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O
universo
mágico
dos
contos
de
fadas
(I)
Armindo
Mesquita1
Maria
de
Lurdes
Resende2
Introdução
Neste
quadro
impõem‐se,
quase
que
de
uma
forma
espontânea,
os
equívocos
entre
o
real
e
o
imaginário
que
levam
à
aceitação
de
todo
um
elenco
estereotipado
de
seres
sobrenaturais
que
povoam
grande
parte
da
literatura
oral
tradicional
e
que
foram
sendo
adoptados
e
reelaborados
pelo
imaginário
popular,
num
contexto
assinalado
pelo
misterioso
e
pelo
inexplicável,
que
caracteriza
a
vivência
do
Homem
na
sua
relação
com
a
terra
e
com
a
natureza.
Exercendo
um
fascínio
renovado
na
sociedade
contemporânea,
estes
seres
configuram
um
universo
usualmente
denominado
«maravilhoso
popular»,
que
João
David
Pinto‐Correia
caracteriza
sinteticamente:
Desse
universo
maravilhoso
nasceram
personagens
que
possuem
poderes
sobrenaturais,
que
se
deslocam
de
um
mundo
para
o
outro,
que
sofrem
metamorfoses
e
que
se
defrontam
com
as
forças
do
bem
e
do
mal.
E
se
há
personagem
que,
apesar
do
decorrer
dos
tempos,
da
mudança
de
costumes
e
valores,
dos
progressos
tecnológicos
e
científicos,
continua
a
exercer
o
seu
poder
de
atracção
sobre
crianças
e
adultos,
essa
é,
certamente,
a
fada.
Correio
da
Educação
A
origem
das
fadas
Nos
países
de
língua
românica
a
palavra
«fatae»
deu
Fatas
em
Itália,
Hadas
em
Espanha,
Fadas
em
Portugal,
Fées
em
França
e
na
língua
anglo‐
saxónica
Fays,
o
que
comprova
essa
origem
comum.
E,
se
podemos
dizer
que
há
fadas
em
quase
todos
os
países
do
mundo
ocidental,
na
tradição,
no
folclore
e
nos
contos,
foi
nas
línguas
inglesa
e
francesa
que
os
termos
fairy
(de
fay)
e
féerie
(de
fée)
mais
se
divulgaram,
estando
a
condição
feérica
mais
ligada
ao
praticante
do
que
aos
destinatários
(os
seres
fáes),
embora
não
excluindo
estes.
É
também
de
Inglaterra
e
França
que
nos
vem
um
mais
vasto
leque
de
nomes
e
de
representações
feéricas,
a
começar
por
Morgana
(da
Saga
Arturiana)
e
Melusina
(que
a
lenda
diz
ter
dado
origem
à
casa
de
Lusignan).
A
palavra
«fada»
ainda
integra
o
léxico
em
expressões
de
sentido
delicado
e
laudatório:
«trabalho
de
fada»,
«mãos
de
fada»,
«dedos
de
fada»
e
«fada
do
lar».
Filhas
da
imaginação
popular,
as
fadas
surgiram
no
declinar
do
paganismo,
herdeiras
de
determinadas
peculiaridades
que
as
crenças
mitológicas
haviam
atribuído
às
ninfas,
às
ondinas,
oríades,
dríades,
entre
outras.
Podemos
considerá‐las
irmãs
das
druidesas
entre
os
Celtas
e
das
valquírias
entre
os
Germânicos.
Em
França,
vemo‐las
como
“elementos”
maravilhosos
dos
romances
de
cavalaria.
As
fadas,
conforme
as
lendas
que
nelas
se
inspiram,
dispõem
de
poderes
mágicos,
usados
preferencialmente
para
beneficiar
um
afilhado,
ou
seja,
um
indivíduo,
cuja
protecção
lhes
é
confiada
ao
nascer.
Podem
cumulá‐lo
de
dons
Correio
da
Educação
admiráveis,
como
riqueza,
beleza,
fortuna,
poder,
para
mais
não
citar.
Presidem,
assim,
à
evolução
de
um
destino
e,
daí,
a
origem
do
nome
latino
«fatum»
‐
destino.
Por
isso
se
diz
que
há
pessoas
bem
ou
mal
fadadas,
consoante
o
destino
que
lhes
está
traçado.
Mas, de onde vêm as fadas?
Serão,
como
alguns
supõem,
encarnações
mitológicas?
Traduzirão
apenas
a
experiência
popular
do
povo
na
sua
expressão
mais
simples?
Procederão
do
engenho
dos
anónimos
mais
dotados
de
imaginação?
Ou
identificar‐se‐ão
a
símbolos
criados
para
exercer
uma
determinada
influência
mercê
dos
seus
feitos,
virtudes,
defeitos?
Apesar
dos
esforços
de
perseverantes
pesquisas
da
mais
diversa
índole,
não
tem
sido
possível
determinar,
com
exactidão,
o
ponto
geográfico
ou
o
momento
temporal
em
que
as
fadas
terão
aparecido;
o
mais
provável
é
terem
surgido
naquela
fronteira
ambígua
entre
o
real
e
o
imaginário,
que
vem
desde
a
origem
dos
tempos,
atraindo
desde
sempre
os
homens.
No
entanto,
algumas
delas
oferecem
certas
pistas
para
uma
possível
explicação
da
sua
presença
na
vida
dos
homens.
Quanto
à
sua
origem
céltica,
ela
parece
não
suscitar
dúvidas
entre
para
os
investigadores,
apesar
das
dificuldades
práticas
de
tal
delimitação.
Sabe‐se
que
esse
povo
se
concentrou
durante
séculos
na
Gália
e
se
foi
expandindo
e
fundindo
com
outros
povos.
Daí
a
irradiação
da
sua
influência
cultural,
no
que
respeita
à
convivência
humana,
à
espiritualidade,
à
religiosidade
e,
mais
amplamente,
à
exaltação
do
«imaginário»,
que
acabou
por
ser
mais
profunda
na
Bretanha,
no
País
de
Gales
e
na
Irlanda.
Por
outro
lado,
fazem‐se
referências
às
fadas
como
personagens
na
literatura
cavaleiresca
surgida
na
Idade
Média,
nos
lais
da
Bretanha
e
nas
novelas
de
cavalaria,
de
origem
céltico‐bretã.
Corrobora
esta
teoria
Nelly
Novaes
Coelho,
que
escreve
que
foi
«no
seio
do
povo
celta
que
nasceram
as
fadas
[...]
foi
na
criação
poético‐bretã
que
surgiram
as
primeiras
mulheres
sobrenaturais
a
darem
origem
à
linhagem
das
fadas»
(1987:
31).
Correio
da
Educação
Seres
misteriosos,
elas
sempre
exerceram
um
enorme
fascínio
sobre
os
homens
e,
por
isso
mesmo,
foram
muitos
os
autores
que
consagraram
os
seus
estudos
ao
desvendamento
dos
mistérios
que
as
envolvem.
Pierre
Grimal
(1992:
335)
relaciona
as
fadas
com
as
Parcas
(do
latim
Parcae),
divindades
romanas
que
parecem
ter
sido,
na
origem,
os
espíritos
do
nascimento.
Ainda
segundo
Grimal,
as
três
Parcas
figuravam
no
Forum
em
três
estátuas,
vulgarmente
denominadas
“as
três
fadas”
(tria
Fata,
os
três
destinos).
As
Parcas
eram
três
deusas
que
«fiavam
o
destino
de
cada
criança
que
nascia,
simbolizado
por
um
fio
que
era
puxado,
medido
e
cortado.»
(Cotterell
1998:
41),
ou
seja,
o
comprimento
desse
fio
representava
a
duração
de
vida
atribuída
a
cada
mortal.
Edith
Hamilton
refere,
na
sua
obra
intitulada
A
Mitologia,
que,
segundo
Hesíodo,
as
Parcas
eram
filhas
de
Zeus
e
davam
ao
homem,
quando
nascia,
o
bem
e
o
mal:
«Eram
três,
Cloto,
a
Fiandeira,
que
fiava
o
fio
da
vida.
Láquesis,
a
Distribuidora
da
Sorte,
que
atribuía
a
cada
homem
o
seu
destino.
Átropos,
aquela
que
não
podia
voltar‐se,
portadora
das
“tesouras
abomináveis”,
que
cortavam
o
fio
da
vida.»
(Hamilton
1991:
56).
Poder‐se‐á
relacionar
esta
crença
com
a
fada
dos
contos
que
pode,
também,
dar
e
tirar
a
vida,
comandar
o
destino
das
personagens,
em
particular
do
herói.
Pierre
Grimal
enraíza
nas
Fata
a
designação
de
fadas:
«É
este
nome
de
Fata,
que
tomado
como
um
singular
feminino,
está
na
origem
do
nome
das
fadas
no
folclore
romano.»
(1992:
164).
3
As três Moiras da mitologia grega que distribuíam os destinos pelos mortais.
Correio
da
Educação
O
primeiro
autor
que
fez
alusão
às
fadas
foi
Pompônio
Mela,
geógrafo
do
século
I,
que
localiza
na
ilha
de
Sena
nove
virgens
dotadas
de
poder
sobrenatural,
comandando
os
ventos
do
Atlântico,
protegendo
os
navegantes,
assumindo
diversas
encarnações
e
transformando
os
seres
(Mantovani
1974:
10).
Aliás,
Circe
já
o
fazia
segundo
o
testemunho
de
Ulisses
e
o
crédito
de
Homero,
se
bem
que
ela
tivesse
mais
de
feiticeira
do
que
de
fada.
As
fadas
teriam
sido
mencionadas,
pela
primeira
vez,
no
poema
«O
sonho
de
Rhonabry»4.
Este
é
um
dos
quatros
poemas
narrativos,
os
«Mabinogion»,
que,
surgidos
por
volta
do
século
IX
e
pertencentes,
igualmente,
àquela
fronteira
entre
o
real
e
o
imaginário,
se
encontram
entre
os
mais
antigos
documentos
da
poesia
primitiva
céltico‐gaulesa,
que
deu
origem
às
novelas
de
cavalaria
do
ciclo
arturianas.
São,
segundo
Nelly
Novaes
Coelho,
«relatos
fantásticos,
onde
se
multiplicam
os
factos
e
seres
maravilhosos,
sortilégios,
fadas,
magos,
encantamentos
e
metamorfoses,
animais
monstruosos,
paisagens
irreais
e
misteriosas»
(1987:
46).
Embora
não
se
possa
dizer
que
as
fadas
sejam
deusas,
há
uma
proximidade
entre
elas
e
a
natureza
divina,
sobrenatural.
Elas
possuem
o
poder
de
interferir
no
destino
do
homem
‐
veja‐se,
por
exemplo,
o
caso
dos
heróis
dos
contos
‐,
auxiliando‐o
em
situações
limites
a
nível
humano,
sobretudo
quando
já
nenhuma
solução
natural
se
afiguraria
possível.
São
descritas
ou
conhecidas
como
seres
fantásticos
ou
imaginários,
de
grande
beleza,
que
se
apresentam
sob
a
forma
de
mulher.
Podem
ser
angelicais,
difundindo
o
bem,
ou
encarnar
o
mal,
representadas
pela
figura
da
bruxa.
É
comum
referir‐se
que
a
fada
e
a
bruxa
são
formas
simbólicas
da
eterna
dualidade
da
mulher
ou
da
condição
feminina.
4
«Trata‐se
do
episódio
da
luta
contra
os
romanos,
quando
Artur,
traído
pelo
sobrinho
Morderete,
é
vencido
e,
mortalmente
ferido,
levado
pelas
fadas
(mulheres
belas
e
sobrenaturais)
para
a
ilha
de
Avalon,
onde
moram.
Aí
ele
permanece
oculto
até
ao
dia
em
que,
recuperado,
pode
voltar
à
luta
para
resgatar
o
seu
povo
e
cobrir‐se
de
glória.»
(Coelho
1987:
46).
Correio
da
Educação
Algumas
fadas,
nomeadamente
as
que
provêm
das
novelas
de
cavalaria,
eternizaram‐se
na
literatura.
Entre
elas
está
Morgana,
a
fada
mais
famosa
do
ciclo
bretão,
personagem
benfazeja
que
continuou
a
aparecer
na
literatura
dos
tempos
modernos.
Outra
fada
também
célebre
é
Viviana,
cuja
personalidade
vai
mudando:
aparece
pela
primeira
vez
como
Dama
do
Lago,
protectora
de
Lancelote;
depois
como
fada,
companheira
do
mago
Merlin,
e,
quando
este
já
está
velho,
como
sedutora
maligna.
Em
Viviana,
já
podemos
constatar
a
versatilidade
inerente
à
imagem
feminina,
bem
como
a
dualidade
da
sua
essência.
Ela
não
se
apresenta
como
fada,
figura
do
bem,
mas
transforma‐se
consoante
a
necessidade,
actuando
em
conformidade
com
o
momento.
Pelo
seu
comportamento,
é
uma
fada
que
se
torna
bruxa.
Se
as
fadas,
as
bruxas
e
as
feiticeiras
configuram
um
universo
feminino
dicotómico
(desejável
versus
temível;
possível
versus
improvável),
é
interessante
assinalar,
com
Laurence
Harf‐Lancner
(1984),
o
duplo
papel
que
a
mulher‐fada
pode
assumir:
‐
Conquérante,
la
femme
fantastique
soumet
l’homme
aux
lois
de
son
désir,
le
ravissant
à
jamais
dans
un
autre
monde.
‐
Conquise
par
la
force
ou
soumise
par
l’amour,
elle
se
plie
aux
lois
de
son
époux
mortel.
En
pénétrant
dans
le
domaine
littéraire,
où
ils
ont
éveillé
de
multiples
échos,
ces
deux
types
féeriques
ont
reçu
un
nom,
Morgane
et
Mélusine,
reconstituant
en
un
couple
antithétique
le
régime
diurne
et
le
régime
nocturne
des
images
de
la
féminité,
[…]
En
Morgue,
la
‘femme
fatale’,
s’incarne
la
féminité
maléfique:
[…]
Mélusine,
c’est
Morgue
apprivoisée.
Correio
da
Educação
Em
Portugal,
veja‐se
o
exemplo
das
lendas
intituladas
A
dama
péde
cabra,
A
mulher
marinha,
A
Lenda
de
Gaia.
Assim,
outras
fadas
ou
mulheres
com
dons
sobrenaturais
povoaram
as
narrativas
no
transcorrer
dos
séculos:
são
inúmeras
as
obras
surgidas
no
século
XVI
que
acusam
a
influência
da
atmosfera
mágica
céltico‐bretã:
o
mago
Oberon,
Titânia,
a
rainha
das
fadas
na
peça
Sonho
de
uma
noite
de
verão,
a
rainha
Mab,
em
Romeu
e
Julieta,
de
Shakespeare;
a
fada
Alcina,
irmã
da
famosa
fada
Morgana,
no
poema
épico
de
Boiardo,
Orlando
enamorado;
as
fadas
Andronica
e
Melissa
e
a
maga
Carandina,
no
poema
épico
Orlando
furioso,
de
Ariosto.
Foi,
contudo,
em
França
que
elas
encontraram
a
plenitude
da
sua
actuação
poética,
social
e
humana,
pela
pena
de
Perrault.
Não
deixa
de
ser
longa
a
lista
de
obras
que
acolheram
o
maravilhoso
feérico
nas
suas
mais
variadas
formas
de
representação.
Gil
Vicente
com
o
seu
Auto
das
Fadas
(1965)5,
o
Romanceiro
garrettiano
e
Fernando
Pessoa,
em
Obra
Poética
(1977:
239),
não
deixaram
de
as
imortalizar.
A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
5
Na farsa Auto das Fadas, a feiticeira Genebra Pereira passa o tempo a fazer feitiços para resolver
problemas de “mulheres mal casadas”.
Correio
da
Educação
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir.
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
O grande poeta Antero de Quental também acreditava nelas:
As fadas... eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar...
[…]
Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara famosa,
A vara maravilhosa,
A varinha de condão!
O que elas querem, num pronto
Fez‐se ali! Parece um conto....
Mesmo de fadas... eu sei!
São condões, que dão à gente,
Ou dinheiro reluzente,
Ou jóias, que nem um rei!
[…] (1983: 72‐77)
Correio
da
Educação
O
mesmo
podemos
dizer
de
Adolfo
Simões
Müller,
que
acreditava
«em
Íris,
pelo
menos»
(1985:
5),
assim
como
de
Ester
de
Lemos,
Ricardo
Alberty,
Sophia
de
Mello
Breyner
Andresen,
Matilde
Rosa
Araújo
e
José
Jorge
Letria.
Como
diria
Luísa
Dacosta
(1986:
49)
só
aqueles
que
perderam
os
seus
olhos
de
criança
afirmam
que
elas
não
existem.
[……………………………………………………………………]
(A continuar)
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Il
était
une
fois
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En
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de
la
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Dorée,
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Miracles
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Survivances
Les
Reliques
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