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Filosofia vs. ciência: um ensaio de introdução à filosofia (versão 3.

0, com apêndice da nota 1,


referências incompletas)

Emerson Carlos Valcarenghi


ecvalcarenghi@yahoo.com.br

O principal objetivo deste ensaio é oferecer uma resposta à seguinte pergunta: qual a
diferença entre a atividade filosófica e a atividade científica? 1 Nós não temos dúvida de que tais
atividades intelectuais são diferentes. Mais do que isso, queremos assumir tal diferença como uma
das premissas do argumento geral deste ensaio.2 É claro, porém, que o mero fato de não termos
dúvida de que as atividades em jogo sejam diferentes não fornece, de modo automático, uma
resposta sobre qual é ou quais são as diferenças. Além da pergunta acima, queremos responder
também as seguintes:

(1) A atividade filosófica é capaz de resolver ou de contribuir apropriadamente para a resolução de


problemas científicos?
(2) A atividade científica é capaz de resolver ou de contribuir apropriadamente para a resolução de
problemas filosóficos?

Antes de começarmos qualquer movimento de resposta às perguntas acima, gostaríamos de


deixar claro o que está e o que não está em jogo nas perguntas (1) e (2). Não está em jogo, por
exemplo, a questão de se seria possível que o exercício das atividades filosófica e científica
produzisse alguma informação que se mostrasse relevante para a resolução, parcial ou completa,
dos problemas de uma ou de outra daquelas atividades. É óbvio que aquilo seria possível (assim
como é óbvio que seria possível conseguirmos fazer um belo poema escolhendo palavras
aleatoriamente num dicionário). O que está, então, em jogo é se a execução das atividades filosófica
e científica permitiria obtermos de modo apropriado uma resposta relevante para a resolução,
parcial ou completa, dos problemas alheios. Para sermos ainda mais precisos: o que está em jogo é
se a execução das atividades filosófica e científica permitiria obtermos de modo apropriado uma
verdade que fosse contributivamente relevante para a resolução dos problemas alheios (onde a
expressão “obtermos de modo apropriado uma verdade que fosse contributivamente relevante para a
resolução dos problemas alheios” pode ser entendida como “descobrirmos de modo apropriado uma
verdade que seja contributivamente relevante à resolução do problema alheio” ou como
“decidirmos de modo apropriado pela verdade de uma determinada proposta de solução endereçada
ou endereçável ao problema alheio”). Assim, ao falarmos na capacidade de aquelas atividades
contribuírem para a resolução dos problemas alheios, não estará em questão a mera possibilidade de
elas veicularem uma proposição que, eventualmente, contribuiria relevantemente para a resolução

1
Conforme o título já sugere, uma das principais preocupações deste ensaio é fornecer uma resposta à
questão da diferença entre a atividade própria de agentes filosóficos – os filósofos – e a atividade própria de
agentes científicos – os cientistas. Assim, embora não estejamos primordialmente preocupados com a oferta
de uma resposta à questão acerca da diferença entre filosofia e ciência, trata-se de questões cujas respectivas
respostas corretas certamente estão relacionadas. Assim, sem muita pretensão, gostaríamos de arriscar a
seguinte resposta à pergunta acerca da diferença entre filosofia e ciência: filosofia é o conjunto de respostas
produzidas por indivíduos que executam a atividade de responder perguntas filosóficas e ciência é o conjunto
de respostas produzidas por indivíduos que executam a atividade de responder perguntas científicas. Um
esclarecimento adicional tem a ver com o fato de que as expressões “filosofia”, “problema filosófico”,
“atividade filosófica”, “filósofo” etc. são bastante ambíguas, ou seja, têm sentidos/significados diferentes
(talvez até mesmo radicalmente diferentes). Certas concepções ditas também “filosóficas”, como a dialética e
a hermenêutica, diferem bastante, bastante mesmo, daquilo que apresentaremos aqui em relação ao
significado da expressão “atividade filosófica” e seus correlatos linguísticos. A concepção de filosofia que
apresentaremos aqui tem sido designada tradicionalmente de “analítica” e, tal como veremos, o rótulo em
questão lhe cai muito bem. Veja no Apêndice uma discussão adicional sobre o assunto.
2
Confira no Apêndice o argumento com o qual sustentamos a premissa em jogo.
dos problemas da atividade alheia, mas, se o exercício daquelas atividades permitiria a obtenção de
modo apropriado de uma proposição que resolvesse, parcial ou completamente, o problema alheio.
Nesse sentido, cabe um esclarecimento adicional sobre o uso da expressão “de modo apropriado” à
qual temos recorrido para qualificar a ideia da suposta capacidade de aquelas atividades obterem
uma resposta aos problemas alheios (lembrando que a noção de obtenção está ligada aqui às noções
de: (a) decidir de modo apropriado pela verdade de certa proposta de resolução ao problema ou (b)
descobrir de modo apropriado uma resposta ao problema). O que importa vermos aqui é que a
obtenção de modo apropriado de uma resposta verdadeira para um dado problema tem a ver com a
execução de um modo que permita obter uma dada resposta como verdadeira, em detrimento de
proposta(s) alternativa(s), mas sem que a seleção ou direcionamento para a respectiva proposta
tenha se realizado de modo arbitrário, aleatório ou ainda pela execução de um modo menos
eficiente em lugar de um mais eficiente.3 Nesse sentido, a obtenção apropriada de uma resposta
verdadeira tem a ver com a eliminação da mera coincidência, da mera acidentalidade, da pura sorte
na obtenção da resposta correta à pergunta que expressa um determinado problema intelectual. Por
exemplo, consideremos que certa resposta, que foi oferecida para resolver um certo problema de
ordem intelectual, seja mesmo verdadeira. Mas, também vamos supor que ela tenha sido assim
decidida por meio do lançamento de uma moeda, de um dado, pela realização de um mamãe-
mandou-eu-escolher-este-aqui etc. Ora, fica claro que, apesar de ter-se obtido uma resposta
verdadeira, o fato de a resposta obtida ser a verdadeira se trata de algo puramente acidental na
história. Sendo assim, a obtenção de modo apropriado de uma resposta verdadeira a um dado
problema (quer tenhamos decidido de modo apropriado pela verdade da respectiva resposta, quer
tenhamos descoberto tal resposta) implica que sua obtenção não ocorreu de modo fortuito ou
sortílego.4 Por fim, cabe um esclarecimento em relação ao sentido das expressões “decidir pela
verdade de uma dada proposta de solução a um problema” e “descobrir uma resposta de resolução
a um dado problema”. Ao usarmos tais expressões, não estaremos necessariamente comprometidos
com a ideia de que a decisão/descoberta seja probatória, do tipo sem margem possível de erro, da
verdade da respectiva resposta, mesmo que a resposta fosse realmente verdadeira.5
Isso posto, queremos declarar, em reação às perguntas (1) e (2), que não, as atividades
filosófica e científica não podem sequer contribuir para a resolução dos problemas de uma ou de
outra dessas atividades. A estratégia para tentarmos provar a reação negativa consiste em oferecer,
primeiro, uma explicação acerca do que são as atividades intelectuais em questão e, a partir dessas
explicações, extrair os conceitos que, julgamos, irão permitir-nos não apenas provar nossa resposta
negativa às perguntas (1) e (2), mas, principalmente, oferecer uma explicação da diferença entre as
atividades filosófica e científica, objetivo principal do ensaio.

Vamos começar assumindo que qualquer atividade intelectual tem uma estrutura constituída
de problemas, metodologia e meta(s), as quais são próprias aos agentes que executam a atividade
correspondente. Também queremos assumir que qualquer problema intelectual pode ser expresso
por meio de uma pergunta (se isso não puder ser feito, nós simplesmente não temos um problema
intelectual em jogo). Isso posto, vamos postular o que pensamos constituir a forma geral dos
problemas filosóficos, que se expressa na seguinte pergunta6:

3
O conceito de eficiência de métodos/modos/instrumentos/etc. está conectado aos conceitos de eficácia e
efetividade. Mais detalhes no Apêndice.
4
Salvo observação em contrário, as expressões “decidir pela verdade/falsidade de uma resposta a um dado
problema” e “descobrir uma resposta para um dado problema” deverão ser sempre associadas à expressão
“de modo apropriado”, ou expressões correlatas, mesmo que a última expressão não apareça explicitamente.
Além disso, as expressões “decidir pela verdade/falsidade de uma resposta a um dado problema” e
“descobrir uma resposta para um dado problema” são, como já assumimos acima, alternativas para a
expressão “obter de modo apropriado uma resposta a um dado problema”. Mesmo que aquelas expressões
apareçam separadas no texto, elas deverão ser entendidas em associação, e com as devidas adaptações,
exceto se houver alguma indicação explícita em contrário. Para mais detalhes sobre alguns dos assuntos aqui
expressos, veja o Apêndice.
PF: O que é um Φ?7

A letra “Φ” será usada para representar termos ou expressões conceituais, tais como, “leão”,
“velocidade”, “reprodução assexuada”, “estado justo” etc. Assim, ao substituirmos “Φ” por “leão” a
pergunta filosófica resultante seria: “O que é um leão?”. Assim, se PF é o tipo de pergunta
vinculada à atividade filosófica, podemos dizer que a meta própria e geral da atividade filosófica só
pode ser a seguinte:

MF: responder de modo correto8 e apropriado a perguntas como PF

A essa altura, queremos perguntar que tipo de resposta perguntas como PF exigem. Bem
parece-nos que elas exigem uma espécie de lista que discrimine as características, propriedades ou
os conceitos9 que fazem com que algo seja um Φ (um leão, um Estado justo, um homem etc.) e não
outra coisa.10 Sendo assim, parece importante fazermos algumas observações sobre o tipo de coisa
que perguntas como PF demandam ou não demandam. Primeiro, perguntas como PF não
demandam nem sugerem que suas candidatas a resposta correta devam ou possam ser obtidas
mediante alguma descrição, perceptual ou não, de algum exemplar ao qual atribuiríamos o conceito
5
Para comentários adicionais acerca do tópico, veja o Apêndice.
6
Nós queremos assumir que qualquer problema intelectual pode ser expresso por uma sentença interrogativa.
7
Nós reconhecemos que há perguntas genuinamente filosóficas que podem ser expressas sem o uso de “um”
ou com o termo “um” sendo substituído por “o”. É o caso, por exemplo, das perguntas “O que é
conhecimento?”, “O que é crença justificada?”, “O que é o homem?” etc. Nesse caso, seria melhor
expressarmos a forma mais geral da pergunta de tipo filosófico por meio da sentença “O que é (um/o) Φ?”,
onde o sinal “/” serviria para indicar o uso ocasional dos termos que estão ao seu lado. Preferimos a forma
acima, e tentaremos mantê-la ao máximo da conveniência, apenas por razões de economia e simplicidade.
Também é importante notar que PF também se adapta à expressão dos conceitos relacionais. Consideremos,
por exemplo, o conceito de amor, que é relacional. A pergunta filosófica acerca do conceito de amor pode ser
expressa por qualquer uma das formas a seguir, mesmo que elas não tenham necessariamente a mesma
clareza expressional: “O que é amar?”, “O que é o amor?” e “O que é x amar y?”. E, como se pode notar, tais
perguntas, ou exemplificam PF, ou se ajustam sem dificuldade relevante à PF. Mesmo assim, caso alguém
acredite que certos ajustes de expressão são indispensáveis em PF, sinta-se autorizado a fazê-los. Mais
detalhes no Apêndice.
8
O termo “correto” não será usado aqui como sinônimo de “verdadeiro”. O termo “correto”, quando
aplicado a uma resposta, será usado para indicar que, além de verdadeira, a resposta também é completa, ou
seja, que a adição de outras verdades não a melhoraria como resposta à pergunta para a qual foi endereçada,
ainda que os conceitos nela expressos possam figurar em novas perguntas como PF e ainda que as respostas
para tais perguntas possam ter conteúdo conceitual relevante (ver o Apêndice para mais esclarecimentos).
Um exemplo pode tornar o ponto mais claro. Se alguém pergunta o meu nome, e respondo “Emerson”, tal
resposta é verdadeira, mas não é completa em relação à pergunta que me foi dirigida. Se eu tivesse
respondido “Emerson Carlos Valcarenghi”, aí, sim, eu teria respondido não apenas verdadeiramente, mas
também corretamente. Tal distinção nos permite separar propostas meramente verdadeiras de propostas
corretas de solução de problemas.
9
Embora possa haver diferença no significado dos termos “características”, “propriedades” e “conceitos”,
tais diferenças não deverão ser relevantes para a consecução dos argumentos desse ensaio. Nesse caso, os
termos poderão ser tomados indistintamente, embora, tal como o leitor poderá constatar, faremos uso
preferencial dos termos “conceito” ou “conceitos”. Para mais detalhes, confira o Apêndice.
10
Não é difícil ver que, após oferecermos resposta a uma pergunta como PF, poderíamos fazer uma nova
pergunta, do mesmo tipo, porém agora em relação aos conceitos expressos naquela resposta. Afinal de
contas, se uma pergunta filosófica requer uma resposta que liste os conceitos que fazem com que algo seja
um Φ, então sempre seria possível, em princípio, repetir perguntas como PF aos termos ou expressões
conceituais das respostas de modo sucessivo. Partindo dessa consideração, alguém poderia alegar que uma
reaplicação sucessiva daquela pergunta obrigaria o respondedor, que tivesse assumido a meta de obter
resposta correta à pergunta inicial, a uma espécie de regresso ao infinito, o qual, segundo o objetor, tornaria
inviável atingirmos a meta de responder corretamente já à primeira pergunta (Popper sugere um argumento
assim em Conhecimento Objetivo). Para importantes detalhes envolvendo esse ponto, confira o Apêndice.
que fosse vinculado ao sinal “Φ”. Afinal de contas, perguntas como PF não perguntam o que é este
ou aquele Φ em particular, mas o que é um Φ. Em segundo lugar, dado que perguntas como PF
demandam uma discriminação dos conceitos que tornam algo um Φ e não outra coisa e dado que,
ao atribuirmos o conceito Φ também podemos atribuir junto conceitos que não são relevantes para
que algo seja um Φ e não outra coisa, então perguntas como PF não demandam que discriminemos
todos os conceitos que porventura seriam atribuídos ao atribuirmos Φ. Elas demandam, sim, que
discriminemos todos os conceitos que atribuímos automática e exclusivamente em razão da
atribuição de Φ.
Considerando que perguntas como PF demandam uma discriminação de todos os conceitos
que fazem com que algo seja Φ e não outra coisa, então, para serem corretas, as respostas terão de
expressar a análise do conceito Φ11, tal como nós o atribuímos12. E, nesse caso, a meta de responder
corretamente a perguntas como PF equivale à meta de analisar o conceito Φ ou, dito de modo
alternativo, corresponde à meta de obter a análise conceitual de Φ.

A essa altura, porém, alguém poderia reclamar que os problemas científicos deveriam ser, de
alguma maneira, também expressos com o uso da expressão “o que é um Φ”. Afinal de contas,
reclamaria alguém, os cientistas também pretenderiam, de alguma maneira, dizer o que é um leão,
matéria, reprodução assexuada etc. Ora, nós concordamos com essa reclamação. A expressão “o que
é um Φ” deve mesmo constar em perguntas de natureza científica. Entretanto, isso não pode se dar
de modo desqualificado. Afinal, uma vez que as atividades filosófica e científica são diferentes, os
problemas que lhes são próprios são diferentes. E tem que ser assim, pois, se duas atividades
intelectuais, digamos x e y, têm os mesmos problemas, então as suas soluções também têm que ser
as mesmas. Mas, se fosse assim, as atividades x e y não seriam diferentes, exceto nominalmente.
Assim, se as perguntas que expressam os problemas que são próprios da atividade científica contêm
a expressão “o que é um Φ”, elas não podem ser expressas apenas com o uso dessa expressão. O
que falta, então, adicionarmos à expressão “o que é um Φ” para obtermos a pergunta que é própria
da atividade científica?
Para respondermos à pergunta acima, precisamos fazer algumas considerações sobre
perguntas da forma de PF, que são as que assumimos serem próprias – e exclusivas – da atividade
filosófica. Conforme já vimos, perguntas da forma “o que é um Φ?” exigem que a resposta correta
expresse todos os conceitos que compõem ou analisam o conceito expresso por “Φ”. Isso posto,
consideremos agora a seguinte questão: exigem aquelas perguntas que suas candidatas à resposta
correta passem pelo crivo das nossas percepções sensoriais para que as decidamos verdadeiras ou,
então, que procedêssemos sensorialmente para descobrir as respostas corretas? Não, elas não
exigem tais coisas. Ou seja, perguntas como PF não exigem que suas candidatas à resposta correta
tenham que ser aprovadas por algum teste perceptual para que as decidamos verdadeiras (ou, em
sendo reprovadas no teste, nós as decidamos falsas). Bem, tal consideração é crucial aqui. Pois, ao
aplicarmos a pergunta que acabamos de fazer àquelas que expressam os problemas que assumimos
serem próprios – e exclusivos – da atividade científica, nós diremos que elas exigem, sim, que suas
candidatas à resposta correta passem ilesas pelo crivo das nossas percepções sensoriais para que as
decidamos verdadeiras ou para que as descubramos como verdadeiras (nesse caso, para que as
11
Nós assumimos, sim, que a análise conceitual se trata de uma espécie de decomposição. Mas, isso não nos
compromete com a ideia de que a decomposição de conceitos implique a materialidade dos conceitos. Não
nos comprometeria sequer com a ideia oposta. É fato neutro no debate.
12
A expressão “tal como nós o atribuímos” poderia enfrentar alguma resistência no que concerne à sua
associação com a análise conceitual. Alguém poderia alegar que a análise de um conceito é diferente da
análise de um conceito tal como nós o atribuímos, dado que a primeira situação teria um caráter objetivo,
enquanto a segunda teria um caráter estritamente subjetivo. Mas, a alegação é falsa. Afinal, a análise de
qualquer conceito tem que ser, em última instância, equivalente à análise daquele conceito tal como nós o
atribuímos. Afinal de contas, não pode haver diferença de conteúdo analítico entre o conceito-Φ e o
conceito-Φ atribuído (por um dado atribuidor ao que quer que seja). Se houvesse, então nos parece que, ou
não seria Φ o conceito sob análise, ou não seria Φ o conceito atribuído. Confira mais detalhes sobre o
assunto no Apêndice.
obtenhamos pelo exercício crucial de um ou mais procedimentos perceptuais). Expressando o
mesmo ponto de outra maneira, ao imaginarmos algo que identificamos como sendo um problema
de ordem científica, nós negamos que não seja necessário que as propostas de solução concorrentes
sejam decididas verdadeiras/falsas pela intervenção, de algum modo, da nossa percepção
sensorial.13 Nesse caso, temos em mãos uma informação relevante para a discussão em curso. Se é
verdade que as perguntas científicas demandam que suas candidatas a resposta correta sejam
decididas verdadeiras/falsas mediante algum tipo de intervenção das nossas percepções sensoriais,
então essa demanda é tal que analisa, ao menos parcialmente, o conceito de pergunta científica e,
nesse caso, tem de ser adicionada à expressão “o que é um Φ” para podermos obter a pergunta que
expressa a forma geral das perguntas científicas.
Isso posto, queremos propor o seguinte para representar a forma geral das perguntas que
expressam os problemas científicos:

PC: O que é um Φ segundo o que percebemos sensorialmente?14

Duas considerações importantes sobre o sentido da expressão “segundo o que percebemos


sensorialmente”. A primeira de algum modo já foi feita, vamos apenas reforçar o ponto. É a ideia de
que a decisão acerca da verdade/falsidade de uma resposta endereçada a uma pergunta científica
depende, invariavelmente, de um recurso à nossa percepção sensorial. A outra consideração tem a
ver com a ideia de conformidade veiculada na expressão “segundo” de PC. Ora, a conformidade em
jogo só pode ser a de que, para ser decidida como verdadeira, uma resposta endereçada a uma
pergunta como PC tem de ser confirmada por um certo número relevante de nossas ocorrências
perceptuais e não ser desconfirmada por nenhuma delas. Ou seja, além da necessidade de uma
resposta ser confirmada por cada uma das nossas n ocorrências perceptuais – onde n tem de ser um
número relevante de tais ocorrências – também é necessário que não haja nenhuma ocorrência
perceptual de desconfirmação relativamente àquela resposta.15 Vamos a um caso: suponhamos que
alguém estivesse tentando dar uma resposta correta à pergunta acerca do que é uma cadeira,
segundo o que percebemos sensorialmente. Vamos supor também que sua tentativa inicial de
resposta fosse a seguinte: se uma coisa é uma cadeira, então ela é amarela. 16 Vamos imaginar agora
que, pouco depois, o sujeito olhasse para o lado e visse algo a que atribuísse ser uma cadeira e
também amarela. Nesse caso, diremos que ele confirma a sua resposta em um grau mínimo, porém
insuficiente. Vamos supor, contudo, que tal fato se repetisse n vezes e n fosse um número relevante.
13
Nós usamos a expressão “percepção sensorial” para identificar o procedimento mental em que um
indivíduo percebe sensorialmente algo a que atribui certo conceito. Não se trata, então, do uso da palavra
“percepção” como sinônimo de “entendimento”, “compreensão linguística” etc. Para mais detalhes, veja o
Apêndice.
14
Alguém poderia alegar que PC não contempla certas perguntas que, aparentemente, seriam “científicas”,
como, por exemplo, “Qual a causa de tal coisa/fato?”, “”Qual o efeito de tal coisa/fato?” etc. Tais perguntas,
que versam sobre as relações de causa e efeito de certas classes de indivíduos/fatos, também costumam ser
expressas com o uso de “por que” ou “como”. No fim das contas, o argumento do objetor seria o de que
perguntas do tipo “o que é”, tais como PC, não são compatíveis com a veiculação de conceitos relacionais
como é o caso dos conceitos de causa e efeito. Dado que PC não é compatível com a veiculação de conceitos
de causa e efeito, em razão de serem conceitos relacionais, perguntas como PC não podem ser corretamente
respondidas com sentenças que veiculam conceitos relacionais. Como as perguntas em discussão exigem
como resposta sentenças que expressem conceitos relacionais, perguntas da forma de PC não as
contemplam, concluiria o objetor. Confira no Apêndice um argumento que refuta essa objeção.
15
Para uma breve discussão sobre alguns pontos aqui mencionados, confira o Apêndice.
16
No exemplo, usamos uma sentença da forma condicional (“se..., então...”) para expressar a resposta.
Outras formas poderiam ser usadas para responder perguntas como PC, como, por exemplo: “Todas as
cadeiras são amarelas”, “O que é cadeira é amarelo” etc. Mas, as coisas devem mudar de figura, se
estivermos lidando com respostas a perguntas como PF. Pois, embora também possamos fazer uso de
sentenças condicionais para expressar respostas a perguntas da forma de PF, o tipo de sentença condicional
exigido por perguntas como PF tem que ter um espectro bem mais amplo de aplicação. A diferença em jogo
deve ficar mais clara à frente. Para uma explicação adicional, confira também o Apêndice.
Nesse caso, ele confirmaria sua resposta em grau relevante n e poderia, assim, decidir por sua
verdade. Bastaria, entretanto, uma única ocorrência em que ele percebesse algo a que atribuísse o
conceito de vermelho, verde, preto, etc. a algo que também atribui ser uma cadeira, para que ele
desconfirmasse a resposta da qual partira, podendo decidir, nesse caso, por sua falsidade.17
Em resumo, perguntas tais como PC exigem respostas cuja decisão quanto à verdade tenha
sido realizada por meio da execução de um modo que invariavelmente recorra às nossas percepções
sensoriais e, além disso, que elas sejam confirmadas, sem qualquer exceção, por aquele modo. E se
PC expressa a forma geral da pergunta própria da atividade científica, então a meta própria dos
agentes que executam tal atividade só pode ser a seguinte:

MC: responder de modo correto e apropriado a perguntas como PC

Nesse momento, porém, alguém poderia oferecer uma objeção, que, se bem-sucedida,
impedir-nos-ia de alcançar uma das metas aqui perseguidas, que é a de mostrar que as atividades
filosófica e científica não contribuem nem sustentam entre si qualquer dependência para a resolução
dos problemas de uma e de outra dessas atividades. O objetor hipotético argumentaria que, mesmo
que as perguntas filosóficas e científicas sejam diferentes, o fato de elas compartilharem a expressão
“o que é um Φ” implica, segundo o objetor, que, se respondêssemos a uma delas, teríamos à
disposição alguma afirmação invariavelmente útil para respondermos corretamente a outra.
Tal objeção, porém, não funciona. Não funciona, porque pressupõe que o compartilhamento
de expressões entre perguntas seja suficiente para que uma resposta verdadeira de alguma delas
seja, de algum modo, verdadeira para a outra. Mas, isso é falso, como mostram, por exemplo, as
perguntas abaixo:

(3) Essa roupa é elegante?


(4) Essa roupa é elegante em mim?

Parece-nos claro que uma resposta que fosse verdadeira para (4) não teria de ser
necessariamente verdadeira para (3).18 Sendo assim, não é necessário que respostas corretas a
perguntas como PC tragam consigo algum conteúdo útil a perguntas como PF, ou vice-versa.
Há, no entanto, uma objeção mais contundente aos propósitos assumidos para esse ensaio do
que essa que acabamos de ver. Ela pode ser expressa por meio do seguinte argumento: vamos
assumir, apenas por hipótese – diria certo objetor hipotético – que a atividade científica não seja
capaz sequer de contribuir para a resolução de problemas filosóficos. Vamos assumir também que
haja duas respostas alternativas a uma determinada pergunta filosófica, e que uma delas seja de fato
verdadeira. Ora, como se poderia decidir qual delas é a verdadeira e qual a falsa sem fazermos uso
da percepção? Não poderíamos, dispararia o objetor. Por essa razão, mesmo que fosse verdade que
as perguntas filosóficas e científicas fossem adequadamente expressas por PF e PC, a atividade
filosófica não tem como resolver os seus problemas sem algum apelo à percepção. Desse modo, a
atividade científica tem como contribuir, sim, para a resolução dos problemas filosóficos em razão
da aplicação natural de testes perceptuais, concluiria o objetor.19, 20

17
Como podemos ver, a confirmação admite graus, mas não a desconfirmação que, por razões óbvias, é um
conceito dito “absoluto”. Para mais detalhes, veja o Apêndice.
18
Com a palavra, as mulheres.
19
A tese de que haveria algum tipo de interdependência entre a atividade filosófica e a científica ou uma
dependência especial da primeira em relação à segunda parecem encontrar respaldo em Quine (ver Dois
Dogmas do Empirismo e Epistemologia Naturalizada). Assumiremos aqui que a concepção de filosofia
naturalizada não diverge da concepção analítica quanto à natureza do problema filosófico, mas quanto à
metodologia própria da filosofia. Nesse caso, assumiremos que a arena da disputa entre a filosofia analítica e
a filosofia naturalizada é metodológica. A filosofia analítica vence a disputa (ver Filosofia analítica
tradicional vs. filosofia naturalista/experimental, intuição conceitual vs. conceptômetro: quem vence a
disputa?). Para mais detalhes, veja o Apêndice.
Mas, tal objeção também não funciona. Ela pressupõe um princípio, o qual, na sequência,
mostraremos ser falso, ou seja: o de que só podemos decidir apropriadamente a verdade/falsidade
de uma afirmação qualquer, dada ou não em resposta a uma pergunta da forma de PF, se pudermos
submetê-la, de alguma maneira, ao crivo das nossas percepções. Para podermos provar que o
princípio em questão, ou algo equivalente, é falso, vamos começar examinando a afirmação, por
exemplo, de que um sextilhão mais um sextilhão somam dois sextilhões (afirmação que seria a
nossa resposta diante da pergunta “qual o resultado de somarmos um sextilhão a outro?”). Bem,
parece-nos que podemos decidir de modo apropriado que a afirmação em jogo é verdadeira sem
termos de recorrer a uma contagem perceptualmente controlada de, por exemplo, grãos de feijão.
Até por que, se resolvêssemos levar a cabo uma contagem daquele tipo, temos a impressão de que
nos faltaria feijão ou, mais tragicamente ainda, longevidade para consumá-la.21 É claro que o objetor
poderia retrucar alegando que, se dispuséssemos de feijão ou tempo de vida suficientes, nós
poderíamos contabilizar perceptualmente aquele resultado e, então, (des)confirmarmos a verdade da
afirmação em jogo. A alegação é verdadeira. Porém, não capta o ponto relevante da discussão, que
não é o de se poderíamos (des)confirmar perceptualmente a verdade daquelas afirmações, caso
vivêssemos um sextilhão de anos ou tivéssemos uma infinidade de grãos de feijão disponíveis, mas
se é necessário recorrermos à percepção para decidir aquilo. Mas, talvez algo ainda mais sério
espreite o princípio em jogo, o qual poderíamos chamar de “Princípio de São Tomé”, a fim de
homenagearmos o apóstolo que teria exigido ver (perceber) para crer. 22 A dificuldade de tal
princípio reside no fato de que a decisão quanto à sua própria verdade teria de ocorrer, segundo o
próprio princípio, via percepção. O ponto é que, se não é possível decidir por meio da percepção
que o Princípio de São Tomé é verdadeiro, então ele não poderia ser decidido assim mediante o
único modo que, segundo ele mesmo, deveria ser capaz de fazê-lo. Nesse caso, o defensor do
Princípio de São Tomé é que teria de nos dizer sob que situação perceptual possível poderíamos
decidi-lo verdadeiro.23 Nós nos julgamos incapazes de concebê-la.24
Mas, o argumento a seguir é que deverá mostrar claramente a falsidade do Princípio de São
Tomé ou de seus equivalentes. O argumento assume a tese de que podemos decidir a respeito da
verdade/falsidade de respostas oferecidas a perguntas do tipo “O que é um Φ?”, até mesmo quando
“Φ” representa conceitos ficcionais, que são os conceitos que atribuímos apenas em situações não-
perceptuais, como, por exemplo, quando imaginamos algo a que atribuímos ser um minotauro, um
centauro etc. Para vê-lo, vamos assumir que o conceito de minotauro se trate mesmo de um conceito
ficcional – se alguém achar que ele não é ficcional, sinta-se autorizado a substituí-lo por outro que
julgue ser.25 O ponto nevrálgico é a tese, que se deriva do Princípio de São Tomé, de que nós não
poderíamos decidir a respeito da verdade/falsidade de respostas oferecidas à pergunta “O que é um
20
O tipo de argumento usado pelo objetor é comumente designado de “argumento de redução ao absurdo”.
Ao fazermos uso de um argumento assim, tentamos provar a falsidade de uma tese que, no início do
argumento, assumimos apenas como sendo hipoteticamente verdadeira. Mais detalhes sobre o assunto no
Apêndice.
21
A consideração em questão pode sugerir que o status da verdade/falsidade de proposições matemáticas
como as que usamos no exemplo acima e o de respostas dadas a perguntas do tipo “O que é um Φ?” é o
mesmo. De fato, somos inclinados a crer que aquele tipo de proposição matemática e respostas a perguntas
do tipo “O que é um Φ?” são propostas de análise conceitual (algo que contraria a perspectiva de Kant em A
Crítica da Razão Pura para quem aquelas sentenças matemáticas seriam sintéticas, e não analíticas). Apesar
da inclinação que manifestamos sobre o ponto, discuti-lo fugiria demasiadamente do escopo do ensaio.
22
Cf. João 20, 25.
23
A obrigação de oferecer um caso em que o Princípio de São Tomé seria decidido verdadeiro de modo
empírico é, obviamente, do nosso adversário intelectual hipotético. Trata-se de uma obrigação de ordem
moral em relação à disputa ou esgrima argumentativa. Isso por que, após a objeção hipotética contra as
pretensões do ensaio, nós oferecemos um argumento correto contra um princípio que é crucial à correção da
objeção. As regras da correta dialética da disputa argumentativa obrigariam o nosso adversário a ser o
próximo a oferecer argumento. Do contrário, ele capitularia. Para mais detalhes sobre o assunto, veja o
Apêndice.
24
As considerações acima poderiam insinuar que o princípio de São Tomé seria autocontraditório. Confira no
Apêndice uma discussão sobre o caso.
minotauro?”. Afinal de contas, se o conceito de minotauro é, tal como assumimos, um conceito
ficcional, então ele não é atribuível em situações perceptuais e, assim, segundo o Princípio de São
Tomé, não poderíamos decidir pela verdade/falsidade de qualquer resposta endereçada à pergunta
correspondente. Mas, isso é falso. Nós podemos, sim, decidir pela verdade/falsidade de respostas
endereçadas àquela pergunta, sem termos de recorrer a qualquer procedimento perceptual. Para vê-
lo, vamos imaginar que alguém proponha a seguinte resposta para a pergunta em jogo: se uma coisa
é um minotauro, ela é parte homem e parte libélula. Ora, parece-nos que somos capazes de decidir
acerca da verdade/falsidade dessa resposta, mesmo sem percebermos algo a que atribuímos o
respectivo conceito. Portanto, é falso que só podemos decidir a verdade/falsidade de uma afirmação
mediante recurso a procedimentos perceptuais.
Contudo, algum objetor de plantão poderia alegar que o caso dos conceitos ficcionais não
apresenta dificuldade essencial para quem sustenta o Princípio de São Tomé. Segundo ele, ao
decidirem pela verdade/falsidade de respostas dadas à pergunta “O que é um minotauro?”, os
agentes recorreriam à percepção sensorial de pinturas, esculturas, filmes, gravuras, relatos de
terceiros etc. relativos a minotauros. Sendo assim, poderíamos decidir a verdade/falsidade de uma
resposta endereçada à pergunta “O que é um minotauro?” por meio de um teste perceptual nas
pinturas, esculturas, gravuras etc. de minotauros. Se elas mostrassem a propriedade expressa pela
resposta, a resposta seria decidida como verdadeira, do contrário seria decidida como falsa. Nossa
reação a essa objeção começa com a exigência de um esclarecimento. Afinal, precisamos ter em
mente que pinturas, esculturas, filmes, gravuras, relatos etc. de minotauros não são exemplares ou
instâncias de um minotauro, mas apenas de representações de minotauro.26 É claro, o nosso objetor
poderia alegar que o Princípio de São Tomé acomodaria a diferença em questão, pois, segundo ele,
o princípio permitiria decidir perceptualmente sobre a verdade/falsidade de afirmações envolvendo
conceitos ficcionais, mesmo com o emprego de exemplares de representações de minotauro em
lugar de exemplares de minotauro. Contudo, essa manobra do defensor do Princípio de São Tomé se
mostra sub-reptícia. Isso por que, para podermos decidir apropriadamente pela verdade/falsidade de
uma afirmação a respeito do que seja um minotauro por meio do emprego de uma representação de
um minotauro, nós já teríamos que ter decidido apropriadamente antes que a representação em jogo
é uma representação fidedigna, veraz de um minotauro. Mas, sendo assim, por força do próprio
princípio, nós já teríamos que ter decidido apropriadamente, e antes, pela verdade de uma
afirmação como a seguinte: a representação tal-e-tal é uma representação de minotauro, não de
outra coisa. Ocorre que, para decidirmos antes e apropriadamente através de algum procedimento
perceptual pela verdade da afirmação em jogo nós teríamos que comparar exemplares de
minotauros com exemplares de suas representações para podermos decidir apropriadamente quais
representações seriam fidedignas, verazes e quais não o seriam. Mas, então, deve ficar claro que não
é possível decidirmos apropriadamente a verdade daquela afirmação, caso o conceito de minotauro
seja ficcional. Ocorre que, lamentavelmente, fazê-lo é imprescindível para o sucesso da defesa do
Princípio de São Tomé. Não sendo, entretanto, possível fazê-lo, o veredicto é o de que o princípio
em jogo não encontra nenhuma aplicação na decisão apropriada acerca da verdade/falsidade de
respostas dirigidas a perguntas como PF, caso figure em tais perguntas um conceito ficcional.
25
Alguém poderia alegar que, em razão do excesso de timidez, minotauros teriam se mantido ocultos.
Mesmo que isso fosse verdade, tal fato não imporia qualquer obstáculo ao argumento que exibiremos acima.
Mesmo que minotauros perdessem o medo de se mostrar e passássemos a atribuir o conceito correspondente
em situações perceptuais, o argumento se manteria intacto, uma vez que bastaria substituirmos “minotauro”
por “bicho papão”, “montanha de ouro”, “Papai Noel” etc., até encontrarmos um conceito cuja atribuição
acontecesse apenas em circunstâncias imaginacionais. O que tem de acontecer, mais hora, menos hora, uma
vez que conceitos ficcionais são possíveis. Ver no Apêndice uma discussão adicional sobre esse ponto.
26
O caso é análogo àquele em que, apontando para uma fotografia, alguém diz “Esse aí sou eu!”. Ora, a não
ser que o sujeito esteja sendo vítima de um esquizofrênico, ele não está querendo dizer que a figura
estampada na fotografia é ele literalmente. Trata-se apenas de uma forma elíptica de se expressar, pois o que
pretenderia dizer é que a fotografia o representa fidedignamente em relação a algum momento de sua vida. E
se a fotografia não fizesse isso, ele poderia responder “Não, este aí não sou eu”, e tal reação não seria
necessariamente uma verdade simplória.
Há, porém, uma objeção “residual” que não podemos deixar de examinar. Alguém poderia
argumentar que algo deve estar errado com os argumentos que apresentamos acima contra a
soberania decisional do Princípio de São Tomé no que tange à verdade/falsidade de respostas
dirigidas a perguntas como PF. O argumento desse objetor seria o seguinte: os conceitos que
usamos em nossas atribuições são adquiridos por meio do contato perceptual com objetos/fatos do
mundo real. Sendo assim, a percepção tem, de algum modo, que constituir o fórum soberano de
decisão da verdade/falsidade das respostas endereçadas a perguntas da forma de PF. Assim, se
quisermos dizer o que é a água, por exemplo, temos que fazer contato perceptual com exemplares
de água, pois é via percepção que adquirimos os conceitos que nos permitiriam dizer o que é a
água.27 Portanto, não é possível que a percepção não seja o fórum soberano na decisão de se uma
resposta a uma pergunta como PF é verdadeira ou falsa, é o que conclui a objeção.
Mas, a objeção acima confunde as coisas. Mesmo que adquiramos os conceitos através do
contato perceptual com seus respectivos exemplares reais, tal fato per se não diz nada sobre a
constituição daqueles conceitos. Aliás, isso não constitui uma excepcionalidade ligada àquela
concepção sobre o acesso ou a aquisição de conceitos. Em rigor, nenhuma concepção acerca do
acesso/aquisição de conceitos permite extrairmos dela uma resposta sobre a constituição, ou
“ingrediência”, dos conceitos que teriam sido supostamente adquiridos via percepção, que é o que
está em jogo nas perguntas como PF.28 Vemos, assim, que a objeção em questão não expressa um
argumento dedutivamente válido e, desse modo, é incapaz de refutar o que pretendia refutar.
A essa altura, o nosso objetor poderia recuar e conceder-nos que teorias acerca da aquisição
de conceitos não permitem decidirmos apropriadamente se certa resposta oferecida a uma pergunta
como PF é verdadeira ou falsa. Contudo, ele poderia agora alegar que, dado que adquirimos os
conceitos a partir do contato perceptual com o mundo externo, então, mesmo que não seja
necessário, como sustenta o Princípio de São Tomé, tem que ser, ao menos, possível obter
apropriadamente uma resposta correta a perguntas como PF por meio da execução de algum
procedimento perceptual. Em outras palavras, a objeção afirma que, por meio da investigação
perceptual, podemos descobrir ou gerar adequadamente uma resposta para perguntas da forma de
PF, apenas por que teríamos adquirido os conceitos sob análise por meio da percepção. Tal como
vemos, a objeção parece brandir o lema “para se saber, por exemplo, o que é a água, basta fazermos
experimentos com exemplares de água”. Em resposta, diremos que, mesmo que os conceitos sejam
adquiridos por meio de contato perceptual com itens (indivíduos ou fatos) do mundo externo, a
objeção em questão não permite mostrar que a percepção sensorial tenha algum papel relevante na
obtenção apropriada de respostas corretas a perguntas da forma de PF. Afinal de contas, mesmo
que os conceitos fossem adquiridos via percepção, isso não permite deduzirmos validamente que a
percepção constituiria um modo de obtenção apropriada, minimamente eficiente de respostas
corretas a perguntas da forma de PF. Esse ponto é fundamental em nossa discussão, pois não
negamos que seja possível que alguém obtenha a resposta correta para uma pergunta da forma de
PF por meio de uma seleção aleatória de palavras ou expressões num dicionário. Mas, tal modo de
se obter uma resposta seria inapropriado, mesmo que a resposta obtida fosse correta. Além do mais,
a objeção em jogo não é competente para mostrar que a percepção teria algum papel
metodologicamente relevante para a obtenção de respostas corretas a perguntas de análise
conceitual, mesmo que fosse verdade que os conceitos fossem adquiridos por meio da percepção.
Em outras palavras, mesmo que a percepção fosse o modo pelo qual os conceitos fossem
adquiridos, isso não permite deduzirmos validamente que a percepção seria, de algum modo, eficaz
27
A objeção acima se inspira na concepção empirista de aquisição dos conceitos. Confira a explicação de
Hume, em favor dessa concepção, em Investigação Sobre o Entendimento Humano.
28
Por exemplo: (1) a de que os conceitos são entidades abstratas e que são captados por ocasião das
atribuições; (2) a de que os conceitos são inatos ao agente; (3) a de que os conceitos são produtos da mente
do agente; (4) a de que parte dos conceitos é adquirida por meio do contato perceptual com o mundo externo
e parte é criada pela, ou na, mente do agente; (5) a de que conceitos estão na mente de alguma divindade e
são acessados pelo agente por ocasião de suas atribuições; (6) a de que todos os conceitos são adquiridos a
partir do contato perceptual do agente com o mundo externo; (7) a de que os conceitos são adquiridos pelo
agente por meio de suas relações sociais.
ou relevante para obtermos – descobrirmos ou decidirmos – de modo apropriado as respostas
corretas para perguntas de análise conceitual, tal como sustenta a objeção em jogo.
Outro objetor contra as pretensões deste ensaio poderia tentar agora um caminho diferente.
Ele poderia argumentar o seguinte: se é verdade que quando “Φ” representa um conceito ficcional
dispomos de um modo não-perceptual de decidir a verdade/falsidade de respostas dadas a perguntas
da forma “O que é um Φ?”, então por que não podemos fazer o mesmo em relação a situações em
que “Φ” representa um conceito não-ficcional? Podemos – diria ele. Afinal, ao respondermos
corretamente uma determinada pergunta filosófica, teríamos à disposição todos os conteúdos
conceituais necessários para darmos resposta correta à pergunta científica correspondente. O objetor
concluiria, então, que a atividade filosófica é capaz de resolver problemas científicos. Tal como
vimos, a objeção atual avançou no sentido oposto ao das objeções que examinamos antes. As
anteriores tentaram mostrar que, ao respondermos corretamente a perguntas científicas, teríamos
estofo para respondermos corretamente às perguntas filosóficas que fossem correlatas. A objeção
mais recente tenta o oposto. Ela tenta mostrar que, se respondermos corretamente a uma pergunta
filosófica, teremos à disposição todos os conteúdos de que precisamos para respondermos
corretamente à pergunta científica correspondente. Nós obviamente tentaremos refutar o argumento
da objeção ao longo desse ensaio. Antes, porém, temos que conceder algo à objeção em jogo: ela
está certa ao assumir que a decisão quanto à verdade/falsidade de respostas endereçadas a uma
pergunta filosófica é independente de se “Φ” representa ou não um conceito ficcional. Nesse
sentido, vale o registro de que, se é verdade o fato em questão, ele liquida com a sugestão de que os
problemas filosóficos e científicos deveriam ser expressos, respectivamente, pelas formas “O que é
um Φ, quando “Φ” representa um conceito ficcional?” e “O que é um Φ, quando “Φ” representa um
conceito não-ficcional?”. Apesar de tais formas expressarem algo que desejamos, que é o
estabelecimento de espaços totalmente independentes para as atividades filosófica e científica, elas
o fazem abraçando dois erros. O primeiro se encontra na restrição inapropriada do espaço da
atividade filosófica. Afinal de contas, se é verdade que a atividade filosófica é capaz de decidir a
verdade/falsidade de uma resposta dada a uma pergunta como PF, então não importa se “Φ”
simboliza ou não um conceito ficcional. O segundo é a exclusão sumária da exigência
observacional para a decisão sobre a verdade/falsidade de respostas endereçadas a perguntas
científicas. Nós já vimos, lá no início do ensaio, que uma proposta que sustente a irrelevância dessa
exigência é contraintuitiva.29 Em resumo, a objeção acima não está errada ao assumir que podemos
decidir – sem qualquer recurso à observação – sobre se certa resposta destinada a uma pergunta
filosófica é verdadeira ou falsa, quer “Φ” represente um conceito ficcional ou não-ficcional. Erra,
porém, ao assumir que, em razão de tal fato, a atividade filosófica seria capaz de resolver
adequadamente os problemas científicos correlativos. Uma prova desse ponto será oferecida à
frente.

Até aqui, temos sido aparentemente bem-sucedidos na tentativa de refutar de modo


definitivo as objeções a que nos propusemos refutar. Mas, mesmo que tenhamos conseguido fazê-lo,
precisamos reconhecer que ainda não temos um bom argumento para provar que as atividades
intelectuais próprias de filósofos e de cientistas não permitem contribuição recíproca na resolução
de seus problemas. Que nós ainda não temos tal argumento, deverá ficar evidente através da
seguinte consideração: tal como já vimos, tanto perguntas do tipo “O que é um Φ?”, quanto
perguntas do tipo “O que é um Φ, segundo o que percebemos sensorialmente?” demandam, como
resposta, uma discriminação de conceitos que fazem com que algo seja um Φ. Isso posto, vamos
supor que a seguinte resposta seja verdadeira: se algo é um Φ, então também é um Ψ (onde “Ψ”,

29
Ao usarmos aqui a palavra “contraintuitiva”, ou expressões correlatas, faremos alusão direta ao método
que consideramos ser próprio – e exclusivo – da atividade do filósofo analítico, enquanto filósofo analítico.
Nós o designamos de “intuição conceitual”. Sendo assim, a intuição conceitual é o modo pelo qual um
filósofo analítico pode formar crenças filosóficas (analíticas) justificadas. Para uma discussão mais ampla
sobre a intuição conceitual, confira Filosofia analítica tradicional vs. filosofia naturalista-experimental,
intuição conceitual vs. conceptômetro: quem vence a disputa?.
assim como “Φ”, está no lugar de um termo ou expressão conceitual quaisquer). Ora, a pergunta
que agora se tornou crucial é a seguinte: em que pergunta aquela resposta teria de constar? Na
pergunta filosófica, na científica ou em ambas? De partida, podemos dizer que ela jamais poderia
ser resposta verdadeira para ambas as perguntas. Afinal de contas, se uma determinada resposta
fosse verdadeira para duas perguntas, então elas teriam que ter rigorosamente o mesmo sentido.
Mas, se fosse assim, os problemas que seriam expressos por aquelas perguntas – no caso particular,
os problemas da filosofia e da ciência – teriam que ser os mesmos. Isso implica que filosofia e
ciência seriam indistintas. Tal resultado é obviamente absurdo. Por conseguinte, é falso que, se
aquela resposta fosse verdadeira, ela poderia sê-lo em relação a ambas as perguntas, filosófica e
científica. Ela poderia ser verdadeira em relação a apenas uma delas. Mas, qual?
Nossa resposta começará a ser extraída a partir da distinção entre conceitos necessários em
relação ao conceito Φ e conceitos contingentes em relação ao conceito Φ. Grosso modo, se um
conceito, digamos Ψ, é necessário relativamente ao conceito Φ, então, quando atribuímos o conceito
Φ a alguma coisa, nós necessariamente atribuímos o conceito Ψ àquilo. Mas, se Ψ é um conceito
contingente em relação ao conceito Φ, então, quando atribuímos Φ a alguma coisa, nós não
necessariamente atribuímos Ψ àquilo. Por exemplo, vamos supor que, em consideração da pergunta
“O que é um sapo?”, estivéssemos testando a resposta de que, se uma coisa é um sapo, então ela é
verde.30 Agora, vamos imaginar algo a que atribuímos o conceito de sapo e também o conceito de
verde. Isso posto, vamos promover uma mudança no item sob nossa imaginação, no caso, um sapo
verde. Por exemplo, vamos imaginar que ele mergulhe num balde de tinta branca e emerja de lá
assim. A pergunta, nesse caso, é a seguinte: nós continuamos a atribuir o conceito de sapo àquele
item? Se a nossa resposta fosse positiva, a atribuição que fizemos do conceito de verde ao item que
atribuímos ser um sapo seria uma atribuição irrelevante para as atribuições que fazemos com o
conceito de sapo. Desse modo, a nossa atribuição do conceito de verde a coisas que atribuímos
serem sapos seria uma atribuição contingente, e, portanto, o conceito de verde não poderia constar
numa lista de conceitos necessários para que algo fosse um sapo. Por outro lado, se negássemos
uma atribuição do conceito de sapo ao item que deixou de receber a nossa atribuição do conceito de
verde, então a atribuição do conceito de verde seria relevante em nossas atribuições do conceito de
sapo. Nesse caso, nossa atribuição do conceito de verde seria uma atribuição necessária e, sendo
assim, o conceito de verde teria que constar numa lista de conceitos necessários para que algo fosse
um sapo.31
Portanto, se uma pergunta demanda uma discriminação de conceitos relativamente ao
conceito Φ, então, ou ela demanda uma discriminação de conceitos necessários para que algo seja
um Φ, ou demanda uma discriminação de conceitos contingentes para que algo seja um Φ. Uma vez
que tanto perguntas filosóficas quanto científicas demandam uma resposta que discrimine conceitos,
porém trata-se de perguntas de atividades intelectuais diferentes, então não há maneira de distinguir

30
Vale o registro de que, mesmo que a resposta em questão fosse verdadeira, ela não poderia exibir a análise
completa do conceito de sapo. Afinal de contas, o consequente do condicional expressando a resposta mostra
apenas uma unidade conceitual. Apenas para lembrar, a análise conceitual tem a ver com a exibição de
conceitos componentes do conceito sob análise. É, portanto, um tipo de decomposição. Sendo assim, seria
falso dizer que uma sentença expressa a decomposição completa de um conceito, se um único conceito fosse
exibido na sentença correspondente. Nesse caso, sendo a sentença em questão verdadeira, tratar-se-ia tao
somente de uma análise parcial do respectivo conceito. Para mais detalhes, confira o Apêndice.
31
Algumas observações sobre conceitos necessários parecem importantes aqui. A primeira tem a ver com o
fato de que, se uma sentença expressa um conceito que é necessário em relação a outro, então aquela
sentença expressa uma análise do respectivo conceito. Nesse caso, a análise pode ser parcial, se nem todos os
conceitos necessários forem expressos pela sentença analítica, ou completa, se todos os conceitos necessários
forem expressos pela sentença analítica. E se uma sentença expressa uma análise, parcial ou completa, de um
conceito, aquela sentença constitui uma verdade necessária, que é o tipo de sentença que não pode ser falsa
em nenhuma situação ou mundo possível (concebível). No entanto, é essencial observar que nem toda
sentença que expressa uma verdade necessária expressa uma análise conceitual. Outro ponto tem a ver com
a objeção de que essa distinção entre conceitos necessários e contingentes se trata de mera ficção linguística.
Confira uma rápida discussão no Apêndice sobre vários dos pontos abordados aqui.
aquelas perguntas, exceto assim: enquanto uma delas demanda uma discriminação de conceitos
necessários para que algo seja um Φ, a outra demanda uma discriminação de conceitos
contingentes para que algo seja um Φ. Com isso em mente, vamos mostrar que o que cabe à
atividade científica é a determinação dos conceitos contingentes32 para que algo seja um Φ,
enquanto o que cabe à atividade filosófica é a determinação de conceitos necessários para que algo
seja um Φ.
Vamos começar mostrando que as perguntas próprias da atividade científica exigem
respostas que veiculem somente conceitos contingentes. O argumento é o seguinte: vamos supor
que, no mundo real, os sapos sejam verdes e que nós os percebamos assim. Agora, vamos supor,
relativamente a um mundo meramente possível (o país das maravilhas visitado por Alice, por
exemplo), que os sapos sejam todos marrons e que assim os percebêssemos lá. Ora, se coubesse à
atividade científica responder a perguntas que demandassem uma discriminação dos conceitos
necessários acerca do que é um sapo, então, dado o que determina a exigência observacional
expressa nas perguntas científicas, teríamos de fazê-lo através de recurso à percepção sensorial.
Ocorre que, nesse caso, respostas inconsistentes seriam dadas sobre o que seria necessário para algo
ser um sapo. Afinal de contas, numa das situações possíveis – a real – as nossas percepções
permitiriam decidir que sapos são verdes e, noutra, que são marrons. Como tais respostas foram
homologadas pela percepção, tal como exige a atividade científica, mas são inconsistentes entre si,
elas não podem veicular conceitos necessários acerca do que seja um sapo. 33 Assim, não pode caber
à atividade científica fornecer respostas a perguntas que demandem uma discriminação dos
conceitos necessários acerca do que é um Φ. Se esse é o caso, só lhe pode caber o fornecimento de
respostas a perguntas que demandem uma discriminação dos conceitos contingentes acerca do que é
um Φ.
Falta-nos agora mostrar que as perguntas próprias da atividade filosófica exigem respostas
que veiculem somente conceitos necessários. Isso não será difícil, se mantivermos em mente a
conclusão obtida há pouco. Ou seja, nós já vimos que ambas as perguntas – filosófica e científica –
demandam respostas que discriminem conceitos. Sendo assim, elas demandam uma discriminação,
ou de conceitos necessários, ou de conceitos contingentes. De acordo com o que vimos acima, à
atividade científica cabe fornecer respostas apenas a perguntas que demandam uma discriminação
de conceitos contingentes. Logo, o que cabe à atividade filosófica só pode ser o fornecimento de
respostas a perguntas que demandem uma discriminação de conceitos necessários.
Ora, o que as considerações acima nos permitem provar é que há uma diferença ineliminável
na tipologia dos conceitos exigidos pelas perguntas filosóficas e científicas. As mesmas
considerações permitem melhorarmos a exatidão das sentenças com as quais queremos expressar os
problemas que são próprios das atividades da filosofia e da ciência. Ou seja, permitem reformarmos
as formas originais PF e PC para as seguintes:

32
É importante notar que o fato de um conceito ser contingente não implica que sua atribuição seja
irrelevante, fugaz ou singular. Com efeito, o que defendemos é que o tipo de conceito contingente que cabe à
atividade científica determinar é o que se expressa nos chamados “princípios naturais” ou “leis naturais”. Os
conceitos expressos em tais princípios ou leis são contingentes, sim, mas, sem exceção atributiva
relativamente ao mundo real e, portanto, o tipo de verdade que expressam é aquela que não tem exceção no
mundo real.
33
E se “Φ” representasse conceitos cuja análise revelasse conceitos cuja atribuição a um mesmo item só seria
possível se o item sofresse alguma modificação relevante? Fica claro que, nesse caso, a análise de tais
conceitos, os quais poderíamos designar de “inconsistentes” ou “autoconflitantes”, teria de expressar
sentenças inconsistentes. Pensemos, por exemplo, nos conceitos de quadrado-redondo, de sujeito mais alto
que si mesmo, de terceira metade de uma pizza, de duas coisas sendo apêndices uma da outra, de
autodevorar-se, autocriar-se, autocausar-se etc. Em suma, a análise desses conceitos têm de ter uma análise
que expresse a razão de não ser possível atribuir cada um deles a um mesmo item sem que tal item sofresse
alguma modificação relevante, fato que mostra a razão por que a análise correta de tais conceitos há de
revelar sentenças inconsistentes. Mas, como ficariam as coisas se tais conceitos figurassem numa pergunta
científica? Trataremos dessa questão no Apêndice.
PF1: O que é um Φ necessariamente?
PC1: O que é um Φ contingentemente e segundo o que percebemos?

Se PF1 e PC1 melhoram as formas sentenciais propostas inicialmente para exibir as


perguntas próprias das atividades filosófica e científica, então avançamos mais um passo em direção
às metas que fixamos atingir neste ensaio. Mas, a despeito desse avanço, nós ainda não
conseguimos mostrar que as atividades filosófica e científica não podem nem mesmo contribuir
adequadamente para a resolução dos problemas de uma e de outra. Que nós ainda não o fizemos,
pode ser comprovado a partir do exame de mais uma objeção contra as metas do ensaio.
A nova objeção pode ser expressa por meio do seguinte argumento: suponhamos que vemos
algo a que atribuímos ser um Φ. Ora, se um dado conceito, Ψ, é necessário relativamente a Φ, então,
quando atribuímos Φ àquele item, nós de algum modo34 também lhe atribuímos automaticamente o
conceito Ψ. Em outras palavras, se atribuímos Φ numa situação perceptual, então todos os conceitos
relevantes para algo ser um Φ terão sido atribuídos. Nesse caso, um objetor poderia alegar que,
tendo em vista o uso de métodos que incluem percepção sensorial por parte do agente científico, tal
agente dispõe de ao menos um modo por meio do qual ele poderia contribuir para a produção de
uma resposta correta a perguntas filosóficas. Alega ainda o objetor que, depois da execução dos
métodos próprios da atividade científica, um cientista poderia filtrar quais são os conceitos
necessários em relação ao conceito Φ os quais foram atribuídos no interior da execução do método
científico correspondente. Isso posto, sentencia o objetor, bastaria ao cientista informar ao filósofo
que conceitos foram aqueles e, desse modo, teríamos a ocorrência de uma contribuição da atividade
científica à atividade filosófica. Em outras palavras, o objetor está levantando a seguinte questão: se
é verdade que a metodologia científica emprega procedimentos perceptuais no curso de sua
atividade e é verdade que ao atribuirmos sob percepção o conceito Φ, nós de algum modo
atribuímos automaticamente todos os conceitos necessários em relação a Φ, então por que um
cientista não poderia filtrar os conceitos necessários atribuídos em tais ocorrências perceptuais e, ao
dizê-los ao filósofo, contribuir para com a sua atividade?
Bem, temos que conceder que o ponto do objetor soa razoável. Por essa razão, ficamos
obrigados a abrir uma nova frente de discussão. Nela, tentaremos mostrar, de uma vez por todas,
que as atividades filosófica e científica não podem sequer contribuir para a resolução dos problemas
alheios, e por razões puramente metodológicas. A ideia central é a de que os métodos próprios a
cada uma das atividades em questão não podem ser usados para obter, de modo apropriado, uma
resposta verdadeira em relação às perguntas alheias.

Os métodos científicos e filosóficos e sua suposta capacidade de resolverem os problemas


alheios

A objeção discutida acima concluiu, basicamente, que, se os cientistas simplesmente


executarem os métodos que são próprios à respectiva atividade, eles hão de obter resultados que
permitem decidir adequadamente sobre conceitos necessários em relação a outro. Para tornar ainda
mais claro o ponto de sua objeção, o nosso objetor hipotético poderia oferecer o seguinte arrazoado:
vamos considerar dois métodos disponíveis a agentes científicos. O primeiro tem sido chamado de

34
Vale observar que, se Ψ é um conceito necessário em relação ao conceito Φ, então, ao atribuirmos Φ,
atribuímos automaticamente o conceito Ψ. Isso quer dizer que, se a nossa atribuição de Φ se deu numa
situação perceptual, então a atribuição de Ψ também se deu naquela situação perceptual. No entanto, embora
a atribuição de Ψ também se tenha dado naquela situação perceptual, isso não significa dizer que a atribuição
tenha que ter sido veiculada em um procedimento perceptual. Por exemplo, se, para ser um sapo, fosse
necessário que algo tivesse um coração e víssemos algo a que atribuíssemos ser um sapo, nada impediria que
a atribuição do conceito ter um coração se efetuasse apenas presumidamente, e não via percepção. Ou seja, o
atribuidor não teria, nesse caso, que ter percebido algo a que atribuíra ter um coração, mesmo que tal
conceito fosse necessário para que algo fosse um sapo e que, ao atribuir o conceito de sapo, ele também
atribuiria o conceito de ter um coração.
“hipotético-dedutivo” e o segundo de “indutivo”. 35 No método hipotético-dedutivo, os agentes
testam hipóteses com o objetivo de decidir se elas respondem verdadeiramente ou não à pergunta
científica que eles perseguem responder.36 Para fazê-lo, eles precisam montar uma amostra de
indivíduos/fatos a fim de determinar, por meio de atribuições perceptuais, se os indivíduos da
respectiva amostra recebem ou não a atribuição do conceito afirmado, ou negado, pela hipótese em
teste.37 Por exemplo, vamos supor que um agente científico estivesse testando a hipótese de que
todos os cisnes são brancos (ou, alternativamente, a hipótese de que, se x é um cisne, então x é
branco). Nesse caso, ele teria que reunir um número relevante n de indivíduos os quais recebessem
a atribuição do conceito de cisne, ou de outro conceito relevantemente ligado a ele.38 O teste de uma
hipótese no método hipotético-dedutivo consiste, então, em determinar se os indivíduos que
constituem a amostra recebem ou não a atribuição do conceito expresso na hipótese ou de algum
35
Outros métodos fazem, ou poderiam fazer, parte do arsenal metodológico dos agentes científicos para
efeito de decidir sobre a verdade/falsidade de respostas endereçadas às perguntas científicas que perseguem
responder. O método abdutivo poderia ser invocado aqui como exemplo (ver no Apêndice um breve
comentário sobre tal método). Mas, tal como veremos adoante em relação aos métodos hipotético-dedutivo e
indutivo, o fato de haver outros métodos à disposição dos agentes científicos não tem importância ao ponto
que perseguimos acima. É que, no fim das contas, qualquer que seja o método a ser empregado por agentes
científicos para resolver problemas de ordem científica, ele terá de conter ao menos um procedimento
perceptual como elemento de decisão acerca da verdade/falsidade das respectivas propostas de solução.
36
Popper (Conhecimento Objetivo) e Feyerabend (Against Method) parecem sugerir que a hipótese não
deveria ser objeto de crença por parte do usuário do método hipotético-dedutivo. Mas, tal como vemos, para
que o agente assegure alguma racionalidade à ação de testar uma hipótese, ele tem de alguma maneira que
acreditar na proposição-objeto da hipótese. Para uma breve discussão desse ponto, veja o Apêndice.
37
Algumas observações importantes sobre o conceito de amostra. Para ser metodologicamente correta, a
amostra deve ser quantitativa e qualitativamente adequada. Ela pode ser constituída tanto por indivíduos,
quanto por fatos, que são aquelas situações em que indivíduos se relacionam com outro(s) indivíduo(s).
Neste ensaio, por uma questão de economia, vamos falar apenas de amostras de indivíduos, devendo as
conclusões extraídas para tal caso serem estendidas para o outro. Segundo, a quantidade de indivíduos n da
amostra deve ser relevante, mas a quantidade relevante n de indivíduos de uma amostra é fluida, admite
diferentes graus, a depender do contexto. Terceiro, a seleção dos indivíduos integrantes da amostra não pode
ser viciada por um direcionamento preconceituoso, ou seja, por um direcionamento quê: (1) selecione os
indivíduos da amostra em situações acerca das quais já se acredita de antemão que produzirá o resultado
desejado pelo agente e (2) evite selecioná-los em situações acerca das quais já se acredita de antemão que
produzirá o resultado inverso ao desejado por ele. É por essa razão que a seleção aleatória da amostra é
metodologicamente superior. Quarto, no caso do método hipotético-dedutivo é a hipótese que determina a
classe de indivíduos que são prima facie pertencentes à amostra. Vamos supor que a hipótese em jogo fosse a
de que seres humanos se comportam de modo inerentemente autodestrutivo. Nesse caso, a amostra em
relação à qual a hipótese deveria ser testada teria de ser constituída, prima facie, apenas por seres humanos.
Ela poderia ser constituída ultima facie por ratos, por exemplo? Sim, mas apenas se, junto com a hipótese em
questão, o agente científico também sustentasse a convicção de que há entre o conceito de homem e o
conceito de rato uma analogia relevante no que tange ao conceito em jogo naquela hipótese (isto é, o
conceito de ser inerentemente autodestrutivo). Na sequência do texto, falaremos um pouco mais sobre outras
relações importantes entre a hipótese, a amostra e demais crenças do agente. No Apêndice, retomaremos o
assunto junto com outros tópicos mencionados aqui.
38
Tal como já indicamos, a amostra não tem que ser constituída exclusivamente por cisnes atribuídos como
tal em circunstâncias perceptuais. Isso por que a amostra pode ser do tipo direta, aquela que é constituída
apenas por indivíduos que receberam a atribuição do conceito Φ, ou indireta, aquela que não precisa ser
constituída exclusivamente por indivíduos que receberam a atribuição do conceito Φ sob circunstâncias
perceptuais. Assim, os agentes científicos do caso em discussão poderiam – em consideração da hipótese de
que, se x é um cisne, x é branco – testar algumas hipóteses, que são deriváveis, dedutiva ou indutivamente,
de proposições nas quais eles já acreditam com convicção. Nesse sentido, se eles creem que determinados
efeitos decorrem do fato de cisnes serem brancos, eles poderiam testar amostras que não seriam de Φ's, mas
de indivíduos/fatos ligados àquelas crenças. A propósito, alguns desses casos expressam o elemento
propriamente dedutivo do chamado “método hipotético-dedutivo” (embora a derivação em jogo também
possa ser também indutiva). Tal propriedade do método também se expressaria nas situações em que a
hipótese fosse desconfirmada, pois, em tais situações, haveria a incidência de um raciocínio dedutivo, que se
conceito relevantemente ligado a ele. No exemplo que demos acima, o teste da hipótese consistiria
em determinar se os indivíduos, que receberam a atribuição do conceito de cisne, também recebem
a atribuição do conceito de branco. A hipótese seria confirmada em algum grau, suficiente ou não,
pela amostra, caso atribuíssemos branco a todos os indivíduos da amostra e refutada, caso
atribuíssemos vermelho, roxo, azul etc. a qualquer um daqueles indivíduos. Ocorre que, à luz dessas
considerações em torno do método hipotético-dedutivo, o nosso objetor poderia explorar, contra as
pretensões deste ensaio, o seguinte argumento: ora, se um agente científico consegue montar uma
amostra de cisnes para testar, à moda do método hipotético-dedutivo, a hipótese de que todos os
cisnes são brancos, então todos os conceitos necessários para que algo seja um cisne serão
atribuídos já por ocasião da seleção da amostra. Se não fosse assim, não teríamos um conjunto de
coisas das quais diríamos serem cisnes. Sendo assim, cientistas podem registrar os conceitos usados
nas atribuições necessárias feitas aos indivíduos da amostra e comunicar o fato ao filósofo,
argumenta o nosso objetor. Com esse exemplo o objetor concluiria que a atividade científica é
capaz, ao menos, de contribuir para com a atividade filosófica.
Mas, o nosso objetor poderia ainda não estar satisfeito. Ele poderia querer alegar que a
atividade científica seria capaz de prestar contribuição à atividade filosófica, mesmo que os agentes
científicos fizessem uso do método indutivo.39 Afinal de contas, também nesse método seria
necessária a seleção de uma amostra. Para executá-lo, é preciso, grosso modo, fazer o seguinte,
considerando o caso dos cisnes novamente: organizar uma amostra de indivíduos aos quais
atribuímos serem cisnes e, após atribuirmos, sob percepção, o conceito de branco a certo número de
indivíduos da amostra, projetamos aquele conceito de maneira proporcional aos indivíduos que não
pertencem à amostra.40 Ora, partindo de tais considerações, o nosso objetor poderia argumentar
agora o seguinte: assim como no caso do método hipotético-dedutivo, o método indutivo inclui
entre seus procedimentos a seleção de uma amostra de indivíduos aos quais atribuímos um
determinado conceito, digamos Φ. Nesse caso, todos os conceitos que são necessários para que algo
seja um Φ já são atribuídos no processo de formação da amostra. Sendo assim, nosso objetor
poderia repetir o bordão de que a atividade científica é, pelo menos, capaz de contribuir para com a
atividade filosófica, uma vez que cientistas poderiam comunicar ao filósofo que conceitos são
usados nas atribuições necessárias aos indivíduos da amostra.
Ora, tal como podemos ver, a atual objeção não apela mais para pretensas convergências de
sentido entre problemas filosóficos e científicos. Tampouco apela para a tese de que a decisão sobre
a verdade/falsidade de qualquer afirmação dependeria da execução de algum procedimento
perceptual. A objeção acima apela para a tese de que os métodos científicos são superfuncionais, ou
seja, que eles são capazes de resolver não apenas os problemas do seu próprio domínio, mas
também problemas alheios, nesse caso, os filosóficos. Essa tese não é propriamente uma novidade
aqui. De um jeito ou de outro, ela foi presumida por algumas das objeções que já havíamos
discutido antes. A novidade agora é o argumento invocado para sustentá-la. Desse modo, se
quisermos mostrar o fracasso da objeção em jogo, temos que mostrar de maneira definitiva que a
tese da superfuncionalidade dos métodos científicos é falsa, ao menos, no que diz respeito a sua
aplicação para a resolução apropriada de problemas filosóficos. Para tanto, ofereceremos na
sequência alguns argumentos com o objetivo de mostrar que os métodos científicos não permitem
expressa na mente do agente, cuja forma designamos de “modus tollens”. Para mais detalhes sobre o assunto,
confira o Apêndice.
39
É importante não confundirmos o método indutivo com a inferência, ou raciocínio, indutivo. A inferência
ou raciocínio indutivo constitui apenas um dos procedimentos que compõem o método indutivo. Afinal de
contas, montar uma amostra, registrar as informações pertinentes, organizá-las etc. não são procedimentos
pertencentes à inferência indutiva. A inferência indutiva é a passagem causal de uma crença para outra em
que o argumento inscrito ou representado em tais crenças têm uma forma indutiva.
40
Hume (Investigação sobre o Entendimento Humano) argumenta contra a possibilidade de que crenças
formadas por meio da inferência indutiva possam estar justificadas ou serem racionais. Embora ele não
diferencie método indutivo de inferência/raciocínio indutivo, pensamos que o argumento de Hume se aplique
também às crenças formadas no decorrer ou no final da aplicação do método indutivo. Confira no Apêndice
algumas observações adicionais a respeito do assunto.
decidirmos se um determinado conceito, digamos Ψ, é ou não necessário relativamente ao conceito
Φ.

O primeiro argumento para mostrar que métodos científicos não são capazes de decidir
apropriadamente se um determinado conceito, Ψ, é ou não necessário relativamente ao conceito Φ é
o seguinte: suponhamos que um agente científico qualquer execute o método científico M a fim de
obter uma resposta verdadeira para uma dada pergunta científica, qualquer que seja a sua
presumível formulação, contanto que ela preserve a exigência de conformidade perceptual que se
expressa na fórmula “segundo o que percebemos sensorialmente”. O ponto agora é o seguinte:
mesmo que M seja maximamente eficiente no fornecimento da resposta correta à pergunta científica
em jogo, o máximo que M pode fazer – em relação a uma suposta contribuição à atividade filosófica
– é fornecer uma resposta que veicule um conceito que seria atribuído sem exceção nas situações
atributivas perceptuais em relação ao mundo real.41 Ocorre que, se esse é o máximo que um método
científico maximamente eficiente em resolver problemas científicos pode fazer, então a atividade
científica está longe de oferecer qualquer contribuição à resolução de problemas filosóficos. Afinal,
perguntas filosóficas exigem respostas que expressem os conceitos necessários, isto é, os conceitos
que seriam atribuídos em todas as situações atributivas perceptuais possíveis (ou seja, em todas as
situações atributivas perceptuais do mundo real e também de mundos meramente
possíveis/concebíveis). Para compreendermos melhor o ponto, vamos considerar uma hipótese.
Vamos supor que, através da execução de um método que seja maximamente eficiente em decidir a
verdade de afirmações por meio de algum procedimento perceptual, o cientista decida pela verdade
da afirmação de que, se uma coisa é um sapo, então ela é marrom. Vamos supor que seja mesmo
assim, que, no mundo onde tal cientista e seus sapos habitam, os sapos sempre foram, são e serão
marrons. Nesse caso, alguém poderia se sentir inspirado a crer que o cientista teria descoberto um
princípio necessário, e, portanto, sem exceção possível, acerca da coloração de sapos com base em
sua crença de que os sapos sempre foram, são e serão marrons. Mas, tal crença é irrazoável, porque
é inferencialmente inadequada, além de ser falsa. Ela é inferencialmente inadequada, porque a
crença de que todos os sapos foram, são e serão marrons e que assim são percebidos não permite
que se creia e, num sentido relevante, que se decida adequadamente que todos os sapos possíveis
são marrons e que assim o seriam percebidos, isso tudo a despeito de ser eventualmente possível
que sapos fossem necessariamente marrons. Ocorre que a crença também é falsa e sua falsidade não
poderia ser confirmada via percepção. Ela é falsa, pois, se imaginássemos algo a que atribuíssemos
ser um sapo marrom, o qual, pouco depois, mergulhasse num balde de tinta verde e emergisse de lá
assim, não deixaríamos de atribuir o conceito de sapo àquele item. Ora, isso fornece uma prova de
que não necessariamente, se uma coisa é um sapo, ela é verde. E isso é assim, mesmo que também
seja verdade que, segundo o que percebemos sensorial e veridicamente, se uma coisa é um sapo, ela
é marrom (e, portanto, não-verde). Em outras palavras, mesmo que o agente científico de nossa
hipótese tenha executado um método maximamente eficiente em obter uma resposta que seja
segundo o que percebemos sensorial e veridicamente para uma determinada pergunta, o método
apresenta uma clara limitação, a qual pode ser estendida para qualquer outro método científico.
Afinal, a despeito de o conceito de marrom ser atribuído a itens aos quais atribuiríamos o conceito
de sapo, e sem exceção atributiva em circunstâncias perceptuais verídicas relativas ao mundo real
(presente, passado e futuro), o método científico em questão não é, tal como vimos acima, capaz de
decidir se um dado conceito é necessário – mesmo que ele de fato o seja – ou se ele é apenas sem
41
É importante notar que a atribuição de um conceito numa situação perceptual não é incompatível com o
fato de tal percepção ser inverídica, que é a percepção em que não há nada no mundo real que a ela
corresponda (caso, por exemplo, das alucinações). Nesse sentido, se um indivíduo percebe algo a que atribui
o conceito de mesa, então nada mudaria em relação à necessidade ou contingência dos conceitos atribuídos
nessa situação se a única mudança no caso fosse a de que não houvesse nada no mundo real que
correspondesse àquela percepção. No entanto, vale lembrar que assumimos na hipótese acima que o método
M é científico e fornece resposta correta à pergunta científica em questão. Nesse caso, M tem de conter
algum procedimento perceptual crucial. Ora, se M fornece resposta correta à pergunta científica em jogo,
então as percepções procedidas durante a execução de M não podem ser inverídicas.
exceção atributiva perceptual no mundo real. Dito de outro modo, o máximo que métodos
científicos podem fazer, quando maximamente eficientes, é decidir que conceitos são ou não
atribuíveis sem exceção perceptual no mundo real. Mas, mesmo que um dado conceito, Ψ, seja
atribuível em todas as situações perceptuais verídicas do mundo real (presente, passado e futuro),
não se pode deduzir adequadamente disso a conclusão de que Ψ é um conceito necessário em
relação ao conceito Φ, mesmo que ele de fato o seja. Assim, a exigência de que uma candidata à
resposta verdadeira a uma pergunta científica seja perceptualmente homologada, exigência essa que
está umbilicalmente ligada à atividade científica, acarreta uma limitação em qualquer método que
possa pertencer à metodologia científica, a saber: o mais eficiente método científico possível não
permite decidirmos se um dado conceito não tem exceção atributiva perceptual possível ou não tem
exceção atributiva perceptual apenas real.
O segundo argumento é o seguinte: vamos imaginar dois cientistas habitantes de dois
diferentes mundos possíveis (por exemplo, o mundo que acreditamos ser o real e o mundo de Alice,
o mundo do País das Maravilhas). Vamos imaginar que os dois cientistas tenham como meta
responder corretamente à mesma pergunta científica (qualquer que seja a sua correta formulação,
contanto que ela preserve as exigências de captura dos conceitos contingentes e de conformidade
perceptual, conforme exige a expressão “segundo o que percebemos sensorialmente”). Vamos supor
que, mediante a execução de um método científico maximamente eficiente em relação à meta
própria dos agentes intelectuais em questão, eles obtenham respostas corretas àquela pergunta,
evidentemente, em relação aos mundos em que cada um deles se encontra. Vamos supor, em
adição, que suas respostas sejam incompatíveis de ponto de vista da verdade, ou seja: elas não são
verdadeiras em relação aos dois mundos ao mesmo tempo (tal conjectura é perfeitamente
consistente, uma vez que assumimos que os cientistas estão em mundos possíveis diferentes). Sendo
assim, devemos concluir que, quando respondemos correta e apropriadamente a uma pergunta
científica – qualquer que seja a sua correta formulação, contanto que preserve a exigência de
conformidade perceptual veiculada na expressão “segundo o que percebemos sensorialmente” – nós
respondemos falsamente à pergunta filosófica correlata (que defendemos aqui serem perguntas da
forma de PF1). Afinal de contas, é falso que os conceitos expressos nas respostas dadas pelos dois
cientistas da nossa hipótese sejam ambos necessários em relação ao conceito Φ. Para ilustrarmos o
ponto, vamos imaginar, em relação a um daqueles mundos possíveis, que, através da execução de
um método maximamente eficiente em decidir a verdade de afirmações por meio de algum
procedimento perceptual o cientista, que habita no respectivo mundo, decida pela verdade da
afirmação de que, se uma coisa é um sapo, então ela é marrom. Agora, vamos supor que algo
análogo, porém relevantemente diferente, ocorra no outro mundo. Ou seja, que, através da execução
de um método maximamente eficiente em decidir a verdade de afirmações por meio de algum
procedimento perceptual o cientista, habitante desse outro mundo, decida pela verdade da afirmação
de que, se uma coisa é um sapo, então ela é cor-de-rosa. Ora, é perfeitamente possível que, em
relação a cada um dos mundos possíveis em questão, os sapos sejam sempre marrons, num caso, e
sempre cor-de-rosa no outro. Cada um dos cientistas teria descoberto/determinado/etc. princípios
naturais acerca da coloração de sapos, cada um em relação ao seu respectivo mundo, e teriam feito
o máximo que a atividade científica perfeita poderia fazer em relação a essa propriedade “sapídica”.
Mas, sendo assim, nem um nem outro daqueles conceitos é necessário em relação ao conceito de
sapo (se fossem, teria de ser verdadeiro dizer que sapos são totalmente marrons e cor-de-rosa, o que
é absolutamente falso). Em suma, dado que é possível que dois cientistas que persigam responder a
uma mesma pergunta científica e que operem em dois mundos possíveis diferentes obtenham
respostas que sejam inconsistentes entre si, apesar de executarem de modo impecável qualquer
método pertencente às suas atividades intelectuais e, mais do que isso, que suas respostas sejam
corretas em relação aos respectivos mundos, podemos concluir que os métodos científicos não
permitem decidirmos se um determinado conceito, Ψ, é ou não necessário relativamente ao conceito
Φ.
De qualquer modo, alguém ainda poderia estar em dúvida sobre se não seria possível que
um cientista produzisse uma afirmação que, de algum modo, veiculasse um conceito que fosse de
fato necessário em relação a outro e, mais importante ainda, que decidisse que isso é assim. Por
conta disso, parece-nos interessante reapresentarmos alguns dos pontos acima. Tal como já
indicamos, é, sim, possível que um cientista no exercício de algum método científico produza uma
afirmação que, de algum modo, veicule um conceito que de fato seja necessário em relação a outro.
O ponto é que isso não chega nem perto de mostrar que a atividade científica disporia de métodos
capazes de decidir de modo apropriado que tais conteúdos seriam aproveitáveis na resolução de
problemas filosóficos, ainda que eles fossem realmente aproveitáveis pela respectiva atividade.
Para vê-lo, vamos conceber que certo cientista persiga responder corretamente à pergunta científica
sobre montanhas (qualquer que seja a sua correta formulação, contanto que preserve a exigência de
conformidade perceptual veiculada na expressão “segundo o que percebemos sensorialmente”).
Suponhamos que ele faça uso do método hipotético-dedutivo e que aposte na hipótese de que, se x é
uma montanha, então x é alta. Vamos supor que o conceito de ser alta seja de fato um conceito
necessário em relação ao conceito de montanha (embora precisemos apenas da hipótese de que isso
seja verdade, nós apostamos que de fato o seja). Ora, é claro que, se o conceito de ser algo alto é
necessário ao conceito de montanha, então não haveria ocorrência perceptual possível em que, ao
percebermos um item ao qual atribuíssemos o conceito de montanha, não lhe atribuíssemos também
o conceito de ser alta. Isso, porém, não mostra que a metodologia científica seria superfuncional.
Afinal de contas, é óbvio que se o conceito de ser alta é necessário em relação ao conceito de
montanha, então não haveria ocorrência perceptual possível – o que inclui as reais – em que, ao
percebermos um item ao qual atribuíssemos o conceito de montanha, não atribuiríamos também o
conceito de ser alta ao mesmo item. Ocorre que, tal como já vimos, o fato em questão não fornece
prova de que aquela resposta deva ser considerada verdadeira para ambas as perguntas – a filosófica
e a científica – uma vez que isso seria um contrassenso. Afinal de contas, se duas sentenças
interrogativas têm as mesmas afirmações como resposta verdadeira, então as interrogações em jogo
significam as mesmas proposições. Se uma mesma resposta satisfizesse tanto perguntas filosóficas,
quanto científicas, elas seriam as mesmas perguntas, o que constituiria exatamente o contrassenso
do caso. O mais importante aqui é que o método usado pelo nosso cientista de montanhas é incapaz
de decidir que o conceito de ser alta é necessário em relação ao conceito de ser montanha, mesmo
que ele realmente o seja. Afinal de contas, o máximo que o método usado pelo cientista poderia
decidir é que um dado conceito, Ψ, não tem exceção atributiva perceptual em relação às situações
em que também se atribui o conceito Φ perceptualmente.
Mas, o caso acima apresenta uma tragédia adicional. Afinal de contas, se estivermos certos
em nossa caracterização dos problemas científicos, ou seja, que eles se subordinam à forma de PC1,
então a proposta do nosso cientista de montanhas seria, simplesmente, falsa. E seria falsa como
tentativa de solução a um problema de ordem da ciência, a despeito de ser perceptualmente
confirmável em qualquer situação perceptual verídica possível. Assim, se o exercício da atividade
científica produzisse um conteúdo que, de algum modo, fosse aproveitável à resolução de
problemas filosóficos, então o agente científico, além de não ser capaz, enquanto agente científico,
de decidir apropriadamente que aquele conteúdo seria aproveitável pelo agente filosófico, teria
produzido uma proposta falsa em resposta ao problema científico que ele pretendera resolver.
Em resumo, os argumentos acima mostram o seguinte: (1º) a metodologia científica pode
decidir, no máximo, que um dado conceito, Ψ, não tem exceção atributiva no mundo real em
relação ao conceito Φ. Mas, é justamente por isso que o arsenal metodológico da atividade
científica não é capaz de decidir apropriadamente, adequadamente que Ψ é necessário em relação
Φ, pois não se pode deduzir que Ψ é necessário em relação Φ, apenas com base na verdade de quê:
toda vez que se atribui Φ a algo numa situação perceptual verídica, atribuímos também Ψ ao mesmo
item; (2º) a metodologia científica poderia, considerando dois diferentes mundos possíveis, decidir
que duas afirmações seriam corretas como respostas às perguntas científicas que fossem relativas a
cada um daqueles mundos, mesmo que elas fossem incompatíveis. Ora, a possibilidade de que duas
respostas incompatíveis possam responder corretamente duas perguntas científicas mostra que os
conceitos veiculados naquelas respostas não poderiam figurar numa resposta verdadeira à pergunta
filosófica correlata, cuja forma é “O que é um Φ necessariamente?”; (3º) se um determinado método
científico, de alguma maneira, produzisse uma afirmação veiculando um conceito necessário em
relação ao conceito Φ, então duas tragédias teriam acontecido em relação ao exercício daquele
método: ele teria fracassado em resolver o problema científico pertinente e sua execução não
permitiria decidir que o conceito veiculado naquela afirmação é necessário em relação ao conceito
Φ.

Por fim, apresentaremos um argumento que não constitui propriamente uma prova da
incapacidade de métodos científicos decidirem/descobrirem se um dado conceito é, ou não,
necessário em relação a outro. O argumento terá, contudo, o mérito de mostrar que é inusual ou
atípico que a atividade científica lide com decidir/descobrir que um dado conceito é, ou não,
necessário em relação a outro, a despeito de ser possível que a atividade científica veicule uma
afirmação que expresse de fato um conceito necessário em relação a outro. Para tanto, vamos
retomar a hipótese de que o conceito de ser alta seja necessário ao conceito de montanha. Embora já
tenhamos visto que é possível a um cientista produzir uma afirmação que expresse um conceito
necessário em relação a outro, é inusual, atípico vermos um cientista, que já tivesse selecionado sua
respectiva amostra, tentando confirmar sua suspeita de que, se x é uma montanha, x é alta ou, então,
em função de ter observado todos os indivíduos daquela amostra, vir a crer que, se x é uma
montanha, x é alta. Isso por que, se é verdade que o conceito de ser alta é necessário ao conceito de
montanha, então esse conceito já teria sido atribuído aos itens da amostra justamente para se poder
formar a amostra devida. Em outras palavras, seria estranho que cientistas montassem amostras para
determinar que seus itens são atribuídos por um conceito que, caso fosse necessário ao conceito que
classifica os itens da amostra, já teria sido atribuído por ocasião da própria montagem da amostra e
não em uma investigação empírica póstuma. Outro exemplo. Presumivelmente, o condicional a
seguir expressa uma proposta verdadeira de análise conceitual acerca do conceito de sapo: se x é um
sapo, então as partes que compõem x estão combinadas de modo “sapídico”.42 Ora, se o conceito
expresso no consequente desse condicional é de fato necessário em relação ao conceito de sapo,
então, ao selecionar os sapos que constituiriam a amostra, um cientista já teria atribuído aquele
conceito. Sendo assim, a amostra perderia completamente o propósito de uso na (des)confirmação
de uma hipótese ou de ser usada para se fazer um levantamento de informações que permitisse
descobrir uma resposta por meio da correlação de tais informações. Em suma, embora deva ser
óbvio que conteúdos aproveitáveis por filósofos possam ser expressos no exercício da atividade
científica, tal fato constitui, em rigor, um despropósito em relação ao emprego da amostra e, assim,
deve ser tratado como uma anomalia metodológica.

Bem, as considerações feitas acima nos permitiram concluir que nenhum método científico é
capaz de colaborar adequadamente para a resolução de problemas filosóficos. Mas, tal conclusão
não se estende automaticamente aos demais métodos a posteriori.43 Por essa razão, parece-nos
imprescindível fazermos algumas considerações em torno da questão sobre se algum método a
posteriori poderia ser usado para resolver ou colaborar na resolução de problemas filosóficos. Em
42
Duas observações sobre o condicional acima merecem registro. A primeira é a de que seu consequente não
é redundante nem circular em relação ao seu antecedente. Afinal de contas, o termo “sapídico” não significa
o mesmo conceito que é significado pelo termo “sapo”. A segunda é a de que o condicional em jogo é
verdadeiro não apenas sobre o modo de composição das partes de um sapo, mas também em relação a outros
conceitos. Assim, se desmantelarmos um muro, que é composto por tijolos do mesmo formato, dimensões,
cor, textura etc. e, depois, resolvemos remontá-lo, poderíamos terminar construindo uma churrasqueira, em
vez de um muro, caso o modo de combinação/composição/arranjo das partes não fosse do tipo “murídico”.
43
Métodos podem ser divididos em a priori, que são aqueles cuja capacidade de decisão acerca da
verdade/falsidade de uma determinada afirmação não depende de nenhum procedimento perceptual, e a
posteriori, que são aqueles que simplesmente dependem crucialmente de algum procedimento perceptual
para aquela decisão. Desse modo, a metodologia científica é a posteriori. Porém, nem todo método a
posteriori pertence ao arsenal metodológico da atividade científica.
rigor, queremos examinar a seguinte sequência de procedimentos: (1) perceber algo a que
atribuímos Φ; (2) realizar uma série de modificações no item percebido, todas controladas
observacionalmente, até deixarmos de lhe atribuir o conceito Φ; (3) registrar os conceitos que
atribuímos, sob percepção, a cada modificação efetuada naquele item e cuja atribuição faz com que
cessemos de atribuir o conceito Φ.44
A primeira observação envolvendo o método acima é apenas o registro de que, mesmo que
ele fosse capaz de resolver ou colaborar adequadamente para a resolução de problemas filosóficos,
o fato não afetaria as pretensões do ensaio ou os resultados já alcançados antes. Afinal de contas, o
método em questão não é, estritamente falando, um método científico. A segunda observação é a de
que o método em questão enfrenta uma limitação óbvia, mas crucial, no que diz respeito à decisão
sobre a verdade/falsidade de afirmações em que figurassem conceitos ficcionais. O ponto é que, se
“Φ” representasse um conceito ficcional, nós não poderíamos operar quaisquer modificações
observacionalmente controláveis em nenhum de seus exemplares, uma vez que não haveria
quaisquer Φ's para serem atribuídos perceptualmente como tais. Mas, mesmo que “Φ” representasse
conceitos não-ficcionais, o método acima poderia enfrentar dificuldades de aplicação. Uma delas é
a seguinte: dado que as modificações recomendadas pelo método poderiam ser irrelevantes do
ponto de vista da obtenção de uma resposta verdadeira e dado que elas poderiam ser feitas em
número e tempo indeterminados, os filósofos poderiam ser levados ao tédio sem conseguir qualquer
resultado relevante ao aplicar o método em jogo. Mas, obstáculos ainda mais prosaicos poderiam
dificultar, talvez até mesmo inviabilizar, a execução completa daquele modo. Para vê-lo, vamos
supor que o problema filosófico que estivesse sob discussão fosse “O que é uma zebra
necessariamente?”. Vamos supor também que víssemos algo a que atribuíssemos o conceito em
questão. Agora, vamos imaginar que, morrendo de medo das modificações a que seria submetida, a
zebra disparasse em fuga. A dificuldade técnica do caso é óbvia: dependendo do ânimo da zebrinha,
talvez jamaia a capturássemos. Outro caso também pode auxiliar a ilustração, com a diferença de
que, agora, sairíamos para testar a hipótese de que zebras têm necessariamente listras negras. Ora,
se para testar tal hipótese resolvêssemos cobrir as faixas negras da nossa zebrinha com tinta de
alguma outra cor e uma greve mundial nas fábricas de tinta nos deixasse sem uma gota, nós
simplesmente não conseguiríamos proceder segundo o método sob discussão e ficaríamos
novamente sem poder decidir o caso. De qualquer maneira, mesmo que por hipótese, e apenas por
hipótese, algum método a posteriori fosse tão eficiente na consecução das metas filosóficas quanto
um método a priori, os últimos, tal como vimos acima, são mais acessíveis/disponíveis ao agente do
que os primeiros.
As considerações acima nos permitem, porém, conclusões bem mais fortes. Elas nos
permitem mostrar que métodos a priori são, em absoluto, mais eficientes para se atingir as metas
filosóficas do que os métodos a posteriori. Afinal, mesmo que métodos a posteriori fossem, por
hipótese, tão acessíveis/disponíveis quanto os métodos a priori, ainda assim os primeiros
continuariam encontrando um limite intransponível em sua aplicação ao tratamento de problemas
filosóficos envolvendo conceitos ficcionais. E não importa aqui o fato de que alguém poderia
considerar a análise de conceitos ficcionais intelectualmente desprezível. Isso não muda o fato de
que apenas métodos apriorísticos são capazes de obter a análise de conceitos ficcionais (sem
obstáculo para). Assim, se somos agentes filosóficos, MF é nossa meta própria. Isso implica que
pretendemos responder correta e apropriadamente às perguntas filosóficas. Nesse caso, temos que
proceder com maior eficiência para obter-lhes resposta. Sendo assim, devemos abdicar
completamente do uso de métodos a posteriori na resolução dos problemas correspondentes, se
quisermos responder perguntas filosóficas de modo apropriado.45 Sendo assim, um agente filosófico

44
Um método alternativo, similar ao hipotético-dedutivo, também poderia ser usado como exemplo na
discussão acima. A diferença entre ele e o método descrito acima seria a adição do procedimento de
formulação de uma hipótese como procedimento inicial do algoritmo. Esse método não será discutido
especificamente acima, mas as conclusões extraídas lá devem ser aplicadas, nós pensamos, a ele também.
45
Aqui, alguém poderia alegar que a racionalidade (da crença, da esperança, da ação etc.) não depende de
que o indivíduo tenha metas em que assume a executar apenas os modos mais eficientes de alcançar àquela
não deve, sob pena de injustificação/irracionalidade das suas crenças filosóficas, executar métodos
a posteriori na tentativa de resolver os problemas respectivos.46, 47

Bem, até aqui temos nos dedicado à refutação da tese de que a atividade científica seja capaz
de contribuir para a resolução de problemas filosóficos. É chegada a hora de fazermos o inverso, ou
seja, de mostrarmos que a atividade filosófica não é sequer capaz de contribuir apropriadamente
para a resolução de problemas científicos.
Para começarmos a provar o ponto, consideremos o seguinte argumento: vamos supor que
um filósofo esteja tentando responder corretamente a uma determinada pergunta filosófica e, para
tanto, proponha a seguinte resposta R: necessariamente, se algo é um Φ, então esse algo é um Ψ.
Em adição, vamos supor que, após a execução de algum procedimento ou método que sejam
próprios à atividade filosófica o filósofo decida que R é falsa. Ora, se o agente em questão consegue
decidir que R é falsa, ele se torna apto a decidir que Ψ é um conceito contingente em relação a Φ.
Sendo assim, a atividade filosófica é capaz de decidir que Ψ é um conceito contingente em relação a
Φ. Ora, uma vez que conceitos contingentes são o tipo de conceito demandado pela pergunta
científica, por que, então, a atividade filosófica não seria capaz de contribuir para a consecução da
tarefa científica? A resposta é a de que, embora a atividade filosófica seja capaz de mostrar que um
dado conceito é contingente em relação a outro, isso está muito distante de constituir uma
contribuição à atividade científica. Para vê-lo, temos que lembrar que, embora a pergunta científica
exija conceitos contingentes em sua resposta, ela não exige quaisquer conceitos contingentes. Ela
demanda apenas aqueles conceitos contingentes relativamente a Φ, os quais sejam conforme o que
percebemos sensorialmente. Muito bem, isso é verdade, mas ainda insuficiente para provarmos que
a atividade filosófica não é apta a prestar nenhum serviço à discussão científica. Afinal de contas,
não é impossível que agentes filosóficos façam uso de métodos a posteriori. Nesse caso, alguém
poderia insistir na ideia de que o filósofo seria capaz de prestar auxílio ao cientista, caso resolvesse
aplicar uma metodologia a posteriori para efeito de decidir se Ψ, além de contingente, também seria

meta. Isso é duvidoso (veja a discussão sobre o ponto no Apêndice). De qualquer modo, é essencial
percebermos que há metas acerca das quais o próprio conteúdo implica a necessidade de que o agente
execute modos que sejam, não apenas eficazes, mas que sejam o mais eficiente possível, isto é, que sejam
infalíveis em relação ao atingimento da respectiva meta.
46
Alguém poderia querer objetar a tese de que a metodologia apriorística é superior na consecução da tarefa
filosófica, tal como segue: suponhamos que, numa circunstância perceptual, atribuíssemos somente os
conceitos necessários para algo ser um Φ. Nesse caso, reclamaria o objetor, métodos a posteriori seriam tão
eficazes quanto métodos a priori na consecução da meta filosófica. Em resposta, diríamos que o objetor está
errado. Primeiro, é falso que a eficácia de métodos a posteriori seja simplesmente igual à eficácia de
métodos a priori. Isso aconteceria apenas se a situação especulada pela hipótese fosse o caso. Segundo, não
nos parece que a situação especulada pela hipótese poderia ser o caso. A tese de que seria possível
atribuirmos numa situação perceptual apenas os conceitos necessários relativamente a Φ soa muito
complicada. Afinal, parece-nos que as atribuições de Φ em situações perceptuais, e até mesmo nas situações
imaginacionais, carregariam ao menos um conceito contingente em relação a Φ. Confira uma ampliação
dessa discussão no Apêndice.
47
Olhando aqui apenas para os casos de conhecimento testemunhal, nós podemos conceder a Kripke
(Naming and Necessity, p. 35) que verdades necessárias podem ser conhecidas a posteriori. Mas, a questão é
que, na discussão, precisamos considerar os diferentes e relevantes tipos de agentes cognoscentes. O ponto é
o seguinte: mesmo que as verdades necessárias, incluindo as filosóficas, possam ser conhecidas a posteriori,
elas só podem ser conhecidas desse modo por agentes não-reflexivos. Com agentes reflexivos as coisas
funcionam diferente, pois, em se tratando de agentes reflexivos, eles têm de assumir como meta a execução
de métodos maximamente eficientes em suas metas de racionalidade. Ora, conforme já assumimos acima, os
agentes filosóficos são necessariamente reflexivos, ou seja: necessariamente, se um indivíduo é um filósofo,
ele assume a meta de resolver algum problema filosófico por meio da execução de modos que sejam os mais
eficientes possíveis para o atingimento das respectivas metas. Portanto, se tais agentes fossem motivados a
crer por algum modo a posteriori de geração de crença em verdades de análise – que são verdades
necessárias, porém não são tautologias – os respectivos filósofos não saberiam as proposições por eles
acreditadas, ainda que elas fossem verdadeiras. Veja no Apêndice uma aplicação dessa discussão.
segundo o que percebemos sensorialmente. Ocorre que é exatamente nesse ponto que a tese da
contribuição mútua desaba. Afinal de contas, para decidirmos se um determinado conceito é
contingente e segundo o que percebemos sensorialmente, no sentido em que temos usado a
respectiva expressão aqui, não bastaria ao filósofo executar um método a posteriori qualquer. Ele
teria que executar métodos que envolvessem alguma amostra, alguma coleção de indivíduos/fatos
em quantidade relevante para alcançar o propósito de decidir a verdade/falsidade de R. Ocorre que,
se isso viesse a acontecer, o agente executaria métodos do arsenal da atividade científica. E se fosse
assim, a atividade executada para decidir a verdade/falsidade da resposta R teria deixado de ser
filosófica e passado a ser científica. Conclusão: se, para resolver ou contribuir para a resolução de
um problema científico um filósofo tem que deixar de executar a atividade filosófica e passar a
executar a atividade científica, então fica provado que a atividade filosófica não é sequer capaz de
contribuir para a resolução de problemas científicos, que era justamente o que queríamos provar.

Por fim, vamos tratar de uma questão que emerge a partir das especulações feitas no
parágrafo anterior. O ponto é: nós continuaríamos atribuindo o conceito de filósofo a um agente que
tivesse assumido a meta de, ao menos, contribuir para a resolução de um problema científico,
propusesse sua contribuição e, depois, passasse a fazer uso de métodos científicos para decidir sobre
sua verdade/falsidade? Não, nós não continuaríamos atribuindo o conceito de filósofo ao sujeito em
questão. Portanto, em algum momento da história, o agente filosófico se converteu em um agente
científico. Nesse caso, gostaríamos de oferecer algumas propostas de análise para alguns dos
conceitos expressos no parágrafo acima. Eles aparecem na seguinte sequência de problemas
filosóficos, em que o termo “necessariamente”, tal como o expressa PF1, deverá ser compreendido
tacitamente: o que é uma proposta científica? O que é uma proposta filosófica? O que é um agente
científico? O que é um agente filosófico?
Para tentarmos responder, mesmo que parcialmente, às perguntas acima, vamos imaginar um
agente filosófico, AF, e um agente científico, AC. O agente AF quer responder corretamente a uma
pergunta filosófica, tal como PF1, enquanto AC quer responder corretamente a uma pergunta
científica, tal como PC1. Agora, vamos imaginar que tais agentes proponham respostas que acabem
sendo corretas em relação a PF1 e PC1, porém de maneira cruzada. Ou seja, a resposta de AF é
correta em relação à PC1, enquanto a resposta de AC é correta em relação à PF1.48 Nessa hora,
alguém poderia raciocinar do seguinte modo: se AF e AC propuseram respostas que são
objetivamente corretas em relação a problemas da forma de PF1 e PC1, não deveríamos mudar a
categoria de suas propostas de resposta, de modo que a proposta de resposta de AF, que era
filosófica, deveria passar a ser científica, e a proposta de resposta de AC, que era científica, deveria
passar a ser filosófica? Nossa resposta é de que não, não deveria haver qualquer mudança na
categoria daquelas propostas de resposta. Afinal de contas, o que as especulações acima mostram é
que, para uma proposta ser filosófica, científica etc., é necessário e, em conjunto suficiente, que um
indivíduo a proponha respectivamente a um problema filosófico, científico, etc. Ou seja, a categoria
à que pertence uma proposta de solução de um problema não depende do seu conteúdo, de sua
verdade ou falsidade, da metodologia empregada para obtê-la como resposta ou do crachá de
identificação profissional do agente, mas, sim, da natureza do problema para o qual o agente a
oferece como solução.49
48
Uma advertência: a hipótese acima de agentes que respondem de modo correto, porém de modo cruzado,
as perguntas de outras atividades intelectuais poderia seduzir alguém a lançar-se num último esforço de
defesa da contribuição mútua entre as atividades filosófica e científica. Tal empreitada seria, contudo, um
tremendo erro. Primeiro, a mera propositura de uma resposta não fornece ao agente a condição de decidi-la
verdadeira/falsa em relação a nenhuma pergunta possível. Segundo, justamente em razão de aquelas
respostas serem corretas de modo cruzado implica que elas não funcionam para os problemas para os quais
foram dirigidas. Ou seja, não é um caso em que uma proposta resolve um problema que é próprio da sua
atividade intelectual e também os alheios.
49
Um ponto de discussão importante a respeito do tópico em jogo se manifesta na hipótese de dois agentes
endereçarem a mesma resposta para dois problemas diferentes. Nesse caso, trata-se de propostas diferentes
ou não? A explicação que demos acima indica que se trata de propostas diferentes, uma vez que são
Resta explicarmos agora, mesmo que incompleta, o que vem a ser um agente filosófico e o
que vem a ser um agente científico. Pergunta: o fato de AF e AC darem uma resposta correta, porém
cruzada, em relação a PF e PC seria suficiente para converter AF num agente científico e AC num
agente filosófico? Novamente, não. Afinal, as pretensões responsivas de AF e AC são essenciais
para a categoria de agente ao qual eles pertencem. Ou seja, o tipo de agente que alguém é depende
fundamentalmente do tipo de problema que ele quer resolver ou contribuir para a resolução. Por
essa razão, AF e AC não se converteram em agente científico e agente filosófico, respectivamente,
apenas por que propuseram uma resposta que é correta em relação à pergunta alheia.
A última questão ligada à agenda de problemas é a seguinte: vamos supor que AF e AC
executassem uma metodologia cruzada para decidirem a verdade/falsidade de suas propostas de
resposta. Tal fato seria relevante para os dizermos agentes filosóficos ou científicos? Por exemplo,
vamos supor que AF e AC, mantendo suas pretensões responsivas às perguntas da forma de PF1 e
PC1, respectivamente, passassem a fazer uso de uma metodologia de pertinência cruzada (ou seja,
para decidir a verdade/falsidade das respostas que propuseram aos seus respectivos problemas, o
agente filosófico executa um método científico e o agente científico executa o método filosófico).
Diremos, nesse caso, que os agentes teriam se convertido – respectivamente – em agente científico
e agente filosófico? Não, diremos apenas que os agentes AF e AC teriam usado métodos ineficazes
para decidirem a verdade/falsidade de suas propostas de resposta.

Enfim, esperamos ter respondido parcialmente, pelo menos, as perguntas a que nos
propusemos responder neste ensaio. Em especial, esperamos ter respondido a pergunta acerca do
que são, necessariamente, a atividade filosófica e a atividade científica. Infelizmente, não
conseguimos dar o mesmo tratamento a outras questões. Mesmo assim, esperamos que o ensaio
tenha sido útil para a compreensão da natureza de duas das atividades intelectuais mais apreciadas
em nossa sociedade. E, caso o leitor tenha mesmo melhorado a sua compreensão, particularmente,
acerca do que seja necessariamente a atividade filosófica, ele poderá concluir que esse ensaio tem
sido, desde o início, um produto de tal atividade.

Apêndice

Nota 1: Antes de falarmos sobre as diferentes concepções de filosofia e também sobre a


considerável ambiguidade ligada à expressão e suas correlatas, gostaríamos de tecer algumas
observações rápidas sobre uma ou mais teses que versam sobre o surgimento da atividade filosófica
na história. A natureza dessa discussão não será, entretanto, estritamente histórica, conforme
poderemos constatar. Tem-se assumido, quase como um mantra, a tese de que a atividade filosófica,
cujo útero geográfico teria sido a Grécia, seguiu-se de algum modo intelectualmente relevante ao
mito/mitologia.50 Nesse caso, o que se assume é a tese de que houve uma espécie de evolução das
explicações mitológicas, que invocavam divindades para explicar a ocorrência de fenômenos

direcionadas a diferentes problemas. Mas, tal resultado não deixa de ser curioso para o caso sob discussão,
pois, dado que a sentença endereçada como resposta é a mesmo, então parece que uma mesma sentença
poderia ser, ao mesmo tempo, uma proposta filosófica e científica. Alguém poderia ver tal resultado como
constituindo um contrassenso. Em resposta, diremos que o contrassenso só acontece, se deixarmos de
perceber que as explicações acima mostram que o conceito de proposta de resposta é relacional. Ou seja,
uma proposta de resposta R é filosófica, científica, etc. em relação ao tipo de problema para o qual a resposta
é dirigida, e quando for dirigida. Assim, a proposta R não seria, nesse caso, filosófica e científica, mas
filosófica quando endereçada para responder a um problema filosófico e científica quando endereçada para
responder a um problema científico, fato que não envolve nenhum contrassenso. Um exemplo pode auxiliar
na compreensão do caso. Vamos imaginar um professor que ensina matemática de manhã e, à tarde, é aluno
de uma turma da disciplina de História de Roma. Obviamente, o sujeito não é aluno e professor de
matemática e história de Roma simultaneamente, pois, quando ele é professor, ele o é de matemática e
quando é aluno, ele o é de história de Roma.
50
Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Filosofia#Hist.C3.B3ria.
naturais, para as explicações filosóficas, que não o faziam. 51 Mas, tal como vemos as coisas, essa
compreensão de uma passagem disruptiva do mito para a filosofia tem de ser julgada muito
estranha. Afinal de contas, há uma atividade intelectual em que também se busca explicar a
ocorrência de fatos especificamente do mundo real por meio da invocação exclusiva de princípios
naturais: a atividade científica. Por exemplo, Empédocles e sua teoria dos quatro elementos
expressam uma tentativa de explicar quais seriam os itens físicos mais elementares do mundo real
(em outras palavras, qual seria o alfabeto físico do mundo real). 52 Mas, sendo assim, por que então a
passagem teria sido do mito para a filosofia, em vez de ser do mito para a ciência? Seriam a
atividade filosófica e a atividade científica a mesma coisa com nomes diferentes? Não, certamente
não são a mesma atividade intelectual com diferentes nomes. Aliás, a propósito dessa questão
terminológica, vale aqui a advertência de que não deveríamos subestimar o estrago causado pela
ambiguidade, já muito antiga, de expressões como “filosofia”, “filósofo”, “atividade filosófica”,
“amigo da sabedoria”, “ciência”, “arte” e correlatas.53 Embora seja verdade que as confusões
meramente nominais sejam menos graves e de mais fácil resolução do que as confusões conceituais,
como a que acusamos haver na pretensa passagem disruptiva da explicação mitológica para a
filosófica, não se pode negar que ambiguidades tão entranhadas no tempo atrapalhem a
compreensão correta da natureza da empreitada filosófica. Além disso, e em desagravo dos leitores,
é justo registrarmos o fato de que em muitos textos designados historicamente de “filosóficos”, os
seus autores não parecem ter nenhuma clareza da diferença de ordem/tipo de problema intelectual
com o qual lidam, explícita ou implicitamente, nos textos. 54 Em suma, a confusão conceitual
contida, a nosso ver, na tese da passagem histórica da explicação mitológica para a filosófica pode
ser melhor captada ao considerarmos a seguinte pergunta: teria o tipo de pergunta (endereçada por
autores que identificamos como filósofos) um sentido que se limita exclusivamente aos fatos e
situações do mundo real? Para respondermos a questão, consideremos, por exemplo, as perguntas
sobre o que é a justiça ou sobre o que é o conhecimento endereçadas por Platão em A República e
no Teeteto, respectivamente. O ponto aqui é simples: nós permaneceremos em confusão, se
insistirmos em sustentar a tese de que houve uma passagem do mito para a filosofia baseados na
51
E tem de ser mesmo a questão da invocação ou não de divindades para explicar fenômenos naturais a
diferença entre explicações mitológicas e não-mitológicas. A diferença não pode residir no contraste entre a
falsidade da explicação mitológica e a verdade das explicações não-mitológicas. Se fosse assim, qualquer
explicação não-mitológica, uma explicação científica, por exemplo, teria de ser verdadeira apenas em razão
de ser científica. Mas, isso é falso. Não deixamos de dizer, por exemplo, que Lamarck foi um cientista e que
sua teoria do uso-desuso é de natureza científica, a despeito de considerarmos tal teoria falsa.
52
Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Empédocles.
53
Basta especularmos um pouco sobre o tipo de pergunta que o chamado “filósofo” Empédocles perseguiu
responder com a sua teoria dos quatro elementos e o tipo de pergunta que classificamos acima de platônica.
No que diz respeito à sua teoria e ao problema ao qual ela foi destinada resolver, Empédocles foi alguém
que, hoje, chamaríamos de “cientista da química”, ou, simplesmente, “químico”, e cuja proposta seria a de
que a tabela periódica possuiria apenas quatro elementos. O fato em questão é puramente nominal e, assim,
não permite que alguém sustente de modo razoável a tese de que Empédocles foi um filósofo, mas, com a
mudança do conceito no tempo, hoje ele seria um químico. A tese de que conceitos poderiam mudar sua
composição analítica, sua substância conceitual no tempo é, segundo vemos, uma tese esquizofrênica acerca
da natureza dos itens conceituais (dizer tal coisa não significa negar que haja conceitos contexto-dependentes
ou contexto-sensíveis). De qualquer modo, não ofereceremos argumento para sustentar essa acusação contra
a tese da mutação conceitual no tempo.
54
É por isso que o título intelectual consagrado a alguém (“filósofo”, “cientista”, “tecnólogo” etc.) não é
critério definitivo para se fixar o gênero intelectual de todo os seus textos, aulas, palestras etc., seja no todo,
seja em parte. Suponhamos que acreditemos agora que certo sujeito é, por exemplo, um filósofo. Nesse caso,
seria indutivamente adequado crermos, agora, que certo livro desse autor, o qual ainda não lemos, seja
estritamente filosófico. Mas, se, daqui a pouco, ao lermos o texto, passássemos a crer que há nele apenas
receitas de pão-de-ló, deveríamos nos render à contraevidência em questão e abandonarmos nossa crença
inicial de que o texto seria estritamente filosófico. O que determina o tipo de problema intelectual é o seu
conteúdo, não as suas designações, títulos ou o crachá de identificação profissional de que com ele resolve se
envolver.
tese de que a atividade filosófica consiste em oferecer explicações sobre fatos específica ou
especialmente do mundo real. Assim, se a filosofia se constitui no conjunto de teorias oferecidas
para responder perguntas platônicas, tais como aquelas que mencionamos há pouco, então não
devemos, sob nenhuma hipótese, aceitar a tese de que houve uma passagem intelectualmente
disruptiva do mito para a filosofia. Só poderíamos fazer tal coisa, se entendêssemos que a atividade
filosófica estivesse ligada a dar respostas para perguntas cujo foco específico envolvesse o mundo
real. Mas, tal como já vimos, tais perguntas são próprias à atividade científica. Sendo assim, se nos
comprometemos de algum modo com a ideia de que cientistas e filósofos perseguem resolver o
mesmo tipo de problema intelectual, permaneceremos sob confusão. Por outro lado, se usamos o
termo “filosofia” como estando relacionado à atividade intelectual que persegue responder
perguntas do tipo platônico, tais como as que vimos antes, não podemos aceitar a tese de que a
passagem histórica do tipo de explicação foi da mitológica à filosófica, mas, sim, da mitológica à
científica. Embora não tenhamos aqui a pretensão de realizar um levantamento exaustivo das
diversas concepções de filosofia, queremos estabelecer alguns pontos que consideramos essenciais a
respeito do assunto. Nós tentaremos mostrar que certas concepções do que seja a atividade
filosófica não permitem que se possa distingui-la da atividade científica. Mais especificamente, a
nossa denúncia é contra as concepções de filosofia não-analíticas da hermenêutica e da dialética
(concepções metafilosóficas que se enquadram no que se costumou chamar de “filosofia
continental”55). Para mostrá-lo, vamos adotar o princípio de que uma correta concepção acerca do
que seja a atividade filosófica deve permitir-nos distingui-la da atividade científica, ou de outras
atividades intelectuais, como, por exemplo, a atividade tecnológica. Também estará em uso um
princípio alternativo, a saber: o de que uma correta concepção acerca do que seja a atividade
filosófica não deve confundi-la com a atividade científica, ou com outras atividades intelectuais, ao
tomar as propriedades de uma como sendo da outra. Para vermos por que as concepções em jogo
não permitem procedermos à distinção em questão, vamos considerar, primeiro, a concepção
dialética acerca do que seja a atividade filosófica. Assumiremos que essa concepção assume, grosso
modo, que a meta da atividade filosófica é descobrir um princípio-sistema que sintetize todos os
princípios científicos verdadeiros.56 A questão relevante aqui é que não vemos como a partir de tal
concepção poderíamos distinguir a atividade filosófica da científica – fato que assumimos como
obrigatório para a verdade de qualquer concepção metafilosófica. O ponto específico de contenção
contra a dialética é o seguinte: qualquer teoria resultante da síntese de teorias científicas deveria
estar sujeita à confirmação perceptual para ser decidida verdadeira, tal como as teorias científicas
que ela eventualmente sintetizasse. Seria mágico pensarmos que uma teoria que sintetizasse um
número qualquer de teorias científicas não estivesse – ela mesma – obrigatoriamente sujeita à
confirmação perceptual para ser decidida verdadeira. Se não fosse assim, uma teoria que
sintetizasse n teorias científicas poderia ser decidida verdadeira, mesmo que as teorias por ela
sintetizadas tivessem sido decididas falsas em razão de terem sido perceptualmente desconfirmadas.
Isso é um evidente absurdo, posto que, se uma teoria sintética, Ts, sintetiza as teorias científicas T1,
T2…Tn e tais teorias são perceptualmente desconfirmadas, então Ts é automaticamente também
desconfirmada. Nesse momento, é essencial vermos que o fato de certa atividade intelectual ter
como assunto a atividade científica não é suficiente par fazer com que a primeira não seja científica.
Ao preconizar que a atividade do filósofo é a de capturar o sistema do mundo real, a concepção
dialética torna a filosofia uma espécie de ciência da ciência. E é óbvio que um cientista da ciência
continua sendo um cientista, jamais um filósofo. Vamos examinar agora a concepção hermenêutica
de atividade filosófica. O ponto a ser examinado é a acusação que fizemos a ela de não permitir
uma distinção entre a atividade filosófica e a atividade científica. Vamos assumir que a concepção
hermenêutica postula que a tarefa do filósofo é, grosso modo, a de interpretar o ser humano e/ou a
cultura do seu tempo ou época, tal como ela se manifesta (ou se desvela) na linguagem. 57 Nesse
caso, o filósofo seria uma espécie de captador da mentalidade humana e/ou social do seu tempo.
55
Para mais detalhes, ver Joll (2017).
56
É como assumiremos serenamente aqui a perspectiva de Hegel (1992, p. 29) de filosofia enquanto sistema,
com o ônus e o bônus que a empreitada carrega.
Ocorre que, sendo assim, a atividade filosófica se mistura de modo inevitavelmente confuso com a
atividade intelectual que se espera que seja executada por antropólogos, sociólogos etc., os quais
realmente têm que tentar determinar as propriedades relativas de seres humanos e sociedades
especificamente reais. É importante perceber ainda que, mesmo que se argumentasse, em defesa da
concepção hermenêutica, que o tipo de captura ou interpretação a ser feita pelo filósofo devesse ter
a antropologia/sociologia/etc. como objeto, valeria aqui o que já valeu antes para a concepção
dialética: a decisão quanto à verdade ou não das afirmações que expressariam a suposta captura
hermenêutica estaria sempre subordinada à confirmação perceptual, exatamente como se deve
proceder na atividade científica. Por essa razão, a concepção hermenêutica também não permite
distinguirmos a atividade filosófica da científica. Tal como vimos acima, as concepções
metafilosóficas continentais não possibilitam a emergência de uma distinção entre as atividades
intelectuais exercidas por filósofos e cientistas. Tal impossibilidade acontece por que tais
concepções estão imersas em uma confusão “existencial” em relação ao tipo de problema com o
qual seus intelectuais deveriam lidar e em relação ao tipo de método que eles deveria executar para
resolvê-los. Seus praticantes alegam, ou sugerem, que não produzem conteúdo científico. Mas, eles
dizem ou sugerem tal coisa apenas por que tentam decidir a priori a verdade/falsidade dos seus
produtos intelectuais (de preferência, sentados nas confortáveis poltronas de suas fotogênicas
bibliotecas) ou, se alguém achar melhor, por que tentam decidir a priori a aceitabilidade ou não dos
seus produtos intelectuais. Ocorre que as suas propostas são dirigidas especialmente ao mundo real
e, por essa razão, não podem ser adequadamente decididas verdadeiras/falsas a priori. Em outras
palavras, o estatuto intelectual das concepções continentais de filosofia, por não ser da ordem da
análise conceitual, promove uma hibridação de dois estatutos intelectuais incompatíveis. O estatuto
assume que se resolva a priori (modo pelo qual o estatuto intelectual da filosofia analítica
determina tradicionalmente a resolução dos seus problemas) um tipo de problema que não pode ser
adequadamente resolvido sem a intervenção de metodologia a posteriori, dado que os problemas
estatuídos são próprios da atividade científica. A hibridação em questão gera, ao mesmo tempo, uma
pseudoatividade filosófica e uma pseudoatividade científica. Tal situação pode ser resumida de
maneira mais dramática, mas longe de ser falsa, da seguinte maneira: o estatuto intelectual da
filosofia continental é uma quimera, um Frankenstein intelectual, o qual, pelas razões apresentadas
acima, não permite uma distinção entre a atividade filosófica e a científica justamente por que as
confunde. Ao considerar as dificuldades envolvendo a metafilosofia continental expressas acima,
alguém poderia insistir em outras opções, ainda de caráter não-analítico, para a atividade filosófica.
Vamos ponderar brevemente sobre algumas delas. Comecemos com a proposta de que a tarefa do
filósofo seja a de expressar os modelos lógico-formais das teorias científicas. Mas, tal como vemos
as coisas, essa alternativa não-analítica de filosofia apenas muda o lugar da confusão. Passa a
confundir a atividade do filósofo com a do lógico. A atividade do lógico consiste em construir
sistemas de linguagem formal com vistas à sua aplicação a itens de linguagem em geral, incluindo,
evidentemente, a linguagem científica. Ocorre que as linguagens, tomadas aqui genericamente, já
constituem propriamente os objetos de cálculo, via métodos lógicos, de propriedades lógicas ou
metalógicas. Assim, a confusão se dá agora entre a atividade do filósofo e a atividade do lógico, que
é, tal como pensamos, uma empreitada de natureza essencialmente tecnológica/metodológica.58 A
concepção metafilosófica sob discussão se encaixa numa perspectiva que está comprometida de
algum modo com a tese de que a tarefa filosófica não tem uma natureza descritiva/substancialista –
como a tarefa de analisar conceitos – mas uma natureza normativo-teleológica. Nesse caso, a tarefa
do filósofo envolveria expressar verdades da ordem do dever-ser relativamente a uma determinada

57
É como assumiremos serenamente aqui a perspectiva de Heidegger (1995, pp. 1-9) e/ou Gadamer (1998,
pp. 27-38) de filosofia enquanto interpretação, com o ônus e o bônus que a empreitada carrega.
58
Ao menos no que concerne à atividade do lógico, Aristóteles (1987) parece ser o patrono da tese de que a
lógica tem uma natureza tecnológica/metodológica. Nessa mesma perspectiva aristotélica, queremos assumir
que a atividade do lógico consista mesmo em construir sistemas para calcular propriedades lógicas, que são
qualitativas, em itens de linguagem. Em paralelo, propomos que a atividade do matemático consista em
construir sistemas para calcular propriedades matemáticas, que são quantitativas, em itens de linguagem.
meta/propósito/finalidade/etc. Tal perspectiva não pode, evidentemente, ser acusada de confundir as
atividades filosófica e científica. Mas, tal como já estamos antecipando, não está livre de outra
confusão. A dificuldade com tal perspectiva está no fato de confundir a atividade do filósofo com a
atividade do tecnólogo/metodólogo, como são, por exemplo, as atividades do legislador, do
moralista, do médico, do engenheiro etc.59 As atividades tecnológicas/metodológicas têm, de fato,
um caráter normativo, uma vez que o problema que perseguem resolver é do tipo “Como conseguir/
obter/fazer/etc. tal-e-tal?”. Esse tipo de problema exige respostas prefixadas por “Para se
conseguir/obter/fazer/etc. tal-e-tal, deve-se proceder assim-e-assado”, onde o conceito de dever é
explicitamente manifesto. Ou seja, o tipo de problema próprio da atividade
tecnológica/metodológica é um problema do tipo “como...” e não um problema do tipo “o que...”,
tal como são os problemas que chamamos de “platônicos”. Ainda que estejam relacionadas de
algum modo relevante, as perguntas “O que é uma inferência logicamente válida
necessariamente?”, “Como obter uma inferência logicamente válida?” e “Como determinar que
essa inferência é logicamente válida?” são diferentes em natureza e, por essa razão, constituem
perguntas que pertencem a diferentes atividades intelectuais. A primeira (que, grosso modo, é do
tipo “O que é um Φ necessariamente?”) tem, em função do tipo de resposta exigida, um caráter
descritivo/substancialista.60 A segunda (que, grosso modo, é do tipo “Como obter um Φ?”) tem um
caráter normativo-teleológico, que é o caráter das perguntas pertencentes às atividades tecnológicas/
metodológicas.61 O que atividades intelectuais tecnológicas/metodológicas compartilham entre si é
o fato de estarem fundadas em axiomas substanciais. Tais axiomas são de natureza filosófica,
porque analíticos, caso da atividade do lógico e do matemático, ou científicos, caso das atividades
do médico, do advogado, do engenheiro, do educador etc. Desse modo, as teorias substanciais
funcionam como axiomas ou pressupostos para o desenvolvimento e satisfação das metas próprias
de cada atividade tecnológica. Mas, jamais, em tempo algum, a atividade de prover os axiomas se

59
As concepções que postulam, por exemplo, que a tarefa do filósofo seja a de oferecer um conjunto de
imperativos morais válidos ou, então, um receituário para o autoconhecimento moral, espiritual e emocional,
para a obtenção da felicidade/eudaimonia ou para a libertação de certas angústias especiais também estão
comprometidas com a confusão discutida acima. Parece-nos claro em relação ao primeiro caso, para
pegarmos apenas um deles, que o filósofo é confundido com a figura do legislador. Não há nada na ideia de
que o filósofo seja um moralista substantivo que possa distingui-lo relevantemente da figura de um
legislador. Que um filósofo possa ser um legislador, isso é óbvio. Mas, é impossível que ele seja um filósofo
enquanto também é um legislador. O mesmo argumento pode ser repetido, com as devidas adaptações, para
as demais teses metafilosóficas mencionadas.
60
Em vista do tipo de decisão quanto à verdade/falsidade dos seus produtos intelectuais, as atividades
tecnológicas/metodológicas podem ter uma natureza a priori, como é o caso das atividades do lógico e do
matemático, ou uma natureza a posteriori, como é o caso das atividades do moralista, do médico, do
advogado, do engenheiro, do educador, do legislador etc.
61
Ainda a respeito da diferença entre perguntas descritivas/substanciais (prefixadas pela expressão “o que é”,
ou suas correlatas) e perguntas normativo-teleológicas (prefixadas pela expressão “como fazer para”, ou suas
correlatas), vale registrarmos algumas considerações adicionais. Alguém poderia alegar que a diferença entre
as respectivas perguntas não é relevante e que, em função disso, não há diferença real entre as atividades
intelectuais que lidam com os problemas correspondentes. O objetor hipotético pede que consideremos as
perguntas “Como obter um Φ?” e “O que é um Φ?” e argumenta que, se substituirmos a expressão “um Φ”
da primeira pergunta pela expressão “uma resposta para a pergunta o que é um Φ”, a primeira se transforma
em “Como obter resposta correta para a pergunta o que é um Φ?”. Conclui o objetor que não há diferença
relevante entre a atividade de responder a uma pergunta do tipo “O que é um Φ?” e a atividade de responder
a uma pergunta do tipo “Como obter resposta correta para a pergunta o que é um Φ?”. Mas, tal como
veremos, a objeção fracassa. Se, de acordo com o objetor, não houvesse diferença relevante entre as
atividades intelectuais em questão, então qualquer resposta que fosse verdadeira para uma teria de ser
verdadeira para a outra. Isso não acontece. Seria verdadeiro – ainda que não-informativo – responder à
pergunta “Como obter resposta correta para a pergunta o que é um Φ?” com a expressão “Respondendo-a
corretamente”. Mas, seria patentemente falso responder à pergunta “O que é um Φ?” usando a mesma
expressão.
confunde com atividade de prover os métodos que usam os axiomas como base. 62 Outra concepção
metafilosófica invoca questões acerca da origem do Cosmos/Universo e as assume como sendo
demarcatórias entre as atividades filosófica e científica. 63 Nesse caso, as questões que dizem
respeito à origem do Cosmos/Universo seriam exclusivamente filosóficas, enquanto as questões a
partir de sua origem seriam próprias da atividade científica. Tal distinção, porém, parece-nos
completamente arbitrária. Apesar de podermos distinguir problemas ligados ao antes e ao depois de
certo estado de coisas do Cosmos/Universo, ambos os lados dessa divisão de problemas continuam
sendo dirigidos particularmente ao mundo real. Acontece que, tal como já vimos, os problemas que
classificamos de “filosóficos” e que pertencem, por exemplo, à epistemologia, à estética, à
linguagem, à ética etc. não são problemas cujas tentativas de solução são dirigidas particular ou
especificamente ao mundo real. Assim, quaisquer questões envolvendo a origem, ou não, do
Cosmos/Universo, mesmo obviamente envolvendo problemas conceituais, são particularmente
relativas ao mundo real e, justamente por essa razão, não constituem problemas filosóficos stricto
sensu. Outra perspectiva para a atividade filosófica é a de ser algum tipo de crítica da cultura. O
ponto é que, se considerarmos que a cultura de uma dada comunidade é, pelo menos, o conjunto das
crenças que essa comunidade, ou porção relevante dela, compartilha, então, dependendo do
conteúdo das proposições acreditadas, encontraremos nessa sopa cultural crenças filosóficas,
científicas, tecnológicas, políticas, religiosas, de gosto etc. Acontece que já faz parte da agenda de
filósofos, cientistas, tecnólogos etc. oferecerem argumentos críticos contra as teorias acreditadas por
seus oponentes intelectuais. Nesse sentido, os argumentos críticos são endereçados para refutar as
respostas que os membros das respectivas comunidades intelectuais ofereceram aos problemas com
os quais lidam em suas respectivas atividades intelectuais. Sendo assim, a tese de que atividade
filosófica é crítica da cultura só consegue confundir a atividade intelectual do filósofo com a de
62
As tabelas dos valores de verdade do cálculo proposicional são um exemplo do que estamos afirmando. Se
afastarmos as nuvens puramente representacionais de tal dispositivo simbólico, veremos, em cada uma das
tabelas dos respectivos operadores lógicos, uma longa conjunção de declarações que expressa uma proposta
de análise dos conceitos lógicos simbolizados pelos respectivos operadores. Assim, quando falamos de
lógica, falamos, em rigor, do sentido dos termos/expressões que designam os conceitos lógicos (tais
conceitos costumam ser chamados em lógica e filosofia da linguagem de “operadores lógicos”, “constantes
lógicas” ou ainda de “conceitos formais”). Sendo assim, os axiomas lógicos, ou são propostas de análise –
com as quais se tenta encapsular a análise dos conceitos lógicos pertinentes – ou são proposições derivadas
dedutivamente de tais propostas de análise. Para vê-lo, consideremos novamente o caso das tabelas dos
valores de verdade do cálculo proposicional. Em particular, o caso presumivelmente mais simples, o da
negação proposicional. Se dissiparmos um pouco a nuvem puramente gráfica/simbólica da respectiva tabela,
veremos que ela expressa fundamentalmente o seguinte: uma proposição negada ser verdadeira é algo
igual, por definição, à respectiva proposição não-negada ser falsa. Ainda a respeito das tabelas dos valores
de verdade do cálculo proposicional, vale observar o seguinte: (1º) ainda que possam ocultar análises
conceituais, elas não o fazem em relação ao conceito de verdade/falsidade nem em relação ao conceito de
atribuição de verdade/falsidade a uma proposição (por um dado sujeito), mas, sim, dos conceitos relativos
aos operadores proposicionais; (2º) o fato de assumirmos que os axiomas dos sistemas lógicos expressam
análises conceituais não nos compromete com a tese de que as análises embutidas nas tabelas canônicas
sejam, considerando todos os aspectos analiticamente relevantes, as melhores possíveis; (3º) se fôssemos
formalizar a declaração que fizemos acima a respeito da negação proposicional usando os cânones da
linguagem do cálculo proposicional, nós não obteríamos uma tautologia formal do cálculo proposicional.
Isso exemplifica o fato de que as verdades lógicas (das quais dependem os sistemas lógicos) não são
tautologias do próprio sistema lógico. Dadas as considerações feitas até aqui sobre a natureza das verdades a
partir das quais se constroem os sistemas lógicos, parece-nos ainda mais razoável a tese de que a atividade
intelectual própria do lógico seja mesmo de ordem tecnológica/metodológica. Mais precisamente falando, a
atividade intelectual própria do lógico consiste em criar ferramentas com o objetivo de calcular as
propriedades lógicas de certos itens da linguagem, que seriam os objetos próprios da aplicação do respectivo
cálculo, tudo a partir da assunção de axiomas analíticos relativos aos operadores lógicos do respectivo
sistema lógico.
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Embora a discussão acerca da origem do Cosmos/Universo possa ser encontrada na literatura em conexão
com a questão da existência de Deus – ver, por exemplo, Swinburne (1996) e Craig (2015) – essa conexão
não é necessária. Os próprios autores mencionados discutem argumentos não-teístas acerca daquela questão.
outros tipos de intelectuais. Por fim, faremos algumas observações sobre uma concepção de
filosofia que, em tese, também teria a pretensão de analisar os conceitos que usamos em nossas
atribuições, mas que, ao contrário da perspectiva tradicional, postula que o emprego de uma
metodologia a posteriori é imprescindível para a resolução dos problemas filosóficos.64 Trata-se da
concepção de filosofia chamada de “naturalista” ou “naturalizada” e cuja expressão metodológica
tem sido chamada de “filosofia experimental”.65 Uma discussão dessa concepção “vanguardista” de
filosofia analítica em correlação com a filosofia analítica tradicional/clássica e por meio de um
contraste metodológico entre ambas as concepções pode ser vista em Valcarenghi (2016). Aqui,
queremos deixar claro um dos pontos que consideramos nevrálgicos nessa discussão, o qual pode
ser assim sintetizado: qualquer concepção de filosofia que defenda o emprego de uma metodologia
a posteriori será incapaz de oferecer uma metodologia mais eficaz de resolução dos problemas
filosóficos do que a concepção tradicional/clássica de filosofia analítica, a qual defende o uso de
uma metodologia a priori na resolução daqueles problemas. Nosso arrazoado contra a concepção
naturalista/naturalizada de filosofia começa com a assunção da tese de que um agente filosófico é
um agente reflexivo. Sendo assim, um filósofo deve executar o método mais eficiente a ele
disponível para o atingimento de suas metas intelectuais, sob pena de irrazoabilidade das crenças
filosóficas por ele havidas. E é óbvio que qualquer concepção de filosofia que acarrete
irracionalidade das crenças de seus agentes intelectuais deve ser rejeitada – a priori – como
simplesmente absurda. Nesse momento, porém, alguém poderia alegar que a concepção naturalista
não disputa, em rigor, o mesmo tipo de problema intelectual com a concepção analítica – deixando,
contudo, intacto o princípio de soberania da metodologia a posteriori na obtenção de respostas
corretas aos respectivos problemas (quaisquer que sejam eles). Em reação, diríamos que tal
alegação equivale a saltar do fogo para a frigideira. Afinal de contas, essa via de escape somente
comprometeria a concepção naturalista de filosofia com uma confusão (de novo!) entre a atividade
filosófica e a atividade científica ou uma confusão entre a atividade filosófica e a atividade
tecnológica. O ponto capital da discussão é seguinte: se, conforme alega a via de escape sob
discussão, não cabe à atividade filosófica tratar de perguntas que exijam uma resposta que expresse
todos conceitos necessários em relação a um dado conceito, então só restaria fazê-lo em relação aos
conceitos contingentes. Ocorre que, tal como temos defendido, o problema de explicitar todos os
conceitos contingentes sem exceção atributiva no mundo real (em relação a um dado conceito)
constitui justamente o problema próprio da atividade científica, tal como se mostrou aqui. Dado
que, segundo a concepção naturalista de filosofia, a metodologia filosófica seria a posteriori, tal
como é o caso da metodologia da atividade científica, não restaria alternativa para a via de escape
sob discussão, senão o absurdo de estar comprometida com a equação “atividade filosófica =
atividade científica”. Assim, o que melancolicamente resta à concepção naturalista de filosofia é, ou
a frigideira, ou o fogo. Para arrematar, vamos propor um breve, porém, a nosso ver, fatal argumento
contra qualquer a tentativa de se negar que a atividade filosófica seja pura análise conceitual.
Consideremos que a forma da objeção à tese de que a atividade filosófica seja somente análise
conceitual seja algo do seguinte tipo: “A atividade filosófica não constitui apenas análise
conceitual, haja vista que X” (onde “X” está no lugar da proposição que implica de modo
informativo e relevante que a atividade filosófica não seja exclusivamente análise conceitual). A
pergunta desafiadora torna-se, então, a seguinte: como alguém poderia provar de modo informativo
e relevante que a atividade filosófica não se trata apenas de análise conceitual sem assumir como
premissa do respectivo argumento uma sentença que expresse uma proposta de análise do conceito
de atividade filosófica cuja verdade teria de ser conhecida a priori pelo argumentador? Resposta:
não poderia. Afinal, para que tal argumento de objeção funcionasse, o objetor teria de oferecer uma
proposição, X, que descrevesse o que é a atividade filosófica necessariamente e não apenas o que

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É evidente que, se a concepção naturalista/naturalizada de filosofia não tiver uma natureza ou pretensão
analíticas, então, de partida, não haverá espaço para uma disputa genuína entre as concepções
metafilosóficas em jogo.
65
Pode-se assumir com alguma segurança que Quine (1975a e 1975b) é o patrono da concepção
naturalista/naturalizada de filosofia.
ela é contingentemente. Ocorre que, sendo assim, e para a decepção do nosso objetor, X teria ser
justamente uma verdade de análise conceitual, uma verdade analítica. Em suma, qualquer um que
tente argumentar contra a tese de que a atividade filosófica seja pura análise conceitual conseguirá a
proeza de cometer duas contradições de ordens diferentes: uma semântica, outra performativa.

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