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PENTAGRAMA

TEMA DESTE NÚMERO: SUMÁRIO

2 VESTÍGIO S DA LUZ ÀS
TESTEMUNHOS DE PEDRA MARGENS DO TEMPO

5 EX ORIENTE LUX – D O
Os bogomilos sabiam que o ser humano pode tornar-se um O RIENTE VEM A LUZ
Theotokos: um ser capaz de gerar Deus de si mesmo.
8 U M CRISO L DINÂMICO

13 U M ENIGMA DO
O RIENTE

16 U MA PÉRO LA DE LUZ
NA CO RRENTE DA
FRATERNIDADE UNIVERSAL

19 B O GO MILO, VO Z DO S
INJUSTIÇADOS E DOS
OPRIMIDOS

22 T ESTEMUNHO S DE PEDRA

26 A O RIGEM DO MAL

32 E M BUSCA DO PÁSSARO
DE O URO

37 A O BRA DE PETER
D EUNOV

ANO 28 Nº 4
AGO STO 2006

Ao lado: cemitério com 133


estelas em uma necrópole em
Radmilja (Stolac), Herzegóvina.
Capa: Fragmento de uma pintura
tumular de 250-225 a.C., com
ilustrações dos mistérios dionísicos
em Muglizh, Kazanluk, Bulgária.
© TheThracians, A & V. Fol, 2005.
Vestígios da luz às

A energia das ondas tem sua origem em longínquas correntes marinhas, que os olhos de
quem caminha pela praia não conseguem avistar. Cada onda resulta da ação do mar, do
vento, da lua e de outras influências naturais. Com as conchas, pedaços de madeira e seixos
que lançam na praia, as ondas criam ricos arabescos, ao redor dos quais a areia vem se
depositar. Quando o sol, na manhã seguinte, se ergue sobre a superfície cristalina do mar,
são esses vestígios na areia que nos permitem reconhecer a marca deixada pelas ondas na
noite anterior. É assim que as culturas e os impulsos trazidos uns após outros pelo oceano
infinito do tempo se difundem e se extinguem. Como uma criança brincando com as
conchas na praia, ainda podemos, em nossos dias, encontrar esses vestígios…

2
margens do tempo À esquerda: Às margens de um lago nos montes Rila, Bulgária.
Abaixo: Painel informativo em Perperikon, onde as ruínas de
um palácio romano marcam o local do oráculo. Nesse mesmo
local, Orfeu foi venerado como “curador do corpo e da alma”.

A
“ tolerância é uma virtude mais social do so, ou a espada e o auto-de-fé.” O autor
que religiosa”, afirma Steven Runciman, conclui que “nenhuma pessoa religiosa de
especialista em história dos bogomilos. fato aceita abandonar um descrente à pró-
“Uma atitude tolerante em relação às cren- pria sorte”.
ças alheias contribui sem dúvida para uma Poderíamos acrescentar que, quando
sociedade harmoniosa; porém essa atitude é outros interesses como poder, prestígio e
impossível para os que possuem uma forte riqueza começam a desempenhar seu papel,
convicção religiosa. Porque quando esta- essa convicção religiosa se torna ilegítima.
mos convictos de ter encontrado a chave e Então, muitos indivíduos e até mesmo
o sentido supremo da vida, não consegui- populações inteiras são sacrificados, territó-
mos admitir que nossos irmãos continuem rios são devastados e reduzidos a cinzas,
tateando às cegas na escuridão. Podemos cidades são arrasadas.
reconhecer que, mesmo sem essa chave, eles Esse foi o pano de fundo do drama dos
possam conduzir suas vidas de maneira vir- bogomilos, denominação coletiva de vários
tuosa e admirável, mas seu fardo será, a grupos, bastante diferentes entre si, que
nosso ver, desnecessariamente pesado; é tinham em comum a aversão por um siste-
nosso dever ajudá-los a encontrar o verda- ma religioso centralizador que sufocava sua
deiro caminho e mostrar-lhes a luz que os vivência individual da espiritualidade e ani-
libertará. As opiniões divergem quanto à quilava sua liberdade pessoal. O período
natureza da ajuda que deve ser prestada: se histórico a que nos referimos é designado
a persuasão pacífica e um exemplo lumino- com razão como “a idade das trevas”. Em

3
decorrência da arbitrariedade política e da tanto nos serviços religiosos como na so-
mobilização fanática, movimentos como os ciedade.
paulicianos, os bogomilos, os patarinos e os As marcas deixadas às margens do
cátaros foram sistematicamente persegui- tempo não são de leitura fácil. Muitas das
dos, entre os anos 717 e 1244, e aniquila- que não foram entalhadas na pedra desapa-
dos. É surpreendente que, a cada nova receram para sempre. Observamos, com
onda de violência, ainda se ouvisse o antigo nosso olhar contemporâneo, a difícil con-
brado contra os “maniqueístas” — o grito vivência entre povos antigos que nos deixa-
de medo da aliança secular entre Igreja e ram testemunhos escassos e de difícil inter-
Estado, que temiam perder seu poder e pretação. Nossa compreensão da História
influência. é limitada por nosso estado de consciência
atual, pelas normas em geral hoje aceitas,
Igreja gnóstica universal pelos juízos de valor, regras de comporta-
mento e tabus.
Esse espetáculo foi presenciado pela O cristianismo original traz, a cada
humanidade repetidas vezes. No século II, época, um ensinamento vivo e atual, uma
Marcião fundou uma igreja gnóstica uni- filosofia que dá testemunho da luz e pode
versal, que pregava o conhecimento das ajudar os que buscam a verdade a encontrar
duas ordens de natureza. Dezenas de milha- o caminho de retorno à origem divina. É
res de pequenas igrejas foram destruídas na importante salientar que nenhuma perse-
tentativa de apagar qualquer lembrança da guição religiosa jamais impediu que esses
vida original. A seguir, foi a vez de Mani, o ensinamentos voltassem a se manifestar. Eles
apóstolo persa de Jesus. Entre os séculos III renascem através dos tempos, pois emanam
e VI, seus discípulos se disseminaram por da profunda intuição e sensibilidade dos
grande parte da Europa, da Ásia e até mes- que se predispõem a recebê-los. Para tanto,
mo da China. Eles também foram extermi- o conhecimento histórico é irrelevante.
nados. Desde então, todos os grupos heré- Os vestígios desses “ensinamentos da
ticos são chamados de maniqueístas. Luz” encontrados na areia podem nos revi-
As relações entre Mani e sua Igreja de gorar. Eles fortalecem nossa ligação com os
Luz e os bogomilos são comprovadas por inúmeros homens e mulheres que nos pre-
dois fatos históricos: os escritos gnósticos cederam. Por mais triste que seja sua histó-
remanescentes, que foram preservados até ria, sentimos alegria e esperança quando
os dias de hoje, e as tradições vivas, certa- reconhecemos que o mundo divino não nos
mente malvistas pela Igreja oficial, que re- abandona, que sempre renova seu chama-
sistiram à queda do império greco-bizanti- do, e que várias fraternidades gnósticas — e
no. Os messalianos, por exemplo, davam muitos indivíduos — já responderam a esse
grande valor à iniciação e ao preceito de chamado.
uma vida pura. Na melhor tradição gnósti- * Não confundir com o apóstolo Paulo,
ca, eles se denominavam “portadores do que escreveu as epístolas da Bíblia.
Espírito” ou pneumatistas. Outra tradição
BIBLIOGRAFIA:
viva foi a preservada pelos discípulos de
Paulo de Samósata*, que se tornaram co-
Runciman, S., The Medieval Manichee:
nhecidos como paulicianos. Paulo de Sa- A Study of the Christian Dualist Heresy.
mósata ensinava que todos os seres huma- Cambridge: Cambridge University Press, 1947.
nos possuem o mesmo princípio divino em O bolensky, D., The Bogomils:
comum, e que homens e mulheres devem A Study in Balkan Neo-Manichaeism.
desempenhar papéis de igual importância Cambridge: Cambridge University Press, 1948.

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Ex Oriente Lux – Oriente vem a luz

“Quando surgirá a aurora?


O nascimento do dia em que a humanidade
haverá de se voltar para a luz interior,
a luz da verdade? Quando tiver vontade...?
Mas, enquanto espero, quero me esforçar
como se esse dia já tivesse chegado.”

Assim falava Zoroastro, também co- vações arqueológicas vêm revelando


nhecido como Zaratustra. Colocadas cada vez mais os seus segredos.
em seu contexto histórico, podemos O caminho para a Europa seguido
dizer que no momento em que essas pelas tribos búlgaras primitivas ou
palavras foram ditas um impulso de proto-búlgaras costeia as altas cadeias
Luz tocou a humanidade outra vez. de montanhas. Primeiro o Altai, cujos
Esses impulsos produzem, de forma contrafortes dominam o deserto de
cíclica, desenvolvimentos na humani- Gobi. Considerado o coração espiri-
dade, bem como o surgimento de tual da terra, o Gobi encerra muitos
ondas de vida, sua eflorescência e seu enigmas. Dizem que ele é a fonte de
desaparecimento. todos os impulsos espirituais. Parece
que as pessoas oriundas de sua esfera
Os proto-búlgaros de influência estão encarregadas de
preservar uma herança especial.
Os grandes sábios da Índia e do Crônicas muito antigas mencionam
Egito fizeram o possível para ajudar a a existência de tribos nômades vindas
humanidade em seu progresso para a da Ásia central, bastante desenvolvi-
luz. No decorrer dos tempos, foi das espiritualmente e que trouxeram
sempre o mesmo impulso que se pro- um ensinamento às populações que
pagou da Ásia central até a Europa com elas entraram em contato, aju-
meridional através da Ásia Menor, da dando-as a aproximar-se do caminho,
Arábia, da Caldéia e da Pérsia. A his- oferecendo-lhes novas possibilidades
tória das estepes asiáticas, os altos e de iluminação e de fraternidade.
inacessíveis platôs com seus abismos Esses nômades e semi-nômades
profundos nos confins da Índia, da não conheciam, na época, nenhuma
China, da Mongólia e da Sibéria, é fronteira. Os proto-búlgaros consis-
ainda bastante nebulosa, porém esca- tiam numa união livre de tribos semi-

5
nômades. Eram guerreiros ágeis e co-
rajosos, e seu território estendia-se até
o imenso semi-círculo rodeado pelos
altos maciços da Sibéria oriental (o
Altai), da China e da Índia (Pamir e
Inducuche).
Os nomes de lugares e de tribos co-
mo Búlgaro, Bugu, Bulgan e Bulkor,
ainda ali existentes testemunham a ocu-
pação inicial desses espaços pelos pro-
to-búlgaros, nome que significa algo
muito próximo a “misturas” ou “mis-
turado”. Mas, o que foi misturado?
Os escritos antigos nos ensinam
que as tribos búlgaras migraram pri-
meiro para a Índia. Os proto-búlga-
ros descendiam das populações aria-
nas originárias das estepes do Afega-
nistão e da Rússia meridional que
tinham alcançado o vale do Indo pelo
lendário desfiladeiro de Khyber no
Inducuche. Ao final do século VI, eles outros modos de vida e a novas cor-
haviam decidido retornar para o rentes de pensamento. Eles se mistu-
oeste. Bem antes, outras tribos das raram de múltiplas maneiras com os
estepes também haviam atravessado o povos à sua volta e integraram a he-
Casaquistão e o Turcomenistão; atra- rança das antigas raças, trazendo-a
vés da Pérsia eles teriam chegado ao consigo em sua marcha para o oeste e
Cáucaso e às regiões baixas do Volga a Europa. Essa é uma das vias pelas
(nome derivado de bulgar) e teriam quais os antigos impulsos maniqueus
contornado o Mar Negro para chegar e gnósticos encontraram, nos séculos
aos Bálcãs, onde está localizada a Bul- VI e VII, uma passagem para o Oci-
gária atual. dente. Na Europa, o pensamento foi
influenciado por eles de modo consi-
A rota da seda derável, ainda que por meios bastante
indiretos.
Já há muito as vias de comércio No decorrer dos séculos seguintes
ligavam o Oriente Médio e o Extremo os búlgaros continuaram sua prática
Oriente através das estepes da Sibéria de abertura a outros povos; construí-
asiática. Os proto-búlgaros eram pes- ram cidades, fundaram estados. Pode-
soas livres que mantinham trocas rosos reinos surgiram (Cáucaso, em-
comerciais e culturais intensas com bocadura do Volga, Trácia). Da fusão
seus vizinhos. Estavam abertos a das tribos eslavas da Bulgária do

6
Antigas colônias
búlgaras, entre 700
a.C. e 700 d.C, e
migração das
populações que se
instalaram na Trácia,
“o país da luz do
Espírito”, entre 2000
e 1000 a.C.
© The Thracians,
A. & V. Fol, 2005.

Norte e dos proto-búlgaros que, a quéias e as primeiras formas do cris-


partir do ano 679, se estabeleceram na tianismo constituíram, nos Bálcãs, um
embocadura do Danúbio, formou-se terreno propício ao florescimento da
o povo búlgaro, que, tornando-se cultura dos bogomilos, homens apai-
sedentário, fundou uma cidade e aco- xonados pela liberdade e que aspira-
lheu a cultura greco-bizantina, bem vam ao reino interior do Espírito.
como o cristianismo.
A cultura das estepes conservou-se
na aristocracia militar. Seu talento em
matéria de governo e de diplomacia FONTES:
pode ser atribuído à tolerância espiri-
tual que os anima. Em todos os escri- Kutzli, R., Die Bogomilen. Stuttgart:
tos, dá-se ênfase à sua capacidade de Verlag Urachaus, 1977, p. 130.
integrar as diversas correntes e de uti- Rijckenborgh, J. van e Petri, C. de,
lizá-las. Essa é a razão pela qual a Bul- A Fraternidade de Shamballa, 2ª ed. São Paulo:
Lectorium Rosicrucianum, 1982.
gária sempre atrai os grupos persegui-
Rijckenborgh, J. van, Christianopolis.
dos por seus governos por motivos São Paulo: Lectorium Rosicrucianum, 1985.
religiosos. Fiéis ao significado de seu Fol, A., The Bulgarians Atlas. Sofia:
nome, os búlgaros acolheram também Tangra, 2001, p. 46.
em seu reino as comunidades cristãs. Zimmer, H., Philosophie und Religion Indiens.
A mescla de correntes dualistas mani- Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 130.

7
Um crisol dinâmico

A lembrança de um dia com o brilho áureo...


outrora, em um outro mundo!1
cristãos, era originário da Trácia. Esse
músico, cantor e mensageiro, havia
Que sabemos nós sobre a Trácia, o fundado, há milhares de anos, uma
país de Orfeu, que amansava os ani- religião em que estava contida a idéia
mais selvagens ao som de sua lira de consoladora do renascimento após a
sete cordas, esse rude país de monta- morte. Ele é mencionado pela primei-
nhas semeado de tesouros de ouro e ra vez no século VI antes de Jesus
prata, ao norte da Grécia, onde nasceu Cristo, pela expressão “o ilustre ra-
Dionísio, o deus estranho, o deus da diante”, epíteto que reflete uma tradi-
inspiração e do êxtase, região venera- ção oral muito antiga. Os mistérios e
da pelos homens pré-históricos como seus costumes precederam de maneira
a mãe-montanha sagrada?2 direta os cultos em que o pão e o
Que sabemos, ainda, dos mistérios vinho simbolizavam a exaltação, a ilu-
de Dionísio, onde se cantava: “Sê-nos minação espiritual, e tinham como
propício, tu que exaltas a feminilida- meta inicial pôr os seres humanos em
de. Nós, os cantores, cantamos-te ao condição de participar dos elementos
termo de nossas provas. Que aqueles universais fundamentais: os éteres
que te esqueceram jamais entoem teu puros da natureza superior.
hino sagrado! Adeus, pois, Dionísio, Existem semelhanças notáveis en-
tu que habitas com tua mãe Sêmele, tre o mito de Dionísio e o mito egíp-
chamada Tione pelos homens...”? cio de Osíris. Dionísio é sacrificado,
assim como Osíris. O corpo de Osíris
Os trácios é desmembrado e escondido no Nilo,
o rio da vida; da mesma forma, Dioní-
Para os antigos gregos, a Trácia era sio era “sempre” dilacerado por suas
As doze listras o país da sabedoria, pois o norte mar- próprias sacerdotisas e seu espírito so-
douradas na face cava-lhe a direção. Ali, Dionísio, o fi- lar espalhado sobre as colinas, os vales
direita da grande e as montanhas para que ele renasces-
lho da Deusa-Mãe, guardava o conhe-
Deusa-Mãe eram
cimento da união entre a natureza, os se.3 Quanto a Orfeu, após sua morte,
representadas
na tatuagem que
deuses e os homens. Ele e Apolo re- sua mensagem mergulhou por longo
cada sacerdote presentavam o “Filho” divino. Apolo, tempo no silêncio, no decorrer do
das mênades o ser solar, e Dionísio, a terra divina, qual se formou a terra nutriz de onde
usava como eram unos com a esfera do sol. evoluíram de forma progressiva as
símbolo de sua A Trácia, por volta de 4000 anos concepções míticas da Grécia e da
ligação com o
antes de nossa era, compreendia então Pérsia.
destino de
Dionísio.
a região em que hoje estão a Bulgária, Desde a Antigüidade, os mistérios
Ca. 400 a.C. a Romênia, o norte da Grécia e a Tur- de Dionísio foram qualificados de
© The Thracians, quia. Orfeu, filho do deus sol Apolo, mistérios órficos, e se propagaram, a
A. & V. Fol, 2005. e um dos fundadores dos mistérios partir do século II a.C., de Creta até a

8
Acima: Cavaleiro/herói; Fragmento de um sistema de 23 partes que representa o mito dionísico de iniciação.
Centro abaixo: O cervo, desde os tempos dos mistérios de Dionísio, tem sido o símbolo notável do filho do sol; e somente
o cavaleiro/rei/sacerdote pode ferir esse animal. Ele é o símbolo do sacrifício de Dionísio, o filho do sol, dilacerado para que
a terra possa viver. Centro acima: a Deusa-Mãe coroa o cavaleiro/herói.

9
Trácia, da Ásia ocidental até a Mace-
dônia. Esses mistérios provocaram
um sentimento de “entusiasmo” nas
massas e uma experiência vivente de
“êxtase” nos iniciados. A massa espe-
rava que esse entusiasmo, ou exalta-
ção, a purificasse e a libertasse do mal.
Os iniciados sabiam que ao se elevar
até o “conhecimento” espiritual ab-
soluto tornar-se-iam imortais. Para
tanto, eles observavam as regras que
exigiam estrita abstinência.4
Foi na Pérsia que Zaratustra, ou
Zoroastro, difundiu o ensinamento
da “luz vitoriosa sobre as trevas”;
Dionísio reviveu os mistérios gregos
e Elêusis ligou os mystæ à força do
Espírito.5 Não foi à toa que a Trácia
foi então chamada de “país de luz dos
gregos”. É possível que na esfera eté-
rica dessa grande região tenha sido
conservada a lembrança das escolas
de mistérios da pré-história, sob a
forma de forças magnéticas latentes à
espera da hora de uma nova manifes-
tação. Durante milhares de anos esse
país que intermedeia entre o leste e o
oeste tem sido um verdadeiro crisol
onde se misturam culturas variadas.6
O comércio e as numerosas guerras,
pequenas e grandes, estimularam os
processos interculturais misturando
populações e concepções espirituais
de todo tipo. A sabedoria persa e a
caldaica, e inclusive as doutrinas bu-
distas, aí se ligaram à sabedoria da
Grécia e da Ásia menor. 7 Mesmo os
druidas celtas aí deixaram as marcas
de sua passagem e, por fim, a Grécia e
depois Roma agregaram a Trácia a
seu império.

Um verdadeiro crisol

No começo da era cristã, os nôma-


des asiáticos vindos das estepes e pos-
suidores de certas noções espirituais
misturaram-se de forma pacífica aos lo IX, muitos escritos religiosos, entre Três lugares santos.
habitantes da Trácia. Nos séculos VI e outros a Bíblia, foram traduzidos na
No alto: entrada do
VII os proto-búlgaros e os uigures do língua do país e tornaram-se acessí-
santuário de pedra
Cáucaso e da embocadura do Volga se veis a todos, sendo esse um fato notá-
de Tangardik Kaya
amalgamaram à população local, tra- vel, pois ao povo era proibido ler a em Kurdjali. É a
zendo consigo novas estruturas admi- Bíblia, sendo essa uma leitura reserva- gruta onde eram
nistrativas, bem como o cristianismo da aos sacerdotes... venerados a
maniqueu, ao qual estavam ligadas Quando, no ano 864, o cristianis- “Grande Deusa-Mãe
diversas camadas sociais. As tribos es- mo oficial foi ali introduzido, uma e seu Filho, o Sol”.
O santuário também
lavas chegaram do norte e aí também grande defasagem surgiu entre a reli-
era um observatório
se instalaram. Foi então que no sécu- gião vivente seguida pelas pessoas que astronômico para a
lo VII os búlgaros fundaram um po- sustentavam a população de todas as determinação dos
deroso império, e que o crisol se maneiras possíveis e a nova Igreja do solstícios de verão
transformou rápido em um império Estado, da qual eles rejeitavam a tute- e inverno.
grandioso em razão, sem dúvida, de la espiritual. Surgiu daí um movimen-
No centro: o
uma política inteligente que se apoia- to taxado por Roma de “contra-Igre-
assento do oráculo
va na tolerância. Centenas de anos ja”, movimento que seguiu, corajoso de Orfeu em Per-
depois, os paulicianos, armênios ex- e sem compromisso, o caminho do perikon na fronteira
pulsos da Turquia, aí encontraram um conhecimento interior. Esse movi- entre a Bulgária e a
refúgio onde suas concepções gnósti- mento foi organizado de maneira Grécia. © Pentagrama.
cas se difundiram rápido de múltiplas muito livre na forma de uma fraterni-
Embaixo: degraus
formas.8 dade 9 e se difundiu em todo o sul dos
esculpidos na
Essa vista geral deixa claro que a Bálcãs, e para muito além. Mas o que rocha, datando de
Trácia, o país de Orfeu, foi um lugar dava a essa gente a coragem de resistir mais de três mil
importante para o desenvolvimento às ameaças da Igreja e às medidas res- anos, levam aos
espiritual da Europa, ponto pouco tritivas do Estado? Eles eram chama- lugares de oferenda,
esclarecido na história. Aí foram, por- dos bogomilos, “amigos de Deus”. na vila de Orcheva,
tanto, inscritos nos seres humanos os Qual era sua fé e por que ela era peri- distrito de Kurdjali,
onde havia locais de
impulsos espirituais dos períodos gosa para a Igreja e o Estado? Os bo-
banhos rituais –
antigos. Nessas condições, tendo her- gomilos, conscientes da decadência precursores do
dado uma propensão à autonomia e à do mundo, sabiam que o verdadeiro batismo cristão.
liberdade, essas populações entreviam conhecimento pode apenas provir de Tendo a primeira
de forma clara a profundeza da gnosis uma total liberdade interior, e que ape- escada se desgastado
cristã e afastavam-se da história de nas essa liberdade engendra o amor pelo uso, uma nova
foi esculpida na
Jesus ensinada por Roma. Sua alma incondicional de todas as criaturas.
rocha.
era capaz de compreender os misté- O amor que tudo engloba era a pri-
rios de Cristo. Contudo, sua mentali- meira e absoluta condição do cristia- Fotos 1 e 3:
dade de livres pensadores suscitava nismo praticado pelos gnósticos que © The Thracians,
conflitos intermináveis com os pode- procuravam o campo de vida original A. & V. Fol, 2005.
res políticos e religiosos que temiam, do homem,10 o “reino divino”. Esses
não sem razão, perder sua autoridade. gnósticos não aceitavam, portanto,
A Bulgária encontrava-se, pois, sob ser dirigidos pelos representantes da
a influência de um cristianismo que Igreja oficial, em especial porque estes
não procedia nem de Roma nem de últimos davam o exemplo de um
Bizâncio, mas das classes inferiores comportamento oposto àquilo que
que haviam permanecido em contato pregavam.
com as correntes gnósticas. No sécu- Como os “amigos de Deus” se apre-

11
A obediência

Para alçar-se ao mais elevado


degrau da escada é preciso escutar
a voz interior a fim de encontrar mundo atual, onde quer que eles
a si mesmo. aconteçam, cuidarão para que isso
Para poder escutar interiormente, suceda. O mundo torna-se cada vez
fecha-te às sonoridades que vêm menor, os seres humanos sentem-se
de fora. sempre mais ligados uns aos outros, e
BIBLIOGRAFIA: ver p.30 muitos dão provas de que, tendo
aprendido as lições do passado e do
presente, estão prontos a se abrir a
sentavam na forma de um grupo inde- novas experiências.
pendente, Roma e Bizâncio sentiram-
se ameaçados e acabaram por conde-
nar essa crença vivente taxando-a de
“heresia búlgara”. Perseguições e ex-
termínios tiveram início logo em
seguida. O reino búlgaro enfraqueceu
no decorrer desses acontecimentos, e,
no século XIV, ele foi por fim atacado
e conquistado pelos turcos que, de
assalto, converteram grande parte da
população ao islã.
Na Bulgária atual, ressoam ainda os
ecos da espiritualidade dos bogomilos
na forma de costumes e de práticas
tradicionais dos quais ainda é possível
ver traços nos campos. Os bogomilos, BIBLIOGRAFIA
submetidos a experiências dolorosas,
1 Rainov, N., In land der Geister und
viram-se, com efeito, numa incerteza
Dâmonen. Bulgária: Sofia, 1980.
permanente quanto a sua habitação,
2 Fol, A. e Fol, V., Die Thraker, Das foldene
seu trabalho e sua existência. Em Reich des Orpheus. Mainz: Phillip von
razão do caminho que seguiam, eles Zabern, 2004.
agitaram e influenciaram bastante os 3 Idem, p. 323.
meios religiosos e culturais dos Bál- 4 Schelling, F.W.J., Philosophie der
cãs, bem como toda a Europa, por Offenbarung. Stuttgart: Cotta´scher, 1958.
diferentes vias. 5 Fol, A. e Fol, V., The Thracians, Tangra Tan
Em nossos dias a agitação ganha o NakRa, All Bulgarian Foundation, 2005.
6 Ament, H., Frühe Völker Europas.
mundo inteiro, que se tornou um cri-
Stuttgart: Konrad Theiss, 2003.
sol. As experiências milenares de nu-
7 Papasov, K., Christen oder Ketzer,
merosas civilizações foram gravadas die Bogomilen. Stuttgart: O gham, 1983.
em nós e a lembrança de sua sabedo- 8 Idem, p. 19.
ria interior pode ressurgir caso nosso 9 Idem, p. 112.
campo de respiração seja estimulado 10 Ivanov, J., Livres et Légendes Bogomiles.
de modo suficiente. Os choques no Paris: Maisonneuve et Larose, 1976.

12
Um enigma do Oriente
Sete filhas tinha a serpente.

A primeira dorme feito uma pedra –

ela nada vê.

A segunda ainda dorme profundamente –

ela vê brumas multicores.

A terceira vê sonhos e imagens longínquos.

A quarta vê tudo o que a cerca.

A quinta vê as almas.

A sexta vê os deuses.

A sétima vê o sol.

Sete filhas tinha a serpente.

A árvore da vida em Radmilja (próximo a Stolac) em Herzegóvina. Cristo disse:


“Eu sou a videira, vós os ramos”. © K. Papasov, Christen oder Ketzer, 1983.

13
Através dos séculos a serpente sempre teve um
sentido simbólico. Encontramos representações
dela entre os aborígines da Austrália, em gravuras
rupestres que remontam a mais de 20.000 anos.
O sol se eleva no leste. Ele é o símbolo do A serpente celeste formada por duas serpentes
sol espiritual que, surgindo também no les- enroscadas uma na outra, com a cabeça voltada
te, irradia sobre a humanidade. É comum para o céu, lembra-nos o caduceu de Hermes.
admitir-se que os guias espirituais vêm do Desde a origem, a serpente simboliza a energia
Oriente, da realidade divina eterna e perfei- emanada de Deus, também chamada de “força da
ta, de uma natureza totalmente diferente da serpente de vida”, o que nos remete ao termo de
natureza do nosso mundo inferior, e que origem indiana cundalini. Ela tem uma ligação direta
para essa realidade divina elevam-se as as- com o pássaro cujas asas simbolizam o vôo da alma
pirações do átomo-centelha do espírito, o para o espírito. Em seu livro Voices of the First Day,
átomo central do sistema humano. Awakening the Aboriginal Dreamtime, Robert Lawlor
Com freqüência os ocidentais sentem escreve: “A serpente é o arco-íris da energia. Ela é
profunda antipatia pela serpente desde seu o primeiro modelo cosmológico conhecido da
primeiro encontro com ela na narrativa da energia universal e de seu espectro. O espectro
criação no Velho Testamento. A serpente eletromagnético é um campo de radiação que se
convence Eva a provar do fruto da árvore estende dos raios gama às ondas de rádio. Apenas
do bem e do mal e a oferecê-lo a Adão. uma pequena parte dessa energia é visível: as sete
Vamos examinar um pouco esse símbolo. cores do espectro da luz do dia. Todas as radiações
A serpente é a alma, a consciência alojada têm a mesma velocidade e a mesma natureza ele-
no cérebro e na medula espinal, cuja forma tromagnética. A diferença está na ordem da fre-
lembra a de uma serpente. Jesus Cristo, ao qüência vibratória e do comprimento de onda. A
dar seu ensinamento, acrescentou: “Sede serpente arco-íris é uma metáfora penetrante que
prudentes como as serpentes”. Estas pala- exprime a unidade existente entre os mundos visí-
vras extraídas do Velho e do Novo Testa- veis e invisíveis”.
mento não podem ser compreendidas do Entre os egípcios, o pássaro benu simbolizava a res-
ponto de vista comum, material; elas evo- surreição da alma. Segundo um escriba de nome
cam a “queda da humanidade”, e apenas Cipriano (252 d.C.), um relato pertencente a essa
podem ser compreendidas por quem se antiga tradição mencionava a famosa serpente: “A
engajou no caminho de volta à pátria origi- grande serpente era a guardiã do templo. Com que
nal e descobre um outro significado no freqüência não ouvimos dizer que este símbolo não
símbolo da serpente. é uma personificação, porém uma serpente verda-
De que modo o sentido oculto dos sím- deira habitada por um deus? Nós mesmos, em um
bolos aparece em nós? É preciso saber que templo do Cairo vimos, como tantos outros milha-
o mundo visível consiste em energia e res de visitantes, uma enorme serpente que vivia há
vibrações. A serpente da origem, um dos séculos e que era objeto de profunda veneração”.
mais antigos símbolos, a pura energia do
início, tornou-se uma criatura que o ser
humano acabou associando ao mundo da Um símbolo é um sinal que representa
matéria. Nesta ótica, também temos o dra- certos impulsos de força, certas realidades
gão de sete cabeças que surge das ondas, da de um plano vibratório superior, insuspei-
região de vida danificada da alma, monstro táveis em vista das baixas freqüências vi-
policéfalo, derrotado apenas por um herói! bratórias de nossa consciência. A força nele

14
caminho que deverá conduzi-la a sua ver-
dadeira destinação. Na quarta fase, a alma
alcança a primeira forma de consciência;
ela descobre sua situação pouco invejável:
Algumas tribos australianas veneram a serpente arco-íris acorrentada à matéria grosseira e separada
Julungul como seu deus criador e fundador de sua cultura. da fonte original. Na quinta, a alma final-
Desenho sobre casca de árvore de Dowdi e Millinginby, mente vê. Ela percebe que é una com todas
Arnhemland. © Kerry Dundas, Hamlyn Picture Library.
as outras almas e sabe que a unidade é o
único objetivo de todas as almas. Na sexta
concentrada traça o caminho pelo qual a fase, a alma renasce e entra no campo da
queda se transforma em ressurreição. A fraternidade universal, o verdadeiro domí-
serpente simboliza a sabedoria, o conheci- nio de vida da humanidade-Alma. Os véus
mento da fonte original do ser, como a da ilusão dissipam-se pouco a pouco e, na
energia mais pura que o homem pode sétima fase, a alma desperta na luz do
alcançar; um dos aspectos do infinito divi- Espírito.
no. Essa energia dirigi-se à consciência na Assim, essa maravilhosa poesia outra
forma de luz, de compreensão e de apazi- coisa não faz senão descrever um processo,
guamento. É dessa forma que o homem uma via iniciática, com a promessa: “A
reconhece o estado de sono do átomo ori- sétima filha vê o Sol”.
ginal, o divino nele. Os antigos egípcios representavam a
Essa descoberta constitui uma oportuni- energia universal como uma grande ser-
dade inaudita em uma vida humana. O pente chamada Khepra. Sua força simboli-
despertar do átomo do espírito original zava a energia divina original e ela era con-
torna possível o nascimento da nova alma a siderada parte do ser humano.
partir das forças originais: nasce um
“herói”! Segundo a definição clássica, um
herói é sempre “um filho de Deus e de um
ser humano”. A reunificação de Deus (o
átomo-centelha do espírito) e do homem
possibilita o crescimento desse jovem he-
rói: na radiação gnóstica o “novo homem”
cresce penetrado pelo Espírito. Esse desen- FONTES:
volvimento é descrito na poesia dos bogo-
Rainov, N., Im Land des Geister und Dämonen.
milos. As sete filhas da serpente simboli-
Sofia: Sofia Press, 1980.
zam as sete fases de crescimento da alma. A
Rijckenborgh, J. van e Petri, C. de, A Fraternidade
primeira fase é comparada a um sono de de Shamballa. 2ª ed. São Paulo: Lectorium
morte: letargia e cegueira. A segunda fase Rosicrucianum, 1982.
descreve à alma que percebe uma vaga res- Rijckenborgh, J. van, Não há espaço vazio.
sonância do chamado proveniente do São Paulo: Lectorium Rosicrucianum, 1984
campo de vida divino. Na terceira fase é Lawlor, R., Voices of the First Day..., Rochester
mostrado à alma, como que num sonho, o USA, Inner Traditions International Ltd, 1991.

15
Uma pérola de luz na corrente da fraternidade universal

Os territórios que se encontram no ponto de


intersecção de regiões cujos interesses e orientações
diferem tomam de modo involuntário as cores dessas
diversas esferas de influência. Efetua-se uma mescla
e então se dá a eclosão de uma nova cultura
compreendendo uma língua e valores específicos.

16
E sse é o típico caso dos Bálcãs. Essa região mento que despertava. O homem tornou-se
possui ligações com a Turquia e, daí com a consciente de sua posição no cosmo como
Pérsia, a China e a Índia ao leste; com a indivíduo. As religiões desse período mos-
Eslovênia, a Áustria, a Alemanha e a França travam que Deus é um e libertaram o ho-
a oeste. Ao norte, esse território está ligado mem das estruturas energéticas do politeís-
à Rússia e à Escandinávia, e ao sul, à Ásia mo. Por volta de 600 anos a.C., a China
Menor e à África. As vias comerciais aí se conhece o desenvolvimento do taoísmo e a
cruzavam, de modo que esse país recebeu o Índia, o do budismo. O Egito descobre a
impacto de civilizações e de religiões bas- gnosis de Hermes Trismegisto, e na Ásia
tante diversas. Menor nasce o cristianismo “esotérico”.
No final da era de Touro os antigos mis- Para se compreender as mudanças notórias
térios começaram a declinar. Então come- desse período, faz-se necessário colocá-las
çou o tempo das iniciações de caráter pes- em relação com a evolução da consciência.
soal com estados de transe, sob a direção de No interior dos grupos coletivos tribais e
sacerdotes e mestres. A psique coletiva das familiares, o desenvolvimento do ego, do
diferentes populações sofria de maneira indivíduo, começou a tomar forma de
intensa a influência das práticas e rituais da maneira paulatina. A consciência que, de
casta sacerdotal, que se esforçava por man- súbito, diz “eu sou”, e que Ulisses experi-
ter seu poder. Nenhum soberano desse perí- menta na Odisséia de Homero, assinala o
odo escapou de suas garras. Mas uma nova momento em que a consciência de grupo
fase se anunciava. Na era de Áries, caracte- familiar, racial ou nacional diminui pouco a
rizada pelo gosto de legislar e pelas estrutu- pouco, enquanto cresce o ego bastante indi-
ras correspondentes (as Tábuas da Lei), vidual de nossos tempos. Os laços de san-
desenvolveu-se o culto do fogo. Áries é um gue se afrouxam em todos os planos, e os
signo de fogo. indivíduos que governam a si mesmos
Depois, com a era de Peixes, surgiram põem-se a considerar o Estado e a religião
novas religiões que davam ênfase ao pensa- sob a forma de instituições.

Da distinção

Aprende a distinguir o longo caminho do sofrimento humano e compreenderás que


ele é filho do desejo.
Adquire o hábito de perguntar-te a cada percepção sensorial, pensamento e desejo:
“Isto é real? O que é a real?” Porque existem elementos de realidade (mesmo que
muito remotamente) em tudo que é irreal.
Faz sempre muito atenta distinção entre o pobre saber do intelecto e as realidades
luminosas do espírito, que são os frutos de uma sabedoria amadurecida.
Observa com cuidado teus pensamentos: contêm eles o princípio da sabedoria, ou é
apenas o intelecto que estende suas asas?
BIBLIOGRAFIA: ver p.30
Representação do evangelista Mateus, do bogomilo
Hval, atualmente no Museu de Bolonha, Itália.
© K. Papasov, Christen oder Ketzer.
Na página 16: Estela em forma humana na Bósnia-
Herzegóvina.

Assim surgem novas oportunidades para mover o impulso de Cristo puro e livre de
os que buscam na religião uma via de liber- todo dogmatismo. Os bogomilos, bastante
tação. Os gnósticos ensinam, então, que inclinados à liberdade, opunham-se às insti-
todo indivíduo possui em si uma centelha tuições feudais que exploravam o povo. Sua
de consciência divina, um átomo-centelha concepção espiritual e seu modo de vida,
do espírito passível de ser inflamado, o que em total contradição com as autoridades
lhe permitirá reintegrar o domínio divino religiosas e administrativas de seu tempo,
da origem. Os gnósticos fundam escolas exerciam grande força de atração sobre as
espirituais em um novo estilo onde os bus- classes médias balcânicas. Mesmo em épo-
cadores encontram um sustentáculo na cas de perseguição eles davam continuidade
compreensão do caminho que leva à vida a suas atividades.
original, caminho esse descrito pela sabedo- Seus dirigentes, em dado momento,
ria universal em particular no Novo Testa- entraram em contato com os cátaros da
mento. Occitânia, cuja influência se estendia sobre
A Bulgária foi a porta por onde as dou- grande parte do norte da Itália, da Suíça e
trinas gnósticas entraram na Europa. Elas do norte da Espanha. Essas correntes eram
proliferaram durante séculos nos Bálcãs, ramos da mesma árvore gnóstica, não idên-
porém a memória coletiva dos europeus ticos, porém enraizados no mesmo solo.
não as conservou muito bem por várias O archote da Gnosis não cessa de ser
razões. Apenas um pequeno número de levado adiante, seu fogo arde sem descanso
pessoas se interessou de fato. ao longo dos séculos. Ora ele arde com
Agrupamentos conhecidos pelo nome força, ora brilha secretamente, dependendo
genérico de bogomilos, do século IX ao das circunstâncias. Muitos seres trilham o
século XIV (!), propagaram, portanto, um caminho e outros apenas têm como tarefa
cristianismo diferente do cristianismo da indicar a direção. Seus nomes desaparecem
Igreja romana, e que revelava a força liber- nas areias da história, mas são inscritos de
tadora da Gnosis às pessoas de todas as ca- forma indelével no livro da Fraternidade da
madas sociais. Luz, na corrente de todas as fraternidades
A antiga corrente do maniqueísmo, que que desde tempos imemoriais vêm realizan-
se expandira no Oriente até a China e no do sua obra libertadora.
Ocidente até a Espanha, havia engendrado Em nossa época, os seres humanos se
vários movimentos, dentre eles o dos bogo- relacionam cada vez mais entre si, tanto in-
milos. Nascido em solo búlgaro medieval, o terior como exteriormente. Muitos sabem,
bogomilismo trazia consigo todas as carac- ou supõem de maneira inconsciente em seu
terísticas de sua época. Não seguia nem imi- íntimo, que a humanidade está decaída e
tava qualquer orientação conhecida até que cada um deve encontrar e seguir o
então. Nele se manifesta uma forte inspira- caminho da libertação. Eles se esforçam,
ção do cristianismo primitivo. Em geral, as pois, para realizar essa libertação em sua
diferentes expressões do maniqueísmo me- condição social e pessoal e, desse modo,
dieval nos Bálcãs se esforçavam para pro- obter uma ligação vivente com o divino.

18
Bogomilo,
voz dos injustiçados e dos oprimidos
19
“Sob o reino do [...] tsar Pedro (século X), um pope chamado Bogomilo
[...] foi o primeiro a pregar a doutrina herética na Bulgária [...]” 1

Esta citação foi extraída de um tratado con-


2
Assim como muitos outros, Bogomilo
tra Bogomilo. O pouco que conhecemos de- condenava a arbitrariedade da Igreja e do
le provém quase que apenas dos escritos de Estado e seu sistema de opressão. Ele com-
seus inimigos. De acordo com um velho partilhava as idéias de múltiplos grupos
documento búlgaro, ele foi anatematizado gnósticos que atuavam no sul dos Bálcãs, em
duas ou três vezes,3 o que demonstra o quan- particular a idéia da existência de dois cam-
to era temido pela Igreja oficial e a amplitu- pos de vida separados, o que formava o pró-
de de sua influência: um movimento gnósti- prio coração de sua crença. Ele considerava
co inteiro levava seu nome. Pelo fato de figu- seus adeptos “theotokos”, ou seja, aqueles
rar na lista dos autores interditados,4 ele deve que devem “engendrar Deus”.6
também ter propagado seu ensinamento por Ele chegou a formular o direito à liberda-
escrito. Ele é apresentado como um homem de e à salvação das almas injustiçadas e dos
inteligente, muito audaz, que exercia grande oprimidos que não tinham a possibilidade
autoridade sobre seus semelhantes. de se expressar. Ele defendia a idéia de que
Ele começou como padre ortodoxo e es- existem dois princípios no ser humano, um
teve muito próximo do povo, mas era total- terrestre e um celeste, e que o princípio
mente contrário ao cristianismo oficial, em celeste deveria sair vitorioso sobre o princí-
que rituais pretensamente sublimes repre- pio terrestre. Lemos em um texto bogomilo:
sentavam um grande papel e davam uma
importância preponderante à forma. Esse O corpo que trazemos é uma criação das
tipo de cristianismo estava muito distante da trevas, a alma que nele habita é o primeiro
mensagem original: a necessidade de adqui- homem e o germe da luz.
rir uma fé viva para que, em todos os aspec- O primeiro homem foi vitorioso no país das
tos de sua existência, o ser humano ligue sua trevas, e também em nossos dias
alma ao Espírito do reino dos céus. ele triunfará no seu corpo mortal.
Bogomilo não foi o único a perseguir esse O Espírito vivente, que outrora irradiou
objetivo. Ele não foi o fundador da assim sobre o primeiro homem, é, ainda hoje,
chamada Igreja dragoviciana, porém consi- nosso consolador, o “consolamentum”.
deramo-lo o representante das doutrinas des-
sa Igreja, de alguns ensinamentos paulicia- Não sabemos se Bogomilo caiu nas mãos
nos e das concepções maniqueístas.5 Ele jun- de seus perseguidores ou se pôde continuar
tou esses ensinamentos, que se tornaram na clandestinidade. Todos os seus testemu-
conhecidos naquele tempo como Igreja búl- nhos escritos foram manifestamente destruí-
gara e Igreja dragoviciana. Devemos ver isso dos, porém não se conseguiu evitar as
na forma de duas correntes dirigentes no influências de seu ensinamento na literatura
interior de uma grande rede de fraternidades de seu tempo. Os bogomilos mesclaram o
isoladas que, partindo mais ou menos do essencial de sua fé na forma de mitos e de
mesmo ponto, procuravam viver de acordo lendas com a literatura búlgara. Exemplos
com os mesmos princípios. Disso, Bogomi- dessa fé podem ser encontrados nos contos,
lo era o coração irradiante. nos cânticos e nos poemas. Na Bulgária,

20
Fortificação do século XIII nas montanhas rochosas de Belogradchik, a noroeste de Sofia. © Pentagrama.

bem como em muitas partes da Europa e da um dualismo temporário, pois Satã será ven-
Ásia, a sabedoria gnóstica floresceu outra cido pela luz e seu mundo desaparecerá.
vez. O fato é que, na sombria dualidade, a uni-
Esses movimentos desencadearam uma dade da luz é rompida, dividida em dois
rebelião na Idade Média e obrigaram a Igre- pólos opostos. Isso não ocorreu apenas num
ja da época a mostrar sua verdadeira face: passado longínquo, porém acontece diaria-
uma instituição onde a religião estava ligada mente e sempre. A lei da dualidade, a dialé-
às autoridades e cuja reação contra os movi- tica, nos acua e não cessa de nos importunar
mentos gnósticos de então constituiu um no espaço e no tempo até o momento em
dos capítulos mais sombrios de sua história. que acabamos por compreender que somos
seus prisioneiros e que devemos nos libertar
A luz sempre triunfará dela. É preciso que a luz interior oculta, na
qual reconhecemos a verdade, ponha-se a
Os representantes da Igreja oficial qualifi- brilhar em nós de tal maneira que possamos
caram de dualista a doutrina pregada por rejeitar a ilusão da dualidade. Eis as palavras
Bogomilo. Os dogmáticos esforçavam-se pa- de uma antiga prece bogomila:
ra provar que esses pretensos heréticos ti-
nham parte com as trevas em oposição ao Purifica-me, meu Deus,
reino de Deus. Ora, a mensagem de todo sis- purifica-me no interior e no exterior.
tema qualificado de gnóstico é que a luz Purifica corpo, alma e espírito,
triunfa sobre as trevas. para que os germes da luz cresçam em mim
Contrário às várias insinuações, Bogomi- e me transformem num archote.
lo e seus numerosos partidários ensinavam Transforma-me em flama
que existia apenas um princípio divino que transmuda em luz
único, e que o dualismo apenas aparecera tudo em mim e ao meu redor.
quando Satanael, o mais importante dos
anjos, decidiu, contra o princípio divino ori-
ginal, criar seu próprio mundo, uma terra e
uma humanidade, tornando-se assim o prin-
cípio mesmo do mal. Trata-se, portanto, de BIBLIOGRAFIA: ver páginas 7, 12 e 31.

21
Testemunhos de pedra

Os bogomilos sabiam que o ser humano pode tornar-se um Theotokos: um ser


capaz de gerar Deus de si mesmo. De certa maneira esse é o caso dos que deram forma
aos antigos monólitos descobertos nos lugares mais idílicos da Bósnia e da Herzegóvina,
regiões onde os fiéis do cristianismo espiritual, os bogomilos e outros agrupamentos,
se refugiaram, esmagados entre os cristãos ortodoxos e os católicos romanos,
e com freqüência atacados pelos exércitos muçulmanos.

22
À esquerda: Opli-
cici, próximo a
Stolac.
“O cavaleiro de
mão levantada”,
uma das 133
estelas da necró-
pole de Radimlja
(Stolac) em
Herzegóvina
(Papasov, K.,
Christen und
Ketzer, 1983).
Abaixo: Cervo e
cavaleiro. Estela
em Lovrec,
Imotska Krajina,
Dalmácia do Sul.

Nesses monólitos vemos esculpidos cultura neolítica.1 Essas pedras dão-


motivos com desenhos arcaicos feitos nos uma idéia da fé que animava
com raspadeira. Essas criações sumá- esses grupos gnósticos, e sua mensa-
rias nos tocam, nos impressionam por gem tem o poder de conceder-nos
sua simplicidade. Quem as executou, asas em nosso caminho.
e o que essas pedras monumentais
querem nos dizer?
Os especialistas propõem diversas
explicações. Para a maioria, trata-se
de necrópoles, porém não se encon-
tram ali restos humanos com muita
freqüência. Supõe-se, em geral, que
essas pedras foram esculpidas pelos
bogomilos, o que deu motivo para
denominá-las “pedras dos bogomi-
los”, e que, segundo dizem, datam
aproximadamente de 1150 a 1500 de
nossa era. Hoje, alguns acreditam
que elas sejam ainda mais antigas e
que correspondam ao que resta da

23
Combatentes do reino da Luz perfectus, um perfeito, um iniciado.
Do mesmo modo pode-se ver, na
No cemitério de Radimlja próximo espada e no escudo, os símbolos das
a Stolac ergue-se uma pedra monu- “armas da luz”. O arco faz parte dos
mental. Os motivos nela cinzelados atributos do combatente espiritual
aparecem de forma gradual quando a que se exercitou no caminho iniciáti-
contemplamos durante certo tempo. co e que dá testemunho de que neu-
De acordo com a posição do sol, po- tralizou as forças contrárias. O per-
de-se ver do lado direito uma grande fectus vive de sua ligação com as for-
silhueta vestindo uma cota de malha e ças da luz. O círculo à direita, acima
botas. Acima dos braços levantados, à de sua cabeça, confirma de modo sim-
direita e à esquerda da cabeça, há um bólico que a imortalidade lhe foi con-
círculo com uma abertura, um arco e cedida. A linha ondulante acima dele
uma flecha. Também há dois peque- indica sua transformação eterna, e o
nos personagens e do lado direito um trifólio simboliza a triunidade sempre
escudo e uma espada. ativa: Pai, Filho e Espírito Santo.2
É possível ver aí um combatente do
reino da luz que venceu em si mesmo O cervo
o mal e que se purificou das forças das
trevas. Auxiliado pelas forças da luz, Encontramos em muitas das velhas
graças ao amor divino, ele protege seus pedras uma poderosa alegoria: a re-
alunos, representados pelos dois per- presentação de um cervo. As escultu-
sonagens menores, e se mantém ao la- ras bogomilas utilizam muito a ima-
do deles no caminho da vida original. gem desse nobre animal que “suspira
Ele ergue os braços num gesto de bên- pelas correntes de água”, como por
ção e protege, ao mesmo tempo, o san- exemplo, em Konjic. Isso nos leva a
Pedra tumular. tuário dos que desejam aproximar-se pensar de forma involuntária no grito
Museu de Split. dele sem a necessária purificação. É um da alma que desperta e toma cons-
ciência de estar num país estrangei-
ro. Ao lado de uma árvore
estilizada há um homem
ajoelhado, voltado para
um cervo, com os braços
e a cabeça em atitude de
prece. A distância que os
separa é grande e dá a
idéia do abismo que se-
para o estado humano do
estado do novo homem
que se tornou consciente
do divino.3 Podemos
imaginar que o cervo seja
um símbolo do homem
em quem a nova faculda-
de de pensamento des-
pertou. As linhas que

24
Do caminho

Irmãos, eis minha primeira palavra: “Se não oferecerdes auxílio, não o
recebereis. Desenvolvei-vos ajudando os outros. Fecundai aquilo que,
em vós, é feminino, ó filhos da infecundidade”. Os princípios e os dogmas
não mostram o caminho. Não busqueis regras. Retornai ao vosso
interior e buscai a senda, irmãos! Aprendei a arte complexa e difícil de
permanecer em vós mesmos.

ondulam e os círculos que muitas aonde se dirigiam os buscadores para


vezes encimam os chifres do cervo cumprir seus deveres espirituais sem
permitem por certo a seguinte inter- ser incomodados. Nesta perspectiva,
pretação: a nova consciência irradia podemos supor que essas pedras iso-
no espaço aberto e se funde por com- ladas ou agrupadas em determinados
pleto na manifestação universal. Isso é locais conservaram grande concentra-
expresso ainda de outra forma por ção de energia. Essas vibrações ainda
uma maravilhosa pedra dotada de um preenchem o espaço. Não são, por-
significado completamente distinto tanto, lugares comemorativos, mas
que pode ser vista no museu de Split. campos de força espiritual que nos
Nessa pedra, dois cervos traduzem conclamam a nos tornar Theotokos,
de modo inegável a paz e a harmonia um homem que gera Deus, que traz
da alma que voltou à “esfera das estre- Deus ao mundo: um portador de luz.
las”, sua verdadeira pátria, e sua afini-
dade com as antigas idéias órficas que
fazem do cervo o filho da grande
deusa mãe.4
Essas pedras, por sua vibração, são
símbolos que conservam viva a men-
sagem do campo de vida divino. Ima- BIBLIOGRAFIA:
gina-se a que desígnios serviram essas
pedras e os lugares onde elas se en- Representações semelhantes se encontram,
contram: foram lugares de paz em que entre outras, no extremo sudeste da Turquia.
as diferentes figurações orientam para Ver Schmidt, K., Sie bauten di esrten Tempel.
o mundo original. Das rätselhafte Heiligtum der Steinzeitjäger.
Como já dissemos, os especialistas Die archeologische Sensation am Göbleki
não têm nenhuma resposta positiva à Tepe. Munique: C.H. Beck Verslag, 2006.
questão de como os mortos foram en-
1 Rudolf Kutzli, Die Bogomilen, Geschichte,
terrados nesses lugares, muito embo-
Kunst, Kultur, Urachhaux, 1977.
ra seja duvidoso que eles tenham ser- 2 Idem.
vido a essa finalidade, em especial 3 Idem.
pelo fato de quase nunca terem sido 4 Roll, E., Ketzer Zwischen Orient und
encontrados neles restos humanos. Okzident: Patarener, Paulikianer,
Eles parecem antes centros de força Bogomilen. Stuttgart: Mellinger, 1978.

25
O título O livro secreto é pertinente; ele não apenas concorda
com as idéias dos bogomilos, concernentes à criação, mas, no final do texto,
um adversário desses pretensos “heréticos” acrescentou uma observação característica:
“Este é o segredo dos heréticos de Concorezzo trazido da Bulgária pelo bispo Nazaréi,
e repleto de erros”.1

O texto, bastante conciso, trata do fazia mover o céu e desejou ocupar


mundo original, da queda, do reden- um lugar sob as nuvens celestes a fim
tor e do fim de nossa manifestação. de tornar-se igual ao Altíssimo’.”
Ele começa com as palavras: “Eu, Para se compreender o mundo
João, vosso irmão, perguntei, incli- atual, O livro secreto dos bogomilos
nando-me sobre o peito de nosso começa mostrando o mundo origi-
Senhor Jesus Cristo: ‘Qual era, antes nal onde as entidades espirituais
da queda, a glória de Satanás ao lado agiam criando e realizando as idéias
de teu Pai?´. E ele respondeu-me: divinas. A palavra “Satanás” designa
‘Sua glória era tal que ele reinava um certo número de seres espirituais
Paisagem da sobre os poderes celestes. Então ele de um nível elevado de consciência.
Trácia. contemplou o esplendor daquele que O livro secreto fala sobre os sete céus

A origem do mal
O livro “secreto” dos bogomilos

26
que Satanás atravessou antes de A corrente de vida emanada de
ingressar na esfera terrestre. É dito Satanás antes da queda havia integra-
que o anjo do ar e o anjo da água do os pensamentos de Deus, e foi essa
abriram-lhe as “portas” de seus ele- corrente que criou o Universo. Ela
mentos. “Continuando a avançar, Sa- criou todas as esferas divinas de
tanás encontrou toda a terra coberta maneira a fazê-las evoluir até alcançar
de água, e, dirigindo-se por debaixo uma consciência perfeita, capaz, em
da terra, ele viu dois peixes na água. última instância, de fundir-se no espí-
Obelisco em Donja
Tal como uma parelha de bois no rito universal. Quando O livro secre-
Zgosca, na Bósnia,
arado, esses dois peixes, sob a ordem to fala sobre elementos da terra, não com símbolos cós-
do Pai invisível, esforçavam-se para, se trata de estados da matéria que micos e dois peixes.
até o nascer do sol, impedir que a conhecemos, mas de puras esferas de © K. Papasov, Chris-
terra de soçobrasse”. matéria sutil da terra original. ten und Ketzer, 1983.

Platão utiliza a expressão Demiurgo em Timeu para designar o artesão


que, reunindo os elementos do caos, modelou os aspectos do cosmo
sobre os modelos das formas eternas e engendrou todas as coisas
materiais do mundo, inclusive o corpo humano. Ele não é o criador de
tudo “a partir do nada”, porém o arquiteto
que deu e adornou a forma do Universo.
Platão considera que o Demiurgo é a
personificação da razão ativa, expressão
retomada pelos gnósticos que, em sua visão
do mundo dualista, fazem do Demiurgo o
símbolo das forças não-divinas e o respon-
sável pela criação do mundo material sem-
pre movente e inconstante, ao lado da divin-
dade só bem – “o estrangeiro suave”.
O livro secreto dos bogomilos é um diálogo
entre Jesus e João, o “discípulo bem-amado”.
Os membros da Inquisição, que jamais viram
essa obra, deram-lhe o nome de Livro secreto.
Apenas os perfecti o possuíam. Os especia-
listas o conhecem sob o nome de O livro de
São João ou Pseudo-evangelho, do qual existem
duas traduções em latim, datando a mais
antiga do século XII. É muito provável que
essa obra tenha sido escrita na Bulgária.
“Ossop” ou o fogo ardente

“Por debaixo da terra” os seres


espirituais vêem dois princípios: os
“dois peixes na água”, semelhantes a
“uma parelha de bois no arado, esfor-
çando-se para, até o nascer do sol,
impedir que a terra soçobrasse”.
Vemos aqui os dois princípios ori-
ginais, positivo e negativo, que repre-
sentam, de certo modo, dois princí-
pios latentes da substância primor-
dial. Os dois trabalham em “parelha”
para dar forma aos impulsos criadores
divinos. Descendo ainda mais, Sata-
nás encontrou seu próprio “ossop”,
um fogo bastante particular, e não impossível. As esferas do campo da
pôde descer mais por causa das flamas criação original são ocupadas por
desse fogo consumidor. Então Sata- todas as almas viventes que ali vibram
nás retornou e encheu-se de cólera. e se desenvolvem em unidade.
Com efeito, aqui arde um fogo muito “Satanás volta-se, então, para o
Árvore da vida – especial! É o fogo de um outro domí- anjo do ar e para aquele que reina
estela em Radimlja. nio cósmico. Descer mais baixo é sobre a água e lhes diz: ‘Tudo isto me
pertence. Se me obedecerdes, estabe-
lecerei meu trono nas nuvens e serei
semelhante ao Altíssimo’.”. Esses
seres originais deixaram, então, sua
substância, sua liberdade e sua cons-
ciência evoluir, desligando-se do Es-
pírito. Apesar de conhecer a gloriosa
criação divina e as imensas possibili-
dades que ela lhes oferecia, eles tende-
ram para a ruptura de sua ligação com
o Espírito e para a sua perdição.
Na origem de nosso mundo deu-
se, portanto, a separação da alma e do
espírito. Em nossa esfera, as duas for-
ças criadoras, masculina e feminina, as
duas forças da “parelha de bois no
arado”, manifestam-se em separado.
Os seres desta esfera separaram suas
duas forças e arrastaram consigo os
anjos de todas as esferas celestes. Os
éteres dessas correntes divinas se
degradaram e as forças vitais instáveis
animaram, desde então, os seres liga-
dos a Satanás. Por isso, os seres origi-

28
nais viram-se impossibilitados de par- ção de suas concepções e de seus
tilhar suas forças vitais com esses desígnios.
seres decaídos, o que O livro secreto “O Pai permitiu-lhe agir segundo
descreve da seguinte maneira: sua vontade até o sétimo dia... até o
“O Pai ordenou a seus anjos: ‘Reti- momento de agir segundo o plano
rai-lhes suas vestes’. E os anjos reti- previsto pelo Altíssimo...” As entida-
raram a veste e a coroa de todos os des decaídas tornaram-se os senhores
anjos que haviam obedecido a Sata- do mundo e os espíritos da matéria;
nás. E eu, João, perguntei ao Senhor: nesta, os elementos outrora unidos de
‘Em que lugar Satanás permaneceu forma harmoniosa separaram-se uns
após sua queda?’ E ele respondeu: dos outros; a terra firme, o espaço
‘Como punição por sua arrogância, aéreo e os oceanos se tornaram cada
meu Pai mudou sua forma, retirando- vez mais densos. Com as pedras pre-
lhe o esplendor e dando a seu rosto a ciosas da coroa do anjo da água Sata-
cor do ferro em brasa’.” nás formou as estrelas. Ele criou os
A “cor do ferro em brasa” é um fenômenos atmosféricos como o raio,
vermelho que, segundo a sabedoria a chuva, o granizo e a neve, e fez apa-
antiga, aparece quando a força-luz da recer as plantas e os animais. A queda
alma é mesclada ao “negro”. Isso é dos seres espirituais do céu, a única
simbolizado pela aurora e o crepúscu- queda, segundo O livro secreto, oca-
À esquerda: local
lo, ao passo que Satanás é representa- sionou a criação do paraíso. O mental sobre o rio Jantra
do pela estrela da manhã. Ainda desses seres espirituais ainda estava (próximo da antiga
segundo O livro secreto, Satanás pe- tão ligado ao pensamento divino, que capital búlgara Veliko
diu ao Altíssimo sete dias para criar eles eram capazes de dar vida às plan- Tarnovo) onde os
seu próprio universo, no qual todos tas e aos animais. heréticos e os
os seres espirituais seguiriam o cami- “Então Satanás refletiu e criou o malfeitores eram
reunidos e atirados
nho das experiências que desejassem homem para servi-lo. Ele ordenou ao
abaixo. À direita:
fazer. Satanás criou, portanto, o anjo do terceiro céu que entrasse em pedra encontrada
mundo atual com o auxílio de seus um corpo feito de argila, do qual nas ruínas do antigo
anjos. Assim fazendo, ele se serviu das tomou uma parte para formar um castelo.
idéias divinas que explorou em fun- segundo corpo, e intimou o anjo do © Pentagrama.

29
segundo céu a entrar nesse segundo desejo, em Adão, o anjo na forma
corpo. Assim foi a criação da mulher. masculina. Depois disse-lhes: ‘Comei
Então os anjos se entristeceram ao ver de todos os frutos...’ Nessas condi-
que sua antiga aparência havia desa- ções, os frutos do conhecimento do
parecido...” Criados por Satanás, eles bem e do mal já nada podiam ser
tinham agora uma forma mortal e já senão de uma evolução benéfica para
não podiam se renovar interiormente os seres terrestres. Segundo os bogo-
de forma ilimitada. Seus corpos se milos, esses frutos foram os que aca-
cristalizaram e se tornaram cada vez bariam abrindo-lhes os olhos. Então
mais densos. O primeiro homem que eles veriam que tudo não passa de ilu-
apareceu no paraíso era duplo: ele são e se decompõe sem cessar devido
possuía um corpo terrestre, porém, o à separação entre a alma e o espírito.
núcleo interior, imortal, continuava Isso geraria neles uma aspiração
pertencendo aos “céus”. imensa à vida verdadeira, um desejo
O livro secreto deixa claro que o ardente pelo espírito, pois a fusão do
“mal” apareceu nos seres de ordens espírito humano no espírito divino é a
espirituais elevadas. Em um certo sen- única realidade final.”2
tido, a queda não apenas repercutiu
no homem terrestre, mas também em O “método” da oferenda
seu núcleo imortal.
“O diabo plantou junco no meio Esta é, portanto, a imagem apresen-
do paraíso; com sua saliva ele formou tada pelos bogomilos: Satanás apro-
a serpente e ordenou-lhe que perma- pria-se de uma parte da luz. Ele dese-
necesse naquele lugar. Ocultando suas ja criar um mundo semelhante ao de
intenções para que seu logro não fosse Deus. Em seguida ele elabora uma
percebido pelos homens, ele lhes forma humana de argila e de terra e
disse: ‘Comei de todos os frutos do força as entidades celestes a se revestir
paraíso, porém não o do conhecimen- dela e vivificar a terra. Embora os
to do bem e do mal’. Então ele entrou anjos caídos do “segundo e terceiro
na serpente, seduziu o anjo na forma céus” se vejam agora aprisionados,
feminina e derramou seu veneno, o eles já não se encontram submetidos

Da tarefa do homem

Tu deves guiar o mundo, segundo as palavras de Cristo, para os dias


de sacrifício.
Guarda o silêncio e não reveles a ninguém, sobretudo aos profanos,
o caminho complicado de tua vida interior.

Estas citações foram extraídas da sétima parte de Bogolmilentum, Slawentum, Wiederge-


burt (Bogomilismo, eslavismo, renascimento), livro originário de Malta, cujo autor seria
Nicolai Rainov. No prefácio à sétima parte, é dito: “Esta parte compreende a descrição
de um dos assim chamados livros secretos dos bogomilos”.

30
ao sedutor de forma direta, mas sim a
seus corpos, devido a sua ligação com
a matéria. Isso parece um paradoxo,
porém trata-se aqui de uma manifes-
tação da grande sabedoria divina,
pois, se a alma conseguir se fazer
ouvir pela personalidade terrestre,
terá a possibilidade de romper sua
ligação com a matéria.
Trata-se, portanto, de um processo
de oferenda. O ser se oferece deixan-
do-se aprisionar pela matéria para
que, no final, a matéria seja aniquila-
da: esse é o mistério de Cristo, o espí-
rito de luz que se dá ao mundo até a
morte. O mundo aceita essa oferenda
com todo empenho e acredita-se vito-
rioso, porém, a luz já não pode ser
expulsa do cosmo e acabará transfor-
mando por completo a “maldade”, o
mal – cedo ou tarde. Mas, o que é o
tempo em relação a isso? A vitória da
luz está totalmente assegurada.
Satanás, o sedutor, se enfurece com
esse ardil! Para impedi-lo, ele cria,
segundo O livro secreto, a mulher e
tenta dar-lhe todos os atributos da BIBLIOGRAFIA
luz, forçando o anjo do segundo céu a
entrar nela e torná-la tão sedutora a 1 O Livro secreto já não existe em búlgaro,
ponto de Adão esquecer-se de ouvir porém dele restam duas traduções em eslavo
sua alma. As conseqüências disso são e latim, que se encontram em Carcassone e
em Viena. Tradução francesa em: Ivanov. J.,
a reprodução sexual, a necessidade do
Livres et légendes bogomiles: aux sources du
crescimento corpóreo e a morte. Foi
catharisme. Paris: Maisonneuve et Larose,
assim que o estado paradisíaco desa- 1976.
pareceu e a concentração da matéria, Uma tradução alemã pode ser encontrada
tal como hoje a conhecemos, teve iní- em: Petkanova-Toteva, D.,. Quellen reinen
cio. Os bogomilos não falam de wassers; eine anthology bulgarischer mitte-
expulsão do paraíso, pois para eles a lalterlicher Literatur. Berlim: Neue Wege,
queda ocorreu bem antes, sendo o 1979, p. 184-189.
paraíso apenas uma etapa entre outras
2 O evangelho apócrifo de Enoque, que contém
no caminho de descida.
semelhanças essenciais quanto à criação do
Todo ser humano possui, pois, uma mundo, é encontrado em duas versões, a
alma imortal mergulhada num tipo de etíope e a búlgara. É óbvio que o autor do
sono. Trata-se, portanto, de despertá- Livro secreto estava de posse da antiga versão
la. Essa é sua única esperança de po- búlgara do livro de Enoque.
der, um dia, libertar-se deste mundo. Ver: Jordan Ivanov. Idem, p., 91.

31
Em busca do pássaro de ouro
Um conto bogomilo

Pelo fato de serem perseguidos na Idade Média pela Igreja estabelecida, os bogomilos com freqüência
transmitiam seu ensinamento de maneira velada, por exemplo, na forma de contos populares cujo
tema versava sobre o seguinte: quem, por amor, aceita a tarefa da libertação da alma e segue o caminho
da vitória sobre o eu, tecendo assim o tesouro da nova alma, é o verdadeiro filho do Pai.

A os irmãos invejosos, sempre prisio- te, conforme eles ensinavam: No


neiros da antiga natureza, o irmão princípio apenas o Deus bom reina-
bogomilo perdoa os ataques. Ele até va. Ele não tinha forma nem corpo.
mesmo pede para eles a graça do Pai, Ele criara os sete céus que não
pois “eles não sabem o que fazem”. tinham fronteiras e não tinham
Quando renunciam a seu erro, o começo nem fim. Do Deus bom pro-
irmão dá-lhes a possibilidade de parti- cederam Satanael e Cristo, que
cipar da nova vida. Aqui vemos o pre- viviam na mesma esfera. Contudo,
ceito fundamental dos bogomilos: Satanael era voluntarioso e, aprovei-
“ama o mal bem” (ou dito de outro mo- tando-se de sua imensa liberdade,
do: aprende a transmutar o inferior em não apenas criou um mundo para
superior). si, mas quis também submeter o
O que isso quer dizer? O seguin- mundo da luz.

32
O único escrito autêntico dos bo- O tsar e o pássaro de ouro
gomilos é O livro secreto ou O livro Trata-se de um conto oriental que
de São João. Nele, João conversa com transmite a mesma mensagem: um tsar
Jesus ressuscitado. O mestre lhe res- se vê, num sonho, recebendo a missão
ponde todas as perguntas acerca do de construir uma igreja e de sair em
nascimento e do fim do mundo, e ex- busca do pássaro de ouro do Xá da
plica a queda e o nascimento de um Pérsia. O pássaro de ouro deve ser
segundo mundo – que conhecemos co- colocado na igreja, o que tornará des-
mo terra. “Meu Pai, diz Cristo nesse necessária a presença de um padre
livro, transformou Satanael por com- como ministro do culto. O filho mais
pleto devido a sua conduta orgulhosa, moço do tsar assume a missão, e parte
e privou-o da luz”. com seus dois irmãos mais velhos em
O papel do homem nesse drama busca do pássaro de ouro. Porém, os
primordial é descrito da seguinte dois irmãos mais velhos instalam-se
maneira: como os espíritos das trevas no primeiro bom albergue que encon-
queriam invadir o reino da luz, chega- tram e gastam todo o ouro que seu pai
ram até sua fronteira, mas não pude- havia dado para a viagem. Apenas o
ram ali penetrar. Essa ação ocasionou mais jovem põe-se a caminho.
uma reação contrária da luz, compará- Então ele encontra um ancião que lhe
vel a um castigo. Ora, no reino da luz, presta um grande serviço: com sua aju-
formado unicamente do bem, o casti- da ele descobre o castelo em cujo jar-
go é algo desconhecido. Os demônios dim se encontra, preso numa gaiola, o
podiam ser tocados apenas por algo pássaro de ouro. Apesar das recomen-
que não pertencesse a seu domínio. dações do ancião, o príncipe não con-
Os espíritos do reino da luz enviaram- segue resistir à tentação de roubar um
lhes uma parte de seu reino, de sua sabre muito valioso, o que chama a aten-
região, de sua esfera, que as trevas ção dos guardiães, que o aprisionam.
devoraram no mesmo instante, o que Para se libertar, ele se propõe a condu-
provocou uma grande agitação, pois zir o cavalo de ouro do tsar de Waran,
um elemento desconhecido havia o que consegue fazer. Porém, sucum-
penetrado naquele domínio. Devido a be ainda uma vez à tentação de levar
essa situação, as trevas não puderam consigo uma sela de grande valor. No-
continuar a se manter, e então apare- vamente é aprisionado pelos guardiães,
ceu a morte. Foi assim que, do homem e como preço de sua libertação, deve
primordial oriundo do reino da luz e raptar as três filhas do tsar da Grécia.
enviado às trevas, emanou o gênero Ele é bem sucedido nessa prova. As
humano: os seres humanos submeti- três jovens acompanham-no e os guar-
dos ao mesmo tempo às influências da diães não o podem deter. No caminho
luz e das trevas, e em quem a luz é de volta, ele tem a oportunidade de
“transmutada” até a derrota final das recuperar o cavalo e o pássaro de ou-
trevas. Portanto, as trevas receberam ro. Depois, vestido de forma suntuo- À esquerda:
Rochas de
com avidez o germe de seu próprio sa, chega ao albergue onde seus ir-
duzentos milhões
aniquilamento, ao passo que os ho- mãos, vestidos em andrajos, vivem na de anos nas
mens que se encontravam prisioneiros miséria. Eles decidem, juntos, empre- montanhas
nas trevas foram dotados do germe de ender a viagem de volta, mas, durante Belogradchik.
sua libertação. a noite, os irmãos mais velhos, enciu- © Pentagrama.

33
cavalo emudece e já não come. Por seu
lado, as três filhas do monarca grego,
ao avistar o jovem, reconhecem seu
salvador e o acolhem, cheias de alegria.
Então, o jovem príncipe deixa-se
reconhecer, e o pai ordena de imedia-
to ao carrasco que mate seus dois
filhos mais velhos. Contudo, o filho
mais moço opõe-se a essa ordem e os
reclama como escravos. Porém, não os
trata como tais; ele os perdoa e reco-
nhece-os outra vez como irmãos. Em
seguida, os três irmãos casam-se com
Pássaro e fonte
as donzelas, simbolizando com isso os
por Aubrey três aspectos da forma humana, e ado-
Beardsley, em tam como máxima: “Permaneçamos
La Mort de Arthur. juntos no palácio de nosso pai, e que
de agora em diante o amor habite en-
mados, matam o irmão caçula. tre nós”.
Os dois irmãos maus põem-se a ca- Esse conto descreve a evolução do
minho com as donzelas, o cavalo e o buscador tocado pela Luz. Ele sabe
pássaro de ouro, atribuindo-se o méri- que deve encontrar o “pássaro de ou-
to de todo o empreendimento, afir- ro”, que representa o princípio inte-
mando que seu jovem irmão havia se rior divino, o ponto central do templo
retirado. Mas, uma vez estando na microcósmico onde é celebrado o ver-
igreja, o pássaro já não quer cantar, o dadeiro serviço divino, o retorno à
cavalo na estrebaria não quer comer, e vida verdadeira. Para tanto, um inter-
as donzelas ficam inconsoláveis. mediário, um sacerdote, já não é
É então que o ancião ressuscita o jo- necessário.
vem com a água da vida. O jovem, sem
se fazer reconhecer, põe-se a serviço O auxílio no caminho
de seu pai, o tsar. Tão logo ele trans-
põe o limiar da igreja o pássaro põe-se A pessoa que se dirige a esse objeti-
a cantar seguido da celebração de um vo, mas que não possui o amor do Pai,
ofício divino como jamais outro fora permanece, desde as primeiras etapas
celebrado antes. Porém, logo que o de seu caminho, ligada à matéria e des-
jovem deixa a igreja, o pássaro emude- perdiça as possibilidades que lhe são
ce. Do mesmo modo, quando ele ofertadas. Apenas o amor autêntico a
entra na estrebaria, o cavalo põe-se a Deus e ao homem dá a compreensão e
relinchar, golpeia o solo com os cascos a força para colocar os interesses do eu
e lança sobre o jovem um olhar cheio em segundo plano. Assim são rompi-
de confiança, e quando o jovem sai, o das as resistências da natureza da

34
Protege os olhos do coração

Protege os olhos do coração de sujeira, pó e sombras. Protege-os das


armadilhas, dos redemoinhos e dos reflexos. A sujeira é o visível;
o pó é a criação exterior; as sombras são a criação interior. A armadilha
é a tentação; o redemoinho é o pecado; os reflexos são as formas das
regiões inferiores. E o coração deve permanecer acima de todas essas
regiões.

morte e a pessoa recebe auxílio em seu personificam os aspectos da personali-


caminho. Esse auxílio é aqui personi- dade que querem apropriar-se dos te-
ficado pelo ancião, que representa a souros celestes e nada mais fazem que
Fraternidade. imitá-los. A traição não teria como per-
Caso os preparativos para a viagem manecer oculta por muito tempo, pois
estejam bastante avançados, dá-se a a luz não pode ser morta. O ser huma-
descoberta do pássaro de ouro, o prin- no é sem cessar “despertado” por ela,
cípio da vida superior. Mas, enquanto até o momento em que descobre o
o homem ainda não for capaz de se- caminho da vitória e faz seus aspectos
guir esse princípio superior de manei- naturais (seus irmãos) participar dele.
ra desinteressada, ele sempre será ten- Esse conto mostra a realização do
tado pelo mundo, o que é simbolizado caminho pelo buscador individual,
no conto pelo desejo de ter o sabre e a mas também é possível descobrir nele
sela. Então, os guardiães, na fronteira a evocação da missão dada pela Frater-
do mundo, impedi-lo-ão de dar o nidade Universal à Igreja dos bogomi-
passo seguinte. Surgem novas ligações, los: reconduzir à igreja o pássaro de
novo carma, que deve ser neutralizado ouro do “Xá da Pérsia” de modo a já
ou trabalhado. não haver necessidade de sacerdotes.
Da Pérsia veio a luz dos maniqueus, a
O filho caçula Luz do puro amor. Em uma igreja que
coloca essa luz em seu centro, cada um
Os tropeços e os desvios ocasionam é ligado diretamente, e todo interme-
as experiências que fazem que o dese- diário é supérfluo.
jo de salvação e a faculdade de discer- A luz divina é unidade e amor, uni-
nimento possam aumentar. As forças dade na qual ela não pode fazer outra
também sustentam o candidato de ma- coisa senão atrair para si todos os ir-
neira contínua até que ele tenha adqui- mãos extraviados, todos os microcos-
rido as novas faculdades da alma. mos. A imitação de Cristo era a tarefa
Os bogomilos identificavam-se dos bogomilos: “Amar o mal bem”.
com esse filho caçula que, liberto das
cadeias do mundo mediante a com- BIBLIOGRAFIA
preensão dos dois campos de vida, Hörger, M., Der Verschleierte. Märchen Von
alcançara a vida verdadeiramente divi- Ketzen und Verfemten (O velado. Histórias de
na. Seus irmãos mais velhos, invejosos, heréticos e banidos). Frankfurt: Fisher, 1991.

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36
Peter Deunov e seus alunos nos montes Rila. Deunov explica a relação existente entre os sete raios e as sete
cores com os homens. Sobre a pedra comemorativa de 1930 (à direita): “Irmãos e irmãs, mães e pais, amigos e
estranhos, instrutores e alunos, pajens e mestres: na qualidade de servidores da vida, abri vosso coração ao bem
e sede como esta fonte”. © No caminho da luz, Bialo Bratsvo, 2000.

A obra de Peter Deunov

“Eu creio no amor e na sabedoria, que criaram o problemas serão resolvidos.Aquilo que sou não
mundo. Creio que eles possuem a força para recriar importa. O que importa é o que recebeis de mim.
o mundo. Creio que o amor e a sabedoria viventes Graças a Deus, encontrastes uma fonte que flui.
podem transformar nossa vida, nossa sociedade e Nada digais acerca da parte que eu possa ter nisso.
nosso lar. Se aceitarmos o amor e a sabedoria, a ver- Somos chamados de “os deunovistas”. Isso é um
dade e a justiça virão. Os anjos desceram do céu e erro. Eu prego o amor de Deus. Não digais que
fizeram amadurecer os bons frutos em nossa alma. minhas prédicas são a invenção de um certo Deu-
Eu vos digo: Deus habita em mim e eu habito em nov, mas que este ensinamento emana da Fraterni-
Deus. Se não crerdes nisso, não me sentirei ofendi- dade da Luz.Amanhã virá outro com outro nome.A
do.Vós me perguntais por que vim à terra e o que grandeza dos que vieram a este mundo está em que
desejo. Quero acender as lâmpadas apagadas e fazer- eles transmitiram a verdade que Deus lhes revelou.
vos brilhar como uma pequena vela ou uma tocha.
Não prego nenhuma libertação. Eu prego como
fazer a vontade de Deus na terra. Eu prego a via so-
bre a qual realizar a vontade do Deus vivo, segredo
de vossa libertação. Ela vos dará o sentimento de
serdes irmãos e irmãs, e vos preparará para a vida
que vos espera após vossa existência terrestre.
É inútil vos deixardes hipnotizar por minha pessoa e
minhas declarações. O importante é aceitar o ensi-
namento. Se a isso vos aplicardes, todos os vossos
ele é tanto visível quanto invisível. Não é a mim que
deveis seguir, mas sim o amor de Deus. Existe algo
estranho no mundo: o divino. E o divino é o que vos
quero transmitir e fazer-vos compreender. Para isso,
é necessário penetrar no reino do amor. Não se
trata de meus pensamentos, mas dos pensamentos
divinos. Eles eram antes da criação do mundo e são,
portanto, uma manifestação de nós mesmos. Mesmo
o menor impulso para o bem é a linguagem de
Se credes que podeis fazer distinção entre o mestre Deus. Com freqüência me perguntam o que contém
e Deus e entre Deus e o mestre, então não com- o ensinamento que transmito, e eu respondo:‘Trata-
preendestes a lei. Se o mestre pensa que pode agir se do ensinamento da natureza viva, que contém em
fora de Deus, por certo ele segue uma pista falsa. O si toda a força vital, com a qual se ocupa a ciência. É
único mestre que ensina o homem é Deus, e para a ciência do homem, a ciência do que é racional no
fazê-lo ele toma uma forma ou outra. Desse modo, mundo. É a ciência de Deus, a ciência do amor’.”

Deunov sublinhava com freqüência a va Iorque. Em 1895 voltou à Bulgária,


futura importância crucial do amor: onde recusou ofertas de emprego para
poder tornar-se professor e predica-
O amor é necessário para salvar o dor teosófico.
mundo. Ele é a única força que pode Em 1897, empreendeu seu próprio
engendrar a paz entre os povos e as trabalho espiritual e publicou um es-
nações. Cada um tem uma missão a crito intitulado Chamado a meu povo.
cumprir na terra. O amor começa a Em 1900 fundou a Fraternidade Branca
surgir; a bondade, a justiça e a luz Universal, cujo fundamento era amor,
triunfarão; é apenas uma questão de sabedoria e verdade. A partir desse
tempo. As religiões terão de purificar-se; momento, ele passou a viajar pelo país
elas sempre conservaram algo do divino, inteiro a fim de transmitir seu ensina-
porém, as reiteradas concepções huma- mento e curar os homens. A cada ano
nas o obscureceram. Todos os crentes que passava, um número cada vez maior
devem juntar-se e unir-se sob um único de pessoas vinha a seus congressos. A
princípio: que o amor seja o fundamen- Igreja acompanhava suas atividades
to de sua fé, qualquer que seja ela. O com certa inquietude e acabou por
amor e a fraternidade devem ser o excomungá-lo. Ele passou a morar em
ponto de partida de todas as crenças. Sofia, onde reuniu aos poucos uma
comunidade e passou a dar conferên-
Sempre foi dito que os bogomilos cias com regularidade. Todos os anos
À direita:Também reapareceram com Peter Deunov (tam- eram realizadas reuniões e conferên-
para Deunov bém conhecido como Beinsa Douno) cias no mês de agosto nos Montes
o pentagrama e sua obra. Filho de um padre ortodo- Rila, junto aos Sete Lagos Sagrados.
representa as
xo, ele nasceu em 1864, num pequeno Em 1914, intimado a residência for-
realizações do
vilarejo não muito distante do Mar çada em Varna, teve uma visão de
novo homem:
amor, sabedoria,
Negro. Em 1888, foi aos Estados Uni- Cristo, a quem consagrou, a partir de
verdade, justiça, dos para estudar teologia e medicina então, toda sua vida. Mais tarde ele
virtude. nas universidades de Boston e de No- declararia: “O que Cristo disse e o que

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eu digo hoje provêm de deada e Deunov refugiou-
uma única e mesma se nos montes Vitosha. Al-
fonte”. gum tempo depois, nes-
No decorrer de sua se mesmo ano, ele disse
existência, Peter Deu- a um de seus alunos que
nov presidiu numerosas sua tarefa na terra havia
conferências. Como tan- terminado e que logo mor-
tos outros dirigentes espi- reria, o que aconteceu em 27
rituais do início do século de dezembro às 6 horas da
XX, ele também viu as grandes possi- manhã, tendo ele nos lábios o esplên-
bilidades da nascente era de Aquário. dido “aum” em sânscrito.
Em sua visão, essa era teria começado Dois dias depois, as autoridades
em 1914, e ele considerava seu dever comunistas vieram para prendê-lo e
acompanhar esse novo ciclo espiritual. talvez executá-lo. Em seu túmulo, fora
Em 1922, formou uma escola e come- da capital, não se vê nenhum nome,
çou a fazer palestras públicas. Ao mes- apenas um pentagrama no interior do
mo tempo, organizou, todos os anos, qual estão gravadas as seguintes pala-
um congresso de verão, exceto em vras: “Amor, Sabedoria, Verdade, Jus-
1927, quando as autoridades proibi- tiça, Virtude”, o legado de uma grande
ram as grandes reuniões dessa Frater- alma.
nidade.
Peter Deunov foi um homem caris-
mático talentoso, um místico que, O aluno vive na luz,
com seu ensinamento, tentou reviver único mundo verdadeiro.
o cristianismo original. Em sua opi- A sombra não é real.
nião, esse ensinamento, aniquilado no Busca a luz sem sombra alguma.
decorrer dos séculos, havia se tornado Repele todo pensamento,
inacessível às pessoas comuns. Porém, todo sentimento que, por natureza,
o mais importante era o amor, sobre o obscurecem tua consciência.
qual ele dizia: “Com base no verda- O puro amor humano
deiro amor é possível ver Deus em leva ao sofrimento,
tudo, até mesmo na coisa mais ínfima. o sofrimento cria a experiência,
O ser humano deve tornar-se uma a experiência produz o discernimento,
fonte, um sol, um espaço imenso onde o discernimento gera a sabedoria,
tudo deve ter seu lugar. O amor divi- a sabedoria conduz à verdade.
no é a pedra filosofal, o elixir da vida”. O amor humano é mutável e muda,
Deunov foi músico e compôs hinos o amor espiritual muda sem mudança,
maravilhosos e muito tocantes. Ele in- o amor divino não é mutável,
ventou, também, a “paneurritmia”, e não muda, apenas se desenvolve.
uma série de danças sacras que favore- Deves primeiro amar todas as coisas;
ce o crescimento espiritual. ter amor por tudo, e amar cada coisa.
A Segunda Guerra Mundial teve re- Se receberes o amor cósmico,
percussões na Bulgária. Este país fazia amarás todos os seres,
parte das Potências do Eixo, que e a unidade de toda a vida
apoiavam a Alemanha. Aproximada- será tua realidade.
mente quatro meses antes do Dia D,
no início de 1944, Sofia foi bombar- Peter Deunov

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