em Comana, no
Ponto.
I O papa são Pio X proclamou-o padroeiro dos pregadores.
Tributária da teologia dita antioquena, de tendência mais para o racionalismo do
due para o misticismo (em oposição à teologia alexandrina), a obra de são João
Crisóstomo, embora de cunho predominantemente pastoral, não se apresenta isenta
de pontos criticáveis no plano da doutrina. Tem especial valer o que escreveu sobre
a Eucaristia.
É autor de Comentários a vários livros bíblicos, de Sermões, de um tratado sobre
o sacerdócio, e dé obras pastorais.
Diversas obras em grego e francês, na col. S.C., tomes 138, 117, 50, 103, 13, 28,
138, 79, 125.

SERMÃO "CONTRA OS ESPETÁCULOS”


(P.G. 56, 264-270)

— É isto tolerável? É isto permissível? Quero que sejais vós 416


mesmos os juízes. Também Deus agiu assim ccm os judeus, quando
os interpelou: “Povo meu, que te fiz eu, em que te fui molesto?
Resjjonde-me” E no livro de Jeremias perguntou-lhes de novo:
“Que injustiça encontraram em mim vossos pais?” 12 Imitarei, pois,
o exemplo de Deus, interrogando-vos:
— É isto tolerável? É isto permissível?
A despeito de prolongados e reiterados discursos, a despeito
da grande e recente lição3, alguns houve que, abandonando-nos,
foram ao espetáculo de corridas de cavalo e se entregaram ao de­
lírio das ovações, enchendo a cidade com gritos, berros e risadas.
Isto é para chorar!

1 Mq 6,3.
2 Jr 2,5.
3 O bispo refere-se a uma calamitosa tempestade ocorrida dias antes, por motivo
da qual se tinham feito procissões e súplicas na célebre igreja dos Apóstolos em
Constantinopla.
280 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

Eu estava em minha casa e, ao ouvir a algazarra, mais sofria


do que se fosse atingido por uma tempestade. Como cs náufra­
gos que se percebem em perigo, vendo as ondas baterem com furor
contra os flancos do navio, era assim que me sentia, como se desa­
bassem sobre mim as ondas dos gritos irritantes, e me encolhia,
cabisbaixo de vergonha, enquanto uns nas arquibancadas e outros, no
meio da á^ora, torciam delirantemente pelos carros em corrida. Que
poderia responder, que desculpas haveria de alegar, se um forasteiro,
presenciando tal loucura, me perguntasse:
— É esta a cidade dos apóstolos? esta a cidade que acolheu
um mestre como santo André? este aquele povo amante de Cristo,
auditório seleto e espiritual?
Nem mesmo quisestes guardar o dia em que se consumaram
os símbolos da Redenção de nossa estirpe! Na próxima : sexta-feira,
no dia em que o Senhor foi sacrificado e o Paraíso reaberto, no
dia em que o ladrão foi reconduzido à Pátria e nós ' fomos res­
gatados da maldição, no dia em que nossos pecados foram anulados
e terminou a guerra dos séculos, no dia em que Deus se reconcilia­
va com os homens, mudando tudo para o bem, no dia destinado
ao jejum, à oração e à ação de graças Àquele que derramou seüs
benefícios sobre o mundo, vós não vos importáveis Com igreja,
sacrifício, comunidade fraterna, dignidade do jejum, e corríeis para
o teatro, como que escravizados e arrastados pelo demônio. Dizei-
-me: — É isto tolerável? é isto permissível?
Não me cansarei de repeti-lo, pois aliviarei minha dor, não
se a sufocar pelo silêncio, mas se a considerar de frente e se a ma­
nifestar diante de vossos olhos.
417 Como iremos agora pretender que Deus seja propício para
conosco? Faz três dias que terríveis aguaceiros desabaram aqui,
inundando e arrasando, arrancando, por assim dizer, o pão da
boca des lavradores, abatendo as espigas de trigo e destruindo tudo
o mais pela umidade. Recorremos a ladainhas e rogações, nossa
cidade em peso acorreu à igreja dos Apóstolos e imploramos a
proteção de são Pedro e de santo André, dos inseparáveis apósto­
los Paulo e Timóteo. E depois de aplacada a ira divina, atravessa­
mos c mar, arrostamos as ondas, lançando-nos aos pés dos corifeus:
Pedro, a rocha da fé, e Paulo, o vaso de eleição; tecemos-lhes um
panegírico espiritual, enaltecendo seus sofrimentos e suas vitórias
centra os demônios. Ora, não vos intimidais por acontecimentos as­
sim tão recentes? não vos deixais instruir pelos sublimes exemplos
des apóstolos? Pcis mal decorreu um dia após isso e já vos entregá­
veis às danças e gritos, já vos deixáveis arrastar pelas paixões?
Se tanto vos agradava assistir à corrida de animais, por que não sub­
jugastes vossos afetos animais, vossa ira e concupiscência? Por
que não lhes impusestes o jugo suave e leve da sabedoria? Por que
não os dirigistes com as rédeas da reta razão, em direção ao prêmio
SERMÃO- "CONTRA OS ESPETÁCULOS” 281

da vocação celeste, isto é, da terra para o céu, não do circo para o


teatro? Pois é essa corrida que conjuga a alegria ao proveito.
Negligenciastes, porém, vossos próprios interesses, fostes tor­
cer ; pela vitória de outros e empregastes mal um dia tão grande,
s Não sabeis que Deus nos pedirá contas de como empregamos to­
dos os dias da vida, assim como também pedimos contas até do últi­
mo centavo a quem confiamos nosso dinheiro?
A- Que diremos, que desculpas alegaremos, quando chegar nossa
hora?
É por vós que nasce o sol, que a lua ilumina a noite e as es­
trelas brilham, Por vós cs ventos sopram, os rios correm, as se­
mentes brotam e as plantas crescem. Por vós a natureza perfaz
seu curso, o dia amanhece e a noite passa. Tudo isso foi feito por
Vbssa causa. Vós, porém, enquanto as criaturas vos servem, satisfazeis
a cobiça do demônio e não pagais o aluguel dessa casa, que é o mundo,
e que de Deus alugastes?
E não vos bastou a profanação de um dia, quisestes ainda profa- 418
rtar o seguinte! 4 Em vez de ao menos descansar um pouco do mal
realizado, enchestes novamente o teatro, como quem corresse da fu­
maça para o fogo, lançando-se num abismo mais profundo! An­
ciãos desonraram suas cãs, jovens aviltaram sua juventude, pais le­
varam consigo os filhos atirando-os desde os tenros anos nos pre­
cipícios do mal, de modo que já não seria erro chamar de infanticidas
tais pais que malvadamente levam as almas de seus filhos à perdição.
; - Em que consiste vossa maldade? Nisto: já não percebeis que
cometeis pecados>Nisto está precisamente minha dor! Aflijo-me porque
não sentis vossa doença e assim não procurais remediá-la.
- Cometeis adultério e me perguntais de que mal sofreis? Não
ouvistes a palavra de Cristo: “Todo aquele que olhar para uma mm
íher, cobiçando-a, já adulterou com ela no seu coração?"5
— Mas que mal há nisso, dizeis, se não olhamos para cobiçar?
Como se essa objeção pudesse convencer-me! Quem não é
capaz de privar-se do teatro, mas procura os espetáculos com tamanha
paixão, como poderá estar incontaminado depois do espetáculo?
Vosso corpo é por acaso de pedra ou de ferro? Sois de carne humana,
que com facilidade é arrebatada pela paixão da concupiscência!
Aliás, por que falar em teatro, se já é o bastante encontrarmos 419
uma mulher na praça para .ficarmos perturbados? Vós, porém, sen­
tados no teatro, onde tanta coisa incita à torpeza, vedes a mulher
que entra no palco, de cabeça descoberta e maneiras impudicas, com
roupas douradas e gestos voluptuosos, a cantar canções obscenas, a
dizer as coisas mais sensuais que se pudessem imaginar, às quais vos
inclinais para melhor prestar atenção, e vindes agora dizer-me que

4 Na sexta-feira tinham ido ao drco e no sábado foram ao teatro.


5 M t 5,28.
282 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

nada sentis? Sois porventura de pedra ou de ferro? Não me cansarei de


perguntar-vos: Sois porventura mais sensatos do que os grandes e no­
bres varões que caíram só com a visão do pecado?
Não conheceis as palavras de Salomão: “Pede caminhar alguém
sebre brasas sem que seus pés se queimem? Pode alguém esconder
fogo no seio „sem que suas vestes se inflamem? Assim o que vai
para junto da mulher do seu próximo” 6. Pois mesmo que não
vos juntásseis com a meretriz, já pecastes com ela pelo desejo, já
pecastes no coração!
E isso não só durante, mas também após o espetáculo, visto
que a figura da mulher se aninhou em vossa memória, como também
suas palavras, atitudes, olhares, andares, danças e canções obscenas.
Será com inúmeras lesões que tereis deixado o teatro.
Não é porventura daí que se originam a destruição da vida
familiar, o adultério, os divórcios, as inimizades e brigas, os des­
gostos da vida? Fascinados por aquela mulher, vós vos tornais seus
escravos, de sorte que vossas esposas passam a parecer desagradáveis,
vossos filhos importunos, vossos servos insuportáveis, vossa casa fas­
tidiosa, vossas responsabilidades molestas e tudo o mais pesado e
aborrecido.
A razão dessa mudança é que não voltais sozinhos para casa, mas
acompanhados de uma meretriz — não abertamente, o que aliás seria
mais tolerável, pois vossas esposas logo a expulsariam —- mas es­
condida em vossa mente, em vossa consciência, avivando lá dentro
o fogo babilónico, o que é muito mais funesto, porque não são mecha,
óleo e peixe que alimentam tal fogo, mas são as palavras de mulher
que provocam total incêndio.
Assim como os que estão ccm febre, embora não tenham de
que se queixarem dos outros, tornam-se, pela moléstia, ásperos para
com todos, recusando alimentar-se, vituperando os médicos e enfure­
cendo-se com os enfermeiros, do mesmo modo se alteram e se con­
trariam os que sofrem da terrível moléstia do adultério, em toda parte
enxergando a meretriz.
O lobo, o leão, os animais fogem do caçador quando feridos.
420 O homem, todavia, sendo racional, eis que persegue teimosamente
aquela que o fere, expondo-se de boa vontade a ser atingido por
suas flechas de modo mais perigoso e comprazendo-se na ferida!
É isso o mais doloroso e o que faz incurável a doença. Pois
quem procura o médico se não odeia a ferida nem deseja livrar-se
dela? Aflige-me ver-vos sair assim tão lesados por um prazer de
breve duração. Antes do inferno pareceis querer antecipar aqui os
piores castigos! Ou não é isto o que fazeis, fomentando tal paixão,
deixando-vos arder e envolver ccm a chama de um absurdo amor?
Ainda assim tendes coragem de transpor os umbrais da Casa de

6 Pr 6,28.27.29.
■ SERMÃO “ CONTRA OS ESPETÁCULOS” 283

Deus e de tocar na Mesa celeste? Como escutareis os sermões sobre


a continência, assim cobertos de chagas e com a mente de tal modo
escravizada pelo vício?
Será preciso acrescentarmos algo ainda?
Vejo, porém, que vos entristeceis pelo que ocorreu. Percebo 421
que alguns se percutem em sinal de tristeza, enquanto estou falando e
fico-vos muito penhorado ao ver-vos assim compadecidos. Penso
que muitos dos que não pecaram também se entristecem, afligindo-se
pelas feridas dos irmãos. É por isso mesmo que tanta pena me dá
a idéia de que a tal rebanho venha o demônio fazer qualquer mal!
Se quiserdes, podemos fechar-lhe a entrada! D e que modo?
Se cuidarmos que os doentes recuperem a saúde, se abrirmos as re­
des da doutrina e procurarmos envolver os que sucumbiram às fe­
ras, se os arrancarmos da própria goela do leão!
Não me digais: “São poucos os que foram roubados ao rebanho!”
Pois mesmo que fossem apenas dez, a perda não seria insignificante;
^ mesmo que cinco, dois ou até um! O Bom Pastor deixou as no-
. venta e nove ovelhas e foi em busca de uma, não regressando senão
quando a pôde reconduzir e completar o número desfalcado de seu
1 rebanho. Não deveis dizer: trata-se de apenas um! Pensai que se tra­
ta; de uma alma, de algo que motivou a criação do mundo visível, a
existência das leis, dos castigos, das disposições e dos inúmeros mila­
gres e das obras de Deus; de uma alma, por quem Deus não
poupou seu próprio Unigénito. Pensai quão grande preço foi pago por
ca<da: pessoa, não desprezeis sua salvação! Saí a sua procura, recon­
duzi-a, convencendo-a a não mais cair no mesmo vício! Se, porém,
o pecador não voltar, a despeito de meus conselhos, de vossas exor­
tações, farei então uso do poder que Deus me deu, para edificação «
não para destruição vossa. '
Por isso advirto-vos e digo em alta e clara voz que se alguém, 422
depois desta minha exortação e ensinamento, voltar à perniciosidade
dos teatros, não o receberei dentro destas paredes, não lhe adminis­
trarei os sacramentos, não lhe permitirei que se aproxime da sagrada
mesa. Assim como os pastores afastam das sãs as ovelhas infestadas de
sarna, para não as contagiarem, da mesma forma o farei.
Outrora o leproso tinha de ficar fora do acampamento e até,
sendo rei, perdia seu diadema. Muito mais nós baniremos fora deste
recinto sagrado aquele que for leproso na alma! Se no princípio usei
de exortações e conselhos, enfim me verei na necessidade de re­
correr à amputação. Já faz um ano que governo vossa cidade e não
deixei de continuamente vos exortar. Permanecendo alguns na cor­
rupção, recorrerei à amputação. Embora não tendo instrumento de
ferro, tenho minha palavra mais cortante do que o ferro. Embora
não use o fogo, valho-me de uma doutrina mais ardente e comburente
que o fogo.
284 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

Não desprezeis nossa advertência. Somos insignificantes e míse­


ros, mas recebemos da divina graça uma dignidade que nos habilita
a tais medidas.
Sejam expulsas, pois, tais pessoas, a fim de que os sãos te­
nham uma saúde mais robusta ainda e os doentes se restabeleçam
de sua graye moléstia.
Se estremecestes ao ouvir esta sentença —■ pois vejo que vos
afligis e compungis — convertam-se os culpados e a sentença es­
tará suspensa. Pois assim como recebi o poder de ligar, recebi o de
absolver.
Não queremos esmagar nossos irmãos, mas apenas, defender
a Igreja contra o opróbrio. Sim, porque os pagãos e judeus riem
de nós quando não nos importamos com os pecados, e ao contrário
nos elogiam e admiram a Igreja, ao verem e respeitarem nossa dis­
ciplina.
423 Portanto, quem quiser continuar na vida impura não entre na
Igreja, mas seja censurado por vós, seja nosso inimigo comum.
“Se alguém não obedecer ao que ordenamos por carta, observai-o: e
não tenhais relações com e le ” 1. Fazei assim, não converseis com
tal pessoa, não a recebais em casa, não comais com ela, evitai sua
companhia nas viagens, passeios e negócios. Desta maneira será re­
conquistada com facilidade.
Assim como os caçadores costumam acossar de todos os ládòs
as feras mais difíceis, também encurralemos os transviados, nós dé
um lado, vós de outro, e em pouco tempo os apanharemos rias redes
da salvação.
Para isso indignai-vos, juntamente comigo, também vós! Con-
doei-vos, por amor às leis de Deus é separai do convívio os doentes
e transgressores, a fim de recuperá-los para sempre. Não seria pe­
queno vosso pecado se negligenciásseis proceder assim, ficaríeis réus
de grave castigo. Se já na vida civil não se pune somente o em­
pregado apanhado em roubo . de ouro ou prata, mas também se
punem os que, estando a par do crime, não o denunciaram, muito
mais na Igreja! Deus mesmo vos dirá: Como pudestes silenciar, vendo
que se tira de minha casa, não ouro ou prata, mas a observância?
Como pudestes silenciar vendo que alguém, após receber meu pre­
cioso corpo e participar do Sacrifício, se encaminha para tão grande
pecado? Como silenciastes e suportastes isso? Como não o denun­
ciastes ao sacerdote, para escapardes de castigos não leves?
Assim também eu, embora com tristeza, não pouparei a ne­
nhum dos que me são caros! Antes afligir-vos agora e resguardar-vos
da condenação futura do que agradar-vos e ser depois castigado con­
vosco.

7 2T s 3,14.
.O SACERDÓCIO 285

ív Suportar em silêncio tal corrupção seria imprudência e perigo,


'pois se cada um de nós tem de prestar contas de seus atos, eu sou
responsável pela salvação de todos.
Não me calarei, pois, e farei até o impossível, mesmo com o
,risco de vos afligir, de parecer molesto e desagradável, para que
possa apresentar-me sem mácula nem ruga diante do terrível Tribunal.
Oxalá os que pecaram se convertam, pela prece dos santos, e
os que se mantiveram ilescs cresçam em brilho e observância, para
iàssim conseguirdes vós a salvação, nós a alegria, e ser Deus glorifi­
cado agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.

O SACERDÓCIO1
(Trechos dos livros 2 e 3: P.G. 48, 631-633; 642s)

Que se poderia pensar mais vantajoso do que exercer fun- 424


çÕes como as que, segundo a palavra de Cristo, manifestam nosso
amor por ele? Dirigindo-se ao chefe dos apóstolos, disse o Se
nhor'. Pedro, tu me amas? — Sim , Senhor. — Se me amas, apascenta
meus cordeiros12. O Mestre interroga o discípulo se o ama, não para
informar-se sobre algo, pois seu olhar penetra os corações, mas para
nos ensinar qual o valor que dá à função de chefia de seu rebanho.
Suposto isso, torna-se claro o grande prêmio prometido para
quem se dedica a um ministério tão caro a Jesus. Nós mesmos,
quando vemos o zelo de um servo no cuidar de coisas compradas
com nosso dinheiro, reconhecemos uma prova irrecusável de sua dedica­
ção a nós. Que recompensa então não dará o Cristo a quem pastoreia
p rebanho comprado por ele, não a preço de dinheiro ou coisa se­
melhante, mas ao preço de sua morte, da efusão de seu sangue?
Quando Pedro lhe disse: Sim, Senhor, sabes que te amo, to­
mando como testemunha de seu amor aquele mesmo a quem amava,
Cristo não se contentou com a declaração, quis provas, e estas não
ligou ele à sua pessoa. Pedro lhe havia dado várias provas inequí­
vocas dos sentimentos a seu respeito mas o que Cristo desejava
é que Pedro e nós todos aprendêssemos qual seu amor por sua
Igreja e qual o zelo que por seus interesses deveríamos ter. Por que
Deus não poupou seu próprio Filho? Por que o entregou à morte, se
era seu único? Para atrair os corações hostis e formar para si um
povo de seu agrado. E por que verteu até a última gota de san­
gue? Para pagar e resgatar as ovelhas confiadas depois a Pedro e a

1 Este tratado clássico sobre o sacerdócio, uma das peças pastorais mais impor­
tantes da patrística, é apresentado sob a forma de diálogo entre João Crisóstomo e
certo Basílio.
2 Jo 21,15.
286 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

seus sucessores. Cristo tinha razão, portanto, ao dizer: Qual o servo


fiel e prudente, que seu senhor estabeleceu para governar sua casa? 3.
A frase parece exprimir uma interrogação, mas só aparente,
como também na pergunta dirigida a Pedro e onde ele não que­
ria conhecer o amor do discípulo, e sim manifestar a grandeza
de seu próprio amor. Da mesma forma agora, quando pergunta:
Qual é o sefvo fiel e prudente? Não o ignorava, mas queria ensi-
nar-nos como são raros tais servos e como é grande seu encargo.
Julgue-se isso pela recompensa que lhe destina: Ele o estabelecerá
sobre todos os seus b e n s4.
E então dirás que te enganei e te prejudiquei quando te entreguei
o governo das coisas de Deus, quando te confiei o exercício das fun­
ções que mereceram a Pedro sua preeminência sobre os demais apósto­
los? Pedro, disse-lhe o Senhor, amas-me mais que estes? Então,
apascenta os meus cordeiros! Ele poderia ter dito: “Se me amas,
pratica o jejum, deita-te sobre o chão duro, passa as noites em vigí­
lia, defende os oprimidos, sê o pai dos órfãos e o defensor das
viúvas” . . . Mas não, não lhe prescreve nada disso, contenta-se em
recomendar-lhe seu rebanho: Então, apascenta meus cordeiros!

425 O sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está ehtre as
coisas do céu. E com razão. Não foi homem, anjo, arcanjo, ou
qualquer outra potência criada, foi o próprio divino Paráclito quem
assim dispôs: que seres ainda permanecendo na carne exercessem es­
se ministério dos anjos. Seria preciso que o sacerdote fosse tão
puro como se estivesse no céu, colocado entre os anjos. Recor­
de-se a majestade das cerimônias no sacerdócio hebraico, o te­
mor reverenciai, o santo terror que inspirava, todo aquele con­
junto de campainhas de ouro, romãs de púrpura, pedras preciosas a
brilharem sobre o peito e espáduas do sumo sacerdote, sua mitra, seu
diadema, a longa túnica, a lâmina de ouro, enfim o Santo dos
Santos e o silêncio profundo que lá havia. Todas essas exterioridades
eram pouco em comparação aos mistérios da lei da graça, e o Apóstolo
disse justamente que o brilho do primeiro sacerdócio nada era ao
lado da glória supereminente do segundo 5. Realmente, quando vês
o Senhor imolado sobre o altar, e o sacerdote a inclinar-se sobre a
vítima, em profunda oração, e os circunstantes com os lábios enru-
becidos pelo precioso sangue, pensas estar ainda entre os homens e
sobre a terra? Não te parece antes teres sido transportado subitamente
para o céu e ali, banidos os pensamentos carnais, contemplares com
a alma pura as coisas celestes? Ó prodígio! Ó bondade de Deus! Aque­
le que se assenta junto do Pai, nesse momento se deixa segurar

3 Mt 24,45.
4 Ibid. 47.
5 2Cor 3,10.
AS BEM-AVENTURANÇAS 287

pelas mãos dos circunstantes e se doa aos que desejam recebê-lo e


abraçá-lo. Eis o que percebem os olhos da fé! Tais grandezas acaso
te parecem dignas de desprezo ou aptas para revoltar nosso orgulho?
Será preciso apelar para a comparação com outro prodígio para
se demonstrar a excelência de nossos santos mistérios? Imagina o 426
profeta Elias, cercado de imensa multidão, no momento em que es­
tendia as vítimas sobre as pedras do altar. Os assistentes ali estão
imóveis e no maior silêncio. Só o profeta fala, e para orar. Súbito
desce fogo do céu e abrasa a vítima. Que cena admirável, própria
para extasiar a alma!
Volta agora os olhos para nossos altares e verás um prodígio
ainda maior. Lá também o sacerdote está de pé, invocando sobre
a terra, não o fogo extinguível mas o Espírito Santo. Se fica algum
tempo em oração, não é para pedir que uma chama desça do céu
e devore a vítima, mas para que a graça, descendo sobre a vítima,
abrase através dela as almas ali presentes, tornando-as mais puras e
refulgentes que a prata ao fulgor do sol. Quem, portanto, sem ser
insensato ou pobre de espírito/ desprezará tais mistérios terríveis?
E o ardor desse fogo espiritual — não o ignoras — jamais haveria
alma humana capaz de o suportar: ela seria aniquilada se a graça
divina não a viesse socorrer.

AS BEM-AVENTURANÇAS
(Trechos da Homilia XV sobre Mateus: P.G. 57, 223-228)

Vede como o Senhor se abstém de todo fausto e grandeza! 427


Sem cortejo numeroso, vai por toda a parte, atravessa cidades e 'à h
deias a curar doenças. Quando a multidão acorre, senta-se em lugar
campestre, não em povoado ou no meio das praças, mas na soli­
dão de um monte. Destarte nos ensina a nada fazer por osten­
tação e a afastar-nos do tumulto e ruído, para ouvirmos os ensina­
mentos da sabedoria e meditarmos sobre as verdades eternas.
Aproximam-se os discípulos, depois que ele subiu ao monte
e se assentou. Notai seu progresso na virtude e a feliz trans­
formação por que passaram. Enquanto muitos só aspiravam a ver
milagres, eles desejavam uma grande e sublime doutrina. Foi o que
levou o Mestre a instruí-los e a dar início a este discurso. Não só
curava os corpos mas também convertia as almas; passava de um
ministério a outro, variando seus benefícios e unindo à pregação da
doutrina o ensinamento por obras. Assim impunha silêncio à ousa­
dia dos hereges, pois, ao prestar cuidado tanto às almas como aos
corpos, comprovava ser o Criador de todo o composto humano. A
ambas as substâncias estendia sua providência, curando ora uma ora
outra. Tal era seu modo de proceder.
288 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO.

“Abrindo a boca” — diz o Evangelho — “ensinava-os”. Por


que motivo se acrescentou esta expressão: “abrindo a boca”? Para
aprenderdes que ele ensinava seja calando, seja falando, tanto por
palavras como por obras fazia ouvir sua voz. Ao ouvirdes que ele
“os ensinava”, não julgueis que se dirigia somente aos discípulos,
mas, per intermédio deles, a todos os demais. Como a multidão do
povo ainda rastejava por terra, o Senhor coloca diante de si o grupo
dos discípulos e lhes dirige seu discurso, moderando as palavras*
para não molestar os rudes com a doutrina da sabedoria. £ o que
Lucas também insinua. O mesmo declara Mateus, quando diz: “Apro-
ximaram-se dele seus discípulos e ele os ensinava”. Deste modo os
ouvintes prestariam mais atenção do que se a todos dirigisse a pa:
lavra.
Por onde começa? Que fundamento estabelece para a nova lei?
Ouçamos o que vai dizer; porquanto, se para alguns ouvintes suas
palavras foram proferidas, para todos os vindouros foram escritas;
Na pregação dirigida aos discípulos, não restringe a eles seu discurso*
mas de medo indeterminado proclama as bem-aventuranças.
Com efeito, não disse: “Bem-aventurados sereis, se fordes po­
bres”, mas, “ b e m -a v e n tu ra d o s o s p o b r e s * . Embora lhes falasse em
particular, os conselhos haviam de ser comuns a todos os pósteros.
Assim, ao dizer: “Eis que estou convosco todos os dias até à con­
sumação dos séculos” l , não falava apenas aos discípulos presentes,
mas na pessoa deles ao mundo inteiro. Igualmente, quando os decla­
ra bem-aventurados por terem de sofrer perseguição, exílio e toda
espécie de intoleráveis injúrias, não só a eles promete recompensa,
senão a quantos suportarem corajosamente idênticos males.
Além disso, para que esta verdade se tom e mais evidente e
compreendais que a vós e a toda a natureza humana se dirigem os
conselhos, ouvi o exórdio deste admirável discurso: “Bem-aventurados
os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”.
Quem são os pobres de espírito? Os humildes e contritos de
coração. Nesta passagem o espírito significa a alma, a intenção da von­
tade. Muitos pobres há, não por livre escolha, mas, constrangidos pela
necessidade; a estes não se refere o Senhor, porque em si, tal condi­
ção não é motivo de elogio; os primeiros que ele declara bem-aven­
turados são os que por própria deliberação se humilham e abatem.
Per que não os chama humildes, mas, pobres? É por que este
título abrange o outro. Designa os homens tementes a Deus e obser­
vantes dos seus preceitos, os mesmos nos quais pelo profeta Isaías o
Senhor declara comprazer-se: “a quem olharei senão ao pobrezinho
contrito de coração, que teme minhas palavras?” 12

1 Mt 28,20.
2 Is 66,2.
AS BEM-AVENTURANÇAS 289

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de j u s t i ç a Que 429


devemos entender por esta palavra? A virtude, em geral, ou a espécie
de justiça oposta à avareza? Como o Senhor ia promulgar o preceito
relativo à esmola, ensina de que modo é mister exercê-lo. Beatificando
a justiça, condena a avidez.
Notai a força da expressão usada pelo Senhor. Não disse ape­
nas: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”? D es­
tarte, inculca a necessidade de abraçá-la com todo o ardor da alma,
não apenas por desencargo de consciência. Maior do que o desejo de
alimento e bebida é a ambição da avareza em adquirir e possuir bens;
por isso nos manda transformar tal desejo na virtude oposta a este
vício. E de novo promete prêmio sensível, dizendo: “porque serão
saciados”. É opinião corrente que a avareza enriquece. Cristo afirma
o contrário: é a justiça que produz este efeito. Se caminhardes nas
vias da justiça, não deveis recear a pobreza, pois não havereis de so­
frer fome. Aos homens ambiciosos cabe o temor de serem despojados
de seus bens; os justos, porém, hão de possuir tudo com segu­
rança. Se os que não cobiçam os bens alheios gozam de tantas ri­
quezas, quanto mais os que distribuem os próprios haveres.
“Bem-aventurados os misericordiosos”. Não merecem este tí- 430
tulo somente os que fazem esmola com dinheiro; julgo que também
dèle são dignos os que a praticam pelas obras. Diversas formas
reveste a misericórdia, bem extenso é este preceito. Qual será sua
recompensa? “Eles mesmos alcançarão misericórdia”. O s termos são
equivalentes; mas na realidade a recompensa supera de muito a boa
obra. Os homens exercem a misericórdia na medida em que podem;
em troca recebem-na de Deus em medida copiosa. Pois, não há com­
paração entre a misericórdia divina e a humana; entre ambas <a
distância é como entre a bondade e a malícia. *
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a D eus”. 431
Eis outra vez a promessa de recompensa espiritual. Os homens de
coração puro são, conforme o pensamento do Senhor, os que pra­
ticam toda espécie de virtudes e cuja consciência de nada os acusa,
ou os que vivem na castidade? Com efeito, não há virtude que
nos seja tão necessária como esta para contemplarmos a Deus. Por
este motivo, dizia são Paulo: “Vivei em paz com todos e na pureza,
sem a qual ninguém verá o Senhor” 3.
Trata-se da visão de D eus, na medida que é possível ao homem.
Muitos há que fazem esmolas, não são ambiciosos ou avarentos
e todavia entregam-se à impureza. A tais homens adverte o Senhor
não serem suficientes as outras, .virtudes. Também Paulo na Epísto­
la aos coríntios diz, a respeito des macedônios, que eram ricos não
só pela prática da esmola senão também por outras virtudes. Após

3 H b 12,14.

10 • Antologia dos santos padres


290 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

ter falado da liberdade de seus dons, acrescenta: “eles se dedicaram


ao Senhor e a n ó s” 4.
432 *Bem-aventurados os pacíficos* . Não se contenta o Senhor em
banir dissenções e inimizades. Exige algo mais: que procuremos res­
tabelecer a concórdia entre adversários. Promete uma recompensa
espiritual. Em que consiste esta recompensa? “Serão chamados filhos
de D eus”. È obra por excelência do Filho unigénito unir os que es­
tavam separados, reconciliar os litigiosos. Em seguida, para que não
julgueis ser desejável a paz sob qualquer condição, prossegue: aB e m -
-aventuraios os que sofrem perseguição por amor à justiça ” , a saber,
por causa da virtude, pela defesa do próximo ou da religião. Na
virtude consiste a perfeita sabedoria da alma.
433 "Bem-aventurados sereis quando vos injuriarem, perseguirem
e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Alegrai-
-vos e exultai* . É como se Cristo dissesse: “Quando vos chamarem de
sedutores e maléficos ou vos derem qualquer outro nome injurioso,
então sereis felizes”. Que haverá de mais estranho do que tais exorta­
ções, propondo a nossos desejos o que sempre será objeto de temor,
a saber: mendigar, chorar, sofrer perseguições e insultos? Todavia,
assim falou Cristo para persuadir não a duas, dez, vinte, cem, mil
pessoas, mas ao mundo inteiro. As multidões, atônitas, ouviam predi­
ções tão terríveis, tão contrárias ao sentimento vulgar. Ouviam-no,
contudo, por ser grande a autoridade do Mestre.

COM ENTÁRIO AO EVANGELHO D E S. MATEUS


(P.G. 57, 55s)

Meditar em casa a homilia do domingo

434 Ouço alguns dizerem: quando estamos na igreja gostamos de


escutar a doutrina e, tocados de compunção, nos sentimos atraídos pe­
la palavra de Deus, mas, tão logo saímos dali, muda nossa disposição
completamente e se extingue todo o fervor. Haveria um meio
para impedir essa instabilidade?
Consideremos qual será a causa. D e onde vem tal mudança?
Deriva do fato que freqüentamos lugares inconvenientes e pessoas
que não se recomendam. Não deveríeis, ao sair da igreja, lançar­
mos logo em atividades que não se harmonizam com o que aca­
bastes de ouvir. Chegando em casa deveríeis pegar o Evangelho e
junto com a mulher e os filhos reler e meditar o que vos foi dito,
para só então retomar vossos afazeres. Geralmente evitais ir logo
à praça depois do banho, para não perder o benéfico efeito;

4 2Cor 8,5.
HO M ILIA SOBRE A 1? EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS 291

pois a precaução é mais necessária quando saís da igreja! Entre­


tanto fazemos o contrário disto e perdemos os. frutos da sementeira:
antes que esta tenha tempo de fixar as raízes na nossa alma, já um
assalto impetuoso de preocupações terrenas a investe e arranca tudo
de nosso coração. Se não quereis que isto aconteça mais, ao deixar­
des estas reuniões considerai que não há coisa mais necessária do
que a meditação sobre os ensinamentos recebidos. Seria de fato uma
ingratidão e desconsideração dedicar cinco ou seis dias aos afazeres
terrenos e não dar um dia, até pequena parte de um dia, às coisas
espirituais. Não vedes que vossos filhos estudam e repetem durante o
dia inteiro o que escutaram na escola? Imitemo-los! pois se ca­
da dia jogamos a água num vaso furado, se não pomos, no
conservar a palavra de Deus, o mesmo cuidado que empregamos para
guardar o ouro e a prata, não obteremos vantagem alguma em nossos
encontros. Quando alguém recebe dinheiro, guarda-o bem numa saco­
la e até a fecha com selo; nós porém depois de ouvirmos a palavra de
Deus, infinitamente mais preciosa que o ouro e as pedrarias, não
cuidamos de guardá-la no íntimo da alma e dçixamos com indiferença
que se percam do espírito os tesouros do Espírito Santo. Quem
terá pena de nós se nos expomos a nós mesmos e nos deixamos redu­
zir a uma condição de miséria? Para impedir que isto aconteça,
assumí a lei inviolável de consagrar um só dia da semana, mas
totalmente, a escutar e meditar a palavra de Deus. Essa aplicação
constante vos fará acorrer com mais docilidade e prontidão às nossas
sucessivas pregações; estareis poupando um grande trabalho nosso
e ao mesmo tempo tirareis maior proveito de nossas explicações, ou­
vindo o que se segue com a lembrança ainda na mente do que foi dito
antes. É muito importante, de fato, para compreender o que dizemos,
recordar com exatidão o desenvolvimento de nossas exposições. Sendo,
impossível que digamos tudo de uma só vez, vossa m emória. deve'
ir coletando o que somos forçados a dizer em diversos dias, forman­
do-se um encadeamento, de modo que possais ver com o olho do
espírito toda a Escritura juntada num só corpo. Procurai, pois, re­
cordar-vos do que já temos explicado do Evangelho, de modo que
se possa passar adiante.

H O M ILIA SOBRE Á 1* EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS


(P.G . 61,81-87)

"Assim nos considerem os homens: como ministros de Cristo e 435


dispensadores dos mistérios de Deus " K Aos mesmos cuja arrogância
rebaixou, o Apóstolo dirige agora uma palavra de reerguimento:1

1 lCor 4,1.
292 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

“como ministros de Cristo”. Não abandones o Senhor para te no­


meares a partir de servos. “Dispensadores ”, diz ainda, indicando o
discernimento com o qual hão de ser distribuídos os bens do Senhor:
não a todos mas àqueles aos quais convém. “E isto se requer dos dis­
pensadores, que sejam fiéis” 2. Por outras palavras, não se usurpe como
coisa própria o que pertence ao Senhor. Cabe ao dispensador admi­
nistrar honestamente o que lhe foi confiado, reconhecendo a proprie­
dade do Senhor. Isto vale, seja quanto à palavra da pregação, seja
quanto aos bens materiais: trata-se sempre de coisas do Senhor, re­
cebidas em confiança.
Desejas conhecer dispensadores fiéis? Ouve a Pedro: “por que
nos considerais como se por nossa própria força ou piedade ti­
véssemos feito este homem andar?” 3 Ele mesmo dizia a Corné-
lio: “somos homens mortais, sujeitos às condições de todos” 4. E
a Cristo: “eis que deixámos tudo e te seguimos” 5. Paulo, por sua vez,
depois de escrever: “trabalhei mais do que todos”, acrescentou: “não
porém eu e sim a graça de Deus comigo” 6. E em outra ocasião: “que
tens tu que não recebeste?” 7 Nada na verdade tens de teu: dinheiro,
palavra ou a própria vida — pois também esta é do Senhor. Se necessá­
rio, oferece até tua vida. Se amas tua vida e não aceitas devolvê-la
quando te é pedida, já não és fiel dispensador. Como se haveria de
resistir a um apelo de Deus? Por causa disto aliás, admiro a bondade
divina: Ele pode reclamar de ti, mesmo contra tua vontade, mas não
o faz assim, para teres merecimento; ele pode reclamar tua vida
contra tua vontade, mas prefere que a ofereças livremente é digas
como Paulo: “morro todos os dias” 8; pode receber tua glorificação
humilhando-te, mas não o quer assim; pode tornar-te pobre mas
prefere que isto desejes por ti mesmo para teres a recompensa. Vês a
bondade de Deus e a nossa indolência.
436 Chegaste à alta dignidade do sacerdócio? Não te envaideças, pois
foi o Senhor quem te revestiu de tal glória. Serve-te dela como de
coisa alheia, não a uses para o que não deves, não te inches por cau­
sa dela; reconhece-te, ao contrário, pobre e humilde. Mesmo que te
seja dada a púrpura régia, usa-a com cautela, evitando manchá-la
e procurando conservá-la para quem ta entregou. Recebeste o dom da
palavra? Não te engrandeças porque o encargo e dom de falar não
é coisa tua. Não te apropries do que pertence ao Senhor, antes
oferece-o ao próximo. Não te envaideças ou te mostres avaro no
distribuí-lo aos outros.

2 íb id .
? At 3,12.
4 At 14,15.
* M t 1 9 ,2 7 .
6 I C o r 1 5 ,1 0 .
7 ICor 4,7.
« ICor 15,31.
HOM ILIA SOBRE A V EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS 293

Se tens filhos, eles pertencem a Deus. E se te persuades disto,


darás graças enquanto os tens e depois, ao te serem tirados, não de­
sesperarás. É a lição de Jó: “o Senhor deu, o Senhor tirou” 9.
Com efeito, tudo que possuímos provém de Cristo, e até tudo
o que somos, nossa vida com a respiração, a luz, o ar, a terra. Se um
destes bens nos faltar, resta-nos morrer, como estrangeiros e peregrinos
que realmente somos.
Falar do “m eu” e do “teu ” significa pronunciar palavras sem sen­
tido. Se dizes que a casa é tua, a afirmação é falsa, pois também o ar,
a terra e a matéria pertencem ao Criador, tanto quanto tu, que cons­
truíste a casa, e qualquer outra coisa. Se dizes que ao menos o uso
te pertence, respondo que mesmo o uso é incerto, pela eventualidade
dá morte, e, já antes, pela instabilidade dos eventos.
Se nos persuadimos intimamente destes conceitos, chegaremos
a uma justa compreensão da realidade e obteremos resultados muito
preciosos: seremos gratos quando e enquanto tivermos algo; e não
nos tornaremos escravos das coisas fugazes e alheias.
Se Deus te leva o dinheiro, retoma o que é seu; e o mesmo se 437
diga da glória do corpo ou da alma. Se te leva um filho, não é teu
filho que leva, mas um servo seu. Não foste quem o criaste, e sim ele.
Tu foste apenas o instrumento de sua vinda. Manifestemos pois nosso
reconhecimento por sermos julgados dignos de ser instrumentos da
obra do Senhor. Quererias talvez ter filho para sempre ao lado? És
então ingrato, não te dás conta de que ele pertencia a outrem, não
a ti ( . . . )
Se nós não somos nossos, como eles seriam nossos? Nós perten­
cemos duplamente a D eus, sob o ângulo da criação e da fé. Por isto
dizia Davi: “toda a minha substância está em tuas mãos” 10. E Pauto l
“em Deus vivemos, nos movemos e existimos” 11. Quando trata da fé,
diz ele depois: “não sois vossos, fostes comprados por grande preço” 12.
Na verdade, tudo pertence a Deus. Quando o Senhor retoma
algo, não sejamos como os que falsificam as contas, servos desones­
tos que se arrogam direitos sobre o que não é seu. Se nem tua alma é
tua, sê-lo-ia teu dinheiro? Por que desperdiças inutilmente bens que
não são teus? Não sabes que seremos acusados de os termos admi­
nistrado mal?
Com efeito, o que não é nosso, mas do Senhor, devemos dis- 438
pensar ao próximo. Ao rico que não tiver agido assim, será cobrado
seu comportamento, e da mesma forma a todos que se tiverem re­
cusado a dar de comer ao Senhor. Não se diga: “gasto os meus bens,
usufruo deles”. Eles não são teus, pertencem aos outros. Digo porém:
294 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO

“aos outros", pensando que tu mesmo o queres: Deus manda que se­
jam consideradas tuas as coisas confiadas a ti em benefício dos irmãos.
Os bens alheios se tornam tua propriedade quando os distribuis ao
próximo. Se ao contrário os usas em teu benefício, ei-los tornados coisa
dos outros. D o momento em que te serves deles de modo egoístico,
como a dizerv “é justo que minhas riquezas sejam gastas exclusivamen­
te para meu uso e consumo”, digo-te que tais riquezas já não são
tuas, pertencem aos outros. Porque são bem comum e seu usufruto
compete igualmente a teu próximo. Da mesma forma que são comuns
o sol, o ar e a terra, isto é, todas as coisas.
Com o uso dos bens ocorre o mesmo que com o corpo: cada
membro pode desempenhar a própria função somente se se acha unido
ao conjunto; desde que determinado órgão se separe, passa a ficar
privado da própria capacidade.
Para explicar-me com maior clareza: se o alimento corpóreo desti­
nado a todos cs órgãos fosse dado apenas a um deles, se tornaria inútil
para o mesmo, pois não poderia ser assimilado e produzir qualquer
efeito; se porém o organismo inteiro é alimentado, cada órgão se
beneficia tanto quanto o conjunto. Não de outra forma acontece com
as riquezas: se pretendes gozá-las sozinho, já as perdeste porque não
receberás recompensa; se ao contrário repartes com outros sua posse,
serão mais tuas e te proporcionarão verdadeiro lucro.
Não vês que as mãos tomam o alimento, a boca o mastiga e o
estômago o recebe? Ora, diria o estômago: “se fui eu que recebi o ali­
mento, vou retê-lo para m im”? Nem tu fales deste modo a respeito
. de teus bens! Cabe a quem recebe riquezas distribuí-las aos outros.
Da mesma forma que o estômago adoece quando retém os alimentos,
danificando o organismo, também é doença para os ricos reter
para si o que possuem; seu comportamento causará danos a si e aos
outros. O olho recebe a totalidade da luz, mas não a retém, e
ilumina com ela todo o corpo. Não lhe cabe, como olho, reservar-se
unicamente toda a luz. O nariz, embora capte os perfumes, não os
retém, remete-os ao cérebro, ao estômago, em proveito do homem
todo. Os pés caminham por si, mas para que o corpo se mova por
meio deles. Também tu deves abster-te de reservar para teu uso o que
te foi concedido, pois prejudicarias a todos, principalmente a ti mesmo.
439 Os exemplos poderiam tirar-se de outras fontes. O serralheiro, sé
quisesse lucrar sozinho ao trabalhar, se prejudicaria e prejudicaria
as demais atividades. O mesmo vale do sapateiro, do lavrador, do
moleiro, de todos que pretendam excluir os outros dos benefícios
de seu trabalho.
E que dizer dos ricos? Pois também os pobres poderiam preju-
dicar-vos, se imitassem vossa avareza, levando-vos em breve tempo
à miséria e à ruína, caso recusassem prestar-vos seu trabalho necessá­
rio: por exemplo, se o lavrador sonegasse seu produto, se o marinheiro
não entregasse a mercadoria das viagens, se o soldado não combatesse
H O M ILIA SOBRE A V EPÍSTOLA AOS CORÍNTIOS 295

na guerra. Portanto, ainda que sem outro motivo, ao menos por


vergonha procurai imitar a benevolência deles.
Não condividís as rique 2as com ninguém? Sabei que nada rece­
bereis, e se isto acontecer a situação se inverterá. Em todos os planos,
o dar e o receber são fontes de numerosos efeitos positivos: na se­
menteira, nas ciências, nas artes. Quem presumisse exercer uma
atividade para si lesaria a si e ao mundo. O agricultor, guardando as
sementes, causa a carestia. E assim o rico, se agisse deste modo, se
danaria antes dos pobres, atraindo sobre a cabeça a chama da geena.
Da mesma forma que os mestres, os quais, apesar dos muitos
discípulos, sabem dedicar a cada um seu ensino, também poderás, pe­
las boas obras, socorrer muitas pessoas. Muitos se ouvirão dizendo:
“livrou a este da pobreza, aquele do perigo”; “eu estaria morto se,
por graça de Deus, não me tivesse salvo”, “preservou um da doença,
outro da calúnia, hospedou a este, vestiu o n u ”. Palavras do gênero
são mais preciosas que muitas riquezas e tesouros, encantam mais
que vestes douradas, cavalariças e servos, pois estas coisas te tor­
nam desagradável, te dão a aparência de um inimigo comum, ao passo
que as boas obras te apresentam como um pai comum e benfazejo.
E — o que é principal — a benevolência de. Deus seguirá todos os
teus atos. . .
SANTO EFRÉM
( t 373)

Santo Efrém é considerado o maior poeta sítio, chamado “a cítara do Espírito


Santo”. Nasceu em Nísibe, por volta de 306, de pais cristãos. É possível que tenha
acompanhado seu bispo, Tiago, ao Concílio de Nicéia, como diz uma tradição. De
qualquer modo, em 338 foi ordenado diácono, assim permanecendo até ao fim
da vida. Em 363, após a tomada de Nísibe pelos persas, transferiu-se para Edessa.
Escreveu Comentários bíblicos e, em forma de hinos, tratados contra os gnósticos, aria­
nos e Juliano, o apóstata. Escreveu também muitas homilias em versos, exortações
ascéticas, hinos litúrgicos, entre os quais se contêm admiráveis louvores à Virgem
Maria.
Edições críticas parciais em CSCO 174 (sir.), 175 (trad. alemã de E. Beek); S.C.
121, 137 (trad. francesa), etc.

H IN O SOBRE O PARAÍSO
(Hino 11)

O ar do Paraíso
é a fonte de prazer
onde Adão bebia
na juventude.
Era um ar como seio de mãe,
que o nutria na sua infância.
Adão era então muito belo,
irradiante de alegria.
O desprezo da ordem o fez velho,
triste, decaído,
e o fez carregar da velhice
o peso de miséria.
Bendito seja aquele que exaltou Adão
e o fez tornar ao Paraíso.
Nem o frio malfazejo
ou o calor ardente
conheceu o Paraíso,
cheio de bênção e prazer,
porto das alegrias,
reunião de todas as delícias,
H IN O SOBRE 0 PARAÍSO

lugar de luz e júbilo,


coro de harpas, casa de cítaras,
ressoando clamores de hosanas,
Igreja de hinos.

O claustro que o cerca


é a paz que tudo envolve.
Sua fortaleza, seu baluarte
a concórdia que tudo reconcilia.
Um querubim o guarda:
sorridente para os de dentro,
ameaçante para os de fora,
que estão na condenação.
Sobre esse Paraíso, puro e santo,
tudo que pudesses dizer
seria espiritual e sutil.

Não o julgue pois o ouvinte


tal como o descrevemos,
pois ultrapassa todas as afirmações.
Mesmo se pelo nome
o Éden parece da terra,
na essência é puro e espiritual.
Os ventos se assemelham pelo nome,
o do Paraíso porém é santo
diverso dos miasmas pestíferos!

Quem fala não pode


dispensar-se das palavras
que exprimem o visível,
a fim de representar o invisível.
Se o próprio Criador do Éden
reveste sua glória
com palavras da terra
também nós falaremos desse jardim
usando de comparação.

Mas se alguém, errando,


não retém mais que os nomes
usados pela Majestade,
faz então dessas figuras,
só usadas como auxílios,
calúnias e blasfêmias,
mostrando-se ingrato à Bondade
que condescendeu conosco
e se fez pequenina sem o ser.
Deus se cobria com suas imagens
para transformá-las em semelhanças.

Que as palavras, pois,


não perturbem teu espírito.
O Paraíso se revestiu
com as palavras da terra,
não por pobreza,
não por necessitar de tuas imagens,
mas porque tua natureza fraca
não conseguiria abraçar
a divina Majestade.
Por isso sua magnificência se despojou de todo brilho
e se mostrou com as pálidas cores
que te são familiares.

Os frágeis olhos do homem,


não podiam fixar
o esplendor das belezas celestes,
Deus por isso vestiu as árvores de seu Paraíso
com os nomes de nossas árvores,
deu a suas figueiras
o nome de nossas figueiras.
Suas folhas, que eram espirituais,
se tornaram palpáveis e corpóreas,
se transformaram,
para harmonizarem
as vestes com os que as vestiriam.

Mais que as estrelas


de nosso céu visível,
as flores desse Jardim
são densas e triunfantes.
Algo de seu perfume
se exala por graça de Deus
e cura as doenças
de nossa terra amaldiçoada.
Perfume curativo,
traz remédio ao mal
que nos veio da Serpente.

O sopro do Paraíso
suaviza o amargor
de nossa existência.
Desce para atenuar
a maldição pesante sobre a terra.
H IN O SOBRE O PARAÍSO

Eis portanto o Jardim:


é o ar vivificante
de nosso mundo enfermo.
Vendo que este perecia,
anunciou-lhe um remédio de vida,
um remédio a ser enviado
aos mortais que somos nós.

Por que precisava a terra


que corresse sobre ela
o rio de muitos afluentes
senão para que suas águas de bênção
a impregnassem e dessedentassem,
trazendo-lhe a graça
que cura as fontes malditas,
como o sal as águas impuras?

Assim se tem, dentro de uma fonte,


a fonte de perfumes,
procedente do Éden,
útil brisa que atravessa o ar
e desperta nossa alma,
curando seu hálito de vida
com o sopro do Paraíso.
Assim se abençoam as fontes
pela bênção dessa fonte!

Quando o incenso, emitindo fragrâncias,


impregna o ar, em nuvem de fumaça,
dissemina em derredor
eflúvios salutares.
Ah! quanto mais o Paraíso glorioso!
Seu recinto nos ajuda,
serenando um pouco
as maldições da terra,
com seus eflúvios de aromas.

Quando estavam reunidos


os bem-aventurados apóstolos,
no local onde estavam
fez-se sentir um tremor,
como um sopro do Paraíso.
Era o Éden reconhecendo seus hóspedes
e derramando-lhes sua fragrância,
tornando-se deleitável
para os arautos que seguiriam
a ensinar e conduzir os homens
até o festim dos eleitos.
Sendo amigo dos homens, ele acorre
aos que nele vão entrar.

Concede-me, 6 Bondade,
descobrir a graça do Paraíso,
esse tesouro de fragrâncias,
esse celeiro de perfumes,
cujo sopro me sacia a fome.
É perfume que dá alimento
a cada ser em seu tempo.
Quem o aspira rejubila
e esquece o próprio pão.
Lá está a mesa do Reino!
Bendito quem a pôs no Paraíso!
SANTO EPIFANIO
<t 405)

Grande batalhador contra heresias. Natural da Palestina, homem culto, foi supe­
rior de uma comunidade monástica em Eleuterópolis (Jfudéia) e depois bispo de
Salamina, na ilha de Chipre. O zelo o levou a excessos, como na luta contra o origenis-
mo, que considerava a pior das heresias. Foi hostil ao culto das imagens. Escreveu,
entre outras obras, Ancoratus (ou “a fé bem ancorada”), Panarion ( “Caixa de re­
médios”) onde se encontram citações de obras perdidas de diversos autores, num
elenco de oitenta “heresias”.
,5 Ed. crítica em GÇS, 3 vols.

; SOBRE A SANTÍSSIMA TR INDADE


,, V (Ancoratus, 74: P.G. 43, 156)

: Sobre a Trindade e a identidade essencial do Pai, do Filho e 445


do Espírito Santo, nós, débeis e rudes, sem usarmos de cavilações
e não para simplesmente nos opormos a argumentos humanos, mas
com testemunhos extraídos da Escritura e acessíveis a todos, já dis­
sertamos, ao menos parcialmente, de maneira inteligível aos fiéis
e apta para refutar os infiéis e levianos. É grande a força da fé que,
no Espírito Santo, está contida eín todas as Sagradas Escrituras,
embora diversamente. Mas como o fundamento de nossa salvação
está posto na confissão certa da encarnação de nosso Senhor, da
natureza por ele assumida, e na esperança segundo a qual nos é
oferecida a ressurreição dos mortos e o começo de um novo nascimento,
prosseguiremos acrescentando outros testemunhos das Sagradas Escritu­
ras, para proveito dos que os lerem com atenção.
Como sabemos, nosso Senhor preceituou aos discípulos, no
evangelho: “Ide, batizai todos os povos, em nome do Pai e do Fi­
lho e do Espírito Santo, ensinando-os a observarem tudo o que vos
ordenei” (Mc 28,19s). Isto foi dito pelo Verbo sacrossanto e sub­
sistente de Deus, o qual procede do Pai e pelo qual foram pro­
duzidos os tempos e os momentos, não tendo havido momentos ou
tempos anteriores a ele, o Filho. Se tivesse havido um tempo antes
do Filho, seria maior que o Filho. Como então seria verdade que
“por ele foram feitas todas as coisas e nada foi feito sem ele”?
(Jo 1,3). O que foi feito, foi por ele produzido, sendo ele incriado
e eterno, como também o Pai e o Espírito Santo, que existiram des-
302 SANTO EPIFÂ N IO

de toda a eternidade. Se tivesse havido algum tempo antecedente


ao Filho, poder-se-ia perguntar por quem tal tempo, superior ao
Filho, foi produzido. E assim uma enorme estupidez desviaria nos­
sas mentes para absurdos pareceres humanos; ou antes, levá-las-ia
ao adultério das impuras cogitações. Portanto, antes do Filho não
houve tempo algum; e assim, não o Filho foi obra dos tempos, mas
os tempos, os anjos e todas as coisas foram pelo Filho produzidas.
Jamais houve tempo em que não existisse o Filho, jamais houve
tempo em que não existisse o Espírito Santo.

C A M IN H O REAL
(Haer. 59, c. 12s: P.G. 41, 1036s)

44$ Há um “caminho real”, que é a Igreja católica, e uma só senda


da verdade. Toda heresia, pelo contrário, tendo deixado uma vez o
caminho real, desviando-se para a direita ou a esquerda, e abandonada
a si mesma por algum tempo, cada vez mais se afunda em erros.
Em todas elas notamos que a arrogância do erro perdeu a medida.
Eia, pois, servos de Deus e filhos da Igreja santa de Deus, que
conheceis a regra segura da fé, não deixeis que vozes estranhas vos
apartem dela nem que vos confundam as pretensões das erronea­
mente chamadas ciências (gnóses). Pois os caminhos de seus represen­
tantes são desagregadores e sua falsa ciência é precipício. Vangloriam-se
de saber coisas grandes, mas na verdade não conhecem realmente se-,
quer as pequenas. Pregam liberdade, enquanto eles próprios perma-'
necem escravos do pecado.

SÃO PEDRO, PRÍNCIPE D OS APÓSTOLOS


(Haer. 59, c. 8: P.G. 42)

447 Mesmo os que se acovardaram na perseguição, se fizerem peni­


tência perfeita diante do Senhor, chorando em vestes de saco e
sobre cinzas, poderão obter de Deus misericórdia. Nada sobra do mal
quando há penitência. O Senhor dá acolhida aos que se conver­
tem, como deu a Manassés, filho de Ezequias, e também a Pedro,
príncipe dos apóstolos, que antes o renegara. Pedro, na verdade,
ficou para nós como a pedra sólida sobre a qual se apoia a fé e
sobre a qual está edificada a Igreja. Tendo confessado ser Cristo
o Filho do Deus vivo, foi-lhe dado ouvir: “Sobre esta pedra —
a da sólida fé — edificarei a minha Igreja” (M t 1 6 ,1 8 ). Ele o
confessara explicitamente como Filho verdadeiro, ao dizê-lo Filho do
Deus vivo. E é o que também repetimos nós ao refutar as heresias.
A DIíERENÇA ENTRE SACÈRDOTÈS E BISPOS 303
O mesmo Pedro nos instruiu, igualmente, a respeito do Espírito
Santo, quando disse a Ananias: "Como te tentou Satanás a ponto
de mentires ao Espírito Santo? Não foi a homens que mentiste, mas
a Deus!” (A t 5,3s). Com isso ensinava que o Espírito procede de
Deus e não lhe é estranho.
Tomou-se enfim Pedro o alicerce firmíssimo e fundamento
da Casa de Deus, quando, após negar a Cristo e cair em si, foi
buscado pelo Senhor e por ele honrado com as palavras: "apascen­
ta as minhas ovelhas, apascenta os meus cordeiros, apascenta as
minhas ovelhas” (Jo 21,13s). Dizendo isto, o Senhor nos estimu­
lou à conversão, e também a que de novo se edificasse solidamente
sobre Pedro aquela fé, a de que ninguém perde a vida e a salvação,
neste mundo, quando faz penitência sincera e se corrige de seus pe­
cados.

A DIFERENÇA ENTRE SACERDOTES E BISPOS


(Haer. 75, c. 3s: P.G. 42, 506s)

“Que preferência pode pretender o bispo sobre o presbítero?” 448


—■pergunta p herege Aécio. E diz: “Ein nada se distingue deste. Am­
bos têm a mesma ordem, a mesma honra, a mesma dignidade. O
bispo impõe a mão, mas o mesmo faz o presbítero. O bispo ba­
tiza, e também o presbítero. Tanto um como outro celebram o culto
divino; o bispo está sentado no trono, e também o presbítero”.
Falando desta maneira, Aécio seduziu a muitos que o consideravam
seu chefe: . . No entanto, todos os que raciocinam compreendem
claramente qüe seria suma ignorância afirmar que bispo e,..pres­
bítero são a mesma coisa. Como seria possível? Pois aquela ordtem
(dos bispos) é a que gera padres: gera pais para a Igreja; esta, em
troca ( a dos presbíteros), não podendo gerar pais, gera mediante o
renascimento do batismo, filhos, não pais ou mestres para a Igreja.
E como haveria de ordenar sacerdotes, não tendo, como não têm, a
faculdade para a administração da ordem sacerdotal?

É TRADIÇÃO APOSTÓLICA ORAR PELOS DEFUNTOS


(Haer. 75, c. 8: P.G. 42, 314«)

Sobre o rito de ler os nomes dos defuntos (no sacrifício) 44$


perguntamos: que há de mais útil? que há de mais conveniente,
de mais proveitoso e mais admirável que todos os presentes creiam
viverem ainda os defuntos, não deixarem de existir, e sim existi­
rem ao lado do Senhor? Cem isso se professa uma doutrina piedosa:
os que oram por seus irmãos defuntos abrigam a esperança (de que
304 SANTO EPIFÂNIO
vivem), como se apenas casualmente estivessem longe. E sua oração
ajuda aos defuntos, mesmo se por ela não fiquem apagadas todas as
dívidas. . . A Igreja deve guardar este costume, recebido como tradição
dos Pais. Pois quem haveria de suprimir o mandato da mãe ou a lei
do pai? conforme o que diz Salomão: “tu, filho meu, escuta as cor­
reções de teu pai, e não rejeites as advertências de tua mãe”. Com
isto se ensina que o Pai, o Deus unigénito e o Espírito Santo, tanto
por escrito como sem escritura, nos deram doutrinas, e que nossa Mãe,
a Igreja, nos legou preceitos, os quais são indissolúveis e definitivos.

OS ÜLTIMOS TEMPOS DA VIRGEM MARIA


(P.G . 42, 714ss)

450 “Voltando-se o Senhor, viu o discípulo a quem amava” e lhe


disse, a respeito de Maria: “Eis aí tua M ãe”; e então à Mãe: “Eis
aí teu filho” K
Ora, se Maria tivesse filhos, ou se seu esposo ainda estivesse
vivo, por que o Senhor a confiaria a João, ou João a ela? Mas, e
também por que não a confiou a Pedro, a André, a Mateus, a Bar-,
tolomeu? Fê-lo a João, por causa de sua virgindade. A ele foi que
disse: “Eis aí tua mãe”.
Não sendo mãe corporal de João, o Senhor queria significar
ser ela a mãe ou o princípio da virgindade: dela procedeu a Vida.
Nesse intuito dirigiu-se a João, que era estranho, que não era pa­
rente, a fim de indicar que sua Mãe devia ser honrada. Dela, na ver­
dade, o Senhor nascera quanto ao corpo; sua encarnação não fora
aparente, mas real. E se ela não fosse verdadeiramente sua mãe,
aquela de quem recebera a carne, e que o dera à luz, não se preo­
cuparia tanto em recomendá-la como a sempre Virgem. Sendo sua
Mãe, não admitia mancha alguma na sua honra e no admirável vaso
de seu corpo.
Mas prossegue o Evangelho: “e a partir daquele momento, o
discípulo a levou consigo”.
Ora, se ela tivesse esposo, casa e filhos, iria para o que era seu,
não para o alheio.
451 Temo, porém, que isso de que falamos venha a ser deturpado
por alguns, no sentido de que pareça estimulá-los a manter as mu­
lheres que dizem companheiras e diletas — coisa que inventaram com
péssima intenção. Com efeito, ali (no caso de João e da Santíssima
Virgem) tudo foi disposto por uma providência especial, que tornava
a situação desligada das obrigações comuns que, conforme a lei del

l Jo 19,26.
OS ÚLTIMOS TEMPOS DA VIRGEM MARIA 305

Deus, se devem observar. Aliás, depois daquele momento em que


João a levou consigo, não permaneceu ela longamente em sua casa2.
Se alguém julgar que estamos laborando em erro, pode consultar
à Sagrada Escritura, onde não achará a morte de Maria, nem se foi
morta ou não, se foi sepultada ou não. E quando João partiu para
a Ásia, em parte alguma está dito que tenha levado consigo a santa
Virgem: sobre isso a Escritura silencia totalmente, o que penso ocor­
rer por causa da grandeza transcendente do prodígio, a fim de não
induzir maior assombro às mentes. Temo falar nisso e procuro im­
por-me silêncio a este respeito. Porque não sei, na verdade, se se
podem achar indicações, ainda que obscuras, sobre a incerta morte
da santíssima e muito bem-aventurada Virgem. Pois de um lado te­
mos a palavra, proferida sobre ela: “uma espada transpassará tua
alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações” 3.
De outro lado, todavia, lemos no Apocalipse de Jo ã o 4, que o dra­
gão avançou contra a mulher, quando dera à luz um varão; e que
fóram dadas a ela asas de águia, de modo a ser transportada para
o deserto, onde o dragão não a alcançasse. Isso pode ter-se realizado
nela. Embora eu não o afirme totalmente. Nem digo que tenha fi­
cado imortal hem posso afirmar que tenha morrido. A Sagrada Escri­
tura, transcendendo aqui a capacidade da mente humana, deixa a coisa
na incerteza, em atenção ao Vaso exímio e excelente, de sorte que
ninguém lhe atribua alguma sordidez própria da carne. Portanto, se ela
morreu, não sabemos. E mesmo que tivesse sido sepultada, jamais teve
comércio carnal: longe de nós essa blasfêmia!5 Quem ousaria, em fu­
ror de loucura, impor esse opróbrio à santa Virgem, erguendo contra
ela a voz, abrindo a boca para uma afirmação assim nefanda, ao invés
de lhe entoar louvores? quem iria desonrar assim o Vaso digno
de toda honra? *

Foi a ela que prefigurou Eva, ao receber o título, um tanto 452


misterioso, de mãe dos viventes 6. Sim, porque o recebeu depois de ter

2 Santo Epifânio, tendo em vista os “antidicomarianitas” de sua época, defende


energicamente a virgindade perpétua de Maria, citando como prova o fato de ter
sido ela entregue ao apóstolo João. Mas imediatamente teme que certos clérigos pre­
textem o exemplo do apóstolo para viver com as chamadas “diletas” (agapéíes). Passa
a negar então que, após o cumprimento da recomendação de Jesus, Maria tenha resi­
dido longamente com João. Essa negação leva o autor a falar do fim de Maria, pois
logo ocorreria a pergunta: — Então, João não estava com Maria no momento de sua
morte? Para responder à dificuldade, Epifânio alude ao silêncio da Escritura sobre
o fim de Maria. Ver, a respeito, J. Galot, “L’Assomption de Notre Dame”, em
Maria, de D. Hubert du Manoir S.J., tomo V II, 1964, p. 165.
3 Lc 2,35.
4 AP 12>
5 Talvez os antidicomarianitas invocassem o sepultamento de Maria para pôr em
dúvida sua pureza virginal: cf. J. Galot, loc. cit.
6 Gn 3,20.
306 SANTO EPIFÂNIO
escutado a palavra: “tu és terra e à terra hás de tornar”, isto é,
depois do pecado.
Numa consideração exterior e aparente, dir-se-ia que de Eva
derivou a vida de todo o gênero humano, sobre a terra. Mas na
verdade é de Maria que deriva a verdadeira vida para o mundo, é
ela que dá à luz o Vivente, ela a Mãe dos viventes. Portanto,
o título de “mãe dos viventes” queria indicar, na sombra e na figura,
Maria.
Com efeito, não se aplica, porventura, às duas mulheres aquela
palavra: “quem deu a sabedoria à mulher, quem lhe deu a ciência
de tecer? ” 7
Eva, a primeira mulher sábia, teceu vestes visíveis para Adão,
a quem despojara. Fôra condenada ao trabalho. Já que tinha sido
responsável pela nudez dele, precisou confeccionar a veste que co­
brisse essa nudez externa, que cobrisse, o corpo exposto aos sentidos.
A Maria, porém, coube vestir o cordeiro e ovelha; com cujo
esplendor e glória, como se fôra uma lã, foi confeccionada sabiamente
para nós uma veste, na virtude de sua imortalidade.
Outra coisa, além disso, pode considerar-se em ambas — Èva
e Maria — digna de admiração. Eva trouxe ao gênero humano uma
causa de morte, por ela a morte entrou no orbe da. terra; Maria
trouxe uma causa de vida, por ela a Vida se estendeu a nós. Pois
o Pilho de Deus veio a este mundo, para que “onde abundara o
delito, superabundasse a graça” 8. Onde a m orte havia chegado,
chegou a vida, para tomar seu lugar; e aquele mesmo que nas­
ceu da mulher para ser nossa Vida haveria de expulsar a morte,
introduzida pela mulher. Quando ainda virgem, no paraíso, Éva
desagradou a Deus, por sua desobediência. Por isso mesmo, ema­
nou da Virgem a obediência própria da graça, depois que se anunciou
o advento do Verbo revestido de corpo, o advento da eterna Vida
do Céu.
SANTO AMBRÓSIO
(t »7) .

De nobre família romana, nasceu em Trévires. Aos 31 anos governava em


Milão as províncias da Emília e da Ligúria. Na vacância da sede episcopal da
cidade, foi eleito bispo (pelo povo) embora ainda fosse apenas catecúmeno. Rece­
beu então em breve prazo o batismo, a ordenação e a sagração episcopal. Sob a di­
reção do sacerdote Simpliciano, adquiriu boa cultura teológica e leu os principais
autores gregos, sobretudo Orígenes e são Basílio — cujos escritos eram famosos. Con­
selheiro de vários imperadores, foi também quem batizou santo Agostinho, para cuja
conversão muito contribuíra.
Sua obra se destaca pela maneira, realmente admirável, como transmite a fé da
Igreja. É autor de um Comentário ao Gênesis, de outro ao Ev. de são Lucas, de um
tratado sobre os deveres dos ministros eclesiásticos, de um sobre os sacramentos etc.
Introduziu com êxito o canto na liturgia, sendo-lhe atribuídos (mas nem sempre com
certeza) vários hinos antigos, inclusive o Te Deam. Sua correspondência é de im­
portância para a história da época.
Ed. críticas em S.C. 25, 45, 52.

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO LUCAS (l,28ss)


(P.L. 15, 1636-1643; S.C. 45)

A anunciação e a visitação
“E entrando onde ela estava, disse-lhe o anjo: Salve, cheia dé
graça! O Senhor é contigo! Bendita és tu entre as mulheres! Ela,
porém, quando o viu, turbou-se com sua presença
Reconhece a Virgem por seus costumes, reconhece a Virgem 453
por seu pudor, reconhece a Virgem no oráculo, reconhece no misté­
rio. É próprio de uma virgem estremecer e perturbar-se com a pre­
sença de um homem, temer falar com homem. Aprendam as mulheres
a imitar este pudor. Sozinha no interior da casa, apenas um anjo
haveria de encontrar aquela que homem algum veria; só, sem com­
panhia; só, sem testemunha, a fim de não se macular no trato com
as demais; é um anjo quem a saúda. Aprendei, ó virgens, a evitar a
dissipação das palavras; Maria temia até mesmo a saudação de um
anjo.
"E ficou a cogitar que saudação seria aquela”. Perturbou-se, 454
receiou, acautelou-se, por lhe causar admiração a estranha fórmu­
la de uma benção que antes jamais ouvira, que jamais lera. Era
exclusivamente para Maria que se reservava esta saudação. Com
308 SANTO AMBRÓSIO
razão é dita, somente ela, “cheia de graça”, pois só ela obteve a graça
que nenhuma outra merecera, a de ficar repleta pelo Autor da graça.
Enrubeceu Maria como também Isabel, e vejamos que relação
existe entre o pudor da mulher casada e o pudor da Virgem:
aquela enrubecia por ter motivo; esta, por seu pudor. Em Isabel
tem-se uma atitude de pudor, na Virgem a graça do pudor é au­
mentada. '
"Disse, porém, Maria ao anjo-. — Como se fará isso, se não co­
nheço varão?”
Pareceria aqui, se não se observasse atentamente, que Maria não
acreditou. Seria lícito julgar incrédula a eleita para gerar o Filho
unigénito de Deus? Mas ccmo Zacarias, não crendo, seria condenado
por seu silêncio, e Maria, igualmente não crendo, seria exaltada pela
infusão do Espírito Santo? Já considerando a prerrogativa da ma­
ternidade, não se iria pensar assim, pois à maior dignidade se devia
reservar mais fé.
Todavia, nem convinha a Maria deixar de crer no anjo, nem
usurpar temerariamente mistérios divinos.
Não era fácil conhecer o mistério oculto há séculos em Deus,
que nem as potências angélicas podiam conhecer. Contudo, não
negou sua fidelidade, não recusou a missão, mas acomodou o afeto e
prometeu o assentimento. Pois quando disse: “Como se fará isso?”
não duvidava do que ia acontecer, indagava apenas o modo como acon­
teceria. E quanto é mais prudente sua resposta do que a do sacerdote!
Ela disse: “Como se fará isto?” Ele respondera: “Como entenderei
isto? ” Ela já trata do assunto, ele ainda duvida da notícia. Nega-se ele
a crer, pois diz não saber, e como que procura ainda outro teste­
munho para o que é proposto à sua fé; ela promete cumprir o
que lhe é anunciado, não duvida de que se realizará, pergunta ape­
nas de que modo possa realizar-se. Pois assim se lê: “Como se
fará isto, se não conheço varão? ” É que primeiro devia ser notificada
(a geração admirável e inefável) para nela se poder crer. Uma
virgem dando à luz é sinal de mistério divino, não algo de humano.
Enfim, “recebe para ti o sinal: eis que a Virgem conceberá e dará
à luz um filho” K Maria lera isso, crendo que aconteceria. Mas de
que modo? Não o lera, pois não tinha sido revelado, ao profeta.
O mistério de uma missão tão grande haveria de ser proferido por
boca angélica e não humana. Eis que hoje pela primeira vez foi ou­
vido: “o Espírito Santo descerá sobre t i ”. Alguém o ouviu e creu.
455 Enfim, diz ela: "Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim, se­
gundo a tua palavra”.
Vede que humildade, vede que devoção! Diz-se escrava do
Senhor a que é eleita para ser sua Mãe. Não se exaltou com
a inesperada promessa. Dizendo-se imediatamente escrava não requeria
i Is 7,14.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO LUCAS 309

para si nenhuma prerrogativa da grande graça: faria o que se lhe


mandasse. Vês a entrega. “Faça-se em mim segundo tua palavra”:
é a expressão de uma entrega. “Faça-se em mim segundo tua pala­
vra”: é a expressão de um voto.
E com que presteza acreditou Maria ainda na estranheza da 456
concepção! Pois que haveria mais estranho do que referir o Espírito
Santo ao corpo? Que mais inaudito do que uma virgem gestante — até
contra a lei, contra o costume, até contra o pudor, cujo cuidado é a
maior graça de uma virgem? Zacarias duvidou, não pela singularidade
da condição, mas por causa da idade senil. Com efeito, a condição era
côngrua: de homem e mulher, o parto provém como algo de normal.
Nada tem de incrível, concorda com a natureza. Pois sendo a idade
condicionada pela natureza e não a natureza pela idade, acontece
geralmente que a idade estorva a natureza; não é, porém, irrazoável
que uma causa menor ceda à maior e uma prerrogativa da natureza,
de dignidade maior, supere as leis da idade. Eis por que Abraão
e Sara receberam um filho na velhice e José foi também filho da
senilidade. Se Sara, por ter rido, foi repreendida, mais justamente
se pune aquele que, nem com o oráculo nem com o exemplo, acre­
ditou. Maria porém quando diz: "Como se fará isto, pois não conheço
varão”, não manifesta ter duvidado do fato, apenas interroga quanto
ao modo do mesmo. Evidentemente cria que se realizaria, pois in­
dagava como se faria. Mereceu pois ouvir: “Bem-aventurada tu que
creste!” Verdadeiramente bem-aventurada e mais digna que o sa­
cerdote: ele recusou-se a crer, a Virgem reparou a falta.
Nem é de se admirar que o Senhor, havendo de remir o mundo,
tenha começado sua obra por Maria: para que primeiro se bene­
ficiasse da salvação aquela por meio de quem a salvação se preparava
para o mundo. .
Foi com razão que indagou sobre o modo como se faria, pois lera
que uma virgem ia gerar, não como geraria. Lera, como acima: “Eis
que uma virgem conceberá no seio”. Mas, como isso se daria, foi o
anjo no Evangelho quem por primeiro o disse.*
*Levantando-se Maria naqueles dias, foi para a montanha, pres­
surosa, para uma cidade de ]udá, e entrando em casa de Zacarias,
saudou Isabel”.
Geralmente os que exigem fé em algo dão um sinal para o que 457
propõem. E assim, o anjo ao anunciar o mistério, desejando confirmar
por um exemplo a veracidade do que dizia, noticiou à Virgem a com
cepção de uma mulher anciã e estéril, mostrando ser possível a Deus
tudo o que lhe apraz.
Maria, ao ouvi-lo, não ficou a duvidar do oráculo, nem da cer­
teza da nova ou da possibilidade do exemplo aludido, mas como que
alegre pelo desejo que manifestara, religiosa no cumprir seu dever,
pressurosa de júbilo, partiu para a montanha! Para onde, aliás, iria,
310 SANTO AMBRÓSIO
senão, pressurosa, para as alturas, aquela que já estava plena de
Deus? A graça do Espírito Santo não conhece empresas vagàrosas.
Aprendei também vós, ó mulheres santas, o zelo que deveis ter para
ccm vossas parentas gestantes!
O pudor de virgem não desviou do público a mesma Virgem
Maria que antes morava nos recessos da casa, a aspereza dos mon­
tes nâo a dissuadiu de sua resolução, a dificuldade da viagem não
a impediu de prestar com solicitude seu serviço. Deixando a casa,
partiu para a montanha, pressurosa, lembrando-se de seu serviço, não
considerando a injúria que sofria seu recato, premida por seu afeto!
Aprendei, virgens, a não vaguear por casas alheias, a nao demorar
nas praças, a não buscar conversas em público!
Maria, que demorava quando em casa e se apressava quando em
público, permaneceu com a prima três meses. Viera para prestar ser­
viço, aplicou-se a seu dever. Permaneceu lá três meses, não que a casa
alheia lhe agradasse, mas porque lhe desagradava freqüentar o público.
Vistes o pudor de Maria, ó virgens; aprendei sua humildade!
Vem visitar sua parenta, a mais jovem procura'a mais idosa; e não
só vem, mas saúda-a por primeiro, pcis quanto mais casta a virgem
tanto mais humilde deve ser. Aprendei a honrar as mais velhas! Seja
mestra de humildade quem faz profissão de castidade!
Nessa visita de Maria há uma razão de piedade e também uma
instrução para nós. Observe-se quem é maior vindo ao menor para
auxiliá-lo: Maria vem a Isabel, Cristo a João. Ë também por istó
vem mais tarde o Senhor ao batismo, para santificar o batismo dè
João.
458 Como que simultaneamente, no Evangelho, se exprimem a che­
gada de Maria e os benefícios da presença do Senhor. "Ao ouvir
Isabel a saudação de Maria, exultou o menino em seu seio. E ficou
cheia do Espírito Santo”. Observem-se a diferença e o sentido pró­
prio de cada palavra. Isabel ouviu primeiro a voz da saudação,
mas João sentiu primeiro a graça. Ela ouviu na ordem natural, ele
exultou ante o mistério; ela sentiu a chegada de Maria, ele a do
Senhor; o penhor sentiu o Penhor. As duas falam da graça; eles
a operam interiormente e começam em proveito de suas mães um
mistério de piedade filial; por um duplo milagre, profetizam as
mães por inspiração dos filhos. O menino exultou de alegria, a mãe
ficou plena do Espírito Santo. Não o ficou antes do filho, mas
enchendo-se o filho com o Espírito Santo, mereceu-o também para
sua mãe. João exultou de alegria e também o espírito de Maria
exultou. Ao exultar João, Isabel se enche de Espírito Santo; a res­
peito de Maria, porém, não lemos que tenha ficado cheia do Espírito
Santo, mas apenas que exultou seu espírito: o Incompreensível opera­
va de modo incomparável em sua Mãe.
Isabel se enche do Espírito Santo, após conceber, Maria antes.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO LUCAS 311

"Bendita ês tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu


ventre. E donde me ê dado que a Mãe do meu Senhor venha d
mim?”
O Espírito Santo conhece as palavras que usa, não as negligen- 459
cia. E a profecia se cumpre não só nos milagres concretos, mas
igúalmente na propriedade das palavras.
Quem é esse fruto do ventre, senão aquele de quem foi dito:
“eis como herança do Senhor os filhos, o fruto do ventre é uma
recompensa” 2.
Quer dizer, os filhos são uma herança do Senhor, são uma
recompensa daquele fruto que saiu das entranhas de Maria. Foi so­
bre o fruto do ventre, sobre a flor da raiz, que Isaías profetizou,
dizendo: “sairá uma vara da raiz de Jessé e uma flor subirá de sua
raiz”.
A raiz é a família dos judeus, a vara é Maria; a flor de Maria,
o Cristo, o qual, como fruto de uma árvore boa, floresce agora no
crescimento de nossas virtudes, frutifica em nós agora, é restaurado
na ressurreição que vivifica o nosso corpo.
“E donde me vem que me visite a Mãe de meu Senhor ?”
Isabel não o diz ignorando o motive, pois sabe ser por graça 460
e obra do Espírito Santo que, como mãe do profeta, é saudada em
proveito dele, pela Mãe do Senhor. Mas para significar que não
é por seu mérito humano, e sim por dom da divina graça que isto ocor­
re, diz: “Donde me vem ?”, isto é: Donde me vem que receba
0 bem tão grande de uma visita da Mãe de meu Senhor? não
reconheço em mim mérito algum. Donde me vem? Por que obras
de justiça, por que feitos, por que méritos?
Não é usual entre mulheres um tratamento como estç,: “para
que venha a mim a Mãe de meu Senhor”. <
Percebo o milagre, reconheço o mistério: a Mãe do Senhor,
que traz o Verbo em seu seio, está repleta de Deus!
fíPois ao se fazer ouvir a voz de tua saudação em meus ouvi­
dos, exultou de alegria a criança em meu ventre; e hem-aventurada tu
que creste”.
Vê-se que Maria não duvidou, mas creu, e por isto obteve o 461
fruto de sua fé.
Bem-aventurada tu que creste, disse Isabel. Mas também vós
sois bem-aventurados, vós que ouvis è credes; pois todo o que crê
concebe e gera o Verbo de Deus em sua alma e conhece as suas obras.
Esteja em cada um de vós a alma de Maria, a engrandecer
ao Senhor; esteja em todos vós o espírito de Maria, a exultar em
Deus. Se, pela carne, uma só é a Mãe de Cristo, pela fé o Cristo
é fruto de todos. Pois a alma, qualquer que seja, recebe o Verbo de

2 SI 126.
312 SANTO AMBRÓSIO
Deus, desde que seja imaculada e isenta de vícios, guardando com
intangível pudor sua castidade. Toda a alma assim, engrandece
ao Senhor como a alma de Maria, que enalteceu o Senhor, como o
espírito de Maria, que exultou em Deus seu Salvador. Com efeito,
o Senhor realmente é engrandecido, conforme se lê em outro lugar:
“engrandecei o Senhor comigo!” 3 Não que lhe possa ser algo acres­
centado, mas porque em nós é engrandecido.
Cristo é a imagem de Deus; e se a alma fizer algo de justo oü
religioso, engrandece a imagem de Deus à cuja semelhança foi criada.
Enaltecendo-o, torna-se mais sublime por participar da grandeza dele,
e parece exprimir a sua imagem com a cor esplendorosa dos bons
atos e o zelo da virtude. A alma de Maria, porém, engrandece ao
Senhor e seu espírito exulta em Deus, porque Maria, devotada em
alma e espírito ao Pai e ao Filho, venera com piedoso afeto o Deus
único de quem tudo depende, o único Senhor, por quem tudo é.
Verifica-se em Maria que quanto mais excelente é a pessoa,
tanto mais rica a sua profecia.
Não por acaso Isabel profetiza antes do nascimento de João,
e Maria antes da geração do Senhor. Já preludiam os esboços de
salvação do gênero humano. Assim como o pecado começou pelas
mulheres, também os bens começaram pelas mulheres; para também
elas deporem suas obras femininas e renunciarem a toda fragilidade;
e para que a alma, que não tem sexo, como Maria que não tem
pecado, imite zelosamente seu exemplo de castidade.
462 "Maria permaneceu com ela três meses; e voltou para sua casa”.
Com razão se faz constar que santa Maria desempenhou o seu
ofício de caridade durante um místico número. Não ficara todo esse
tempo só por causa do parentesco com Isabel, mas para o aprovei­
tamento do grande profeta. Porque, se à sua simples entrada na casa
de Zacarias se seguira um benefício tão grande que o menino exultou
no seio materno e a mãe se encheu do Espírito Santo, que bens não
julgaremos advieram da presença tão prolongada de santa Maria?
O profeta era santificado, e, como bom atleta, exercitava-se no
seio materno. Preparava-se, na verdade, para um renhido combate.

SOBRE OS M ISTÉRIO S1
(P.L. 16, 405ss; S.C. 25)

463 Diariamente, quando se liam as histórias dos patriarcas e o li­


vro dos Provérbios, pregávamos sobre temas morais, a fim de vos
irmos formando e habituando no caminho dos antepassados, no ca-

3 SI 33.
1 Nos séculos II-III o termo “mysterium” designava muitas vezes o mesmo que
“sacramento”.
SOBRE OS MISTÉRIOS 313

minho da obediência aos divinos mandamentos. Assim, renovados


pelo batismo, seguiríeis a vida digna dos purificados.
Agora é tempo de vos falar sobre os mistérios, expondo sua
significação. Se antes do batismo os déssemos a conhecer aos não
iniciados, estaríamos antes traindc-os que manifestando-os. Melhor
se difunde a luz dos mistérios nos que a recebem de improviso do
que após um sermão 2.
Abri, pois, os ouvidos, aspirai o bom odor da vida eterna que
o dom dos sacramentos emite para vós. Foi isso precisamente que
indicamos, quando ao celebrar o mistério da “ abertura” dissemos:
*Epbpbeta", isto é, “abre-te”. É que cada um devia entender o que
lhe perguntavam, ao aproximar-se da graça, e lembrar-se de como
responder. Cristo mesmo celebrou esse mistério, conforme lemos no
Evangelho, na cura do surdo-mudo3 ( . . . )
Em seguida foi-te franqueado o Santo dos santos4: entraste no
sacrário da regeneração. Recorda o que te interrogaram, relembra tua
resposta. Renunciaste ao diabo e às suas obras, ao mundo, às suas
pompas e prazeres. Tua palavra se conserva, não em sepulcro de
mortos, mas no livro dos vivos.
Ali viste o levita, o sacerdote, o sumo sacerdote5. Não fiques
na aparência corpórea, vai à graça dos mistérios. Tu falaste em presen­
ça dos anjos, conforme está escrito: “os lábios do sacerdote guardam
a ciência, de sua boca espera-se a lei, pois ele é anjo do Senhor
onipotente” 6. Não se há de negar: anjo é quem anuncia o reino
de Cristo e a vida eterna. Sem julgar pela aparência, mas pelo ofício,
considera o que te transmitiu e avalia sua função, reconhece seu es­
tado.
Entraste para ver teu adversário, para renunciar frontalmente já
ele, voltando-te em seguida para o Oriente, pcis quem renuncia ao«
diabo se volta para Cristo e diretamente o contempla.
Que viste? Água, sim mas não apenas água. Viste os levitas 464
ministrando e o sumo sacerdote7 interrogando e consagrando. Ora,
em primeiro lugar ensinou-te o Apóstolo a não considerar as coisas
visíveis, mas as invisíveis, pois aquelas são temporais e estas eter­
n as8. Em outra passagem, lês igualmente: “Desde a criação do mun­
do, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e di­
vindade, tornaram-se visíveis à inteligência por meio das coisas cria­
das” 9. Por isso diz também o Senhor: “Se não credes em mim, crede

2 De acordo com a disciplina “do arcano”, geralmente a explicação dos ritos era
feita durante ou após a realização dos mesmos, não antes.
3 M c 7 ,3 4 .
4 R e fe rê n c ia ao b a tis té r io .
5 O s tr ê s g ra u s d a h i e r a r q u ia : d iá c o n o , p re s b íte r o e b is p o .
6 Ml 11,7.
7 Bispo.
8 2Cor 4,18.
* R m 1 ,2 0 .
314 SANTO AMBRÓSIOI
ao menos nas minhas obras” 101. Crê, portanto, estar ali presente a di­
vindade. Crês na sua ação e não crês em sua presença? Como ha­
veria a ação se não houvesse presença?
465 Considera quanto é antigo o mistério, prefigurado desde a ori-
gem do mundo. No princípio, quando Deus criou o céu e a terraj
“o Espírito pairava sobre as águas” 11. Acaso aquele que pairava
sobre as águas, nelas não atuava? Mas por que digo: atuava? Np
que se refere à presença, pairava. Então, pairando não atuava? Re­
conhece que atuava na formação do mundo, pois diz o profeta: “Pe-,
la palavra do Senhor foram firmados cs céus e pelo sopro de sua boca
todo o seu exército” 12. No testemunho profético apóiam-se, portanto,
ambas as afirmações: Moisés diz que o Espírito pairava; Davi, qué
atuava.
Mais um testemunho. Ccrrompera-se toda a carne, por suas ini-
qüidades. “Meu Espírito — diz o Senhor — não permanecerá no
homem, pois é carne” 13. Deus mostra assim que a graça espiritual
se afasta da impureza carnal e da mancha do pecado grave. Queren­
do, pois, reparar o que se corrompera, Deus mandou o dilúvio p
ordenou ao justo Noé que entrasse na arca. Ao cessar a chuva, sol­
tou este primeiro um corvo, que não mais voltou; soltou então
um a pomba que, conforme se lê, regressou com um ramo de olivei­
ra 14. Vês a água, o lenho e a pomba, e duvidas do mistério?
Na água mergulha a carne, para ser purificada de seu pecado.
Sepulta-se ali todo pecado. No lenho foi pregado o Senhor Jesus,
quando sofreu por nós. Na figura da pom ba— conforme aprendeste
em o Novo Testamento — desceu o Espírito Santo, que te infunde
a paz na alma, a serenidade no espírito. Do pecado é figura o cor­
vo, que sai para não mais voltar, se em ti conservares a observân­
cia e forma da justiça.
Um terceiro testemunho te é dado pelo Apóstolo: “Nossos pais
estiveram todos sob a nuvem, atravessaram o mar e na nuvem
e no mar foram batizados” 15. E o próprio Moisés diz em seu cân­
tico: “Enviaste teu Espírito e o mar os cobriu” 16. Observas que,na
travessia dos hebreus já foi prefigurado o batismo: ali pereceu o
egípcio e o hebreu foi salvo. Que aprendemos diariamente neste
mistério, senão que a culpa é submergida, o pecado destruído, mas
a piedade e a inocência permanecem seguras? Ouves que nossos
pais estiveram sob a nuvem, a boa nuvem, que aliviou o ardor
das paixões carnais. A boa nuvem dá sombra aos que são visitados
pelo Espírito Santo. Ela baixou sobre a Virgem Maria e a virtude

10 Jo 10,38.
11 G n 1,2.
12 SI 32,6.
13 Gn 6,3.
14 Gn 8,7ss.
15 lCor 10,2.
16 Ex 15,10.
i SOBRE OS MISTÉRIOS 315

; do Altíssimo a cobriu com sua sombra 17, quando gerou a redenção


da estirpe humana. E esse milagre foi realizado figuradamente por
Moisésw. Se figuradamente esteve presente o Espírito, como não
; estará realmente presente quando a Escritura te di2 : “A lei foi
dada por Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” 19?
/• Fonte extremamente amarga era Mara; lançou nela Moisés um
lenho e doce se tornou a água20. Sem a intervenção da cruz do
Senhor, de nada vale a água para a futura salvação; mas depois de
consagrada pelo mistério d a . Cruz salvífica, torna-se capaz de ser­
vir ao banho espiritual e à bebida da salvação. Como Moisés, isto
ê> o profeta, lançou um lenho naquela fonte, assim o sacerdote
imerge nesta fonte a invocação da cruz do Senhor, tornando-se doce
a água, para conferir a graça.

j . / ‘ Já te foi dito que não cresses apenas no que vias, para não 466
pensares, talvez: "Então é este o grande mistério, que ‘os olhos
hão viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração do homem
conheceu?’ 21 Vejo águas, como as que sempre vi; acaso têm a vir­
tude de purificar? Tantas vezes mergulhei na água sem ser purificado!”
Por isso mesmo reconhece que sem o Espírito a água não
purifica!
Leste que se unem no batismo três testemunhas: a água, o
sangue e o E spírito22; se tirares uma delas não subsiste o sacramen­
to: dó batismo. Que seria a água sem a cruz de Cristo? Elemen­
to,; comum, sem qualquer efeito sacramental. De outro lado, sem a
água -não haverià sacramento da regeneração: “Se alguém não re­
nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus” 23.
Crê o catecúmeno na cruz do Senhor Jesus e por ela é marcado;
mas se não for batizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Sánto não pede receber a remissão dos pecados nem haurir o dom
da graça espiritual.

Acaso ainda tens motivo de duvidar, quando evidentemente 467


dam a o Pai no Evangelho, dizendo: “este é o meu Filho, em
quem pus toda a minha complacência” 24; clama o Filho, sobre o
qual se manifestou o Espírito, como pomba; clama também o Es­
pírito, que desceu em forma de pomba; dam a Davi: “a voz do
316 SANTO AMBRÓSIO
Senhor ressoa sobre as águas, o Deus da majestade fez ouvir sua
voz; o Senhcr está sobre muitas águas” 25. Quando a Escritura te
atesta ter descido fogo do céu em resposta às preces de Jerobaal2-,
e outra vez, em resposta à oração de Elias, ter vindo uma chama do
alto para consagrar o sacrifício! 27
Não consideres os méritos das pessoas, mas o ofício sacerdotal.
E se olhas os méritos, como no caso de Elias, contempla tam­
bém os méritos de Pedro cu de Paulo, que nos transmitiram o
mistério recebido do Senhor Jesus. Aos antigos foi enviado fogo visível,
a fim de crerem; para nós que cremos ópera fogo invisível. O que foi
para os primeiros uma representação, para nós é uma admonição. Crê
portanto que, invocado pelas orações dos sacerdotes, está presente
o Senhor Jesus, que disse: “Onde dois ou três estiverem, aí também
estou” 28. Quanto mais na Igreja, onde se acham os seus mistérios,
não se dignará ele conceder a sua presença?
468 Desceste, portanto29; lembra-te que respondeste crer no Pai,
no Filho, no Espírito Santo. Aí não afirmaste: Creio no maior, nq
menor e no último; estás, pois, obrigado, pela mesma fiança de tua
palavra, a crer igualmente no Filho, como crês no Pai, a crer do
mesmo modo no Espírito Santo, como crês no Filho, apenas com
a exceção de confessares ser de fé que só o Senhor Jesus foi cruci­
ficado.

469 Recebeste depois estas vestes brancas, como sinal de te ha­


veres despojado do envoltório dos pecados e de teres vestidó
os castos véus da inocência, de que fala o profeta: “Tu me aspergirás
com o hissopo e serei purificado; tu me lavarás e me tornarei mais
branco do que a neve” 30. Quem se batiza vê-se purificado, tantò
segundo a Lei como segundo o Evangelho: segundo a Lei, porque
com um feixinho de hissopo Moisés aspergia o sangue do cordeiro31;
segundo o Evangelho, porque eram brancas como a neve as vestes
de Cristo, ao manifestar a glória de sua ressurreição32. Mais alvo do
que a neve se torna aquele cuja culpa é perdoada. Eis por que ó
Senhor diz, por boca de Isaías: “se vossos pecados forem como o
escarlate, torná-los-ei brancos como a neve” 33.

25 SI 28,3.
26 j z 6,21.
27 lRs 18,38.
28 Mt 18,20.
29 O batismo era administrado por imersão.
30 SI 50,9.
31 Ex 12,22.
32 Mt 17,2.
33 Is 1,18.
SOBRE OS MISTÉRIOS 317

Enriquecido com tais adornos, o povo purificado se dirige ao 470


altar de Cristo, dizendo: “entrarei até ao altar de Deus, do Deus
que alegra a minha juventude” 34. Abandonados os despojos do
antigo erro, renovada a juventude, como a da águia, apressa-se em
tomar parte no banquete celeste. Ao chegar, vendo ornado o sagra­
do altar, exclama: “preparaste diante de mim uma mesa” 35. E
Davi fá-lo ainda dizer: “o Senhor é meu Pastor, nada me faltará;
colocou-me em lugar de pastagem; conduziu-me junto de uma água
refrigerante” 36. E mais adiante: “ ainda que eu caminhe nas som­
bras da morte, não temerei mal algum, porque tu estás comigo. Teu
bastão e teu cajado me consolaram. Preparaste para mim uma mesa,
diante de meus inimigos. Ungiste com óleo minha cabeça e quão
precioso é teu cálice inebriante! ” 37
Consideremos tudo isso agora, para não acontecer que alguém,
vendo as. coisas visíveis (as invisíveis não se podem ver com olhos
humanos), diga talvez: “Mas para cs judeus o Senhor fez chover
maná e codornízes” . . . 38 Para a sua amada Igreja, eis que preparou
o que “os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, nem o co­
ração do homem concebeu: foi isso que Deus preparou para os que
ò amam” 39. Portanto, para que ninguém fale assim, vamos empe­
nhar-nos em provar que os mistérios da Igreja sao mais antigos que
os da Sinagoga e mais excelentes que o maná.
A leitura do Gênesis, que escutamos, ensina serem eles mais
antigos, pois a Sinagoga teve origem na lei de Moisés. Abraão, po­
rém, é muito anterior; após a derrota dos inimigos e a libertação
do próprio sobrinho, quando se apoderava dos frutos da vitória,
saiu-lhe ao encontro Melquisedeque e ofereceu dons que Abraão,
com respeito, recebeu. Não foi Abraão, foi Melquisedeque quem
ofereceu, ele que é apresentado sem pai, nem mãe, sem ter começo* <
riem fim de vida e assim semelhante ao Filho de Deus, do qual diz
são Paulo aos hebreus: “ele permanece sacerdote para sempre” 40.
Na tradução latina seu nome significa “rei da justiça, rei da paz”.
Não reconheces quem seja ele? Acaso pode ser um homem rei
da justiça, quando tão dificilmente é justo? rei da paz, quando mal
consegue viver em paz? Sem mãe, segundo a divindade, porque foi
gerado por Deus Pai, consubstanciai com o Pai; sem pai segundo a
encarnação, porque nasceu da Virgem. Não tem princípio nem fim,
pois é ele mesmo o Princípio e o Fim de tudo, o Primeiro e o
Ültimo 41.

35 si 22,5.
36 I b i d . I s .
37 I b i d . 4 s .
38 Ex 16,13.15.
39 ICor 11,9.
40 H b 7,8.
41 Ap 22,18.
318 SANTO AMBRÓSIO;
O dom que recebeste não é portanto algo de humano, é di­
vino sacramento, revelado por aquele que abençoou a Abraão, o
pai da fé, cujas ações e graças tu admiras.
471 Está provado assim serem mais antigos os mistérios da Igreja;
Reconhece agora como são mais valiosos. Realmente, é admirável
que Deus tpnha feito chover maná para nossos pais, que os tenha
alimentado diariamente com pão do céu. Por isso foi dito: “o homein
comeu o pão dos anjos” 42. Entretanto, apesar desse pão que recebiam;
morreram todos no deserto. O alimento que tu recebes, ao contrário,
sustenta para a vida eterna, pois é o pão vivo que desceu do céu;
todo o que dele comer não morrerá eterhamente; é o corpo de
C risto43.
Então qual dos dois é mais excelente: o pão dos arijos otl
a carne de Cristo, que é o corpo da Vida? Aquele maná vinha do
céu; este está acima do céu; aquele era do céu, este é do Senhor
dos céus; aquele era sujeito à corrupção, se guardado para o dia
seguinte; este é absolutamente incorruptível e quem o saborear relb
gicsamente jamais experimentará a corrupção.
Para os judeus jorrou água da pedra44, para ti o sangue de
Cristo. Por breve tempo a água os dessedentou; o sangue te lava
para sempre. Bebe o judeu e ainda tem sede; tu, após beberes, não
poderás mais ter sede. Aquilo se passava em figura, isto na rea­
lidade.
472 Se o que admiras é sombra, quão grande não será o que já é
admirável em sua sombra. Ouve: é sombra o que aconteceu com
nossos pais. “Bebiam”, diz a Escritura, “da pedra que os acompa­
nhava; a pedra, porém, era Cristo. Entretanto, da maioria deles não
se agradou Deus, pelo que sucumbiram no deserto” 45. Estas coisas
ocorreram para ncs servir de figura. Conheceste o que é mais ex­
celente, porque a luz vale mais que a sombra, a verdade mais que
a figura, o corpo do Criador mais que o maná do céu.
Talvez digas: — É outra coisa o que vejo; como me afirmas
que recebo o corpo de Cristo?
473 É o que ainda nos resta provar. Quantos exemplos podemos
utilizar! Vamos provar que isso é assim, não por obra da natureza, mas
em razão da bênção que consagra, sendo maior a virtude da consa­
gração do que a da natureza, pois pela consagração até a natureza
se transforma.
Moisés segurava uma vara. Atirou-a ao chão e transformou-se
em serpente46. Pegou a serpente pela cauda e ei-la voltando ao que
SOBRE OS MISTÉRIOS 319

era. Vês que pelo podef do profeta mudou duas vezes a natureza da
serpente e da vara?
Deslizavam os rios do Egito na límpida correnteza de suas
águas. Subitamente dos veios, provenientes das fontes, começou a
brotar sangue47 e já não havia água potável nos rios. De novo,
pela oração do profeta, cessou o sangue e reapareceu a limpidez
das águas.
Cercado estava, de todos os lados, o poyo hebreu: de um lado
os egípcios lhe interceptavam a passagem, de outro o mar o detinha.
Ergueu Moisés a vara e a água se dividiu, congelando-se como se
fosse muralha de modo qüe entre as ondas surgisse um caminho de
passagem 48.
O rio Jordão, contrariando a ordem natural, passou a retro­
ceder em direção a fonte de onde m anava49. Não foi evidente a
mudança ná natureza tanto das ondas daquele mar como do curso
desse rio?
^ _ Sofria sede o povo dos patriarcas. Moisés tocou o rochedo e
jorrou água da pedra. Não atuou a graça além do que faz a natu­
reza, fazendo que o rochedo vertesse uma ágüa que não possuía?
y O lago Mara era tão amargo que o povo não podia desse-
dentar-se ali. Lançou Moisés um lenho na água e esta, unida à
graça ali infundida, perdeu o natural amargor 50,
No tempo do profeta Eliseu, aconteceu a um dos filhos dos
profetas que escapou o ferro de seu machado e começou a afundar.
Atendendo aos rogos do que sofrera o prejuízo, Eliseu mergulhou o
cabo de madeira e o ferro veio à tona d’água51. Fato também
superior à natureza, pois o ferro é naturalmente mais pesado que
a água*
Notamos nisso tudo ser a graça mais forte que a natureza,^ 474
embora se trate ainda da graça derivante da bênção de um profeta!
Se tão poderosa foi a bênção humana para transformar a natureza,
que diremos da própria consagração divina, na qual operam as pala­
vras do próprio Senhor e Salvador? Pois o sacramento que recebes
é confeccionado com a palavra de Cristo. Se tanto pôde a palavra
de Elias, que fez descer fogo do céu 5253, não terá poder a de Cristo
para mudar a natureza dos elementos? A respeito das coisas do
universo leste que: “Ele disse e foram feitas; ordenou e foram cria­
das” 55. Ora, se a palavra de Cristo pôde criar do nada o que não
existia, não poderá mudar elementos já existentes naquilo que não

47 Ex 7,20s.
4« Ex 14,20*.
4? Js 3,16.
50 Ex 15,23ss.
51 2Rs 5,5s.
52 lRs 18,38.
53 si 148,5.
320 SANTO AMBRÓSIO
eram? Não é menor poder dar aos seres nova natureza dò que
mudá-la!
475 Mas, por que usar de argumentos? Sirvamo-nos de exemplos,
confirmemos a verdade do mistério pelo exemplo da Encarnação.
Porventura o nascimento de Jesus foi precedido do processo na­
tural? Se investigarmos a ordem, a mulher gera por união com
o homem. É portanto evidente que a Virgem gerou acima da or­
dem natural. Ora, o corpo que consagramos nasceu da Virgem; por que
buscas a ordem no corpo de Cristo, quando acima da natureza nasceu
da Virgem o Senhor Jesus? Foi verdadeira a carne de Cristo, crucifi­
cada e sepultada; por que não será verdadeiramente de sua carne
este sacramento?
O próprio Senhor Jesus clama: “ Isto é o meu corpo” 54. Antes
da bênção das palavras celestes, uma espécie é designada, depois
da consagração é corpo o que vem designado. Ele afirma estar no
cálice o seu sangue. Antes da consagração é uma coisa, depois
ela se chama sangue. E tu dizes: “Amém”, a saber, “é verdade”. Õ
que a boca prefere, o íntimo da alma também confesse; o que a palavra
significa, sinta-o o coração.
476 Cristo alimenta sua Igreja com estes sacramentos que fortale­
cem a substância da alma, e vendo-a crescer na graça, assim lhe fala:
“Quão belos são teus seios, minha irmã e esposa! Tornaram-se mais
belos que a vinha! O aroma de tuas vestes supera todos os perfumes!
Teus lábios, ó esposa, são como favo a destilar, o mel e o leite
estão sob a tua língua e a fragrância de teus vestidos é como ò
bálsamo do Líbano. És um jardim fechado, minha irmã e esposa, um
jardim cerrado, uma fonte selada” 55. Por estas palavras indica que em
ti deve o mistério permanecer selado, isto é, não deve ser violado
pelas obras da vida má ou pelo adultério da castidade, não deve ser
divulgado a quem não compete, não deve ser difundido entre gente
perversa através da excessiva conversação. Precisas guardar bem
tua fé, para que permaneça imaculada a integridade da vida e do
silêncio.
Conservando a profundeza dos mistérios, a Igreja afasta de si
as procelas dos grandes ventos e convida à suavidade da graça pri­
maveril; ciente de que seu jardim não pode desagradar a Cristo,
chama seu Esposo com estes termos: “Levanta-te, ó Aquilão, e vem,
ó tu que és o vento do meio-dia, sopra por todo o meu jardim e
faz difundirem-se meus aromas!” 56 “Venha meu irmão a seu jardim
e coma o fruto de suas macieiras!” 57 Ele possui árvores boas e
frutíferas, que banham as raízes na torrente da Fonte sagrada e se
propagam através de bons frutos, com c germe de uma fecundidade

« M t 26,26.
55 Ct 4,10ss.
56 Ibid. 16.
57 C t 3 ,1 .
SOBRE OS MISTÉRIOS 321

nova> não mais cortadas pelo machado do profeta, mas fertilizadas


pela exuberância do Evangelho.
E finalmente responde o Senhor, deleitado por sua própria
fertilidade: “Entrei em meu jardim, irmã e esposa minha; colhi a
minha mirra com meus perfumes; comi o meu alimento com meu
mel; temei a minha bebida com meu leite” 58. Compreende, na fé,
por que ele falou de alimento e bebida. Não é duvidoso isso, que
ele come e bebe em nós, da mesma forma que em nós, como
leste, ele diz estar no cárcere59.
Vendo, pois, a Igreja tão grande graça, exorta seus filhos e 477
próximos a recorrer aos sacramentos: “Comei, amigos meus, bebei
é inebriai-vos, irmãos meus” 60. Quais sejam este alimento e esta
bebida, o Espírito Santo te expõe, através dp profeta, ao dizer:
“Provai e vede como é suave o Senhor; bem-aventurado o homem
que nele espera” 61.
. , Naquele sacramento Cristo está, porque é o corpo de Cristo.
Não é, pois, alimento corporal, mas espiritual. De sua figura falou
O.f Apóstolo: “Nossos pais comeram um alimento espiritual e be­
beram uma bebida espiritual” 62. Com efeito, o corpo de Deus é
corpo espiritual, o corpo de Cristo é corpo do divino Espírito, por­
que Cristo jé Espírito, conforme lemos: “O Espírito diante de nos­
sa,face é o Cristo Senhor” 63. E na epístola de Pedro temos: “Cristo
morreu por nós ” 64. Finalmente, esse alimento fortalece nosso in­
terior e essa bebida alegra nosso coração, conforme a palavra do
profeta65.
o; Na posse de todos esses dons, reconheçamos que fomos gera­
dos de novo e não digamos: — “Como fomos regeáerados? acaso
reentramos no ventre de nossa mãe e tornamos a nascer? Não co- <
nheço isso na natureza”.
Não há aqui a ordem da natureza, mas a excelência da graça. 478
Aliás, nem sempre entra a ordem da natureza mesmo se se tra­
ta da geração: confessamos que o Cristo Senhor foi gerado pela
Virgem, com o que negamos a ordem natural, pois Maria não
concebeu de um homem, mas recebeu do Espírito Santo em seu
Ventre, consoante diz Mateus: “Concebeu no ventre por obra do
Espírito Santo” 66. Se portanto o Espírito Santo, descendo sobre a
Virgem, realizou a concepção e a obra da geração, não se tem o di-

» Ct 5,1.
» Mt 2536.
«o Ct 5,1.
61 SI 33,9.
62 lCor 10,3.
63 Lm 4,20.
64 lP d 2,21.
65 si 103,15.
66 M t 1,18.1

11 - Antologia dos santos padres


322 SANTO AMBRÓSIO
reito de duvidar que, descendo sobre a fonte ou sobre os que se
batizam, realize com verdade a sua regeneração.

A Efi NA IMORTALIDADE
' (P.L. 16, 1373-1375)

Sobre a morte de seu irmão Sátiro

479 Não devemos chorar a morte dos entes queridos. Não é certo
lamentar-se como particular desgraça o que se sabe atingir a todos.
Seria desejar subtrair-se ao destino geral, não aceitar a lei comum,
não reconhecer a igualdade de natureza, seguir os sentimentos carnais
e ignorar a finalidade do corpo. Haverá algo mais tolo do que desco­
nhecer o que se é, querer parecer o que não se é? algo de menos
inteligente do que, sabendo o que deve acontecer, não lograr su­
portá-lo quando acontece? A própria natureza nos interpela e n o a:r e ­
tira da dor com um modo de consolar que lhe é todo próprio. De-
fato, não há sofrimento tão profundo, tormento tão acerbo que não
ache algum lenitivo. E é a natureza que o oferece aos homens, pre­
cisamente porque são homens, ela desliga seu espírito da dor, mes­
mo nas situações mais tristes e lutuosas. Houve povos, dizem, qüè
se afligiam com o nascimento de um homem, ao passo que celebra­
vam festivamente sua partida. Isto não é totalménte destituído dé
significado, pois acreditariam dever lamentar os que se põem ao
leme do barco em mar tempestuoso, como é a vida; pensariam, ao
contrário, não ser errado alegrar-se com cs que escapavam às bor­
rascas da vida. Mesmo nós, cristãos, esquecemos o dia do nasci­
mento de nossos santos e festejamos o de seu retorno à pátria.
De acordo com a ordem natural, portanto, não é justo dar
excessivo lugar ao pesar, se não se deseja reclamar uma especial ex­
ceção ao curso da natureza, recusando-se a sorte comum. A morte,
com efeito, é comum a todos, sem distinção de pobres e ricos. E em­
bora tenha vindo ao mundo por culpa de um só homem, passou a
todos, a ponto de devermos considerar autor da morte o que foi
princípio do gênero humano. Mas igualmente por obra de um só
veio para nós a ressurreição! Não há então que desejar subtràir-nos
ao flagelo trazido pelo primeiro, para assim podermos obter a
graça do segundo. Cristo, diz a Escritura, veio para recuperar o
que estava perdido, a fim de reinar deste modo não só sobre os
vivos mas também sobre os mortos. Em Adão nós caímos, fomos
expulsos do paraíso e morremos: como poderá o Senhor reconduzir-nos
a si se não nos encontra em Adão? Neste nós decaímos sob o poder
do pecado e da morte, em Cristo nos tornamos justificados. A morte
é um débito comum; todos devemos suportar-lhe a paga. . .
. A FÉ NA IMORTALIDADE 323

Considero porém um ultraje que se faz à piedosa memória dos 480


defuntos o considerá-los perdidos e o preferir esquecê-los antes que
confortá-los com nossos sufrágios; o pensar neles com temor e não
com amor e benevolência; o temer recordá-los, ao invés de pro-
curar-lhes a paz; o nutrir enfim mais receio do que esperança, quando
se pensa em seus méritos, como se lhes competisse mais o castigo
do que a imortalidade.
Vem agora a objeção: “Mas perdemos os nossos caros!”
Sim, porém não é esta a sorte que comungamos com a terra e com
os elementos, a de não reter para sempre o que nos foi emprestado
por algum tempo? A terra geme sob o arado, é frustrada pela chuva,
batida pela tempestade, ressecada pela geada, queimada pelo sol: tudo
isto para que frutifique e dê a colheita de cada ano. Apenas se reveste
de múltiplos encantos e logo deles vem desfeita. De quanta coisa se
vê privada! Mas não irá lamentar a perda de seus frutos, pois os
produziu para perdê-los. Nem se recusa a produzir outros no futu­
ro, embora lhes vão ser de novo tirados. O céu também, ele não
èstá sempre fulgurando com a grinalda das estrelas, nem a aurora
sempre o ilumina ou o douram os raios do sol, mas bem regular­
mente se torna velado pela fria neblina da noite. Que há de mais
grandioso que a luz, de mais esplendoroso que o sol? Pois ambos de­
saparecem cada dia e nós suportamos isto sem reclamar, pois sabe­
mos que voltarão. Aqui se mostra a paciência que deves ter quando
também se vão os que te são caros. Não te entristeces quando os as­
tros desaparecem. Por que há de afligir-te a morte do homem?
SÃO JERÔNIMO
(347420)

O mais erudito dentre os Padres latinos é são Jerônimo, chamado “vir trilinguis”,
por seu amplo conhecimento do latim, grego e hebraico, e também “Doutor bíblico”,
por suas pesquisas no campo da Sagrada Escritura.
Nascido na Dalmácia, educou-se em Roma, cnde se familiarizou com os autores
clássicos. Atraído pelo ideal monástico e ascético, peregrinou à Palestina e lá viveu
alguns anos como eremita. Em 379 recebeu o presbiterado das mãos de Paulino, bispo
de Antioquia. Esteve pouco depois em Constantinopla, onde foi ouvinte de são Gre*
gório Nazianzeno e amigo de são Gregório Nisseno. De 382 a 383 morou em Roma,
como secretário do papa Dâmaso, por cuja ordem encetou a revisão da versão itálica
da Sagrada Escritura, trabalho do qual resultou finalmente a chamada Vulgata. Àó
mesmo tempo, propagava o ideal ascético, principalmente num círculo fervoroso de
mulheres da nobreza romana, entre as quais Marcela, Paula e Eustochium, e com­
batia os maus costumes do clero. Em 385 regressou à Palestina, passando antes pòf
Alexandria, onde ouviu as conferências de Dídimo, o Cego. Na Palestina fixoü-sè
em Belém, na direção de um mosteiro, lá passando 34 anos de intensa produção li­
terária e participando das controvérsias origenista e pelagina. Morreu a 30 de setem­
bro de 420.
Na figura de são Jerônimo sobressaem a austeridade e o temperamento veemen­
te, a dedicação ímpar aos estudos bíblicos, o amor à Igreia e à Sé de Pedro.
Obras: a revisão da Vetus latina e a tradução do Antigo Testamento a partir
dos textos hebraico e aramaico; outras traduções (de Orígenes, cuja doutrina com­
bateu; de Eusébio, Dídimo etc.); obras exegéticas; obras polêmicas (Contra Helvtdio,
Contra Joviniano, Contra Vigilância etc.); Homilias e Cartas sobre temas doutrinários
e ascéticos.
Ed. moderna: CCL, t. CLXX-CLXXII A. Em tradução francesa: St. Jérôme. Let-
tres, 8 vols., Coll. des llniv. de France, 1949-1963.

CARTA A DÂMASO, PAPA


(Carta XV: P.L. 22, 355-358)

A s três Hipóstases
481 O Oriente está debilitado pela antiga fúria dos povos, e desfaz
fibra por fibra a túnica do Senhor, inconsútil e tecida de cima
abaixe. As raposas assolam a vinha de Cristo, de maneira que entre
as cisternas rotas e sem água1 é difícil atinar onde está a “fonte
selada e o horto fechado"2. Pareceu-me, portanto, que devia correr, a
consultar a Cátedra de Pedro e a fé proclamada pela boca apostólica,
pedindo alimento para minha alma, dali mesmo onde em outra ocasião
recebi a veste de Cristo.
CARTA A DÂMASO, PAPA 325

As imensas distâncias por mares e terras não seriam obstáculos


que me impedissem de ir em busca da pérola preciosa. Porque “onde
quer que esteja o corpo, aí também se juntarão as águias
Havendo o filho pródigo desperdiçado seu patrimônio, somente
junto a vós se guarda sem corrupção a herança dos pais. É aí que
o campo de terra fértil reproduz a semente do Senhor a cem por
um; enquanto aqui os b o n s. grãos, envoltos nos sulcos, se conver-
tèm em joio. Levanta-se agora o sol da justiça no Ocidente; mas
no Oriente colocou seu trono sobre as estrelas o Lúcifer que caiu.
Vós sois a luz do mundo e o sal da terra. Vós sois os vasos
de ouro e prata, enquanto aqui vasos de barro e de madeira estão
aguardando o cetro de ferro e o fogo eterno.
Assim, embora me atemorize vossa grandeza, de outro lado con­
vida-me vossa humanidade. Peço ao Sacerdote o sacrifício da sal­
vação, ao Pastor a defesa da ovelha. Para longe, pcis, toda inveja!
Desapareça toda ambição da alteza romana: falo aqui com o sucessor
do Pescador e com o discípulo da Cruz, e, a ninguém mais seguindo
senão a Cristo, permaneço em comunhão com vossa Beatitude, isto é,
com a cátedra de Pedro. Sobre essa rocha está edificada a Igreja
e quem comer o Cordeiro fera dessa casa é profano. Sei que se
alguém não estiver dentro da Arca de Noé, enquanto durar o dilúvio,
perecerá. E porque, desejando fazer penitência de meus grandes pe­
cados, vim a esta solidão que divide a Síria do território da barbárie,
pelas longas distâncias que nos separam, não posso sempre pedir
à vossa Santidade o Santo do Senhor34. Portanto, sigo aqui aos
santos confessores egípcios, vossos companheiros, e como uma nave
pequena amparo-me entre cs grandes navios. Não conheço Vital, re­
jeito Melécio e ignoro Paulino5. Pois quem não recolher convosco,
dispersa, isto é, quem não é de Cristo está contra Cristo. <
Porém agora — ó dor! — após a declaração de fé do Concílio 482
Niceno e depois do decreto conjunto do Oriente e do Ocidente, dado
em Alexandria, os chefes dos arianos e campenses pedem-me a mim,
homem da Igreja de Roma, a adesão à nova doutrina das três hipós-
tases6. Rcgo-lhes muito que me digam, qual dos apóstolos saiu
com esta novidade? Que novo mestre dos povos ensinou tais
teses, à maneira de outro Paulo? Perguntamos-lhes: — Que é que
querem entender por “três hipóstases?” Dizem que três pessoas sub­
sistentes. Respondo-lhes que eu também creio assim. Então respon­
dem que não basta aceitar o sentido, mas é necessário expressar-se

3 M t 24,28.
4 O “Santo do Senhor” era expressão que designava a sagrada eucaristia, a qual
os Pastores das diferentes igrejas se enviavam reciprocamente, em sinal da comunhão
na fé.
5 São três nomes em relação com o cisma antioqueno do século IV.
6 Antes de ser consagrada pelo I Concílio de Constantinopla (381), a expressão
“três hipóstases” parecia significar, em algumas áreas, o mesmo que “três substâncias”.
Daí a repugnância de são Jerônimo quanto z seu uso (no ano 376).
326 SÃO JERÔNIMQ.
também naqueles termos, pois há nas sílabas não sei que peço­
nha. Replico exdamandò: Quem não confessar três hipóstases ou
três “entópóstata”,. isto é, três pessoas subsistentes, seja excomunga­
do! Mas em seguida, porque não retenho de memória estes vocábu­
los, julgam-me herege.
Ora, se alguém, entendendo por hipóstásis a usia ( = essência),
nega que nas três Pessoas há uma só "hipóstásis”, é alheio a Cristo.
Com esta confissão me assinalo como cativo da verdade junto a vossa
Santidade.
483 Tomai uma decisão, rogo-vos. Não temo confessar três hipós­
tases, se assim o mandardes. Mas componha-se então um Símbolo
novo em lugar do de Nicéia, e confessemos, nós católicos ortodoxos,
a fé com as mesmas palavras que os arianos!
Toda a escola secular dos filósofos não entende por “hipósta-
sis” outra coisa que "usia”. Digam-me, pois, por favor, quem ousa­
rá falar sacrilegamente em três substâncias? Uma só é a natúrezà
de Deus, a qual tem verdadeiro ser; porque o que subsiste e tem
ser por si, não o tem de outrò mas o ser é seu e próprio. As
demais coisas criadas não são, ainda que pareçam ser. Porque em
algum tempo não existiram; e o que em algum tempo não foi, ou­
tra vez pode não ser. Somente Deus, que é eterno, isto é, sem
princípio, tem verdadeiro nome de essência. Portanto, falando a
Moisés na sarça, disse:. “Eu sou Aquele que sou”. E Moisés disse:
“Aquele que é me enviou”. Havia então anjos, céu, terra e máteS;
ora, por que se apropria Deus a si mesmo enfaticamente o nome
comum de essênda? Ê porque somente sua natureza é perfeita è
nas três Pessoas subsiste; uma só divindade, a qual tem verdadeiro
ser, e uma só natureza,, dê: medo que quem disser que há três
seres, isto é, três hipóstases' ou usias, com o pretexto de piedade
está afirmando três:, naturezas. Por que, então, nos separamos de
Ário com a parede (das. palavras), se estamos unidos a ele pelò
erro? Junte-se, pois, Ursino a Vossa Beatitude e Auxêncio a Am-
brósio! 7 Os. corações religiosos dos povos não devem beber tal sá-
crilégic! BasteMiQs dizer que há* uma subístânda e três pessoas sub­
sistentes, perfeitas,, iguais e coeternas! Não se fale de três “hipós­
tases”, e mantenha-se uma só. Ê de suspeitar-se quando em um
mesmo sentido diferem as palavras. Baste-nos a vontade de fé, como
expusemos. Se st Vossa Beatitude parece acertado que digamos “três
hipóstases ”,, juntamenter com - as: devidas interpretações, não o recusa­
rei. Mas creia-me que: há’ peçonha escondida sob c mel e que o anjo
de Satanás se transfigurou em anjo de luz. Eles explicam o significa­
do do termo “hipóstásis”; quando eu digo, porém, que creio o que
eles me declaram, jplgam-me herege. Pára que se aferram tão ansio-

7 Ursino e Auxêntio eram arianos: o primeiro quis competir, no pontificado,


ccm Dâmaso e o segundo- foi adversário de santo Ambrósio.
ÀIPAULINO, PRESBÍTERO 327

samente a uma palavra? Que é que escondem sob a palavra am­


bígua? Se creem verdadeiramente naquilo que explicam, não con­
deno o que sustentam. Mas se também creio no que eles aparentam
crer, deixem-me expressar por minhas palavras o que dizem afirmar!
Portanto, suplico a Vossa Beatitude que, pela salvação do mun- 484
do, cravada na Cruz, e pela bomousia ( = consubstancialidade) da
Trindade, dê-me por cartas Suas autoridade de calar ou de afirmar
â respeito da doutrina das “hipóstases”. E para que o lugar escuro
ónde vivo não vos faça perder o endereço, dignai-vos encaminhar
as cartas pelo correio ao presbítero Evágrio, a quem conheceis bem,
indicando-me ao mesmo tempo com qual dos três prelados de Antio-
quia devo comunicar-me. Porque os campenses, unidos aos hereges
tartenses8, não pretendem outra coisa senão, apoiados na autoridade
de Vossa Santidade, pregar três hipóstases no sentido antigo.

A PAULINO, PRESBÍTERO
(P.L. 22, 542-543; 548-549)
(Trecho da carta LH I)
Sobre o estudo das Escrituras

O apóstolo Paulo vangloria-se de haver aprendido a Lei de 485


Moisés e dos profetas aos pés de Gamaliel, para que, munido com
as armas espirituais, pudesse dizer mais tarde com grande confiança:
"As armas com que combatemos, não são carnais, mas poderosas
èm virtude de Deus, capazes . de derrubar ifor.taílezas. Com elas des­
truímos os projetos e toda altivez cque :se \dfanem contra a ciência
de Deus, cativamos todo entendimento -à obediência de Cristo, é
estamos prontos a vingar toda. desobediência” '1.
Escrevendo a seu discípulo Timóteo, que desde a infância ha­
via sido instruído nas Letras Sagradas, exorta-o a que se dê ao
estudo das Santas Escrituras, a que hão menospreze & graça recebi­
da por imposição das mãos dos presbíteros2. E ;a Tito manda que
entre as demais virtudes do bispo, cuja vida 'pinta em poucas pala­
vras, trabalhe para ter também a ciência das Escrituras: "Atém-te
firmemente à palavra de fé que é conforme a doutrina, a fim de
seres capaz de instruir n a s ã doutrina e refutar os que contra­
dizem” 3.
A santa rusticidade, certamente, aproveita unicamente ao indi­
víduo e assim como edifica a Igreja de Cristo pelos méritos de sua

8 Os hereges tartenses eram uma das muitas seitas semi-arianas.


1 2Cor 10,14.
328 SÃO JERÔNIMO
vida, também danifica, se não sabe resistir aos que vêm para des­
truir. ■;
O profeta Ageu, ou melhor, o Senhor pela boca de Ageu diz:
“Perguntai a Lei aos sacerdotes!”4. Tal é a dignidade do ofício dos
sacerdotes — responder aos que perguntam sobre a Lei!
No liyro do Deuteronômio lemos: “Pergunta a teu pai, e ele
te responderá; e aos anciãos e eles te dirão!”5 O salmo 118 diz:
“Teus justos mandamentos são o tema de meus cantos no lugar
de meu desterro”. E quando Davi, descrevendo o varão justo, çom-
para-o à árvore da vida, acrescenta também isto: “ Sua vontade es­
tará posta na Lei do Senhor, e sobre ela meditará dia e noite” 6.
O santo profeta Daniel afirma no fim de sua visão que os jus­
tos resplandecerão como os astros, e os inteligentes, isto é, os eru­
ditos, como o firmam ento7.
Olhai que distância há entre a justiça dos rudes e a justiça
dos sábios! Pois uns são comparados ao céu, ao passo que os ou­
tros às estrelas. E ainda mais, segundo a verdade hebraica, uns e
outros podem entender-se os eruditos. Porque no hebraico lemos
desta maneira: “Os eruditos resplandecerão como o brilho do fir­
mamento, e os que ensinarem a muitos a virtude estarão como as
estrelas numa eternidade sem fim ”.
Por que se chama são Paulo “Vaso de eleição” 8? Não por
outra razão, senão por ser vaso da Lei e guardião das santas Escri­
turas.
486 Pasmam os fariseus vendo a doutrina do Senhor, e estranham
ao notar que são Pedro e são João sabiam a Lei, sem haver apren­
dido letras. Porque tudo o que cs demais sóem adquirir pelo exer­
cício e a meditação cotidiana dá Lei, a eles inspirava o Espírito
Santo, e eram, segundo está escrito, “ensinados por Deus”.
Nosso Senhor havia completado dcze anos, quando no Templo,
perguntando aos anciãos as questões da Lei, muito lhes ensinou com
suas sábias perguntas.
Poderiam parecer-nos rústicos são Pedro e são João, mas na
verdade cada u m . dos dois poderia dizer: “Embora seja falho de
palavras, não me falta ciência nem sabedoria” 9. Porventura são João
era rústico, pescador indouto?
Digam-me então, por favor, de onde veio aquela palavra: “No
princípio era o Logos e o Lpgos estava junto a Deus, e o Logos
era Deus” 10? Porque na língua grega “Logos” tem muitos signifi­
cados, tais como: palavra, razão, explicação e causa de todas as coisas

« Ag 2,12.
* Dt 32,17.
6 SI 1.3.
7 Dn 12,3.
8 At 9,15.
9 Is 54.
10 Jo 1.1.
A- PAÜLINO, PRESBÍTERO 329

(pela qual elas têm seu ser). Tudo isso entendemos perfeitamente de
Cristo.
Isso não soube Platão e ignorou-o o eloqüente Demóstenes. 487
“Vou destruir, diz o Senhor, a sabedoria dos sábios e reprovar a
prudência dos prudentes” 11. A verdadeirá sabedoria destruirá a falsa.
A pregação da Cruz parece loucura: porém, com tudo isto, ensina
são Paulo a “sabedoria entre os perfeitos” u , digo “sabedoria não
deste século nem de seus príncipes, que são destruídos”, mas "sa­
bedoria de Deus”, escondida em mistério, predestinada antes de to­
dos os séculos 13. A sabedoria de Deus é Cristo, porque Cristo é vir­
tude de Deus e sabedoria de D eu s14. Esta sabedoria está escondida
em mistério e ele, que estava escondido em mistério, foi predesti­
nado e prefigurado na Lei e nos Profetas 15. Por isso os profetas se
chamam “os videntes”, pois viam aquele a quem os demais não
viam 16. Abraão viu seu dia e encheu-se de gozo ao vê-lo17. Ao pro­
feta Ezequiel estavam abertos os céus, que permaneciam fechados
áõ povo pecador. O rei Davi diz: “Tirai, Senhor, o. véu de meus
olhos, e considerai as maravilhas de vossa Lei!” 18 Porque a Lei é
espiritual e assim tem necessidade de revelação, para ser entendida,
é para que, com rosto descoberto, contemplemos a glória de D eu s19.
No livro do Apocalipse mostra-se um livro selado com sete
selos. Se o dais a um homem letrado, para que o leia, responder-
-vos-á: “Não posso lê-lo, pois está selado” 20.
Quantos há, hoje em dia, que crêem saber as letras; mas têm
sélàdo o livro e não o podem abrir, se não o abre aquele que tem
a chave de Davi, “e abre e ninguém fecha, fecha e ninguém abre!”
Nos Atos dos Apóstolos212 o santo eunuco, ou melhor, varão
(porque com este nome o distingue a Escritura), foi interrogado
por Filipe, enquanto lia o profeta Isaías: “Porventura entendes <o
que lês?” E ele respondeu: “Como hei de entendê-lo se ninguém
me ensina?”

Mas hoje em dia a arte de entender as Escrituras a cada passo 488


qualquer um pensa sabê-la. E como disse o poeta: “Os doutos e os
tontos escrevemos a cada instante coisas de poesia” 21.
A velha tagarela e o velho caduco, o sofista charlatão e quais-

11 2Cor 11,6; lCor 1,19.


12 lCor 2,21.
13 Eclo 24,14.
M lC or 1,24.
13 lCor 2,7.

19 2Cor 3,18.
20 Ap 3,7.
21 At 8,27.
22 Horácio, Epist. II, 1,115: •'Scribimus indocti, doctíque poemata, passim”.
330 SÃO JERÔNIMO,
quer pessoas presumem entender a Escritura, esmiuçam-na e até a
ensinam antes de aprendê-la.
H á os que organizam círculos de mulherzinhas, alteiam a so­
brancelha, soltam grandes palavras e tratam das Escrituras Sagra­
das como filósofos. Outros — que vergonha! — aprendem de mu­
lheres o que hão de ensinar a homens e, como se não bastasse,
explicam adiànte o qué eles não entendem.
Não quero falar de meus colegas que, se acaso vêm das letras
profanas ao estudo das santas Escrituras, compõem grandes discur­
sos para gosto do povo, e qualquer coisinha que falam tem por Lei
de Deus. Não se dignam saber o que em verdade pensaram os pro­
fetas ou os apóstolos, mas ainda a seu próprio sentido adaptam
à força testemunhos incongruentes. Como se fosse grande coisa, e
não maneira viciosíssima de ensinar, depravar as sentenças e capri­
chosamente torcer a Escritura. Não temos, talvez, o espetáculo das
centenas de imitadores de Homero e Virgílio? Não poderíamos
dessa maneira chamar cristão a Virgílio (sem Cristo), porque es­
creveu aqueles versos que dizem: “Já volve a Virgem, já volvem
os reines de Saturno: E uma nova Prole é enviada do alto céu?” 23
E o outro, onde diz o pai ao filho: “Tu, filho, és minha força, so­
mente tu és grande potência”, ainda com palavras que recordam a
nosso Salvador na Cruz: “Tais coisas dizia, relembrando, e estava
fixo e pregado?” 24
Mas estas são coisas de criança e semelhantes áo jogo dos
charlatães de feira: ensinar o que não sabem ou, para dizer mais
claramente, nem sequer sabem que não sabem.

489 Entre os Livros Sagrados, pois, está bem clara a narração do


Gênesis sobre a criação do mundo, sobre a origem da linhagem hu­
mana, a divisão da terra, a confusão das línguas, e sobre a ida dos
hebreus até o Egito. O Êxodo está manifesto com suas dez pragas,
com o Decálogo, e com os preceitos místicos e divinos. Também está
claro o Levítico, no qual todos os sacrifícios, ou melhor, quase todas
as sílabas, as vestimentas de Aarão e a ordem levítica representam
os sacramentos celestiais. Não contém, porventura, o livro dos Nú­
meros todos os mistérios da aritmética e da profecia de Balaão, e das
quarenta e duas estações (do povo hebreu em sua marcha através) do
deserto? O Deuteronômio, que é a segunda Lei e a prefiguração da
Lei evangélica, não abarca de tal maneira aquelas coisas que foram,
de modo que as novas sejam tiradas das antigas?
Até aqui chega o Pentateuco, este conjunto de cinco palavras,
com as quais são Paulo queria falar nas Igrejas25.

23 Virg.: IV, 6: “Iam redit et Virgo, redeunt Satumia regna, iam nova Pro­
génies coelo demittitur alto”.
24 Virg., I, 664: “Talia praestabat memorans, fixusque manebat”.
25 lCor 14,19.
A PAUONO, PRESBÍTERO 331

Que mistérios há que não abarque em seus discursos Jó, exem­


plo de paciência e de sofrimento?

Entretanto vou tocar, embora brevemente, o Novo Testamento: 490


Mateus, Marcos, Lucas e Jcão, a Quadriga do Senhor. Como ver­
dadeiros querubins, isto é, “abundância de ciência”, têm olhos por
todo o corpo, resplandecem em centelhas, desprendem relâmpagos,
e com seus pés caminham para cima, com asas nas espáduas, voando
por toda parte. Estão unidos um ao outro, e vão aonde os leve o
sopro do Espírito Santo.
O apóstolo Paulo, escreve a sete Igrejas (porque a oitava
Epístola, que escreveu aos hebreus, geralmente é posta fora de núme­
ro). Instrui a seus discípulos Timóteo e Tito e roga a Filêmon
por seu escravo fugitivo. Como é impossível dissertar em poucas
palavras sobre estas epístolas, prefiro antes calar de todo.
O livro dos Atos dos Apóstolos parece contar uma simples his­
tória e tecer a infância da Igreja nascente. Mas, sabendo que seu
autor é Lucas, o médico, cujo elogio está no Evangelho26, faremos
ver que todas as suas palavras são ao mesmo tempo remédio para
a alma enferma.
Os apóstolos Tiago, Pedro, João e Judas escreveram sete Epísto­
las, tão ricas em mistérios como sucintas, tão breves como longas:
brfeves em palavras e longas em sentenças. De modo que haverá
poucos que não tropecem às vezes com lugares escuros, lendo-as.
O Apocalipse de são João contém tantos mistérios quantas pa­
lavras. E digo com isto que nenhum elogio pode alcançar o valor
deste livro, cujas palavras, cada uma por si, abarcam muitos sentidos.
Dizei-me, caríssimo irmão, rogo-vos: viver entre estas revelaçqes, 491
meditá-las, não saber nem querer outra coisa, não vos parece
que isso é ter já aqui na terra uma moradia no reino celestial?
Quisera advertir-vos que nas Sagradas Escrituras não vos ofenda
talvez a simplicidade e ainda a modéstia quase vulgar de palavras,
por negligência dos intérpretes ou propositadamente formuladas as­
sim, para melhor instrução da gente rústica, a fim de que uma
mesma sentença aproveite ao douto e ao indouto.
Pelo que me toca, não sou tão arrogante nem falto de juízo
para testar estas coisas e recolher na terrâ o fruto da árvore
cujas raízes estão no Céu. Mas confesso meu querer e minha
vontade nessa direção. “Ponho-me diante do que está sentado, e
recusando ser mestre, prometo-me por companheiro” 27. Ao que pede
ser-lhe-á dado, ao que bate à porta, abrir-se-lhe-á, e aquele que
busca achará. Aprendamos na terra as coisas cuja ciência persevera
conosco no céu.

26 2Cor 8,18.
27 Cf. Gc., D e in v e n t. I; 8.
SANTO AGOSTINHO
(354-430)

O mais profundo filósofo da era patrística e um dos maiores gênios teológicos


de todos os tempos foi santo Agostinho, cuja influência plasmou a Idade Média.
Nasceu em Togaste (Numídia), filho de um funcionário municipal, Patrído, e
de Mônica, fervorosa cristã, que a Igreja venera como santa.
Como estudante, vivia desregradamente. Contraiu uma ligação — que iria durar
até 384, e da qual teve um filho, Ádeodato. Em 374, lendo o Hortensius, de Cícero,
sentiu-se atraído por uma vida menos sensual e mais dedicada à busca da verdade.
Passou a freqüentar as lições dos maniqueus, que lhe pareciam propor a autêntica forma
de cristianismo, em oposição à doutrina da Igreja, "uma história de velhas”.
De 375 a 383 estabeleceu-se em Cartago, como professor de eloquência, e daí por
diante obteve exercer a mesma função do outro lado do mar, em Milão. Já o inquie­
tavam agora fortes dúvidas sobre a verdade do maniqueísmo.
Em Milão, travou conhecimento com ò neoplatonismo. Ao mesmo tempo ouvia
regularmente os sermões de santo Ambrósio, onde percebia um catolicismo mais su­
blime do que o imaginado, e lia são Paulo. Um dia, julgando ouvir a voz. de uma
criança: ' Tolle, lege ”, abriu ao acaso as Epístolas de são Paulo, que tinha ao lado e
passou a sentir que "todas as trevas da dúvida se dissipavam . Fez-se batizar no
sábado santo de 387, com seu filho e com seu amigo Alípio. Pouco depois morria
a mãe, que muito havia orado por sua conversão. Voltando à África, viveu vários
anos em retiro de orações e estudos. Em 390, perdeu o filho. Tanta era a fama que
gránjeara, de ciência e virtudes, que ò povo o escolheu para o sacerdócio. Em 395
foi sagrado bispo no pequeno porto de Hipona. Ali então desenvolveu a intensa ati­
vidade teológica e pastoral, dando máxima expressão a seus dotes extraordinários
no plano da especulação, da exegese e da penetração psicológica da alma humatia.
Lutou contra as heresias da época, o maniqueísmo, o donatismo, o arianismo e o pela-
gianismo. Morreu em Hipona a 28 de agosto de 430.
"Principais obras: Confissões, autobiografia escrita entre 397 e 400, uma das
obras-primas da literatura universal; A Cidade de Deus, apologia da antiguidade cris­
tã e ensaio de filosofia da História; De Trinitate; Enchindion, compêndio de doutri­
na cristã; obras polêmicas várias contra as heresias mencionadas, entre as quais Contra
Paustum, De spiritu et littera, De natura et gratia, De gratia et libero arbítrio, De
torreptione e t gratia, De praedestinatione sanctorum; obras exegéticas, como Enarratio-
nes in Psalmos, De genesi ad litteram, Tratado sobre o Evangelho de são João; obras
pastorais, como De catecbizandis rudibus; cerca de 400 sermões e muitas cartas.
Inúmeras edições modernas de sto. Agostinho. Mais .acessíveis são, em texto bi-
língüe, as da BAC, 22 vols.; as da coleção “Bibliothèque Augustienne”, Paris, 36 vols.;
as da “Nuova Bibl. Agostiniana”, Roma, etc.

DAS “CONFISSÕES”
(Liv. V III, cap. 12: PX . 32, 761-764)

Sua conversão
492 Quando, meditando profundamente, arranquei do mais íntimo
toda a minha miséria, e a juntei perante meu coração, levantou-se
imensa tempestade numa torrente de lágrimas.
DAS “CONFISSÕES” 333

Para as derramar todas, com seus gemidos, afastei-me da pre­


sença de Alípio, por me parecer a solidão mais propícia ao choro.
Retirei-me o bastante para não me ser pesada a sua presença. Era o
estado em que me encontrava.
Alípio bem o adivinhou, porque, julgo eu, havia alguma coisa
em que se sentia o tom pesado que o pranto dava ao timbre da
vóz. Eu tinha-me erguido então. N o auge do assombro, Alípio ficou
imóvel no lugar onde estivéramos.
Não sei como, fui para debaixo de uma figueira, e pus-me a
chorar. Brotaram rios dos meus olhos. Era-ves agradável este sa­
crifício. Muitas perguntas vos fiz, não propriamente por estas pa­
lavras, mas por outras, assim: “E vós, Senhor, até quando? Até
quando continuareis irado? Não vos lembreis das nossas antigas ini-
qüidades! ” 1
Sentia ainda que elas me prendiam. Soltava gritos de lamen­
tação:
“Por quanto tempo, por quanto tempo, andarei a clamar: —
‘Amanhã, amanhã?’ Por que não há de ser agora? Por que não
há de vir já o fim das mmhas torpezas?” Desta maneira falava e
chorava, oprimido pela amargura do coração. Eis que, de repente,
ouço uma voz da casa próxima. Não sei se era de menino ou de
menina. Freqüentes vezes cantava e repetia: — “Toma e lê ”. Mu­
dando o semblante, logo comecei a refletir com atenção, se as
crianças costumavam cu não cantarolar essa canção nalgum dos
jogos. Vendo que em parte alguma a tinha ouvido, reprimi o ím­
peto das lágrimas, e levantei-me, interpretando que Deus uma só
coisa me mandava: abrir o livro e ler o primeiro capítulo que en­
contrasse. Tinha ouvido que Antão, escutando por acaso uma .lei­
tura evangélica, fora por ela advertido, como se o trecho que se
lia lhe fosse dirigido pessoàlmente: — “Vai, vende tudo o que
possuis, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem
e segue-me” 2; e que com este oráculo se converteu a vós.
Impressionado, voltei aonde Alípio estava sentado, pois aí ti- 493
nha colocado o livro do Apóstolo, ao levantar-me. Agarrei-o, abri-o
e li em silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos: — “Não
caminheis em glutonarias e na embriaguez, não em desonestidades
e dissoluções, não em contendas e emulações, mas revesti-vos do
Senhor Jesus Cristo e não tenhais cuidado da carne em suas concupis­
cências” 3. Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas acabei de
ler estas frases, penetrou-me o coração como que uma luz de serenidade,
e todas as trevas da dúvida fugiram. Marcando então com o dedo ou
outro qualquer sinal, fechei o livro.
334 SANTO AGOSTINHO
Já de rosto tranqüilo, revelei tudo a Alípio. Por sua vez, também
ele me revelou o que nele se passara e que eu não sabia. Pe-
diu-me para ver o trecho que lera. Mostrei-o; ele prosseguiu,
indo adiante do que eu tinha lido. Eu, todavia, ignorava o texto
seguinte, que era este: “Acolhei ao fraco na fé ”. Alípio aplicou
a si próprio esta passagem, e mostrou-ma. Com tal advertência, fir-
mcu-se no desejo e bom propósito, perfeitamente de acordo com
seus costumes, em cuja pureza, desde há muito tempo, estava a enor­
me distância de mim. Juntou-se a mim, sem qualquer hesitação tur­
bulenta.
Em seguida, vamos ter com minha mãe, e contamos-lhe o su­
cedido. Ela rejubila. Dissemos-lhe como o caso se passou. Exulta e
triunfa, bendizendo-vos, Senhor, a vós “que sois poderoso para
fazer todas as coisas mais superabundantemente do que pedímos ou
entendemos” 4. Ela vos bendizia porque via, em mim, que lhe tí­
nheis concedido muito mais do que costumava pedir, com tristes e
chorosos gemidos. D e tal forma me convertestes a vós, que já não
procurava esposa, nem esperança alguma do século, mas permanecia
firme naquela regra de fé em que, tantos anos antes, me tínheis mos­
trado a ela.
E transformastes a sua tristeza em alegria muito mais abundan­
te do que ela desejava, e muito mais querida e casta do que
a que podia esperar dos netos nascidos da minha carne.

Sermão:
“N A V IG ÍL IA D A PÁSCO A”
(P.L. 38, 1087s)

494 O bem-aventurado apóstolo Paulo, exortando-nos a que o imi­


temos, dá entre outros sinais de sua virtude o seguinte: “freqüente
nas vigílias” 1.
Com quanto maior júbilo não devemos também nós vigiar
n e sta vigília, que é como a mãe de todas as santas vigílias, e
na qual o mundo todo vigia?
Não o mundo, do qual está escrito: “Se alguém amar o mundo,
nele não está a caridade do Pai, pois tudo o que há no mundo
é concupiscência dos olhos e ostentação do século, e isto não procede
do P ai” 2.
Sobre tal mundo, isto é, sobre os filhos da iniqüidade, reinam
o demônio e seus anjos. E o Apóstolo diz que é contra estes que
se dirige a nossa luta: “Não contra a carne e o sangue temos

4 Ef 3,20.
1 2Cor 11,27.
2 ljo 2,15.
“na vigília da páscoa” 335

de lutar, mas contra os principados e as potestades, contra os domi­


nadores do mundo destas trevas” 3.
Ora, maus assim fomos nós também, uma vez; agora, porém, so­
mos luz no Senhor. Na Luz da Vigília resistamos, pois, aos dominado­
res das trevas.
Não é, portanto, esse o mundo que vigia na solenidade de
hoje, mas aquele do qual está escrito: “Deus estava reconciliando
consigo o mundo, em Cristo, não lhe imputando os seus pecados” 4.
E é tão gloriosa a celebridade desta vigília, que compele a vi­
giarem na carne mesmo os que, no coração, não digo dormirem,
mas até jazerem sepultos na impiedade do tártaro. Vigiam também
eles esta noite, na qual visivelmente se cumpre o que tanto tem­
po antes fora prometido: “E a noite se iluminará como o dia” 5.
Realiza-se isto nos corações piedosos, dos quais se disse: “Fostes
outrora trevas, mas agora sois luz no Senhor”. Realiza-se isto tam­
bém nos que zelam por todos, seja vendo-os no Senhor, seja inve­
jando ao Senhor. Vigiam, pois, esta noite, o mundo inimigo e o
mundo reconciliado. Este, liberto, para louvar o seu Médico; aquele,
condenado, para blasfemar o seu Juiz. Vigia um, nas mentes pie­
dosas, ferventes e luminosas; vigia o outro, rangendo os dentes e
consumindo-se. Enfim, ao primeiro é a caridade que lhe não permite
dormir, ao segundo, a iniqüidade; ao primeiro, o vigor cristão, ao
segundo o livor diabólico. Portanto, pelos nossos próprios inimigos
sem o saberem eles, somos advertidos de como devamos estar hoje
vigiando por nós, se por causa de nós não dormem também os que
nos invejam.
Dentre ainda os que não estão assinalados com o nome de
cristãos, muitos são os que não dormem esta noite por causa da
dor, ou por vergonha. Dentre os que se aproximam da fé, há
os que não dormem por temor. Por motivos vários, pois, convida’
hoje à vigília a solenidade (da Páscoa). Por isso, como não deve
vigiar com alegria aquele que é amigo de Cristo, se até o inimigo
o faz, embora contrariado? Como não deve arder o cristão por vi­
giar, nessa glorificação tão grande de Cristo, se até o pagão se en­
vergonha de dormir? Como não deve vigiar em sua solenidade,
o que já ingressou nesta grande Casa, se até o que apenas pretendé
nela ingressar já vigia?
Vigiemos, e oremos; para que tanto exteriormente quanto inte­
riormente celebremos esta Vigília. Deus nos falará durante as leituras;
falemos-lhe também nós em nossas preces. Se ouvimos obediente­
mente as suas palavras, em nós habita Aquele a quem oramos.

3 Ef 6,12.
4 2Cor 5,19.
5 SI 130,12.
336 SANTO AGOSTINHO

Sermão:
“SOBRE A RESSURREIÇÃO DE CRISTO,
SEGUNDO SAO MARCOS”
(PX. 38, 1104-1107)

495 A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias,


como é costume, segundo cada um dos livros do santo Evangelho.
Na leitura de hoje ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos,
primeiros membros seus, companheiros seus: porque não criam es­
tar vivo aquelé mesmo por cuja morte choravam. Pais da fé, mas
ainda não fiéis; mestres — e a terra inteira haveria de crer no que
pregariam, pelo que, aliás, morreriam — mas ainda não criam. Não
acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando
os mortos. Com razão, censurados: ficavam patenteados a si mes­
mos, para saberem o que seriam por si mesmos os que muito seriam
graças a ele.
E foi deste modo que Pedro se mostrou quem era: quando imi­
nente a Paixão do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, ti­
tubeou. Mas caiu em si, condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu
Criador.
Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já verem.
Grande, pois, foi a honra a nós concedida pòf aquele que permitiü
crêssemos no que não vemos! Nós cremos pelas palavras delès, aio
passo que eles não criam em seus próprios olhos.
496 A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos
que crêem em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e Ressurrei­
ção, que muito devíeis conhecer e celebrar. Porque não sem motivo
desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte da vida,
de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha.
Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde veio a morte?
Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado.
Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O primeiro homem
recebeu a lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a condição
de que se o observasse viveria e se o violasse morreria. Não crendo
que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a verdade do
que dissera quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então,
ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a morte tem­
poral a eterna morte. Sujeito a essa condição de morte, a essas
leis do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo
homem, Deus se fez homem, para que não perecesse o homem.
Não veio, pois, ligado às leis da morte, e por isso diz o Salmo:
“Livre entre os mortos” *.1

1 SI 87.
“sobre a ressurreição de cristo ” 337

Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem


deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não mor­
reu por motivo de culpa, comungava conosco: no castigo mas não
na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio
morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a
culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O
que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na
cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em
sua vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: “Foi
entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da
nossa justificação” 2.
Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos patriar­
cas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser cir­
cuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo
era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da vida
carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo.
Pois o sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia
no sepulcro, sétimo dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua
Ressurreição nos renova. Eis por que, ressuscitando no oitavo dia,
nos circuncidou.
É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer: “Se 497
ressuscitastes com Cristo . . . ” 3 Como ressuscitamos, se ainda morre­
mos? Que quer dizer o Apóstolo: “Se ressuscitastes com Cristo?”
Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas fa­
lava aos vivos, aos que ainda não m orreram .. . os quais, contudo,
ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele afirma: “ Se ressuscitastes com Cristo, procurai as
coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de
Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque
estais mortos!” '
É o próprio Apóstolo quem está falando, não eu. Ora, ele diz
a verdade, e, portanto, digo-a também e u . . . E por que também
a digo? “Acreditei e por causa disto falei” 4.
Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém,
ainda não morreu, também não ressuscitou, vive mal ainda; e se vive
mal, não vive: morra para que não morra. Que quer dizer: morra
para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
“ Se ressuscitastes com Cristo”, repito as palavras do Apóstolo,
“procurai o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de
Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra. Pois morres­
tes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo,
que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis com ele na
glória”. São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu,
digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se con-
338 SANTO AGOSTINHO
verta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, res­
suscitou. >b
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que
sobre a terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando
lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo da­
quele de quem diz o Salmo: “os inimigos dele lamberão a terra ” 5.
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de
Deus.
Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por
que amais a vaidade e buscais a mentira? Que mentira buscais? O
mundo.
Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja la­
drão, criminoso, fornicador, malfeitor, sacrílego, manchado por to­
dos os vícios, soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não
queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que
faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o
ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz
feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o mais que aqui
procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amandó
a terra, quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser
feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz. Por que não cessas
de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? “O fi­
lhos dos homens, até quando sereis pesados de coração, vós que
onerais com as coisas da terra o vosso coração? ” 6 Até quando
foram os homens pesados de coração? Foram-no antes da vinda dé
Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o co^
ração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira?
Querendo tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam
míseros! Engana-vos o que desejais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Con­
tinuemos ali adiante (no versículo do Salmo): “Até quando sereis
pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a m entira?”
“ Sabei” — o quê? — “que o Senhor engrandeceu o seu Santo* 7.
O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fome, a sede, a fa­
diga, dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi
flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado,
pregado no lenho, transpassado pela lança, posto no sepulcro; mas
no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a
morte. Eia, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo;
porque tanto quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou
dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua direita.
Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não
o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.
H^SÒBRE A RESSURREIÇÃO DB CRISTO* 33$

Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que
^•desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside
ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém,
sabendo da sua não existência, haveria de te dizer: “Por que estás
v a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas
.descer, na qual nada encontrarás!”
Que responderias a tal conselheiro? “Procuro ouro”. Ele te diria:
“Não nego que exista 9 que desejas, mas nãó existe onde o pro­
curas”.
" Assim também, quando dizes: “Quero ser feliz”. Boa coisa 493
queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo,
igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua
; niorte: vindo de outros páramos, que achou aqui senão o que
existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo
• 'jdo. que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve
:& fel. Eis o que encontrou em tua morada.
. ^Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à
v mesa dos anjos, onde d e mesmo é o pão. Descendo até cá, e
# tantos males recebendo de tua cda, não só não rejeitou a tua
: piesa, mas prometeu-te a sua.
v È que nos diz ele?
, “Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não
recusei os males da vossa”.
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, dá-lo-á. Pro­
meteu-nos sua. vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofere­
ceu-nos a sua morte. Como se dissesse: “À minha mesa vos con-
yido. Nela ninguém morre, n d a está a vida verdadeiramente feliz,
nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eia pára*
onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai
e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade co­
migo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não
quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a
minha m orte”.
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, mor­
ramos com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo
pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quan­
do chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a
viver com aquele que por nós morreu.
340 SANTO AGOSTINHO
Do livro
A DOUTRINA CRISTA
(1. 2, cc. 21, 23: P.L. 34, 3 ls)

Astrologia e superstição

499 Não devemos julgar isentos de ruinosa superstição os que se di­


zem “ genetliacos ”, porque estudam o dia do nascimento, hoje comu-
mente chamados astrólogos. Investigándo a posição dos astros no ins­
tante do nascimento de cada um, esforçando-se por deduzir disso
nossas ações ou os eventos de nossa vida, e passando então a prevê-los,
cometem um grande erro e proporcionam aos homens, a preço bara­
to, penosa escravidão. Realmente, todo hcmem livre que vai com
sultar os tais astrólogos, paga-lhes para sair escravo de Marte, Vénus;
ou quiçá de todos os astros.
A estes astros, os primeiros que se dedicaram a tal erro e o
transmitiram, atribuíram-lhes nomes de animais, por causa de uma
qualquer semelhança, ou de certos homens, para h onrá-los... Mas é
fácil compreender que antes os astros viajavam no céu sem nòiné
algum e que os homens estavam pretendendo elevar ao céu aquelèi
que desejavam honorificar, por razões de poder régio ou da própria
vaidade. Mas de qualquer forma que venham a ser designados, per­
manecem sendo astros, criados, ordenados e queridos por Deus;
cujo movimento fixo serve para distinguir e determinar o tempo. É
simples notar este movimento, no dia do nascimento de cada pessoa,
estabelecer a respectiva relação, segundo as regras que os astrólogos
descobriram e transmitiram. Porém a Escritura reprovou isto dizendo:
“se puderam chegar a tanta ciência para chegar a determinar o tempo;
por que não descobriram antes o Senhor? ” l.
Querer predizer os costumes, atos e eventos, baseando-se sobre
esse tipo de observações é um grande erro e desvario. Aliás, pode-se
refutar essa superstição aos próprios olhos dos que a assimilaram e a
transmitem. . .
500 Ocorrerá, por exemplo, que dois gêmeos saiam do ventre mater­
no tão em seguida um do outro, que não se consiga perceber intervalo
de temjpo para fixar, a partir daí, com cálculos, a diversa constelação.
Necessariamente não poucos gêmeos nascem sob a mesma e idêntica
constelação. Ora, as suas ações e os seus eventos na vida são o mais
das vezes tão diferentes que üm dos gêmeos pode estar vivendo na
felicidade ao passo que o outro no infortúnio, como sabemos de
Esaú e Jacó. Nasceram gêmeos e quando nasceu o segundo, Jacó,
percebeu-se que segurava com a mãozinha o calcanhar do irmão.
Certamente não se podiam fixar para eles dias e horas diferentes, e
então sua constelação foi idêntica; mas a Escritura está aí, conhecidai

i Sb 13,9.
“SOBRE A CORREÇÃO E A GRAÇA* 341

em todas as línguas» para atestar como foram diversos os costumes


deles, suas ações, suas penas e seus êxitos.
Não adianta absolutamente a resposta que os astrólogos dariam,
isto é, que a fração mínima e imperceptível de tempo, que distingue
os dois partos, tem um grande poder natural, inclusive por causa da
velocidade altíssima dos corpos estelares. Mesmo admitindo que ela
tenha tanto valor, o astrólogo não conseguiria observá-la nas cons­
telações, e assim vaticinar o futuro. Aquilo que não consegue achar
nas constelações, — pois encontra apenas uma, que poderá atribuir
tanto a Jacó como ao irmão — que adiantará dizer que está marcado
no céu se não pode ser posto na tabela astrológica a ser consultada?
Portanto, mesmo as opiniões que se presumiram deduzíveis de 501
alguns sinais reais, são para se computarem no rol dos ajustes e
coalizões com os demônios.
Porque, por oculto desígnio divino, acontece que os homens,
cúpidos de experiências más, venham a ser abandonados ao escárnio
e ao ludíbrio, como merece sua vontade: escarnecem deles e os enga­
nam os anjos prevaricadores, aos quais, conforme uma grandiosa
ordem das coisas, foi entregue, por leis providenciais, esta parte
mais baixa do universo. E pelos seus escárnios e enganos acontece
que neste plano de adivinhações supersticiosas e. perniciosas, os as­
trólogos anunciem muitos eventos passados e futuros, os quais se
realizam como eles dizem. São fatos que se desenrolam segundo
as observações deles, tornando-os convencidos e levando-os a se en­
tregarem com mais paixão às pesquisas, para se envolverem cada vez
mais pelos laços do pernicioso e r r o .. .
O cristão deve repudiar e fugir completamente das artes dessa
supertição malsã e nociva, baseada sobre maléfico acordo entre ho­
mens e demônios, que é quase um pacto de amizade na infelicidadè” 4
e no engano . . . Essas artes não são notoriamente instituídas para
o amor de Deus e do próximo; fundamentam-se no desejo privado dos
bens temporais e arruinam assim o coração. Em doutrinas deste gênero,
portanto, deve-se temer e evitar a sociedade com os demônios que,
juntamente com seu príncipe, o diabo, não buscam outra coisa senão
fechar e obstruir a estrada de nosso re to rn o .. .

“SOBRE A CORREÇÃO E A GRAÇA*

A Valentino e seus monges


(P.L. 44, 915-918)

Caríssimo irmão Valentino e vós que com ele servis a Deus! 502
Depois de ter lido a carta que vossa caridade me enviou por
meio do irmão Floro e dos que vieram com ele, dei graças a Deus
por ter conhecimento de vossa paz no Senhor, de vossa concórdia
342 SANTO AGOSTINHO
na verdade, de vosso fervor na caridade. O inimigo tentou subverter
alguns dentre vós, mas Deus misericordioso, em sua admirável bòm,
dade, fez reverter a tentação em progresso para seus servos, de
sorte que o inimigo não conseguiu prejudicar quaisquer dentre
vós, dando ainda ocasião para alguns se instruírem mais per­
feitamente. Assim, não tenho necessidade de volver às questões su-
ficientemenfe debatidas no livro que vos enderecei e cuja acolhida»
por parte de vós, se atesta na resposta enviada. Não penseis, porém;
que uma só leitura baste para que o conheçais. Se quiserdes dele
tirar proveito, procurai relê-lo, a fim de conhecerdes exatamente á
natureza das dificuldades consideradas e para ás quais se nos propõe
uma autoridade não já humana, mas divina, da qual não nos de­
vemos apartar, se quisermos chegar aonde almejamos.
O próprio Senhor não apenas nos mostra que mal devamos
evitar e que bem devamos praticar — é isso o que pode a letra da
Lei — mas também nos ajuda a evitar o mal e fazer o bem —
algo de que ninguém é capaz sem o espírito da graça: faltando esta;
a lei só serve para fazer culpados e levá-los à perdição. Por isto
diz o Apóstolo: “A letra mata, o espírito vivifica” 1.
Quem, pois, usar legitimamente a lei, aprende nela o mal e o bem;
e não se fiando em suas próprias forças refugia-se na graça, a
fim de poder evitar o mal e praticar o bem. E quando é que
o homem recorre à graça senão quando seus passos são dirigidos
pelo Senhor, de modo que deseje os caminhos do Senhor? Donde
segue que já o desejar o auxílio da graça é começo da graça»
conforme diz o salmista: “eu disse: comecei agora e esta mudança
me vem da destra do Altíssimo” 2. É preciso confessar, pois, que
nós temos um livre arbítrio para fazer o mal e o. bem; mas ao
fazermos o mal, somos livres quanto à justiça e servos do pecado;
ao passo que para fazer o bem não somos livres senão quando li­
bertados por Aquele que disse: “se o Filho vos libertar, então se­
reis verdadeiramente livres” \ E não de modo tal que, uma vez liber­
tados do domínio do pecado, já não necessitemos dq auxílio do Liber­
tador, mas sim ouvindo dele a palavra: “Sem mim nada podeis fa­
zer” 4, será preciso que digamos ainda: “ Sede meu socorro, não me
abandoneis” 5.
503 Esta fé, sem dúvida a verdadeira, a fé dos profetas e dos
apóstolos, a fé católica, alegro-me de a ter encontrado também em
nosso irmão Floro; e assim, são antes os que não o compreenderam
que devem ser corrigidos; mas penso que com o auxílio de Deus eles
já tudo compreenderam.
'"SOBRE a correção e a graça” 343

: Sim, a graça de Deus, dada por Jesus Cristo nosso Senhor, deve
ser bem compreendida; só por ela os homens são libertos do mal,
e sem ela não fazem absolutamente qualquer bem, seja por pensa­
mento, seja pela vontade ou pelo amor, seja pela ação. Ela não
é somente uma indicação que lhes dá a conhecer o que convém,
mas um auxílio que lhes dá realizar com o coração o que conhecem.
Era esta infusão de uma boa vontade e obra que o Apóstolo pe­
dia para aqueles aos quais dizia: *rogamos a Deus que não façais
nada de mal, não a fim de parecermos provados nós mesmos, mas
para que realizeis o que é bom ” 6.
Quem poderá ouvir isso sem despertar para o reconhecimento de
que ao Senhor nosso Deus devemos tanto o evitar o mal como o
fazer o bem? Pois o Apóstolo não diz: “exortamos, ensinamos,
advertimos, repreendemos”, mas: “rogamos a Deus que não façais
nada de mal, e sim realizeis o que é bom ”.
E todavia ele lhes falava fazendo também tudo isso: exortava,
ensinava, advertia, repreendia, mesmo sabendo que tudo isso, feito
externamente, na ação de plantar e regar, de nada valeria, se não rece­
asse- secretamente o incremento daquele que tivesse ouvido sua
prèce. Como disse o Doutor das nações: “Não é quem planta
pu quem rega que vale, pois Deus dá o crescimento” 7.
Não se iludam, porém, os que dizem: “Por que se nos prega 504
e se nos ordena de evitar o mal e o praticar o bem, se não somos nós
que o fazemos, se é Deus que nos dá o querer e o fazer?” Com­
preendam antes, se são filhos de Deus, que o Espírito de Deus
os move para que façam o que devem, e quando o fizerem dêem
graças àquele por quem foram movidos. São, com efeito, movidos
para agir, não para nada fazer; e se lhes prega o que devem fazer
para que, ao procederem como convém, isto é, com o amor ~e<
deleite da justiça, se alegrem de ter recebido do Senhor esse prazer
de verem a terra frutificar. E quando não fizerem o bem, seja não
p fazendo de modo algum, seja não o fazendo por amor, rezem para
receber o que ainda não receberam. . . Pois que terão sem rece­
berem? Ou que têm, que não receberam?
“Mas nesse caso”, dizem eles, “que nossos superiores se conten- 505
tem de nos ordenar o que devemos fazer e de rezar para que o faça­
mos, mas não nos repreendam nem nos interpelem se não o fizermos”.
Orà, tudo isso eles devem fazer, pois os doutores da Igreja, que
foram os apóstolos, tudo isso faziam: prescreviam o que devia ser
feito, repreendiam se não era feito, e oravam para que fosse feito.
Ordena o Apóstolo, quando diz: “ Que todas as vossas obras sejam
realizadas no am or” 8. Repreende quando diz: “Já é de toda maneira

6 2Cor 13,7.
7 ICor 3,7.
8 ICor 16,14.
344 SANTO AGOSTINHO
uma falta vossa, a de terdes processos uns contra os outros. Por
que não sofreis vós, antes, uma injustiça? Por que não tolerais*
antes, o dano? Mas vós mesmos fazeis a injustiça, e vós mesmos
despojais os outros — e isto contra os próprios irmãos! Não sabeis,
que os injustos não possuirão o reino de Deus? ” 9 Escutemo-lo
enfim quando ora: “Que o Senhor vos faça crescer e abundar-ma
caridade uils para com os outros ” 10, Ele ordena que se tenha á
caridade, corrige quando não se tem a caridade, ora para que traria
borde a caridade. O homem, aprende no preceito o que deves ter;
aprende na correção que és culpado de não o ter; aprende pela oração
que deves receber o que desejas ter.

SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE


(Liv. IX , cap. 1-5: P.L. 42, 959-965) ;r-i

O E spírito Santo como A m or . A imagem da mente .


506 Estamos em busca da Trindade, não de uma trindade qualquer!
da Trindade que é Deus, o verdadeiro, sumo e único Deus. Aguar­
da, pois, tu que nos ouves; ainda estamos buscando, e ningiiéífi
tem razão de repreender quem se afana em tal empenho, se suá
busca se faz na fé e se dirige a algo tão difícil de sè conhecer ou.
exprimir. Qualquer leviandade, porém, seja repreendida por quem
melhor vê e conhece. “Buscai a D eus”, diz o Salmo, “e viverá
vossa alma” l. E para evitar que alguém temerariaménte se orgulhe
de ter chegado a Deus, diz também: “Buscai sempre a sua face”:2!
Acrescenta ainda o Apóstolo: “Se alguém se imagina conhecedor
de algo, não conhece como convém; mas quem ama a Deus é coi
nhecido por ele” 3. Notai, ele não diz: “conhecerá a Deus” — istô
seria presunção perigosa — mas: “é conhecido por ele”. E quando
escreveu em outro lugar: “ agora conhecestes a Deus”, como que
se corrigiu ajuntando: “ou melhor, fostes conhecidos por Deus” 4.
Sobretudo naquela passagem: “Irmão, não creio ter alcançado (á
perfeição) mas, esquecendo o que fica para trás, lanço-me à con­
quista do que tenho pela frente e corro até o alvo para obter o
prêmio da soberana vocação de Deus no Cristo Jesus. Todos os
perfeitos temos *de sentir isto mesmo” 5. Chama, pois, perfeição
desta vida o esquecimento do que fica para trás e o avanço decidido
para a meta que temos pela frente. Essa tensão na busca é, com
lÓfete A SANTÍSSIMA TRINDADE 345
éfeito, o recurso mais seguro, enquanto não alcançamos aquilo para
Ò qual tendemos e que nos leva para além de nós mesmos. Mas só
éíreta a tensão que procede da fé. Pois é a certeza da fé que está,
dei algum modo, na origem do conhecimento; uma certeza que só
$érá acabada após a presente vida, na visão “face a face” 6. Tenha-
■mos isto na lembrança e veremos ser mais segura a atitude de
buscar a verdade do que a presunção de tomar o desconhecido por
bonhecidó. Busquemos como cs que hão de achar, e achemos co­
mo; os que irãó buscar. “ Quando o homem crê acabar é então que
principia” 7.
** Não duvidemos como infiéis das coisas que se hão de crer,
hem afirmemos temerariamente Sobre o que ainda se deve investi­
gar: no que é de fé temos de seguir a autoridade, no que é de in­
vestigação temos de buscar a verdade.
r No que se refere à nossa questão, cremos que o Pai, o Filho 507
efo Espírito Santo são um só Deus, Griador e Governador de tudo;
que o Pai não é o Filho, que o Espírito Santo não é o Pai ou o
Filho, é que a Trindade consiste numa mútua relação de pessoas e na
linidade de unia só e igual essência. Tratamos de investigar isto,
implorando o aúxílio daquele a quem tencionamos conhecer, com a
aspiração de poder explicar — na medida a nós concedida —
com suma diligência e solícita piedade, o que entendermos, e sem­
pre de medo que se afirmarmos uma coisa em vez de outra,
nada ao menos digamos de indigno. Por exemplo, se dissermos
do Pai o que em sentido estrito não lhe convém, que isso ao
inènos seja aplicável ao Filho, ao Espírito Santo ou à Trindade;
sé algo afirmarmos do Filho, que não lhe convier propriamente,
possa ao menos aplicar-se ao Pái, ao Espírito Santo ou à Trindade^
sé algo asseverarmos que hão se harmonize com propriedade ao *
Espírito Santo, não sejá entretanto alheio ao Pai, ao Filho ou ao Deus
uno e trino.
Agora, por exemplo, desejamos saber se o Espírito Santo é,
em sentido própriç, a Caridade excelsa; pois se não o é, então o será
o Pai, ou o Filho ou a Trindade, já que não podemos contradizer a
fé de Cristo hem a autoridade inconcussa da Escritura, que nos diz:
“Deus é caridade” 8. Mas nunca cometamos o sacrílego erro de atri­
buir à Trindade o que convém à criatura, não ao Criador; ou o que
é apenas fruto das vãs ficções da nossa imaginação.
Se assim é, fixemos a atenção nas três coisas que parece ter- 508
mos encontrado. Não falamos ainda das coisas do alto, não nos
referimos ainda ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, mas a essa
imagem imperfeita, contudo imagem, que é o homem, pois talvez

6 lCor.13,12.
7 Eclo 18,6.
8 l j o 4,8.16.
346 SANTO AGOSTINHOS^
isso vejamos mais familiar e facilmente, na fraqueza de n o s s o ®
telecto. ■■
Eis-me, por exemplo, eis-me que busco. Quando amo algo, há;
então três ccisas: eu, aquilo que amo e o amor. Pois não amo
o amor, se não me amo, que amo; não há amor onde nada é amad&
Eis, portanto, três coisas: o que ama, o amado e o amor.
Mas quê dizer quando só me amo a mim mesmo? Não serão
duas então as realidades: o que amo, e o amor? Pois quando alguéôi
se ama a si mesmo, quem ama e o que ama Se identificam, como se
identificam também o amar e o ser amado. . . Quando se diz quç
alguém se ama e é amado por si mesmo, repete-se a mesma coisa
duas vezes. Não são, pcis, duas realidades: amar e ser amado, como
tampouco são duas coisas diferentes o amante e o amado. O amor,
porém, e o objeto amado permanecem ainda aqui duas realidades di&
tintas. Porque se alguém se ama a si mesmo não é o amor, a não ser
que seja amado o amor. Uma coisa é amar-se a si mesmo e outra amar
seu amor. Não é amado o amor se não quando algo se ama: quando
nada se ama nãc há amor. Por conseguinte, quando alguém se ama a si
mesmo, há duas realidades nela: o amor e o objeto amado. E ; então
o que ama e o que é amado são uma coisa só. Assim, não. parke
correto dizer-se que onde há amor há três coisas. :
Prescindamos, nessa consideração, dos múltiplos elementos cons­
titutivos do homem, e a fim de esclarecer enquanto possível estas
matérias consideremos apenas a mente. . *
509 A mente, ao amar-se a si mesma, evidencia duas coisas: a
própria mente e o amor. Ora, que é amar a si mesma, senão um
ardente desejo de gozar da presença do eu? E quando quer ser
como é, a vontade é igual à mente, e o amor igual ao amante. E sç
o amor é substância, certamente não é corpor mas; espírito; e á
mente também é espírito, não corpo. Contudo; a mente e o amor
são um espírito, não dois espíritos; uma essência, não duas essên-,
cias; e no entanto, o amante e o amor, ou ^ dizendo de outro
modo — o amor e o que se ama são duas realidades que formam
certa unidade. E ambas dizem uma relação mútua: o amante diz
relação ao amor e o amor ao amante. O que ama, ama por amor,
e o amor pertence a alguém que ama. Ora, a mente e o espírito
são termos essenciais, não relativos. Nem pelo fato de serem mente
e espírito do homem, existem como mente e espírito. Abstraí do
homem o que o constitui, sua ligação ao corpo; abstraí o corpo,
permanece a mente e o espírito. Abstraí pcrém o amante, já não
existe o amor; abstraí o amor, evola-se o amante. Portanto, en­
quanto dizem relação mútua, são duas realidades; consideradas em
si, cada uma é espírito e as duas são o mesmo e único espírito;
cada uma é mente e as duas são uma única mente.
510 Mas então, onde vamos encontrar uma trindade? Concentremos
de novo nossa ação e imploremos o eterno Esplendor para que ilumi-
íSpBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE 347
l(e:,nossas trevas e vejamos em nós, na medida que nos for concedida,
a imagem de Deus.
%,y> A mente não pede amar-se se não se conhece, pois como ha­
veria de amar o que ignora? É insensatez pensar que ela se ame
>a partir de um conhecimento genérico ou específico, pelo qual se
sàbe semelhante às outras mentes. Como pode a mente conhecer
íoutra se se ignora a si? Não se diga que ela se ignora e conhece
$s demais, como o olho corpóreo vê os outros mas não pode ver-se
•4 /si. Vemos com os olhos da carne os corpos, mas os raios que
emitem e tocam cs objetos que nós contemplamos não os podemos
fazer refletir e retornar-se sobre eles, a não ser que se olhe em
espelho. Essas explicações são objeto de sutis e obscuras discussões,
até que se demonstre se as coisas são assim ou não. Mas, de qual­
quer modo, essa força que permite a nossos olhos verem, seja ela
irradiação ou outra coisa — não é com os olhos que podemos vê-la;
ç com o espírito que buscamos e, se possível, que compreendemos a
sjia explicação. Assim, se a mente coleta, pelos sentidos corpóreos
O! conhecimento que tem das; realidades corpóreas, o conhecimento
4'ue ela tem das realidades incorpóreas colhe por si mesma. Logo,
ela- se conhece por si mesma, sendo incorpórea. Porque se não
sê conhece não se ama.
Ora, assim como são. duas coisas, a mente e seu amor, quando 511
ela se ama, também são duas coisas a mente e seu conhecimento,
quando se conhece. Portanto, a própria mente, seu amor e seu co­
nhecimento são três coisas, mas as três coisas são uma só.
E quando são. perfeitas, são também iguais. Pois se a mente
se ama menos do que é, como, por exemplo, se limita o amor de
si r ao grau de amor que merece seu corpo, então peca, sendo mais
que o corpo, e seu amor não é perfeito. Se aò contrário o amor
que ela tem por si ultrapassa a medida e chega a amar-se com
oi amor que se deve a Deus, então peca gravemente, pois ela é
incomparavelmente menor que Deus, e seu amor não é perfeito.
Mais perverso e iníquo todavia é seu pecado se ela ama seu corpo
com o amor que deve a Deus.
Igualmente não é perfeita se seu conhecimento é menor que
aquilo que é conhecido, e que é plenamente conhedvel. Mas se é maior,
então é porque a natureza que conhece é superior à conhecida,
assim como é maior o conhecimento do corpo que o próprio corpo
conhecido. O conhecimento, na verdade, é vida na razão de quem
conhece, ao passo que o corpo não é vida. E a vida, qualquer que
seja, é sempre maior que o corpo, não em massa mas em força.
Se a mente, porém, se conhece a si mesma, não é superada
por seu conhecimento, pois é ela que conhece e ela que é conhecida.
E se se conhece toda, sem nada mais, seu conhecimento se lhe torna
igual, não sendo de outra natureza que o tira, ao se conhecer. Quan­
do se experimenta toda, sem nada mais, não é inferior nem superior
■ 'M
348 SANTO AGOSTINH$|

a seu conhecimento. Logo, foi com razão que dissemos serem essaS}
três coisas iguais quando são perfeitas. n
512 A mesma reflexão nos leva ainda a pensar, na medida do põs-.;
sível, que essas duas coisas coexistem na alma e aí se desenVpjM
vem numa espécie de involução mútua, de sorte a se deixarem per/;
ceber e enumerar a título de substância, ou por assim dizer, 'de
essência; elas não estão aí como num substrato, à maneira como-':’á
cor, a figura ou qualquer outra qualidade ou quantidade estão num"
corpo, la is propriedades não excedem o substrato no qual estão.
Tal cor, tal figura, são as de tal corpo e não podem ser as de
outro. Já a alma, pelo amor com que se ama, pode amar algó
diverso de si. Ela igualmente não se conhece apenas a si, mas; a
muitas outras coisas. Portanto, o amor e o conhecimento não são
inerentes à mente como a um substrato, mas aí estão, como a pró­
pria mente, a título de substância. Mesmo quando os dizemos dè
um modo relativo, relacionando-os reciprocamente, cada um não
deixa de permanecer em sua própria substância. Não é como a cot
e o objeto colorido, que são relativos um ao outro, no sentido
de que a cor está no objeto colorido sem ter em si sua própíia
substância: o objeto colorido é substância, a cor está numa substância;
Seria antes como no caso de dois amigos, que são também dois
homens, portanto, duas substâncias; quando os designamos com o
título de homens, isto não implica nenhuma relação, ao contrário
de quando os designamos como amigos.
513 Assim, a mente que ama e conhece é substância, seu conheci­
mento é substância, seu amor é substância; mas a mente que ama
e seu amor, a mente que conhece e seu conhecimento, são termos
relativos, como o são entre si pessoas amigas; ao contrário, a mente
apenas ou o espírito não implicam por si relações, como tampouco
pessoas amigas, enquanto pessoas humanas. Resta, porém, que ami­
gos podem separar-se; já a mente que ama e seu amor, a mente
que conhece e seu conhecimento, não podem separar-se. É verdade
que também os amigos, mesmo separados corporalmente, são mo­
ralmente inseparáveis, enquanto amigos, mas pode acontecer que
um venha a odiar o outro, deixe de ser seu amigo, sem que este
saiba, continuando a amá-lo. Porém se cessa o amor com o qual a
mente se ama, ela então cessa de amar; se cessa o conhecimento
ccm o qual se conhece, ela então cessa de se conhecer. Como não
há cabeça sem corpo que a sustente; a cabeça e o corpo sendo
termos relativos, e ao mesmo tempo substâncias, pois ambos rea­
lidades físicas; mas não havendo cabeça não haverá mais corpo
para sustentá-la. M as. . . poder-se-ia cortar a cabeça e separá-la do
corpo, o que seria impossível nas coisas da alma.
514 Há corpos absolutamente indivisíveis; entretanto, se não cons­
tassem de partes não seriam corpos. A parte é, pois, um termo
relativo ao todo, toda parte é parte de um todo e o todo o é por
Ip fô Ê 1A SANTÍSSIMA TRINDADE 349

$UâS partes. Mas parte e todo, sé são corpos, não se dizem somente
ejç um modo relativo, pois existem substancialmente. Não poderia
Ser então que a mente fosse como o todo, e o amor com que se
;Jtma, ou o conhecimento com que se conhece, fossem como suas par­
tes, que em conjunto comporiam o todo? Não poderiam ser três
partes iguais, das quais o todo seria a soma?
úb Ora, nenhuma parte abrange o todo do qual é parte; e no en­
tanto a mente se conhece toda inteira, isto é, perfeitamente, seu
conhecimento penetra todo seu ser, e quando se ama perfeitamente 515
seu amor penetra todo seu ser.
y > Não poderia ser então como com á água, o vinho e o mel,
que compõem uma única bebida? Cada um dos líquidos se acha
vertido no conjunto, permanecendo três coisas (pois não há uma
porção da bebida que não as contenha; os líquidos não estão ali
justapostos como na mistura de água e óleo, e sim intimamente
■fusionados; todos são substâncias e todo o líquido não é, de certo
modo, senão uma substância feita de três). Uma conclusão assim
í$q vale sobre a coexistência da mente, de seu conhecimento e de
seu! amor?
f ,i Não, pois a água, o vinho e o mel não são de uma única subs­
tância, embora sua mistura se torne a única substância da bebida.
Ao contrário, as três realidades da alma, ccmo não pertenceriam à
mesma substância, se é a alma que se ama, a alma que se conhece
e se a união das três realidades é tal que, amada ou conhecida, a
alma não o é por alguma dessas duas outras realidades? Todas as
três são, pois, necessariamente de uma única e mesma essência, e se
aí estivessem como fundidas numa mistura, não lograriam ser três
ou estar em relação mútua. Se de um só e mesmo ouro se fazem
três anéis semelhantes e encadeados entre si, eles estarão em relação
mútua pelo fato de serem semelhantes (todo semelhante é seme*
lhante a algo), há uma tríade de anéis num único ouro, mas se os
fundimos numa só massa, desaparece totalmente a tríade; e falaremos
não só de um ouro, como quando havia três anéis, mas de um
ouro que já não está em três realidades. Mas naquelas três realidades
da mente, quando a mente se conhece e se ama, permanece uma
trindade: a mente, o amor, o conhecimento, e não há aí mistura
nem confusão. Cada uma está em si e apesar disso está cada uma
toda inteira nas outras todas inteiras, cada uma nas duas outras,
as duas outras em cada uma. Portanto, todas em todas.
A mente está em si mesma, pois quando se fala dela, se fala 516
dela em si; mas considerada quando conhece ou é conhecida ou é
conhecível, passa a ser relacionada a seu conhecimento; ou quando
amando, amada ou amável, passa a ser referida em relação ao amor
com o qual se ama. E o conhecimento, embora se refira à mente
que conhece ou é conhecida, contudo também é dito conhecido ou
conhecente em relação a si mesmo: o conhecimento, com efeito,
350 SANTO AGOSTINHO;
com o qual a alma se conhece, não é desconhecido de si mesmp;
E o amor, embora se refira à alma que ama, é também amor em ter
lação a si mesmo, de modo que está também em si, pois também o
amor é amado e não pode ser amado senão pelo amor, isto é, por si
mesmo. Assim, cada uma dessas realidades está em si mesma. \
São porém presentes umas às cutras. A mente que ama está
em seu amor, o amor no conhecimento da mente que ama, e o co­
nhecimento na mente que conhece. Cada uma está nas outras duas.
A mente que se conhece e se ama está no seu conhecimento e no
seu amor; o amor da mente que se ama e se conhece está na
mente e em seu conhecimento; e o conhecimento da mente que se
conhece e se ama está na mente e em seu amor, porque ela se amá
enquanto conhecente, e se conhece enquanto amante. For conseguin­
te, as duas outras estão também em cada uma; a mente que se conhece
e se ama está com seu conhecimento no amor e com seu amor nò
conhecimento; o amor e o conhecimento estão simultaneamente ná
mente que conhece e se ama.
Vimos acima como cada uma está toda inteira nas outras (ten­
das inteiras) quando a mente se ama toda, se conhece toda, conhece
seu amor inteiro, ama seu conhecimento inteiro. Isto ocorre quando
essas três realidades são perfeitas em relação a si mesmas. Assim, essas
três realidades são estranhamente inseparáveis umas das outras; e to­
davia cada uma delas, tomada à parte, é substância, e todas em con­
junto são uma só substância ou uma só essência, apesar de, toma­
das relativamente, se deverem dizer opostas umas às cutras.

SOBRE A SANTÍSSIMA TRIN D A D E


(Liv. XV, cap. 23: P.L. 42, 1090s)

Uma coisa é a Trindade em si e outra a imagem da Trindade


numa realidade, a qual, por causa dessa imagem, passa também a
ser dita imagem; assim como se diz imagem não só o que está pin­
tado sobre a tela mas a própria tela.
Ora, na excelsa Trindade, incomparavelmente superior a todas
as coisas, as três pessoas são de tal modo inseparáveis que, se uma
trindade de homens jamais se diria um só homem, ali se diz e se
sabe existir um só Deus. A Trindade não está num só D eus, ela
é um só Deus.
D e outro lado, não ocorre nessa Trindade como em sua ima­
gem, o homem: este possui três potências mas é uma única pessoa,
ao passo que em Deus há três pessoas, o Pai do Filho, o Filho do
Pai e o Espírito do Pai e do Filho.
Ê verdade que a memória humana — e singularmente a memó­
ria que os animais não possuem, aquela que é memória das realidades
SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE 351

inteligíveis, não procedente dos sentidos — elá oferece, à sua ma-


1neira, na imagem trinitária, alguma semelhança, por inadequada que
seja, com o Pai. E o entendimento do homem, oriundo do pensamento
proferido e conhecido, que é o verbo interior, o verbo ainda não
formulado em nenhuma linguagem, essé entendimento, apesar de
grandes diferenças, oferece alguma semelhança com o Filho. E de­
pois o amor do homem, procedente de seu conhecimento e conju­
g a t e da memória à inteligência, como algo comum ao que gera e
ao que é gerado, sendo ao mesmo tempo distinto do que gera e do
que é gerado, também ele oferece alguma semelhança, mesmo se
longínqua, com o Espírito Santo. Mas apesar disso, enquanto nessa 518
imagem da Trindade as três realidades não são um único homem e,
sim, pertencem a um único homem, na excelsa Trindade são três
realidades que não apenas pertencem a um só Deus mas são um
só Deus, permanecendo embora três pessoas e não uma só. Eis aí
algo de admirável e inexprimível: se na imagem da Trindade não
há mais que uma pessoa, na excelsa Trindade há três pessoas, e
contudo essa Trindade de três Pessoas é mais inseparável que a de
úráà so. Porque ela está na natureza da divindade (ou melhor, da
deidade) onde o que existe é Deus; e é imutavelmente sempre igual,
hão téndó havido tempo em que não tenha existido ou tenha existi­
do de outro modo, não havendo tempo em que não existirá ou
existirá de outro modo. Ao contrário, as três realidades que se têm
na imperfeita imagem da Trindade, embora não sejam separáveis
pêlo espaço (elas não são corpóreas), são-no pela grandeza, aqui
nesta vida. Mesmo na ausência de massa material, não é verdade
que em tal homem a memória é maior do que a inteligência, em
tal outro ocorrendo o contrário, e que em outro ainda o amor ul­
trapasse memória e inteligência, iguais ou não entre si? Aconféfce
assim que duás destas sejam inferiores a uma só, uma só às duas
Outras, ou uma à Gutra, menores a maiores. E quando, curadas
dá imperfeição própria a esta vida, forem iguais entre si, mesmo então
essa realidade que por graça será subtraída à vicissitude, não será
igual à realidade que por natureza é imutável, pois a criatura não
iguala jamais ao Criador , e o fato mesmo de ser curada de sua fra­
queza térá sido para ela mudança.
Porém, na visão “ face a face”, prometida para nós, veremos 519
a Trindade sumamente incorpórea e verdadeiramente imutável, mais
clara e certamente do que atualmente vemos sua imagem, que
nós somos. Os que a contemplam neste espelho e neste enigma,
conforme se concede na vida presente, não são os que contemplam
em sua mente as realidades que temos assinalado, são os que vêem
sua mente como imagem, isto é, os que sabem relacionar o que
vêem, de algum modo, Àquele do qual sua mente é imagem, de
sorte que através da visão desta imagem possam também pressentir
o que ainda não contemplam face a face. Na verdade, o Aposto-
352 SANTO AGOSTINHO! ?
lo não diz: nós vemos agcra um espelho, mas “nós vemos agorá
através de um espelho” (lC o r 13,12). ; :j

SOBRE A SANTÍSSIMA TRINDADE


(Liv. XV, cap. 28: P.L. 42, 1097s)

Conclusão dos livros

520 Senhor Deus nosso, cremos em ti, Pai, Filho e Espírito Santo,
A Verdade não teria dito: “ide, batizai .a todos os povos no nor
me do Pai e do Filho e do Espírito Santo” V ;se não fosses T rin­
dade. Nem nos ordenarias, Senhor Deus, que fôssemos batizados; no
nome de alguém que não fosse o Senhor Deus. Nem. seria dito
com voz divina: “ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um uniço
D eus” 123, se não fosses uma Trindade tal que fosses também um
único Senhor Deus. E se tu, Deus Pai, fosses q mesmo que o Filho,
teu Verbo, Jesus Cristo, o mesmo Dom que é o Espírito Santo,
não leríamos nas Escrituras da verdade: “enviou Deus seu Filho” j;
nem tu, ó Unigénito, dirias do Espírito Santo: “o Espírito que,; ©
Pai enviará em meu nome” 4, e “Aquele que eu vos enviarei da
parte do P ai” 5. i - ví
Dirigindo a esta regra de fé minha intenção, enquanto pude,
enquanto me fizeste poder, prccurei-te, desejei ver pelq intelecto aqui­
lo em que creio, e muito discorri e muito trabalhei. ..
Senhor Deus meu, única esperança minha, ouve-me, não acon­
teça que, fatigado, já não te procure, mas sim procure eu sempre
ardentemente a tua face. Tu dás as forças de procurar, tu que me
fizeste achar-te, e mais, me deste a esperança de achar-te. Diante de
ti estão minha firmeza e minha fraqueza: conserva aquela, cura esta.
Diante de ti estão minha ciência e minha ignorância: onde me abriste,
recebe-me ao ingressar; onde me fechaste, abre-me ao bater. Lembre-
-me eu de ti, conheça-te a ti, ame-te a ti. Faze-me crescer e reforma*
-me por inteiro.
521 Sei que está escrito: “em muitas palavras não foges do pe­
cado” 6. Mas, oxalá, só pregando teu verbo e te louvando falasse eu!
Não só fugiria do pecado, mas conquistaria um bom merecimento,
ainda que muito falando! Pois também não terá preceituado aquele
homem, a quem amaste, um pecado a seu filho e irmão na fé,
quando lhe escreveu, dizendo: “prega a palavra,; insiste oportuna e

1 M t 2 8 ,2 0 .
2 D t 6 ,4 .
3 To 3,17; G1 4,4; etc.
4 Jo 14,26.
5 Jo 15,26.
6 P r 1 0 ,1 9 .
| av“CIDADE DE DEUS* 353
ihoportunamente *. Acaso se poderia dizer não ser muito falar, se se
trata de pronunciar tua palavra, não apenas oportuna, mas até ino­
portunamente? Mas na verdade jamais seria demasiado aquilo que
séria necessário.
o Livrai-me, ó Deus, da multidão de palavras que padeço em
meu íntimo, em minha alma, miserável em tua presença, mas refu­
giada em tua misericórdia. Quando calam minhas palavras, não ca­
íam meus pensamentos. E se só pensasse eu no que te agrada, não
te rogaria que me livrasses desta multidão de palavras. Mas meus
pensamentos são muitos, bem os conheces, pensamentos humanos e
vários. Dá-me não consentir neles e se alguma vez me deleitam,
dá-me rechaçá-los e não demorar-me em seus afagos. Jamais exer­
çam sobre mim seu poderio ou pesem em minhas ações. Com tua
proteção seja meu julgamento seguro e minha consciência esteja ao
abrigo de seu influxo.
"o Falando o Sábio sobre ti, no livro conhecido como Eclesiástico,
disse: “muitas coisas proferimos sem jamais acabar; seja a conclusão
de nosso discurso: Ele é tudo” 7.
Quando, pcis, chegarmos a ti, cessarão muitas coisas que dis­
semos, sem entender, e tu sozinho permanecerás tudo em todos, e
então cantaremos sem fim uma só coisa, louvando-te na unidade e
tornados também unidos em ti.
Senhor Deus único, Deus Trindade, o que disse nestes livros, de
teu, reconheçam-no os teus; o que neles disse de meu, perdoa-me
Senhor, e perdoem-me os teus. Amém.

D A “C IDADE DE D E U S”
(liv. X, cc. 3, 4, 5: PX . 41, 280-283)

O verdadeiro culto de Deus

Se. . . os platônicos ou quaisquer outros de seus seguidores, co- 522


nheceiido a Deus, o tivessem glorificado e lhe tivessem dado graças,
não estaria obnubilada sua mente insensata1, não seriam parçialmen-
te autores dos erros dos povos e se atreveriam de alguma forma a
opor-lhes resistência; confessariam que para ser imortais e felizes —
tanto eles, que assim se presumiam, quanto nós, mortais e miseráveis
— temos de adorar a um só Deus dos deuses, Deus deles e nosso.
A Ele devemos a prestação de sujeição — chamada em grego “la-
trêia” — seja através de alguns ritos sagrados, seja em nós mesmos.
Somos, com efeito, todos juntos e cada um em particular, templo
seu, pois Ele se digna habitar na concórdia de todos e em cada um

7 Eclo 43,29.
1 Cf. Rm 1,21.

12 - Antologia dos santos padres


354 SANTO AGOSTINHO '
em particular; sem ser maior em todos do que em cada um; pois.suá
grandeza não é extensiva nem diminui pela participação* Quando
nosso coração se eleva até Ele, torna-se seu altar; com o sacerdócio de
seu Unigénito c aplacamos; oferecemos-lhe vítimas cruentas quando
lutamos por sua verdade até o sangue; oferecemos-lhe suavíssimo;
incenso quando estamos em sua presença abrasados de religioso e.
santo amor; oferecemos-lhe e devolvemcs-lhe seus dons em nós, e a
nós mesmos neles; dedicamos-lhe e consagramos-lhe a memória de
seus benefícios, nas solenidades e nos dias prescritos, a fim de que,
com o passar do tempo, não venham a ser esquecidos; sacrificamos-lhe
com o fogo candente do amor a hóstia da humildade e de louvor
na ara de nosso corpo.
Para chegar a vê-lo ccmo possa ser visto, e para unir-nos a Ele;
purificamo-nos de toda mancha de pecado e de maus desejos; em seu
nome nos consagramos. Ele é fonte de nossa felicidade, e meta de
nossa aspiração. Escolhendo-o, ou melhor, re-escclhendo-o — pois o
havíamos perdido por negligência — tendemos a Ele por amor, a fim
de chegarmos a nosso repouso e sermos felizes, alcançando nossa pet-
feição. ' ■■'.■■]
523 Todo nosso bem — sobre cujo escopo debatem os filósofóá
— não é outro senão unir-nos a Ele. Seu amplexo imortal, se assiinr ;
se pode dizer, fecunda a alma imortal e a enche das verdadeiras vii* í
tudes. Somos preceituados de amar a esse Bem com todo o coração,
toda a alma, todas as forças. A esse Bem devemos levai: os qué amar­
mos, a ele devemos ser levados pelos que nos amam. Assim se cum­
prem os dois mandamentos nos quais consistem a lei e os profetas:
“amarás ao Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua
alma, e com toda a tua mente; e amarás a teu próximo como a ti
mesmo” 2. Precisamente para que o homem soubesse amar a si
.mesmo, foi ele mesmo posto ante sua meta, em direção à qual devia
dirigir tudo o que fizesse para ser feliz. E esta meta é unir-se a Deus.
Pois bem, quando se manda a alguém, capaz de amar a si mes­
mo, que ame ao próximo ccmo a si, que outra coisa se preceitua
senão que o encaminhe, na medida do possível, ao amor de Deus?
Este é o culto de Deus; esta, a verdadeira religião; esta, a reta
piedade; este o serviço de sujeição devido somente a Deus. Por con­
seguinte, todo poder imortal, por grande que seja, se nos ama como
a si mesmo, deseja ver-nos, para sermos felizes, submetidos Àquele
mesmo a quem se submete a si próprio. Se então não presta culto a
Deus, é miserável porque está privado de Deus; e se presta culto
a Deus, não quer ser adorado como Deus. Ao contrário, assume e
confirma com a força de seu amor a sentença que diz: “seja extermi­
nado quem oferecer sacrifícios aos deuses e não ao único Senhor” 3.

2 M t 22,37-40.
3 Ex 22,20.
V DA “ cidade de deus ” 355

; S ó a D e u s s e o f e re c e o s a c rifíc io

Deixemos de lado as outras homenagens pelas quais prestamos 524


culto a Deus; ninguém negaria que o sacrifício se reserva apenas a
Deus. Outras honras se subtraíram ao culto divino para serem dadas
áos homens, seja per excessiva humildade, seja por repulsiva adulação;
sem deixar de considerarem-se homens aqueles aos quais eram pres­
tadas, tidos como dignos de culto e veneração, e até, no limite, dignos
de adoração. Mas o sacrifício, quem jamais pensou que se devesse
oferecê-lo a outro que não a Deus, ou a quem se julga ou se imagina
ser Deus? A antiguidade do sacrifício no culto divino está atestada
suficientemente nos dois irmãos Caim e Abel, dos quais Deus re­
provou o sacrifício do primeiro e aceitou o do segundo.

O s s a c rifíc io s q u e o S e n h o r q u is c o m o sig n ific a t iv o s

De resto quem haveria de pensar serem necessárias a Deus as 525


coisas que se oferecem nos sacrifícios? Para não nos estendermos
muito citemos apenas, da Sagrada Escritura, o texto do salmo: “Disse
eu ao Senhor: tu és meu Deus e não necessitas de meus bens” 4. Por
conseguinte, sabemos que Deus não necessita, seja de rebanhos ou
de qualquer coisa corruptível e terrena, seja da própria retidão do
homem; e tudo aquilo com que se dá culto a Deus aproveita para
p: homem, não para Deus. Como ninguém pensaria favorecer a fonte,
quando bebe; ou a luz, quando vê.
Nem aquilo que, a respeito dos sacrifícios dos antigos pais, feitos
com vítimas animais, e que o pov,o de Deus ainda hoje conhece, mas
não mais pratica, nem aquilo se pensará significasse outra coisa se­
não o que se realiza em nós para unir-nos a Deus e conduzir o nqgso
próximo ao mesmo fim. O sacrifício visível, portanto, é o sacramento
ou sinal do sacrifício invisível. Assim, diz o penitente com o profeta,
cu simplesmente o profeta, ao querer a propiciação divina por seus
pecados: “se quisesses sacrifício, eu o ofereceria; mas tu não te de­
leitas com holocaustos; meu sacrifício é um espírito compungido;
um coração contrito e humilhado tu não desprezas” 5.
Vejamos como, ao dizer que Deus não quer sacrifício, atesta
porém que Deus o quer. Não quer o sacrifício do animal morto, mas
quer o do coração contrito. Ao afirmar c que Deus não quer, acres­
centa o que ele quer. Disse que Deus não quer cs sacrifícios do
modo como os- igparos pensam que os quer, isto é, para dali tirar
sua alegria. Se porém não quisesse sacrifícios como o do coração
contrito e humilhado pela dor da penitência, não haveria de querer
que fossem sinalizados por aqueles sacrifícios que ele mesmo ordenara
na Lei antiga. Esses deveriam ser mudados em época oportuna a fim

4 SI 15,2.
5 SI 50,18-19.
de se pensar que foram desejados pelo mesmo Deus ou aceitáveis,;'
em nós, ao invés daquilo que neles se sinaliza.
Por isto se diz em outra passagem de um salmo: “Se tivesse fo-(
me, eu não te diria, pois meu é o orbe da terra com tudo o que l
tem; acaso comerei carne de tcuros ou beberei sangue de cabri?
tos ? ” 6 Por outras palavras: ainda que me fossem necessárias estas.,
coisas não as pediria a ti pois estão em meu poder. Em seguida, acres-
centando o que elas significavam, diz: “imola a Deus um sacrifício, de
louvor, cumpre teus votos para com o Altíssimo e invoca-me no dia
do perigo: eu te livrarei e tu me glorificarás” 7.
Também se lê em outro profeta: “Cem que me apresentarei aq
Senhor, inclinando-me ao Deus do céu? Apresentar-me-ei com holo­
caustos, com bezerros criados? Aceitará o Senhor um milhar de car?
neiros ou dez mil medidas de óleo? sacrificar-lhe-ei pela minha culpà
o meu primogênito, o fruto de minhas entranhas por meus próprios
pecados? Já te foi dito, ó homem, o que convém, o que o Senhor
reclama de ti: que pratiques a justiça, que ames a bondade, e que an­
des com humildade diante do teu D eus” 8. Nestas palavras do prof
feta estão bem distintas e separadas duas coisas: Deus não exige aque­
les sacrifícios por si mesmos, exige os sacrifícios que eles expressam^
526 Igualmente na carta aos hebreus está escrito: “Não negligencieis
a benefíciência e a liberalidade, porque de tais sacrifícios é que Deus
se agrada” 9. Daí se tem que naquele texto: “quero a misericórdiá
antes que o sacrifício” 10*, deve-se entender a preferência de Deus, de
um sacrifício sobre outro — pois o que todos chamam sacrifício é ò
sinal do verdadeiro sacrifício. A misericórdia é um verdadeiro sa­
crifício; por isto se disse o que citamos há pouco: “dé tais sacrifícios
é que Deus sé agrada”. 1V
Todas as prescrições divinas, portanto, e tão variadas, que sé
leem a respeito dos sacrifícios no ministério do tabernáculo e do tem­
plo, tendem a significar o amor de Deus e do próximo: “destes dois
mandamentos dependem a Lei e os profetas” 11.

O v e rd a d e iro e p e r f e it o sa c rifíc io

527 Assim, pois, o verdadeiro sacrifício é toda obra feita para unir­
mos a Deus em santa aliança, isto é, relativa à meta daquele bem
que p o d e. fazer-nos yerdadeiramente felizes12. Então, mesmo a mi-

6 SI 49,12-13.
7 Ibid., 14-15.
« Mq 6,6-8.
9 H b 13,16.
10 Os 6,6.
n M t 22,40.
12 “Proinde verum sacrifidum est omne opus, quod agitur, u t sancta sodetate
inhaereamus Dco, relatüm sdiicet ad ilium finem boni, quo veraciter beati esse possi-
mus".
|pA" "CIDADE DE DEUS" 357

lsericórdia com que se vem em auxílio do homem, se não se faz

I
: pór causa de Deus, não é sacrifício,

v O sacrifício, mesmo se feito ou oferecido pelo homem, é obra


; divina: tal é o significado que já os antigos latinos deram a essa
palavra. Donde, c próprio homem, consagrado em nome de Deus
j e oferecido a Deus, no sentido de que morre para o mundo a fim
;| de viver para Deus, é sacrifício. Com efeito, também isto pertence à
;! misericórdia de cada um para consigo mesmo; conforme a palavra:
| “compadece-te de tua alma fazendo-a agradável a Deus” 13.
Igualmente é sacrifício o castigo que infligimos a nosso corpo
pela temperança se, como devemos, o fazemos por causa de Deus,
a fim de não usar de nossos membros como armas da iniqüidade pa­
ra o pecado, mas como de armas de justiça para Deus. É ao que
nos exorta o Apóstolo: “exorto-vos, irmãos, na compaixão de Deus,
: a que ofereçais vossos corpos como sacrifício vivo, consagrado, agra­
dável a Deus, como vosso culto autêntico”14. Se o corpo, de que se
• serve a alma como de um ministrante ou instrumento, quando bem
usado e em referência a Deus, é sacrifício, quanto mais não o será a
; própria alma, na medida em que se relaciona a Deus, desejando ver
acesa no fogo do amor sua cobiça do mundo, desejando ser refor-
V mada à imagem do Imutável, tornada agradável a Deus porquanto
iluminada por sua formosura? Acrescenta isto mesmo o Apóstolo
logo a seguir: “e não queirais ccnformar-vos a este mundo, mas
: reformai-vos por uma nova mentalidade, a fim de serdes capazes de
discernir qual seja a vontade de Deus, o que seja bom, conveniente e
perfeito” 1516.
Os verdadeiros sacrifícios são, portanto, as obras de misericór­
dia, seja para com nós mesmos, seja para com o próximo; obras de
misericórdia que não têm outra finalidade além de livrar-nos da mi-^
séria e fazer-nos felizes. Isto não se consegue senão com aquele bem, <
do qual foi dito: “para mim o bem é aderir a Deus” ló.
Daqui resulta que toda a Cidade redimida, ou seja, a congre- 528
gação e sociedade dos santos, se oferece a Deus como um sacrifício
universal por meio do grande Sacerdote, que em forma de servo se
ofereceu a si mesmo por nós em sua Paixão, a fim de que fôsse­
mos membros de tal Cabeça. Segundo essa forma ele é nosso media­
dor, nela é sacerdote, nela é sacrifício.
Por isto exortou-nos o Apóstolo a oferecermos nossos próprios
corpos como sacrifício vivo, consagrado, agradável a Deus, como
nosso culto autêntico, e a não nos conformarmos com este mundo, e
sim a ir-nos reformando per uma nova mentalidade; e para demons­
trar-nos qual é a vontade de Deus, o que é o bom, o conveniente,

13 Eclo 30,24.
14 Rm 12,1.
15 Rm 12,2.
16 SI 72,28.
358 SANTO AGOSTINHO^'
o agradável, já que o sacrifício total somos nós mesmos, acrescenta?
“Em virtude do dom que recebi, digo a cada um de vós, que naq
se tenha por mais do que deve ter-se, e sim que se considere coití;
moderação, segundo a medida de fé que Deus distribuiu a cada qüàlf
Porque no corpo, sendo um, há muitos membros e nem todos têrij
a mesma função; assim também nós, embora muitos, formamos^
unidos a'C risto, um só corpo, e em relação aos demais cada quáív
é membro, mas com dons diferentes, segundo a graça que Deus nòá
concedeu” 17. É este o sacrifício dos cristãos: “unidos a Cristo, f o r ­
mamos um sÓ corpo”. Este é o sacramento do altar, tão conhecido
dos fiéis, que a Igreja celebra assiduamente, e no qual se manifeSta
a si como oferecida, naquilo mesmo que oferece.

“A CIDADE D E D E U S” , ,
(1. XIV, cap. 28: PX . 41, 436) d.

A s d u a s c id a d e s ;. vás,

529 Dois amores construiram duas ddadès: o amor de si própriò


até ó desprezo de Deus construiu a cidade terrestre, e o anior dè
Deus até o desprezo de si mesmo, a cidade celeste. Uma glorifi­
ca-se em si, a outra no Senhor; uma busca a sua glória entre Jòs
homens, a outra no testemunho da consciência; uma caminha db
frente erguida, com soberba, na embriaguez de sua própria glÓna;
a outra diz a Deus: — “Vós sois a minha glória e o meu orgulho” í.
Numa, os chefes são dominados pela paixão de aniquilar os. seus
súditos, na outra os chefes e os súditos prestam-se mútuo auxílio,
aqueles pela sua: paternal administração, estes pela sua obediência.
Uma lisonjeia-se na; pessoa dos poderosos, da sua própria virtude,
a outra diz a Deus: — “Eu vos amarei, Senhor, a vós "que sois
a minha força” 2.
Também os sábios da cidade terrestre, vivendo segundo os ho­
mens, não procuram senão os bens do corpo ou do espírito, ou
ambos ao mesmo tempo. Se alguns conhecem a D eus, “não lhe
renderam, a honra e as homenagens que lhe são devidas, antes sé
desvairaram na vaidade dos seus pensamentos, e caíram no erro e
na cegueira proclamando-se sábios” 3, isto é, glorificando-se orgulho­
samente na sua sabedoria, “tcrnaram-se loucos, e prestaram à imagem
do homem corruptível e à figura de aves, quadrúpedes e serpentes,
a honra que só a Deus pertence” 4. Porque levaram as gentes a
adorar os ídolos, ou eles próprios os seguiram, e “preferiram o culto

17 Rm 12,3-6.
1 SI 3,4.
2 SI 17,2.
3 Rm 1,21.
4 Ibid. 22.
“a cidade de deus ” 359

■soberano da criatura ao culto do Criador, bendito para sempre nos


séculos dos séculos” 3.
\ Na cidade celeste, pelo contrário, não há sabedoria que não
seja piedade ao serviço do verdadeiro Deus, esperando a recom­
pensa na sociedade dos santos, composta não apenas de homens,
mas também de anjos, “para que Deus seja tudo em todos” 56.

“A CIDADE DE DEUS”
(Iiv. X IX , 13: PX . 41, 640)

A paz: “ o rd in a ta c o n c ó r d ia "

A paz do corpo é a ordem harmoniosa de suas partes. A paz da 530


alma irracional é a calma ordenada dos apetites. A paz da alma
racional é o consentimento ordenado entre pensamento e ação. A
paz entre a alma e o corpo é vida ordenada e a saúde no ser vivente.
A paz do homem mortal com Deus é a obediência ordenada na fé sob
a lei eterna. A paz entre cs homens é a concórdia bem ordenada.
A paz da casa é a concórdia ordenada des habitantes, no comandar
e no obedecer. A paz de uma cidade é a concórdia bem ordenada
dos cidadãos no comandar e no obedecer. A paz da cidade celeste é a
sociedade perfeitamente ordenada e perfeitamente harmoniosa no
gozo da presença de Deus e no gozo recíproco em Deus. A paz de to­
das as coisas é a tranqüilidade da ordem. A-ordem é a distribuição dos
seres iguais e desiguais, com um lugar próprio assinalado para cada
um.

Trecho -da *•
CARTA ti* 189,
dirigida a Bonifácio, ura militar
(PX . 33, 856)

A g u e rra e a [p a z

Quando pegares em armas para batalhar, pensa primeiro que 531


a própria força física é dom de Deus. Desta maneira, não pensarás
em servir-te de um dom de Deus contra Deus. É necessário guardar
a fé prometida, mesmo para com o inimigo -com quem se está em
guerra: quanto mais para com o amigo por.quem se combate! Deve
querer-se a paz, quando se é constrangido à guerra, para que Deus
nos livre do constrangimento e nos conserve na paz. Não se procura
a paz para provocar a guerra, mas faz-se a guerra para conquistar a

5 íbid. 25.
6 lCor 15,26.
360 SANTO AGOSTINH^
>az. Sê, pois, pacífico, mesmo na guerra, e vela por que a tua vitótiàf
Íeve os que derrotas ao bem da paz.
“Bem-aventurados os pacíficos”, diz o Senhor, “porque serãò
M

chamados filhos de D eu s” Se a paz humana é tão doce para a feli­


cidade temporal dos mortais, quanto mais doce não é â paz divinà
para a felicidade eterna dos anjos! Seja, portanto, por necessidade*
não por vontade, que abatas o inimigo na luta. E assim como se fàz
violência ao adversário que se revolta e que resiste, assim se deve
usar de misericórdia para com o vencido e o prisioneiro, principal-
mente se isso não compromete a paz.

D O COM ENTÁRIO A O EV. D E S. JOÃO (tract. X X IV )


(P.L. 35, 1592s)

A lin g u a g e m d o s m ila g re s i>r


fô .
532 Os milagres realizados por Nosso Senhor Jesus Cristo são qbr^S;
divinas e convidam o espírito humano a elevar-se das coisas\ yisè
veis ao conhecimento de Deus. E como Deus não é de natnteíà
que possa ser visto pelos olhos do corpo; e como, de outro lado, fps
milagres que ele realiza ao governar e administrar a Criação, tornar
ram-se tão comuns pela sua freqüência, que ninguém presta atenção
à admirável e espantosa ação de D eus na menor semente, ele pesei}
vou-se, em sua misericórdia, a realização de certos fatos, em momen­
tos oportunos, fora do curso habitual da natureza. Assim os homens
passam a ficar admirados, presenciando fatos raros, embora não
maiores do que os que se consideraram vulgares, em razão da assi­
duidade com que se realizam.
Governar todo c mundo é maior maravilha do que saciar cinco
mil homens com cinco pães. Todavia, ninguém se admira com aquilo,
mas se enche de admiração por isto, não porque seja maior, mas por­
que não é freqüente.
Quem sustenta ainda hoje o universo inteiro, se não aquele
que, a partir de poucas sementes, multiplica as searas? Há aqui
uma operação divina. A multiplicação. de poucos grãos, de que re­
sulta a produção das searas, é feita pelo mesmo que, nas suas mãos,
multiplicou os cinco pães.
533 Nas mãos de Cristo estava esse poder. Os cinco pães eram, de
certo modo, sementes que, se não foram lançadas à terra, foram
multiplicadas por aquele que fez a terra.
Foi, pois, apresentado aos sentidos um meio de se elevar o es­
pírito, foi dada acs olhes uma ocasião de se exercitar a inteligência, e
de nos fazer contemplar, através de obras visíveis, o D eus invisível.

i M t 5,9.
4S0MENTÁKIO ao evangelho DE SÃO JOÃO 361
Mas não é a única coisa que devemos considerar nos milagres
de Cristo. Perguntemos aos próprios milagres o que eles nos dizem
de Cristo: se soubermos compreendê-los, veremos que eles têm a sua
linguagem.
./'■ Cristo é o Verbo de Deus, e todo ato realizado pelo Verbo é para
nós uma palavra.
Já notamos, pela narração feita no evangelho, a grandeza deste
milagre, a multiplicação dos pães. Investiguemos agora a sua pro­
fundeza. Não nos deleitemos apenas com a aparência exterior do
fato, perscrutemos seu segredo, pois o fato externo tem alguma
coisa de íntimo.
- Vemos, contemplamos, alguma coisa de grande, de sublime, e de
inteiramente divino, pois só Deus o pode realizar, e então, pela
consideração da obra, somos levados a louvar o autor. Se víssemos,
ém qualquer parte, uma carta muito bem escrita, não nos bastaria elo­
giar o copista que desenhou as letras com tanta beleza e perfeição,
mas deveríamos ler o que elas exprimem. Da mesma forma, quem
observa o fato, agrada-se com sua beleza, e admira seu autor; mas
quem compreende o sentido faz por assim dizer a sua leitura. Uma
coisa é ver uma pintura, contentar-se com ver e louvar esse trabalho.
Já o mesmo não se dá ccm uma carta, pois somos convidados a ler
ò que ela diz. Quando vês uma carta e não a sabes ler, perguntas:
“que está escrito aqui?” Já vês algo, e todavia ainda perguntas.
E aquele a quem pedes o entendimento do que vês te mostrará algo
toais. Ele tem um poder de visão, tu tens outro. Será que não vês
cómõ ele os caracteres? E, no entanto, não conheces como ele os
siíiâis. Vês e admiras; ele vê, admira e com preende.. .

D O COM ENTÁRIO A O EVANGELHO D E SÃO JOAO *


(P.L. 35, 1851-1853)

“ N ã o v ó s m e e s c o lh e s te s , e u v o s e s c o lh in 1. Eis a inefável graça! 534


Que éramos nós quando não tínhamos ainda escolhido a Cristo, e por
isso não o amávamos? Como poderia amá-lo aquele que não o esco­
lheu? Acaso já ocorria conosco o que se canta no Salmo: “escolhi,
antes, ser humilde na casa do Senhor do que habitar nas moradas dos
pecadores” 2? Não, decerto. Que éramos, senão iníquos e perdidos?
Nem sequer tínhamos acreditado nele, para sermos por ele esco­
lhidos. Se nós escolhemos já acreditando nele, eram escolhidos os que
escolhia. Ele disse, porém: “não fostes vós que me escolhestes”. Por­
que foi “a sua misericórdia que se antecipou a nós” 3.
Por aí se vê quanto é destituída de razão a maneira de . racio­
cinar dos que defendem a presciência de Deus contra a graÇa de;
Deus. Dizem que fomos escolhidos “antes da constituição do iàuâ|
d o ” 4, porque Deus previu que havíamos de ser bons, e n ã o q jíl
ele mesmo nos haveria de fazer bens. Ora, não é isto o que diz ele,:
quando diz: “Não fostes vós que me escolhestes”. Se nos tivesse
colhido porque previra que havíamos de ser bons, teria igualmente
previsto q u e nós primeiramente o havíamos de escolher. Não podí$
mos ser bons de outro modo: a não ser que se chamasse bot$
quem não escolheu o bem. 4
Que escolheu ele nos que não são bons? Não feram escolhidos
por terem sido bons. Nunca seriam bons se não tivessem sido esco­
lhidos. Se sustentarmos que já havia méritos, a graça já não seria
graça.
A escolha é ebra da graça, como diz o Apóstolo: "no tempo
presente subsiste um resto, por causa da escolha da graça” 5. E acresr
centa: “se isto foi pela graça, não foi pelas obras; de outra sorte* a
graça já não seria graça”.
Ouve-me, ó ingrato, ouve-me! “Não fostes vós que me escofc
lhestes, mas eu que vos escolhi”. Não tens razão para dizer: fui
escolhido porque já acreditava. Se acreditavas nele, já o tinhas é$-
cclhido. Mas ouve: “Não fostes vós que me escolhestes”. Não tens
razão para dizer: antes de acreditar, já realizava boas ações, e por
isso fui escolhido. Se o Apóstolo diz: “o que não procede da fé é
pecado” 4, que obras boas podem existir anteriores à fé? Ao ouvir
dizer: “Não fostes vós que me escolhestes”, que devemos pensar^
Que éramos maus e fomes escolhidos para nos tornarmos bons
pela graça de quem nos escolheu. A graça não teria razão de
ser se cs méritos a precedessem. Mas a graça é graça. Não encontrou
mérites, foi a causa dos méritos. Vede, caríssimos, como o Senhor
não escolhe os bons mas escolhe para fazer bons.
"Eu v o s e s c o lh i e v o s c o n s t it u i p a ra que vades e p ro d u z a is
fr u t o s , e o v o s s o f r u t o p e rm a n e ç a ” 1.
Referira-se a esse fruto quando dissera: “sem mim nada po­
deis fazer”. Escolheu, pois, e constituiu-nos para irmos e produ­
zirmos fruto. Não tínhamos qualquer frute que fosse a razão dê
ser de nossa eleição. “Para que vades e produzais fruto” . Vamos pa­
ra produzir. Ele é o caminho por onde vamps, e onde nos colocou
para que vamos. Em tudo se antecipou a nós a sua misericórdia.
" E p a ra q u e v o s s o f r u t o p e rm a n e ç a , a f im d e q u e t u d o o q u e p e d ir ­
d e s a o P a i e m m e u n o m e , e le v o -lo c o n c e d a 9 6.
Permaneça, pois, o amor. Ele mesmo será o nosso fruto. O
|;amor agora existe em deseje e não em plena abundância, mas pelo
próprio desejo que alimentarmos em nós, tudo o que pedirmos em
%íome do Filho unigénito no-lo concederá o Pai. N ão vames julgar
/que pedimos em neme do Salvador. Só podemos pedir em nome
£do Salvador o que convém à nossa salvação.

Constituiu-nos em situação de produzirmos fruto, isto é, de nos 536


/amarmos mutuamente. Nunca poderíamos produzir este fruto sem
a sua cooperação, assim como os ramos nada podem produzir sem
a videira. A caridade, portanto, tal como a definiu o Apóstolo: “nas­
cida de um coração puro, da boa consciência e da fé não fingida ” 9
é p nosso fruto. É com ela que nos amamos uns aos outros e que
amamos a Deus.
Nunca poderíamos amar-nos mutuamente com verdadeiro amor
se não amássemos a Deus. Ama o próximo como a si mesmo aquele
que ama a D eus. Se não ama a Deus não se ama a si mesmo.
v “Nestes dois mandamentos se compendiam toda a Lei e os
Profetas” 101. É este nosso fruto, e o Senhor nes deu um preceito
quanto a este fruto ao dizer-nos: “o que vos mando é isto: que
vos ameis uns aos outros” n .
Quando o apóstolo Paulo queria recomendar os frutos do
Espírito em oposição às obras da carne colocou em primeiro lugar, à
maneira de cabeça, este: “o fruto do Espírito é a caridade”. Só
depois enumerou cs demais, nascidos e intimamente ligados à ca­
beça: “ a alegria, a paz, a longanimidade, a benignidade, a bondade,
a fé, a mansidão e a continência” 12.
Como pode alegrar-se convenientemente quem não ama o bem
de onde procede a alegria? Como se pode ter verdadeira paz/Sepão
com aquele a quem verdadeiramente se ama? Como se pode perseve­
rar no bem com longanimidade se não se ama com intensidade?
Quem pode ser benigno se não ama aquela a quem socorre? Quem
pode ser bom se não se torna bom pela prática do amor? Quem
pode ter uma fé efetiva se a caridade não faz que a mesma se acom­
panhe de obras? Quem pede ser utilmente manso, se o amor não
moderar a ira? Quem pode ccnter-se e não praticar a torpeza se a
caridade não o levar a amar a honestidade?
Razão tinha o bem Mestre para encarecer tanto a caridade co­
mo se fosse o seu único mandamento. Sem a caridade os outros bens
não são proveitosos. Mas a caridade, por sua vez, não pode existir
sem os outros bens, pelos quais o homem se torna bom.

9 lTm 1,5.
10 M t 22,40.
11 Jo 15,17.
12 G1 5,22.
364 SANTO AGOSTINIS

A PREDESTINAÇÃO DO S SANTOS
(cc. 10 e 15: P.L. 44, 974s. 981s)

A d ife re n ç a e n tr e a p r e d e s tin a ç ã o e a g raça

537 Entre a graça e a predestinação existe unicamente esta diferem?


ça: que a predestinação é uma preparação para a graça, e a graça é ja''
a doação efetiva da predestinação.
E assim, o que díz c Apóstolo: “ (a salvação) não provém dal,
obras, para que ninguém se vanglorie; pois somos todos obra’ dê
Deus, criados no Cristo Jesus para realizar boas obras” 1 signifi^
a graça; mas o que segue: “as quais Deus de antemão dispôs para
minharmcs nelas”, significa a predestinação, que não sé pode dar^seM.-
a presciência, por mais que a presciência possa existir sem a predes-í
tinação. 1
Feia predestinação Deus teve presciência das coisas que hávfc
ria de fealizar; por isto foi dito: “Ele fez o que ia ser” 12. Mas! af
presciência pede versar também sebre as coisas que D eus não faz^
como o pecado — de qualquer espécie qúe seja. Embora haja pecádos >
que são castigos de outros pecados, conforme fei dito: “entregou-qá,
Deus a uma mentalidade depravada, para que fizessem o que nao
convinha” 3, não há nisto pecado por parte de D eus, mas justo
juízo. Portanto, a predestinação divina, que versa sobre ó que é bom;
é uma preparação para a graça, como já disse, sendo que a graça e
efeito da predestinação. Por isto, quando Deus prometeu a AbraaÒ
a fé de muitos povos, dentro de sua descendência, disse: “eu te f&
pai de muitas nações” 4, e o Apóstolo comenta: “assim é em virtude
da fé, para que, por graça, seja a promessa estendida a toda a descen­
dência” 5: a promessa não se baseia na nossa vontade mas na predes­
tinação. '
Deus prometeu, não o que cs homens realizam, mas o que
Ele mesmo havia de realizar. Se cs homens praticam boas obràè
no que se refere ao culto divino, provém de Deus cumprirem eles
o que lhes mandou, não provém deles que Deus cumpra o que
prometeu; de outro modo, teria provindo da capacidade humana,
e não dc poder divino, que se cumprissem as divinas promessas,
mas em tal caso os homens teriam dado a Abraão o que Deus lhe
prometera! Não foi assim que Abraão creu; ele “creu, dando glória
a Deus e convencido de que Deus era poderoso para realizar sua

1 Ef 2,9s.
2 Is 45 (seg. os LXX).
3 Rm 1,28.
4 G n 17,4s.
5 Rm 4,Í6.
IpiÉDÊSTINAÇÃO DOS SANTOS 365

p|pmessa” 6. O Apóstolo não emprega o verbo “predizer” ou “pré-


IpfiHecer” (na verdade Deus é poderoso para predizer e pré-conhe-
|J S W coisas), mas ele diz: “poderoso para r e a liz a r ”, e portanto,
§Êp obras alheias, mas suas.
||Ç : Pois bem; porventura prometeu Deus a Abraão que em sua des-
pÉdência haveria as boas obras dos povos, como coisa que Ele rea-
|lêa, sem prometer também a fé — como se esta fosse obra dos
[ftíiiens? E então Ele teria tido, quanto a essa fé, apenas “presciên­
cia?? Não é certamente o que diz o Apóstolo, mas sim que Deus
íi|lrbmeteu a Abraão filhos, os quais seguiriam suas pisadas no cami­
nho da fé: isto o afirma clarissimamente.

:{<m . . -
V- J e s u s C r i s t o , e x e m p la r s u p r e m o d a p re d e s tin a ç ã o

| ; v O mais ilustre exemplar da predestinação e da graça é o próprio 538


Salvador do mundo, mediador entre Deus e os homens, Jesus
Jlíistó. Pois para chegar a ser tudo isto, com que méritos anteriores
seja de obras, seja de fé — pôde contar a natureza humana que
Éele reside?
]p Peço que me respondam: aquele hom em 7 que foi assumido,
èÉft unidade de pessoa, pelo Verbo coeterno com o Pai, para ser
Filho Unigénito de Deus, de onde mereceu isto? H ouve algum
mérito que tivesse ocorrido antes? Que fez ele, que creu, que pe-
diti previamente para chegar a tal inefável excelência? Não foi acaso
pela virtude e assunção do mesmo Verbo que aquele homem, desde
qüe começou a existir, começou a ser Filho único de Deus? Não
foi acaso o Filho único de Deus aquele que a mulher, cheia de graça,.
concebeu? Não foi o único Filho de Deus quem nasceu da Virgem ■ ■
Maria, por obra do Espírito Santo, sem a concupiscência da carne
e por graça singular de Deus? Acaso se pôde temer que aquele
homem chegasse a pecar, quando crescesse na idade e usasse o livre
arbítrio? Acaso carecia de vontade livre ou não era esta tanto mais
livre, nele, quanto mais impossível que estivesse sujeita ao pe­
cado? Todos estes dons, singularmente admiráveis, e outros ainda,
que se possam dizer, em plena verdade, serem dele, recebeu-os de
maneira singular, nele, a nossa natureza humana, sem que houvesse
quaisquer merecimentos precedentes.
Interpele então alguém a Deus e diga-lhe: “por que também não
sou assim?” E se, ouvindo a repreensão: “ó homem, quem és tu pa­
ra pedires contas a D eus” 8, ainda persistir interpelando, com maior

6 Rm 4,21.
7 A palavra "homem” significa aqui, conforme se vê pelo contexto, o mesmo
que "natureza humana”, embora não no sentido genérico desta expressão.
8 Rm 9,20.
366 SANTO AGOSTtt
imprudência: “por que ouço isto: ó hcmem, quem és tu?-. poisjÊ
sou o que estou escutando, isto é, homem — como o é aquderttqj
quem estou falando — por que não hei de ser o mesmo que ;elçi"
Pela graça de Deus ele é tãc grande e tão perfeito! E por que éc!
diferente a graça, se a natureza é igual? Certamente, não existe
Deus acepção de pessoas9: quem seria o louco, já nem digo o cristã^,
que o péhsasse?
i Fique manifesta, portanto, para nós, naquele que é nossa cabè||
ça, a própria fonte da graça que se difunde por todos os seus utiãjjp
brcs, conforme a medida de cada um. Tal é a graça, pela qual se.cftó
cristão um homem desde o momento em que principia a crer; e,;$l
mesma pela qual o homem unido ao Verbo, desde o primeiro rncí-t
mento seu, foi feito Jesus Cristo. Fique manifesto que essa grâça|
é do mesmo Espírito Santo, por obra de quem Cristo nasceu e por;;
obra de quem cada homem renasce; do mesmo Espírito Santo, por!
quem se verificou a isenção de pecado naquele homem e por qué%;
se verifica em nós a remissão dos pecados.
Deus, sem dúvida, teve a presciência de que realizaria tais coisas^!
É esta a predestinação dos santos, que se manifesta de modo .maM
eminente no Santo dos santos; quem poderia negá-lo, dentre os que en?§
tendem retamente os ensinamentos da verdade? Pois sabemos qj$!
também o Senhor da glória foi predestinado, enquanto homem tor-J
nado Filho de Deus. Prcclama-o o Doutor das Gentes no começo ide?
suas epístolas: . “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para
apóstolo, escolhido para o Evangelho de Deus, que Ele de antemão]
havia prometido por meio dos profetas, nas santas Escrituras, acerçàS
de seu Filho, o que nasceu da estirpe de Davi segundo a carne e fo i
constituído Filho de Deus, poderoso segundo o Espírito de santfc
dade desde sua ressurreição entre os m ortos” 10. Jesus foi, portanto)
predestinado: aquele que segundo a carne haveria de ser filho,.de
Davi seria também Filho de Deus poderoso, segundo o Espírito dá
santificação — pois nasceu do Espírito Santo e da Virgem. ( /

D O COMENTÁRIO AO SALMO 125


(P.L. 37, 1665)

A ajuda reciproca

540 Vemos às vezes que um rico é pobre, e o pobre pode oferecer-


-lhe seus préstimos. Eis, chega alguém à beira de um rio, e quanto
tem de posses tem de delicado: não conseguirá atravessar; se tira a
p^vC CM EN TÁ R IO AO SALMO 125 367
ffóupa para nadar, teme resfriar-se, adoecer, m o rre r.. . Chega um
jjcbre, mais robusto e preparado. Ajuda o rico a atravessar, faz es-
jsmola ao rico.
\ : Portanto, não se considerem pobres somente os que não têm
ísdinheiro. Observe cada um em que é pobre, porque talvez seja rico
|$ob outro aspecto e possa prestar ajuda. Talvez possas ajudar alguém
j:Com teus braços e até mais do que se o ajudasses com teu dinheiro.
|Aquele lá precisa de um conselho e tu sabes dá-lo; nisto ele é po­
bre e és rico, e então nada tens a perder: dá-lhe um bom conselho
,'e faz-lhe tua esmola.
,t,n Neste momento, irmãos, enquanto falo convosco, sois como men-
digos diante de Deus. Deus nos dá, e nós damos a vós; todos recebe­
rmos dele, o único rico.
, Assim procede o corpo de Cristo, assim se entrelaçam seus
membros e se unem na caridade e no vínculo da paz: quando alguém
possui e sabe dar a quem não possui. No que tens, és rico; e é
pòbre quem não tem o mesmo.
Amai-vos pois, e querei-vos bem. Não cuideis apenas de vós,
pensai nos precisados que vos rodeiam. E embora isto acarrete fadigas
a sofrimentos, nesta vida, não percais a coragem: semeai nas lágrimas,
colhereis na alegria. Pois não é assim, irmãos meus? O agricultor,
quando lavra a terra e põe as sementes, não está às vezes receoso do
vento frio ou da chuva? Olha o céu e o vê ameaçador, treme de
frio, mas vai em frente e semeia, para não acontecer que, esperando
um dia sereno, passe o tempo e já não possa semear. Não adieis
vossas boas obras, irmãos! Semeai no inverno, semeai boas obras
mesmo quando chorais, pois “quem semeia nas lágrimas, colhe na
alegria” i.

1 SI 125,5.
"•Mi'

<ÍQ&i

SÃO PAULINO DE NOLA


( t 431)

Natural da Gália, exercera importantes cargos civis até que foi batizado, era
391. Vendeu então seus bens, distribuindo-os aos pobres, sendo seguido, na com
versão, por sua esposa Terásia, com a qual passou a viver vida eremitica. Ordenado
presbítero, em 394, tornou-se em 409 bispo de Nola. : ■!i€
Obras: Cânticos e Cartas.

SERMÃO '/-'i
(P.L. Cl, 344ss) v

541 Caríssimos irmãos, não é à-toa que se prepara a manjedoura:


para os jumentos, não é semente para ser vista. Embora des?
tinada a animais irracionais, é como uma mesa que o homem rado?
nal prepara, onde os quadrúpedes encontrem seu alimento. Ora,ns£
alguém depois de construir a manjedoura descuidasse de abaste?
cê-la, os jumentos pouco a pouco iriam definhando pela míngua
do estábulo e a fome comeria os animais, que não tiveram o que
comer. Justo prejuízo recairia sobre a avareza e negligência do que
preparou a manjedoura. E maior ainda, quando, pela morte dos
animais, ela ficasse inútil: prejuízo dobrado para quem pretendeu
poupar uma despesa útil e necessária.
Este exemplo quer advertir-nos, caríssimos irmãos, a não ex­
pormos nossa alma ao perigo e perda da salvação, por negligênda
quanto à mesa dos pobres (colocada pelo Senhor à porta de sua
Igreja), por a termos olhado com desprezo, passando por ela com
mãos vazias. Que isso não vos aconteça! O câncer da avareza en­
tra fácil nos corações não fortalecidos pela misericórdia. Quando
a serpente inimiga encontra a alma vazia de boas obras e cheia de
motivos de escravidão, isto é, de obras infrutuosas, prende-a com
seus laços viperinos. Não deixemos, pois, que a mesa do Senhor
fique sem frutos para nós e desprovida para cs pobres. Não permi­
tamos que exista somente para ser vista; ela precisa ser útil. Não
caiam sobre nós os gemidos dos famintos por culpa nessa, pois
está escrito: “quem despreza o pobre irrita aquele que o criou” 1,
isto é, o Criador comum de todos. Este, com efeito, assim como se
alegra com a alimentação do pobre, se entristece com seu abandono.

1 Pr 14,31 e 16,5.
[Se rm ã o 369

■ Levantemo-nos do sono da inércia e, para quebrar o torpor 542


dà negligência ou romper ás cadeias da avareza, tenhamos bem pre­
sentes diante des olhos as palavras, preceitos, :promessas, obras e
conselhos de nosso Deus Salvador. Examinemos intimamente por
qtie motivo e em razão de quem esta mesa foi colocada à entra-
da da casa do Senhor, à vista de todo o povo. Consideremos, so­
bretudo, para que bem, por que graça, para que fruto ela aí está,
tão visível e luminosa. Consulta cs próprios oráculos da verdade e o
profeta te responderá: “quem se compadece do pobre, empresta a
Deus” 2. Esta mesa é o Banco do Senhor: acumula o tesouro da vida
è distribui os juros de Deus para a aquisição da pérola preciosa 3. Quem
dá aos pobres do Senhor espera dele, como retribuição, a eterna
recompensa. São Paulo apóstolo diz-nos que no meio das solici­
tudes de todas as Igrejas, o cuidado dos pobres não lhe era a menor.
Diz ele: “Devemos lembrar-nos dos pobres e eu, por minha parte,
ine esforço por fazê-lo” 4. E o mesmo Apóstolo exclama em outro
lugar: “não trouxemos a este mundo, nada sem dúvida, poderemos
levar dele” 5. Por isso, caríssimos, sejamos generosos com os bens
que nos foram confiados e não avaros como se se tratasse de bens
próprios. “Uma administração nos foi confiada” 6: o uso temporário
dc; dinheiro comum, não a posse eterna de coisa privada. Se
reconheceres que ela é temporariamente tua aqui na terra, poderás
tómá-la eternamente tua nos céus. Se te lembrares dos que re­
ceberam os talentos do Senhor, no Evangelho, e do que o Pai de
família deu ao voltar a cada um, em retribuição, saberás quanto te
será mais útil colocar o dinheiro na mesa do Senhor para que se
multiplique, antes do que guardá-lo, pela fé estéril, sem lucro para
o credor e com prejuízo para o servo inútil, cujas penas serão aumen­
tadas.
Procura, ao contrário, merecer ouvir a palavra: “Eia, servo 543
bom, entra na alegria do teu Senhor!” Antes esta que aquela ou­
tra: “ Servo mau e preguiçoso; por tua própria palavra, eu te julgo” 7.
A' continuação é bem conhecida. O servo inútil é mandado às tre­
vas exteriores e o seu talento entregue àquele que soubera fazer ren­
der a própria parte: “a todo que possui será dado e ao que não
possui, até o que tem lhe será tirado ” 8.
Lembremo-nos, ainda, daquela viúva que, despreocupada com
os seus, conforme atesta o próprio Juiz, e pensando unicamente no
futuro, deu aos pobres tudo o que lhe restava de alimento. Outros
concorreram com o excesso de sua abundância; ela, porém, mais

2 Pr 19,17.
3 M t 13,45.
4 G1 2,10.
* Um 6,7.
6 l C o r 4 ,1 7 .
7 Lc 19,21; cf. M t 25,14ss.
8 Mt 25,29.
370 SÃO PAULINO DE NOLA
pobre talvez que muitos pobres, tendo por única fortuna duas moe­
das; mais rica, entretanto, na alma que todos os ricos, avara dos
tesouros celestes, esperando unicamente os benefícios da recompen­
sa eterna, entregou tudo que possuía dessa fortuna que sai da terra
e para ele retorna9. Deu o que tinha, para possuir o que não via;
deu o corruptível, para adquirir a imortalidade. Esta pobre não fez
pouco caso ^da economia disposta e ordenada por Deus, acerca do
crédito futuro. Por isso, o Prcvisor não se esqueceu dela e, como juiz
do mundo, já antecipou a sua sentença. Elogiou no Evangelho a quem
iria coroar no juízo futuro.
544 Emprestemos a Deus dos seus próprios dons. Nada possuímos
sem auxílio, uma vez que nem existir podemos sem sua vontade.
Que poderemos considerar como nosso, se por uma dívida especial e
imensa nós mesmos não somos nossos? Pois nãò só fomos feitos
por Deus mas também resgatados10. Alegremo-nos, porque fomos
resgatados por um grande preço, isto é, pelo sangue do próprio
Senhor. Por esse preço deixamos de ser vis e venais, pois liberdadé
mais vil que a escravidão é ser liberto da justiça; e o que é liberto
desse modo é serve do pecado e escravo da morte. Tributemos ao
Senhor os seus próprios dons, sim, demos a ele, (pois é ele quem
recebe em todo pobre), demos a ele com alegria, e recebamos dele
ccm júbilo. Arrombemos as portas do céu com as nossas boas obras,
pois nosso Senhor, único Deus e único bom, não deseja receber do
zelo avarento, e sim do afeto generoso. Que não há de possuir aquele
que foi o doador de tudo? Que não possuirá aquele que possui os
próprios possuidores? Os ricos todos estão nas suas mãos, mas a sua
imensa justiça e sua bondade querem fazer entre si, com os seus pró­
prios dons, uma troca de dons: de modo que te dá a matéria da be­
neficência, porque é bom, e produz em ti o mérito, para que recebas
dignamente, porque é justo.
545 O tesouro de seus bens está aberto, as riquezas de sua bondade
estão expostas, de modo que todos podem tirar livremente quanto
quiserem, mas ninguém deve esperar passivamente. Foi para isto que
nos fez o bom Senhor e santo Pai: para que, por nosso bem, sejamos
bons. Ccm efeito, de que bem exterior precisaria quem é em si mes­
mo a bondade e felicidade? Assim, enquanto depende dele, “quer que
todos os homens sejam salvos” M, pois ama em todo homem a sua
própria obra. Ele te cumulará de copiosas riquezas, se tu mesmo não
te fizeres avaro e ciumento com as coisas que Deus fez tuas, não
para que te sejam uma causa de morte, mas o preço da vida. O imen­
sa bondade de Deus! Quer receber por empréstimo o que ele mesmo
distribuiu. Quer tornar-se devedor de suas próprias dádivas, para
poder pagar-te os juros do teu empréstimo.
9 Cf. Mt 12,43.
10 ICor 6,20.
n lTm 2,4.
SERMÃO 371

Apfessa-te, irmão, a tornar esse Devedor ligado a ti de modo 546


tão generoso que venha a chamar-te amigo e não servo12; e re­
conhecendo a tua fidelidade no trato dos bens terrenos te faça rico
dos seus tesouros celestes. Não hesites, nãc tardes, não poupes: sê
violento para com Deus, agarra o reino dos céus. Aquele que nos
proíbe lançar mão dos bens alheios, alegra-se quando os seus são
arrebatados. Aquele que condena a rapacidade da avareza louva a
rapina da fé. Os que vão jantar contigo estão à tua porta, esperando
a hora e o senhor do banquete. Tu retardas os convivas: corre para
que não permaneçam mais tempo em jejum e a injustiça que padecem
não atinja aquele que os fez, e que os fez pobres para o teu b em 13.
Sem dúvida o Senhor onipotente poderia ter feito todos igualmente ri­
cos, de modo que nenhum precisasse do outro; mas, por uma disposi­
ção de sua infinita bondade, ele, Senhor compassivo e misericordioso,
dispôs as coisas de modo a poder provar o teu espírito. Fez o miserá­
vel para reconhecer o misericordioso. Fez o pobre para experimentar o
opulento. A pobreza fraterna é para ti causa de riquezas, se cuidas do
pobre e do necessitado14. Não consideres apenas como teu o que rece­
beste; Deus te deu parte nos seus bens deste mundo para que pudesse
dever-te tudo o que espontaneamente deres aos pobres, e retribuir-te,
no dia eterno, enriquecendo-te com a porção do pobre. Cristo recebe
agora por eles; por eles pagará então. Consideremos a lição que
nos dá, do inferno, aquele rico do Evangelho e também a que nos dá,
do seio de Abraão, o já não mais mendigo Lázaro, que frui do refri­
gério da vida, enquanto arde o rico no castigo da fom e15. Este
exemplo nos ensina que há uma troca de posições aqui e lá: lá os
pobres são compensados do que pareceu ser-lhes negado aqui; ao
passo que nada receberão da felicidade dos. pobres os ricos que na
terra não se compadecem deles. Como justa vingança pela injúria
feita aos pobres, ser-lhes-á dada a mendicidade perpétua ccm abufi-
dância de penas.
Por isso, “caminhai”, conforme está escrito, “na luz, como fi- 547
lhos da luz, enquanto a possuirdes” ló. Enquanto há tempo para pro­
videnciar e arrepender-se, age, ó cristão, de modo que mereças ouvir:
“Eis, servo bom, porque foste fiel nas pequeninas coisas, eu te esta­
belecerei sobre as grandes” 17. Vê, irmão, esta palavra e penetra o
seu sentido, não negligencies a graça que te é oferecida. Não entres
com as mãos vazias na casa de Cristo, “que é a Igreja de Deus
vivo” 18. Se deres ao menos um pouco do teu muito, terás prepara­
do um grande aumento das tuas economias. Muitos te esperam, sus-

15 Lc 12,19.
16 Jo 1235.
17 Mt 25,21.
1« Tm 3,15.
372 SÃO PAULINO DE NOLÀ
pensos à tua chegada, olham em torno para ver se te descobrem.
Para ti se levantam as súplicas e os desejos dos pobres e enfermos.
Cuida que tão piedosos sentimentos não sejam forçados a transformar-
-se, mudando-se as preces em ameaças; que a penúria dos que não
socorreste não levante contra ti o clamor que há de irritar e ferir
o Pai dos órfãos, o julgador das viúvas, o Deus que se compadece dos
pobres 19\ "
548 Se te amas, não te ames somente a ti, porque tal seria o amor
da iniqüidade. “Quem ama a iniqüidade, odeia a sua alma, pois a ple­
nitude da lei é o amor do próximo” 20. Todo homem é irmão dè
seu próximo pela natureza. Cuida igualmente de ti e do pobre.
Cuidando do que é útil aos outros e não só a ti, imitarás o imitador
do Cristo e farás com que Deus cuide de ti ainda com mais solicitu­
d e s21. Vê por que crime a avareza e a soberba te afastam daqueles
a quem Deus te uniu em sua obra. Dá de comer ao que tem fome,
para não temeres no dia mau a ira do que há de vir. “Bem-aventura­
do o que se preocupa com o pobre e o necessitado* pois o Senhor
o salvará no dia m au” 22. Trabalha, irmão, e cultiva esta região de tua
terra para que produza abundante colheita, dé grãos bem granados,
e te dê com juros o fruto cem vezes multiplicado de tua semênte 2\
Para o desejo e a busca de tal posse e de tal negócio, a avareza é
santa e salutar; possui esse patrimônio que te rende cem vezes mais
e acumula bens eternos para ti e teus herdeiros. Eis a grande ê
preciosa posse, que não onera o possuidor secular, e com rendas eter­
nas o enriquece; dela jorra, como leite e mel, o mais suave des licores*
não a custo extraído dos úberes, e sim oferecendo-se aos agricultores
como rio borbulhante.
549 Entretanto, caríssimos, não só para procurardes os bens eter­
nos, mas também para evitardes inúmeros males, deveis praticar no
presente a justiça. Precisamos de grande auxílio, de grande proteção
e do amparo de muitas e incessantes orações. Nosso adversário não
descansa. Como inimigo vigilante, está em volta, pronto para des­
truir-nos, cercando nossos caminhos, explorando-lhes cuidadosamen­
te a entrada e a saída. Arremessa-se, como inseparável companheiro,
insinuando-se entre nossos pés, a fim de nos ferirmos, descuidados,
nas asperezas do caminho. Por isso está escrito: “H á caminhos que
parecem retos aos homens, mas cujos fins conduzem ao inferno” 24.
Se, confiante no caminho plano, ou incauto no escorregadio, vieres
a tombar, ele surgirá sem perda de tempo, para aprisionar o qué
caiu e nada omitirá para te despedaçar e devorar. Por isso sê cauto
SERMÃO 373

em toda parte, examina onde pões o pé. De todos os cantos


surge o demônio “como um leão preparado para a caça” 25.
Não julgues pcder palmilhar com segurança a própria terra. Pois
reconhecendo em toda carne humana o pecado do primeiro pai, ela
executa a sentença do Criador com seus espinhos e abrolhos, com
suas feras e serpentes.
Além disso, muitas são as cruzes no mundo, inúmeros os perigos
que nos ameaçam, como o flagelo das doenças, o fogo das febres, o
aguilhão da dor que fere as almas e a chama das paixões que se
acendem. Por toda parte se ocultam laços armados e punhais se erguem
contra nós: entre ciladas e combates desliza a vida, caminhamos sobre
brasas ardentes, recobertas por uma cinza enganadora.
Antes, pois, que por inadvertência cu culpa venhas a cair em 550
alguma dessas tremendas enfermidades, apressa-te em te tornares
caro e agradável ao Médico, a fim de teres o remédio salvador no
momento necessário. Uma coisa é estares só a orar por ti, outra é
teres por ti, diante de Deus, uma multidão solícita. Quando estive­
res calado, ela clamará em teu favor. Alegrar-se-á ao ver-te e te
saudará ao te encontrar. Esquecidos da penúria e da doença, seus
corpos viverão da tua saúde e suas almas se fortificarão à tua vista.
Tu significas para eles o campo fértil, o pomar cheio de frutos.
E eles para ti a rica e preciosa propriedade. Preferem-te aos pró­
prios filhos e, mais solícitos per ti que por si próprios, rezam
pela tua saúde ao rezar pela sua, ou mesmo antes. Não que des­
cuidem de si mesmos, mas por uma transferência de amor, cada um
se ama na tua pessoa, e pede, na tua, por sua vida. Pois tua colheita
é vida deles; tua riqueza, seu crédito; tua pobreza, sua riqueza.
Em todas as igrejas oram por ti, nas praças manifestam sua^ gra­
tidão, em todos os lugares se erguem ao ser pronunciado o teu
nome, dando graças ao Senhor, e csculam-te, ainda ausente, bei­
jando as próprias mãos. Sempre te vêem e nunca deixam de ver-te,
pcis te alcançam pelo espírito, que percebe as coisas ausentes. Na
verdade estás gravado e impresso nos seus corações pela tua grande
humanidade para ccm eles. Não temem a fome, tranqüilizados pelos
teus víveres, nem receiam o invernG que tu prevês e excluis com
as roupas que preparas: “feliz o homem que o Senhor, na sua volta,
encontrar agindo de tal modo! ” 26
SAO PEDRO CRISÓLOGO $
(t c. 450) i
■ 'if. ,

Bispo de Ravena e Doutor da Igreja, é chamado “Crisólogo” por causa; de sua


eloqüência. Quando o arquimandrita monofisita Êutiques, de Constantinopla, lhe. p^dío
uma sentença de apoio, Pedro o remeteu ao papa são Leão: “Não podemos discutirn
coisas da f é . . . sem o assentimento do bispo de Roma”. :
Obras: restam-nos uns 170 Sermões autênticos, que explicam textos bíblicos,;.o".
Pai-nosso e o Símbolo. Um estudo crítico dessas peças, algumas das quais atribuíd^s '
em certos manuscritos ao bispo Severiano (de Gábala?) foi feito por D. A. Olívãf;#
Los sermones de san Pedro Crisologo. Estúdio crítico, col. “Scripta et Documenta^,;
13, Ab. de Montserrat, 1962. ;

SERMÃO DE NATAL .' ^ rv \


(P.L. 52, 585-588) > . r;^

Seríamos levados antes a adiar nosso sermão, tal a sublimidade


e o mistério do nascimento de Cristo. A Virgem deu à luz;; queín
o explicará? O Verbo se fez carne; quem explanará este mistério?
Se o Verbo de Deus vagiu na boca de uma criança, como poderá
falar dele o homem cheio de imperfeição? Mas como a estrela ilu-
551 minou os magos em busca da Luz, assim à palavra do pregador
deve dar a conhecer a seus ouvintes o nascimento de Deus; a fiei
de se regozijarem com o encontro de Cristo e, mais que perscruta:
rem seus divinos segredos, honrarem com dádivas o Menino-Deus.
Orai, irmães meus, para que se digrte crescer, poucò a pouco, em
minha palavra, aquele que aceitou crescer num corpo como o nosso.
O evangelista diz ter o anjo falado assim: “Não temas, Maria,
pois achaste graça diante de Deus”. Não temas, Maria. E por quê?
Porque achaste graça. Temer não é próprio de quem recebe, é pró­
prio de quem perde. Recebeste, concebendo, a graça do divino
germe, e não perdeste o brilho de tua virgindade, ao entregá-lo à
luz. “Não temas, Maria”. Que pode temer a que concebe a seguran­
ça do mundo, a alegria dos séculos? Temor não existe, onde se
trata de algo divino, não humane; onde há consciência de virtude,
não de impureza. Que pode temer, a mãe daquele a quem temem
até os que infundem temor? Que pode temer aquela cujo assessor
é o juiz da própria causa, e que tem sua integridade como teste-
fSEKMÃO DE NATAL 375

' munho de sua inocência? “Não temas, Maria, pois achaste graça
. aiante de D eu s”.
A Virgem acolheu em seu seio o Verbo divino, o qual, desde 552
; a eternidade, coexistia com Deus. Fez-se grandioso templo da Divin­
dade, ela, morada humilde e humana. Aquele que não podia ser
contido na pequenez do corpo humano, ei-lo na estreiteza do ven-
fre virginal. “Eis que conceberás no ventre”. Bastaria ter dito: “con­
ceberás”; por que acrescentou: “no ventre”? Para indicar ser real
• ar concepção, não aparente; para atestar que o nascimento seria
real, não fictício; para demonstrar que assim como Cristo, enquanto
Deus, procede do verdadeiro Deus, enquanto homem tem um corpo
mar que Cristo tomou um corpo etéreo e apenas tenha aparentado
que é fruto bendito de verdadeira concepção. É, pois, herético afir-
a forma de homem. “Eis que conceberás no ventre e darás à luz um
filho, ao qual chamarás Jesus"'.
Em hebraico, “Jesus” significa “Salvador”. Com razão, pois, 553
túdo está salvo na Virgem, quando ela gerou o Salvador de tudo.
“Chamá-lo-ás Jesus”. Porque com este nome é adorada a majestade
augusta da divindade; tòdos os que habitam os céus, os que povoam
a terra, os que gemem nas profundezas do inferno prosternam-se
aiite esse nome e o adoram. Ouvi as palavras do Apóstolo: “Ao
nome de Jesus se dobrará todo joelho, no céu, na terra e nos in­
fernos” 1. É o nome que deu vista aos cegos, ouvido aos surdos,
curou os coxos, deu fala aos mudos, vida aos mortos, libertou os
possessos do demônio. Mas se o nome é tão sublime, quanto não
o será o poder de seu dono? O mesmo anjo diz quem seja aquele que
detém esse nome: “Ele será chamado Filho do Altíssimo”. Vede:
d que a Virgem concebe não é germe da terra, mas do céu.
A Virgem deu à luz e seu filho é o Filho de Deus! Portanto,^os
que pretendem encontrar algo de apenas humano nesse nascimento es­
tão injuriando ao Altíssimo!
“E o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai, e reinará eter- 554
namente na casa de Jacó, e seu reino não terá fim ”. São pala­
vras que o herege procura toldar em favor de seu erro. “Eis, diz
aqui, é o anjo quem fala: o Senhor Deus lhe d a r á .. . Então, não é
maior aquele que dá do que aquele que recebe? E o que recebe,
ácaso já possuía o que recebe?”
Nós, porém, irmãos, escutemos tais palavras do anjo, não co­
mo os pérfidos hereges, mas como verdadeiros fiéis; sejam-nos fun­
damento para a fé, não pretexto para o erro. “O Senhor Deus lhe
dará”. Que Deus? O próprio Verbo, que era, no princípio, D e u s2.
A quem dará? Ao que se fez carne e habitou entre nós. Ouçamos
ao Apóstolo, que diz: “Deus estava em Cristo, reconciliando o mun-

1 H 2,11.
2 Jo 1,1«.
SEDÚLIO
(séc. V )

Célio Sedúlio era presbítero e compôs, em língua simples e viva, poemas sobre-
temas da História sagrada, entre os quais 2 hinos do Breviário Romano: A solis ortus
cardine (Natal) e Crudelis Herodes Deutn (Epifania).

H IN O 1
(P.L. 19, 753-770) ^ \

557 Desde o raiar da aurora D e leite quis nutrir-se .....


até o scl se pôr, o que alimenta as aves. ,
da Virgem-Mãe nascido,
Anjcs do céu começam
saudemos o Senhor!
seus cantos de louvor: '
O Criador do mundo pastores reconhecem
um corpo vil tomou; de todos o Pastor!
a carne salva a carne:
Por que, Herodes, temes y
não perca os que criou!
chegar o rei que é Deus?
Da Virgem-Mãe no seio Não rouba os reis da terra
o sol do céu penetra; quem o reino dá no céu.
presença preciosa
carrega em si, secreta. Os Magos, ei-lcs vindo,
buscar na luz, a Luz;
Da mãe c puro peito a estrela vão seguindo;
templo do céu se faz. ao rei dos reis conduz.
Homem desconhecido,
o próprio Deus nos traz! Nas águas é lavado
o celestial Cordeiro:
Por Gabriel predito, o que não tem pecado
já nasce o onipotente; nos lava do primeiro.
à luz é dada a Luz
que João, na treva, sente. As águas, ó prodígio,
já ficam cor de aurora;
Presépio não desprezas. não deixam mais vestígio
(Ó palhas tão suaves!) pois jorram vinho agora.

1 A tradução é de D. Marcos Barbosa. São algumas estrofes de um longo hino


a Cristo, onde cada estrofe começa per uma letra do alfabeto. A 1’ parte do hino
(A solis ortus cardine) canta-se na liturgia do Natal e a 2* (Hostis Herodes impie)
na Epifania.
SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA
(t 444)

Sobrinho de Teófilo, patriarca de Alexandria, Cirilo o substituiu na sé episcopal


em 412.
Quando mais tarde tomou conhecimento das idéias de Nestório, patriarca de
Constantinopla (que parecia cindir o Cristo em duas pessoas, a do filho de Maria e a
dó, Verbo nele habitante), combateu-o com denodo, apoiado pelo papa Celestino, ela­
borando cartas e anatematismos contra a heresia. O Concílio Ecumênico de Êfeso
(431), em sua primeira sessão, condenou e depôs a Nestório, consagrando a tese tra­
dicional da unidade de pessoa em Cristo e o conseqüente título, que compete a
Maria, de “Theotókos” ( “Mãe de Deus” ).
'■ Considerado um dos maiores Padres da língua grega, são Cirilo, o “Doutor
mariano”, é autor de Comentários exegéticos ao Antigo e ao Novo Testamento; de
tratados sobre a Santíssima Trindade e a encarnação; de numerosas homilias etc. Sua
correspondência é precioso documento da época.
0 Em edição bilíngüe: S.C. 97 (Diálogos cristológicos) e recentemente os Diálogos
sobre a Trindade.

D IÁ L O G O SOBRE A ENCARNAÇÃO
(P.G . 75, 1217ss)

Rejeitemos todos os disparates, fábulas inconsistentes, falsas opi- 558


niões, ilusórias frases pomposas. Guardemos distância de tudo que
é nocivo, mesmo que os adversários nos ensurdeçam com seus dis­
cursos astutos ou agressivos. Porque o mistério divino “não consiste
em discursos persuasivos da sabedoria humana, mas na manifestação
do Espírito” í.
O Unigénito, que conforme as Escrituras era Deus e Senhor
de todas as coisas, revelou-se a nós. Foi visto sobre a terra e ilu­
minou os que jaziam nas trevas, fazendo-se homem. Não só pelas
aparências: não se pense assim, é loucura pensá-lo e dizê-lo! Nem
tampouco porque se tivesse tornado carne mediante uma mudança
ou transformação: o Verbo é imutável, ele permanece eternamente o
mesmo! Nem porque sua existência fosse contemporânea à da car­
ne: elé é o Áutor dos séculos! Nem porque, como pura palavra
(sem subsistência) se tivesse tornado homem: é ele o pré-existente,

lCor 2,4.
380 SÃO CIRILO DE ALEXANDRÍA^
que chama as coisas a existirem e nascerem! É ele a Vida, procedente^;
da Vida, que é Deus Pai, o qual, como sabemos, o é na realidade, 1|
existe em própria hipóstase. Nem simplesmente se revestiu de uma4;
carne privada de alma racional: foi verdadeiramente gerado por umaí:
mulher, mostrou-se homem, assumindo a fcrma de servo, ele, o \
Deus Verbo, cceterno e coexistente com o Pai; e assim como é |
perfeitp em sua divindade, assim o é na sua humanidade, constituin- \
do um só Cristo, Senhor e Filho, nãc apenas por justaposição da *
divindade e da carne, mas pela conexão paradoxal de dois elementos -\
completos, a humanidade e a divindade, num único e mesmo ser. ;
— Quem, pois, foi gerado pela santa Virgem? o homem ou o i
Verbo procedente de Deus?
— Eis aí o erro, o pecado, contra todas as conveniências e
contra a verdade! Não me vás dividir ou separar o Emanuel em um
homem e um Deus Verbo, não mo faças um ser de dupla persoha-:
lidade. Porque senão estaremos incorrendo numa afirmação conde-;
nada pela Sagrada Escritura, não estaremos pensando corretamente;
Eis, na verdade, o que diz um dos discípulos de Cristo: “Quantd
a vós, caríssimos, lembrai-vos do que foi predito pelos apóstolos
de nosso Senhor Jesus Cristo, quando vos falavam: nos; últimos
tempos virão impostores, que viverão segundo suas ímpias paixões,
homens que semeiam a discórdia, homens sensuais que não têm o
Espírito” 2. ’ ^
— Então não se deve introduzir divisão alguma?
— Não. E sobretudo não se devem afirmar dois seres após a
união, pensando cada um em separado. É precise reconhecer que
a mente considera certa diferença entre as naturezas: a divindade
e a humanidade não são, seguramente, a mesma coisa; mas ao mes­
mo tempo que tais conceitos, há de se admitir a fusão das duas
numa unidade.
559 Assim, ele nasceu de Deus Pai enquanto Deus, da Virgem en­
quanto homem. Esplendor derivado do Pai, acima de toda palavra
e de todo pensamento, o Verbo é dito também gerado por uma
mulher, pois, descendo à humanidade, tornou-se o que não era; não
para ficar nesse aniquilamento, mas para que o creiamos Deus, mes­
mo quando se manifestou na terra seb uma forma como a nossa;
não simplesmente habitando no homem, mas tornando-se, ele mes­
mo, homem por natureza, e conservando sua própria glória. Assim,
esses dois elementos tão distantes de qualquer consubstancialidade,
separados por incomensurável diferença, a humanidade e a divindade,
Paulo os vê unidos num só, em razão da Economia, indicando que
dos dois se constituiu um só Cristo, Filho de Deus: “Paulo — disse
ele — servo do Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, segregado
para o Evangelho de Deus, cutrora prometido pelos profetas nas san-

2 Jd 17-19.
/ÜÍÁLOCO SOBRE A ENCARNAÇÃO 381

;; tas Escrituras a respeito de seu Filho, nascido, segundo a carne,


?jda semente de Davi, estabelecido em seu poder de Filho de Deus,
í ; Segundo o Espírito de santidade” 3.
. : , Veja-se como ele se diz “segregado para o Evangelho de Deus”,
Embora escreva também: “Não pregamos a nós, mas a Jesus, Cristo
■è Senhor” 4, e ainda: “Não quis saber nada mais entre vós senão
Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” 56.
Ora, ao mesmo tempo que designando-o como Filho de Deus, 560
Paulo diz também que Cristo nasceu da semente de Davi e foi
estabelecido Filho de Deus. Como — diz-me — é Deus o que
nasceu da semente de Davi? O Filho anterior aos séculos, eterno —
enquanto nascido de Deus — pôde ser estabelecido filho de Deus,
çómo se de pouco tivesse vindo à existência? Na verdade, ele mes­
mo disse de si: “O Senhor me falou: Tudo és meu Filho, eu hoje te
jgérei” ó, e no entanto a palavra “h oje” nos indica o momento pre­
sente, não o passado.
. — Isso não deixou de me embaraçar muito, e diria que outros
também tiveram dificuldades para compreendê-lc.
— Para os que separam e dividem (o C risto), há de que se
embaraçarem, com efeito; mas para cs que afirmam a unidade no
Emanuel, é fácil o conhecimento autêntico dos sagrados dogmas.
O Filho coeterno a aquele que o gercu, e anterior aos séculos,
quando desceu à natureza humana — sem abandonar sua qualidade
de Deus, mas acrescentandc-lhe o elemento humano — pôde na
verdade ser concebido como oriundo da semente de Davi e ter um
nascimento recente. Pois o que se lhe acrescentou não lhe era es­
tranho, e sim próprio; assim, fei computado como um consigo, exa­
tamente como no caso do composto humano, feito de elementos na­
turalmente desiguais (refirc-me à alma e ao corpo) e que no^ en­
tanto fazem resultar um único homem. Assim como a carne empresta
seu nome ao vivente inteiro, ou a alma também pode designá-lo,
eis o que acontece em Cristo. Pois não há senão um Filho e um
Senhor Jesus Cristo, antes de assumir a carne e depois que se ma­
nifestou como homem. Não estaremos assim renegando o Mestre
que nos resgatou, mesmo se ocorre vir designado por suas fraquezas
humanas e pelos limites impostos por seu aniquilamento.
— Não estou seguindo bastante bem; gostaria de uma expli­
cação mais clara.
— Nosso Senhor Jesus Cristo disse, dirigindo-se aos judeus:
“Se fôsseis cs filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão, em vez

3 Rm 1,1-4.
4 2Cor 4,5.
5 ICor 2,2.
6 SI 2.
382 SÃO CIRILO DE ALEXANDRl/^l
de procurar matar-me — a mim que vos disse a verdade. I s s ^
Abraão não fez"
Paulo, por sua vez, escreve: “Foi ele que, nos dias de sua vidjf:;
mortal, ofereceu preces e súplicas, acompanhadas de um grand§,/
brado e de lágrimas, àquele que o poderia salvar da morte, e ifoí
ouvido per sua reverência. Embora Filho, aprendeu pelo sofrimento/ '
o que significa obedecer” 8. | /
561 Diremos, então, que Cristo é puro homem, em nada superiof;,
ao que nós somos? ^ :
■— Não, nlo sé diga assim! ;
— Ele, a sabedoria e o poder de Deus, admitiremos que te-j
nha descido a tal grau de fraqueza a ponto de temer a morte e â
ponto de suplicar ao Pai a salvação? Tiraremos ao Emanuel o p rt
vilégio de ser a Vida, por natureza? Ou estaremos falando correta/
mente ao reportar à humanidade e à limitação da natureza seme­
lhante à nossa as expressões menos honrosas, percebendo ao mes;
mo tempo a glória sobrenatural que lhe vem dos traços de s ú a d £ :
vindade, compreendendo que o mesmo é, a uma yez, Deus e homem//
ou antes, Deus feito homem? ,
— Como assim, diz-me? j
— Venha testemunhar entre nós o ilustre Paulo, de quem são
estas palavras: “É da sabedoria que falamos aos perfeitos, naowdé
uma sabedoria deste mundo nem dos príncipes deste m undo/ con­
denados a perecer. Falamos da sabedoria de Deus, m isterio sae se-
creta, que nenhum dos príncipes deste mundo conheceu. Porque sé
a tivessem conhecido não teriam crucificado ao Senhor da glória ” 9:
E ainda: “Esplendor da (divina) glória e figura da (divina) subs­
tância, ele mantém o universo com o poder de sua palavra. Depois
de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da
Majestade divina no mais alto dos céus, tão sublimado acima dos
562 anjos, quanto excede o deles o nome que herdou” 10. De fato, ser
e chamar-se “Senhor da glória” não está muito acima e além de toda
criatura, sujeita à mudança? E omito o que se refere à espécie
humana, que é bem menos importante: são aqui mencionados os
anjos, as potestades, os tronos, as dominações, são mencionados até
os sublimes serafins, reconhecendo-se que estão muito aquém desse
sublime Esplendor, o que é claro ao menos para quem não traz o
espírito corrompido. Tais privilégios, verdadeiramente extraordiná­
rios, são apanágio da natureza que reina sebre o universo.
Ora, como o Crucificado poderia tornar-se Senhor da glória?
O Esplendor do Pai, a imagem de sua substância, o que sustenta o
universo per sua palavra poderosa, ei-lo dito feito superior aos an-

9 Í gd^2,6-8.
JO H b 13-4.
mGoMentário ao evangelho de são joão 383
kjÒs: penso que só porque assumira antes uma condição inferior à
idéies, aparecendo como homem. Está escrito, com efeito: “aquele
, que foi rebaixado um instante sob os anjos, Jesus,nóso vemos
coroado de glória e de honra, por causa da morte quesofreu”11.
Apartaremos então o Verbo, nascido de Deus Pai, da transcen-
rdência que lhe cabe por sua essência, da exata semelhança com esse
j„Pai^ quando o vemos inferior em glória aos anjos, na situação humil-
íde que lhe trouxe a Economia?
— Não, por certo. Não penso que se deva separarcompleta-
gínente o Verbo de Deus das fraquezas humanas apóssua união com
carne, nem despojar da divina glória o elemento humano, se se
jplga e se confessa estar este no Cristo. Alguns perguntarão, con-
iíjtudo, bem o sabes: mas quem é então Jesus Cristo? o homem
nascido da Virgem ou o Verbo nascido de Deus?
; rt>, ■— Francamente, é tolice estender-nos inutilmente na resposta 563
; á, um vãó palavreado. Ccntento-me em dizer que é perigoso e cul­
pável separar em dois, pondo cada um à parte, o homem e o Verbo:
llj^Èconomia não o admite, a Escritura inspirada clama que Cristo
í é um. Quanto a mim, digo que nem o Verbo divino sem a humani­
dade, nem o templo nascido da mulher, enquanto não está unido
ao Verbo,, devem ser chamados Jesus Cristo. Por Cristo se entende o
Verbo procedente de Deus, unido à humanidade. Superior à huma­
nidade enquantoD eus, por natureza, e Filho. Inferiorizado à glória
fdigna.de Deus, enquanto homem. Por isso, ora disse ele: “quem me
viu;, viu o P ai” 12, “eu e o Pai somos um ” 13; ora disse, ao contrário:
: “meu Pai é maior do que e u ” 14, Não é menor do que c Pai en­
quanto lhe é idêntico em substância, é seu igual sob todos os as­
pectos, mas se diz menor em razão do que tem de humanç. As
Sãgradas Escrituras o pregam também assim, ora como inteiramçnte
homem, sem mencionar sua divindade, ora como Deus, sem nada
dizer de sua humanidade. Não erram, por causa da conjunção dos
dois elementos na unidade.

COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO JOÃO


(Liv. IV, cap. 2; P.G. 73, 560ss)

Jcão 6,48: “Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o


manà no deserto e morreram. Eis o pão que desceu do céu: quem
come dele não morrerá“.

n Hb 2,9.
u jo 14,9.
13 Jo 10,30.
14 Jo 14,28.
->84 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA ;
564 Podemos ver claramente nestas palavras aquilo que foi predij-
to por Isaías profeta: “Manifestei-me aos que não me buscava#;
fui encontrado pelos que não me procuravam. Eu disse: ‘Eis-mer
aqui’, a uma nação que não invocara meu nome, e estendi minhas
mãos todo o dia para um povo infiel e rebelde” Desnudando
toda a palavra e como que despojando-se de todo véu, m o s tr a i
Jesus aos israelitas, dizendo-lhes: “eu sou o pão da vida” Saiba#
portanto, se querem imunizar-se contra a corrupção e livrar-se da
ameaçadora morte, fruto da prevaricação, que devem aproximar-se
daquele que os pode vivificar, daquele que destrói a corrupção <e
vence a morte: este proceder é análogo ao que se dá na vida natural:.
Em seguida, argumentando eles que o maná fora dado =aói
pais no deserto, disse-lhes que não receberam o pão descido reàb
mente dc céu, isto é, o Filho, e estabeleceu uma comparação efitifè
q tipo e a verdade, a fim de reconhecerem que aquele pão não
descera do céu, mas era um pão natural, como o m ostra a expérienv
cia. Vossos pais e vossos maiores, diz, comendo o maná atend&m
às necessidades naturais do corpo, refaziam sua vida temporal;
trindo diariamente a carne com ele, mal escapavám à morte imédiá-
ta. Demonstra-se com evidência que aquele pão não era vefdadèiíà-
mente do céu pelo fato de não contribuir em nada para a incorrupçlò
dos que o comiam. O Filho porém é verdadeiramentè o pão da vidà,
pois se mostram mais fortes que os grilhões da morte cs qu!é
ao menos uma vez dele participaram e, participando, como qúe se
misturaram a ele. Já anteriormente dissemos que o maná devé
ser considerado uma imagem e sombra do Cristo, um simples sihal,
e que de fato não é o pão da vida. r.
565 O Salmista corrobora de certo medo nossa sentença quando exí
clama: “Deu-lhes o pão do céu, o homem comeu o pão dos anjos” .
À primeira vista parece que esta palavra do profeta se aplica a ísraeí.
Mas não é assim; ela antes de tudo nos pertence. Não seria tolo
e insensato julgar que os santos anjos, que estão no céu, e possuem
natureza incorpórea, possam comer um alimento grosseiro, e necessi­
tem, para a conservação da vida, do que este corpo terreno exige?
Não é difícil conceber que por serem espíritos requerem um
alimento espiritual e intelectual. Como pois está dito que aos an­
tepassados dos judeus foi oferecido o pão dos anjos? Como pode o
profeta proclamar isto sem mentir? Sem dúvida porque, sendo o
maná tipo e figura de Cristo, que tudo sustenta e conserva no ser,
alimenta os anjos e vivifica a terra, o profeta atribui à sombra o que
dizia da realidade. Os ouvintes, porém, sabendo que os santos anjos
não podem partilhar do alimento terreno, afastariam a rude e gros-1

1 Is 65,1-2.
2 SI 77,25.
I êomentário ao evangelho de SÃO JOÃO 385

|seira consideração do maná e entenderiam a profecia em seu sentido


^espiritual, isto é, de Cristo, pão des santos anjos.
| ! Aqueles que comeram o maná morreram, pois não receberam
nele nenhuma participação da vida. O maná não vivificava, sendo
papenas lenitivo para a fome do corpo e figura do verdadeiro maná
i-vindouro. Aqueles que se alimentam com o pão da vida obterão o
prêmio da imortalidade, libertar-se-ão da corrupção e de todos os
outros males e alcançarão com Cristo a vida eterna. Não importa
se devam sofrer a morte natural da carne, pois, embora morrendo
como cs demais homens, vivem, diz são Paulo, e viverão sempre,
para D eu s3.
João 7,51: "Eu sou o pão vivo descido dó céu. Quem comer
deste pão viverá eternamente".
“Falar-vos estas coisas não me custa, e vos é salutar” 4, escre- 566
veu certa vez Paulo, iniciado, penso, no modo de ensinar do próprio
■Salvador. Assim como para as feridas profundas não basta uma
úhica medicação, sendo necessários contínuos e múltiplos curativos
para curá-la, do mesmo modo às almas contumazes e às inteligências
obstinadas devem os méstres prestar freqüente e contínua assis­
tência, não fazendo apenas uma primeira admoestação, mas acrescen­
tando outras, ainda se com repetição das mesmas palavras.
Por causa disto o Salvador, repetindo várias vezes aos judeus
o mesmo ensinamento, propunha-o de diversas maneiras, ora enig­
maticamente, envolto em obscuridades, ora inteiramente despido de
cobertura, nu e claro, para que cs incrédulos não pudessem escapar
à condenação e os maus se perdessem miseravelmente, desembai­
nhando contra si mesmos a espada da perdição. Não querendo por
conseguinte ocultar nada, Cristo repete: “Eu sou o pão vivo des*
eido do céu”. O maná era tipo, sombra e imagem. Ouvi agora aber- *
tamente: “Eu seu o pão vivo. Quem comer deste pão viverá eter­
namente”. Os que comeram o maná morreram, pois ele não era vi­
vificante. Mas quem come deste pão, isto é, de mim, da minha car­
ne, viverá eternamente.
Evitemos, pois, diminuir ou endurecer nossa piedade para com
as palavras de Cristo, que nos ensina tantas vezes. Tornam-se réus
de grave pecado os que, chegando ao extremo da insensatez, em­
briagados por incrível descrença, não temem insultar impudentemen­
te o doador de tão grandes benefícios. Por isto diz ele aos judeus:
“Se eu não viesse e vos falasse, não teríeis pecado; agora porém não
tendes desculpa para vosso pecado” 5. Aqueles que não acolherem
no coração a palavra salvífica por não a terem ouvido, encontrarão
de certo um juiz mais manso, quando argumentarem que nada ouvi-

3 Cf. Rm 6,10.
4 F1 3.1.
5 To 14,22.

13 • Antologia dos santos padres


386 SÃO CIR1LO DE ALEXANDRIA^
ram; embora devendo apresentar a razão por que não se procuraram;
instruir. Mas aqueles que muitas vezes ouviram admoestações e ra?
zões para aprender o que lhes convinha, e se deixaram enganar, jul­
gando estupidamente poder afastar-se do bem, serão punidos còm
muita severidade, encontrando sem escusas um juiz ofendido com a
própria insensatez de sua desculpa.
Jo' 6 ,5 2 : “E o pão que eu darei é a minha carne que entrego
pela vida do m undo”. >
567 Morro por todos para vivificar a todos por mim mesmo; fiz
da minha carne resgate da carne de todos. A morte morrerá na mi-
nha morte, reerguendo-se comigo a natureza do homem que estava
prostrada. Para isso me conformei a vós, fiz-me homem, filho de
Abraão, para em tudo me assemelhar aos irm ãos6. Compreendendo
o que Cristo nos dissera, são Paulo diz por sua vez: “Assim
como as crianças participam do sangue e da carne, também ele, a
fim de quebrar com sua morte o poder daquele que tem o império;
da morte, isto é, o diabo” 7. Não haveria outro meio de derrubar:
aquele que tem o império da morte, e a própria morte, se o Cristo
não se entregasse por nós; um para resgate de muitos, e um que
estava acima de todos. Por causa disto no Salmo ele se cferece por
nós a Deus Pai, qual hóstia imaculada, dizendo: “Não quiseste aaT;
crifício nem oblação, mas me formaste um corpo. Holocaustos é ví-:
timas expiatórias não te agradaram; disse então: eis que venho. No
cabeçalho do livro está escrito de mim, decidi cumprir a tua vonta­
de, ó meu D eus” 8. Como o sangue de touros e de bodes ou às
cinzas de novilhas não bastassem para expiar os pecados, nem &
imolação de animais pudesse arruinar o poder da morte, o próprio
- Cristo se propõe sofrer os castigos por todos. “Em suas chagas
fomos salvos” 9, diz o profeta, “ele levou nossos pecados sobre seu
próprio corpo até a cruz” 10. Foi crucificado por todos e por causa
de todos, para que, morrendo um sobré a cruz, todos vivessem nelè.
A morte não podia dominar, nem a corrupção prevalecer, sobre aquele
que era por natureza a Vida.
568 Vejamos nas palavras do próprio Cristo como ele ofereceu suá
carne pela vida do mundo: “Pai santo, guarda-os” 11; e ainda: “eu
me santifico por eles” 12. Ele diz que se santifica, não mediante umà
purificação da alma cu do espírito, tal como nos devemos santifi­
car; nem por uma simples participação no Espírito Santo, pois nele
o Espírito estava por natureza, ele era, é, e será sempre, santo. Diz
porém que se “santifica” significando que se consagra e se oferece*

* Cf.. Rm 8,29.
7 Hb 2,14.
8 SI 39,7-9.
9 Is 53,5.
10 lP d 2,24.
11 To 17,11.
12 Ibid. 19.
COMENTÁRIO AO EVANGELHO DE SÃO JOÃO 387

como hóstia santa em odor de suavidade. Santificava-se ou, conforme


a lei, era chamado santo tudo que se oferecia sobre o altar. Por
conseguinte o Cristo deu seu próprio corpo pela vida de todos, e fez,
por ele, habitar de novo a vida em nós, de um modo que explicarei
como puder. Desde que o Verbo vivificante de Deus habitou a carne,
transformou-a em seu próprio bem, isto é, em vida, e, inteiramente
unido a ela em inefável união, tornou-a vivificante assim como ele
o:; é por natureza. O corpo de Cristo vivifica os que dele partici­
pam, pois expele a morte quando está nos mortais, já que em si
tem a causa extintora da corrupção.
" Pode ser que alguém, considerando atentamente a ressurreição
dós mortos conclua que todos aqueles que não tiveram fé em Cristo
riem participaram dele, não irão retornar à vida no momento da
ressurreição. E então, como se pode afirmar que todas as criaturas
derrubadas pela morte retornarão à vida? Sim, reafirmamos, a hu­
manidade toda reviverá, os mortes serão reerguidos. Assim diz a
profecia. Trata-se de um mistério que atinge toda a humanidade por
causa da ressurreição de Cristo; nossa fé ensina que nele, primeira­
mente, foi destruída a corrupção de nossa natureza. Ressurgimos
todos à semelhança dele, que por nós ressuscitou, e que a todos
hos contém em si, sendo homem. Assim como no primeiro Adão
nos tornamos prisioneiros da morte, igualmente naquele que é
por nós o primogênito dentre os mortos, reviveremos todos: “os
que praticaram o bem para a ressurreição da vida, e os que pratica­
ram o mal para a ressurreição da condenação”, conforme está es­
crito 13. Receber de novo a vida somente para ser castigado e para
sofrer, é pior que permanecer na morte. Por conseguinte, a vida de
Cristo, santa, feliz e eternamente bem-aventurada, é a vida por ex­
celência; além disso, o sábio João a reconhece como vida verdadeira
ao dizer: “quem crê no Filho tem a vida eterna, quem porém não
crê no Filho não verá a vida, a ira de Deus permanecerá sobre
ele” 14. Reparai bem, reparai como ele diz que quem se abandona à
incredulidade não verá a vida, embora afirmando que todas as
criaturas esperam ressuscitar.
O Salvador é chamado, de pleno direito, a vida preparada para 569
os santos, vida gloriosa e santa, vida que há de ser seguida por
todos os que participam de sua carne vivificante. Eis algo de que
ninguém duvida.
A seguir, considerando que o Salvador muitas vezes já se de­
nominou pão, vejamos se o que foi prenunciado por esta pala­
vra pode contribuir para nossa instrução. Recordemos o que di­
zem as Sagradas Escrituras, através das figuras do pão. No livro
des Números está escrito: “E o Senhor falou a Moisés dizendo:

13 Jo 5-29; Mt 25,46.
14 Jo 3,36.
388 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA
Fala aos filhos de Israel e dize-lhes: — Quando entrardes na;
terra para a qual vos conduzo, e comerdes o pão dessa terra, sepa*
rareis uma porção do Senhor, as primícias de vossa massa. O pão
segregado será vossa oferta, oferta pela eira; oferecê-lo-eis como;
primícias de vossa massa e dá-lo-eis ao Senhor como oferta por vossa
descendência” 15. Em enigma, pois, como que sob a espessa veste da
letra, estava a figura; de algum modo porém previa o verdadeiro pão
descido do céu, o Cristo, que dá a vida ao mundo. Repara que, feito
homem, nosso semelhante, ele é como que as primícias de nossa massa
que foi segregada, e oferecida a Deus Pai. Tendo-se tornado primogênito
dentre os mortos, tornou-se também o primeiro na ressurreição uni­
versal e, assim subiu aos céus. Foi assumido do meio de nós,
da descendência de Abraão, como diz Paulo, foi oferecido por todos
e para todos, a fim de vivificar a todos 16, como primícias oferecidas
a Deus Pai.
570. Ele, a luz verdadeira, concedeu esta mesma graça a seus dis-r
cípulos dizendo: “vós sois a luz do mundo” 17. Sendo o pão
que tudo vivifica e a tudo sustenta no ser, recorreu de novo, ao
simbolismo, e, na sombra da lei, figurou pelos doze pães o santo
colégio dos apóstolos. Assim fala no Levítico: “O Senhor falou a
Moisés dizendo: ‘Ordena que os filhos de Israel tragam para a luz
óleo puro de olivas espremidas a fim de que a lâmpada arda con­
tinuamente diante do véu no tabernáculo do testemunho’. E. ajun­
tou então: ‘Apanharás farinha fina e farás com ela doze pães; cada
pão será de dois décimos. Tu os colocarás em duas pilhas, seis
pães sobre a mesa pura diante do Senhor. Sobre eles colocarás in­
censo puro e sal, e estes pães serão a memória do que se ofereceu ap
Senhor’ ” 18. A lâmpada ardente no tabernáculo santo diante do véu;
já o dissemos que é são João, que era alimentado com óleo purís­
simo, isto é, com o brilho do Espírito.

DISCURSO PRONUNCIADO N O CONCÍLIO DE ÉFESO *


(P.L. 77, 1029-1040)

571 Grande honra, para mim, elevar a voz ante tão ilustre assem­
bléia de veneráveis Padres. Meu ânimo, profundamente penalizado
pela ímpia blasfêmia de Nestório, suspirava pela celebração deste
Concílio, cheio de harmonia e de encantos, concílio angélico, celes-

15 Nm 15,18-21.
i<s Hb 2,16.
17 M t 5,14.
1* Lv 24,1.7.
* Scbre a autenticidade desta famosa homilia msriana ver Altaner, P atro lo g ia ,
Edições Paulinas, p. 290.
DISCURSO PRONUNCIADO NO CONCÍLIO DE ÉFESO 389

tial. Nele vejo congregados os mestres da piedade, os que são co­


lunas e corifeus de nossa fé, seus baluartes inexpugnáveis, seus
portos bonançosos, seus prudentes e fiéis dispensadores, seus sá­
bios arquitetos, os que assinalam com sua vida de evangelização na
terra os roteiros do céu, os êmulos dos profetas, os sucessores dos
apóstolos, os pontífices das santas igrejas, vingadores da blasfê­
mia criminosa, da perseguição que padecemos e dos ultrajes infligidos
á nosso prestígio. Quanta alegria vendo-vos sentados no formo­
so e divino trono do sacerdócio, derramando doçura e suavidade,
pregoeiros espirituais do saber divino, que vindes das quatro par-
tés do mundo, sem que as inclemências do ar, as tormentas do
inar, o indómito furor das ondas, os ventos ou as tempestades te­
nham sido suficientes para vos impedir de vir aqui e associar-vos
ao entusiasmo des fiéis. Muito pelo contrário, pressurosos, nas asas
de vossos desejos (direi melhor: levados pelo temor de Deus e arma­
dos còm a cruz), viestes para mostrar-vos sábios defensores da Mãe
de Deus! Confortados com vossas santas orações, demos a esta ci­
dade os parabéns por tanta felicidade!
. Salve, cidade de Éfeso, mais formosa que os mares, porque em
vez dos portos da terra, marcaram encontro em ti os que são portos
do céu! Salve, honra desta região asiática semeada por todos os lados
de templos, como preciosas jóias, e consagrada, no presente, pelos
benditos pés de muitos santos Padres e Patriarcas! Com sua vinda,
cumularam-te de toda bênção, porque onde eles se congregam, au­
menta e multiplica-se a santidade: religiosos fiéis, anjos da terra, afu­
gentam eles, com sua presença, todo satânico peder e toda afeição
pagã, tanto a dos porririanos como a dos sabelianos, apolinaristas,
fotinianos. . . Eles, repetimos, confundem toda heresia e são glóçias
de nossa fé ortodoxa. ?
Salve, bem-aventurado João, apóstolo e evangelista, glória da
virgindade, mestre da honestidade, exterminador de toda fraude dia­
bólica, destruidor do templo de Diana, porto e defesa de Éfeso,
conforto dos pobres, refúgio dos aflitos, refrigério e descanso da
cidade e de seus moradores. Salve, vaso puríssimo da temperança!
A ti virgem, confiou, na cruz, nosso Senhor Jesus Cristo a Mãe de
Deus, sempre virgem!
Salve, ó Maria, Mãe de Deus, virgem e mãe, estrela e vaso de 572
eleição! Salve, Maria, virgem, mãe e serva: virgem, na verdade,
por virtude daquele que nasceu de ti; mãe por virtude daquele que
cobriste com panos e nutriste em teu seio; serva, por aquele que
temou de servo a forma! Como Rei, quis entrar em tua cidade,
em teu seio, e saiu quando lhe aprouve, cerrando para sempre sua
porta, porque concebeste sem concurso de varão, e foi divino teu
parto. Salve, Maria, templo onde mora Deus, templo santo, como o
chama o profeta Davi, quando diz: “O teu templo é santo e admi­
390 SÃO CIRILO DE ALEXAN5DBM|
rável em sua justiça” Salve, Maria, criatura mais preciosa da cria-i
ção; salve, Maria, puríssima pomba; salve, Maria, lâmpada ineji|
tinguível; salve, porque de ti nasceu o sol da Justiça! Salve, Mariâ§
morada da infinitude, que encerraste em teu seio o* Deus infinit^
o Verbo unigénito, produzindo sem arado e sem semente a espiga
incorruptível! Salve, Maria, mãe de Deus, aclamada pelos profeta#
bendita' pelos pastores, quando com os anjos cantaram o subliine
hino de Belém: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos hei
mens de boa vontade” 2. Salve, Maria, Mãe de Deus, alegria dos
anjos, júbilo dos arcanjos que te glorificam no céu! Salve, Mariay
Mãe de Deus: por ti adoraram a Cristo os Magos guiados pela esf
trela do Oriente; salve, Maria, Mãe de Deus, honra dos apóstolos!;
Salve, Maria, Mãe de Deus, por quem João Batista, ainda no seio
de sua mãe exultou de alegria, adorando como luzeiro a perene luz!
Salve, Maria, Mãe de Deus, que trouxeste ao mundo graça inefável,
da qual diz são Paulo: “apareceu a todos os homens a graça dç
Deus salvador” 3. Salve, Maria, Mãe de Deus, que fizeste brilhar
no mundo aquele que é luz verdadeira, a nosso Senhor Jesus CristÓ;
que diz em seu Evangelho: “eu sou a luz do mundo! ” 4 Deus té
salve, Mãe de Deus, que alumiaste aos que estavam em trevas
e sombras de morte; porque o povo que jazia nas trevas viu u S I
grande lu z 5, uma luz não outra senão Jesus Cristo nosso Senhor'
luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este m u h d Ä
Sálve, Maria, Mãe de Deus, por quem se apregoà nos e v a ri^
lhos: “bendito o que vem em nome do Senhor!” 7, por ^uétó
se encheram de igrejas nossas cidades, campos e vilas ortôdií-
xas! Salve, Maria, Mãe de Deus, por quem veio aò mundo ó
vencedor da morte e o destruidor do inferno! Salve, Maria, Mãé
de Deus, por quem veio ao mundo o autor da criação e o restau­
rador das criaturas, o Rei dos céus! Salve, Maria, Mãe de Deus;
por quem floresceu e refulgiu o brilho da ressurreição! Salve, Maria,
Mãe de Deus, por quem luziu o sublime batismo de santidade no
Jordão! Salve, Maria,. Mãè de Deus, por quem o Jordão e o Batista
foram santificados e o demônio foi destronado! Salve, Maria, Mãe
de Deus, por quem é salvo todo espírito fiel! Salve, Maria, Mãe de
Deus, — pois acalmaste e serenaste os mares para que pudes­
sem atravessá-los, com bonança, nossos servos e cooperadores, con­
duzindo-os, com alegria e júbilo espiritual, a esta assembléia de
entusiásticos defensores de tua honra!
ífe ü R S O PRONUNCIADO NO CONCÍLIO DE ÉFESO 391
.. A vinda dos santos Padres inundou de paz esta terra, pertur- 573
fvbada pelos ladrões (da heresia), como estava escrito: “Como são
^belos os pés dos que anunciam a paz. . . ” 8 Que paz? A paz que
^é :nosso Senhor jesus Cristo, anunciador da paz, que diz nos evan-
fgélhos: “Minha paz vos dou” 9. Que paz? A paz que o blasfemo
i.:;NeStório perturbara, negando que de Maria Virgem nasceu 0 Verbo
fé-Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. Ele não quis reconhe­
cer a inviolável virgindade de Maria, nem crer na palavra do ar­
canjo: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”. Subomador de
i incautos, para despojar da divindade o unigénito Filho de Deus, inven­
tou essa blasfêmia, essa ruína das almas.
Já vos falei longamente de suas más artes, ao expor-vos a pas-
ísàgem de Jeremias: “a perdiz chocou os ovos que não pôs” 10.
É agora que esse homem funesto e blasfemo, enfatuado com a pro­
teção dos poderosos, crendo-nos aterrorizados, assiste a nosso triun­
fo, digamos com gemidos e lágrimas de gratidão a Deus: “mais
- y^é esperar no Senhor que nos príncipes” 11. Se o execrável here-
. siarca, valendo-se de toda classe de armas, tratou de seduzir os
poderosos e as próprias pessoas reais, repitamos nós agora com o
Rei profeta: “eles vêm em carros e em cavalos, porém nós nos
apoiamos no nome do Senhor nosso Deus” 12. Se tivesse eu algo a
dizer aos poderosos do mundo, ou ao piedosíssimo imperador, não
iúè envergonharia nem tampouco temeria, porque me conforta sem­
pre o profeta Davi, com suas palavras: “falarei diante de reis, e
não serei cònfúndido ” 13.
Quem jamais ouviu coisas tão horrendas e tão terríveis? Cris- 574
to, Deus Verbo, anunciado pelos profetas e pregado pelos apóstolos,
transformado aqui em puro homem! Chamar a 'Mãe de Deus,. Mãe
tão-somente de um homem! Não me faleis já da audácia daqiieles
ingratos e malvados judeus que mataram a Jesus Cristo. 'Quem não
vê ser mais criminosa a blasfêmia de quem os escusa dizendo: vós
crucificastes apenas um homem? O erro dos gentios, aqueles ímpios
e nefandos sacrifícios que eram oferecidos às próprias pedras; os abo­
mináveis intentos e a horrível heresia .de Afio; a 'funestíssima blas­
fêmia dos mániqueus; as detestáveis;maquinações de Sabélio, Porfírio,
a do maligno Fotino, cuja blasfêmia reproduz ousadam ente... que
digo? a todos supera em maldade, chegado ao cúmulo da soberba,
para fazer suas estas palavras: “destruirei meus .celeiros se edificarei
Outros maiores. Ao que lhe respondeu o Senhor: Insensato! Esta mes­
ma noite meus anjos hão de exigir de ti a entrega de tua alma; de

« Is 52,7.
* Jo 1427.
10 Jr 17,11.
11 SI 117,9.
12 SI 19,8.
13 SI 118,46.
392 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA

quem será tudo que armazenaste?” 14 Tua queda, <5 Nestório, foi
maior que tua soberba. Tu, perverso, nascido de estirpe impura, fo£
te precipitado no abismo mais profundo da blasfêmia, desprezando i©
grande Apóstolo, vaso de eleição, voz da Igreja, incenso evangélico e
celeste, fonte odorífica; aquele que, levando cartas de perseguição,
foi derrubado pela luz do céu no caminho de Damasco, aprendendo'
a escrevê-las tão formosas, confirmando ccm elas o mundo na fé da
Trindade consubstanciai, de um só Senhor, de um só batismo; de
um só Pai, um só Filho, um só Espírito Santo; da substância inser
parável e simplicíssima; da divindade incompreensível do Senhor
Deus de Deus, Luz de Luz, Esplendor da Glória, que nasceu de
Maria Virgem, conforme o anúncio do Arcanjo: “Ave, cheia de graça,
o Senhor é contigo, o Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude
do Altíssimo te cobrirá com sua sombra, e por isso o santo que dé
ti nascer será chamado Filho de Deus vivo” 15. Não somente o sabe?
mos pelo arcanjo Gabriel; também Davi, no vaticínio que cant$
diariamente a Igreja, nos diz: “O Senhor me disse: és meu filho;
no dia de hoje te gerei” 16. Já o sábio Isaías, filho do profeta Amós,
profeta nascido de profeta, o predissera: “Eis que a virgem conceberá,
e dará à luz um filho e seu nome será Emanuel, que significa DeuS
conosco” 17. .,
Se não queres crer nos profetas, nos apóstolos, no arcanjo
Gabriel, imita ao menos teus companheiros de petulância, os de­
mônios, que gritaram horrorizados: “Que temos de comum contigo,
Jesus, filho de Deus? Antes do tempo vieste a atormentar-nos?” 18
Se, então, o próprio demônio disse: “ antes do tem po”, eis que agora,
por fim, chegou em t i . . .
575 Goisa tremenda e assombrosa! Os demônios, com seu pai1;
o diabo, chamam Filho de Deus o que nasceu de Maria Virgem;.
Nestório reduz a um mero homem o Filho de Deus; e, com a com
versão que nesciamente imagina, inventou perverter e enganar o
piedosíssimo imperador, servo e amigo da fé ortodoxa, e> junta?
mente com ele, as esclarecidas e santas rainhas. . . Foram, porém;
estéreis seus esforços. Repartiú acs homens sedentos de ouro o
dinheiro dos pobres, crendo poder assim impugnar a verdade, mas
sua própria ambição de lucro nefandó o fez naufragar miseravelmente»
Naufragou no porto, por não jogar as âncoras da fé. Submerso em
males, tornou-se teatro de tragédia, para o mundo inteiro. Contava,
sim, persuadir os cultores da piedade, por não entender em sua
mente entenebrecida, a doutrina dos pais, apóstolos, evangelistas e
arcanjos; tentava estabelecer na terra uma religião ímpia e malfazeja.

M Lc 12,18.
15 Lc 1,35.
16 SI 2,7.
17 M t 1,23.
1« 2Cor 10,4.
plÜSCURSO PRONUNCIADO NO CONCÍLIO DE ÉFESO 393

, Mas não nos colheu de surpresa, nem desarmados contra seu intento
I ímpio e blasfemo. Não estava nossa esperança vinculada às forças
| militares, nem ao poder e brilho do ouro, e assim c combatemos,
cpcndo-lhe as santas Escrituras, divinamente inspiradas. Nessas armas
f não são carnais cu terrenas, mas espirituais e celestes, como predisse
o apóstolo são Paulo.
: . Ninguém, porém, ao ouvir-nos dizer estas palavras, julgue que 576
: nos alegramos com sua desgraça! Ao contrário: quando caíste ao
fundo de tua blasfêmia, estendemos-te a mão através de cartas; e se
; insististe em contumácia, foi desprezando nossas advertências. Tes­
temunha disso é Celestino, santíssimo arcebispo de todo o orbe,
Pai e Patriarca da grande cidade de Roma, o qual diretamente te
escreveu, exertando-te a que desistisses de tua inconcebível blas­
fêmia. Desobediente para com ele, tu te vangloriaste e te envaide­
ceste na insensatez. Convertido em inovador do mundo, perturbaste
a .paz das quatro partes da terra; e por tua causa foi necessário que
todos os santos se congregassem aqui, à custa de mil fadigas.
Pór isso Deus te destituirá de teu sacerdócio, te privará da sabe­
doria dos Padres, e serás afastado da cidade imperial e do trono
pontifical, que injustamente obtiveste.
“Por isso, os justos verão e temerão, rir-se-ão de ti e dirão:
eis um homem que não tomou a Deus como seu defensor, mas
preferiu esperar nas riquezas, e se ensoberbeceu em sua vaidade” 19.
Todos, porém, os que formos seguidores da verdade do Evangelho,
permaneceremos, como disse o profeta, “como a oliveira fértil na ca­
sa de Deus” 20, glorificando a Deus Pai todo-poderoso, a seu Filho
unigénito, que nasceu de Maria, e áo vivificante Espírito Santo,
que se comunica a todos a vida; submissos aos fidelíssimos imperado­
res, honrando as rainhas, discretas e santas virgens, e pedindo que
a rainha desposada tenha sucessão e persevere em sua piedade para
com Deus e em seu amor à fé ortodoxa de Cristo Jesus, nosso Se­
nhor, a quem se deve glória pelos séculos dos séculos. Amém.

w SI 51,8.
20 Ibid., 10.
JOÃO CASSIANO
(t C. 360-435)

Não se tem certeza sobre o local de seu nascimento. Recebeu formação religiosà
num mosteiro de Belém e viveu vários anos entre os monges do Egito. Ordenado
diácono por são Joio Crisóstomo, em Constantinopla, e presbítero pelo papa Ihp^
cêncio, em Roma. Fundou em Marselha, por volta do ano de 415, dois mosteiros^
um masculino e outro feminino. Seus escritos versam sobre espiritualidade monástica,
tendo grandemente contribuído para difundi-la no Ocidente. São Bento os recomendou
expressamente na Regra. Verdade é que cm alguns se nota o erro semipelagiano quan­
to à relação entre a graça e o livre-arbítrio: assim, na XIII Conferência.
Obras: Instituições monásticas; Conferências dos Padres (contendo entrevistas
com cs mais célebres anacoretas do Egito); livros sobre a encarnação, contra o nesv
tcriankmo.
Na conferência que apresentamos a seguir, como aliás em outras obras de Cassianó;
nota-se a influência de Evágrio Pôntico: cf. S. Marsili, Ciovanni Cassiano ed Evagrio\
Pontico, Col. “Studia anselmina”, Roma, 1936.

I CONFERÊNCIA D O ABADE M OISÉS (Cap. 1-6)


(P.L. 49, 482-488) ^

O objetivo e o fim da vida do monge

577 O deserto de Scítia foi habitado pelos mais renomados entre


os Pais do estado monástico, foi um lugar de todas as perfeições;
Mas em meio a tal floração de santidade, distinguia-se o abade
Moisés pelo suave odor de sua ascese e contemplação.
Ansioso por me fundamentar em suas lições, fui encontrá-lo,
juntamente ccm o santo abade Germano. Nós dois, inseparáveis
desde o tempo do aprendizado na milícia espiritual, tínhamos vivi­
do em comum, tanto entre os cenobitas como no deserte; e nos acos­
tumáramos a dizer que éramos um só espírito e uma só alma em
deis corpos, tão grande nossa amizade. Pedimos, pois, em lágri­
mas, ao venerável abade, uma palavra de edificação. Conhecíamos
sua inflexibilidade, sabíamos que não concordava em abrir as portas
da perfeição a não ser aos que a desejassem com toda fé e a buscas­
sem de coração contrito. Por que falar do assunto à gente que não
a quisesse ou só a desejasse mornamente? Trata-se de segredos que
só devem conhecer as pessoas realmente animadas da sede de per­
feição. Manifestá-los a indignes ou enfadados pareceria pura osten-
t" PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE MOISÉS 395

tação ou até traição. Cansado enfim com nossas súplicas, ele tomou
! a palavra.
Toda arte e disciplina, disse, tem seu escopo ou objetivo, e
■também sua meta ou fim, em vista do qual a pessoa que a exerce
aceita alegremente uma série de trabalhos, riscos e prejuízos.
. . Veja-se o agricultor: enfrentando sol, chuva e geada, aplica-se
- infatigavelmente em arar a terra, sujeitando a gleba indócil a seii
instrumento, sempre fiel ao objetivo que te'm em mente e que é
extirpar espinhos e ervas daninhas, tornar a terra fina e móvel co­
mo areia. Ele sabe que de outra sorte não atingiria sua meta, a de
uma colheita abundante, que lhe permita viver ao abrigo da neces­
sidade e aumentar seus haveres. A gente o vê esvaziar os celeiros
cheios de sementes para depositá-las com ingente labor nos sulcos
do solo: a visão da futura messe o torna insensível à perda presente.
Também os que fazem comércio. Não temem incorrer nos aza­
res do mar e de outros perigos. Com as asas da esperança voam
para o lucro, que é a sua meta.
Igualmente ainda os que seguem a carreira das armas. Arden-
: tés de ambição, o longínquo perfil das honrarias e do poder os faz
: insensíveis aos perigos e às mortes nas suas empresas, e nem
i: incômodos, nem guerras logram abatê-los, em razão do que espe­
ram obter no futuro.
Não se passa de outra maneira em nòssa profissão. Ela também
tem seu objetivo e Sua meta, em vista da qual sofremos todos cs
làbóres que ocorrem, sem nos deixarmos abater, ou até com alegria;
os jejuns e a fome não nos fatigam; achamos prazer nas longas vi­
gílias; a leitura assídua e a meditação das Escrituras não nos abor­
recem; o trabalho incessante, a nudez, a privação de tudo, o próprio
horror desta infinita solidão, nada disso nos atemoriza.
Foi esta mesma finalidade, sem dúvida, que vos levou a ter 578
em menor conta o amor de vossos pais, o solo pátrio, as delícias
do mundo, para atravessardes tantas terras e virdes buscar a com­
panhia de gente como nós, rude e ignorante, perdida entre os hori­
zontes desolados deste deserto. Qual é, dizei-me, o objetivo e qual
a meta que vos levaram a suportar de bom grado tantas provações?
Ora, persistindo ele em indagar de nosso sentimento, acaba­
mos por responder-lhe que era em vista do reino dos céus que con­
sentíramos em suportar tudo isso.
Muito bem, replicou ele; foi argutamente que respondestes no
que diz respeito à meta. Mas o objetivo mais imediato que, visado
sempre, vos permitirá atingí-la, qual será ele? Pois é isso que se
precisa conhecer antes de tudo!
Nós confessamos com simplicidade nossa ignorância.
Prosseguiu então: — Toda arte, como já disse, e toda disciplina
requerem primeiramente um escopo, isto é, uma intenção da alma,
396 JOÃO CASSIANO

uma aplicação indefectível da mente, e se não houver isso não se


chegará à finalidade, desejada.
A finalidade do agricultor é viver tranqüilo no meio da far­
tura, mediante as opulentas colheitas. E per isso o vemos apegado
a seu objetivo imediato, que é extirpar do campo os espinhos e ervas
inúteis, certo de que não chegaria a seu repouso desejado se não
possuísse de certo modo antecipadamente, em germe, em seu labor é
em suas esperanças, aquilo a que aspira gozar um dia realmente.
O comerciante também não se cansa de ajuntar mercadorias como
meio de aumentar seus lucros e fazer fortuna, sabendo que em
vão desejaria o lucro se não tomasse o caminho que leva a ele.
Os que ambicionam as honrarias do mundo propõem-se igual-
mente empregos encarreiras correspondentes às dignidades que al­
mejam, a fim de atingi-las per meios idôneos.
579 Assim também nosso caminho nos conduz a um último termo,
que é o reino de Deus. Mas qual é esse caminho?
Sobre esta questão importa refletir, pois se não chegarmos a
respondê-la nossos esforços estarão sendo inúteis. O vigor que não
segue uma rota segura estará caminhando sem avançar.
Vendo-nos admirados diante dessas palavras, prosseguiu o an­
cião: — O fim de nossà profissão, como já dissemos* consiste no
reino de Deus ou dos céus, sem dúvida, mas seu objetivo próximo
é a pureza de coração, sem a qual seria impossível chegar-se à meta.
Detendo, pois, o olhar nesse objetivo, para nos orientarmos, cotr
reremos de modo seguro, como numa direção nitidamente esta­
belecida. Se pelo pensamento nos desviarmos um pouco, saberemos
logo voltar a ela e corrigir assim, como por uma regra, nosso erro.
Essa regra, fazendo convergir os esforços para um ponto único,
nos advertirá sempre que a mente se desviar do seu rumo.
Assim também os arqueiros, quando querem ostentar sua arte
na presença do rei. Os prêmios estão pintados em pequenos escudos
e cada um lança para lá seus dardos ou flechas, certos de que se não
visarem os objetivos não obterão os prêmios.
Ora, suponhamos que se lhes retire da vista o objetivo: por
mais que atirem fora da direção, não se aperceberão disto, pois lhes
faltará o ponto de reparo. Lançarão inutilmente ao ar suas fle­
chas sem perceber que erraram e sem poder retificar o erro.
580 Apliquemos isse à nossa profissão. Seu fim, diz o Apóstolo,
é a vida etema: “ tendes por fruto a santidade e por fim a vida
eterna” L Seu escopo é a pureza de coração, chamada justamente
por ele a santidade, sem a qual não se chega ao fim. Seria como
se dissesse: vosso escopo é a pureza de coração e vosso fim a vida
eterna.

1 Rm 6,22.
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE MOISÉS 397

Falando outra vez desse escopo, o Apóstolo usa esta mesma


palavra de modo significativo: “esquecendo o que está atrás de mim,
avanço e corro para meu escopo, em vista da recompensa à qual o
Senhor do alto me chamou” 2. O grego é ainda mais claro, tra­
zendo: “Katá skopòn diôko”, “corro segundo meu destino”. Como se
dissesse: “é perseguindo esse esccpo, o de esquecer o que está atrás,
os vícios do homem velho, que me esforço por atingir a meta,
a celeste recompensa”.
Abracemos, pois, energicamente o que possa encaminhar-nos
para o objetivo da pureza de coração. Evitemos, como pernicioso e
malfazejo, tudo que daí nos apartasse. Por causa da pureza tudo fa­
zemos e suportamos, preferindo-a aos pais, à pátria, às honras, às ri­
quezas, às delícias do mundo e a qualquer prazer.
Se fixamos tal objetivo, sempre nossos atos e pensamentos se $81
dirigirão para sua conquista; do contrário, se desgastariam em pura
. perda, e até descambariam para uma direção oposta. Porque neces­
sariamente a alma se torne volúvel e se move a todo instante ao
: sabor das influências que a atravessam, se não se fixa preferencial-
mente numa direção.
Daí acontecer com alguns, que tendo desprezado considerá­
veis fortunas, enormes somas de prata e ouro, magníficas posses, se
deixaram depois prender por um escalpelo, um lápis, uma agulha,
ou pena de escrever. St tivessem visado sempre à pureza de coração,
não cairiam por bagatelas, depois de preferirem despojar-se de bens
preciosos antes que se sujeitar a eles.
H á os que são tão ciumentos de um livro a ponto de não su­
portarem que outros até o vejam cu toquem. Torna-se-lhe ocasião
de impaciência e de morte o que serviria para aumentar-lhes a
paciência e a caridade. Após distribuirem suas riquezas por"^amor
de Cristo, retêm o antigo afeto por coisas mínimas, prontos a
defendê-las até a cólera. Não tendo a caridade de que fala são
Paulo, sua vida se torna infrutuosa. O santo Apóstolo já previra
isso em espírito, quando disse: “Se distribuir todos os meus bens
em alimento aos pobres, e entregar meu corpo às chamas, não ten­
do caridade, nada disso me aproveita” 3. Por aí se vê que não se
chega imediatamente à perfeição pelo simples despojamento e pela
renúncia às honras, se não se acrescenta a caridade cujos compo­
nentes o Apóstolo descreve e que consiste na pureza de coração.
Sim, não conhecer a inveja, a empáfia, nem a ira, não agir por
frivolidade, não buscar o próprio interesse, não se alegrar com a in­
justiça, não pensar no mal, que outra coisa é tudo isso senão ofe­
recer continuamente a Deus um coração perfeito e puro, conserva­
do intacto a toda paixão?

2 h 3,13-14.
3 ICof 13,3.
SAO VICENTE DE LÉRINS
( t C. 450)

Depois de anos de vida mundana, refugiou-se no mosteiro gálico de Lérins. Três


anos após o Concílio de Éfeso, isto é, em 434, compunha o Commonitorium, ccrn p
escopo de “descobrir as fraudes e evitar as armadilhas dos hereges”, e onde veladà-
mente apresentava a doutrina agostiniana da predestinação como novidade contrária
à tradição. Apesar disso, e das idéias semipelagianas do Autor (anteriores à conde-
nação do semipelagianismo), proporcionados ele excelentes fórmulas sobre o princípio
da Tradição. 1

COM ONITORIO
(PX . 30, 639SS)

O critério da fé

582 Perguntando eu com toda atenção e diligência a numerosos


varões, eminentes em santidade e doutrina, que norma poderia achar,
segura, enquanto possível genérica e regular, para distinguir a ver?
dade da fé católica da falsidade da heresia, eis a resposta constante
de todos eles: quem quiser descobrir as fraudes dos hereges nascen­
tes, evitar seus laços e permanecer sadio e íntegro na sadia fé, há de
resguardá-la, sob o auxílio divino, duplamente: primeiro, com a auto­
ridade da Lei divina, e segundo, com a tradição da Igreja Católica:
Ao chegar a este pcnto, talvez pergunte alguém: — Sendo per­
feito, como é, o cânon das Escrituras, e sufidentíssimo por si só
para todos os casos, que necessidade há de se acrescentar a autorida­
de da interpretação eclesiástica?
A razão é que, devido à sublimidade da Sagrada Escritura, nem
todos a entendem no mesmo sentido, mas cada qual interpreta a sua
maneira as mesmas sentenças, de modo a se poder dizer que há
tantas opiniões quantos intérpretes. De uma maneira a expõe Nova-
ciano, diversamente Sabélio, Bonato, Ário, Eunômio, Macedônio; de
outra forma Fotino, Apclinário, Prisciliano; de outra ainda Joviniano,
Pelágio, Celéstio, ou Nestório.
Portanto, é necessário que em meio a tais encruzilhadas do
erro, seja o sentido católico e eclesiástico o que assinale a linha
diretriz na interpretação da dcütrina dos profetas e apóstolos. E na
COMONITÓRIO 399

própria Igreja Católica deve-se procurar a todo custo que nos ate­
nhamos ao que em toda parte, sempre e por todos se creu pois isto
é própria e verdadeiramente católico, como o diz a índole mesma do
vocábulo, que abarca a globalidade das coisas.
Ora, cbte-lo-emos se seguirmos a universalidade, a antigüida-
de, o consentimento. Pois bem, seguiremos a universalidade se pro­
fessarmos como única fé a que é professada em todo o orbe da
terra, pela Igreja inteira; a antigüidade, se não nos afastarmos do
sentir manifesto de nossos santos Padres e antepassados; o consen­
timento, enfim, se na mesma antigüidade recorrermos às sentenças
e resoluções de todos ou quase todos os sacerdotes e mestres.
Que fará um cristão católico, ao ver que uma pequenina parte 583
da Igreja se desgarra da comunhão universal da fé? Que há de fazer
senão preferir a saúde do corpo à gangrena de um membro cor­
rompido?
E se o contágio da novidade se esforça por devastar não já
uma partezinha, mas a universal Igreja? Neste caso, todo seu afã
será aderir à antigüidade, que não pode estar sujeita aos enganos de
uma novidade.
E se na mesma antigüidade se descobre o erro de duas ou três
pessoas, ou talvez de alguma cidade ou província? Então nos esfor­
çaremos a todo custo para cpor à temeridade ou ignorância de uns
poucos, os decretos, se houver, de algum concílio universal, celebrado
por todos na antigüidade.
E se, enfim, ao surgir uma questão, não tivermos nenhum
destes auxílios ao alcance? Então nos desdobraremos para investi­
gar e consultar as sentenças des maiores, comparando-as entre si,
mas só as sentenças dos que, embora vivendo em lugares e tem­
pos diversos, tenham perseverado na fé e comunhão da mesma
Igreja Católica, tenham sido Considerados mestres dignos de crédito*
e o que eles, não um ou dois somente, mas todos, em consenti­
mento unânime, abertamente, repetidamente, persistèntemente, tive­
rem sustentado, escrito, ensinado; isso é também o que se há de
crer, sem dúvida alguma.
SÃO LEÃO MAGNO
( t 461)

Ê o papa mais eminente dos primeiros séculos. Em 440, quando foi eleito ao
supremo pontificado, pesadas dificuldades ameaçavam a Igreja e o Império romano.
No Oriente, grassava a heresia monofisita; no Ocidente, os povos bárbaros ameaçavam
o Império. Homem à altura das exigências do tempo, consolidou o primado pontifí:
d o e deu nitidez aos enundados ortodoxos da fé. Condenou o pseudo-sínodo armado
pelos moncfisitas em Éfeso (449), trchando-o de “latrocínio”. Em Calcedôniaj no
famoso Concílio Ecumênico celebrado em 451, sua Carta ao patriarca Flaviano, sobrè
as duas naturezas de Cristo, foi aclamada pelos seiscentos bispos presentes:, “Pedro
falou por boca de Leão”. Em 452, em Mântua, conseguiu desviar de Roma a Átila',
r d dos hunos, e em 455 obteve de Genserico certa moderação rio saque da tídadè. ;
Deixou-nos Certas e Sermões, sendo que estes são obras-primas dá antiga teologia
e eloqüênda cristã.
Edições dos Sermões: S.C. 22, 49, 74.
Em português: col. “Fontes da Catequese” (3 vols.).

SERMÃO N* 23: NATAL DO SENHOR


(P.L. 54, 199ss)

584 Já muitas vezes, caríssimos, ouvistes falar e fostes instruídos


a respeito do mistério da solenidade de hoje; porém, assim como
a luz visível enche sempre de prazer os olhos sadios, também áòá
corações retos não cessa de causar regozijo a natividade do Senhor.
Jamais devemos deixá-la transcorrer em silêncio, embora não
possamos condignamente explaná-la, pois aquela palavra: “ a sua gera­
ção, quem a poderá explicar?” 1 se refere certamente não só ao
mistério pelo qual o Filho de Deus é coetemo com o Pair mas
ainda a este nascimento em que ao Verbo se fez carne” 12.
O Filho de Deus, que é Deus como seu Pai, que recebe do
Pai sua mesma natureza, Criador e Senhor de tudo, que está
presente em toda parte e transcende o universo inteiro, na se-
qüência dos. tempos que de sua providência dependem escolheu
para si este dia, a fim de, em prol da salvação do mundo, nele
nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando intacto o pu­
dor de sua mãe. A virgindade de Maria não foi violada no parto,
como não fora maculada na conceição, “a fim de que se cumprisse

1 Is 53,8.
2 Jo 1,14.
SERMÃO NO NATAL DO SENHOR 401

— diz o evangelista — o que foi pronunciado pelo Senhor, através


do profeta Isaías: Eis que uma virgem conceberá no seu seio e dará
à luz um filho, ao qual chamarão Emanuel, que quer dizer Deus
conosco” 3,
O admirável parto da sagrada Virgem trouxe à luz uma pes- 585
soa que, em sua unicidade, era verdadeiramente humana e verda­
deiramente divina, já que as duas naturezas não conservaram suas
propriedades de modo tal que se pudessem distinguir como duas
pessoas: não foi apenas ao modo de um Habitador em seu habi-
táculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrário, uma
natureza como que se adicionou à outra. Embora duas naturezas, uma
a assumente e outra assumida, é tal a unidade que formam, que
um único e mesmo Filho poderá dizer-se, enquanto verdadeiro ho­
mem, menor que o P a i4 e enquanto verdadeiro Deus, igual ao P a i5.
Uma unidade dessas, caríssimos, entre Criador e criatura, o olhar
cego dos arianos não pode entender, os quais, não crendo que o uni­
génito de Deus possua a mesma glória e substância do Pai, afirma­
ram ser menor a divindade do Filho, argumentando com as pala­
vras (evangélicas) que dizem respeito à forma de servo6.
Ora, c próprio Filho de Deus, para mostrar como essa con­
dição de servo nele existente não pertence a uma pessoa estranha
e distinta, com ela mesma nos diz: “eu e o Pai somos uma só
coisa” 7.
Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tem­
pos, assumiu em vista da nessa redenção, é menor do que o Pai;
mas na natureza de Deus, na qual existia desde antes dos tempos,
é igual ao Pai. Em sua humildade humana, foi feito da mulher, foi
feito sob a L ei8, continuando a ser Deus, em sua majestade divina,
o Verbo divino, por quem foram feitas todas as coisas9. Portanto,
aquele que, em sua natureza de Deus, fez o homem, revestiu uma
forma de servo, fazendo-se homem; é o mesmo o que é Deus na
majestade desse revestir-se e homem na humildade da forma reves­
tida. Cada uma das naturezas conserva integralmente suas proprie­
dades: nem a de Deus modifica a de servo, nem a de servo diminui
a de Deus. O mistério, pois, da força unida à fraqueza, permite que
o Filho, em sua natureza humana, se diga menor do que o Pai,
embora em sua natureza divina lhe seja igual, pois a divindade da
Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Na Trin­
dade o eterno nada tem de temporal, nem existe dissemelhança na
divina natureza: lá a vontade não difere, a substância é a mesma, a

3 Mt 1 3 ( c f . I s 7 ,1 4 ) .
4 To 14,38.
5 To 10,30.
6 F1 2,6.
7 J o 1 0 ,3 0 .
8 G1 4 ,4 .
9 Jo 1,3.
402 SÃO LEÃO MAGNO

potência igual, e não são três Deuses, mas um só Deus, pois se há


unidade verdadeira e indissociável é essa, onde não pode existir
diversidade.
586 Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem
o verdadeiro Deus, todo no que é seu e todo no que é nosso.
“Nosso” aqui dizemos que o Criador criou em nós no início, e
depois assumiu para restaurar. O que, porém, o sedutor (o demônio)
introduziu e o homem, ludibriado, aceitou, isso não teve nem vestígio
no Salvador, pois comungando com nossas fraquezas não participou
des nossos delitos. Elevou o humano sem diminuir o divino, dado que
a exinanição em que o Invisível se nos mostrou visível foi descida de
compaixão, não deficiência de poder.
Assim, para sermos novamente chamados dos grilhões origi­
nais e dos erros mundanos à eterna bem-aventurança, aquele mesmo
a quem não podíamos subir desceu até nós. Se, realmente, muitos
eram os que amavam a verdade, a astúcia do demônio iludia-os
na incerteza de suas opiniões, e sua ignorância, ornada com o
falso nome de ciência, arrastava-os a sentenças as mais diversas
e opostas. A doutrina da antiga Lei não era bastante para afastar
essa ilusão que mantinha as inteligências no cativeiro do soberbo
demônio. Nem tampouco as exortações dos profetas lograriam rea­
lizar a restauração de nossa natureza. Era necessário que se acres­
centasse às instituições morais uma verdadeira redenção, neces­
sário que uma natureza corrompida desde os primórdios renas­
cesse em novo início. Devia ser oferecida pelos pecadores uma hós­
tia ao mesmo tempo participante de nossa estirpe e isenta de nossas
máculas, a fim de que o plano divino de remir o pecado do mundo
por meio da natividade e da paixão de Jesus Cristo atingisse as
gerações de todos os tempos e, longe de nos perturbar, antes nos
confortasse a variação des mistérios no decurso dos tempos, desde
que a fé, na qual hoje vivemos, não variou nas diversas épocas.
587 Cessem, por isso, as queixas dos que impiamente murmuram
contra a divina providência e censuram o retardo da natividade do
Senhor, como se não tivesse sido concedido aos tempos antigos o
que se realizou na última idade do mundo. A Encarnação do Verbo
podia conceder, já antes de se realizar, os mesmos benefícios que
outorga aos homens, depois de realizada; o ministério da salvação
humana nunca deixou de se operar. O que os apóstolos pregaram, os
profetas prenunciaram; não foi cumprido tardiamente aquilo a que
sempre se prestou fé. A sabedoria, porém, e a benignidade de
Deus, com essa demora da obra salutífera, nos fez mais capazes de
nossa vocação, pois o que fora prenunciado por tantos sinais, tan­
tas vezes e tantos mistérios, poderíamos reconhecer sem ambigüida-
de nestes dias do Evangelho. A natividade, mais sublime do que
todos os milagres e do que todo o entendimento, geraria em nós uma
fé tanto mais firme quanto mais antiga e amiudada tivesse sido
SERMÃO NO NATAL DO SENHOR 403

antes sua pregação. Não foi, pois, por deliberação nova ou por
comiseração tardia que Deus remediou a situação do homem, mas
desde a Criação do mundo instituíra uma e mesma causa de sal­
vação, para todos. A graça de Deus, que justifica os santos, foi au­
mentada com o nascimento de Cristo, não foi simplesmente principia­
da. E esse mistério da compaixão, esse mistério que hoje já enche o
mundo, fora tão potente em seus sinais prefigurativos que todos os
que nele creram, quando prometido, não conseguiram menos do que
os que o conheceram realizado.
São assim, caríssimos, tão grandes os testemunhos da bon- 588
dade divina para conosco que, para nos chamar à vida eterna, não
apenas nos ministrou as figuras, como aos antigos, mas a própria
Verdade nos apareceu, visível e corpórea. Não seja, portanto, com
alegria profana ou carnal que celebremos o dia da natividade do
Senhor. Celebrá-lo-emos dignamente se nos lembrarmos, cada um
de nós, de que Corpo somos membros e a que Cabeça estamos
unidos, cuidando que não se venha a inserir no sagrado edifício
uma peça discordante.
Considerai atentamente, caríssimos, sob a luz do Espírito San­
to, quem nos recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim,
como o Senhor se tornou carne nossa, nascendo, também nós nos
tornamos seu Corpo, renascendo. Somos membros de Cristo e tem­
plos do Espírito Santo e por isto o Apóstolo diz: “Glorificai e
trazei a Deus no vosso corpo” 101. Apresentando-nos o exemplo de
sua humildade e mansidão, o Senhor comunicá-nos aquela mesma
força com que nos remiu, conforme prometeu: “Vinde a mim,
vós todos, que trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos re­
confortarei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que
sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas
almas” 11.
Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada áspero,
da Verdade que nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja
glória queremos ser configurados. Que nos auxilie e nos condu­
za às suas promessas quem em sua grande misericórdia é pode­
roso para apagar nossos pecados e completar seus dons em nós,
Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos séculos dos
séculos. Assim seja.

10 iCor 6,20.
11 Mt 11,28s.
404 SÃO LEÃO m a g n o ;

SERMÃO N 9 40: SOBRE A QUARESMA


(P.L. 54, 267ss)

589 Caríssimos, embora com a aproximação da festividade pascal;


a própria recorrência do tempo legal nos indique o jejum , da Qua­
resma, deve'contudo ser feita a exortação de nosso sermão, a qual,
com o auxílio do Senhor, não há de ser inútil aos tíbios nem
enfadonha aos devotos. Pois se o espírito destes dias pede a intensi­
ficação de toda a nossa observância, ninguém haverá, entre vós;
que não se alegre de ser incitado às boas obras.
Sendo a nossa natureza mutável, enquanto sujeita à mortali­
dade, mesmo que em grau máximo se esforce na direção das vir­
tudes, sempre, no entanto, assim como pode ter para onde decair;
pode ter para onde subir. E esta é a justiça verdadeira dos perfei­
tos: que nunca se presumam perfeitos; pará que não aconteça dei­
xarem de tender para a frente no caminho ainda não concluído, e
assim caírem e desfalecerem lá onde depuseram o anseio de progre?
dir. Por conseguinte, caríssimos, se nenhum de nós é tão perfei­
to e santo que não pcssa ser mais perfeito e santo ainda, com
piedosa avidez corramos, sem distinção de classes ou de méritos,
todos juntos corramos, desde onde já chegamos até aos termos que
ainda não alcançamos; e acrescentemos algo à nossa medida habitual?
Pouco religioso se mostraria nos outros tempos quem não fosse achado
mais religioso nestes dias.
Eis porque tão oportunamente ressoou a nossos ouvidos a lei­
tura da pregação apostólica: “Eis agora o tempo favorável, eis agora
o tempo da salvação” 1. Que haverá mais favorável do que este
tempo? mais salutar do que estes dias, nos quais se declara guerra
aos vícios e se incrementa o progresso nas virtudes?
590 Sempre, realmente, ó alma cristã, te foi necessário vigiar con­
tra o inimigo de tua salvação, a fim de não te expores às insídias
do tentador; mas agora se exige uma cautela maior e uma pru­
dência mais alerta, pois o inimigo se enfurece com inveja mais
acerba. Porque agora lhe é tirado, por todo o murtdo, o poder
de seu antigo domínio, inúmeras presas lhe são arrebatadas ao
cativeiro. O atroz depredador é rejeitado pelos povos das mais
diversas nações e línguas, já não se encontrando uma categoria de
gente que não lute contra as leis do tirano, quando simultanea­
mente milhares e milhares de pessoas na terra inteira se prepa­
ram para ser regeneradas em Cristo. Ora, o nascimento da nova
criatura significa a expulsão do espírito maligno daqueles que ele
retinha em seu poder. Ruge, pois, o ímpio furor do inimigo espo­
liado, e busca novo lucro quando perde seu antigo direito. Incan-

12Cor 6,2.
SERMÃO SOBRE À QUARESMA 405

sável e vigilante, captura as ovelhas que por acaso encontra negli­


gentemente desviadas dos sagrados redis, para levá-las, pelos decli­
ves dos prazeres e escarpas da luxúria, às : estalagens da morte.
É assim que inflama iras, nutre ódios, aguça cobiças, ridiculariza a
continência, excita a gula. Quem não ousará ele tentar, se nãc de­
teve seu impulso de fraude diante do próprio Senhor nosso Jesus
Gristo?
Sim, conforme explicou a narrativa evangélica, tendo nosso
Deus e Salvador sentido a fome peculiar à fragilidade humana, após
um jejum de quarenta dias e quarenta noites, (para assim demons­
trar ser verdadeiro homem e excluir as ímpias opiniões de muitos
erres), o demônio, contente por encontrar nele um sinal da natureza
passível e mortal, e desejeso de explorar o poder que temia, disse-lhe:
“Se és o Filho de Deus manda que estas pedras se tornem pão”.
Pedia fazê-lo o Onipotente. Fácil seria que ao império do Cria­
dor se transformasse a criatura na espécie que ele ordenasse, qual­
quer que fosse; como quando quis, mudou a água em vinho, no
banquete de núpcias. Convinha, porém, mais ao plano da salvação
que a astúcia do soberbo inimigo fosse vencida não pelo poder
da divindade, mas pelo mistério da humildade. Repelido o demônio
e esmagados os ardis do tentador, aproximaram-se do Senhor os
anjos e o serviram. Ficou incontaminada a humanidade daquele
que era verdadeiro homem e verdadeiro Deus e no meio daquele santo
ministério se manifestava sua divindade.
Sejam, pois, confundidos os filhes do demônio, os discípulos
repletos da inspiração viperina, que enganam aos simples, negan­
do serem verdadeiras as duas naturezas de Cristo, ou porque despo­
jam da divindade o homem, ou do homem a divindade. Graças ao
duplo ensinamento que nos apresenta um mesmo fato, dois efrqs
se destroem: pela fome sentida no corpo se demonstra a autêntica na­
tureza humana e pelo serviço des anjos a divindade perfeita.
Já que “não só de pão vive o homem, mas de toda palavra de 591
Deus”, caríssimos, como aprendemos do magistério de nosso Re­
dentor, se é digno que o povo cristão, em sua grande abstinência,
deseje ser saciado pela palavra de Deus, não pelos alimentos cor­
porais, assumamos o jejum solene com pronta devoção e alegre fé!
Não deve ser celebrado com abstinência estéril, muitas vezes ditada
pela fraqueza do corpo ou pelo vício da avareza, mas em espírito
de larga benignidade, de modo que sejamos daqueles de quem disse
a própria Verdade: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de
justiça, porque serão saciados” 2.
Sejam assim as nossas delícias as obras de piedade, e saciemo-
-nos com o que alimenta para a eternidade. Alegremo-nos com
as refeições dos pobres, que nossas despesas tiverem proporcionado.

2 Mt 5,6.
406 SÃO LEÃO MAGNO. ^

Regozijemo-nos com as vestes levadas aos nús. Sintam nossa benevo­


lência humana as enfermidades dos que jazem no leito, as fraquezaç
dos dcentes, os sofrimentos dos exilados, o desamparo dos órfãos, os
lamentos das viúvas desoladas. Em auxílio de todos esses não há queíà
não possa contribuir com um pouco de benignidade. Para quem tem
alma grande não há esmola pequena e a medida da misericórdia não
dependç da capacidade dos bens de cada um. Jamais carece de mé­
rito a opulência da boa vontade, mesmo quando os bens são insigni­
ficantes. Mesmo sendo maiores os donativos dos ricos e menores ós
dos menos abastados, não difere o fruto das obras se o. afeto
é o mesmo.
Existem, porém, caríssimos, nesta oportunidade dé exércído
das virtudes, os lauréis de outras coroas, que serão alcançadas sém.
despesa ncs celeiros, sem diminuição nas riquezas: isso se dá se á
lascívia é repelida, se a embriaguez é evitada, se a concupiscência
carnal é dominada pelas normas da castidade, se os ódios passam a
amor, as inimizades se convertem em paz, se a tranquilidade extim
gue a ira, se a mansidão perdoa a injúria, se os costumes, enfim,
tanto dos senhores como dos servos são de tal forma temperados
que o poder daqueles .se torna mais manso e a disciplina destes mais
dedicada,
Com tal observância se obterá, caríssimos, a misericórdia ;de
Deus e, apagada a culpa dos pecados, religiosamente, se celebrará a
veneranda Páscoa.
Há muito observam tais costumes também ps piedosos im­
peradores do mundo romano, com o belo hábito de honrarem , a
Paixão e Ressurreição de Cristo, inclinando a altitude de seu poder
e suavizando a severidade de suas determinações, prescrevendo o
perdão para criminosos de muitas culpas, no intuito de imitarem
a divina bondade nos dias em que o mundo é salvo pela divina
misericórdia.
Sigam, pois, os povos cristãos os seus príncipes e levados pelos
exemplos régios deixem-se incentivar à indulgência em sua vida
privada. Não seria direito que as leis privadas fossem mais severas
que as públicas! Perdoem-se as culpas, abram-se as prisões, esque­
çam-se as ofensas, morram as vinganças, para que em virtude
da misericórdia divina e da misericórdia humana a sagrada festa a
todos encontre alegres e inocentes; por nosso Senhor Jesus Cristo,
que com o Pai e o Espírito Santo, vive e reina, Deus, pelos séculos
des séculos. Assim seja!
SERMÃO SOBRE PENTECOSTES 407

SERMÃO SOBRE PENTECOSTES


(Sermão 75: P.L. 54, 400ss)

Todos os corações católicos sabem, caríssimos, que a soleni- 593


Jade de hoje deve ser celebrada como uma das festas mais importan­
tes. Ninguém ignora ou contesta a reverência com que se deve fes­
tejar este dia, consagrado pelo Espírito Santo com o milagre exce­
lente dè seu dom. Sendo, ha verdade, o décimo dia depois daquele
em que o Senhor subiu ao céu, para se assentar à direita de Deus,
refulge como o dia qüinquagésimo após a sua Ressurreição, e traz
em si grandes mistérios, referentes a antigos e novos sacramentos, na
mais clara manifestação de que a Graça foi prenunciada pela Lei e a
Lei cumprida pela Graça. Sim, do mesmo modo como outrora, no
monte Sinái, a Lei fôra dada ac povo hebreu, libertado dos egípcios,
no dia qüinquagésimo após a imolação do cordeiro, assim tam­
bém, após a Paixão de Cristo, imolação do verdadeiro Cordeiro de
Deus, é no qüinquagésimo dia desde sua Ressurreição que se infunde
o Espírito Santo nos apóstolos e na multidão dos fiéis. O cristão
diligente facilmente vê como os inícios do Antigo Testamento servi­
ram aòs primórdios do Evangelho, e como a segunda Aliança foi
criàda pelò mesmo Espírito que instituiu a primeira.
Cóm efeito, diz a narrativa dos apóstolos: “Como se comple­
tassem os dias de Pentecostes e estivessem todos cs discípulos jun­
tos no mesmo lugar, rèpentinamente se fez ouvir do céu um ruído
como o de vento que soprava impetuosamente, e encheu toda a casa
onde estavam. Apareceram-lhes então como línguas de fogo, que se
puseram sobre cada um deles; e todos ficaram cheios do „Espírito
Santo, começando a falar em outras línguas, conforme o Espírita, San­
to lhes concedia falarem " 1.
É veloz a palavra da Sabedoria, e onde Deus é o Mestre quão 594
rapidamente se aprende a doutrina! Não houve necessidade de in­
terpretação para o entendimento, não houve aprendizado, não hou­
ve prazo para estudo, mas assim que o Espírito da verdade soprou
ccmo quis, as línguas particulares dos diversos povos se tornaram
comuns na boca da Igreja.
A partir desse dia ressoou a trombeta da pregação evangélica.
A partir desse dia as chuvas de graças, os rios das bênçãos irrigaram
todos cs desertos e a terra inteira, pois a fim de renovar sua face
“o Espírito de Deus pairava sobre as águas” 2. E, para a expulsão
das trevas de antes, coruscavam os relâmpagos da nova Luz no es­
plendor das línguas flamejantes. Assim se manifestava a luminosa
e ígnea palavra do Senhor, dotada da eficácia de iluminar e da

At 2,1-4.
G n 1,2
408 SÃO LEÃO MAGNO

força de abrasar, necessárias ao entendimento e à destruição do pe­


cado.
Porém, caríssimos, embora tenha sido admirável a própria apa­
rência desses acontecimentos e não haja dúvida de que a majestade do
Espírito Santo tenha estado presente à harmonia exultante das vozes
humanas, não se pense que apareceu a sua divina essência naquilo
que se mostrou aos olhes corporais. A natureza invisível e comum
ao Pai e ao Filho manifestou : a qualidade de seu dom e de sua
obra por meio do sinal de santificação que bem lhe aprouve, mas
conteve em sua divindade a propriedade de sua essência. Assim
como a visão humana não pode perceber o Pai e o , Filho também
não percebe o Espírito Santo. Na Trindade, com efeito, nada é
dissemelhante, nada é desigual, e todas, as coisas que se possam
pensar a respeito dessa substancia não se distinguem pela excelência/
pela glória ou pela eternidade. É verdade que, conforme as proprie­
dades das Pessoas, um é o Pai, outro o Filho, outro o Espírito Santo,
mas não há divindade diferente, natureza distinta. Assim como o
Filho procede do Pai, igualmente o Espírito Santo é Espírito do
Pai e do Filho. Não como as criaturas, que são também dq Pai
e do Filho, mas como alguém que, como ambos, vive, é podero­
so e existe eternamente, desde que existem o Pai e o Filho. Por
essa razão o Senhor, quando prometeu a vinda do Espírito Santo
aos discípulos, antes do dia da Paixão, disse: “Ainda muitas coi­
sas vos tenho a dizer: quando, porém, vier o Espíritp d a . verdade,
ele vos conduzirá para toda a verdade. Pois não falará de si mesmo,
mas falará o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que deverão
suceder. Tudo o que o Pai tem é meu; per isto disse que receberá
do que é meu e vos anunciará” 3.
595 O Pai, portanto não tem algo que não o tenham o Filho ou p
Espírito Santo. Tudo o que tem p Pai, tem o Filho e tem o Espírito
Santo. Nunca faltou na Trindade essa perfeita comunhão; nela são uma
mesma coisa “tudo possuir” e “sempre existir”. Não imaginemos
sucessão de tempo na Trindade, não imaginemos gradações ou dife­
renças. Se de um lado não se pode explicar o que Deus é, de outro
não se ouse afirmar o que Deus não é. Seria melhor deixar de discórrer
sobre as propriedades da natureza inefável de Deus, do que afirmar p
que não lhe convém. O que concebem, pois, os corações pie­
dosos a respeito da glória eterna e imutável do Pai, entendam-no
ao mesmo tempo do Filho e do Espíritp Santo, de um modo inse­
parável e sem diferença. Nossa confissão é ser a Trindade um só
Deus, já que nas três Pessoas não existe diversidade — de substân­
cia, poder, vontade ou operação.
Assim, se reprovamos os arianos, que pretendem existir dife­
rença entre o Pai e o Filho, reprovamos igualmente os macedonianos,

3 Jo 16,12-13.15.
SERMÃO SOBRE PENTECOSTES 409

cs quais, embora atribuindo igualdade entre o Pai e o Filho, pen­


sam que o Espírito Santo seja de natureza inferior. Eles não
vêem estarem incidindo naquela blasfêmia indigna de ser perdoada
tanto no século presente como no futuro, consoante a palavra do
Senhor: “ a todo o que disser uma palavra contra o Filho do ho­
mem será perdoado, mas ao que disser contra o Espírito Santo
não será perdoado nem neste século nem no vindouro” 4.
Quem permanece, portanto, nessa impiedade fica sem perdão,
pois expulsou dé si aquele por meio do qual seria capaz de con­
fessar a verdadeira fé. Jamais se beneficiará do perdão quem não
tiver advogado para protegê-lo. Ora, é do Espírito Santo que pro­
cede em nós a invocação do Pai, dele são as lágrimas dos penitentes,
dele os gemidos dos que suplicam, “e ninguém pode dizer Senhor
Jesus senão no Espírito Santo” 5.
O Apóstolo prega de maneira evidentíssima a onipotência do 596
Espírito, igual à do Pai e do Filho, bem como sua divindade, ao
dizer: "há diversidade de graças mas um mesmo é o Espírito;
e há diversidade de ministérios mas um mesmo é o Senhor; e há
diversidade de operações mas um mesmo é o Deus que opera tudo
em todos” 6.
Por estes e outros documentos, através dos quais, de inume­
ráveis modos brilha a autoridade das palavras divinas, sejamos in­
citados, caríssimos, unanimemente, à veneração de Pentecostes, exul­
tando em honra do Santo Espírito, por quem toda a Igreja Católica
é santificada e toda alma racional é penetrada. Ele é o inspirador
da fé, o Mestre da ciência, a fonte do amor, o selo da castidade,
o artífice de toda virtude.
Regozijem-se as mentes dos fiéis com o fato de, em todo o
mundo, ser* louvado pelas diferentes línguas o Deus uno, Pai,* e
Filho e Espírito Santo; com o fato de prosseguir em seu trabalho
e dom aquela santificação que apareceu na chama do fogo. O mes­
mo Espírito da verdade faz refulgir com sua luz a morada de sua
glória, nada querendo de tenebroso cu morno em seu templo.
Foi também por auxílio e instrução desse Espírito que rece­
bemos a purificação do jejum e da esmola. Com efeito, segue-se ao
venerável dia de hoje um costume de salutar observância, que os
santos julgam de grande utilidade e nós vos exortamos, com pas­
toral solicitude, a que o celebreis com o maior zelo possível. Assim,
se a negligência vos fez contrair em dias passados algo de pecami­
noso, seja isto penitenciado pela censura dc jejum e pelo devota-
mento da misericórdia. Jejuemos na quarta e na sexta-feira, para
sábado celebrarmos juntos as vigílias, com a habitual devoção.

4 Mt 12,32.
5 ICor 12,3.
6 ICor 12,4-6.
410 SÃO LEÃO MAGNO;

P ot Cristo nosso Senhor, que vive e reina com o Pai e o Espírito


Santo pelos séculos dos séculos. Assim seja.

N A FESTA D E SAO PEDRO E SÃO PAULO


> (Sermão 82: P.L. 54, 422-428)

597 É de todo o mundo, caríssimos, a participação nas solenidades


sagradas, pois a piedade da mesma fé requer sejam comemorados
com júbilo comum os fatos que pertencem à salvação universal. À
festa de hoje, porém, além da reverência geral que merece, deve ser
celebrada em nossa cidade de modo particular: é preciso primar
na alegria o lugar de onde partiram gloriosamente os dois principais
dentre cs apóstolos. Eles são os homens, ó Roma, por meio dos quais
veio brilhar para ti o Evangelho de Cristo. São eles os que te fize­
ram de antiga mestra dos erros a discípula da verdade. São eles
teus santos pais, teus verdadeiros pastores, os que te inscreve­
ram no reino dos céus, fundando-te de medo melhor e mais feliz 4p
que aqueles outros dois que te deram os primeiros alicerces e dós
quais um te maculou com o crime do fratricídio. São eles os que te
trouxeram a esta glória em que te achas, de nação santa, povo elei­
to, cidade sacerdotal e régia, tornada, por causa da sede do bem-
-aventurado Pedro, a capital do orbe, destinada a mais amplániente
presidir ao mundo em virtude de tua religião divina dó que de teu
poderio terreno. Embora muito te tenham estendido as vitórias ná
terra e no mar, menos foi o que te trouxeram os labores da guerra cíó
que a paz cristã.
Com efeito, Deus, o Deus bom, justo e onipotente, que jamais
negou sua misericórdia ao gênero humano mas sempre se deu á
conhecer aos mortais pela abundância de seus benefícios, soube com­
padecer-se, num desígnio ainda mais profundo, piedoso, da ce­
gueira voluntária e da maldade dos pécadorés, enviando-lhes seu
Verbo, igual e coeterno consigo, o qual uniu a natureza divina
à humana, de modo que seu abaixamento exterior resultasse em
nossa exaltação suprema. E para difundir através dò mundo o
598 efeito dessa graça inefável, preparou, em sua divina providência, o
reino de R o m a,. estendendo-lhe os limites, fazendo-o avizinhar-se
de todas as nações. Convinha, realmente, à obra planejada por
Deus, que os muitos reinos se confederassem num único impé­
rio, para prontamente se tornarem permeáveis à pregação geral
os povos mantidos pelo regime de uma única cidade.
Esta, porém, enquanto ignorava o verdadeiro autor de sua cres­
cente extensão, servia aos erros dos inúmeros gentios que retinha
seb seu domínio, e se considerava grande na religião justamente
pelo fato de jamais haver rejeitado uma que fosse das falsas doutrinas.
NA FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO 411

Mas assim, tanto mais admiravelmente seria libertada por Cristo


a cidade tão tenazmente enredada pelo demônio.
De fato; quando os apóstolos assumiram o encargo de evange- 599
lizar o mundo e se distribuíram pelas várias partes d a . terra, depois
de receberem do Espirito Santo o dom das línguas, o bem-aven­
turado Pedro, príncipe da ordem apostólica, dirigiu-se para o Im­
pério Romano, a fim de irradiar da capital, ao restante do mundo,
a luz da verdade revelada para a salvação de todas as nações.
Pois de que nações não haveria, então, cidadãos em Roma?
E que povos haveriam de ignorar o que Roma aprendesse? Seriam
aqui humilhadas as opiniões da filosofia, aqui dissolvidas as vai­
dades da sabedoria terrena, aqui refutado o culto dos demônios,
aqui destruída a, impiedade dos sacrifícios, pois aqui se haviam
concentrado, com supersticiosa diligência, todos cs erros instituídos
alhures.
■ Não temes, portanto, ó bem-aventurado Pedro, endereçar-te pa­
ra esta urbe, e enquanto Paulo, apóstolo e companheiro teu na
glória, se ocupava ainda com outras igrejas, soubeste entrar nesta
selva de feras, neste oceano de turbulenta profundeza, com mais in­
trepidez do que quando outrora caminhaste sobre as águas. Não te­
mes Ròma, a senhora do mundo, tu que na casa de Caifás, te dei­
xaste intimidar pela criada do sacerdote. Seriam menores o poder
de Cláudio é a crueldade de Nero, do que o julgamento de Pilatos
ou a fúria dos judeus?
O que na verdade vencia as razões de temor era a força de
teu amor. Não pedias achar temíveis cs que receberas para amar.
Já havias formado em teu coração este afeto de caridade audaz
quando o mistério da tríplice interrogação do Senhor consolidara
tua profissão de am o r1. Nem outra coisa se requeria de tua intenção
senão que apascentasse as ovelhas daquele a quem amavas, com o
alimento de que tu te nutrias.
Ademais, quantos sinais portentosos, dons carismáticos, demons­
trações de virtude, te podiam aumentar a confiança! Já tinhas ensi­
nado aos pevos provenientes da circuncisão, que abraçaram a fé; já
tinhas fundado a Igreja de Antioquia, onde pela primeira vez des­
pontou o digno nome de cristãos; já tinhas guarnecido com as leis da
pregação evangélica o Ponto, a Galácia, a Capadócia e a Bitínia; e
não era, por isso, duvidando do êxito da obra ou desconhecendo o
avanço de tua idade que introduzias o troféu da cruz de Cristo
nas fortalezas romanas, onde te esperavam, por divina disposição,
tanto a honra do poder como a glória da paixão.
É associou-se a ti Paulo, teu co-apóstolo, instrumento esco- 600
lhido2 e mestre especial dos gentios. Também ele acorreu a Roma
412 SÃO L E Ã O lM A G N & tíi

naquele mesmo tempo em que tudo que era inocência, pudor ;ié í
liberdade padecia sob o império de Nero, cujo furor inflatnado .,
por graves vícios o ia precipitando àquela torrente de insânia da pti- ■}■
meira perseguição geral ao nome cristão. Como se pela morte doS
santcs a graça de Deus se pudesse extinguir! Para estes, ao cotr-
trário, a morte era o máximo dos ganhes, trazendo com o fim desta . •
vida caduca a felicidade eterna. É preciosa, sim> a morte, aos olhos, ;
do Senhor; nem pode ser destruída por gênero algum de crueldade
601 a religião fundada pelo sacramento da cruz de Cristo. A Igreja
nãc diminui pelas perseguições, mas cresce; e o campo do Senhór
se reveste de searas mais copiosas quando germinam multiplicados
os grãos, um a um tombados. Esta a razão por que são milhares
os mártires a atestarem quão grande descendência fizeram nascer
estes dois preclaros grãos da semente divina. Com seus inúme­
ros mártires, êmulos do triunfo dos apóstolos, cercou-se nossa: urbe
de povos ruivos, que a coroam com um diadema de honrosas
gemas. O seu patrocínio, caríssimos, que Deus preparou para nós;
em exemplo para nossa paciência e em confirmação para a nossa fé, é ,
motivo de alegria para nós, na comemoração genérica de todos òs san­
tos; mas em honra dos nossos dois patriarcas, escolhidos pela graça
de Deus para ocuparem, entre os demais membros da Igreja, um
cume tão alto, quais os luzeiros de dois olhos gêmeos, em honra
deles com maior júbilo ainda devemos regozijar-nos! Seus: méritos
e virtudes excedem qualquer palavra. Nada julguemos neles diverso
ou maior, pois foram iguais na eleição, semelhantes nos labores e
no fim.
E conforme o que nós mesmos já temos experimentado e nqssqs
antepassados comprovaram, cremos estar sempre ajudados pelas ora­
ções destes especiais padroeiros, em todos os trabalhos desta vida,
para assim obtermos a misericórdia de Deus e sermos reerguidos da
depressão de nossos pecados, pelos méritos dos apóstolos.
Por nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertence, com o Pai
e o Espírito Santo, um único poder e divindade, pelos séculos dos
séculos. Assim seja.
SÃO BENTO DE NÜRSIA
(c. 480-547)

Sobre sua vida escreveu são Gregório^ Magno (no livro 2? dos Diálogos) dentro,
pcrém, de um gênero literário onde é difícil determinar o que seja estritamente his­
tórico. Natural de Núrsia, na Ümbria, Bento estudava Direito em Roma, quando
sentiu o apelo de consagrar a vida a Deus. Partiu para Enfide e depois Subiaco,
para lá viver como anacoreta, tornando-se depois superior de várias comunidades
monásticas. Mais tarde seguiu para o monte Cassino, fundando a célebre Abadia
local e escrevendo r. Regra dos mosteiros. Discute-se a relação entre este documento
e outro, conhecido como Regula Magistri, também do século VI, de autor desconheci­
do; Segundo alguns, baseia-se esta na de Bento, segundo outros a relação é inversa
— tese esta que se toma hoje mais comum.
Da Regra beneditina disse s. Gregdrio: “notável pelo discernimento e clara
na linguagem" (Dial. II, 36). Realmente, tornou-se o principal código de vida mo­
nástica do Ocidente, tendo sido amplamente copiada, traduzida e comentada duran­
te a Idade Média e até aos nossos tempos.
Através de inúmeros discípulos, que evangelizaram grande parte da Europa
(do Mediterrâneo à Escandinávia, da Irlanda à Polônia), o espírito de são Bento, re­
sumido ccmumente .no lema "ora et labora”, exerceu uma grande influência na Histó­
ria. da Igreja e da civilização. Pio XII chamou a Bento “Pai da Europa” e Paulo
VI proclamou-o “Patrono da Europa" (24-X-1964).
Edição crítica da Regra em S.C. 181..

REGRA DOS MOSTEIROS

Cap. 53: Da recepção dos hóspedes 1

Todos cs hóspedes que chegarem ao mosteiro sejam recebidos 602


ccmo o Cristo, pois ele próprio irá dizer: “Fui hóspede e me rece­
bestes” 123. E dispense-se a todos a devida honra, principalmente aos
irmãos na f é 5 e aos peregrinos. Logo que um hóspede for anun­
ciado, corra-lhe ao encontro o superior ou os irmãos, com todo o
serviço da caridade; primeiro, rezem em comum e assim se asso­
ciem na paz. Não seja oferecido esse ósculo da paz sem que, an­
tes, tenha havido a oração, por causa das ilusões diabólicas. Nessa
mesma saudação mostre-se toda a humildade. Em todos os hóspedes
que chegam e que saem, adore-se, com a cabeça inclinada ou com

1 Tradução de D. João Ev. de O. Ribeiro Enout O.SJB., ‘Regra de são Bento”,


Tip. Beneditina, Salvador, BA, 1958, pp. 91$.
2 Mt 25,35.
3 GI 4,10.
414 SÃO BENTO DE NtJRSIA ;
todo o corpo prostrado por terra, o Cristo que é recebido na pes­
soa deles.
Recebidos os hóspedes, sejam conduzidos para a oração e de­
pois sente-se com eles o superior ou quem esse ordenar. Leia-se
diante do hóspede a lei divina para que se edifique e depois disso
apresente-se-lhe um tratamento cheio de humanidade. Seja o jejum
rompido pelo" superior por causa dos hóspedes; a não ser que seja
um dos dias principais de jejum, que não se possa violar; mas os
irmãos continuem a observar as normas de jejum. Que o abade
sirva a água para as mãos dos hóspedes; lave o abade, bem assim
como toda a comunidade, os pés de tcdos os hóspedes; depois de
lavá-los, digam o versículo: “ Suscepimus Deus misericordiam tuam
in medio templi tu i” 4. Mostre-se principalmente um cuidado solíci­
to na recepção dos pobres e peregrinos, porque sobretudo na pessoa
desses, Cristo é recebido; de resto o poder dos ricos, por si só, já
exige que se lhes prestem honras.
603 Seja a cozinha do abade e dos hóspedes separada, de modo
que cs irmãos não sejam incomodados, com a chegada em horas in­
certas dos hóspedes, que nunca faltam no mosteiro. Entrem todos
os anos para o trabalho dessa cozinha dois irmãos que desempe­
nhem bem esse ofício. Sejam-lhes concedidos auxiliares quando pre­
cisarem para que sirvam sem murmuração, e do mesmo modo, quan­
do têm menos ocupação, deixem esse ofício para trabalhar no que
lhes for ordenado. E não só em relação a esses, mas em todos os
ofícios do mosteiro, seja este o critério: se precisarem de auxilia^
res, sejam-lhes concedidos; por outro lado, quando estão livres, obe­
deçam ao que lhes for ordenado. Do mesmo modo, cuide do recinto
reservado aos hóspedes um irmão cuja alma seja possuída pelo te­
mor de Deus: haja ali leites suficientes arrumados e seja a casa de
Deus sabiamente administrada por monges sábios. De modo algum
se associe ou converse com cs hóspedes quem não tiver recebido
permissão: se encontrar ou vir algum deles, saúde-o humildemente,
como dissemos, e, pedida a benção, afaste-se, dizendo não lhe ser per­
mitido conversar com os hóspedes.

Cap. 58: Da maneira de receber os irmãos

604 Apresentando-se alguém para a vida monástica, não se lhe con­


ceda fácil ingresso, mas, como diz o Apóstolo: “provai cs espíritos,
se são de Deus” l . Portanto, se aquele que vem, perseverar batendo
à porta e se depois de quatro ou cinco dias, sendo-lhe feitas injúrias e
dificuldades para entrar, parecer suportar pacientemente e persistir

4 SI 47,10.
i ljo 4,1.
REGRA DOS MOSTEIROS 415

no seu pedido, conceda-se-lhe o ingresso, e permaneça alguns dias


na cela dos hóspedes. Fique depois na cela dos noviços, onde esses
se exercitam, comem e dormem, havendo designado para eles um dos
mais velhos, apto a obter o progresso das almas e que se dedique
a eles com tcdo o interesse.
Que haja solicitude em ver se procura verdadeiramente a Deus,
se é solícito para com o ofício divino, a obediência e os opróbrios.
Sejam-lhe dadas a conhecer, previamènte, todas as coisas duras e
ásperas pelas quais se vai a Deus. Se prometer a perseverança da
estabilidade, depois de decorridos dois meses, leia-se-lhe por inteiro
esta regra, e diga-se: eis a lei sob a qual queres militar: se podes
observá-la, entra; se não podes, sai livremente. Se ainda ficar, seja
conduzido à referida cela dos noviços para ser de novo provado, em
toda paciência. Passados seis meses, leià-se-lhe a regra, a fim de que
saiba para o que ingressa. Se ainda permanece, depois de quatro
meses, leia-sé-Ihe riovamente a mesma regra. E se, tendo deliberado
Consigo mesmo, prom eter. guardar todas as coisas e observar tudo
quanto lhe for ordenado, seja então recebido na comunidade, sabendo
èstár estabelecido, pela lei da regra, que a partir daquele dia não lhe
é lícito sair do mosteiro, nem retirar o pescoço ao jugo da regra,
à qual lhe foi permitido recusar cu aceitar por tão demorada delibe­
ração.
No oratório, diante de todos, o que vai ser recebido prometa a 605
sua estabilidade e conversão dos costumes2, e a obediência, dian­
te de Deus e de seus Santos, a fim de que, se alguma vez proceder
de outro modo, saiba que será condenado por aquele de quem zomba.
Desta sua promessa faça uma petição no nome dos Santos cujas relí­
quias aí estão e do abade presente. Escreva tal petição com a pró­
pria mão; ou, se não souber escrever, escreva outro rogadír por
ele, fazendo o noviço um sinal e colocando-a com sua própria mão
sobre o altar. Quando a tiver colocado, comece logo o seguinte versí­
culo: “ Suscipe me, Domine, secundum elcquium tuum et vivam, et
non confundas me ab expectatione mea” 3. Responda toda a comu­
nidade este versículo, por três vezes, acrescentando: “Gloria P atri”.
Prostema-se, então, o irmão noviço aos pés de cada um para que
orem por ele; e daquele dia em diante seja consideradp na comu­
nidade. Se possui quaisquer bens, ou os distribua antes aos pobres,
cu, per solene doação, os confira ao mosteiro, nada reservando para
si de tedas essas coisas: pois sabe que, deste dia em diante, nem sobre
o próprio corpo terá poder. Portanto, seja logo no oratório despoja­
do das rcupas próprias com que está vestido, e revestido com as
roupas do mosteiro. As vestes que despiu sejam colocadas na rou-

2 Alguns intérpretes lêem aqui “conversão’*, outros preferem “conversação”, no


sentido amplo de convivência cencbítica.
3 SI 118,116: “Recebe-me, Senhor, segundo tua promessa; não queiras confundir
minha esperança”.
416 SÃO BENTO DE NURSIA
paria, onde devem ser conservadas, para que, se algum dia, por per­
suasão do demônio, consentir em sair do mosteiro — que isso não
aconteça! — seja expulso, despojado das roupas do mosteiro. Mas não
lhe seja entregue aquela sua petição que c abade tirou de cima do altar.
Fique ela guardada no mosteiro.

Cap. 73: De que nem toda a observância da justiça' se acha


estabelecida nesta Regra

606 Escrevemos esta Regra para demonstrar que os que a observa­


mos nos mosteiros, temos alguma honestidade de costumes ou algum
início de vida monástica. Além disso, para aquele que se apressa
para a perfeição da vida monástica, há as doutrinas dos santos
Padres, cuja observância conduz o homem ao cume da perfeição.
Que página, com efeito, ou que. palavra de autoridade ;divina no
Velho e no N ovo Testamento não é uma norma retíssima da vida
humana? Ou que livros dòs santos Padres Católicos ressoam otitta
ccisa senão o que nos faça chegar, por caminho direto, ao nosso
Criador? E também as Colações dos Padres, as Instituições e suas
Vidas, e também a Regra de nosso santo Pai Basílio, que outra coisa
são senão instrumentos das virtudes dos monges que vivem bem e
são obedientes? Mas para nós, relaxados, que vivemos mal e somos
negligentes, são o rubor da confusão. Tu pois, quem quer, que ser
jas, que te apressas para a pátria celeste, realiza com o auxílio de
Cristo esta mínima Regra de iniciação aqui escrita e, então chegarás,
com a proteção de Deus, aos maiores cumes da doutrina e das virtu­
des de que falamos acima. Amém.
SÃO VENÂNCIO FORTUNATO
(c. 530-600)

Natural do Vêneto, Itália, fixou residência em Poitiers, onde foi ordenado pres­
bítero e se fez capelão da comunidade monástica de santa Radegundes. Mais tarde
tornou-sé bispo da cidade. Seu renome de poeta valeu-lhe amplo relacionamento com
os intelectuais do tempo. Pela forma sua poesia é antiga, mas pelo fundo já
revela o espírito medieval. Autor de célebres hinos, que até. hoje pertencem à
liturgia romana, como os dedicados à Paixão do Senhor e à Virgem Maria (Vexilla
regis, Patíge lingua, Quem terra, pontus, aethera), e de numerosos outros poemas
reugiosos.

“PANGE, L IN G U A ” 1
( P .L . 88,88)

Cantemos hoje em memória pela cruz que ele abraçou, 607


da luta que houve na cruz, de novo a vida irrompesse
este sinal de vitória, onde o pecado brotou.
que a todo povo conduz;
nela, coberto de glória, Quando, do tempo sagrado,
vencendo, morre Jesus. a plenitude chegou,
pelo seu Pai enviado,
O Criador, apiedado o Filho ac mundo baixou:
da maldição que ocorreu da que não teve pecado,
quando, do lenho vedado, a nossa carne tomou.
Adão o fruto mordeu,
para curar o pecado No berço humílimo chora
um outro lenho escolheu. o rei eterno dos céus;
enfaixa-o nossa Senhora,
Que um lenho a outro vencesse, que pobres panos os seusí
com arte Deus decretou, Per frágeis laços embora,
e a salvação nos viesse cativo c corpo de Deus.

1 Não se confunda este hino com outro, de mesmo título, composto por santo
Tomás de Aquino, em honra do Santíssimo Sacramento. Ambos foram incorporados
à Liturgia. A tradução é de D. Marcos Barbosa.

14 - Antologia dos santos padres


418 SÃO VENÂNCI0 FORTUNÀTO:
D e espinho e cravos crivado, Inclina, ó árvore, os ramos,
dão-lhe o fel como néctar; acolhe o teu Criador;
do coração transpassado para o que em ti nós pregamos,
escorre o sangue a jorrar: do tronco abranda o rigor:
do mundo inteiro o pecado para o rei que hoje adoramos
vai, como um rio, lavar. sejas um leito de amor!

Já tendo o tempo cumprido Só a ti isto foi dado:


da sua vida mortal, ao Salvador sustentar
só pelo amor impelido, e a todos que hão naufragado
numa oblação sem igual, ao porto eterno levar,
na dura cruz foi erguido, pois o Cordeiro, imolado,
nosso cordeiro pascal! quis o teu tronco sagrar.

“VEXILA R E G IS” 1
(P.L. 88, 95s)

608 D o Rei avança o estandarte, dos santos membros tocar


fulge o mistério da Cruz digna, tu só, foste achada.
que fere a Vida de morte,
morte que à Vida conduz. Feliz cruz, de cujos braços
do mundo o preço pendeu;
D o lado morto do Cristo, balança foste do corpo
ao golpe que lhe vibraram, que o duro inferno venceu.
para lavar meu pecado
o sangue e a água jorraram. Ave, ó Cruz, doce esperança,
concede aos réus remissão
A profecia do rei por um aumento de graça
realizada aqui tenho; enquanto passa a Paixão.
Davi dizia às nações:
“D eus reinará pelo lenho!” Louvor a ti, ó Trindade,
à qual toda a carne vem:
Árvore esplêndida e fulgida, aos que na Cruz tu salvaste,
de rubra púrpura ornada, concede a coroa. Amém.

1 Tradução dc D. Marcos Barbosa. As duas últimas estrofes correspondem às que


se cantam na Liturgia, mas diferem das originais.
SÃO GREGÓRIO MAGNO
(340404)

De nobte estirpe romana, (oi prefeito de Roma quando ainda muito moço.
Em 575 deddiu-se à vida monástica, transformando o palácio paterno no mos­
teiro de santo André. Fundou ainda seis outros mosteiros em propriedades suas na
Sicília.
O papa Pelágio II forçou-o, porém, pouco mais tarde, a deixar a paz claustral
e ir para Constantinopla, na qualidade de “apocrisiário” ( = núncio apostólico). Em
585, regressando a Roma, tornou à austera vida monástica como abade de santo André.
Em 590, quando morreu o papa, foi eleito seu sucessor, dando início a um dos mais
notáveis pontificados da História. Foi quem empreendeu a evangelização da Inglaterra,
para lá enviando monges missionários, entre os quais sto. Agostinho de Cantuária.
Reformou o rito da Missa e promoveu, em várias “escolas”, o canto litúrgico, desde
então chamado “canto gregoriano". Assinava-se “servus servcrum Dei” e freqüente-
mente tinha pobres à mesa.
Obras: 854 Certas, de importância histórica; o Livro da Regra pastoral, verdadei­
ro catedsmo da arte de governar as almas; Comentário ao livro de Jó (Mordia)-,
Homilias; Diálogos (o II livro dos quais conta a vida de são Bento); o Sacramenta-
rium gregorianum (Missal); etc.
Na col. S.C., t. 52: M ordes sur Job.

D A VOCAÇAO PARA O OFÍCIO PASTORAL


(Livro da Regra Pastoral, cap. 1-2: P.L. 77, 14-16) ^ ■
i

Não se deve ter a pretensão de ensinar uma arte antes de 609


havê-la aprendido com esmerada aplicação. Quanta temeridade, pois
a dos ignorantes que pretendem o magistério pastoral, o governo das
almas, que é a arte das artes? Ignora alguém serem as chagas da alma
ainda mais ocultas que as das entranhas? E, no entanto, quantos os
que, sem haver aprendido as regras e preceitos do espírito, não titu­
beiam em dizer-se médicos do coração; ao passo que se envergonharia
de ser chamado médico do corpo quem não conhecesse as virtudes dos
medicamentos.
Come, pela graça de D eus, já dobraram a cerviz todas as emi­
nências do mundo atual ante a augusta grandeza da religião, muitos
há que, a pretexto de governar a alma, se introduzem na Igreja
para conquistar honrarias, fazem-se passar por mestres, lutam por
colccar-se acima dos outros e enfim, como diz a eterna Verdade,
“ gostam de ser saudados nas praças, de ter cs primeiros lugares
SÀO GREGÓRIO MAGNO '
nos banquetes e as cadeitas principais nas sinagogas” x: estes tais
são tanto menos dignos de desempenhar o ministério pastoral que
receberam, quanto foi pela soberba que alcançaram este magistério
de humildade. Pois é natural que no exercício do magistério a lín­
gua se confunda quando ensina uma coisa que não aprendeu. O ■
Senhor mesmo queixa-se deles, através do profeta, quando diz:
•‘eles reinaram, mas não por mim foram príncipes, e eu não os
reconheci ’<2. Governam, pois, por própria conta e não por dis­
posição do Supremo Governante de todas as coisas, os que, sem
o abono da virtude, sem vocação divina, mas levados apenas pela
cobiça, escalaram, mais que obtiveram, o cume do governo espi­
ritual. A esses tais o Juiz das consciências, ao mesmo tempo que
os exalta, os desconhece; pois, se os suporta, seguramente os des-.
conhece, reprovando-os em seus divinos juízos. Foi assim que, a
alguns que somente o seguiram para presenciar seus milagres, çh&
gou a dizer: “Afastai-vos de mim, artífices da maldade, não vos
conheço! ” 3 E é a voz da eterna Verdade que fustiga a ignorância
dos pastores, ao dizer através do profeta: “os pastores mesmos são
falhes de inteligência” 4 ou: “os depositários da Lei desconhece-
ram-me” 5. Tudo isso vem demonstrar que a Suprema Verdade sé
queixa de ser desconhecida por çles, declarando ao mesmo tempo
desconhecer a dignidade dos que a desconhecem. E é justo que
p Senhor desconheça os que ignoraram as coisas do Senhor, segundo
a afirmação de Paulo: “aquele que o desconhece será desconhecido”
610 Esta mesma ignorância dos Pastores corre às vezes em para­
lelo com o merecimento dos fiéis que lhes estão submetidos; por
mais que careçam aqueles, culpavelmente, da luz da ciência, é, no
entanto, lógico que os que os seguem tropecem por causa da sua igno­
rância. Porque, como declara a Suprema Verdade, no Evangelho:
“quando um cego guia a outro cego, caem ambos juntos na cova” 7.
— E afirma o salmista, não movido por própria inspiração, mas
pela força de sua missão de profeta: “escureçam-se seus olhos para que
não vejam, e estejam suas espáduas sempre encurvadas” 8. — É aos
olhos que, colocados na parte mais nobre do rosto, compete o ofício
de guiar nossos passos; e em relação aos olhos, todos os que vêem
caminhando atrás podem bem ser chamados espáduas. Quando se anu­
viam cu escurecem os olhos, dobram-se as espáduas; o que vale
dizer: quando os que governam perdem a luz da ciência, aqueles
DA VOCAÇÃO PARA O OFÍCIO PASTORAL 421

que, como súditos, os seguem, se tornam encurvados levando o fardo


de seus pecados.
Muitos há que esquadrinham com afinco as regras da vida espi- 611
ritual, mas ao mesmo tempo aviltam pelos costumes c que com a
inteligência aprenderam; ensinam o que adquiriram com o estudo,
nãc pela conduta; e assim, o que pregam com a palavra destroem
com seu modo de vida. Disto resulta que, caminhando o Pastor por
sendas escarpadas, traz ao abismo o rebanho que o segue. Queixa-se
o Senhor, pela boca do profeta, dessa desprezível ciência dos pas­
tores, dizendo: “Depois de beberdes em águas límpidas, turvas­
tes com vossos pés as que sobraram; e minhas ovelhas tiveram de
se apascentar do que vós havíeis pisoteado, tiveram de beber a água
que ccm vossos pés turvastes” 9.
Bebem água cristalina os Pastores que vão buscá-la e sorvê-la nas
torrentes da eterna Verdade; quando, porém, corrompem com sua
má vida o fruto de suas santas meditações, turvam essa mesma
água com os pés. E dessa água turva bebem as ovelhas, se não
seguem cs ensinamentos que ouvem, mas imitam os depravados
exemplos que contemplam. Pois, sedentas de verdade, de um lado,
mas pervertidas pelo espetáculo das más obras, de outro, é como se
bebessem lodo em fontes corrompidas.
Por isso está escrito no profeta: “Os maus sacerdotes são laços 612
de perdição para meu po v o ” 10. E de novo fala o Senhor, dos sa­
cerdotes pelo mesmo Oséias: “Converteram-se em pedra de escân­
dalo para a casa de Israel”. Pois ninguém é tão pernicioso para
a Igreja como aquele que, revestido com o nome e a ordem de
santidade, age perversamente. Ninguém se atreve a repreender um
pecador assim, e seus próprios pecados convertem-se logo em'» maté­
ria de exemplo, quando por reverência à dignidade sacerdotal se
passa a tratar com respeito ac pecador. Evitariam esses indignos
pastores fazer-se réus de tão graves delitos se ponderassem no
coração as palavras da suprema Verdade: “Quem escandalizar a
algum desses pequeninos que crêem em mim, melhor seria que
lhe amarrassem ao pescoço a pedra do moinho e assim o submer­
gissem nas profundezas do mar” u . A pedra de moinho significa
aqui as preocupações e os enredos da vida mundana; e as profun­
dezas do mar são uma alusão à condenação eterna. Aqueles, pois,
que levando a libré de santidade, conduzem os outros à perdição, por
suas palavras ou exemplos, melhor seria para eles que fossem arras­
tados para a morte eterna ccm seus próprios pecados sob o hábito
secular, do que apresentar-se aos demais revestidos de caráter sagra­
do, propondo-lhes à imitação sua vida desregrada; pois, se so-

9 Ez 34,18.
10 Os 5,1.
11 Mt 18,6.
422 SÃO GREGÓRIO MAGNO
mente eles caíssem no inferno, ao menos sofreriam penas mais su­
portáveis.
613 O que acabamos de expor visa demonstrar quão grave seja o
peso do governo das almas, a fim de que não ousem assumi-lo os
que não forem aptos para isso. Tornar-se-ia causa de própria perdi­
ção o que se procurasse por avidez de honraria. Assim, diz são
Tiago: “Não queirais, muitos dentre vós, fazer-vos mestres, irmãos
m eus” 12. E o próprio Mediador entre Deus e os homens não quis
possuir um reino na terra, ele, que ultrapassando em ciência e in­
teligência as hierarquias angélicas mais sublimes, é rei dos céus
desde antes dos séculos. Consta na Sagrada Escritura que, “sabendo
Jesus que viriam para levá-lo e fazê-lo rei, fugiu sozinho outra,
vez para o m onte” 13. Quem poderia com mais razão desejar go­
vernar os homens, do que ele que os havia criado? Mas, tendc-se
encarnado não apenas para remir-nos por sua Paixão e sim também
para ensinar-nos com seus exemplos, quis dar-nos aqui um modelo,
desdenhando ser rei e sofrendo, ac contrário, de modo voluntário,
o martírio da cruz, recusando os esplendores que se lhe ofereciam,
e abraçando as dores de uma morte ignominiosa, para que seus dis­
cípulos aprendessem a menosprezar as glórias do mundo, a não te?
mer cs opróbrios humanos, a renunciar aos eventuais afagos da vida!
Estes últimos geralmente corrompem o coração mediante o or­
gulho, ao passo que os opróbrios purificam mediante a dor, ele­
vam a alma, obrigam o homem a esquecer-se a si mesmo, não a
voltar-se para si. As comodidades acabam por destruir as boas obras,
os opróbrios ajudam a desentranhar os defeitos mais inveterados.
Não é raro ver-se que o coração se amolda à disciplina na escola
da adversidade, e ao contrário se deixa levar à soberba em meió
aos esplendores das honrarias, que acompanham os encargos de go­
verno. Assim, vemos Saul, que inicialmente se dizia indigno dá
glória, depois, colocado à frente do reino, mudou e, ambicionando
os aplausos populares e a ostentação, separou-se de quem o havia
ungido r e iH. Também Davi, antes submisso em todos os seus atos
à vontade do Criador, mal se viu livre da tribulação, tornou-se
cruel a ponto de fazer matar o marido de Betsabé, deixou de ser
clemente como antes, chegando a realizar a matança de um inocen­
te. Antes, renunciara a vingar-se de seu perseguidor, preso entre
suas mãos, e depois, ei-lo que manda matar o mais leal de seus sol­
dados, além de prejudicar o exército com as fadigas da guerra.
Seguramente tais pecados o teriam apagado dentre o número dos
eleitos não fôra o arrependimento com que chorou suas desgraças.

12 Tg 3,1.
13 Jo 6,15.
34 ISm 10,22; 15,30.
HOMILIA PARA O QUARTO DOMINGO DO ADVENTO 423

HOM ILIA PARA O IV DOM INGO DO ADVENTO


(P.L. 76, 1099-1103)

Pelas palavras da leitura que acabamos de ouvir *, irmãos caris- 614


simcs, recomenda-se a humildade de João, que, sendo de tão grande
virtude a ponto de ser suposto o Cristo, quis permanecer firme­
mente em si mesmo e não ser em vão sublimado pela opinião dos
homens. Pois “confessou, e não negou, e confessou: eu não sou
o Cristo”. Mas já que disse “não sou”, negou completamente o que
não era, sem negar o que era; falando a verdade, tornava-se mem­
bro daquele cujo nome não queria usurpar falazmente. Não queren­
do cobiçar (o nome de Cristo, tornava-se membro de Cristo; es­
forçando-se humildemente por reconhecer a sua pequenez, merecia
em verdade obter a celsitude dele. Ocorrendo-nos à mente, porém,
de outra leitura, uma sentença do nosso Redentor, estas palavras de
hoje vêem suscitar uma questão complexa. Com efeito, em outro
lugar, o Senhor, interrogado pelos discípulos a respeito da vinda de
Elias, respondeu: “Elias já veio, e não o conheceram, antes fizeram
dele o que quiseram. E, se vós quereis compreender, João mes­
mo é o Elias” 123. Ora, João, interrogado, diz: “Eu não sou Elias”.
Por que, irmãos caríssimos, aquilo que a Verdade afirma, c pro­
feta da Verdade nega? Pois são duas respostas contrárias: “ele é
(E lias)” e “não sou (E lias)”. Como é João profeta da Verdade,
se não concorda com as palavras da própria Verdade? Mas, pro­
curando-se com perspicácia a Verdade, verifica-se não ser contrário
o que apenas soa contrariamente. Realmente, o anjo disse a Zaca­
rias a respeito de João: “ele irá adiante do Messias com o espírito 615
e a virtude de Elias” 5. Eis por que se diz que João vem no'espírito
e na virtude de Elias: como Elias antecederá a segunda vindá do
Senhor, João antecedeu a primeira. Assim como Elias virá como
precursor do Juiz, João se fez precursor do Redentor. João por­
tanto, em espírito, era Elias; em pessoa, porém, não era Elias. O que
o Senhor afirma a respeito do espírito, João nega a respeito da
pessoa, sendo justo que o Senhor falasse espiritualmente de João
aos discípulos e o mesmo João, corporalmente, à multidão carnal.
Portanto, só na aparência, mas não de fato, João se afastou do ca­
minho da verdade.
E negando também ser profeta — pois não somente podia
apregoar o Redentor, mas também apontá-lo — exprimiu imediata­
mente quem era, ao dizer: “eu sou a voz do que clama no deserto”.
Sabeis, irmãos caríssimos, que o Filho unigénito é chamado Verbo
do Pai, conforme o testemunho de João: “No princípio era o Verbo,

1 Jo 1,19-28.
2 Mt 17,12.
3 Lc 1,17.
424 SÃO GREGÓRIO MAGNO

e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” 4. Sabeis, da ex­


periência da vossa própria linguagem, que primeiro soa a voz, e só
depois se faz perceber o conceito. João portanto afirma ser a voz;
porque precede o Verbo. Precedendo a vinda do Senhor, chama-se
a voz: pelo seu ministério os homens ouvem o Verbo do Pai. E
clama no decerto, anuncia à Judéia, abandonada e desesperada, a
consolação do Redentor. Que clama ele? Está insinuado na sua pa­
lavra: “Ponde no sentido reto o caminho do Senhor, como disse o
profeta Isaías” 5. O caminho do Senhor se faz reto para o coração,
quando se ouve com humildade a palavra da Verdade. O caminho
do Senhor se endireita para o coração, quando se norteia a vida de
acordo com os preceitos. Daí estar escrito: “Se alguém me ama,
guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele,
e nele faremos a nossa morada” 6. Portanto se alguém eleva a mente
pelo orgulho, a cobiça, se é movido pelos ardores da avareza, se se
polui com as manchas da luxúria, esse fecha a porta de seu coração
à verdade; e impede que o Senhor venha a si, trancando a almá
com os ferrolhos dos vícios.
$16 Mas os emissários ainda perguntam: — “Então, por que batizas,
se não és o Cristo, nem Elias, nem o Profeta?” Isto não foi dito
no intuito de conhecerem a verdade, mas na malícia de suscitarem
a rivalidade; é o que o evangelista delicadamente declara, acrescen­
tando: “os que tinham sido enviados eram fariseus”, como se dis^
sesse abertamente: interrogam João a respeito do que faz, os que
não sabem procurar, e sim invejam seu ensinamento. Contudo, todo
santo, mesmo quando inquirido por um espírito perverso, não perde
a linha de bondade. Assim, JÒão respondeu às palavras da inveja,
enunciou qual era o gênero de sua vida, dizendo: “Eu batizo em
água, mas no meio de vós está quem não conheceis”. João batiza,
não no espírito, mas em água porque, não podendo perdoar os peca­
dos, lava com água o corpo dos que sãc batizados, sem purificar o
espírito pelo perdão. Mas por que batiza, quem não perdoa os peca­
dos pelo batismo, senãc para que, conservando a ordem de sua
precedência, (ele pelo nascimento antecedera o que havia de nascer),
também no batismo precedesse o Senhor, que haveria de batizar?
Aquele que pela pregação se fez precursor de Cristo, também devia
sê-lo no prenúncio do sacramento. João, anunciando um mistério entre
estas coisas, afirmava que o Cristo estava no meio des homens, per­
manecendo desconhecido. O Senhor aparecia na carne, manifestava-se
visível no corpo, mas invisível na majestade. Dele também declarava:
“o que vem depois de mim, existia antes de mim”. Era como se dis­
sesse: “está acima de mim”. Vem depois de mim, porque nasceu
depois; é anterior a mim, porque foi colocado acima de mim. E
HOMILIA PARA O QUARTO DOMINGO DO ADVENTO 425

um pouco atrás, falando destas coisas, indicava a causa da prece­


dência: “existia antes de mim”. Como se dissesse claramente:
mesmo depois de nascido me supera, porque os limites temporais
do seu nascimento não restringem sua dignidade. O que nasce pela
mãe no tempo, foi gerado fora do tempo pelo Pai.
A seguir, deu a entender quanta sujeição e reverência ele de- 617
via ao Cristo: “não sou digno de lhe desatar a correia dc calçado” 7.
Era costume entre os antigos — se alguém não quisesse receber a
esposa que lhe cabia — que lhe desatasse o calçado aquele que,
por direito de parentesco, a pudesse receber como esposo. Ora, não
apareceu Cristo entre os homens, como esposo da Santa Igreja?
Dele o mesmo João também diz: “quem tem esposa, é o esposo”.
Mas, julgando cs homens que João fosse o Cristo — o que ele
mesmo nega — com razão afirma ser indigno de desatar a correia
do calçado de Cristo. Como se dissesse de modo claro: eu não
posso descalçar os pés do nosso Redentor, porque não me apro­
prio imerecidamente do nome do esposo. Contudo, a mesma frase
pode entender-se ainda de outro modo. Ninguém desconhece que o
calçado se faz de animais mortos. O Senhor, vindo encarnado,
apareceu como que calçado, pois assumiu em sua divindade o ca­
dáver da nossa corrupção. Daí também dizer o Profeta: “estenderei
o meu calçado sobre a Idum éia” 8. Pela Iduméia estão designados os
gentios e pelo calçado a mortalidade assumida. Portanto o Senhor
afirma qué estenderá o seu calçado sobre a Iduméia, porque, dan­
do-se a conhecer aos gentios por meio da carne, a divindade veio
a nós como que calçada. O olho do hcmem é impotente para pene­
trar no mistério dessa encarnação. Nãc se pode, em absoluto, inves­
tigar de que maneira o Verbo assumiu b corpo; de que mameira o
espírito supremo e vivificador recebeu a vida, no seio materno; de
que maneira o que não tem início começa a existir no tempo e é
concebido. Conseqüentemente, a correia do calçado é o lado do
mistério. Assim João não pode desatar a correia do calçado de
Cristo, porque não é capaz de perscrutar o mistério da sua encar­
nação, que conheceu pelo espírito de profecia. Que significa, pois,
dizer: “não sou digno de desatar a correia do seu calçado”, senão
declarar humildemente a sua ignorância? Como se dissesse aberta­
mente: que há de admirável, se ele é superior a mim, dado que o
vejo, sim, nascido depois de mim, mas não compreendo o mistério
do seu nascimento? Eis João, cheio do espírito de profecia, reful­
gindo por uma ciência admirável, e contudo declarando a sua igno­
rância.
A este propósito, irmãos caríssimos, devemos ponderar e con- 618
siderar com atenção, que os santos, a fim de guardarem a virtude
426 SÃO GREGÓRIO MAGNPJ

da humildade, quando de medo admirável conhecem certos fatos,-


se esforçam por colocar ante cs olhos da mente o que desconfie?
cem. Assim, percebendo de um lado a sua fraqueza, o seu espírito
não se exalta pelo que, de outro lado, tem de perfeito. A ciência
sem dúvida, é virtude, mas a humildade é guarda da virtude. Portan­
to, que a mente, em meio a tudo aquilo que conhece, se humilhe, a
fim de que aquilo que a virtude da ciência ajunta, o vento do orgu-
lho não leve. Irmãos, quando fizerdes boas ações, trazei sempre á
memória os atos mal feitos, de modo que considerando a culpa, não
se alegra incautamente o espírito, por suas boas obras. Tende os
outros por mais dignos que vós; considerai como próximo mesmo
quem não foi confiado aos vossos cuidados, e que talvez tenhais
viste cometer ações viciosas, pois não conheceis o bem que nele se <esf
conde. Que cada um se esforce por ternar-se grande, mas sem desco?
nhecer aquilo que é, a fim de não perder a grandeza ao atribuí-la arro­
gantemente a si. For isso diz o Profeta: “A i de vós que sois sábios
aos vossos olhos, e prudentes diante de vós mesmos” 9. È Paulo:;
“Não sejais sábios aos vossos próprios olhos” 101. Pelo mesmo motivo
foi dito contra Saul ensoberbecido: “quando eras pequeno aos,.teus;
olhos, foste estabelecido como chefe das tribos de Israel” u . Ópmp
se fosse manifestamente dito: quando te julgavas pequeno, eu te fiz
grande diante dos outros; já, porém, que te fazes grande, cpnsidefo-te
pequeno. Pelo contrário, Davi, quando dançou diante da arca da
Aliança do Senhor, desprezando o poderio do seu reino, disse: “Dan­
çarei e me farei mais vil do que me tenho feito, e serei humilde aos
meus olhos” 12. A quem não encheria de orgulho quebrar a mandíbula
de leões, desmembrar ursos, ser escolhido após o desprezo dos irmãqs
mais velhos, ser ungido para o governo do reino, ao ser o rei re­
provado; prostrar Golias, c terrível, com uma pedra, temido por
todos; trazer, depois de aniquilar os estrangeiros, os numerosos
troféus exigidos pelo rei; receber o reino por promessa, e possuir sem
nenhuma contradição todo o povo israelítico? E contudo ele se de­
clara humilde aos próprios olhos, despreza-se em tudo. Por conseguin­
te, se os santos, mesmo quando realizam obras valorosas, se conside­
ram vis aos próprios olhos, que dirão os que se incham sem o esfor­
ço da virtude? Existam embora boas obras, nenhuma contudo sem o
tempero da humildade! Uma ação admirável, com orgulho, não eleva,
deprime. Quem acumula virtudes sem humildade, atira poeira ao
vento; sua cegueira fica mais grave, justamente porque parece pro­
duzir algum fruto bom. Portanto, meus irmãos; em tudo que fizer­
des, conservai a humildade que é raiz das boas ações. E não olheis
aqueles em relação aos quais sois superiores, mas sim aqueles em

9 Is 5,21.
M Rm 12,16.
11 lSm 15,17.
12 2Sm 6,22.
: DOS “ DIÁLOGOS' 427

relação aos quais sois inferiores, pois, considerando seus exem­


plos, podereis pela humildade aceder sempre às coisas mais ele­
vadas.

: í DOS “D IÁ L O G O S ”
(liv. 1,1: P.L. 77, 149s)

A v id a c o n te m p la tiv a

Uma vez, aturdido pelo exagerado tumulto de pessoas munda- 619


nas, às quais não raro somos forçados a dar, em correspondência a
seus favores, mais do que lhes deveríamos, retirei-me a um lugar soli­
tário, amigo de minhas lágrimas, para examinar claramente tudo o
que me desagrada em meus trabalhos e para concentrar ante os olhos
o que costuma afligir-me. Fiquei ali longamente, sentado em silêncio,
compungido. Depois aproximou-se o diácono Pedrc, caríssimo filho,
amigo desde a flor da juventude e companheiro no estudo da palavra
sagrada. Vendc-me entristecido, perguntou: “Aconteceu-te algo de no­
vo para estares mais preocupado do que de costum e?” Respondi:
“A dor pela qual me lamento cada dia, Pedro, é antiga pe­
lo hábito e sempre nova pelo aumento. Minha alma infeliz, aflita
pela ferida da minha atividade, se recorda do tempo em que vivia
no mosteiro, quando eu tinha sob os pés as coisas passageiras,
me sentia elevado acima do fugaz, me habituava a pensar nas coi­
sas celestes e, apesar dos impedimentos do corpo, superava pela
contemplação a prisão da carne, amando até mesmo a morte, que
pára todos Constitui uma pena, mas que eu considerava ingresso na
vida e prêmio das fadigas. Agora porém, no trabalho pastoral, sob~*a
pressão das coisas e pessoas do mundo, aquela beleza da alma, con­
quistada no silêncio, fica manchada pelo pó das atividades terrenas.
Minha alma, por ter de condescender a muitos, se dispersa nas coisas
exteriores, e ao querer voltar depois às interiores só o consegue com
menos vigor.
Estou recolhendo o que sofro, refletindo sobre o que perdi.
E ao considerar o que perdi, agrava-se meu pesar. Veja: estou sa­
cudido por imensas vagas e a navezinha de minha alma está re­
volvida por uma tempestade furiosa. Recordando a vida passada e
olhando para trás, vejo a praia e suspiro! Mas, o que é mais sério:
arrastado pelas ondas, quase já não pcsso ver o porto que deixei.
Realmente, é o que se verifica com a alma. Primeiro, perde o
bem que tinha, recordando-se ainda de o ter perdido. Aos poucos
vai-se afastando e até se esquece do bem que perdeu; acontece entãó
que já não vê na memória o que antes estava presente nas ações.
Ácontece exatamente isto: ao navegar para longe, não vemos mais
o porto de paz que deixamos.
428 SÃO GREGÓRIO MAGNO

E ainda por cima fico a pensar nos felizes que abandonaram


com todo o ânimo o século presente. Isto aumenta minha nostalgia .
Ao pensar na culminância onde estão, compreendo mais o vale onde me
a c h o ... Eles agradam ao Criador por sua vida escondida; e a ju­
ventude de seu espírito, sempre se renovando, não envelhece com
atividades ^humanas. Porque Deus onipotente não quis que se ocupas­
sem com as coisas deste mundo".

D O S “D IÁ LO G O S "
(liv. 2, cap. 37: P.L. 66, 202)

A m o rte d e Sã o B e n to

620 No mesmo ano em que devia partir desta vida, Bento anun­
ciou o dia de sua santíssima morte a alguns discípulos que com ele
viviam e a outros que moravam longe. Aos presentes acrescentou que
guardassem em silêncio o que ouviram, e aos ausentes ainda deu a
saber o sinal que se produziria para eles quando à alma se lhe apar­
tasse do corpo.
Seis dias antes da morte, mandou abrir a sepultura. Pouco
depois, atacado de febre, começou a ser atormentado por violenta
temperatura. Como dia a dia se agravasse o mal, no sexto dia fez-se
levar ao oratório pelos discípulos e aí muniu-se para a partida, com
a comunhão do corpo e do sangue do Senhor. A seguir, apoiando
nos braços dos discípulos os membros enfraquecidos, ficou de pé com
as mãos elevadas para o céu, e entre palavras de oração exalou o úl­
timo suspiro.
Na mesma data, foi comunicada a dois irmãos, des quais um
estava no mosteiro e outro distante, igual visão: ambos viram um
caminho forrado de tapeçarias e coruscante de luzes, estendido desde
a cela de Bento até o céu, em direção do oriente. No alto, estava um
homem de venerando e resplandecente aspectc, que lhes perguntou de
quem era a estrada que viam: eles confessaram que ignoravam; en­
tão lhes disse: “Este é o caminho pelo qual Bento, o amado do
Senhor, subiu ao céu". Assim aconteceu que, como os discípulos pre­
sentes viram a morte do santo varão, também os ausentes dela tiveram
conhecimento, pelo sinal que lhes fora prenunciado.
Foi sepultado na capela de S. Jcão Batista, que ele próprio cons­
truíra após ter derribado o altar de Apoio. E na mesma gruta de
Subiaco em que primeiro habitou, ainda hoje refulge em milagres,
quando a fé dos suplicantes o exige.
SANTO ISIDORO DE SEVILHA
( t 63.6)

Tido em geral como “o último Padre do Ocidente”, fora bispo de Sevilha desde
601. Em 633 dirigiu o IV Sínodo de Toledo. Escritor erudito, fecundo, exerceu notá­
vel influência na Idade Média através de sua obra enciclopédica, cs 20 livros das
E tim o lo g ia s , onde se armazenam os principais conhecimentos profanos e religiosos de
sua época. Escreveu também tratados exegéticos, dogmáticos, ascéticos e litúrgicos.

L IV R O SÉTIM O D AS E T IM O LO G IA S
(P.L. 82, 263-267)

“Os nomes de Jesus"

De muitas maneiras Cristo é designado nas divinas Escrituras, 621


pois sendo c Filho unigénito de Deus, igual ao Pai, tomou nossa
natureza de servo para nos salvar: assim, uns nomes convêm a
Cristo em razão da divindade e outros, em razão da natureza huma­
na que assumiu,
É chamado, em primeiro lugar, Cristo, isto é, ungido. Era cos­
tume, entre os judeus, consagrar o ungüento com que ungiam ,os
reis e sacerdotes; e assim como agora a púrpura é o distintivo real,
cutrora a unção conferia aos reis seu nome e autoridade, e por
isso se diziam, em grego, “cristos”, isto é, ungidos. E este nome,
espiritiialmente, se translada ao Senhor, que foi ungido em espí­
rito por seu Pai, como se lê nos Ates dos Apóstolos: “aliaram-
-se na cidade contra teu Santo Filho, que ungiste” l . Não, certa­
mente, com o óleo natural, mas com o ungüento invisível da graça.
Assim, o nome de Cristo, à diferença do nome Jesus Cristo, não é
exclusivo do Salvador, mas também nome comum de dignidade. O
vocábulo “Cristo”, porém, esteve em uso somente naquele povo que
anunciou o “Messias”, palavra que em grego se traduz como “Cris­
to”, e na língua latina, “Ungido”.
A palavra hebraica Jesus, em grego “Soter”, se traduz em latim
por Salvador, porque veio para salvar a todos os povos. E é esta etimo­
logia que o evangelista indica quando diz: “chamarás seu nome Jesus,

1 At 4.25.
430 SANTO ISIDORO DE SEVILHA

porque ele salvará seu povo ” 2. Como Cristo significa Rei, assim
Jesus significa Salvador. Portanto não foi um rei qualquer que nos
salvou, mas o rei Salvador; e este vocábulo de Salvador, embora
pudesse tê-lo a língua latina (como quando quis a teve), antes não
o tinha.
Emanuel, em hebraico, significa Deus conosco, porque Deus
nasceu da yirgem e revestiu a carne de nossa mortalidade para nos
abrir o caminho do céu. Os nomes que se referem à substância da
divindade são Deus e Senhor. Diz-se Deus, por sua consubstancialida-
de com o Pai; diz-se Senhor, pelo domínio sobre as criaturas.
Diz-se Deus e homem, porque Verbo e carne. Daí também ser
dito gerado duas vezes, pois o Pai o gerou na eternidade, sem
mãe e a Mãe o gerou sem pai no tempo.
Unigénito chama-se ele segundo a excelência da divindade, na
qual não teve irmãos; Primogênito, segundo a humanidade assumi­
da, pela qual teve irmãos na adoção da graça.
622 Homoúsios ao Pai diz-se pela unidade de substância; usía signi­
ficando essência, e hómos, a mesma, e conseqüentemente o vocábulo
significa consubstanciai, conformè a Escritura: “o Pai e eu somos
uma mesma coisa”, isto é, somos consubstanciais. Embora esta pa­
lavra não se ache nas Escrituras, ao tratar-se da Trindade há razão
para ser usada. Como aliás tampouco se diz nas Escrituras “ingênito
do P ai”, e ninguém duvida que seja preciso dizer-se e confessar-se
o Cristo assim. “Homoúsios” se diz pela semelhança de substância;
porque tal é Deus, tal é sua imagem, invisível Deus, invisível sua
imagem.
Princípio chama-se, porque dele derivam todas as coisas, e ante$
dele nada existiu.
Fim, porque se dignou nascer e morrer no fim dos tempos*
e também porque se reservou o Juízo Final, e ainda a ele dirigimos
nessas obras como a um fim, não havendo além dele finalidade ul­
terior a que possamos referi-las.
Boca de Deus chama-se porque é seu Verbo, e como pelas
palavras se conhece a língua que as prefere, assim, em lugar de
Verbo, dizemos Boca de Deus, porque o costume é que as palavras
se profiram oralmente.
Verbo se diz, porque o Pai tudo fez e ordenou por ele. Verdade,
porque não engana, mas cumpre suas promessas. Vida, porque nos
criou. Imagem, por sua semelhança de identidade com o Pai. Figura,
porque na forma de servo refletiu, com. suas obras e virtudes, a ima­
gem e imensa grandeza do Pai. Mão de Deus, porque por ele se fi­
zeram todas as coisas; e Mão direita, porque fez a totalidade da
criação. Braço, porque tudo sustenta. Virtude, porque comunica
todo o poder do Pai, contém, rege e governa o céu, a terra e todas

2 Mt 1,21.
LIVRO SÉTIMO DAS ETIMOLOGIAS 431

as criaturas. Sabedoria, porque revela todos os mistérios da ciência,


e os arcanos do saber. E embora também o Pai e o Espírito Santo
sejam sabedoria, virtude, luz e resplendor, estes nomes singularmen­
te se acomodam ao Filho. Esplendor, chama-se porque manifesta o
Pai. Lume, porque ilumina. Luz, porque ilumina a alma para a con­
templação da verdade. Sol, por seus luminosos raios. Oriente, porque
nos ilumina, ilustra e orienta para a vida eterna. Fonte, porque é
origem de todas as coisas, e refrigério de nossa sede. Alfa e O mega :
Alfa, porque ao alfa nenhuma letra precede, sendo a primeira de
todas: assim o Filho de Deus é o princípio, como disse aos judeus,
e por boca de são João, no Apocalipse: “Eu sou o Alfa e o Omega:
o princípio e o fim ” 3. O primeiro, porque antes dele não houve
nada, e o fim, porque se reserva o Juízo final de todas as criaturas.
M ediador, porque o é entre Deus e os homens, a fim de conduzir o
homem a Deus; daí os gregos chamarem-no “Mesites”. Par ádito,
porque é advogado para interceder ante o Pai por nós, como diz
são João: “Temos um advogado ante o Pai, Jesus Cristo” 4, e o
grego “paráclito” se traduz em latim “advccatus”, nome que se apli­
ca ao Filho e ao Espírito Santo, conforme diz o Senhor no Evange­
lho: “rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito” 5. Intercessor
chama-se porque cuida de remover nossas culpas e lavar nossos
pecados. Esposo, porque desceu do céu e se conjugou à Igreja,
a fim de serem dois numa só carne, na paz do Novo Testamento.
Anjo, porque anunciou a vontade do Pai e sua. Daí o profeta cha­
má-lo “anjo do grande conselho”: é Deus o Senhor dos anjos. En­
viado, porque apareceu no mundo e se fez carne, conforme a pala­
vra: “saí do Pai e vim ao mundo” 0. Homem, pois nasceu; Profeta,
pois vaticinou; Sacerdote, pois nos ensina; Nazareno, pelo lugar de
seu nascimento, e também porque é santo e puro, sem a mácula do
pecado. •
Outros nomes menores recebe ainda Jesus Cristo, para seu 623
mais fácil conhecimento.
Diz-se Pão, pois é carne; Videira, pois nos remiu com seu san­
gue; Flor, enquanto é eleito; Via, enquanto nos leva ao céu; Porta,
enquanto nos introduz diante de Deus; M onte, por sua fortaleza;
Rocha, por sua solidez; Pedra angular, porque uniu os muros da
gentilidade e do judaísmo no mesmo edifício de sua Igreja, ou por­
que pacificou em si os anjos e os homens. Pedra de tropeço, porque
em sua humildade tropeçaram cs incrédulos, convertendo-se para des
em pedra de escândalo, conforme a palavra do Apóstolo: “é escân­
dalo para os judeus” 7. Fundamento, porque nele se firma nossa fé,
SANTO ISIDORO DE SEVILHA

e se consolida a Igreja católica. Cordeiro por sua inocência; Ovelha,


por sua paciência; Leão, por sua soberania e fortaleza; Serpente,
por sua morte e também por sua prudência; Larva, porque ressus­
citou; Águia, porque ressuscitado subiu aos céus.
E não é de se estranhar que se chame o Salvador com esses
humildes vocábulos, pois se dignou descer à nossa passível natureza,
assumir a humildade de nossa carne. Sendo incriado e eterno como
o Pai, tomou a forma de servo e se fez homem por nossa salvação.
Assim, uns nomes lhe convêm segundo a divindade; outros, segundo
a humanidade que assumiu.
Segundo a divindade, ele mesmo diz: “meu Pai e eu somos a
mesma coisa” 8. Mas segundo a humanidade assumida afirma: “meu
Pai é maior que eu” 9. Ora os que não entendem transpõem para
a divindade os nomes que convêm a nosso Senhor por sua humil­
dade, e os nomes de pessoa à natureza, errando na fé.
De tal maneira assumiu o Filho de Deus a humana natureza,
que das duas naturezas resultasse apenas uma pessoa. Assim , embora
somente o homem tenha sofrido na cruz, foi Deus quem dizemos ter
sofrido, por causa da unidade de pessoa. Donde, a Escritura: “Se
o conhecessem, nunca sacrificariam o Senhor da glória” 10. Nós com
fessamos que o Filho de Deus foi crucificado, não na virtude da
divindade, mas na fraqueza da humanidade, não na impassibilidade
da divina natureza, mas na humanidade que assumiu.

Jo 1 0 J0
Jo 14,28
> ICor 2,8.
SANTO ILDEFONSO DE TOLEDO
(617-667)

Mcnge e abade no mosteiro des santos Cosme e Damião, nos arredores de Tole­
do, e mais tarde bispo da cidade. Sua obra principal, Sobre a virgindade de Santa
Maria, contra três infiéis, valeu-lhe a designação de “campeão da Virgem", na peça de
mesmo título de Lope De Vega. Característico é o estilo dos sinônimos, multiplica­
dos ao extremo. Entre outras obras deve ser assinalado ainda o De viris Ülustribus,
série de biografias de importância para a história eclesiástica espanhola.

A VIRGINDADE PERPÉTUA DE SANTA MARIA


(P.L. 96, 58)

Oração

Ó Senhora minha, dona minha que me dominas, genitora de 624


meu Senhor, serva de teu Filho,^ Mãe do Criador, rogo-te, peço-te,
suplico-te, habite em mim o espírito de teu Senhor, o espírito de
teu Filho, o espírito de meu Redentor, para que digna e verdadeira­
mente entenda de ti e fale de ti, e tudo quanto de ti afirme séja
digno de ti. Pois és eleita por Deus, por Deus chamada, assumida
por Deus, próxima de Deus, aderida a Deus, unida a Deus; visi­
tada pelo anjo, saudada pelo anjo, felicitada pelo anjo, surpreendi­
da pela anunciação, atônita ao meditá-la, assombrada pelo vaticínio e
admirada ao ouvi-lo.
Ouviste que havias encontrado graça diante de Deus e que
nada deverias temer, sendo assim fortalecida com a confiança, ins­
truída com a revelação dos milagres e elevada à altura de inaudita
glória.
Tua pureza fica salva no anúncio angélico sobre tua prole;
tua virgindade encontra segurança no nome de teu filho, e assim
permaneces honesta e íntegra depois do parto. Anuncia-te o anjo que
teu filho há de ser chamado Santo e Filho de Deus, e te \submetes
admiravelmente ao poderio do Rei que de ti nascerá. Perguntas co­
mo se há de dar isso? Perscrutas a razão? Indagas acerca da reali­
zação? Pretendes descobrir de que modo? Escuta o oráculo inaudi­
to, considera a obra insólita, adverte o mistério, atende o feito

15 - Antologia dos santos padres


434 SANTO ILDEFONSO DE TOLEDO

jamais viste. O Espírito Santo descerá sobre ti e te fecundará a vir­


tude do Altíssimo. Invisivelmente concorrerá nessa concepção toda;
a Santíssima Trindade, embora somente tome carne em ti a pessoal
dc Filho de Deus, que de ti há de nascer. Portanto, aquele a quem
conceberás, e que de ti nascerá, aquele a quem darás a luz, e que
per ti será gerado, se chamará Filho de Deus. Será grande de ver­
dade, 0' Deus das virtudes, o Rei dos séculos, o Autor do universo.
Bem-aventurada tu entre as mulheres, Rainha entre as rainhas. Bem-
-aventurada te chamarão todas as gerações, bem-aventurada confes­
sam-te as hierarquias celestiais, bem-aventurada anunciam-te os pro­
fetas, bem-aventurada aclamam-te as nações. Tu és bem-aventurada pa­
ra a minha fé e para minha alma, o encontro de meu amor, o prê­
mio de meus elogios e de minhas prédicas. Oxalá pudesse com meu
elogio medir teus méritos, amar-te como devo, servir-te ccmo con­
vém à tua glória. Tu, recebendo a Deus, te fizeste a escrava do
Senhor! Tu, a primeira que geras ao mesmo tempo ao Deus e ho^
mem, ao Verbo feito homem!
625 Acolhes a Deus como hóspede, concebendo aquele que é Deus
e homem. No passado eras pura diante de Deus, no presente estás
repleta do Deus-Homem e gerarás o Homem-Deus. Mãe e Virgem,
cheia de júbilo, gloriosa por tua prole e per tua honestidade, fiel a
teu filho e a teu esposo. A tal ponto foste fiel a teu filho que ele
não conhece pai, segundo a carne. Tão fiel a teu esposo, que
ele te reconhece mãe sem obra de varão. Tanto mais identificada
com a glória de teu filho, quanto mais incontaminada. Instruída
sebre o que devias saber, ensinada sebre o que devias crer, garan­
tida sobre o que devias esperar, fortalecida para o que devias con­
servar. Percebe com teu ouvido, Joviniano estulto e fútil, entende
em teu coração e aprende! Não quero ver-te questionar sobre c pudor
de nossa Virgem no parto, não quero ver-te corromper a sua inte­
gridade na geração; não quero saber violada sua virgindade no mo­
mento em que deu à luz. Não lhe negues a maternidade, porquê
foi virgem; não a prives da plena glória da virgindade, porque foi
mãe. Se uma destas coisas tu confundes, em tudo erraste.
Desconhecer a harmonia que as une é ignorar por completo á
verdade que encerram. Se não pensas assim, estás errado, pecas con­
tra a justiça. Se negas à Virgem sua maternidade ou sua virgindade,
injurias grandemente a Deus. Negas què ele possa fazer sua von­
tade, que ele possa manter virgem a que encontrou virgem. Mas
então a divindade do Onipotente antes trouxe detrimento do que
benefício a Maria; enfeiou-a aquele que a enchera de beleza, aõ
criá-la. Cesse o pensamento que assim julga, cale-se a boca que
assim fala, não ressoe tal voz. Por que Maria é virgem por graça
de Deus, virgem de homem, virgem por testemunhe do anjo, virgem
por declaração do esposo, virgem antes de tê-lo, virgem depois de
despcsá-lo, virgem sem sombra de dúvida, virgem antes da vinda
A VIRGINDADE PERPÉTUA DE SANTA MARIA 435

de seu filho, virgem depois de concebê-lo, virgem no parto, virgem


depois do parto. Fecundada pelo Verbo e dele repleta, dignamente
deu-o à luz, em nascimento humano, sim, conforme à condição e
à verdade das coisas humanas, mas de medo intacto, incorrupto e
tctalmente íntegro. Isso ela deve a um dom divino, a uma divina
graça, a uma divina concessão, mediante uma obra totalmente no­
va, de eficácia nova, de realização inédita, mantendo-se virgem pela
concepção e depois da concepção, pelo parto, com o parto e depois
do parto, virgem com o que havia de nascer, cóm o que nascia,
virgem depois de seu nascimento. Dita, pois, esposa e virgem, es­
colhida para esposa e virgem, criada como esposa e virgem. Sem­
pre virgem, apesar do filho e do esposo, alheia a toda união e
comércio conjugal. Verdadeiramente virgem e santa, virgem glorio­
sa, virgem honrada. E após o nascimento do Verbc encarnado, após
a natividade do homem assumido em Deus, dc homem unido a
Deus, mais santa virgem ainda, santíssima, mais bem-aventurada,
mais gloriosa, mais nobre, mais honrada e mais augusta.
SAO MAXIMO, O CONFESSOR
(c. 580-662)

Natural de Constantinopla, tornou-se secretário do imperador Heráclio, mas cedo:


entrou no mosteiro de Crisòpolis, Lutou contra o monofisismo e mais tarde contra
o monotelicmo, sendo que por causa dessas lutas foi preso, exilado e cruelmente
martirizado.. Obtivera a condenação da heresia monoteleta no concílio de Latrão (649).
Grande teólogo, profundo e místico, com influências de Orígenes, Evágrio, Gregóriò
Nazianzeno, Lfconísio. Há alguns anos tem sido '‘redescoberto” por eminentes au­
tores de nosso tempo, como H. Urs von Balthasar, que o estudou cm seu conhecido
livro Liturgia cósmica, publicado em 1941.
Máximo tem escritos exegéticos, doutrinários, ascético-místicos e na Mystagogia
dá uma interpretação simbólica da Liturgia. As Centúrias, que apresentamos a se­
guir, foram escritas no ambiente monástico de Crisòpolis, de vida contemplativa in­
tensa e de cultura teológica, um ambiente análogo ao que temos hoje nas Cartuxas.
As Centúrias da caridade estão editadas em tradução francesa: S.C, vol. 9, com
netas de J. Pegon, S.J.

CENTÜRIAS SOBRE A CARIDADE


(P.G. 90, 959ss)

Da 1* centúria1

626 1. A caridade é uma boa disposição da alma, que a faz pre­


ferir a tudo o conhecimento de Deus. Chegar à posse habitual desse
amor é algo de impossível se se conserva apego a qualquer objeto
terrestre.
2. A caridade nasce da liberdade interior; a liberdade interior,
da esperança em Deus; a esperança, da paciência e da longanimidade;
estas, do vigilante domínio de si, do temor de Deus, e este nasce
da fé em Cristo.
3. Quem crê no Senhor receia o castigo; quem receia o castigo
domina as paixões; quem domina as paixões suporta pacientemente
as aflições; quem suporta as aflições adquire a esperança em Deus.
E a esperança em Deus desliga o espírito de todo apego terrestre.
Então o espírito possuirá o amor de Deus.

1 Kepbalaia (em latim = capita, “capítulos” ), agrupados por cem.


CENTÚRIAS SOBRE A CARIDADE 437

4. Quem ama a Deus, prefere seu conhecimento a todas as


coisas criadas, e se empenha nessa direção ininterruptamente, com
ardente desejo.
5. Se todo ser não existe senão por Deus e para Deus, e sc
Deus está acima das criaturas, o homem que abandona a Deus para
se apegar às criaturas mostra que as prefere a ele, o Ser incomparavel­
mente superior.
6. Quem conserva o espírito firmemente preso ao amor de
Deus subestima o que é visível, até o próprio corpo — como se fos­
se coisa alheia.
7. Se a alma supera o corpo, se Deus é imensamente melhor
que o mundo, quem prefere o corpo à alma, e o mundo a Deus, nlo
difere dos idólatras.
8. Apartar o espírito do amor de Deus e da assídua atenção
que isto exige, para fixar-se numa realidade sensível, é antepor o
corpo ao espírito, é antepor a Deus Criador o que não existe senão
por ele.
9. Se a vida do espírito é a iluminação do conhecimento, e se
esta iluminação é produzida pelo amor de Deus, está certo dizer:
“acima do divino amor nada h á ”.
10. Quando, em transporte do amor, o espírito emigra para
Deus, já não conserva a experiência de si mesmo ou de qualquer
outra coisa. Inteiramente iluminado pela infinita luz de Deus, tor-
na-se insensível a tudo que não tem existência senão por ele. Da
mesma forma como não se vêem as estrelas quando se ergue o-sol.
11. Todas as virtudes ajudam a alma ao amor ardente de Deus,
pcrém mais do que as outras a oração pura, mediante a qual o es­
pírito voa para Deus e se desliga completamente das criaturas.
12. Quando, pela caridade, o conhecimento de Deus arrebata o
espírito e este, desligado das criaturas, percebe a infinitude divina,
toma então consciência de sua baixeza, como Isaías, e estupefato rediz
as palavras do profeta: “ai de mim, que estou perdido! pois sou
homem de lábios impuros, habito num povo de lábios impuros, e
nc entanto vi com meus olhos o Senhor, o Rei dos exércitos!” 2
13. Quem ama a Deus não pode deixar de amar cada homem co­
mo a si próprio, mesmo se escandalizado com as paixões dos que ain­
da não se purificaram. E ao vê-los converter-se e reformar a vida,
sente-se inundar a alma de uma alegria indizível.

2 Is 6,5.
438 SÃO MÁXIMO, O CONFESSOR

627 22. Quem escapa às . cobiças do mundo se tom a inacessível à


tristeza do mundo;
23. Quem ama a Deus, ama ao próximo sem reserva. Incapaz
de guardar ás próprias riquezas, distribui-as como Deus, dando a ca­
da um o de que ele precisa.'
24. Q uem , aò dar a esmola, procura imitar a Deus, não coloca
diferença alguma entre bom e mau, honesto ou desonesto, desde que
se trate-de necessitado. Dá a todos, a cada um segundo suas pre­
cisões, ainda se preferindo, por causa da boa vontade, o bom ao mau.
25. Deus, por natureza bom e sem paixão, ama todos os ho­
mens, obras de suas mãos, mas glorifica o justo porque este lhe está
intimamente unido pela vontade; e em sua bondade, apieda-se do
pecador, instruindc-o nesta vida para convertê-lo. Assim, o homém
bom e sem paixão, ama igualmente todos os homens, os justos por
sua boa natureza e boa vontade; e os pecadores, por caüsa de sua
natureza e também em virtude dessa piedade compassiva qué se tem
para com um louco que mergulha na noite. " .
26. Dar Iargamente cs próprios bens é sinal de caridade; quan­
to mais distribuir a palavra de Deus e prestar serviço aos outrosi
27. Quem renunciou francamente aos bens do mundo e, sem
pensar atrás, se torna’ servidor do próximo, ficará logo liberado
de toda paixão e feito participante do amor e conhecimento de Deus.
28. Quem possui em si o amor de Deus não se fadiga de seguir
o Senhor seu Deus, aomo disse o divino Jeremias, mas suporta ge-
nercsamente as dificuldades, críticas, violências, sem querer a nin­
guém o menor mal.
29. Se um homem te ultrajou ou te desprezou, calcula bem
tua cólera para não acontecer que por causa de um amargor venhas
a separar-te da caridade e a estabelecer-te nas regiões do ódio.
30. Sofres uma ofensa ou desatenção? Sabe que há grande pro­
veito no fato de tua vaidade ser assim providencialmente anulada
pela humilhação.
31. A lembrança do fogo não esquenta o corpo. A fé sem
amor não realiza na alipa a iluminação do conhecimento.

41. Quem ama a Deus não contrista o outro, nem se entris­


tece com ninguém, por motivos de ordem temporal. Não inspira e não
sente senão uma tristeza, esta salutar, a que s. Paulo sentia a res­
peito dos coríntios, e lhes procurou inculcar3.

3 2Cor 7,8.
CENTÚRIAS SOBRE A CARIDADE 439

42. Quem àma a Deus leva sobre a terra uma vida angélica, no
jejum, nas vigílias, no canto dos salmos e na oração, julgando bem a
toda gente.
43. Quem aspira por uma coisa, luta para adquiri-la. Ora, mais
que tudo de bom e desejável é Deus; que ardor não deveria ser
o nosso para adquirir esse bem em si e desejável!
44. Não manches a carne por más ações, não sujes a alma por
maus pensamentos, e a paz de Deus descerá sobre ti, trazendo-te a cari­
dade.

47. Quem não obteve ainda a ciência de Deus, fruto da cari- 628
dade, se orgulha com os bons atos, realizados segundo Deus. Mas
quando for julgado digno dela, dirá com profunda convicção as pa­
lavras do patriarca Abraão, ao ser gratificado pela manifestação divi­
na: “eu não sou mais que terra e cinza” 4.
48 . Quem teme a Deus possui a humildade por constante
companheira: graças aos pensamentos que ela inspira, chega ao amor
e reconhecimento para com Deus. Ela lhe recorda como outrora vi­
veu segundo o século, recorda suas quedas, as tentações experimen­
tadas na mocidade, como o Senhor o livrou de tudo isso e o fez
passar, da existência sujeita às paixões, a uma vida segundo Deus.
Então, juntamente com o temor, invade-o o amor, e ele não cessa
de dar graças, com profunda humildade, ao Benfeitor e Guia de nossa
vida.

Da 2* centúria

6. Na culminância da oração pura, distinguem-se dois estados: 629


o dos ativos e o dos contemplativos. O primeiro resulta, na al­
ma, do temor de Deus e da boa esperança; o outro, do abrasamento
do divino amor e da purificação total. Indicações do primeiro estado:
o espírito se recolhe, se subtrai aos pensamentos do mundo e, no pen­
samento de que Deus está presente — e Ele está! — faz oração sem
distrações nem perturbação. Indicações do segundo estado: o espí­
rito se deixa arrebatar, no impulso mesmo da «oração, pela infinita
luz divina; perde então todo sentimento de si e dos outros seres, exce­
to d ’Aquele .que realiza, pelo amor, esta iluminação. E atraído pelas
propriedades de Deus, o espírito adquire noções puras e profundas so­
bre Ele.

4 Gn 19.27.
440 SÃO MÁXIMO, O CONFESSOR

7. Ao que amamos aderimos sem reserva, desprezando todo


obstáculo capaz de nos afastar dali. Quem ama a Deus aplica-se à
oração pura, rejeitando toda paixão que faça obstáculo.
8 . Rejeita o egoísmo, fonte das paixões, e não terás dificuldade,
com a ajuda divina, em afastá-las todas: a cólera, a tristeza, o ran­
cor. . . Mas se cedes à primeira delas serás, sem querer, ferido pela
segundã. Considero o egoísmo uma paixão cujo objeto é o corpo.

630 13. Os demônios nos tentam, ou eles mesmos, ou armando, con­


tra nós, homens sem temor de Deus. Tentam-nos eles mesmos se
vivemos no retiro, como o Mestre no deserto; através dos homens,
se vivemos em sociedade, como o Mestre entre os fariseus. Mas pon­
do os olhos em nosso modelo podemos repelir ambos os ataques.

16. A paixão é um movimento da alma contra a natureza, se­


guinte a um amor irracional ou a uma aversão, também irracional, para
com uma realidade sensível qualquer, cu causada por ela. Amor irra­
cional, por exemplo, da boa mesa, de uma mulher, da riqueza, dd
renome passageiro.. . Aversão irracional, para com uma ou outra des­
sas coisas, por causa delas.

21. Desempenha o papel de diácono quem unge o espírito para


os sagrados combates e expulsa os pensamentos da paixão; o papel de
sacerdote, quem ilumina o espírito para o conhecimento dos seres
expulsando a falsa ciência; o papel de bispo, quem aperfeiçoa
o espírito pela santa unção, que é o conhecimento da Trindade santa
e adorável.
22. A força dos demônios diminui, quando a prática dos man­
damentos atenua as paixões em nós. Fica destruída quando enfim,
por efeito da liberdade interior, as paixões desapareceram da alma.
Porque os demônios não acham mais as cumplicidades que serviam
de base para os ataques. Daí o sentido do versículo: “eles perderão
a força e perecerão diante de tua face” 5.

631 27. No limiar do conhecimento de Deus, não busques conhecer


sua essência: o espírito humano não chegaria a tanto, ninguém, se­
não Deus mesmo, a conhece. Mas considera a fundo (na medida que
podes) seus atributos, por exemplo: sua eternidade, infinidade, invi­
sibilidade, bondade, sabedoria, poder qúe cria, governa e julga os

5 SI 9,4.
CENTÚRIAS SOBRE A CARIDADE 441

seres. Merece o nome de teólogo aquele, entre todos, que procura


descobrir, por pouco que seja, a verdade desses atributos.

29. Pelas palavras: “meu Pai e eu somos uma só coisa”, o 632


Senhor designa a identidade da divina essência. Pelas outras: “eu
estou no Pai e o Pai está em mim”, ele declara que as Pessoas são
inseparáveis. Os Triteistas, separando Filho e Pai, caem no impasse.
Porque das duas uma: ou mantêm que o Filho é coeterno com o Pai,
quando os separam, e então precisam negar que o Filho seja gerado
pelo Pai, resultando a afirmação de três deuses, três princípios; ou,
ao contrário, afirmam a geração, embora mantendo a separação, e
assim vão negar que o Filho seja coeterno com o Pai, passam a
submeter o Mestre à condição do tempo. Conclusão: com o ilustre
Gregório6, mantenhamos a unidade de Deus professando a Trindade
das Pessoas, cada qual com seus traços distintivos, pois são reali­
dades distintas, mas a unidade é indivisível; são igualmente unidade
e diversidade. Portanto, estes dois aspectos, unidade e diversidade,
são incompreensíveis. Sem isto, onde estaria o mistério, se o Filho e
o Pai fossem unidos e distintos simplesmente como dois homens?

32. Três forças nos movem ao bem: as tendências profundas da 633


natureza, os bons anjos, a vontade boa. O fundo da natureza, quan­
do fazemos a outrem o que queríamos feito a nós, ou vendo alguém
em situação difícil sentimos compaixão natural. Os bons anjos, quan­
do, prontos para uma boa ação, percebemos sua cooperação favo­
rável e conseguimos caminhar sem dificuldade. A vontade boa, quan­
do, discernindo o bem e o mal, escolhemos deliberadamente o Hem.
33. Inversamente, três forças nos impelem ao mal: as paixões,
os demônios, a vontade má. As paixões, quando sentimos o desejo
irrazoável: comer sem necessidade, ter prazer com uma mulher, so­
bretudo se não é a nossa, rejeitando a procriação dos filhos; quando
nos encolerizamos, damos vazão ao amargor contra alguém que nos
injuriou. Os demônios, quando, por exemplo, num momento de ne­
gligência, nos vemos subitamente assaltados, como por um adversá­
rio à espreita, que vem revolucionar as paixões de que falamos. A
vontade má, quando, sabendo onde está o bem, escolhemos o mal.

35. Muitas ações humanas, boas em si, podem cessar de o ser


por seu motivo. O jejum, as vigílias, a oração, o canto dos salmos,
a esmola, a hospitalidade são em si boas ações; feitas por vaidade,
não mais.

6 Referência a 8. Gregório Nazianzeno.


442 SÃO MÁXIMO, O CONFESSOR

36. Em todas as nossas ações, Deus considera a intenção: se


agimos por causa dele ou por outro motivo.
37. A palavra da Escritura: “ tu darás, Senhor, a cada um con­
forme suas obras” 7 significa que Deus recompensa as boas ações;
não as que parecem boas, mas são feitas contra a reta intenção; e sim
as que prpcedem da reta intenção. Pois c julgamento de Deus não
visa tanto a obra quanto a intenção.

Da 4* centúria

634 1. Quando pensa na infinidade absoluta de Deus, oceano in­


transponível e tão desejado, o espírito inicialmente se torna presa
de admiração. Depois, fica aturdido ao pensamento de como Ele, do
nada, fez os seres existirem. A.ssim como sua grandeza é infinita,
igualmente sua sabedoria.

77. Quem te iluminou para creres na Trindade santa, consubs­


tanciai e adorável? Quem te fez conhecer a Encarnação de uma das
Pessoas dessa Trindade santa? Quem te ensinou as razões dos seres
incorpóreos, da origem e do fim do mundo visível, da ressurreição
dos mortos e da vida eterna, da glória do reino dos céus e do te­
mível Juízo? Quem, senão a graça que habita em ti, penhor do Es­
pírito Santo? Que há de maior do que essa graça? que mais exce­
lente do que a divina sabedoria e ciência? Que de mais belo do que
as divinas promessas? Se permanecemos inertes, negligentes, na pu­
rificação das paixões que obscurecem c espírito, para sermos capa­
zes de ver, mais clara que o dia, a íntima estrutura daquelas realida­
des, não nos lamentemos senão d e : nós mesmos, guardemo-nos de
negar a presença em nós da graça.

7 SI 41,14.
SÃO JOÃO DAMASCENO
(c. 675-749)

É o último dos Padres da Igreja grega. Monge no mosteiro de São Sabas, em Je-
rusrJém, dedicou-se, após sua ordenação presbiteral, à pregação e aos estudos, tendo
composto um manual de Teologia, Fonte do conhecimento, que se tornou clássico na
Idade Média. Redigiu ainda escritos polêmicos, especiaímente sobre o culto dás
imagens, um comentário às Epístolas de são Paulo, textos ascéticos, várias Homílias
e hinos litúrgicos. Inspira-se nos grandes Padres gregos.
Ed. em grego e francês: S.C. 80 ( "Homélies sur la nativité et la dormition").

III HO M ILIA SOBRE A DORMIÇÃO DA MÃE


SANTÍSSIMA DE DEUS
(P.G . % , 753-761)

Quem ama ardentemente alguma coisa costuma trazer seu no- 635
me nos lábios e nela pensar noite e dia. Não se me censure, pois,
se pronuncio este terceiro panegírico da Mãe de meu Deus, como
cíerenda em honra dé sua partida. Isso não será favor para ela
mas servirá a mim mesmo e a vós, aqui presentes — divina *e santa
assembléia —- como um manjar salutar que, nesta noite sagtada,
satisfaça nosso gosto espiritual. Estamos sofrendo, como sabeis, de
penúria de alimentos. Assim, improviso a refeição; se não é suntuosa
nem digna daquilo que no-la inspira, possa ao menos acalmar-nos
a fome. Sim, não é Maria que precisa de elogios, nós é que precisa­
mos de sua glória. Um ser glorificado, que glória pode receber
ainda? a fonte da luz, como será iluminada ainda? É pois para nós
mesmos que fazemos a coroa. “Vivo eu, diz o Senhor, e glorificarei
os que me glorificam” 1.
O vinho agrada sem dúvida, é deliciosa bebida, e o pão ali­
mento nutritivo: um alegra, o outro fortifica o cotação do homem2.
Mas que existe de mais suave do que a Mãe de meu Deus? Ela
cativou meu espírito, ela reina sobre minha palavra, dia e noite sua
imagem me é presente. Mãe do Verbo, dá-me de que falar! FUha de
444 SÃO JOÃO DAMASCENO

mãe estéril, toma fecundas as almas estéreis! Eis aquela cuja festa
celebramos hoje em sua santa e divina Assunção.
Acorrei, pois, e subamos a montanha mística. Ultrapassando as
imagens da vida presente e da matéria, penetrando na treva di­
vina e incompreensível, ingressando na luz de Deus, celebremos o
seu infinito poder. Aquele que, de sua transcendência superessencial
e imaterial', desceu ao seio virgíneo para ser concebido e se encar­
nar, sem deixar o seio do Pai; aquele que através da Paixão mar­
chou voluntariamente para a morte, conquistando pela morte a imor­
talidade e voltando ao Pai; ccmo n lo pôde ele atrair ao Pai sua
Mãe segundo a carne? como não elevaria da terra ao céu aquela
que fora um verdadeiro céu sobre a terra?
636 Hoje a escada espiritual e viva, pela qual o Altíssimo desceu,
se fez visível e conversou entre õs homens 3, ei-la que sobe, pelos
degraus da morte, da terra ao céu.
Hoje a mesa terrestre que, sem núpcias, trouxera o pão celeste
da vida e a brasa da divindade, foi levada da terra aos céus, e para
a Pcrta oriental, para a Porta de Deus, se ergueram as portas do céu.
Hoje, da Jerusalém terrestre, a Cidade viva de Deus foi conduzi­
da à Jerusalém do alto; aquela que concebera como seu primogê­
nito e unigénito o Primogênito de tcdá criatura e c Unigénito do
Pai, vem habitar na Igreja das primícias4; a arca do Senhor, viva
e racional, é transportada ao repouso de seu F ilho5.
As portas do paraíso se abrem para acolher a terra portadora
de Deus, onde germinou a árvore da vida eterna, redentora da deso­
bediência de Eya e da morte infligida a Adão. É o Cristo, causa da
vida universal, quem recebe a gruta escondida, a montanha não
trabalhada, donde se destacou, sem intervenção humana, a pedra que
enche a terra.
Aquela que foi o leito nupcial onde se deu a divina encarnação
do Verbo, veio repousar em túmulo glorioso, como em tálamo nup­
cial, para de lá se elevar até a câmara das núpcias celestes, onde reina
em plena luz com seu Filho e seu Deus, deixando-nos também como
lugar de núpcias seu túmulo sobre a terra. Lugar de núpcias, esse
túmulo? Sim, e o mais esplendoroso de todos, a refulgir não por
revérberos de ouro, de prata ou de gemas, porém pela divina luz, ir­
radiação dc Espírito Santo. Proporciona, não uma união conjügal aos
esposes da terra, mas a vida santa às almas que se prendem pelos
laços do Espírito, proporciona uma condição junto de Deus, melhor
e mais suave que outra qualquer.
637 Seu túmulo é mais gracioso do que o Éden: neste, sem querer­
mos repetir tudo o que lá se passou, houve a sedução do inimigo,
DORMIÇÂO DA MAE SANTÍSSIMA DE DEUS 445

sua mentira apresentada como conselho amigo, a fraqueza de Eva,


sua credulidade, o engodo — doce e amargo — aò qual seu espírito
se deixou prender e pelo qual em seguida aliciou o marido; a deso­
bediência, a expulsão, a morte, mas — para não trazermos com tais
lembranças assunto de tristeza à nossa festa — houve o túmulo
que elevou ao céu o corpo de um mortal, ao contrário daquele
primeiro jardim, que derrubou do céu nosso primeiro pai. Pois não
foi ali que o homem, feito à imagem divina, ouviu a sentença: “tu és
terra e em terra te hás de tornar” 6?
O túmulo de Maria, mais precioso que o antigo tabernáculo,
encerrou o candelabro espiritual e vivo, brilhante de divina luz, a
mesa portadora de vida, que recebeu, não os pães da proposição,
mas o pão celeste, não o fogo material mas o fogo imaterial da
divindade.
Esse tumulo é mais feliz que a arca mosaica, pois teve por par­
tilha a verdade, já não as sombras e as figuras; acolheu a urna áurea
do maná celeste, a mesa viva do Verbo encarnado por obra do Es­
pírito Santo, dedo onipotente de Deus, Verbo subsistente; aco­
lheu o altar dos perfumes, a brasa divina que aromatizou toda
a Griação.
Fujam portanto os demônios, gemam os míseros nestorianos 638
—‘- como cutrora cs egípcios — com seu chefe, o novo faraó, o
cruel flagelo, o tirano, pois foram engolidos pelo abismo da blas­
fêmia. Nós, porém, salvos, que atravessamos a pé enxuto o mar da
impiedade, cantemos à Mãe de Deus o canto do Êxodo. Miriam,
que é a Igreja, tome nas mãos o tamborim e entoe o hino de festa;
saiam as jovens do Israel espiritual com tamborins e coros7, exul­
tando de alegria! Que os reis da terra, os juízes e os principescos
jovens e as virgens, os velhos e as crianças, celebrem a Mãe de
Deus! Que reuniões e discursos de toda espécie, raças e povos na
diversidade de suas línguas, componham um cântico novo! Que
o ar ressoe de flautas e trombetas espirituais, inaugurando com
brilho de fogos o dia da salvação! Alegrai-vos, ó céus, e vós, nuvens,
fazei chover a alegria! Saltai, novilhos do rebanho eleito, apóstolos
divinos que, como montanhas áltas e sublimes, aspirais às mais
altas contemplações; e vós, também, ó cordeiros de Deus, povo
santo, filhos da Igreja, que pelo desejo vos alçais como colinas até
as altas montanhas!
Mas então? Morreu a fonte da vida, a Mãe de meu Senhor? 639
Sim, era preciso que o ser formado da terra à terra voltasse, para
dali subir ao céu, recebendo o dom da vida perfeita e pura a partir
da terra, após ter-lhe entregue seu corpo. Era preciso que, como o
ouro no crisol, a carne rejeitasse o peso da mortalidade e se tor-

6 Gn 3,19.
7 Ex 15,20.
446 SÃO JOÃO DAMASCENO

nasse, pela morte, incorruptível, pura, e assim ressuscitasse do tú­


mulo.
Começa hoje para Maria uma segunda existência, recebida da­
quele que a fez nascer para a primeira, como também ela mesma
dera uma segunda existência — a vida corpórea — àquele, cuja
primeira existência, a eterna, não teve começo no tempo, embora
principiada no Pai como em sua divina causa.
Alegra-te, Sião, montanha divina e santa, onde habitou a outra
montanha divina, a montanha vivente, a nova Betei, ungida na
pedra, a natureza humana ungida pela divindade. De ti, como de
um jardim de oliveiras, c Filho se elevou às celestes alturas. Que
uma nuvem se componha, universal e cósmica, e que as asas dos
ventos tragam os apóstolos dos confins da terra até Sião! 8 Quem
são aqueles que, como nuvens e águias, voam para o corpo — fonte
de toda ressurreição, a fim de cultuar a Mãe de Deus? Quem é a
que sobe, na flor de sua alvura, toda bela, brilhante como o sol?
Que cantem as cítaras do Espírito, isto é, as línguas dos apóstolos!
Que ressoem os címbalos, isto é, os arautos eminentes da palavra
de Deus! Que esse vasc de eleição, H ieroteu9, santificado pelo
Espírito Santo e pela união divina capacitado a sofrer as realida­
des divinas, seja arrebatado do corpo, e em transportes de fervor
entoe seus hinos! Que todas as nações aplaudam e celebrem a Mãe
de Deus! Que os anjos prestem culto ao corpo mortal!
Filhas de Jerusalém, feitas cortejo da Rainha, e virgens suas
companheiras, ide com ela até o Esposo, levai-a à direita dò Senhor1.
Desce, ó Soberano, vem pagar à tua Mãe a dívida que ela merece
por te haver nutrido! Abre tuas mãos divinas e acolhe a alma de
tua mãe, tu que sobre a cruz entregaste o espírito às mãos do
Pai! Dirige-lhe um suave apelo: vem, ó formosa, ó bem-amada, mais
resplandecente pela virgindade do que o sol, tu me partilhaste teus
bens, vem agora gozar junto de mim o que te pertence!
640 Aproxima-te, ó Mãe, de teu Filhe, aproxima-te e participa do
poder régio daquele que, nascido de ti, contigo viveu na pobreza!
Ascende, ó Soberana, ascende! Já não vale a ordem dada a Moisés:
“ Sobe e m o rre .. . ” 10 Morre, sim, mas eleva-te pela própria morte!
Entrega tua alma às mãos de teu Filho e devolve à terra o que é
da terra, pcis mesmo isso será carregado por ti.
Erguei vossos olhos, Povo de Deus, alçai vosso olhar! Eis
em Sião a arca do Senhor Deus dos exércitos, à qual vieram pessoal-

8 O Autor passa a aludir aqui a certa tradição, segundo a qual Nossa Senhora, ao
morrer em Jerusalém, teve à sua volta os apóstolos, para lá encaminhados por inspi­
ração divina (História eutimíaca, inserida extensamente na I I Homilia de são João
Damasceno sobre a Assunção).
9 O Autor pensa no “Hieroteu”, apresentado como mestre de Dionísio em seü
livro Os nomes divinos (P.G. 3, 681-684). A obra de são João Damasceno contém
muitas alusões ao “corpus dionisianum”.
»o D t 32,48$.
DCRMIÇÃO DA MÃE SANTÍSSIMA DE DEUS 447

mente prestar assistência os apóstolos, tributando seu derradeiro cul­


to ao corpo que foi princípio de vida e receptáculo de Deus. Imate­
rialmente e invisivelmente os anjos o cercam ccm respeito, como
servidores da Mãe de seu Senhor. O próprio Senhor lá está, oni­
presente, ele que tudo enche e abraça, que na verdade não está em
lugar algum porque nele tudo está como na causa que tudo criou
e tudo encerra.
Eis a Virgem, filha de Adão e Mãe de Deus: por causa de 641
Adão entrega seu corpo à terra, mas por causa de seu Filho eleva
a alma aos tabernáculos celestes! Santificada seja a Cidade santa,
que acolhe mais essa bênção eterna! Que os anjos precedam a pas­
sagem da divina morada e preparem seu túmulo, que o fulgor do
Espírito a decore! Preparai aromas para embalsamar o corpo ima­
culado e repleto de delicioso perfume! Desça uma onda pura a fim
de haurir a bênção da fonte imaculada da bênção! Alegre-se a
terra de receber o corpo e exulte o espaço pela ascensão do espírito!
Soprem as brisas, suaves como o orvalho e cheias de graça! Que
toda a criação celebre a subida da Mãe de Deus: os grupos de
jovens em sua alegria, a boca dos oradores em seus panegíricos, o
coração des sábios em suas dissertações sobre essa maravilha, os
velhos de veneráveis cãs em suas contemplações. Que todas as cria­
turas se associem nessa homenagem, que ainda assim não seria su­
ficiente. Todos, pois, deixemos em espírito este mundo com aquela
que dele parte. Sim, todos, pelo fervor do coração, desçamos com
a que desce à sepultura e ali nos coloquemos. Cantemos hinos sa­
cros e nossas melodias se inspirem nas palavras: “Ave, cheia de
graça, o Senhor é contigo!” Permanece na alegria, tu que foste
predestinada a ser Mãe de Deus. Permanece na alegria, tu que
foste eleita antes dos séculos por um desígnio de Deus, gerírit .di­
vino da terra, habitação do fogo celeste, obra-prima do Espírito
Santo, fonte de água viva, paraíso da árvore da vida, ramo vivo
que portas o divino fruto, donde fluem o néctar e a ambrosia, rio
de aromas do Espírito, terra produtora da divina espiga, rosa res­
plandecente da virgindade, donde emana o perfume da graça, lírio
da veste real, ovelha que geras o Cordeiro de Deus que tira o
pecado do mundo, instrumento de nossa salvação, superior às po­
tências angélicas, serva e Mãe!
Vinde, enfileiremo-nos em torno ao túmulo imaculado para dali 642
sorvermos a divina graça! Vinde, abracemos em espírito o corpo
virginal. Entremos no sepulcro e morramos nele, rejeitando as pai­
xões da carne, vivendo uma vida sem concupiscência e sem má­
cula. Escutemos os hinos divinos, cantados imaterialmente pelos
anjos. Entremos para adorar, aprendamos a conhecer o mistério inau­
dito: como esse corpo foi elevado às alturas, arrebatado ao céu,
còmo a Virgem foi posta junto de seu Filho acima dos coros angé­
licos, de sorte que nada se interpusesse entre Mãe e Filho.
*t*to SÃO JOÃO DAMASCENO

Tal é, depois de outros dois, o terceiro discurso que compus


acerca de tua partida, ó Mãe de Deus, em honra e amor da Trin­
dade, cuja cooperadora foste, por benevolência do Pai e por virtu­
de do Espírito, quando recebeste c Verbo sem princípio, a Sabedo­
ria onipotente, a Força de Deus. Aceita, pois, minha boa vontade,
maior do que minha capacidade, e dá-me a salvação, a libertação
das paixões da alma, o alívio das doenças dos corpos, a salvação das
dificuldades, a vida de paz, a luz do Espírito. Inflama nosso amor
por teu Filho, regula nossa conduta sobre o que lhe apraz, a fim
de que, na posse da bem-aventurança do alto, e vendò-te refulgir
com a glória de teu Filho, façamos ressoar hinos sagrados, na eter­
na alegria, na assembléia dos que celebram, em festa digna do Es­
pírito, aquele que por ti opera nossa salvação, o Cristo Filho de
Deus e nosso Deus, a quem pertence a glória e o poder, com o
Pai sem princípio e o Espírito Santo e viyificador, agora e sempre
pelos séculos. Amém.
ÍNDICE ANALÍTICO

* Vão aqui apenas algumas indicações mais significativas. Os números correspondem


aos que estão à margem dos textos.

Abade: 577, 603 Cristo: Concepção virginal (ver Maria):


Aborto: 29, 158, 175 50, 406, 407, 454, 478, 496, 584, 624
Abraão: 270, 359, 389, 412, 470, 537 Filho de Deus: 21, 51, 65, 82, 90, 91,
Ação de graças: 106, 351 128, 153, 154, 167, 179, 197, 247,
Adão: 170, 201, 479 259, 261, 304-310, 323, 445, 538, 584,
Alma: 116, 117, 176, 266, 279, 353, 355, 621
377, 415, 512-516, 560 Homem verdadeiro: 67, 81, 498, 554,
Amizade (ver Amor): 373 559, 586
Amor (ver Caridade): 228, 401, 424, 508- Imitação de Cristo: 41, 81, 281
-511, 529, 548 Jesus: 553, 621
Analogia: 235, 360, 361, 441> 442 Mestre: 47
Anjos: 177, 213, 268, 565, 633 Nomes: 621
Antigo Testamento: 347, 365 Pastor, Guia: 151, 223
Apostasia: 137 Rei: 357, 554, 555, 608
Apostolicidade: 260 Revelador de Deus: 197, 204, 228, 277
Apóstolos: 11, 72, 183, 187, 215, 259, Sabedoria de Deus: 35, 331, 334, 594,
341, 444 622
Ario, arianismo: 325, 331, 445, 595 Salvador, Redentor, Mediador: 39, 223,
Ascensão: 343 402, 404, 538, 569, 584, 621
Assunção: 635-642 Sumo Sacerdote: 9, 23, 528
Astrologia: 499-500 Verbo de Deus: 62, 153, 154, 162, 163,
Ateus, ateísmo: 152, 153 165, 167, 168, 177, 192, 200, 213,
221-223, 272-275, 314-316, 318, 322,
Batismo: 30, 189, 244, 267-269, 349, 465- 414, 445, 622
469, 616 Critério (de fé): 582
Bem-aventuranças: 427-433 Cruz: 50, 123, 465, 466, 608
Bento (São): 620 Culto: 210, 221, 352, 522-523, 529
Bíblia: 161, 182, 184, 217, 239, 256-258,
360, 488, 489 Demônio: 45, 49, 61, 108, 127, 261, 321,
Bispos: 13, 33-38, 72, 73, 96, 186, 270, 347, 355, 501, 575, 590, 602, 633, 638
284, 448 Desobediência: 20, 21, 127, 171
Destino: 280
Caridade (ver Amor, Amizade): 17, 24, Deus: 57, 65, 362, 584, 621, 624
46, 54-56, 364, 389-390, 462, 508, 626 Deus: conhecimento natural de Deus: 100,
Carisma: 360, 367, 594, 596 114, 159
Carne (ver Corpo): 376, 409, 415 Criador: 161, 177, 272, 312, 313, 379,
Cátedra de Pedro (ver Pedro, Primado): 414
481 Misericórdia: 22, 201, 355, 401, 533,
Católica (ver Igreja) 592
Céu: 354, 425, 428, 491, 496 Mistério divino (“Deus sempre maior"):
Cidades (terrestre, celeste): 529 101, 361, 631, 634
Ciência: 360, 485-487, 520, 586, 610 Natureza e atributos: 119, 153, 160,
Concupiscência: 78, 293 191, 361
Contemplação: 243, 373, 457, 520, 577, Providência, presciência, predestinação:
619, 626 191, 202, 534, 537, 539
Conversão cu penitência: 492, 605 Revelação: 197. 198, 199, 233
Corpo (ver Carne): 355, 415, 560 Trindade das Pessoas: ver Trindade
Correção: 502 Vontade: 293, 354
Credo: 184, 254, 360, 362, 411 Diáconos: 33, 72, 81, 83, 96, 106, 349,
Criação (ver Deus Criador): 465 630
Crisma: 349 Doença: 392
450 ÍNDICE ANALÍTICO
“Economia”: 179, 190, 192, 214, 264 Aparição de Maria: 410
Elias: 615, 616 Assunção: 635-642
Encarnação: 203, 213, 247, 248, 250, 278, Concepção virginal (ver Cristo): 51,
317, 318, 337, 402-404, 558-563, 587, 406, 407, 454, 478, 496, 551-552,
616, 636 557, 584
Esmola (ver Pobres, Ricos): 397, 596 Maternidade divina: 460, 551, 572, 573,
Espetáculos: 158, 416-423 624, 639, 640, 641
Espírito Santo: 40, 154, 155, 161, 194- Maternidade espiritual: 195, 242, 624
-196, 200-202, 323-329, 352, 356, 366- Mcrte: 450, 451
-371, 381-383, 458, 459, 465, 508, 594 Realeza: 640
Essência 483-484, 622 Santidade: 102, 132, 455, 457, 572, 624
Eucaristia: 31, 45, 61, 71, 72, 104, 105, Virgindade: 51, 102, 151, 414, 453,
151, 206-209, 211, 212, 271, 295, 338, 454, 455, 496, 573, 584, 624, 625
346-348, 349, 357, 414, 423, 470, 471, Martírio: 83, 136, 137, 138, 303, 413
475, 477, 498, 528, 564-570, 620 Matrimônio: 157
Evangelhos: 183, 239-241, 342, 345 Milagre; 346, 532-533
Misericórdia: 396, 430, 592
Fé: 46, 359, 365, 389, 445, 447, 582 Mistérios cristãos: 219, 220,. 463-480
Feliddade (ver Bem-aventuranças): 348, Mistérios pagãos: 219
498 Monge: 577-581, 605, 606
Filosofia: 111, 114, 115, 120, 121, 221, Morte: 28, 29, 60, 131, 134,-156, 171,
385, 523 179, 227, 303, 479, 496, 567, 620
Frutos do Espírito Santo: 536 Mortificação: 389
Mosteiro: 602, 605, 619 •
Gnose, gnosticismo: 192, 193, 213, 446
Glória de Deus: 205, 310, 335, 360 Natal: 551, 557, 584-588
Graça: 75, 189, 351, 474, 502; 504, 534- Natureza: 474, 478
-537 Nestcrianismo: 558, 575-576, 638
Hereges, heresias: 254, 255, 267, 365 Noviços: 604
Homem: 165, 166, 169, 201, 319, 320, Novo Testamento: 347, 490, 606
398-400, 517
Homilia: 435 Obediência: 605
Hóspedes, hospitalidade: 1, 389, 602 Obrar: 2, 33, 99, 156, 157, 225, 409,
Humildade: 2, 19, 389, 614, 618, 629 537, 613
Hypóstasis: 482-484 Oração: 55, 75, 86, 353, 389, 629
Ordem do mundo: 22, 164, 253, 311
ídolos: 172 Ordem sacra: 448
Igreja: 32, 49, 54, 72, 151, 189, 196, 215- Osculum pacis: 350
217, 236, 259, 286, 446, 528, 582
Igreja de Roma: 187, 284 Padres: 606
Imagens: 122 Paixão, do Senhor: 51, 76
Imagem de Deus: 221, 245, 320, 392, 400, Papa: 188
401, 461, 157 Paráclito: 263, 309, 362, 367, 370, 387
Imitação de Deus, do Senhor: 90, 180 Paraíso: 169, 217, 440, 441 '
Imortalidade, incorrupção: 220, 279, 282, Páscoa: 128, 131, 134, 494
479 Pastoral: 609-613 .
Imortalidade da alma: 116, 118 Paz: 24, 432, 530, 531
Inferno: 134 Pecado; 131, 179,298, 353, 355, 404,
Inveja: 2-6, 581 419,469
Pecado original: 130
Jejum: 591, 596 Pedro (São): 186,284, 339, 342, 447,
Joviniano: 625 481, 597-600
Judaísmo: 247 Penitência (ver Conversão): 7, 96
Penteastes: 593-596
Lei, Lei de Deus: 80, 123, 129, 228, 229, Perdão: 298, 299, 355
276, 485, 486 Perfeição (ver Virtudes): 229, 230, 590
Liberdade: 405 Perseguições: 135, 252
Platão, platonismo: 111, 112, 119, 522
Mal: 276, 280, 301 Pobres: 106, 210,388, 391, 393, 396,
Mandamentos: 103, 171 428, 435, 540, 541-550
Maria: Advogada de Eva, nova Eva: 127, Pobreza: 389, 428, 607
214, 452 Povo de Deus: 26
ÍNDICE ANALÍTICO 451

Prerbíteros: 15, 72, 448 Salmos: 124, 125, 348


Profetas, profecias: 32, 33, 203, 247, 276, Salvação: 222, 227, 322
364, 462 Sibila: 92, 161
Propriedade: 436-439 Sofrimento: 83, 135, 433
Pureza de coração: 431, 577 Sucersãc: 13, 187, 188
Sufrágios: 353, 449, 480
Quaresma: 589-592
Tentação: 300
Regeneração: 244, 463 Tradição: 182, 184, 186, 187, 259, 341,
Regra da fé: 254, 264, 309, 365, 582 344
Reino de Deus: 234, 292, 364 Trindade: 155, 156, 165, 200, 202, 264,
Religião, religiões: 102, 174, 252, 253 323, 335, 363, 379, 380, 383, 384, 387,
Renúncia: 296 411, 445, 468, 506-521, 585, 595, 632
Ressurreição: 79, 134, 265, 415, 497, 556,
568, 634 Unidade (moral, física): 330, 331, 336
Ressurreição de Cristo: 67, 76, 77, 126, Unidade da Igreja: 287, 288, 331
134, 194, 278, 495-498
Ricos, riqueza: 224, 225, 232, 297, 394, Verbo (sementes do): 107, 108
395, 439, 540-550, 581 Verdade: 103, 185, 189, 196, 218, 446,
588, 611
Sábado: 409 Vida: 28, 43, 156, 189, 204, 205, 222,
Sabdianismo, modalismo: 262 227, 231, 261, 375, 376, 450, 496, 569
Sacerdócio, sacerdotes: 350, 424-426, 435, Vigílias; 389, 494
436, 463, 470, 612, 630, 691 Virgens, virgindade: 157, 450, 453
Sacramentos: 463-680 Virtudes: 389, 404, 409, 591, 627, 628
Sacrifício: 206, 522-528 Visão de Deus: 117, 202, 203, 519
ÍNDICE GERAL

Pág.
7 Prefácio da segunda edição
9 Introdução — Os Padres da Igreja
15 Subsídios bibliográficos

17 São Clemente de Roma


17 Carta de São Clemente aos coríntios

29 Didaqué (ou doutrina) dos doze apóstolos

33 Santo Inácio de Antioquia


33 Carta aos efésios
38 Carta aos romanos
41 Carta aos esmirnenses

46 São Policarpo
46 Carta aos filipenses
50 Carta circular da igreja de Esmirna

56 Hennas
56 O Pastor

62 Aristides de Atenas
62 Apologia

65 São Justino
65 Da primeira Apologia (Cap. 65-67)
67 Da segunda Apologia (Cap. 10 e 13)
68 Diálogo com Trifão (início)
76 Diálogo com Trifão
80 Melitão de Sardes
80 Sobre a Páscoa

88 Os Mártires de Lião
88 Atas do seu martírio
96 Uma antiga inscrição

98 Atenágoras
98 Suplica pelos cristãos
102 São Teófilo de Antioquia
102 Dos “Livros a Autólico”

109 Guta a Diogneto

115 Santo Ireneu


115 Contra as heresias

136 Clemente de Alexandria


136 “Protréptico” ou exortação aos gregos
140 Hino ao Cristo Salvador
141 Sobre a salvação dos ricos

147 Orígenes
147 Do comentário ao Cântico dos Cânticos
149 Do comentário ao Cântico dos Cânticos
150 Comentário ao evangelho segundo são João
153 Comentário ao evangelho de Mateus
154 Comentário ao evangelho de Mateus
155 Sobre os princípios
155 Contra Celso

160 Tertuliano
160 “Apologético” ou “Defesa dos cristãos contra os gentios”
162 Da prescrição dos hereges
165 “Contra Praxéias”
167 A ressurreição da carne
168 A alma
169 O batismo

172 Santo Hipólito


172 Tradição apostólica
174 Contra Noeto
175 Philosophumena

180 Metódio de Olimpo


180 “Banquete”

182 São Cipríano


182 Sobre a unidade da Igreja
187 Do livro sobre a oração do Senhor
195 Trecho de tuna Carta sobre o Martírio

197 Novaciano
197 Sobre a Trindade
ÍNDICE GERAL 455

202 Santo Atanásio


202 Do livro Contra os Pagãos
205 Sobre a encarnação do Verbo
206 Sobre a encarnação do Verbo
209 Da primeira carta a Serapião

213 Santo Hilário de Poitiers


213 Do Tratado “Sobre a Santíssima Trindade”

220 Eusébio de Cesaréia


220 História eclesiástica
222 História eclesiástica

225 São Cirilo de Jerusalém


225 IV Catequese Mistagógica
227 V Catequese Mistagógica

233 São Basüio


233 Profissão de Fé
240 “Sobre o Espírito Santo”

245 São Gregório Nazianzeno


245 Duas cartas á são BasÜio
248 Poema sobre a natureza humana
250 Trechos do Quinto Discurso Teológico (sobre o Espírito Santo)
255 Discurso sobre o amor aos pobres

264 São Gregório de Nissa


264 “A criação do homem”
267 Da grande “Oração Catequética”
269 Do Sefrnãò sobre ío natal de Cristo
270 Da “Vida de Moisés”
272 Da “Vida de são GregórioTaumaturgo”

275 Prudêncio
275 Hino da manhã
276 Hino da Epifania
277 Hino para antes da refeição

279 São João Crisóstomo


279 Sermão “Contra os espetáculos”
285 O Sacerdócio
287 As bem-aventuranças
290 Comentário ao evangelho de são Mateus
291 Homilia sobre a primeira epístola aos coríntios
296 Santo Efrém
296 Hino sobre o Paraíso

301 Santo Epifânio


301 Sobre a Santíssima Trindade
302 Caminho real
302 S£o Pedro, príncipe dosapóstolos
303 A diferença entre sacerdotes e bispos
303 É tradição apostólica orar pelos defuntos
304 Os últimos tempos da Virgem Maria

307 Santo Ambrósio


307 Comentário ao evangelho de são Lucas (l,28ss)
312 Sobre os Mistérios
322 A fé na imortalidade

324 São Jerônimo


324 Carta a Dâmaso, papa
327 A Paulino, presbítero

332 Santo Agostinho


332 Das Confissões
334 Sermão: “Na Vigília da Páscoa*
336 Sermão: “Sobre ,a ressurreição de Cristo segundo Marcos*
340 A doutrina cristã
341 “Sobre a correção e a graça*
344 Sobre a Santíssima Trindade
350 Sobre a Santíssima Trindade
352 Sobre a Santíssima Trindade
353 Da “Cidade de Deus*
358 “A Cidade de Deus*
359 “A Cidade de Deus*
359 Trecho da Carta n. 189, dirigida a Bonifácio, um militar
360 Do Comentário ao evangelho de são João
361 Comentário ao evangelho de são João
364 A predestinação dos santos
366 Do comentário ao Salmo 125

368 São Paulino de Nola


368 Sermão
374 São Pedro Crisólogo
374 Sermão de natal
377 Dos sermões sobre as cartas de Paulo
378 Sedúlio
378 Hino
ÍNDICE GERAL 457

379 São Cirilo de Alexandria


379 Diálogo sobre a encarnação
383 Comentário ao evangelho de são João
388 Discurso pronunciado no concílio de Éfeso

394 João Cassiano


394 I Conferência do Abade Moisés

398 São Vicente de Lérins


398 Comonitório

400 São Leão Magno


400 Sèrmão n. 23: Natal do Senhor
404 Sermão n. 40: sobre a Quaresma
407 Sermão sobre Pentecostes
410 Na festa de são Pedro e são Paulo

413 São Bento de Núrsia


413 Regra dos mosteiros

417 São Venâncio Fortunato


417 “Pange, língua”
418 “Vexila regis”

419 São Gregório Magno


419 Da vocação para o ofício pastoral
423 Homilia para o IV domingo do advento
427 Dos “Diálogos”
428 Dos “Diálogos”

429 Santo Isidoro de Sevilha


429 Livro sétimo das etimologias

433 Santo Ildefonso de Toledo


433 A virgindade perpétua de santa Maria

436 São Máximo, o confessor


436 Centúrias sobre a caridade

443 São João Damasceno


443 III Homilia sobre a dormição da Mãe santíssima de Deus

449 índice analítico


453 índice geral
Impresso na Gráfica de Edições Paulinas - 1989

Via Raposo Tavares, Km 18,5 - 05550 SÄ O PA U LO


A falta de textos em português, acessíveis aos estudantes de Teo­
logia e a tantas outras pessoas que se interessam pelo conheci­
mento da antiga literatura cristã, despertou-nos a idéia desta A n ­
tologia, cuja primeira edição teve boa acolhida.
Não pretendemos fazer obra de erudição, e sim oferecer um pano­
rama de textos seletos, em traduções feitas com seriedade, na
base não só do Migne, mas, sempre que possível, das modernas
edições críticas.
O critério de seleção adotado foi quase sempre o do valor repre­
sentativo: páginas onde aparecesse algo de característico de cada
autor. A este critério aliamos o do valor doutrinário, para proveito
dos estudantes de Teologia, e o da utilidade espiritual, pois são
geralmente páginas de grande fé e amor de Deus.
De cada um dos Padres damos somente breve noticia biográfica.
Não seria possível estender-nos na interpretação de seu significa­
do histórico, cultural e teológico, dentro dos limites de uma Anto­
logia que não se substitui a um tratado de Patrística.
Nesta segunda edição fizemos considerável ampliação. Vários au­
tores aparecem pela primeira vez. E também muitos textos foram
acrescentados, dos Padres já conhecidos.
O AUTO R
Esta obra é complementada pelo livro de A. G. Hamman, O s Padres da Igreja.
desta m esma coleção. Hamman procura — m ais do que elencar as obras dos
Padres — ajudar o leitor a descobrir o homem que estâ por trás da obra: homem
concreto, de carne ó osso, com suas paixões ou virtudes, dábil ou violento. Mas
sempre homens excepcionais.

EDIÇÕES PAULINAS

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