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G8985 Pagno, Raquel
Herdeiro da Névoa/ Raquel Pagno - 2ª ed. - São Paulo: Editora Tribo das
Letras, - 2016
304p.
ISBN:
1. Literatura Brasileira 2. Romance I. Título
CDD B869.3
CDU 821.134.3(81)
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Índice Catálogo Sistemático
1.Romance Brasileiro B869.3
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um café comigo.
— Um café? — repetiu ela, interrompendo-me com ar
zombeteiro.
— Sim, mas, caso não goste de café, poderia ser um
sorvete, ou quem sabe, um suco, ou… — senti meu rosto
em chamas, o que me permitiu avaliar o quão corado ficara,
enquanto tentava engatilhar uma conversa. Pensei se o meu
francês estava tão ruim, a ponto de ela não compreender o que
eu dizia…
— Eu aceito o café! — surpreendeu-me, cortando meus
pensamentos e deixando-me ainda mais nervoso. Eu tinha me
preparado para enfrentar a dor de uma recusa, mas não para
a surpresa que aquele sim me causou. — Mas só se você for à
minha casa.
— À sua casa? — perguntei, em um tom mais surpreso
do que gostaria. — Sim, é claro!
— Venha — disse apenas, segurando-me pelo braço
e puxando-me para fora da catedral. Chloé parecia fugir de
alguém, ou dos olhares maliciosos que a acompanhavam por
onde passava.
Minhas pernas se recusavam a obedecer enquanto Chloé
me puxava. Percorremos uma das pontes, rumo a Boulevard
Saint Germain, de onde entreveramo-nos a oeste, em ruelas
secundárias, até passarmos às áreas nobres de Paris, onde se
erguiam a Tour Eiffel e antigos prédios de moradia de gente
rica e elegante. Não soube exatamente para onde ela me
levaria, era ainda um completo estranho perambulando na
bela Paris.
Estava tão tenso que poderia ter me desequilibrado ou
tropeçado e caído. Só sentia a mão forte de Chloé, que segurava
firmemente o meu braço e me arrastava para o casarão dos
Champoudry, e só enxergava seus cabelos ruivos à minha
frente, que se moviam balançados pelo vento.
Caminhamos apressados, tanto que perdi a conta de
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desejaria saber.
— Bem, François Roux foi um jovem bastardo, filho de
um milionário francês, chamado Gérard Roux. Gérard casara-
se com uma mulher linda, a única herdeira do legado da família
Champoudry. Os dois foram felizes durante alguns anos, mas
quis o destino que ele se apaixonasse por Victória Cosine,
uma pobre italiana fugida da guerra, que se estabeleceu na
França sob a proteção e a generosidade de Gérard. Victória
trabalhara para Gérard durante muitos anos, os dois se
apaixonaram, e deste amor nasceu François. Victória fez
de tudo para ocultar a gravidez e mesmo a existência do
pequeno. Temia ser abandonada por Gérard, ou jogada na rua
com o menino nos braços. Temia principalmente, a reação da
esposa quando soubesse da existência do bastardo. Para sua
surpresa, Gérard não a deixou quando descobriu a gravidez
inesperada, pelo contrário, demonstrou amor pela criança que
nasceria e uma grande e incondicional compaixão por Victória
Cosine. O maior problema foi que Gérard decidiu registrar
a criança, como seu filho legítimo, embora Victória o tivesse
alertado de que não seria uma coisa boa para um homem
casado, reconhecer um herdeiro bastardo. Como as vontades
de Gérard eram incontestáveis, ele fez como bem entendeu, e
levou não só o bebê, mas também a mãe, para a casa onde vivia
com a esposa.
— Que coragem! — sussurrei, sem perceber.
— Mas quando Gérard os acolheu, ele não sabia que
sua esposa estava grávida, e mesmo após receber a notícia
da chegada de um herdeiro legítimo, Gérard não desistiu da
ideia de recolher Victória e seu filho sob aquele mesmo teto.
Diante da felicidade de Gérard com a empregada, e enciumada
com as atitudes do marido quanto ao filho bastardo, a esposa
tentara um aborto desesperado. Chegou a se jogar da sacada
do edifício em que morava, que, por coincidência, é este às
nossas costas…
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dia da mudança. Não sairia do quarto, até que ela voltasse para
me resgatar. Agora eu era um milionário, e não precisava mais
preocupar-me em conseguir uma boa profissão. A única coisa
da qual eu necessitava, era a companhia de Chloé e, se eu não
a tivesse, optaria por morrer ali, sozinho, trancado naquele
casarão, envolto em lembranças.
Postei-me diante da porta do quarto. Esperei um tempo,
respirando fundo, reunindo coragem para girar a maçaneta.
Cheguei a sentir o perfume no momento em que meus dedos
a giraram. Abri a porta, bem devagar, como se soubesse que
o que veria dentro do cômodo me chocaria profundamente.
Senti medo. Medo de que meu sonho jamais se tornasse real,
medo de morrer ali, perdido na ilusão de ser François Roux,
de ter tudo o que me faltara durante a vida toda, e mesmo
assim, estar tão profundamente infeliz.
Tirei os dedos da maçaneta e a porta deslizou
lentamente, mostrando o interior do dormitório. Haviam-no
pintado inteiramente de branco, refeito as cortinas do dossel,
recomposto a cama finamente ornamentada com as mais caras
rendas de Paris. As paredes lisas refletiam pequenas agulhas
de luz que escorriam pelas aberturas das duas sacadas,
cujos dourados originais dos peitoris, também haviam sido
restaurados.
Caminhei até a cama, onde sentei-me recostado aos
travesseiros. Tudo era exatamente como eu me lembrava.
Toda a mobília era branca, adornada de dourado, como se o
quarto fosse a morada dos anjos. Vi meus olhos refletidos num
pequeno espelho redondo, que flutuava sobre uma penteadeira
recostada na parede oposta à cama. Aquele era o único objeto
do qual eu não recordava. Apertei os olhos, refazendo em
minha mente cada momento que eu passara com minha
amada Chloé. Revi o dossel da cama, a cabeceira imponente,
a penteadeira, mas onde agora estava o espelho, antes apenas
um tecido branco recaía sobre o móvel.
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apaixonada por você. Não acha que seria bom ter alguém ao
seu lado? Você está com uma aparência horrível. Sei que não
anda se alimentando direito. Creio que uma mulher como ela
lhe faria muito bem.
— Eu sei me cuidar sozinho — disse, horrorizado pela
possibilidade de Chloé voltar e encontrar Adélie.
— Ah, eu estou vendo… — François pegou a xícara de
chá fumegante e bebericou em pequenos goles.
— Que bom que mencionou Adélie, eu estava mesmo
querendo falar com você sobre ela. — Stephen levantou os
olhos para encarar-me.
— Comigo? O que poderia ser?
— Adélie me contou que François Roux sumiu por que
foi acusado de assassinato. Você já sabia, não é? Por que não
me contou?
— Porque isso não é totalmente verdade.
— O que quer dizer com isso?
— François não foi oficialmente acusado de assassinato.
— Por que você me disse que Chloé havia desaparecido,
quando, na verdade, todos sabiam que ela estava morta? Adélie
me disse que ela mesma compareceu ao enterro da garota. Por
que você mentiu Stephen?
— Eu não menti. Ninguém, além dos policiais que
atenderam ao chamado da vizinhança, viu o corpo de Chloé.
Ninguém a viu, mesmo no dia do enterro, pois o caixão foi
totalmente lacrado. Alguém certamente foi enterrado naquele
túmulo, alguém que possivelmente tomou o lugar de Chloé
Champoudry, mas não existem provas de que ela realmente
morreu.
— Quem são os policiais que a encontraram sem
vida? Você já sabe o nome deles? Podemos ir até a delegacia
e perguntar se eles tinham certeza quando reconheceram o
cadáver de Chloé.
— Isso não é possível, mon ami. Os dois policiais
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por uma vela ou um lampião ali esquecido. Não havia nada que
eu pudesse usar para combater a escuridão.
Ouvi um estranho ruído vindo do andar de cima, um
som abafado de algo se arrastando pelo assoalho. Gelei
de medo quando o barulho se converteu em som de passos
que, pesados e lentos, se dirigiam à escadaria. Senti minhas
têmporas latejando, o som do meu coração ecoando em meus
ouvidos, e minhas pernas relutaram em me obedecer.
Olhei em volta à procura de algo para me defender, mas
a escuridão inundava a casa e eu não pude encontrar nenhuma
faca, ou objeto ameaçador. Agarrei-me ridiculamente a um
cabo de vassoura, a única coisa que minhas mãos tatearam
no breu, e voltei ao pé da escadaria, pronto para travar uma
batalha de vida ou morte com quem quer que fosse.
Subi atentamente os dois primeiros degraus, com uma
das mãos firmemente agarrada em minha arma fatal e a
outra apoiada ao corrimão. Senti as primeiras gotas de suor
escorrendo pela minha pele gelada, na mesma hora em que dois
sinistros olhos verde-amarelados despontaram no patamar
da escada. Não sabia que eu poderia tomar uma atitude tão
covarde, mas dei um salto em recuo, tão grande que tropecei
e caí sentado no primeiro degrau e fui tomado por uma dor
lancinante.
A fração de segundo que permaneci no chão, e que me
pareceu ter durado horas, foi apenas o suficiente para que o
gato se lançasse sobre mim, tão assombrado quanto eu.
Abismei-me com a potência do grito saído de dentro da
minha garganta. Eu era mesmo mais covarde do que julgara.
Segurei o bichano em uma das mãos, enquanto largava da
minha poderosa arma de madeira. Ele não me atacou, apenas
me encarou com uma admiração semelhante a minha, relaxado
em perceber que eu não era nenhum monstro devorador.
Respirei fundo, sentindo meu coração bater cada vez
mais devagar, e o tremor em minhas pernas desaparecer quase
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épocas de guerra.
— Como eu lhe disse, o acidente prejudicou-me a
memória, de forma que no primeiro momento eu me esqueci
até do meu nome, de quem eu era e de onde vinha. Vivi como
um indigente na Itália todo o tempo que lá estive, isso me
manteve fora da guerra e dos campos de batalha. Talvez por
isso o senhor não tenha me encontrado.
— Por que partiu, monsieur Roux?
— Pelo mesmo motivo de todos os que deixaram a
França, detetive: por medo. Quando a França foi derrotada e
invadida pelos alemães, não fui o único a deixar o país.
— E por que a Itália, mais vulnerável e decadente que a
própria França?
— Porque foi lá que eu vivi ao lado de meu pai, que, como
o senhor sabe, foi preso e torturado na Itália, onde passou seus
últimos dias. Eu queria estar perto dele. — Não encontrei
outra desculpa, tive que revirar minha memória em busca
das aulas de história da Europa e da segunda guerra, e ainda
assim, não tive certeza se o que eu dizia era suficientemente
coerente, porque tais datas eu jamais conseguira guardar com
precisão.
Tive que apelar ao sentimentalismo, encarnar o papel
de um filho amável e sedento por estar perto do pai, ainda que
este estivesse morto, fato que eu não tinha a menor ideia se
acontecera antes ou depois do desaparecimento de François.
— Entendo — Por sorte, minha encenação de filho
exemplar e carente pareceu ter dado certo, e o detetive tinha
mesmo um coração por baixo da carcaça emburrada, que eu
havia aparentemente conseguido amolecer — mas ao que me
consta, em 1940 seu pai já estava morto, monsieur Roux. Como
era possível que desejasse tanto estar perto dos seus restos
mortais, a ponto de partir para um verdadeiro inferno para
tal?
— Eu sempre fui muito ligado ao meu pai, como o
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a Itália, para ficar perto dele. Não fazia ideia de que o senhor
Roux morrera antes mesmo do desaparecimento de François.
— E você acha que ele vai procurá-lo outra vez?
— É claro que sim. E é aí que você entra, Stephen.
Precisa me ajudar a bolar uma explicação mais racional para
o desaparecimento de François, algo que não deixe dúvidas de
que eu realmente sou François Roux, ou então…— detive-me
justamente quando ia dizer que nós dois estávamos perdidos.
— Ou então?
— Eu estarei perdido.
Stephen levantou-se e começou a se vestir. Observei-o
em silêncio até que duas conhecidas batidas na porta me
tiraram de meus pensamentos infames, nos quais Stephen
simplesmente me abandonava à própria sorte. Adélie viera
trazer o café.
— François, você por aqui? — minha presença também
a surpreendera.
— Olá, Adélie. Como está o seu braço?
— Já está bem melhor. Obrigada por perguntar.
— O que aconteceu com seu braço, Adélie? — perguntou
Stephen.
— Creio que eu não seja o único anfitrião daquela casa,
Stephen. — antecipei-me em resposta.
— Ah! sim, o gato.
Adélie apenas fez um sinal positivo com a cabeça.
— Vou buscar um café para você, François. Está magro,
garanto que não tem se alimentado direito.
— Obrigado, Adélie. — Adélie nos deixou.
— E então, Stephen, lembrou-se de algo que possa me
ajudar?
— Deixe-me ver… Se você afirmou que sofreu um
acidente que lhe afetou a memória, certamente o detetive
vai querer saber mais sobre isso. Diga-lhe que o acidente
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mãe.
Ficara furioso com Stephen. Não era justo que ele
tivesse me incitado a tomar o lugar de François e agora se
recusasse a ajudar-me. Isso contrariava completamente todos
os incentivos que me dera, os conselhos, as ideias. Stephen
estava diferente. Eu tinha certeza de que havia algo de muito
errado em sua atitude. Mas eu não tinha noção do que se
tratava.
Eu teria que resolver meu problema sozinho desta vez.
Isso por si só já representava um problema, porque eu nunca
fora um grande cultivador de ideias. Não podia ignorar a
ajuda de Stephen para inventar uma história. Ele não era um
escritor? Logicamente teria mais ideias do que eu, além do
conhecimento vasto, quase total, sobre a vida de François e
do pai.
Não foi fácil aceitar que estava sozinho a partir de então.
Sozinho e encrencado. Logo que virei a esquina e observei de
longe o portão do casarão, reconheci uma figura masculina
recostada à grade, esperando-me. Estremeci, intuindo que o
detetive voltara, desta vez para prender-me. Parei onde estava
e esperei alguns instantes, na esperança de que ele se cansasse
e me deixasse em paz. Enfim, concluí que de nada adiantava
fugir. O homem sabia onde me encontrar sempre que desejasse
e seria inútil prolongar minha agonia.
— Caro detetive, que surpresa encontrá-lo por aqui!
— meu cumprimento soou falso, mas eu não fiz questão de
disfarçar a insatisfação que tinha em recebê-lo.
— Olá, monsieur Roux. Será que tem mais alguns poucos
minutos para este humilde detetive?
— É claro que sim, detetive. Como lhe expliquei, não
tenho nada a esconder.
Convidei-o a entrar. Ele aceitou, jogando-se
imediatamente em uma das poltronas da sala de estar. Sugeri
o chá. Ele recusou.
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vistas.
Eu, que já não almejava nenhuma visita inesperada de
Chloé, deparava-me agora com seu corpo nu, envolto nos
lençóis rendados, brancos como sua pele, finamente dispostos
sobre a cama. Fiquei completamente paralisado com a divina
visão. Até hoje me pergunto se consegui conter a saliva
presa dentro da minha boca faminta por aquela pele alva e
perfumada.
Mas a sensação de êxtase durou apenas uns poucos
segundos, enquanto Chloé mantinha seus olhos de lince fixos
nos meus, tão desejosa por mim quanto eu por ela. Logo me
dei conta de que não poderia realizar seus desejos. Estava
fraco demais, e praticamente raquítico.
Aproximei-me, com o intuito de me despedir. Ela
estendeu-me a mão, convidando-me a deitar ao seu lado. Não
quis chegar perto demais. Mantive-me aos pés da cama, sem
ousar tocar um só dedo em Chloé, sem atrever-me sequer a
sentar na cama. Ela não insistiu. Apenas baixou os olhos com
uma dor profunda no olhar.
Eu conhecia aquela dor, era como se uma adaga
atravessasse o seu peito, congelando-lhe o coração,
estilhaçando-lhe as esperanças. A visão de Chloé entristecida
doeu mais dentro de mim do que poderia ter doído nela
própria. Foi como uma espada, cravada no meu coração, uma
dor para a qual o único alívio seria perder-me de uma vez por
todas nos braços de Chloé.
Uma lágrima brilhante e solitária rolou por sua face,
cintilando na pouca luz que banhava o quarto através das
cortinas cerradas, comovendo-me profundamente. Fez com
que me arrependesse de todos aqueles dias que passara
enfurnado no quarto sem sair sequer para alimentar meu
corpo frágil.
Eu não conseguia ficar ali parado, apenas olhando
enquanto Chloé sofria a dor da minha rejeição. Não importava
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cintilavam sob a luz do fogo e das velas. A luz era tão plena que
eu podia vê-las mesmo estando longe. Levantou-o da mesma
forma como levantara o livro no primeiro momento. Proferiu
mais algumas palavras incompreensíveis. Baixou-o em um
movimento rápido e certeiro, atingindo a mulher ajoelhada a
sua frente.
Vi quando o sangue jorrou depois do violento golpe,
molhando de respingos a capa de Chloé. Em meio ao êxtase
provocado pelo transe, levou a lâmina aos lábios e lambeu o
sangue lentamente, até limpá-la por completo.
Meu corpo tornara a tremer com tal violência, que eu
mal podia conter os espasmos convulsionados que o tomavam.
Não sentia mais o frio. Apenas o horror que se instalara em
mim, tão forte, que eu me beliscava tentando acordar do
pesadelo que presenciara.
Queria correr, mas me encontrava congelado. Não
conseguia dominar minhas pernas trêmulas. Senti como se o
mundo despencasse sobre mim. Todos os meus sonhos, tudo
em que acreditara, o motivo principal pelo qual eu assumira
uma vida que não era a minha. Eu arriscava-me a pensar que
até mesmo o amor que eu sentia por Chloé, tudo acabara
quando o corpo flácido de Camille finalmente tocou o chão
gelado aos seus pés.
Ela a matara. Chloé era uma assassina. O anjo que eu
julgara mais doce que o mel, o amor mais puro que a água
cristalina das nascentes, a criatura mais inocente que eu
conhecera… tudo havia sido uma ilusão! Ela era um demônio
assassino!
Recostei-me na pedra, dando as costas aos encapuzados.
Apertei meus olhos, tentando impedir que a luminosidade
daquele fogo maldito atingisse minhas vistas. Tapei os ouvidos
com ambas as mãos. Não aguentava mais ouvir as blasfêmias
pronunciadas por Chloé, blasfêmias saídas dos mesmos lábios
que eu beijara, e que me deram um prazer tão intenso como
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o verdadeiro.
— Seus malditos! Eu vou acabar com vocês! Malditos!
— Não vai, não! — Chloé finalmente soltara os ombros
de Camille. Levantou-se e tornou a cobrir o corpo com a capa
negra, mas deixou o rosto livre do capuz. Chloé caminhou
alguns passos na direção de François. Ele recuou.
— Oh, por que fugir de mim, mon amour? — o Padroeiro
apenas observava, enquanto Chloé o torturava com suas
palavras. Ele ainda a amava. Ela o havia enfeitiçado tanto
quanto enfeitiçara a mim. O pavor vibrava no olhar brilhante
de François. Tão intenso que eu quase podia senti-lo. —
Vamos, não tenha medo de mim… Deixe que eu mostre como
eu o amo, mon amour. Deixe-me ser sua… mais uma vez…
François deteve-se de sua fuga. Parecia não conseguir
resistir aos encantos de Chloé. Permitiu que ela o beijasse.
Cerrei os punhos de ódio, mas consegui mais uma vez controlar
o meu impulso de correr até lá e salvar Chloé. François correu
as mãos sobre a capa que a envolvia, acariciando cada curva
do corpo de Chloé. Em seguida, com um movimento brusco,
arrancou-a de seu corpo, deixando-a completamente despida.
Ela puxou-o para cima do altar, no mesmo lugar onde
o Padroeiro violentara Camille. Deitou-se de costas na pedra
incentivando-o a pousar seu corpo sobre o dela. François
postou-se de pé ao lado de Chloé. Acariciou o seu corpo com
as mãos, desde os pés até chegar ao pescoço longo e elegante,
onde se deteve por mais tempo. Ela estendeu a mão, tentando
arrancar-lhe a camisa. Num ato desesperado, François agarrou
o cordão que lhe envolvia o pescoço. Arrancou-o, atirando na
minha direção.
— O que você fez? — gritou, cheia de ódio, agarrando
seu punhal. Tentou, sem sucesso, atingir François. O
Padroeiro agarrou-o, segurando os dois braços junto às
costas. Imobilizou-o. Chloé se levantou e encostou o punhal
no pescoço de François.
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O que aconteceu entre nós dois foi a coisa mais linda que eu
vivi em toda a minha vida. Por que precisaria se desculpar por
ter me feito a mulher mais feliz, ainda que apenas por uma
noite?
— Adélie, eu penso que você não compreendeu quando
eu lhe contei a verdade sobre quem eu sou. Eu não estava
brincando. Não sou o seu François. Sou apenas um estrangeiro
muito parecido com ele. Um deslumbrado pelo dinheiro que
eu nunca tive, pela fortuna de François…
— Não, isso não é verdade!
— É verdade, Adélie. Por pior que seja, é a mais pura
verdade. — Acariciei o rosto de Adélie com as costas da mão.
A pele era macia e quente. Destoava de todas as lembranças
que eu tinha da brancura gelada da pele de Chloé.
— Meu coração jamais se enganaria, François.
— Mas desta vez — segurei-lhe as mãos — enganou-se.
— E onde, então, está o verdadeiro François? — ela
finalmente fizera a pergunta que eu temia responder. Já não
poderia negar-lhe a terrível verdade.
— O homem crucificado que você viu…
— Não! Não pode ser! Eu o reconheceria! Eu o teria
reconhecido entre mil pessoas… Você é o meu François!
— Stephen o pegou, Adélie. Não tenho ideia de como
isso aconteceu, ou por que, mas ouvi-os dizendo que ele traiu
a irmandade. Isso representa alguma coisa para você?
— Sim… sim… — balbuciava ela, as lágrimas agora
correndo soltas pela face corada — um traidor da irmandade
seria punido… eternamente. Seria condenado a vagar pelo
mundo como um morto-vivo, nas sombras para sempre.
E outro seria trazido para assumir o seu lugar… — Adélie
interrompeu a frase e, arregalando os olhos, encarou-me como
se agora tudo fizesse sentido para ela.
— Minha nossa… — gemi — Eu sou essa pessoa…
— François…
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com Chloé…
— Talvez Chloé possa ser a chave.
— Não. Ela jamais o ajudaria.
— Por que não? Você acha que ela não me ama?
— Eu não disse que ela não o ama. Mas ela é uma bruxa
nata, poderosa e astuta. Vai saber se tentar enganá-la.
— Eu não preciso enganá-la. Basta que pergunte a ela
sobre François.
— Ela não lhe dirá. Pelo que eu percebi, ela é o braço
direito de Stephen. Talvez seja a única bruxa de verdade,
descendente de uma linhagem antiga e poderosa. E ela sabe
que você não é o verdadeiro François. Mentiu pra você o
tempo todo, fingindo que não sabia de nada e que acreditava
em você.
— Ela pode ter sido chantageada por Stephen, e por isso
fingiu.
— Ela é tão demônio quanto ele. Os dois se completam,
não percebe?
— Não, Chloé não é como Stephen! Certamente ele a
tem influenciado, obrigado a fazer aquelas coisas…
— Esqueceu-se de que eu também estive lá, e vi tudo o
que aconteceu? Chloé não fez nada obrigada, fez porque quis!
— Não! Ela estava enfeitiçada… Stephen a obrigou…
— Eu não vi a mão de Stephen segurando a dela, quando
apunhalou Camille! — as palavras de Adélie eram demasiado
duras. Eu não queria enxergar a realidade. Precisava acreditar
que Chloé não me enganara, que não era um demônio, como
Stephen. Eu ainda a amava mais que tudo.
— Eu falarei com Camille. — respondi contrariado e
cabisbaixo.
— Isso! Mas tem de ir com calma para que ninguém
desconfie. Principalmente Enzo.
— Pode deixar. Eu saberei persuadi-la. Logo salvaremos
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— Quem?
— Não sei. Só sei que é uma mulher porque ouvi a voz.
Não é a voz de Camille.
— Um dos discípulos de Stephen?
— Provavelmente. E então, convenceu Camille a revelar
o paradeiro de François?
— Creio que ela não sabe onde ele está. Tive de prometer-
lhe meu coração para que concordasse em me ajudar.
— O quê? Você fez uma promessa a uma bruxa?
— Foi necessário. Ou era isso ou entregar-me a ela…
— Você é louco! Ela voltará para reivindicar o que
prometeu!
— Não pode obrigar-me a amá-la.
— Mas pode arrancar-lhe o coração do peito!
Literalmente!
Eu não avaliara essa possibilidade. Mas estava crente
de que Camille não o faria. Se realmente me amava, conforme
dizia, não me faria nenhum mal. Eu acreditava profundamente
que o amor era mais poderoso que qualquer feitiço ou maldição.
Entendia que se fosse o contrário, eu já estaria completamente
apaixonado por Camille e teria esquecido Chloé.
— Ela não me fará mal.
— Como pode saber?
— Ela me ama.
— Mas não irá amá-lo para sempre… — o som da
porta se abrindo arrancou-nos da conversa. Aparentemente,
a mulher já fizera o que veio fazer no quarto de Stephen e
partiria.
Encolhemo-nos em um canto escuro, por detrás da
mureta que contornava a pensão. Espichei-me com o intuito
de ver quem era a visitante misteriosa. Não consegui. E
nem precisava, pois as palavras que ouvi e a voz indiscutível
deixaram isso muito claro para mim.
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noite.
— Onde? — fiquei tão impressionado ou inseguro, que
agarrei Camille pelos ombros e só depois de ouvir seu pequeno
gemido foi que me dei conta do que fizera.
— Há uma floresta perto de Compiègne. Vamos reunir
um grupo lá, na próxima noite. Seu sósia estará entre nós. —
disse ela, desvencilhando-se de minhas mãos — Se isso é o que
você quer, eu lhe darei.
— Não vai se arrepender. — Camille beijou-me a face
e saiu.
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Adélie gritou.
Nem eu mesmo conseguia acreditar no que acabara
de fazer. Sabia que minha escolha fora a pior possível,
considerando a situação atual. Eu colocara minha vida em
risco. E também a de Adélie.
Eu atingi exatamente o ponto no qual mirara, desatando
a corda que prendia o rosto do homem ao tecido que lhe
encobria a face. Estava certo de que Stephen não permitiria
que saíssemos dali vivos. Esse pensamento atingiu-me
subitamente e não me dei conta de que o homem que eu
acabara de libertar, não era François Roux.
— Inácio! — o grito de Adélie me despertou. Eu voltei-
me para o homem que continuava ajoelhado diante de nós.
Stephen destilava suas palavras envenenadas amargamente
sobre minha consciência pesada. Ele sorria com ironia e
aplaudia satisfeito porque caíramos em desgraça.
— E então, surpreso mon ami? — ele estendeu as duas
mãos em direção ao homem que se mantinha cabisbaixo.
Aproximei-me. Stephen não tentou me impedir,
tampouco deixou que seus discípulos o fizessem. O homem
levantou a cabeça. Mirou-me assustado e grato. Era o detetive.
O homem que descobrira toda a verdade sobre mim e sobre
François Roux, e que agora também sabia exatamente quem
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Não abri meus olhos para ver o que ele fez em seguida.
Sabia que se afastara. Ouvi que reiniciara suas orações
demoníacas. Preparei-me para toda a dor que pudesse suportar.
Creio que me preparei até mesmo para os golpes do punhal de
Stephen, para receber a morte em defesa do detetive, se fosse
necessário.
Mas o tempo passou e eu não senti dor alguma. As vozes
tornaram-se mais baixas e finalmente se foram. A floresta
inteira pareceu aquietar-se. Sequer os insetos noturnos
produziam qualquer ruído então. Apenas o crepitar do fogo
que ardia em torno do círculo era audível.
Temi sair de onde estava. Não podia simplesmente
retirar-me e deixar o detetive exposto e desprotegido. Se o som
das vozes dos encapuzados e as orações diabólicas de Stephen
me apavoravam, aquele silêncio aparentemente apaziguador
assustava-me ainda mais.
Abri os olhos e levantei a cabeça alguns centímetros.
Todos os encapuzados estavam imóveis, incluindo Adélie.
Pareciam hipnotizados. Mantinham o olhar fixo no altar de
pedra.
Virei-me um pouco. Observei Stephen, ainda de frente
para o seu livro negro. Sua cabeça permanecia curvada para
baixo, de forma que os seus olhos não eram visíveis. Ele
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antes de você.
— Stephen, eu não faço ideia do que você está falando.
Não me importo que tenha enfeitiçado Adélie, nem que siga
em paz com sua crença. Eu estou aqui para levar o detetive
para casa, em segurança. Estou aqui para levar François Roux
e devolver tudo o que é dele. Não me importo com o que você
fará daqui para frente. Eu só quero resolver isso e ir para casa.
Em paz.
— Oh, que nobre da sua parte. Pena que seja tarde
demais para voltar atrás…
— Não pode ser tarde demais! François ainda está
vivo! E eu estou vivo, e ofereço o meu sangue perante esta
irmandade em troca do sangue de François Roux!
— Não! François será sacrificado! Seu sangue será
derramado em honra desta irmandade que ele mesmo criou!
Essa é a prova que eu preciso dar a meu mestre e senhor! Essa
é a prova que me é exigida pelo Príncipe das Trevas! Depois
disso, mon ami, não haverá mais François, nem Adélie, e nem
ninguém que possa atrapalhar os meus planos! Depois disso
só haverá a minha glória e ascensão! — Stephen curvou-se,
como se reverenciasse o altar e depois a escuridão, ao longe.
Olhou-me e sorriu — E se você for ao menos um pouquinho
esperto, mon ami, sabe que precisa se juntar a mim, se quiser
sobreviver!
Uma figura surgira nas trevas. Eu via perfeitamente
a silhueta de alguém assistindo a tudo de longe. Apertei os
olhos, tentando reconhecer a pessoa. Não precisei esforçar-
me, pois a silhueta movia-se na escuridão, escoltada por duas
outras pessoas, e eu notei que vinha em direção ao altar. Alguns
passos depois, eu soube exatamente de quem se tratava. O
arrastar da perna direita não me deixara dúvidas.
— François, é você? — Perguntei inutilmente, pois a
essa altura a luz já iluminava seu rosto suficientemente bem
para que eu o reconhecesse.
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obedeceram imediatamente.
Stephen era sedutor e persuasivo, mas sua capacidade
de manipulação não se comparava, em hipótese alguma, à
de François. Todos os discípulos de Stephen já se haviam
entregado a François, pelo simples fato de ele ter conseguido
escapar das garras de Stephen e de ser agora o principal
detentor do poder da irmandade.
Eu era a única pessoa lúcida ali? Ninguém se dignaria a
tentar salvar Stephen? Nenhum encapuzado se compadeceria
com a morte do seu padroeiro? Eu não podia permanecer
estático diante disso. Se ninguém ousava desafiar François,
eu o faria.
— François, vamos conversar. Por favor, abaixe esta
arma. — As palavras eram lógicas e idiotas, mas não me
ocorria argumento para tentar persuadi-lo — Por favor, eu
devolverei tudo o que é seu, se deixar Stephen ir embora.
E Enzo, olhe para o pobre homem, morrendo de tanta dor.
Deixe-me salvá-lo. Deixe todos irem embora, acabe logo com
essa loucura e eu lhe devolverei tudo o que eu lhe roubei.
— Não é possível que você ainda pense que podemos
negociar a vida de Stephen, irmãozinho. Ele é um traidor,
ainda não percebeu? E não há perdão para traidores. Além do
mais, aquela herança já não me faz a menor falta. Ela é tão sua
quanto minha.
— Então por que você procurou o detetive? Por que se
entregou?
— Porque eu sabia que assim você forçaria Stephen a pedir
o meu sangue em sacrifício e esta seria a minha oportunidade
de acabar com ele de uma vez por todas, de recuperar a minha
irmandade e tudo o que Stephen tirou de mim. — os olhos de
François brilhavam de ódio enquanto falava.
Talvez o ódio o tenha distraído. Ele afastou o punhal
do pescoço de Stephen por um átimo de segundo. Stephen
virou-se depressa, mas não o bastante para impedir o golpe de
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François.
— Adélie, não! Ele vai matá-la! — ela olhou-me tomada
pelo ódio. Seus olhos faiscaram tão flamejantes de raiva quanto
o fogo que ardia ao seu redor. Ergueu François pondo-o de pé
ao lado de seu altar satânico.
— Não, Inácio Vaz, — meu nome fora dito com desdém
— ele jamais me mataria! É o sangue de Stephen que está
prometido, e não o meu. E nós vamos reivindicá-lo, custe o
que custar. Não se atreva a tentar impedir isso, ou sua amada
Chloé sofrerá as consequências.
— Chloé está em segurança! Você sabe, ajudou-me a
amarrá-la!
— Não tenha tanta certeza!
— Não, Adélie! Eles a enfeitiçaram! Você jamais seria
capaz…
— Eu não pagaria para ver, se fosse você!
Adélie também me traíra. Como eu não percebera
antes? Ficara assustado com ela quando a conhecera, mas
não confiara em meus instintos. Deixara-me seduzir por suas
maneiras doces e suas feições suaves. Como eu fora tolo!
Eu ainda não juntara todas as peças. Como poderia
François ter sido torturado por Stephen e pela irmandade,
como eu mesmo presenciara, e agora aparecer diante dos
encapuzados como um mentor? As coisas não faziam o menor
sentido e a confusão dentro da minha cabeça aumentara ainda
mais.
— Soltem-no! Deixem-no em paz! — minhas súplicas
eram inúteis diante da fúria dos encapuzados. Stephen estava
deitado sobre o altar, tal qual estivera Camille da primeira vez.
Dois homens amarravam-me os braços. Eram fortes demais
para que eu pudesse lutar contra eles.
— Fique calmo, irmãozinho, — François mancou até
mim — não vai ser tão ruim assim. Nós apenas realizaremos
o seu próprio desejo. Ou estou enganado? Você não tentou
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ele me trouxe para você, se ele provou mais de uma vez sua
lealdade, por que você o condenará por único passo em falso?
Se a ambição é uma dádiva, como você afirmou há pouco,
Stephen não pode ser condenado. — apelei, distraindo-o e
retirando-o de sua trajetória.
— Eu não preciso mais de Stephen, ou de Chloé. Não
preciso mais de você, tampouco. — François deixara o círculo
de fogo, mas não sentira as terríveis dores e queimações,
apenas caminhou tranquilamente até o ponto onde o detetive
estava — E jamais precisei deste homem. Ele jamais estaria
aqui se não fosse por sua causa, Inácio. Vê o mal que causou
a ele?
— Não, François, quem trouxe o mal para todos, foi
você!
— Você ainda ousa me desafiar? — François ajoelhou-
se e encostou o punhal no pescoço do detetive — E agora,
ainda ousa me desafiar?
Baixei os olhos. Entendi o que ele queria dizer-me. Eu já
arriscara demais a vida daquele pobre homem, e se ainda havia
algum resquício de vida nele, eu faria de tudo para preservá-
la.
— O que foi? Está arrependido? E quanto à Chloé, o que
você fará quando for ela quem estiver sobre este altar, pronta
para ser sacrificada em nome desta irmandade?
—Não, François! Deixe-a em paz, eu lhe imploro!
— Você implora? Mas, tantos já imploraram, e eu vou
lhe dizer: isso não faz a menor diferença!
— O que você quer em troca? — François levantou-se,
encarando-me.
— Agora estamos começando a conversar. O que você
tem a me oferecer?
— O meu sangue, em troca do sangue deles?
— Não acho justo. Por que trocaria sangue por sangue?
Não, não seria vantajoso para a irmandade.
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apavorado.
— Agora, ofereça o sangue para a irmandade. Esta será
sua primeira prova de fidelidade. A partir desta oferenda,
saberemos que você viverá para esta irmandade.
François pôs as mãos sobre o livro, e a luz púrpura
aumentou consideravelmente. Nessa hora eu entendi que
a luz não provinha apenas do livro, quando Stephen tocara
naquelas páginas fúnebres, mas sim, era o poder de François
que incitava tal emanação. François respirou profundamente
e seu corpo pareceu rejuvenescer enquanto se alimentava da
luz.
— Meus irmãos e irmãs — disse, voltando-se aos
encapuzados — hoje será um dia muito especial para todos
nós. Mais especial do que o previsto. Inácio Vaz expressou
desejo de se tornar membro da nossa irmandade, entregar-
se de corpo e alma, em troca da oferenda de hoje. Vamos
libertar o moribundo, vamos nos esquecer de vingar-nos
de nossa irmãzinha Chloé Champoudry. A alma de Inácio
Vaz é infinitamente mais valiosa para nosso pai, e devemos
obedecer-lhe, sem restrições, sempre! — François voltou-se
para mim, mirando profundamente em meus olhos — Venha
Inácio, faça-nos sua oferenda!
Aproximei-me lentamente do altar. Stephen olhou-
me, rogando por misericórdia. Não havia mais nada que eu
pudesse fazer para salvá-lo. Tinha de escolher entre a minha
vida e a dele, e possivelmente, se escolhesse a dele, isso custaria
também a vida do detetive e principalmente a vida de minha
amada Chloé.
— Venha, Príncipe das Trevas, meu senhor e senhor do
fogo! Mande-me as chamas do seu inferno, traga para mim
as chamas da sua morada! Dê a mim o poder que possui para
que eu atinja minhas metas e destrua meus inimigos! — as
palavras usadas por François eram as mesmas que Stephen
usara anteriormente.
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— Faça!
A voz em meus ouvidos me influenciava a tal ponto, que
eu não pude mais resistir. Reuni minhas forças e golpeei com
o punhal. Stephen contraiu o rosto, como se assim pudesse
escapar do golpe, fugir da dor que ele tantas vezes infligira às
outras pessoas, mas que jamais esperara para si próprio.
O sangue jorrou, maculando minhas mãos. O sangue
ficaria impresso nelas para sempre. Não era o sangue de
Stephen, mas daquele que era a verdadeira fonte de todo o
mal.
No rosto de Stephen, os respingos do sangue de François
também estariam para sempre. Tudo estava eternamente
acabado.
Os encapuzados demoraram um breve espaço de
tempo para assimilar o que acontecera. Adélie foi a primeira
a se aproximar. Eu ainda segurava o punhal entre os dedos
enquanto olhava estupefato o corpo de François no chão.
Ele ainda vivia. Adélie repousou a cabeça dele em seu
colo, e o beijava. Seus lábios ficaram impregnados com o
sangue que molhava os de François. Ela não se importava. Ela
o amava.
Os outros puseram-se em torno de Adélie, enquanto ela
velava os últimos suspiros de François. O golpe fora certeiro.
O punhal adentrara sob as costelas, e provavelmente, atingira-
lhe o coração.
Temi o que fariam comigo em seguida. Levantei o punhal,
ameaçando a todos, embora ninguém prestasse atenção em
mim, ou em Stephen. Estavam incrédulos e concentrados na
dor de Adélie. Todos compartilhavam a mesma dor.
Voltei-me para o altar. O livro não cintilava mais. Olhei
para Stephen, sem saber o que fazer.
— Como poderei agradecer-lhe? — a voz saíra fraca,
como um suave sussurro.
— Vá embora, Stephen! Leve o detetive com você!
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— Dez dias?
— Sim. Você ficou inconsciente por dez dias. Todos os
médicos que o examinaram concordaram que você estava bem,
apesar das queimaduras. — fez uma pequena pausa, tornando
a encarar-me enquanto limpava as feridas com um líquido que
ardia feito fogo — Precisamos conversar, não é mesmo?
— Acho que a carta de Chloé já me foi bastante
esclarecedora. Ainda não recobrei totalmente a memória.
— Eu posso imaginar. Mas preciso me desculpar
imensamente, mon ami. Devo-lhe a minha vida. Ninguém
em seu lugar seria tão benevolente comigo. Eu poderia estar
morto agora…
— Não tem de me agradecer. Eu apenas agi conforme
julguei ser o certo. Você teria feito a mesma coisa por mim.
— Você sabe que não. — cortou Stephen.
— Você está bem? Não me lembro dos detalhes daquela
noite, mas sei que você foi ferido.
— Eu estou bem, mon ami. Obrigado por perguntar.
Esta é apenas mais uma prova do quanto você é melhor do
que eu. — Stephen suspirou profundamente — E pensar
que fez de tudo para igualar-se a mim… — uma lágrima de
arrependimento percorreu seu rosto. Não soube o que dizer
para consolá-lo. Achei melhor mudar o foco da conversa.
— E o detetive?
— Está melhorando. Os hematomas já desincharam e
não havia nenhum osso quebrado. Está internado no quarto
ao lado, logo virá visitá-lo. Ele não fala em outra coisa. Tem
pressa em vê-lo, quer explicar-lhe algumas decisões que
tomamos na sua ausência.
— Decisões?
— Sim. Deixarei que ele mesmo lhe explique.
Quis comentar sobre a sorte de François e Adélie.
Convenci-me de que o momento não era oportuno.
Stephen estava nervoso, seus dedos tremiam enquanto
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