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Platão
O hino ao amor
Lá, está o bem que todos os espíritos desejam. Lá, o repouso a que toda a gente
aspira. Lá, está o amor, lá, o prazer ainda. Lá, ó minha alma guiada para o lugar
mais alto do céu! Aí, tu poderás reconhecer a Ideia da beleza, que eu neste mundo
adoro.»
Eis portanto o velho sábio grego num papel mais intrigante do que nunca.
Ao mesmo tempo que é proverbial o facto de ele próprio ter uma relação
conjugal com uma verdadeira harpia, chamada Xantipa. Essa mulher
rabugenta com quem ele teve um filho, Lamprócles, criticava-o
nomeadamente pela sua actividade de pensador, tão perigosa como pouco
lucrativa. As pitorescas peripécias do seu casamento davam azo na época,
ao que parece, a inúmeros gracejos. Chegou até nós o episódio de um
duche histórico, quando Xantipa lhe atirou um dia à cabeça uma bacia de
água suja. Um gesto ao qual Sócrates terá respondido com estoicismo:
«Uma chuva ligeira afasta o temporal».
O amor será, por fim, descrito como «amor-fusão» por Aristófanes, que
entre duas gargalhadas apresentará aos convivas o irresistível «mito das
esferas». Supostamente destinada a exprimir a dimensão trágica da paixão
amorosa, a fábula de Aristófanes – a farsa? – fará dizer um dia ao escritor
Michel Houellebecq que o Banquete é o livro, maldito entre todos os outros,
que literalmente «intoxicou a humanidade» dando origem a «uma incurável
nostalgia».
A metade da laranja
Tão divertida quanto pungente, a história merece que façamos um longo
desvio. Cada homem, postula Aristófanes, era originalmente uma esfera.
Havia-as de três tipos: macho, fêmea e andrógino, contendo esta última os
outros dois tipos. Tinham quatro mãos, quatro pernas, dois rostos numa
única cabeça e dois órgãos genitais. Para poderem gerar, uniam-se na terra
como as cigarras. Quando se punham a correr, pareciam um sempre-em-pé
rodando a grande velocidade. Assim equipados, possuíam uma força
imensa de que se sentiam extremamente orgulhosos e que os impeliu um
dia a escalar até ao céu para darem combate aos deuses. Estes, ficaram
embaraçados. Matar os homens significava perder as oferendas que
recebiam deles. Então, Zeus cortou-os em dois «como quem corta um ovo
com um cabelo»!
Mas nesta triste situação, com o desejo de formarem uma única entidade,
recusando-se a fazer fosse o que fosse uma sem a outra, as metades
começaram a morrer de fome. E quando uma metade morria, aquela que
lhe sobrevivia procurava uma outra à qual pudesse unir-se. A espécie ia-se
extinguindo a pouco e pouco.
É deste mito fundador que André Breton recuperará o rasto muitos séculos
mais tarde em O Amor Louco3, por intermédio da imagem do «sapatinho da
Cinderela», que simboliza no folclore ocidental esse ser único,
desconhecido, que nos espera algures. Toda a gente sabe, garante o
escritor, que o amor assenta sobre esta ideia de que a cada um de nós
corresponde apenas um único indivíduo. Mas como «as condições sociais da
vida» parecem ser implacáveis para com essa ilusão, escreve ele, a maior
parte dos homens estupidamente perde a esperança no amor. «Eles
carregam memórias coxas a que chegam a atribuir a causa de uma queda
imemorial, para não se sentirem tão culpados. E contudo, a promessa da
hora seguinte para cada um deles contém o segredo inteiro da existência,
com a possibilidade de vir a revelar-se um dia ocasionalmente num outro
ser». Um ser absolutamente singular aos olhos de Breton, que se propõe,
corajosamente, a provar que o verdadeiro amor é imortal.
O nascimento de Eros
Mas se Eros não é nem feio nem belo, nem pobre nem rico, nem ignorante
nem sabedor, não poderá ser um deus. O que será ele então? Eros é um
daimonion, revela a sacerdotisa, «um intermediário entre os deuses e os
mortais.» E graças ao alto patrocínio de Afrodite, nascida no dia da sua
concepção, ele é uma força ascensional inteiramente dirigida para o desejo
do belo, sabendo-se que o belo, em Platão, está sempre associado ao bem e
à verdade.
4
Estudos sobre o Amor [Estudios sobre el amor]; trad. Elisa Castro Neves. Relógio
d’Água, 2002.
Quando, no final do Banquete, o belo Alcibíades irrompe e critica Sócrates
por não ter respondido aos seus avanços de natureza sexual, o que esse
jovem exprime é também toda a loucura da atracção amorosa, todo o
sofrimento que ela gera, o ficar fora de si. Ele sente-se como um homem
mordido por uma «víbora», assegura. E, contudo, quem não tenta a
aventura de eros e não conhece o ferrão da carência, não dissimulará sob a
designação de «sabedoria» e de «temperança» uma certa forma de morte?
- pergunta Monique Dixsaut em Le Natural philosophe5. «Neste sentido, de
facto, as pedras, na verdade, gozariam uma felicidade sem par, tal como os
mortos», diz Górgias. Aquele que não deseja nem ama não é já de facto um
homem.
2
6
François Meyronnis, De l’extermination considérée comme l’un des beaux arts,
Gallimard, «L’infini», 2007.
7
Alain Badiou, «Platon, notre cher Platon!», Magazine littéraire, nº 447, Novembro
2005.
Lucrécio
O amor desafiado
indefinidamente.»
8
O Super Macho [Le Surmâle]; trad. Luísa Neto Jorge. Afrodite, 1975.
9
Ofício de Viver: Diário (1935-1950) [];trad. Alfredo Amorim, Margarida Periquito.
Relógio d’Água, 2004.
deste ateu radical, que recusava por completo a ideia de que a alma
sobrevive. Trata-se, sem dúvida, de uma forma caluniosa de amarrar a uma
nevrose suicida o autor desses cânticos que, no entanto, celebram como
poucos a beleza do mundo e que hão-de suscitar a admiração de Ovídeo e
de Montaigne, tal como a do herético Giordano Bruno, queimado em Roma
no Campo dei Fiori em 1600. E no entanto ninguém mais senão um precoce
Werther latino terá sido capaz de desenvolver uma visão tão negra, tão
áspera, tão angustiada da ferida amorosa. Por mais mal-intencionada que
seja, a fábula esconde por vezes uma poderosa intuição.
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boca com boca fazendo chocar os dentes, querem-se em vão: aqui nada
podem arrancar nem penetrar, completamente ao outro corpo passar». A
sintaxe de Lucrécio torna-se caótica, o vocabulário, guerreiro. O que ele
descreve é um verdadeiro corpo a corpo mortal. O esperma jorra do homem
tal como o sangue brota de uma ferida, apontado «ao corpo que o feriu de
amor». A mulher descobre-se assim repleta da sua semente tal como o
«inimigo» dá por si coberto do «licor vermelho» que o seu próprio golpe fez
surgir.
Há ainda pior, no entanto, se é que se pode conceber tal ideia. O amor não
é apenas uma alienação em relação ao exterior mas também, por definição,
sem limites, um mau infinito, desmesura, hybris, dizem os gregos antigos.
Nisso, ele viola uma outra exigência comum a toda a tradição da sabedoria
helenística: «Nada em excesso», de acordo com a máxima dos sete
11
Frigida cura, diz o texto latino.
Sábios12. Uma vez inoculado, o mal de amor não poderia retroceder
simplesmente pelo recurso à razão. «O abcesso reaviva-se e incrusta-se, o
seu furor avoluma-se de dia par dia», escreve Lucrécio. Prolifera, qual
metástase impiedosa, e rapidamente deixa de ser «operável», para usar a
expressão a que Proust recorre em Um Amor de Swann13. O poeta procura a
causa desta tendência para ele se tornar ilimitado e, em certa sentido,
encontra-a. Se os amantes se assanham, se se lançam sem descansado um
para o outro, se não ouvem nenhum conselho sensato, se «exageram» no
sentido literal do termo, é porque ignoram por completo o segredo mau do
amor. Este horrível segredo, o mais bem dissimulado de todos, é o
seguinte: «o ídolo» querido não existe. O objecto do amor não é mais do
que a projecção de qualidades imaginárias. A partir da acumulação de
átomos que se desprendem da superfície de uma criatura atraente vindo
atingir o olhar, o amante cria uma história, constrói uma deusa, um ser
adornado por mil seduções que na verdade não correspondem senão ao seu
desejo de as encontrar ali. Foi assim que Lucrécio inventou no século I a.C a
«cristalização» stendhaliana.
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O elenco dos sete Sábios variou ao longo do tempo mas aquela que mais vezes é
citada é a do tempo de Platão: Tales de Mileto, Periandro de Corinto, Pítaco de
Mitilene, Brias de Priene, Cleóbulo de Lindos, Sólon de Atenas e Quílon de Esparta;
algumas das máximas mais famosas dos sete Sábios foram inscritas nos templos
de Apolo e de Delfos.
13
Um Amor de Swann [Un amour de Swann]; trad. Miguel Serras Pereira. Difel
2002.
14
Do Amor [De l’amour]; trad. . Relógio d’Água, 2009
15
O Misantropo, acto II, cena 4, versos 710-730. «O amor, …[conferir tradução de
VGM]
16
Guiamo-nos neste aspecto pela interpretação de Jean Salem, Lucrèce et
l’éthique, Vrin, 1990, cap. V.
17
Arte de Amar [Ars Amatoria], trad. Carlos Ascenso André. Livros Cotovia, 2006.
sobre todas as outras pessoas» e não apenas naquela que se deseja «o
líquido acumulado, em vez de o guardar, para o próprio amor devotado».
Não guardar a semente para a «única». Não se excitar apenas com uma,
em resumo. Cultivar os amores plurais e a libertinagem em todos os
sentidos. Não ser avaro também em relação às surpresas de uma noite, às
orgias e a outras folias do Cap-d’Agde18. Servir a Vénus vagabunda, a
«Vénus volgivaga», para o dizer à maneira de Lucrécio. A Afrodite
Pandemos, como lhe chamavam os gregos na época de Platão. Tudo menos
esse «tormento glacial» no âmago do amplexo, cuja perspectiva
decididamente aterroriza o poeta romano.
21
Carta sobre a Felicidade [], trad. Adalberto Alves. Padrões Culturais, 2008.
22
Diógenes Laércio, Vies, doctrines et sentences des philosophes illustres. É esta,
quase em exclusivo, a fonte pela qual foram transmitidas ao longo dos séculos as
cartas de Epicuro e as suas principais máximas.
de modo nenhum a moral estabelecida, se não incomodas nenhum dos teus
vizinhos, se não consomes as tuas forças e não esbanjas a tua fortuna,
entrega-te sem escrúpulos à tua inclinação. Todavia, é impossível não ser
travado pelo menos por uma destas barreiras: os prazeres do amor nunca
deram proveito a ninguém, já não é mau quando eles não são prejudiciais.»
O demónio de Lucrécio
23
Este tema é desenvolvido por Geneviève Rodis-Lewis em Epicure et son école,
Gallimard, 1975, Capítulo III, «La modulation des désirs».
24
As Ligações Perigosas [Les Liaisons Dangereuses], trad. João Pedro de Andrade e
Alfredo Amorim. Relógio d’Água, 1989.
25
Na edição original, em língua inglesa, The Demon. A única obra de Hubert Selby
Jr. editada em Portugal é o romance Última Saída para Brooklin (Antígona)
traduzido por Manuel Portela.
prodígio do mundo dos negócios, é também um sedutor cínico,
multiplicando as suas conquistas sem jamais estabelecer qualquer relação
sentimental. Qual o seu alvo preferido? As mulheres casadas, que ele gosta
de «enrabar», como é dito sem rodeios logo nas primeiras frases do livro 26,
porque com elas o risco de um dia se ver obrigado a viver a dois é menor. A
sua estratégia donjuanesca tem por objectivo a preservação da liberdade,
mas Selby mostra no decorrer da narrativa que ela não é isenta de uma
intensa perversidade. A sua compulsão, de facto, acentua-se
perigosamente. A dependência amorosa à qual ele julga escapar é em
breve substituída por uma dependência sexual incontrolável. O seu
casamento não alterará nada e ei-lo ao fim de pouco tempo em busca de
prostitutas encharcadas em álcool em bairros suspeitos. Depois, é a queda
vertiginosa que o levará ao homicídio gratuito e ao suicídio. É o próprio mito
de Don Juan, em toda a sua profundidade, que o muito ateu Selby assim
revisita na Nova Iorque dos yuppies e da publicidade a electrodomésticos. A
luta contra o amor é sempre um desafio de ordem metafísica, e a liberdade
que ele busca pode facilmente redundar na mais completa escravidão.
26
«Com elas, havia menos chatices. Quando estavam com Harry, elas sabiam com
o que contar. Estava fora de questão irem jantar ou beber um copo. E nada de
lábia. […] Harry recusava qualquer ligação, qualquer entrave, qualquer encrenca.
Aquilo que ele queria era foder quando tinha vontade de foder e depois pirar-se,
com um sorriso e um grande adeus.» Hubert Selby Jr., Le Démon, 10/18.
27
Uma ideia expressa de forma enfática pelo velho monge Zossimo numa
passagem de Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski, outro perito em «Demónios».
«Acima de tudo não mintam a vós próprios. Aquele que mente a si mesmo e dá
ouvidos à sua própria mentira chega ao ponto de deixar de distinguir a verdade
tanto em si mesmo como ao seu redor; perde portanto o respeito de si próprio e o
dos outros. Não respeitando ninguém, ele deixa de amar e para se ocupar e se
distrair, na ausência do amor, entrega-se a paixões e a prazeres grosseiros; vai até
à bestialidade nos seus vícios, e tudo isso provém da mentira permanente a si
mesmo e aos outros.»
respeito, a sua condenação sem apelo por parte de Lucrécio continua a ser
um acto de uma coragem tocante, da mais alta solidão.
28
Vidas Imaginárias [Vies Imaginaires], trad. Telma Costa. Teorema, 1990.