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Hart
Resumo
Ao estabelecer uma genealogia da teoria das fontes do direito, o presente artigo adverte o
caráter a-histórico que reveste a concepção acadêmica de um modelo assentado em uma polaridade
estática entre um legislador como centro produtor ativo e exclusivo de normas em contraposição a
súditos passivos, modelo teórico que no mais das vezes ignora o lugar do poder na emergência do
estado e das fontes de seu ordenamento jurídico. Com apoio nas reflexões sobre o problema da
concepção das fontes no pensamento de Miguel Reale e de Herbert Hart, ao se evidenciar como
Palavras-chave: Dogmática analítica; Common Law; Teoria das fontes; Miguel Reale; Herbert
L. A. Hart.
Considerações sobre a teoria das fontes do direito em Miguel Reale e Herbert L. A. Hart
genealogia de alguns dos valores afirmados pela teoria das fontes, sobretudo a partir das
essencialmente tópicas dos casos particulares, jamais tendo se constituído ali algo como um
sistema, que demandasse a rigorosa definição técnica, nos termos em que a questão se coloca
tardio, ainda pouco se mostrava necessário haver precisão em anotar as assim ditas fontes do
direito. Isto porque se fazia derivar o fundamento de todas as normas da vontade do monarca.
Ora, por se tratar de pura vontade, a emissão de preceitos pelo príncipe potencialmente
normativo.
Paradoxalmente, tal situação não implicaria maiores problemas para o conjunto das
normas subseqüentes viessem de encontro a disposições passadas, vez que se baseavam todas,
de um modo geral, no arbítrio real, fundamentado por sua vez no amparo da divindade. O
monarca figurava como pedra angular do Estado e de seu ordenamento jurídico, fonte de
manifestação de todos os direitos e deveres, idéia ainda muito presente em Hobbes, com sua
conteúdo contraditório não implicava dificuldades do ponto de vista sistêmico: the king can
do no wrong.1
Tal paradigma teria sido introjetado no pensamento jurídico por força dos reclamos do
capitalismo emergente, que traz em seu bojo alterações de monta para a estrutura social. De
fato, os novos padrões de trocas econômicas demandavam um cenário geral que conferisse
desses novos valores, inscrevem-se, entre outros de mesma orientação, a ordem pública; a
estatal; e a igualdade jurídica. Todos esses condicionantes podem ser resumidos naquelas
previsibilidade, os quais Grau ressalta como fundamentais para o adequado cumprimento dos
contratos. A ideologia do contrato de tal forma domina o cenário das relações jurídicas, que se
1
Alysson Leandro Mascaro, Introdução ao estudo do direito, pp. 131-135; Klaus Adomeit, Filosofia do direito e
do Estado, pp. 66-71; Norberto Bobbio, Estado, gobierno y sociedad, p. 103.
2
Eros Grau, A ordem econômica na constituição de 1988, pp.32-35; Miguel Reale, Lições preliminares de
direito, pp. 148-154; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, pp. 225-226.
espiritual do indivíduo, ao fundar o conhecimento na sensação, conferindo ênfase à
observação dos fenômenos, bem como ao valor central de utilidade, que em Hume, epítome
Dessa forma, o método de investigação promovido pelo empirismo acaba por servir,
mostra especialmente contundente para o ideário absolutista, seja ele fundado em termos de
justificações, a hipótese do contrato social se impõe como uma via intelectualmente plausível,
ao mesmo tempo em que afirma a liberdade primordial do indivíduo e traz para a organização
Adam Smith (este, um amigo mais jovem de Hume e opositor de Hobbes), cuja observação do
pensamento deísta que postula uma situação atual de desgoverno natural em face da divindade
consecução da justiça, vez que esta é tida como um ideal inalcançável e aberto a relativismos
constituem aquilo que Bobbio chamará ordenamento jurídico complexo, de tal sorte que
3
Para este parágrafo e os que seguem, Claudio Napoleoni, Smith, Ricardo e Marx, pp. 40-47; Danilo Marcondes,
O empirismo, pp. 117-123; Eduard Heimann, História das doutrinas econômicas, pp. 22-30, 53-54, 57-87;
Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme Assis de Almeida, Curso de filosofia do direito, pp. 290-296, 302.
caberá à dogmática jurídica delimitar o lugar de cada um desses eventos de repercussão no
complexo, vale dizer, o sistema em que se verifica uma única fonte produtora de normas,
sendo exemplo recorrente a polaridade entre um legislador que põe a norma e os súditos que a
escola.
direito integrar o mundo da cultura, enquanto construção, e não como dado. No entanto,
prossegue o autor para afirmar nessa concepção duas dificuldades de relevo. Em primeiro
lugar, a percepção do objeto como construção intelectual não implica o afastamento total de
própria cultura. Veja-se o exemplo dado pelo próprio autor, ao identificar tal problemática na
distinção elaborada por Savigny entre lei e espírito, dicotomia que redundaria finalmente na
aquela disposição normativa específica. Por seu turno, corresponderia ao conjunto das fontes
4
Gustav Radbruch, Introducción a la filosofía del derecho, pp. 39-42; Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento
jurídico, pp. 37-47; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, p. 227.
5
Para este parágrafo e os que se seguem, cf. Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao estudo do direito, pp.
223-225.
formais o produto dos procedimentos solenes previstos pelo ordenamento para a manipulação
Esta distinção, como se sabe, tem como principal inconveniente a dificuldade que
ocasiona para a justificação da ordem, pois abre o caminho para a discussão não apenas sobre
qual seja o fundamento material do direito, mas principalmente quanto à sua adequação
àqueles fundamentos.
conferido às fontes formais, conforme sejam elas percebidas como mero instrumento de
Neste sentido, Miguel Reale postula que a teoria das fontes daria enfoque aos
dimensão da validade. Com este termo, Reale se refere exclusivamente à validade formal.
Esta, em suas Lições preliminares de direito, é conceituada como uma propriedade que diz
no plano normativo.6
Essa definição ganha maior relevo, dentro da teoria das fontes preconizada por Reale,
a partir do momento em que este principia sua obra especificamente dedicada a essa questão –
Fontes e modelos do direito – com um retrospecto de suas reflexões sobre o problema das
fontes, para indicar que, se a princípio havia proposto a revisão da teoria com vistas à
preponderância final da teoria dos modelos jurídicos, ora caminhava em direção oposta, para
enfim concluir que a teoria das fontes daria enfoque aos processos de instituição das normas
jurídicas, com enfoque no âmbito da validade, enquanto que a teoria dos modelos ligar-se-ia
6
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, p. 2; Lições preliminares de direito, pp. 114; 139-140.
7
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 1-6.
Portanto, e em contraposição à noção de validade acima esboçada, a eficácia é
aos efeitos sociais que uma regra suscita através de seu cumprimento.8
Reale, apoiado em Bobbio, atribui à teoria das fontes a missão primordial de promover
a fixação dos requisitos de fato e de direito que devem ser obedecidos para que qualquer
produção de normas possa ser considerada válida. Ademais, caberia àquela teoria o estudo da
bem como a análise e classificação das diversas formas ou processos de produção de regras
jurídicas.9
Como se vê, Reale toma a teoria das fontes sob o aspecto procedimental, ou seja, das
Afigura-se evidente com isso que Reale envereda pelo segundo rumo enunciado ao início
Com efeito, Reale frisa que apenas poderá constituir objeto da ciência jurídica o que
jurídicas, aquilo que, novamente com fulcro nas Lições preliminares, constitui os processos
ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força
obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. Por seu
8
Miguel Reale, Filosofia do direito, pp. 112-115.
9
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 12-13.
10
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 12-13; 18-19.
diversos do direito, tais como a sociologia, a ciência política e a psicologia, disciplinas que
Não que com isso Reale considere que o direito seja exclusivamente a norma, pois
entraria em contradição com a sua própria teoria tridimensional concreta. O autor insiste que o
direito é sempre normativo, embora não exclusivamente normativo. Com essa última
no que penso compreender Reale o conjunto das vertentes ditas realistas da ciência jurídica. 12
De fato, sabe-se que Kelsen, em sua primeira fase, se deteve especificamente sobre o
problema da validade formal, mas, após voltar o olhar para a vivência do common law nos
Estados Unidos da América, enfim reconheceu alguma relação entre validade e eficácia da
norma jurídica. No entanto, teria ainda ficado aquém da perspectiva defendida por Reale, já
que o monismo normativo adotado pelo austríaco considera que o âmbito material da validade
decorrência puramente lógica. Por seu turno, Reale observa a interação entre validade e
eficácia sob múltiplas formas, situada historicamente. Sendo o direito experiência, não se
pode abstrair sua inserção histórico-social com apoio tão-somente em considerações de ordem
lógico-semântica.
Para Reale, não se pode separar o conceito de fonte da idéia de obrigatoriedade das
normas por ela emanadas, de modo que o conteúdo de uma fonte do direito são as próprias
regras jurídicas por ela enunciadas. Tendo em vista a noção de validade objetiva, Reale
propugna pela compreensão prospectiva da fonte do direito, o que nos faz retornar, por via da
oposição, a Savigny, cuja reflexão acerca das fontes enfocava o produto destas sob o viés
11
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 14-15.
12
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 14-15.
retrospectivo, como se dá, por exemplo, com a idéia de interpretação conforme a intenção do
legislador.13
Para Engisch, reside no debate sobre a busca do sentido objetivo da lei a problemática
pelo contexto histórico e psicológico do legislador? Ou, do contrário, teria a lei algo como um
sentido que se destaca daquele impregnado em sua gênese? Radbruch defenderá a segunda
posição, com base na comparação com o método de outras ciências “do espírito”, o que é
criticado por Engisch, (muito embora, penso eu, tal seja coerente com a visão de Radbruch,
que propugna inclusive por uma estética do direito). A oposição entre a compreensão
Savigny, a partir do momento em que este se insere na discussão secular sobre o critério da
interpretação verdadeira. Esta polêmica leva às duas grandes formulações antagônicas, que
buscam o sentido da norma ora na vontade do legislador, ora na vontade da lei: a doutrina
se coloca ao lado dos objetivistas, ao assinalar que a interpretação com base na assim
chamada occasio legis é um dos métodos mais fracos da hermenêutica, em razão de sua
aplicabilidade decrescente à medida que o tempo transcorre após o surgir da regra, escrita
idêntica àquela que acabo de expor, no que muito se aproxima tal técnica da noção de fonte
13
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 23-24.
14
Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, pp. 165-197; Tercio Sampaio Ferraz Júnior, Introdução ao
estudo do direito, pp. 264-268.
15
Carlos Maximiliano Pereira dos Santos, Hermenêutica e aplicação do direito, pp. 121-123.
Em Reale, o ato interpretativo e a conseqüente aplicação das regras jurídicas deve se
desprender da fonte, de modo a dar foco à produção normativa em favor da previsão dos atos
futuros, por ser um imperativo de liberdade, que opera dialeticamente com a ordem a fim de
promover uma ordenação jurídica aberta e flexível, mas ainda assim realizada de modo
racional. Todas essas categorias axiológicas vêm se juntar aos imperativos de segurança e
direito positivo.16
temática do poder, uma vez que o fato de Reale, muito embora afaste das considerações da
ciência jurídica o problema das fontes materiais do poder – que de algum modo emergem da
problema das fontes, em estreita conexão com a existência de um poder. As fontes do direito
vêm a ser caracterizadas, nesse sentido, como estruturas normativas que implicam a
existência de alguém dotado de um poder de decidir sobre o seu conteúdo, o que equivale a
Por definição, portanto, não se pode falar em fontes do direito sem o poder de decidir,
motivo pelo qual se exclui de pronto a doutrina, que por si só não tem o poder de obrigar. A
significado e alcance dos modelos jurídicos dela decorrentes. O poder, insiste, é um elemento
16
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 23-24.
17
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 11-12.
18
Miguel Reale, Fontes e modelos do direito, pp. 11-12; 16-18.
correspondência fechada, numerus clausus. Reale considera a lei; o costume; a jurisprudência;
e o ato negocial.
Impõe-se, nesse passo, uma digressão sobre a tradição do common law, tendo-se em
conta as implicações trazidas pela vivência de tal sistema jurídico, de todo peculiar para o
jurista da tradição continental, para a elaboração de uma teoria das fontes. Em verdade,
verifica-se na tradição jurídica anglo-saxã a atribuição de papel secundário à lei, o que não se
traduz em número reduzido de textos normativos, ao contrário do que sugere o senso comum,
mas em sua tímida consideração enquanto conformadores da prática jurídica. Pode-se lembrar
aqui, a título ilustrativo e sem a pretensão de estabelecer uma relação genealógica rigorosa, o
pensamento de Hume, para quem a lei positiva serve de sucedâneo à razão natural e,
precedentes judiciais. Sempre se teve a lei como uma figura estranha à normalidade da vida
jurídica, que, embora desde o século XX tenha crescido em importância com o advento do
dirigismo estatal decorrente do welfare state, seu teor apenas será revelado e confirmado após
a reiterada aplicação e interpretação pelos tribunais. Com razão a prática jurídica anglo-
teórico kelseniano. 20
De outra banda, segundo a concepção clássica inglesa a respeito das fontes, dita
declaratory theory of the common law, não haveria que se falar, a rigor, em jurisprudência
19
Miguel Reale, Lições preliminares de direito, pp. 141-143.
20
Eduardo Carlos Bianca Bittar e Guilherme Assis de Almeida, Curso de filosofia do direito, pp. 296-302; John
Gilissen, Introdução histórica ao direito, pp. 208; 212; 215-216; René David, Os grandes sistemas do direito
contemporâneo, pp. 433-435.
como uma fonte do direito propriamente dita, uma vez que o juiz que por primeiro tenha
proferido decisão em uma matéria teve que fundamentá-la em alguma regra não-fundada,
com efeito, constituído de regras substantivas deduzidas racionalmente da realidade, tendo por
substrato elementar o "costume geral imemorial do reino". A esta categoria, por uma questão
principiológica em vigor desde o século XVIII, apenas pertencem aquelas normas costumeiras
imperfeitamente solucionada ainda na atualidade, entre o common law e a equity, bem como a
naquele contexto. 22
Por tais razões, não se deve estranhar que um autor como Herbert L. A. Hart
tange às dificuldades ocasionadas por aquele modelo simples enunciado no início deste
receptores de tais normas. Hart principia sua obra basilar, O conceito de direito, exatamente
pela apresentação crítica da teoria da soberania que atribui em grande medida à obra do
teórico J. L. Austin, mormente a partir de sua obra The province of jurisprudence determined.
23
resumindo à teoria de Austin e à crítica de Hart. A propósito, vale recordar, na linha trazida
pelo discurso de Hart, o pensamento de outro autor, que, apesar de ter a maior parte de suas
21
John Gilissen, Introdução histórica ao direito, pp. 211-212; René David, Os grandes sistemas do direito
contemporâneo, pp. 427-430.
22
John Gilissen, Introdução histórica ao direito, pp. 207-216; René David, Os grandes sistemas do direito
contemporâneo, pp. 416-426.
23
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 23-26.
investigações centrada no estudo da História, deu significativas contribuições à jusfilosofia
inglesa, em cujo cenário antecedeu Hart em cerca de cinqüenta anos. Refiro-me a Paul
Vinogradoff.
Ao fornecer sua própria definição do direito, Vinogradoff coloca como seu traço
característico justamente o poder: para este autor, o direito seria conjunto de normas impostas
e aplicadas por uma sociedade com relação à atribuição e o exercício do poder sobre as
pessoas e as coisas. Com essa concisa definição, parece-me que Vinogradoff formulou
algumas reflexões posteriormente experimentadas também por Reale, em seus estudos sobre
Hart, uma vez que o autor brasileiro perceberá que as normas de conduta não se diferenciam
aqui uma distinção entre Reale e Vinogradoff no que tange ao momento do poder em relação
ao direito, vez que o anglo-russo claramente toma o fenômeno do poder como fruto de uma
atribuição, enquanto que, em Reale, o poder terá natureza eminentemente genética em relação
ao direito, de modo que este se manifesta a partir de tantas quantas forem as expressões
daquele. 24
Entretanto, não foi o propósito de Hart, como recorda Carl Friedrich, realizar uma
compilação de opiniões colhidas na literatura, qualidade acerca da qual, aliás, Hart guarda
imperativa, em que a norma se coloca como um comando reforçado por uma ameaça. Tal
habitual por parte da maioria dos integrantes do grupo a ordens coercitivas de um soberano,
24
Paul Vinogradoff, Introducción al derecho, pp. 24-48.
25
Carl Joachim Friedrich, La filosofía del derecho, p. 19.
juridicamente irresponsável (ab-solutum?). Para tanto, evoca-se o paradigma das normas
sumarizada no discurso de Austin, isto não lhe impede de generosamente – não posso evitar o
tom irônico dessa constatação, que de resto é o próprio tom de Hart nesse passo – pensar
possíveis artifícios que de algum modo corroborem aquele modelo. Entretanto, o que se dá é a
inutilidade de todo recurso retórico para fortalecer a posição teórica adversa, sem mencionar
ainda seu prejuízo à simplicidade, esta um indicativo fundamental de coesão teórica, de tal
sorte que qualquer saída para a doutrina atacada resulta invariavelmente – e esta é a intenção
O primeiro dos argumentos de Hart dá conta que muito embora a lei penal se
assemelhe ao modelo paradigmático de uma ordem apoiada por ameaças dadas por alguém a
outrem, tal não se configura nem ao menos para esse ramo do direito em específico. Isto
porque mesmo aqui se verifica normalmente que as ordens emanadas não se dirigem
preconizada nas diversas disposições normativas ainda que justamente por ele emanadas em
momento anterior, o indivíduo age como mero particular. Entretanto, ao admitir semelhante
possibilidade, a doutrina criticada abre espaço para uma bifurcação implícita no mecanismo
teórica a ser enunciada pelo próprio Hart, conforme será exposto oportunamente. 28
26
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 26-33.
27
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 35-44.
28
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 56-59.
A segunda ordem de objeções formulada por Hart em relação à doutrina encabeçada
por Austin diz respeito à lembrança de normas jurídicas de outros ramos dogmáticos,
mormente em parcelas do direito público distintas do direito penal, tais como as disposições
constitucionais e o direito administrativo, bem como o campo do direito privado, todas elas
normas para as quais, por sua própria natureza, não se sustenta o caráter de ordens apoiadas
em ameaças. 29
Alguns argumentos em favor da posição atacada por Hart são correntes, para nós
talvez até mesmo intuitivos. No caso das normas concernentes às relações privadas, pode-se
persistir em sua caracterização de comando emanado com apoio em ameaça, se como punição
subordinados àquelas que seriam as verdadeiras normas, a saber, os comandos que instruem
transforma a lei em um enunciado condicional, pois remete, ainda que não de maneira
Ora, em ambos os casos, Hart acusa, promove-se uma distorção da realidade social
para a adequação da teoria. Isto se dá porque cotidianamente não se pensa a norma penal (para
permanecer no exemplo dado) simplesmente como uma instrução dada pelo soberano aos
tribunais, e sim como um regramento dirigido diretamente aos súditos. A intervenção dos
órgãos judiciários é sempre pensada como ultima ratio, apenas sobrevindo quando do
direito privado. 31
29
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 36-48.
30
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 48-52.
31
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 52-56.
Em seguida, Hart afirma que nem todas as normas jurídicas surgem a partir de algo
que se possa qualificar como uma ordem, afastando-se dessa noção por seu caráter não-
explícito. A possibilidade de acrescer a qualificação de tais normas como ordens tácitas não
O último grande empecilho oposto por Hart à concepção do direito a partir de ordens
Em suma, a partir das objeções apresentadas, Hart conclui que as idéias a que se opõe
não conseguem se aproximar de uma noção consistente de norma. Para tanto, haveria que se
secundárias. Normas do tipo primário seriam aquelas que exigem a prática ou abstenção de
condutas, independentemente da vontade do receptor; normas do tipo secundário, por sua vez,
daquelas normas primárias, além de trazer determinações quanto à sua incidência e aplicação.
33
primárias. Reduzido a esse característico, o sistema jurídico apresentaria falhas de vulto, que
normas secundárias.
32
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 67-87.
33
Para este parágrafo e os que se seguem, Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 118-128.
inteiramente de normas primárias. Em outros termos, semelhante sistema não traria previsões
problema das fontes do direito. A terceira falha verificada diz respeito à ineficiência de tal
seja para a constatação da violação das normas, seja para a execução da sanção, no que as
idéias de Hart tomam rumo próximo ao conceito de direito dado por Vinogradoff.
conclusiva das normas primárias, com vistas a conferir certeza aos operadores do direito.
Retorna-se, com isso, às considerações iniciais sobre o contexto de surgimento da teoria das
normas do sistema, uma vez que serão válidas exatamente aquelas que atendam aos requisitos
literatura entre normas primárias e secundárias, aduzindo a posição de Kelsen, para quem são
primárias as normas que estipulam sanções, secundárias todas as demais. Recorda ainda que
Hart toma essa dicotomia em sentido diverso, ao dizer que normas primárias são, como já
exposto, aquelas que se referem a condutas, enquanto as secundárias seriam subsidiárias das
34
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 129-135.
primárias. Curioso notar como a denominação do par primário-secundário não segue, em
elementos da norma para além do aspecto da sanção; sustenta, porém, que toda a tipologia das
normas secundárias elaborada por Hart pode se resumir àquela categoria denominada por
Reale normas de organização. Estas, de fato, são secundárias, uma vez que têm por
pressuposto a existência das normas de conduta. Não por acaso, Reale, neste passo, já havia
exatamente por se tomar, com essa dicotomia, as normas como diferentes sob critérios
temporais e axiológicos.
Para Reale, tais normas de organização vão além das funções pretendidas por Hart.
distinção entre normas primárias e secundárias perde em importância, segundo Reale, pois
uma norma pode ter em seu momento de gênese, a natureza binária de regulação de conduta e
estabelecimento de organização.
seria uma concepção simplista do sistema normativo, uma vez que, à luz dos ditames da teoria
prática jurídica, a saber: o ordenamento jurídico vale, no seu todo, como uma exigência da
razão, em função da experiência histórica. Para Miguel Reale, portanto, não basta a visão
experiência. 36
35
Miguel Reale, Lições preliminares de direito, pp. 96-99.
36
Miguel Reale, Lições preliminares de direito, p. 196.
De qualquer modo, as linhagens empiristas da tradição jusfilosófica trazem ocultas em
da ordem jurídica por meio da admissão forçosa do que Reale identifica como formas
indispensáveis de direito positivo. Muito embora o próprio Hart tenha explicitamente negado
positivista de abstração dos valores éticos, ou seja, de indiferença quanto ao conteúdo para a
37
Herbert Hart, O conceito de direito, pp. 130-131; Miguel Reale, Filosofia do direito, pp. 330-331.
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