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Perdão, Doralice. Na verdade, eu estava cego. Você tentou suicidar-se bebendo soda
cáustica. Era o que tinha à mão, na modesta cozinha onde sua mãe passava os dias. Fiquei
imaginando que problemas tão graves a levaram, aos dezesseis anos, a desistir da vida. Que
choques emocionais, conflitos de sentimentos, teriam ferido tão profundamente o cerne de
sua existência, ainda tão tênue e indefinida?
Por que você não respondia aos insistentes apelos de sua mãe? Por quê? Quando
tivesse passado o perigo, iria perceber que o problema que a levara àquele ato não era tão
grave assim. Chegando à idade adulta, veria como é banal e sem importância o que parece
grave e assustador na juventude.
No momento, eu precisava salvar-lhe a vida. Você tinha a boca, o esôfago e,
certamente, o estômago queimados. Não conseguia engolir, babava. Era preciso fazer outra
boca no abdome. Você não teria mais paladar, não conheceria o sabor dos pratos, não poderia
beber água quando tivesse sede. Os alimentos seriam jogados diretamente no estômago.
Sob o efeito do anestésico, você dormia serenamente. Lembro-me de que parei alguns
instantes, o bisturi esquecido na mão, e senti remorso, como vândalo a desfigurar suas formas
perfeitas. Um traço de sangue riscou seu ventre. O estômago estava queimado e retraído. A
principio pensei em alargar o esôfago. Passaria um fio pelo nariz, que seria apanhado através
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da abertura do estômago. Amarraria sondas cada vez mais grossas até dilatá-lo
completamente.
Esperança vã. O esôfago estava fechado. Teria de retirá-lo e substituí-lo por um pedaço
de intestino. Uma ponta seria costurada na boca e a outra no estômago. Operação grave.
Deveria abrir o pescoço, o tórax e o abdome. Era preciso retirar uma costela. O pedaço
do intestino iria passar por trás do coração. Você necessitava estar bem preparada: corrigir a
anemia e esterilizar os intestinos, destruindo os micróbios.
Luta árdua, de seis horas. Quatro cirurgiões, dois litros de sangue, vários litros de soro.
Tubos grossos de borracha furavam-lhe o peito, entre as costelas. Aparelhos de vácuo
mantinham pressão negativa nos pulmões, garantindo a operação.
Quando tudo ia se ajustando, você contraiu pneumonia. Tossia a todo instante. A
sonda do nariz, que levava alimentos além das costuras, e era a sua garantia, saíra num acesso
de tosse. Os pontos, forçados, deram em abscesso. A infecção abriu a sutura. A comida não ia
ao estômago, escapava pelo pescoço. Longos dias de penosos curativos, mas a fístula não
fechava. Você precisava ser operada novamente.
Três horas foram gastas para consertar as emendas e passar novo tubo. Tínhamos uma
grande aliada! Sua juventude. Em pouco tempo, você se restabelecia, tudo ia bem. De repente,
nova dificuldade. A comunicação que se abria no estômago começara a fechar-se, mal
permitindo a passagem de um pouco d’água. Alimentos eram retidos. Somente nova operação
poderia corrigir o defeito.
Pela terceira vez, você desfilou pelos corredores, adormecida na maca. Mais duas
horas de cirurgia, anestesia, oxigênio, soros e transfusões. Nem parecia mais a mesma, quase
caricatura do que fora. Magra, olhos salientes, rosto afilado, destacando o nariz. E novamente
você triunfou, resistiu, restabeleceu-se rapidamente.
Curta alegria. A nova passagem começou a estreitar-se pouco a pouco. Você precisava
ajudar com a mão, comprimindo com forca o bocado de comida, para forçá-lo a descer. Por
fim, só conseguia ingerir líquidos. Radiografias mostraram o estreitamento fechando-se cada
dia mais. Eu deveria operá-la pela quarta vez.
Agora tudo era mais difícil. Foram horas de trabalho penoso. Tecidos duros,
irreconhecíveis, atravessados por cicatrizes em todas as direções. Terminada a operação, a
passagem ficara ampla e fácil. Felizmente tudo correra bem. Agora você engolia qualquer
alimento sem dificuldade. O pedaço de intestino posto no lugar do esôfago desempenhava
perfeitamente sua nova função. Os alimentos deglutidos passavam rapidamente ao estômago,
sem dificuldade. Você começava a ganhar peso e força, recuperando os quilos perdidos.
Seis meses internada, quatro vezes operada, mais de trinta radiografias, seis litros de
sangue, muito mais do que possuía em seu corpo, dias e noites de cuidados e dedicação de
médicos e enfermeiras, era o balanço sumário de sua cura. Apressei-me em dar-lhe alta,
satisfeito pelo resultado do enxerto e por vê-la retornar à vida. Ás minúcias, as complicações, o
funcionamento do novo esôfago absorviam minha atenção.
Ao despedir-me, pedi que voltasse dentro de três meses para novas radiografias de
controle. Você, que tanto sofrerá e raramente ria, deu-me o prêmio do sorriso e foi embora.
O êxito do caso animava-me a apresentá-lo num próximo congresso médico.
Você, porém, reservara para si o último ato. Em sua breve existência, na pequena
experiência de sua imaturidade, veio ensinar a homens velhos e calejados que é inútil reparar
o corpo sem lancetar também os abscessos da alma.
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Dias após haver nos deixado, recebi um chamado urgente para ir ao Pronto-Socorro.
Você se suicidara, bebendo formicida.
Ao afastar o lençol branco, admirei-me ao vê-la tranquila. Desaparecera aquela tristeza
infinita que eu atribuía ao sofrimento físico. Peguei sua mãozinha inerte, passei os dedos por
seus cabelos úmidos, por seu rostinho ainda quente, como o fizera tantas vezes. Baixei a
cabeça e, em profunda tristeza, pedi-lhe perdão.
Perdão, Doralice. Na verdade, eu estava cego. Preocupado com os males do corpo,
esqueci o seu espírito, ainda mais doente. Como pude descuidar-me das feridas da alma, se,
naquele dia, quando você se obstinava contra seus pais, traíra seu sofrimento?
É o eterno engano dos cirurgiões, que palpam tumores, e não se lembram de que há
um coração oculto vibrando em ânsia, sonhos e sofrimentos.
Perdão Doralice.
Assinado: Dr. Salomão A. Chaib