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Platão
O hino ao amor
Lá, está o bem que todos os espíritos desejam. Lá, o repouso a que toda a gente
aspira. Lá, está o amor, lá, o prazer ainda. Lá, ó minha alma guiada para o lugar
mais alto do céu! Aí, tu poderás reconhecer a Ideia da beleza, que eu neste mundo
adoro.»

Joachim Du Bellay, L’Olive, 1549

Inaugural e enigmático, o Banquete de Platão determinará ao longo dos


dois milénios seguintes a visão ocidental do amor. É no entanto «bastante
divertido», nota o psicanalista Jacques Lacan, que não tenha havido desde
então uma única reflexão, nem mesmo qualquer meditação religiosa sobre
o desejo, que não se refira a um texto «que bem vistas as coisas
corresponde a uma assembleia de maricas1». De facto, esta «pândega
colectiva» é uma estranha narrativa que reúne em casa de Agatão,
vencedor na véspera de um concurso de poesia trágica, um grupo de jovens
depravados e etilizados, alguns velhos homossexuais da aristocracia
ateniense, Sócrates, então com cinquenta e três anos, o seu grande rival
cómico Aristófanes e, por uma vez sem exemplo, uma mulher, uma
estrangeira, ainda para mais sacerdotisa. Embora de facto fisicamente
ausente, Diótima de Mantineia nem por isso deixa de ser a figura central do
Banquete, aquela de quem Sócrates, que já se mostrou mais loquaz noutras
ocasiões, decide tornar-se porta-voz. Ela é apresentada como uma
«especialista» acerca da qual o filósofo curiosamente confessa guardar o
único conhecimento em seu poder: a verdade sobre o amor.

Eis portanto o velho sábio grego num papel mais intrigante do que nunca.
Ao mesmo tempo que é proverbial o facto de ele próprio ter uma relação
conjugal com uma verdadeira harpia, chamada Xantipa. Essa mulher
rabugenta com quem ele teve um filho, Lamprócles, criticava-o
nomeadamente pela sua actividade de pensador, tão perigosa como pouco
lucrativa. As pitorescas peripécias do seu casamento davam azo na época,
ao que parece, a inúmeros gracejos. Chegou até nós o episódio de um
duche histórico, quando Xantipa lhe atirou um dia à cabeça uma bacia de
água suja. Um gesto ao qual Sócrates terá respondido com estoicismo:
«Uma chuva ligeira afasta o temporal».

Quanto ao resto não sabemos quase nada do pai da filosofia. Nascido em


Alópece, na península da Ática, em 470 a.C., filho de um escultor e de uma
1
Jacques Lacan, Le séminaire livre VIII, «Le transfert», Seuil, 2001.
parteira, actividade à qual ele há-de comparar a sua, «parteiro de almas»,
foi, diz-se, aluno de Anaxágoras, tal como Péricles. Outra lenda afirma que
ele teria tido uma segunda esposa, Mirto, que lhe teria dado dois filhos,
Sofronisca e Menéxenes. Tudo leva a crer no entanto que o boato da
bigamia espalhado por Aristóteles e Diógenes Laércio teria apenas como
objectivo desacreditar o homem misterioso do qual ninguém ignora que foi
condenado a beber cicuta por impiedade e desvio filosófico de menores. É
este, em todo o caso, o retrato que dele traçará o seu discípulo Platão nos
vinte e seis Diálogos que o farão passar à posteridade.

De acordo também com o fundador da Academia, referindo-se a essa noite


consagrada à glória de Agatão, Sócrates terá trocado os seus habituais
andrajos por uma bela veste limpa, tendo chegado atrasado ao alegre
convívio. O vinho já tinha corrido e passa-se então às ágapes verbais,
menos cansativas para os convivas em festa há quarenta e oito horas do
que os folguedos que em geral se sucedem a este tipo de reuniões.
Conversar em vez de fazer amor. A coisa começa como um jogo. Seis
contendores defrontam-se na tentativa de fazer o melhor elogio ao deus
Eros.

Este surge com os traços do «amor-virtude» na boca de Fedro, que recita


preguiçosamente o seu Hesíodo. «Um grande deus este Eros», assegura
ele, sem pai nem mãe, adiantando-se ao caos. Sendo o mais antigo, ele é
também o deus mais benemérito. O amor conduz o homem à acção, diz
Fedro, uma vez que o ser amado é aquele perante o qual tem de se evitar a
desonra, mesmo na morte. Um exército de amantes seria assim um
exército invencível.

O amor é descrito, em seguida, como «duplo» por Pausânias, que distingue


o nobre eros, que tem por objecto a alma, do eros popular, obnubilado
acima de tudo pelo corpo. O amor é ainda uma relação entre o humano e o
divino, segundo Erixímacos, que exalta nele esse «deus maravilhoso, cuja
acção é universal». Protótipo perfeito do positivismo, este médico prescreve
no entanto um consumo moderado do amor. O eros regrado propicia
abundância e saúde, mas em excesso esperam-nos epidemias.

O amor será, por fim, descrito como «amor-fusão» por Aristófanes, que
entre duas gargalhadas apresentará aos convivas o irresistível «mito das
esferas». Supostamente destinada a exprimir a dimensão trágica da paixão
amorosa, a fábula de Aristófanes – a farsa? – fará dizer um dia ao escritor
Michel Houellebecq que o Banquete é o livro, maldito entre todos os outros,
que literalmente «intoxicou a humanidade» dando origem a «uma incurável
nostalgia».

A metade da laranja
Tão divertida quanto pungente, a história merece que façamos um longo
desvio. Cada homem, postula Aristófanes, era originalmente uma esfera.
Havia-as de três tipos: macho, fêmea e andrógino, contendo esta última os
outros dois tipos. Tinham quatro mãos, quatro pernas, dois rostos numa
única cabeça e dois órgãos genitais. Para poderem gerar, uniam-se na terra
como as cigarras. Quando se punham a correr, pareciam um sempre-em-pé
rodando a grande velocidade. Assim equipados, possuíam uma força
imensa de que se sentiam extremamente orgulhosos e que os impeliu um
dia a escalar até ao céu para darem combate aos deuses. Estes, ficaram
embaraçados. Matar os homens significava perder as oferendas que
recebiam deles. Então, Zeus cortou-os em dois «como quem corta um ovo
com um cabelo»!

Apolo encarregou-se de retocar a cara e a metade do pescoço do lado do


corte, de modo a que o homem possa ter permanentemente perante os
olhos a memória do seu castigo para assim ser mais humilde. Depois, o
deus curandeiro pegou em toda a pele que pendia sobre o ventre e
amarrou-a com força «como se faz aos cordões de uma bolsa», deixando
apenas uma abertura, a que hoje chamamos umbigo.

Mutilados de metade de si mesmos, os homens tentaram então


desesperadamente recuperá-la, abraçando-se, enlaçando-se um no outro.
Eros nasceu dessa carência que os tornava ternos para com aquilo que
tinham perdido. E assim surgiu o motivo de inúmeras variações poéticas e
literárias desde a Antiguidade: o homem é essencialmente um ser
incompleto que tem de se lançar em busca da sua «metade da laranja», de
modo a recuperar a integridade.

Mas nesta triste situação, com o desejo de formarem uma única entidade,
recusando-se a fazer fosse o que fosse uma sem a outra, as metades
começaram a morrer de fome. E quando uma metade morria, aquela que
lhe sobrevivia procurava uma outra à qual pudesse unir-se. A espécie ia-se
extinguindo a pouco e pouco.

Tomado de piedade, e temendo a desaparição dos seus adoradores, Zeus


fez com que os órgãos sexuais delas passassem da parte de trás para a
parte da frente. O prazer sexual iria não apenas incitá-las à reprodução,
quando a união acontecesse entre homens e mulheres, mas devia
sobretudo dar-lhes um modo de aliviarem a dor, oferecendo-lhes uma forma
de consolo para a terrível dor da perda. O orgasmo surgiu como momento
de efémero esquecimento de si próprio na memória permanente da
incompletude que nos aflige. Um momento de suspensão extática e vital.

E quando a união é impossível de realizar, quando o amante não está


fisicamente presente, não continua a existir essa mesma necessidade de
suspendermos por um instante os nossos pensamentos para com ele? O
amante que não esquece «por vezes», escreve Roland Barthes nos seus
Fragmentos de um discurso amoroso2, morre por excesso, por cansaço e
pela tensão da memória. Só que, mesmo que esses poucos segundos de
«infidelidade» mental em relação ao outro sejam possíveis, rapidamente se
acorda do esquecimento, e há uma palavra que surge do corpo e que diz
toda a emoção da ausência: «suspirar». «As duas metades do andrógino
suspiram pela outra» escreve Barthes, «como se cada sopro, incompleto,
quisesse misturar-se com o outro: a imagem do beijo, enquanto fusão das
duas imagens numa só.» Na ausência amorosa, somos, tristemente, uma
«imagem descolada», que seca, amarelece, se encarquilha. Uma metade da
esfera que não se torna redonda.

Em todo o caso, a fazer fé em Aristófanes, e a verdade é que a maior parte


dos homens parece ainda hoje trazer em si esta crença inconsciente, nós
seríamos impelidos, desde este drama primitivo, para a busca da «alma
gémea», cujo reencontro seria suposto restabelecer a nossa antiga natureza
e garantir-nos a felicidade. Como que condenados ao amor. «E reparem nas
pessoas que passam uma vida inteira juntas, sem poderem dizer, para além
disso, o que esperam uma da outra», acrescenta um Platão trocista.

É deste mito fundador que André Breton recuperará o rasto muitos séculos
mais tarde em O Amor Louco3, por intermédio da imagem do «sapatinho da
Cinderela», que simboliza no folclore ocidental esse ser único,
desconhecido, que nos espera algures. Toda a gente sabe, garante o
escritor, que o amor assenta sobre esta ideia de que a cada um de nós
corresponde apenas um único indivíduo. Mas como «as condições sociais da
vida» parecem ser implacáveis para com essa ilusão, escreve ele, a maior
parte dos homens estupidamente perde a esperança no amor. «Eles
carregam memórias coxas a que chegam a atribuir a causa de uma queda
imemorial, para não se sentirem tão culpados. E contudo, a promessa da
hora seguinte para cada um deles contém o segredo inteiro da existência,
com a possibilidade de vir a revelar-se um dia ocasionalmente num outro
ser». Um ser absolutamente singular aos olhos de Breton, que se propõe,
corajosamente, a provar que o verdadeiro amor é imortal.

O nascimento de Eros

O discurso de Aristófanes, prodigiosamente sedutor, teve evidentemente


um forte impacto na assembleia. Faltava ainda, no entanto, para que a
ronda ficasse completa, a intervenção de dois convivas, entre eles Sócrates
que tem um golpe de mestre. De imediato comparado a um sofista, esse
«monstro de eloquência», o poeta Agatão, cantando um Eros «pai da
Languidez e da Volúpia», cai uma vez mais na indolência idílica e por assim
dizer analgésica.
2
Fragmentos de um discurso amoroso [Fragments d’un discours amoureux]; trad.
Isabel Pascoal. Edições 70, 2006.
3
O Amor Louco [L’Amour Fou]; trad. Luísa Neto Jorge. Estampa, 2006.
É nesse ponto do Diálogo que Sócrates, verdadeiro «torpedo» do
pensamento, vai operar a sua formidável inversão de perspectiva e rebater
todos aqueles palermas. Se presta homenagem a um discurso «tão belo e
tão rico» é para melhor o desmontar peça por peça, como acontece com os
dos seus antecessores. Ele não faz elogios xaroposos mas pretende oferecer
a famosa «verdade» que nos prometeu e que, recordemo-lo, detém a
respeito da sacerdotisa Mantineia, o trunfo definitivo.

Se o desejo é «desejo de algo» e desejando-se apenas aquilo que não se


tem, os panegíricos da turba não têm razão ao adornar o amor com todo o
tipo de qualidades e todo o tipo de beleza, assegura ele. Na melhor das
hipóteses eles não terão visto mais do que uma verdade apenas parcial. «O
erro», denúncia Sócrates, «surge por se considerar que o amor é aquilo que
é amado e não aquilo que ama.» Compreender o amor é, no fundo,
investigar, não porque amamos mas porque se ama. A genealogia de Eros,
afirma Diótima, pela boca desse «sileno hirsuto» que é Sócrates, é a esse
respeito esclarecedora.

«No dia em que nasceu Afrodite, os deuses banqueteavam-se, e entre eles


estava o filho da Sabedoria, Expediente (Poros em grego, o recurso, a
astúcia).» A Pobreza (Pénia), pedinte que passava pelo local para apanhar
as migalhas, aproveitou para extorquir uma criança ao deus Poros, que ela
julgava adormecido, «bêbado de néctar, no jardim de Zeus». Assim nasceu
o rebento chamado Amor, pobre por parte da mãe «e longe de ser delicado
e belo por parte do pai». À imagem de Sócrates, um maltrapilho sem eira
nem beira, dormindo todos os dias por terra, à luz das estrelas, mas
igualmente viril, apaixonado, filósofo e feiticeiro. Eros será desde o início
essa carência que, tal como o Ulisses de Homero, alimenta uma energia
poderosa e inventiva, e arranca homem à sua miséria ontológica. O amor,
revela de resto a mulher de Mantineia, é na essência esta força sublime,
esta energia que ajuda os homens a atingir a única forma de imortalidade
que está ao seu alcance. A imitação da imortalidade que se obtém ao
sobreviver por intermédio de uma criança ou de uma obra. A procriação ou
a posteridade, escolhe a tua forma de sobrevivência, camarada.

O lado obscuro da força

Mas se Eros não é nem feio nem belo, nem pobre nem rico, nem ignorante
nem sabedor, não poderá ser um deus. O que será ele então? Eros é um
daimonion, revela a sacerdotisa, «um intermediário entre os deuses e os
mortais.» E graças ao alto patrocínio de Afrodite, nascida no dia da sua
concepção, ele é uma força ascensional inteiramente dirigida para o desejo
do belo, sabendo-se que o belo, em Platão, está sempre associado ao bem e
à verdade.

O filósofo corta a direito, sem hesitações, e captura com as suas pinças


mentais «o nervo palpitante do amor», de acordo com a notável expressão
do pensador madrileno José Ortega y Gasset4. Sugere ele que o leitor tente
imaginar-se num estado amoroso em que o objecto do amor não apresenta
aos olhos do amante nenhum aspecto de excelência. «Compreenderá que é
impossível.» Apaixonar-se é sentir-se imediatamente encantado por algo, e
esse algo não poderá encantar a menos que incarne em si uma qualquer
forma de perfeição. O que não significa que o ser amado surja como
absolutamente perfeito, o que é de resto o equívoco de Stendhal, nota
Ortega y Gasset; basta que haja nele «uma qualquer perfeição», o que
significa, no horizonte humano, que ele nos pareça ultrapassar o resto da
humanidade.

Mas é o Fedro, um outro diálogo de Platão a respeito do amor, que nos


esclarece melhor sobre a razão pela qual o belo é o primeiro objecto do
nosso desejo. Depois de termos caído do céu das Ideias puras no lamaçal
sensível, esquecemos as formas outrora percebidas na plenitude da sua
eternidade. Só a Beleza, da qual «o esplendor» é um traço característico,
nos ofuscou para sempre. É por isso que, perante o reflexo da beleza que se
nos apresenta por vezes na terra, a alma, que é como um cavalo alado,
agita-se e pretende retomar o voo. O apaixonado é assim arrancado ao
infortúnio do tempo que passa. «Uma coisa bela é uma alegria eterna»,
escreveu o poeta inglês John Keats.

Só que Eros, como já se disse, não é um deus, e ainda menos um anjo de


doçura e volúpia, é um daimonion. O amor cheira a perigo à distância.
Quando ele se anuncia, a agitação é incrível, dá-se uma terraplanagem, um
choque, uma loucura que enche aquele que ama de emoções contraditórias.
E é ainda pior, evidentemente, quando ele se vai embora. Porquê esta
sensação de catástrofe irreparável, esta desordem que pode levar à morte
ao perder-se a pessoa amada? A imensidão do desgosto amoroso é
profundamente enigmática. Isto não pode explicar-se a não ser pelo recurso
à teoria de Platão segundo a qual aquilo que foi vivido durante um dia, uma
semana ou dez anos tinha como ponto de fuga um sentimento de
eternidade. Em consequência, não apenas se cai lá do alto, tudo está
perdido. Perde-se mais do que a vida, perde-se a razão de viver.

É também toda a aproximação socrática ao aspecto trágico da existência


que se revela aqui, o doloroso paradoxo do homem que sabendo-se mortal
aspira à eternidade. A estrutura metafísica do amor e do desejo sofre com
esse mesmo rasgão. Aquele que deseja verá aumentar o seu desejo até à
tortura se não o obtém, e aquele que parece possuir o objecto do seu
desejo deve esforçar-se para manter no futuro aquilo de que desfruta.
Enquanto o tempo parece suspender o seu voo durante o período da euforia
amorosa, a inquietação do amanhã surge assim que se julga ter atingido a
felicidade do Olimpo.

4
Estudos sobre o Amor [Estudios sobre el amor]; trad. Elisa Castro Neves. Relógio
d’Água, 2002.
Quando, no final do Banquete, o belo Alcibíades irrompe e critica Sócrates
por não ter respondido aos seus avanços de natureza sexual, o que esse
jovem exprime é também toda a loucura da atracção amorosa, todo o
sofrimento que ela gera, o ficar fora de si. Ele sente-se como um homem
mordido por uma «víbora», assegura. E, contudo, quem não tenta a
aventura de eros e não conhece o ferrão da carência, não dissimulará sob a
designação de «sabedoria» e de «temperança» uma certa forma de morte?
- pergunta Monique Dixsaut em Le Natural philosophe5. «Neste sentido, de
facto, as pedras, na verdade, gozariam uma felicidade sem par, tal como os
mortos», diz Górgias. Aquele que não deseja nem ama não é já de facto um
homem.

Em direcção ao oceano do Belo

O amor é portanto um amor à beleza. Não saberia, por isso, circunscrever-


se ao amor plástico dos corpos, em si mesmo perecível. Sócrates, de resto,
sabia qualquer coisa a este respeito, ele que apesar da sua comprovada
fealdade, da sua grande barriga e dos seus olhos de lagostim, exercia um
irresistível poder de atracção em relação aos seus «groupies». Diótimo
convida-nos então a trepar os degraus de uma escada. Se o amor é o
desejo de gerar em perfeição, o Belo será a modalidade de um género de
parto. «De um único corpo belo para dois belos corpos, de dois belos corpos
até todos os corpos serem belos», dos belos corpos às belas ocupações, até
aos belos conhecimentos, em direcção à ciência do belo… O termo
definitivo da revelação, professa Diótimo, é o conhecimento único do Belo,
belo eterno, em si mesmo e por si próprio. Quando por fim nos damos conta
disso, «é nesse ponto da vida que se situa o momento em que, para o ser
humano, a vida vale a pena ser vivida». Aquele que atinge esse estado de
contemplação saberá distinguir esta beleza da do ouro, ou da dos corpos
jovens votados ao declínio. «É a verdade que ele toca.» O inalterável. É por
isso que Fedro já podia afirmar que o princípio que deve inspirar os homens
durante as suas vidas não é nem a riqueza nem a glória, mas o amor no seu
ponto mais alto.

Ao «desejo funesto» do poeta Lucrécio, à ilusão ofuscante da paixão


amorosa descrita pelos seus sucessores, Platão opõe por antecipação o
desejo alado, a luz do inteligível, a fecundidade espiritual do amor. Nele, o
amor visa a felicidade, não na satisfação imediata de uma pulsão carnal,
mas no preenchimento de uma falta na renovação de um desejo sempre
mais alto. Note-se que é a ultrapassagem para o incorpóreo que nos
fornecerá mais tarde, por deslizamento de sentido, a definição assexuada
de «amor platónico». Seria errado no entanto acreditar que a dimensão
física é desdenhada em Platão. Ela também é descrita como a primeira
etapa da elevação da alma. O amor terrestre, o amor dos corpos, contudo,
não alcança mais do que um sucedâneo de eternidade. Um ersatz feito de
5
Monique Dixsaut, Le Naturel philosophe, Vrin, 1985.
farrapos que se juntam como num patchwork, mas que tem ainda assim um
aspecto duradouro. Assim, em Fedro, os amantes que se enlaçam não irão
parar às profundezas dos infernos, antes ganharão asas com o tempo. Há
uma verdadeira beleza neste ímpeto que os faz sentir metafisicamente
porosos perante uma outra alma.

Infelizmente para nós, garante Lacan, «o amor está já desde há algum


tempo separado da beleza». Na era contemporânea, a magia negra inerente
ao amor ter-se-á transformado numa banalidade sórdida, num lamentável
fiasco entre corpos. Os romances de Michel Houellebecq expõem cruamente
a degradação hoje exercida pelo erótico, sublinha também o escritor
François Meyronnis em De l’extermination considérée comme l’un des
beaux arts6. Indicam, segundo ele, os «abismos de podridão» que a
sociedade atinge quando a cópula se converte num simples «capital
narcísico». Se Platão ligou o desejo à falta, a grande desgraça actual é ter
substituído a falta metafísica pela necessidade vulgar, uma inesgotável
máquina de frustrações. «Retira-se ao sujeito o seu desejo», diz ainda
Lacan, «e, em troca, ele é enviado para o mercado, onde é submetido a um
leilão geral.» Numa era de intercâmbio de corpos e de uma perpétua
insaciabilidade, o Eros-impulso travestiu-se de Eros-tirano. «Uma alma
assim tiranizada, prognosticava Fedro, está sempre exposta à carência e ao
vazio.» Uma projecção de fantasias mediáticas sobre corpos cada vez
menos habitados. Um poço sem fundo de tristeza por os «íncubos» e os
«súcubos» em que homens e mulheres se tornaram uns para os outros.

Ousemos uma vez mais afirmar com Sócrates, sugere o filósofo


contemporâneo Alain Badiou, «a Ideia verdadeira, o Princípio, contra o
fantasma desta liberdade com que nos oprimem, a liberdade de depender
de objectos insignificantes e de desejos minúsculos7». Será necessário, a
fim de libertar Eros, reencontrar por detrás do desencanto contemporâneo o
entusiasmo do coração puro? A força primitiva da torrente que nos move
misteriosamente, terá dito Ortega y Gasset, que já deplorava o século
anterior por ter deixado de falar do amor verdadeiro.

2
6
François Meyronnis, De l’extermination considérée comme l’un des beaux arts,
Gallimard, «L’infini», 2007.
7
Alain Badiou, «Platon, notre cher Platon!», Magazine littéraire, nº 447, Novembro
2005.
Lucrécio
O amor desafiado

«O amor é um acto sem importância,

já que se pode praticar

indefinidamente.»

Alfred Jarry, Le Surmâle8, 1902

A 25 de Março de 1950, o poeta italiano Cesare Pavese escreve nas últimas


páginas do seu diário interrompido, Ofício de Viver9: «Ninguém se mata pelo
amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos
revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado
inerme, no nosso nada.» Depois de cinco meses de uma ligação funesta
com uma jovem actriz americana, Pavese suicida-se num quarto de hotel
em Turim. Tem quarenta e dois anos. Muitos séculos antes deste
acontecimento trágico, um outro poeta italiano, nascido cerca do ano 55 a.
C., entregava-se a uma das mais terríveis acusações jamais formuladas
contra o amor-paixão. Uma imensidade de versos crus, desarticulados e
pungentes, em simultâneo com um método preciso, pondo de pé uma
organização quase marcial, para prevenir esse tipo de desastre. Chamava-
se Lucrécio e, de acordo com o preceito do seu mestre grego, Epicuro, «vive
retirado», dele não subsiste quase nenhum traço, à excepção da própria
obra, que o revela melhor do que qualquer outro testemunho o poderia
fazer.

Pertenceria ele à ilustre «gens Lucrecia», um dos ramos patrícios mais


ilustres e influentes de Roma? Crê-se bem que sim, embora não haja
quaisquer certezas a este respeito. Aquilo que se sabe da vida de Lucrécio
assenta de facto num único episódio. «Titus Lucretius, o poeta que,
enlouquecido por um filtro de amor, nos intervalos da sua doença, escreveu
alguns livros corrigidos por Cícero, deu a si próprio a morte aos quarenta e
quatro anos.» Aos quarenta e dois, dirão outros cálculos. Tal como Pavese.
Estas breves linhas sobre Lucrécio foram extraídas da Crónica de São
Jerónimo, escrita no final do século IV d. C. Parece evidente tratar-se de
uma astuta narrativa cristã para dar um funeral sem flores ao pensamento

8
O Super Macho [Le Surmâle]; trad. Luísa Neto Jorge. Afrodite, 1975.
9
Ofício de Viver: Diário (1935-1950) [];trad. Alfredo Amorim, Margarida Periquito.
Relógio d’Água, 2004.
deste ateu radical, que recusava por completo a ideia de que a alma
sobrevive. Trata-se, sem dúvida, de uma forma caluniosa de amarrar a uma
nevrose suicida o autor desses cânticos que, no entanto, celebram como
poucos a beleza do mundo e que hão-de suscitar a admiração de Ovídeo e
de Montaigne, tal como a do herético Giordano Bruno, queimado em Roma
no Campo dei Fiori em 1600. E no entanto ninguém mais senão um precoce
Werther latino terá sido capaz de desenvolver uma visão tão negra, tão
áspera, tão angustiada da ferida amorosa. Por mais mal-intencionada que
seja, a fábula esconde por vezes uma poderosa intuição.

Como falhar na vida numa única lição

«O prazer no amor dura só um instante, o desgosto de amor toda a vida…»


É conhecida a romança de Claris de Florian, sobrinho-neto de Voltaire, uma
cançoneta mil vezes repetida desde o XVIII. Nenhuma espécie de alegria se
pode esperar do amor, pelo menos para Lucrécio. O amor é a alameda para
escapar à «ataraxia», essa independência feroz, à qual exorta toda a
sabedoria grega. O inspirador de Lucrécio, o filósofo Epicuro, nascido em
341 a.C., no entanto só raramente aborda, a questão do amor nos
fragmentos de papiros seus que chegaram até nós. Lucrécio encarregar-se-
á disso dois séculos mais tarde, na esteira desse «grande consolador da
antiguidade», conforme escreveu Nietzsche, cuja descoberta do poeta
romano iluminou toda a sua existência.

Assim, o livro IV do De rerum natura10 de Lucrécio, um longo poema


filosófico consagrado ao devir perpétuo do cosmos, traça um retrato a todos
os títulos aterrorizador da alienação amorosa, perante o qual a sua
evocação da peste de Atenas quase parece a evocação de um simpático
garden-party. Quando um viandante extenuado encontra um leito onde se
deitar, fica tranquilo. Quando um esfaimado limpa um prato de lentilhas,
fica saciado. Tudo é diferente no amor, digno a este respeito dos mais
horríveis suplícios mitológicos. Nomeadamente o de Tântalo, condenado a
ver a água desaparecer pelo chão adentro sempre que se baixava para
matar a sede. Quando um amante «possui» a sua amada, a inquietação
profunda que o importuna não é de modo nenhum aliviada. Bem pelo
contrário, com a promiscuidade sexual e afectiva a apertarem os nós que o
amarram, ele fica cada vez mais dependente. «É mesmo o único caso em
que quanto mais possuímos, mais o nosso coração arde num desejo
funesto», escreve sugestivamente Lucrécio.

O amor descrito pelo poeta torna-se de uma voracidade ilimitada. Um


desejo de desmembramento em que Lucrécio acaba por nos lembrar Sade.
Ao olhos dos amantes «não podendo saciar-se na contemplação, nem
podendo por suas mãos arrancar algo aos delicados membros, vagueiam
incertos pelo corpo todo». Os corpos encaixam, «misturam as suas salivas,

10
boca com boca fazendo chocar os dentes, querem-se em vão: aqui nada
podem arrancar nem penetrar, completamente ao outro corpo passar». A
sintaxe de Lucrécio torna-se caótica, o vocabulário, guerreiro. O que ele
descreve é um verdadeiro corpo a corpo mortal. O esperma jorra do homem
tal como o sangue brota de uma ferida, apontado «ao corpo que o feriu de
amor». A mulher descobre-se assim repleta da sua semente tal como o
«inimigo» dá por si coberto do «licor vermelho» que o seu próprio golpe fez
surgir.

Além disso, a paixão sexual é necessariamente acompanhada por uma


forma de ódio, acrescenta Lucrécio. «Impura», a volúpia dos amantes
«esconde os aguilhões que os incitam a ferir o objecto, seja ele qual for, de
onde surge essa semente do seu furor». Homem ou mulher, ninguém gosta
de depender penosamente de outrem. Ignorando «tudo a respeito da ferida
secreta que os rói», os amantes compensam-se frequentemente por esse
sofrimento dissimulado, atormentando aquele que lhe está na origem.
Chegamos assim à primeira razão para rejeitar o amor passional. Por mais
requintado que seja, um prazer que passa pela boa vontade de outrem
infringe o ideal grego de autarcia que os epicuristas defendem tão
denodadamente quanto os seus adversários estóicos. Ninguém pode aspirar
a uma felicidade duradoura se se entrega aos caprichos de outrem ou a
uma outra circunstância exterior, qualquer que ela seja.

Ora, o ser amado permanece «impenetrável» - em todos os sentidos do


termo. No aspecto físico, como já vimos, o desejo de fusão carnal mantém-
se eternamente inatingível. No sentido moral, é pior ainda. Os pensamentos
do outro são sempre opacos, longínquos, potencialmente hostis, e Lucrécio
descreve, mesmo no âmago da união, «a preocupação glacial11» que a
qualquer momento pode tomar conta do amante, que por definição nunca
está absolutamente seguro do seu caso. «Da própria fonte do prazer surge
não sei que espécie de amargura, que até em pleno momento de vigor
agarra o amante pelas goelas», escreve Lucrécio. «Uma palavra ambígua
lançada pela amada crava-se no coração apaixonado, queimadura viva, um
relance, um olhar para um outro, o esboço de um sorriso, outras tantas
suspeitas.» Para ele, esta simples constatação devia ser suficiente para
intimar a que nunca alguém se apaixone seja por quem for.

O segredo mau do amor

Há ainda pior, no entanto, se é que se pode conceber tal ideia. O amor não
é apenas uma alienação em relação ao exterior mas também, por definição,
sem limites, um mau infinito, desmesura, hybris, dizem os gregos antigos.
Nisso, ele viola uma outra exigência comum a toda a tradição da sabedoria
helenística: «Nada em excesso», de acordo com a máxima dos sete

11
Frigida cura, diz o texto latino.
Sábios12. Uma vez inoculado, o mal de amor não poderia retroceder
simplesmente pelo recurso à razão. «O abcesso reaviva-se e incrusta-se, o
seu furor avoluma-se de dia par dia», escreve Lucrécio. Prolifera, qual
metástase impiedosa, e rapidamente deixa de ser «operável», para usar a
expressão a que Proust recorre em Um Amor de Swann13. O poeta procura a
causa desta tendência para ele se tornar ilimitado e, em certa sentido,
encontra-a. Se os amantes se assanham, se se lançam sem descansado um
para o outro, se não ouvem nenhum conselho sensato, se «exageram» no
sentido literal do termo, é porque ignoram por completo o segredo mau do
amor. Este horrível segredo, o mais bem dissimulado de todos, é o
seguinte: «o ídolo» querido não existe. O objecto do amor não é mais do
que a projecção de qualidades imaginárias. A partir da acumulação de
átomos que se desprendem da superfície de uma criatura atraente vindo
atingir o olhar, o amante cria uma história, constrói uma deusa, um ser
adornado por mil seduções que na verdade não correspondem senão ao seu
desejo de as encontrar ali. Foi assim que Lucrécio inventou no século I a.C a
«cristalização» stendhaliana.

Nas minas de sal de Salzburgo, escreve Stendhal em Do Amor14, em 1822,


que quando no inverno se lança um ramo de árvore sem folhas, esse ramo
é retirado alguns meses mais tarde coberto por uma infinidade de
diamantes magníficos, irreconhecível por comparação com o ramo original.
«Aquilo a que eu chamo cristalização é a operação do espírito que retira de
tudo aquilo que se lhe apresenta a descoberta de que o objecto amado
possui novos aspectos de perfeição», resume o romancista. Do mesmo
modo, Lucrécio não se cansa de enumerar em De rerum natura os méritos
irreais que um homem ofuscado pode vir a atribuir àquela que um dia o
marcou. «Negra, ela é da cor do mel, suja e mal cheirosa, natural; de olhos
glaucos, é Pallas, nervosa e seca, uma gazela; a anã parece uma das
Graças, belíssima, a gigante uma deusa majestosa; a gaga chilreia, a muda
é modesta; a megera odiosa e tagarela, uma chama ardente; uma coisinha
adorável aquela que definha de magreza», etc. É sabido o proveito que
Molière tirou desta divertida litania lucréciana numa passagem célebre de O
Misantropo15. Assim, o amor é um produtor de fantasias oníricas, de

12
O elenco dos sete Sábios variou ao longo do tempo mas aquela que mais vezes é
citada é a do tempo de Platão: Tales de Mileto, Periandro de Corinto, Pítaco de
Mitilene, Brias de Priene, Cleóbulo de Lindos, Sólon de Atenas e Quílon de Esparta;
algumas das máximas mais famosas dos sete Sábios foram inscritas nos templos
de Apolo e de Delfos.
13
Um Amor de Swann [Un amour de Swann]; trad. Miguel Serras Pereira. Difel
2002.
14
Do Amor [De l’amour]; trad. . Relógio d’Água, 2009
15
O Misantropo, acto II, cena 4, versos 710-730. «O amor, …[conferir tradução de
VGM]

O Misantropo [Le Misanthrope]; trad. Vasco Graça Moura. Bertrand 2007.


quimeras enganadoras. Nascido em grande parte da imaginação, ele não se
deixaria limitar pelo real, depois de ter sido posta em movimento a sua
maquinaria infernal. No fundo, o amor-paixão não é susceptível de se ver
desmentido mas apenas de ser confirmado, e é aqui que reside o segredo
paradoxal do seu poderio.

É de acrescentar que a mitomania congénita do amor, o excesso extraviado


que o acompanha como uma sombra, seria incapaz de explicar a si próprio
a atracção inoxidável que ele exerce desde sempre sobre todos os seres
humanos. A que se deve que toda a gente se precipite com uma tal
obstinação numa alienação tão selvagem? A que se deve que o mito da
«alma gémea» tenha exercido um tal fascínio através dos tempos,
resistindo inexpugnável a tantos fracassos passados e a tantos insucessos
prováveis? A tudo isto Lucrécio traz uma explicação discreta mas a que não
falta densidade16. Investindo uma qualquer mulher de mil felicidades
futuras, o homem vulgar pensa ter ao seu alcance, e sem demasiado
esforço, o sentido da sua existência. Imaginando que a posse de um
determinado ser lhe dará a chave do reino, ele evita em especial o esforço
de uma conversão decidida à filosofia, o único meio capaz de lhe garantir
uma felicidade estável. Assim, a preguiça metafísica, o medo de viver e de
assumir em pleno a sua própria liberdade surgem como os melhores
sustentáculos desta servidão voluntária a que o amor se resume. Sem o
medo da morte, ele perderia a sua razão de ser.

A salvação pelo sexo

Depois da rude constatação é chegada a hora do remédio. Não se pode falar


propriamente de um antídoto miraculoso, pelo menos enquanto a doença
do amor está em acção. Razão suplementar para se preparar por
antecipação, preconiza Lucrécio, «já que evitar cair nas malhas do amor é
menos difícil do que desembaraçar-se delas». Abrir os olhos, antes de mais.
Não se esquecer de repisar os «defeitos físicos ou morais» autênticos
daquela que se deseja, sugere-nos ele. Cuidar de repetir agora e sempre:
«Será a única? Não teremos nós vivido já sem ela?» É como fazer um
curativo numa prótese, deveríamos nós dizer, no entanto. A mecânica
passional não se deixa obstruir por esse tipo de astúcias. Então, o «sublime
Lucrécio», como lhe chamava Ovídio, o autor da Arte de Amar17, vem
prescrever um método bastante mais radical. Uma série de medidas
destinadas a fazer saltar os amantes de romances cor-de-rosa. Tendo-se
concluído que um amor exclusivo nos expõe à possibilidade de um enorme
sofrimento, é necessário renunciar a ele definitivamente. É mesmo
indispensável. Assim, o poeta preconiza que não se esqueça de «lançar

16
Guiamo-nos neste aspecto pela interpretação de Jean Salem, Lucrèce et
l’éthique, Vrin, 1990, cap. V.
17
Arte de Amar [Ars Amatoria], trad. Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, 2006.
sobre todas as outras pessoas» e não apenas naquela que se deseja «o
líquido acumulado, em vez de o guardar, para o próprio amor devotado».
Não guardar a semente para a «única». Não se excitar apenas com uma,
em resumo. Cultivar os amores plurais e a libertinagem em todos os
sentidos. Não ser avaro também em relação às surpresas de uma noite, às
orgias e a outras folias do Cap-d’Agde18. Servir a Vénus vagabunda, a
«Vénus volgivaga», para o dizer à maneira de Lucrécio. A Afrodite
Pandemos, como lhe chamavam os gregos na época de Platão. Tudo menos
esse «tormento glacial» no âmago do amplexo, cuja perspectiva
decididamente aterroriza o poeta romano.

Ele recomenda também que se apaguem «com novas chagas as primeiras


feridas», e que não se hesite em instrumentalizar «um novo amor para
expulsar um prazer antigo». É caso para dizer que, para Lucrécio, face ao
perigo amoroso todos os golpes são aceitáveis. Confrontado com o mesmo
risco de alienação, com a mesma ameaça pesando sobre a sua segurança
interior, um estóico como Marco Aurélio optava por uma solução
diametralmente oposta. Tal como para Lucrécio, a paixão amorosa assenta,
segundo ele, numa série avaliações erradas. Contudo, ao contrário do poeta
epicurista, que aconselhava a que nos metamorfoseássemos em sátiros
para resolver esse problema doloroso, Marco Aurélio sugere, por sua vez, o
exorcismo espiritual. Exercitar-se na prática da observação do objecto que
suscita o arrebatamento «na sua nudez», sugere ele com toda a
simplicidade nos Pensamentos19. O que é afinal o acto sexual? «Uma fricção
do ventre com ejaculação num espasmo de líquido viscoso», nada mais.
Longamente meditada, esta consideração deveria bastar, ao olhos do
imperador e filósofo romano, para suscitar uma repulsa duradoura.

Epicuro contra os suínos

Um franco-atirador como Lucrécio não seria capaz de prescrever uma tal


disciplina mental, anunciando já em surdina o descrédito que o cristianismo
em breve lançará sobre eros. «Fugir ao amor não é de forma alguma privar-
se das alegrias de Vénus, é pelo contrário fruir sem pagar um preço»,
explica ele em De Rerum Natura. «Nenhum prazer é mau em si mesmo»,
afirmava a oitava máxima do seu mestre Epicuro, sendo de excluir apenas
aqueles que causam mais perturbação do que alegria. Lucrécio vai mais
longe, chegando a preconizar que nos lancemos no prazer sem hesitação
para não nos deixarmos intoxicar por uma paixão fixa nem nos deixarmos
devorar pelos «abutres do ciúme20». Ao tornar-se o arauto desta espécie de
priapismo de vocação terapêutica, revelar-se-á o poeta fiel aos
18
Cap-d’Agde é uma estância turística na costa mediterrânica francesa, conhecida
pela prática do naturismo e pelos sex clubs.
19
Pensamentos [], trad. João Maia. Relógio d’Água, 1995.
20
A expressão surge no livro III do De Rerum Natura.
ensinamentos epicuristas? No sentido vulgar que se instalou ao longo dos
tempos, sem dúvida nenhuma. No sentido original, a questão é mais
discutível.

Seria compreender bastante mal a mensagem epicurista, ler nela uma


vontade de «fruir sem entraves» antes do tempo. Confrontado com os seus
detractores, o mais caluniado dos filósofos da Antiguidade não deixará
jamais de repetir que o encanto da vida não está na «pândega, nos
banquetes permanentes, no prazer com rapazes e mulheres». O prazer é a
pedra de toque do próprio bem, eis a grande revolução que Epicuro opera
em relação a Platão. «Cuspo na moralidade e na admiração oca que lhe é
concedida, não produzindo ela qualquer prazer.» Acontece que isto não
deve inclinar-nos a viver e a pensar como um porco. A célebre Carta sobre
a Felicidade21 leva a cabo uma severa chamada à ordem a este respeito.
Impõe-se de facto uma triagem drástica entre os diferentes tipos de desejo,
de modo a pôr de lado aqueles que atentam contra aquela calma interior
que é o único meio de proporcionar seja a quem for uma felicidade
duradoura. Os desejos naturais e necessários – comer, dormir, estar
agasalhado – devem ser alimentados sem qualquer moderação. Os desejos
não naturais e não necessários – acumular stock-options, adquirir um par de
botas de camurça Prada – devem ser proscritos em absoluto. Entre uns e
outros, os desejos naturais e não necessários – levantar-se tarde, degustar
bons vinhos, fazer amor – devem ser vigiados pelo canto do olho.

O prazer sexual encontra-se portanto, para Epicuro, nesta última categoria


mista e instável. Por mais natural que seja, de facto ninguém morreria por
ser privado dele. O sexo não é uma forma de «higiene», por mais que
alguns gabarolas digam o que disserem a esse respeito. Não há no entanto
nenhum argumento válido para o recusar, contrariamente ao ascetismo
pregado no Fedro de Platão. Não há também nenhuma razão aceitável para
o perseguir como se a vida dependesse dele. Bem pelo contrário: tornando-
se necessário, ele sofre uma mutação perigosa, tornando-se de imediato
uma obsessão realmente ameaçadora. Assim, o filósofo epicurista não se
apaixonará. Não se casará mais, «excepto em circunstâncias excepcionais»,
relata Diógenes Laércio22. Limitar-se-á portanto a colher «as rosas da vida»
quando elas se lhe apresentem, sejam cortesãs ou voluntárias em togas
leves, sem permitir contudo que o seu despótico prazer incomode as
criaturas em causa.

Metrodoro, o «braço direito» e o melhor amigo de Epicuro no «Jardim», um


adolescente ao que parece incendiado por violentos apetites sexuais,
resumirá assim o assunto numa carta: «Dizes-me que o aguilhão da carne
te leva a abusar dos prazeres do amor. Se não violas a lei e não perturbas

21
Carta sobre a Felicidade [], trad. Adalberto Alves. Padrões Culturais, 2008.
22
Diógenes Laércio, Vies, doctrines et sentences des philosophes illustres. É esta,
quase em exclusivo, a fonte pela qual foram transmitidas ao longo dos séculos as
cartas de Epicuro e as suas principais máximas.
de modo nenhum a moral estabelecida, se não incomodas nenhum dos teus
vizinhos, se não consomes as tuas forças e não esbanjas a tua fortuna,
entrega-te sem escrúpulos à tua inclinação. Todavia, é impossível não ser
travado pelo menos por uma destas barreiras: os prazeres do amor nunca
deram proveito a ninguém, já não é mau quando eles não são prejudiciais.»

O demónio de Lucrécio

Já se percebeu, Lucrécio não é portanto um discípulo epicurista dos mais


ortodoxos. A sua condenação inflamada do amor-paixão, é certo, está
totalmente de acordo com os princípios do mestre. As análises que ele aí
leva a cabo são de uma finura e de uma força poética inauditas. Os
remédios que ele pretende propor, ao contrário, decorrem de uma fantasia
mais pessoal. A audaciosa máxima 30 de Epicuro parece na verdade um
aviso antecipado para quem quer que venha um dia a ser tentado a seguir
os preceitos do seu fogoso discípulo romano. «Se aquilo que provoca o
prazer dos dissolutos libertasse o espírito dos temores face aos fenómenos
celestes, à morte e à dor, e se além disso eles descobrissem ainda os
limites do desejo… não teríamos qualquer razão para os censurar, já que
eles estariam repletos de prazer, sem qualquer dor nem tormento, as
causas do mal.» A coisa parece no entanto muito pouco provável aos olhos
de Epicuro23. Longe de serem libertados do desejo, os voluptuosos
descomplexados estão, segundo ele, «perdidos» - asôtoi, diz o texto grego,
«impossíveis de salvar». Nunca por razões de ordem moral, evidentemente,
já que o epicurismo apenas admite as razões do prazer e da ausência de
perturbação. Apenas porque eles se arriscam assim a ser conduzidos cada
vez mais longe, muito mais longe, e a acabar por desequilibrar toda a sua
vida.

Não é certo, portanto, que se possa domesticar o prazer sexual entregando-


lhe as rédeas, tal como preconiza Lucrécio. Jogar com ele é como jogar à
roleta russa com o diabo em pessoa, sugere Choderlos de Laclos. A intriga
de As Ligações Perigosas24 ilustra-o bem. Mesmo o mais empedernido dos
Valmont, o mais experiente dos debochados e dos torcionários de mulheres,
não está a salvo de ver um dia cair sobre ele o abutre da paixão lucreciana.
Um romance de Hubert Selby Jr., Le Démon25, expõe também à sua maneira
as mesmas consequências trágicas. Publicado em 1976, é a obra-prima do
escritor norte-americano. Harry White, o herói do romance, um jovem

23
Este tema é desenvolvido por Geneviève Rodis-Lewis em Epicure et son école,
Gallimard, 1975, Capítulo III, «La modulation des désirs».
24
As Ligações Perigosas [Les Liaisons Dangereuses], trad. João Pedro de Andrade e
Alfredo Amorim. Relógio d’Água, 1989.
25
Na edição original, em língua inglesa, The Demon. A única obra de Hubert Selby
Jr. editada em Portugal é o romance Última Saída para Brooklin (Antígona)
traduzido por Manuel Portela.
prodígio do mundo dos negócios, é também um sedutor cínico,
multiplicando as suas conquistas sem jamais estabelecer qualquer relação
sentimental. Qual o seu alvo preferido? As mulheres casadas, que ele gosta
de «enrabar», como é dito sem rodeios logo nas primeiras frases do livro 26,
porque com elas o risco de um dia se ver obrigado a viver a dois é menor. A
sua estratégia donjuanesca tem por objectivo a preservação da liberdade,
mas Selby mostra no decorrer da narrativa que ela não é isenta de uma
intensa perversidade. A sua compulsão, de facto, acentua-se
perigosamente. A dependência amorosa à qual ele julga escapar é em
breve substituída por uma dependência sexual incontrolável. O seu
casamento não alterará nada e ei-lo ao fim de pouco tempo em busca de
prostitutas encharcadas em álcool em bairros suspeitos. Depois, é a queda
vertiginosa que o levará ao homicídio gratuito e ao suicídio. É o próprio mito
de Don Juan, em toda a sua profundidade, que o muito ateu Selby assim
revisita na Nova Iorque dos yuppies e da publicidade a electrodomésticos. A
luta contra o amor é sempre um desafio de ordem metafísica, e a liberdade
que ele busca pode facilmente redundar na mais completa escravidão.

Quem não ama aborrece-se, no sentido mais radical do termo. E quem se


aborrece desenvolve infalivelmente as mais sórdidas deformações da alma
e do corpo27. O desafio lucreciano não é portanto isento de perigos e a
figura contemporânea do «possuído», inventada por Selby, ilustra-o de uma
forma exemplar. Não é também destituído de uma certa nobreza.
Encontramos no livro IV do De Rerum Natura toda a grande coragem antiga,
essa preocupação em resguardar a todo o custo «o deus interior» das
emoções perniciosas e alienantes, sejam elas inspiradas pelo terror da
morte, pelo amor louco ou pela melancolia mórbida. Encontramos aí todo o
feroz egoísmo que os gregos antigos transmitiram aos seus discípulos
latinos. Uma rigidez mineral face aos acasos da vida, tanto mais salutar
quanto ela nos aparece nos antípodas dos compromissos humanistas
contemporâneos e do seu sentimentalismo adulterado. Aos olhos do sábio
epicurista, o amor é uma espécie de culto inconsciente, de superstição
perigosa, devendo portanto ser erradicado. Tal como os outras. A este

26
«Com elas, havia menos chatices. Quando estavam com Harry, elas sabiam com
o que contar. Estava fora de questão irem jantar ou beber um copo. E nada de
lábia. […] Harry recusava qualquer ligação, qualquer entrave, qualquer encrenca.
Aquilo que ele queria era foder quando tinha vontade de foder e depois pirar-se,
com um sorriso e um grande adeus.» Hubert Selby Jr., Le Démon, 10/18.
27
Uma ideia expressa de forma enfática pelo velho monge Zossimo numa
passagem de Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski, outro perito em «Demónios».
«Acima de tudo não mintam a vós próprios. Aquele que mente a si mesmo e dá
ouvidos à sua própria mentira chega ao ponto de deixar de distinguir a verdade
tanto em si mesmo como ao seu redor; perde portanto o respeito de si próprio e o
dos outros. Não respeitando ninguém, ele deixa de amar e para se ocupar e se
distrair, na ausência do amor, entrega-se a paixões e a prazeres grosseiros; vai até
à bestialidade nos seus vícios, e tudo isso provém da mentira permanente a si
mesmo e aos outros.»
respeito, a sua condenação sem apelo por parte de Lucrécio continua a ser
um acto de uma coragem tocante, da mais alta solidão.

Não deixa de existir um mal-estar difuso na leitura destes versos


torturados. O sentimento de que uma imensa infelicidade se encontra neles
a saque, muito longe da serenidade solar de Epicuro. Uma impressão que o
escritor Marcel Schwob, um inpirador de Borges prematuramente falecido
em 1905, exprimirá talvez a seu modo, nas belíssimas Vidas Imaginárias28,
que ele consagra ao enigmático Lucrécio. A infância do poeta filósofo é aí
sonhada «à sombra do alpendre negro de uma casa alta erguida na
montanha». Tendo ido estudar retórica para Roma, o rapaz regressa à casa
materna com «uma mulher africana, bela, bárbara e má». Lucrécio está
apaixonado, mas não tardará a esbarrar no «véu flexível e opaco que
separa os amantes». Começa a vaguear pela biblioteca e depara-se com um
papiro de Epicuro. Descobre nele que a tristeza causada pela morte não é
mais do que «a pior das ilusões terrenas», que o amor «não tem outra
causa que não seja a dilatação dos átomos que desejam unir-se a outros
átomos». Mas sabendo doravante que a tristeza, o amor e a morte não são
mais do que «vãs imagens quando contempladas do espaço calmo onde é
necessário refugiar-se», ele ainda assim não chora menos, não deseja
menos o amor e não receia menos a morte. Eis porque, escreve Schwob,
tendo um dia regressado à morada sombria dos seus antepassados,
Lucrécio se aproximou da bela africana que cozia uma beberagem. Então,
«ele bebeu o filtro. E de imediato perdeu a razão e esqueceu todas as
palavras gregas do rolo de papiro. E pela primeira vez, louco, conheceu o
amor; e durante a noite, envenenado, conheceu a morte». Evidentemente,
tudo isto não passa de literatura, dirão os filósofos.

28
Vidas Imaginárias [Vies Imaginaires], trad. Telma Costa. Teorema, 1990.

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