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volume 3
Artes -Tonal/atonal
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IMPRENSA NACIONAL-CASA

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DA MOEDA

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11 Artes (Hubert Damisch)


66 Artista (Hubert Damisch)
91 Objecto (Cesare De Seta)
114 Produção artística (Manlio Brusatin)
159 Atribuição (Mieczystaw Porçbski)
177 Artesanato (Manlio Brusatin)
212 Som/ruído Uean-]acques Nattiez)
229 Escala Uean-]acques Nattiez)
245 Harmonia Uean-]acques Nattiez)
275 Melodia Uean-]acques Nattiez)
298 Rítmica/métrica Uean-]acques Nattiez)
331 Tonal/atonal Uean-Jacques Nattiez)

357 Plano da obra


358 Gráfico

Director
Ruggiero Romano

Consultores do projecto
Alfredo SaIsano, Giorgio Berroldi, Alessandro Fonrana,
Jean Peritor, Massimo Piattelli Palmarini, Massimo Galuzzi,
Fernando Gil, Krzysztof Pomian, Giuseppe Geymonar,
Giuseppe Papagno, Gian Paolo Caprettini, Renato Betti,
Giulio Giorello, Clemenre Ancona.

EDlÇAo PORTUGUESA

Coordenador- reIponsável
Fernando Gil

Secretan"ado
Vasco Rosa, Leonor Rocha Vieira

Coordenação gráfica
Gabinere Editorial da IN-CM

,,:) 1984 Imprensa Nacional-Casa da Moeda


213
SOM/RUloo

e que
se estatuto atribuir ao srlêncio, que parece ser o fundo sobre o qual o som
destaca?

No caso de Schnebel, trata-se de partituras que não se destinam a ser


SOM/RUÍDO executadas ou ouvidas, mas sim a ser lidas. Que é que nos permite, neste
caso, falar de música? A resposta parece-nos ter sido dada por Molino [1975],
quándo mostra que a música é, na realidade, um «facto social total., segundo
I' MarceI Mauss, que não é somente constituída por sons, mas sim por urna
multiplicidade de outras variáveis, como a sala de concerto, o instrumento, o
maestro, a partitura, etc.: pelo menos na nossa civilização, elas são necessárias
1. Música, stléncio e som
para que o fenómeno «música:> possa acontecer. Basta que um indivíduo
decida isolar urna dessas variáveis, mesmo que não seja sonora, e lhe aplique o
Já por várias vezes foi referido o facto de as enciclopédias mUSICaiS qualificativo de «musical:>, para que o fenómeno não sonoro seja associado
',Idinirem e descreverem os fenómenos com que se preocupa a musicologia, mentalmente ao facto musical total de que provém. Que se passa no caso de
exceptuando o próprio conceito de música. Todavia, isto não é totalmente Schnebel? Falar de música a propósito de grafismos de carácter visual, cria
exacto: pelo menos na enciclopédia Fasquelle, François MicheI cita no seu uma atitude musical no espectador: a do músico capaz de ouvir interiormente
uma partitura, ao lê-Ia.
;utigo cMúsica. a conhecida fórmula de Rousseau: cArte de combinar os sons
de uma maneira agradável ao ouvido., e a seguir a de Lttré: cCiência ou Mas constatamos assim que o musical não se desembaraça facilmente do
r-rnprego dos sons a que chamamos racionais, ou seja, que pertencem a uma sonoro - o que justifica que se possa considerar a eXperiência de Schnebel
eSlllla, dita gama (g(1mme):>. O autor está consciente da insuficiência destes como um caso limite -, potque a escuta interior, e logo silenciosa, supõe a
dois testemunhos, mas, em vez de tentar compreender as razões pelas quais o preexistência do sonoro; é necessário que ele tenha estado presente mesmo se,
Ir-nno 'música' é diffcil de definir, termina remetendo laconicamente para a na experiência em questão, não é efectivado.
flJusica
sabe humana
o que 6. de Baécio: «Quem quer que desça ao fundo de si próprio Talvez nlio seja legítimo então considerar o silêncio corno a condição do
som. O dado de partida parece ser sempre um misto de silêncio e de sons,
E~tes poucos exemplos bastam para mostrar de que maneira a definição porque, onde encontrar o silêncio absoluto? No deserto argelino, ou na
de-música depende de uma orientação estética ou de uma escolha ideológica: solidão gelada do Artico antes da aparição dos automóveis e dos barcos a
pré-romantismo em Rousseau, positivismo em Lttré. Os contornos do facto motor? Diz-se que o homem encerrado numa câmara anecóide, ao fim de
lIIusical variam segundo as pessoas, as épocas e as culturas. Recordemos a alguns instantes ouve com grande nitidez esse ritmo primordial que é o
advertência de um etnomusicólogo: cAs representações colectivas de que a batimento
um ruído. do seu coração. Aquilo que cremos ser o silêncio é, na realidade,
música é objecto, nas sociedades sem escrita, estão longe de ser
suficientemente conhecidas. Falta-nos, se se pode assim dizer, conhecer o --,/ Sem dúvida, Cage apercebeu-se disso, visto que declara: «Graças ao
{é'nómeno por dentro. Temo-nos dedicado muito pouco a precisar o que L silêncio, os ruídos entraram definitivamente na minha música" [1976, p.
define, no espírito dos indígenas, o conceito de "música". Por outras ..· ..112]. As experiências permitem «que o silêncio de uma partida de xadrez
palavra.~, teríamos dificuldade em dizer, qualquer que seja a população apareça corno aquilo que reaJmente é: um silêncio pleno de ruídos:> [rbrd., p.
lOnsiderada, onde começa a música e onde acaba, e quais as fronteiras que 210J. Sabemos também o que significa a sua obra 4' 33" (1954), durante a .
marcam a passagem da fala para o canto. [Rouget 1968, p. 1344]. Pronunciar qual o pianista, por várias vezes, aproxima e retira as suas mãos do teclado,
a palavra 'música' significa delimitar um outro conjunto de fenómenos s,em nunca tocat uma única nota, o que leva o auditor a tomar atenção aos
rxistentes como cnão-música».
ruídos da sala. Quer a lenda que, aquando da estteia mundial de 4' 33",
Partiremos do princípio que, em todas as culturas, o vocábulo 'música' a janela... aberta tenha deixado entrar o canto dos pássaros da floresta
vizinha
d('signa urna família específica de acontecimentos sonoros, e propomo-nos
naminar em particular a questão da fronteira entre som e ruído em relação à Portanto, existem pelo menos dois tipos de silêncios, o silêncio fora da
ddilJição de «música», sendo o problema da distinção entre som musical e
música e o silêncio na música, e neste segundo grupo, três categorias: o
som linguístico aqui abordado por Charles Bailes (cf. o artigo «Canto:». silêncio considerado como obra musical, em que se convida o auditor a escutar
M;IS, logo de início, o princípio de que partimos levanta algumas objecções:
os sons que ele contém, os silêncios de expectativa da música clássica, e os
!file- bzer das Musik zu sehen, das «músicas para ver:>de um Dieter SchnebeI,
silêncios considerados corno valor em si na música moderna. Potquê estas duas
últimas distinções? O silêncio que se segue à exposição do primeiro tema na
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SOM/RUrOO 214 21~ SOM/RUfo·

•• terceira sonata para piano de Beethoven reconhecido por uma cultura. (1915, p. 53J. Levando as coisas um pouco inais
longe, a fim de podermos incluir não apenas o fen6meno Schnebel mas

•• também a .-irte da fuga (Vie Kunst der Fuge, 1749). que Leibovitz
demonstrou ser uma música para ler [1951. p. 31): é música todo o fenómeno
que um indivíduo. um grupo ou uma cultura aceitam considerar como tal.

•• É nestes termos que se põe o problema da fronteira entre som e ruído.

•• 2. O ruído enquanto fenãmeno semiológico

É possível distinguir som e ruído em termos acústicos, sendo o som o

•• resultado de vibrações periódicas e regulares e o ruído, o resultado de


vibrações aperi6dicas. Existe aliás. em França, e talvez noutros países. uma
definição física, oficial, do ruído: «Uma vibração errática ou estatisticamente

•• • U,IOé um silêncio que se escute por ele próprio, mas sim um silêncio pleno da
expectativa do segundo tema; sabemos, evidentemente, que a obra não
terminou, e por pouco que tenhamos ouvido outras sonatas, ou por pouco
aleatória». Esta distinção basear-se-ia na oposição «sons puros ou simples»/
/ «sons complexos•.
Mas estas definições são postas em causa por todos os estudiosos da
acústica: chama-se ruído, na verdade. a «todo o som que toma para nós um
que conheçamos a sua forma, sabemos que se vai seguir um segundo tema de carácter afectivo desagradável. inaceitável. qualquer que seja aliás esse

•• carácter diferente.
Com Debussy, o silêncio parece assumir um novo valor: «Servi-me -
e~lCevea Chausson em 2 de Outubro de 1893 - de um meio que me parece
carácter ... A noção de ruído é essencialmente, e antes de tudo, uma noção
subjectiva» [Chocholle 1973. p. 38]. Os critérios que. de um ponto de vista
perceptivo, fuem com que um som seja qualificado de ruído, são numerosos

•• ba~tante raro; ou seja (não se ria) do silêncio como agente de expressão, e


lalvez como maneira de fazer valer a expressão de uma frase» [citado in Alain
I()(Í), p. 370]. Esses silêncios escutamo-Ias porque, no interior da obra,
e diversos: a intensidade demasiado elevada. a ausência de altura definida e a
falta de organização (complexidade, cacofonia, ete.) [cf. ibrd., pp. 39-40;
Gribenslci 1975. p. 24]. Notemos que estes «critérios» são sempre definidos

•• • lornam-se o fundo necessário sobre o qual o acontecimento sonoro se destaca.


Mai~ larde, Boulez verá na música, seguindo o exemplo de Webern, «um
(o/lIraponto de som e silêncio» [citado ibid.].
Desde a abolição das cadências tonais, a obra cessa quando
em relação a um limiar de aceitabilidade (uma intensidade suportável. a
existência de alturas fixas, uma noção de ordem). o qual só arbntanamente é
definido como norma.
Enfim. se se confrontar as definições físicas com a prática dos músicos
(ompreendemos que ela terminou, ou seja, em princípio, quando já não há clássicos, ou seja, se se considerar a equação som/ruído = música/não-

•• SOIll. No entanto, Ligeti conseguiu terminar as suas Nouve/les aventures


( I'H>)-(;:>) com um silêncio diferente daquele que, em qualquer concerto
,Lissico, separa por um breve instante a última nota dos primeiros aplausos:
-música, rapidamente descobrimos que a maior parte dos sons «musicais., por
exemplo os utilizados numa sinfonia clássica. pertencem à categoria dos sons
complexos (formados por diversos componentes sinusoidais) e que os sons que

•• UIII ~ilêllcio que é parte integrante da obra. O maestro mantém a batuta


kvaulada, como se ainda houvesse som para se ouvir, o público escuta esse
"il('u,io, e depois ele baixa o braço. A audiência guia-se por um índice não
o ouvido espontaneamente considera ruídos, têm por vezes a mesma estrutura
acústica que os sons «musicais». Schaeffer esforçou-se mesmo por mostrar que
o som da nossa música clássica «tem também um sopro, é granuloso,

•• ',()(101O,mas seguramente musical, que lhe diz ou que lhe faz crer que a obra
lIao acabou.
FSle último exemplo vem confirmar todos os outros: pertencem à
comporta um choque no ataque, é fluruante, pleno de impurezas - e tudo
isto revela uma musicalidade anterior à musicalidade "cultural"" [1968, p.
284]. Mas convém não esquecer que esses «ruídos» do som clássico não são

•• IIl1lsi,a, ~ilêncio, sons ou ruídos que os hábitos culturais e convenções tácitas


1\lIS IÚnll considerar como seus. Manevau escreve: «Chamamos objecto
1/1111/,"1 a todo o objecto sonoro integrado numa construção sonora querida
preponderantes.
Situámo-nos, sucessivamente. do ponto de vista da definição acústica, da
abordagem perceptiva e da atitude composicional. Estas três dimensões

•• 1'('10hOlllem, mesmo se essa vontade se limita ao acto da audição» [1977, p.


1"1 Ikfiuição interessante, porque sublinha que o faéto musical não resulta
',"III('UI(' de uma intenção cnativa (<<façomúsica»), mas também de uma
correspondem àquilo que a semiologia musical distingue sob o nome de níveis
«neutro» (ou material), «estésico»e «poiético». definidos e utilizados no artigo
«Harmonia» desta EncicloPédia. Reencontramo-Ias aqui porque a distin-

•• IIlJflld,' d,' ,'Iolla (<<decidoque o que oiço é musical»). Por outras palavras,
M,dill" diz, bastante a propósito: «O musical é o sonoro construído e

'y ',.'
ção som/ruído não tem fundamento físico estável e porque a utilização
destes dois conceitos é, à partida, culturalizada. As situações descritas nos

.. ",' -',," . -,'.:-"i', ;"', 1/,~ I


SOM/RUfoo 216 217 SOM/RUfDO

parágrafos precedentes podem, portanto, sei' esquematizadas do modo obra de «sociologia. musical que não merece todo o ruído que se fez à sua vol-
indicado na figura 1. ta - sobre as conotações contestatárias da palavra. A sua tese resume-se a is-
O caso ilustrado é aquele, mais frequente, em que certos sons aceites to: o ruído, ou seja, a música que incomoda, é o anunciador de urna nova or-
como musicais pelo compositor, são considerados edesagradáveis. pelos dem social. A partir de agora é, portanto, inútil que os especialistas de cálculo
auditores. Durante uma conferência sobre a música electro-acústica (Metz, 27 analisem os seus gráficos: basta auscultar a música de urna época para predizer
de Fevereiro de 197.<i), Luciano Berio afirmava que, aquando da sua aparição, as suas convulsões políticas. Se se quer tornar eficaz este sociologismo pítico,
o acorde da ópera Tristão e Isolda (Tristan und Isolde, 1857-59) era apenas há que avaliar aquilo que, numa determinada época, é considerado corno de-
ruído, ou seja, uma configuração sonora que os hábitos harmónicos do tempo sordem musical, problema que, na realidade, não é abordado pelo autor.
não podiam admitir (cL ainda o artigo eHarmonia., pp. 258-59). Resumiremos a nossa posição de conjunto nestes termos: da mesma
A cacofonia, eis o que incomoda. Eis uma amostra de opiniões particular- maneira que a música é aquilo que as pessoas aceitam reconhecer como tal, o
mente etnocêntricas, da pena de um etnomusicólogo alemão: eA música é um ruído é aquilo que é reconhecido como incómodo e/ou desagradável.
jogo com sons nítidos e determinados. Outros ruídos, como os glissandi, os A fronteira entre música e ruído é sempre definida culturalmente, o que
gritos, os murmúrios, podem sobrevir enquanto acessórios; se são numerosos, implica que, no seio de uma mesma sociedade, ela não passe pelo mesmo
o resultado é apenas parcialmente musical; se predominam, já não se pode lugar, raramente havendo consenso.
falar de música na acepção própria do termo ... A discussão à volta da
natureza da nova arte ruidosa [o autor mete aqui no mesmo saco Schoenberg,
Orff, Cage, Schaeffer e Stockhausen!], quer esta seja parcialmente musical ou 3. A atitude dos compositores face ao ruído
desprovida de sons, está obscurecida pelo facto de a qualificarmos "música"
concreta ou "música" e1ectrónica, se bem que tenha ultrapassado os limites 3.1. SitUação do problema
da arte musical. [Wiora 1961, trad. francesa pp. 191-92]. Somos sempre
remctidos para estas noções de fixidez, de pureza, de ordem: não é de Não é exagerado considerar que a extensão do conceito de «música», ou
espantar que os compositores que adoptaram sons que, numa dada época, seja, aquilo que - pelo menos no mundo ocidental - os homens aceitaram
outros consideravam como rurdos, tenham passado por revolucionários ou considerar como musical ao longo dos anos, corresponde à aceitação de
tivessem sido considerados como tal. Façamos a distinção entre as duas fenómenos sonoros anteriormente considerados como «ruídos». Olivier Alain
situações: a leitura dos ensaios e da correspondência de Wagner e a sua demonstrou, num interessante quadro [1965, pp. 363-65], que a hist6ria da
confrontação com o conjunto da sua obra musical, mostram claramente que música não é somente a das transformações das formas e das estruturas, mas,
este não escreveu o acorde do Tristão para revolucionar a linguagem musical ao mesmo tempo, a da integração de materiais sonoros novos. Lully tinha
ou para chocar o burguês, mas sim porque o cromatismo era, para ele, o meio introduzido, nalgumas das suas obras, apitos e bigornas, bastante antes de
de exprimir musicalmente o desejo amoroso, numa óptica bramânica. A acção Verdi (li Trovatore, 1853) e de Wagner (Das Rheingold, 1854). Mas é
dos eruidistas. (bruitistes) italianos, em 1913, situa-se, pelo contrário, dentro interessante notar que esta última obra, em que as bigornas se fazem ouvir «a
de uma perspectiva de subversão estética e social bastante mais vasta: os descoberto» (interlúdios entre as cenas II e IlI, e III e IV),
futuristas não hesitavam em espancar, manu mtlitari, os espectadores que Bigorn:lS nos hastidofes

perturbavam os seus concertos; em 1919, o Comité central dadaísta exige a


requisição das igrejas para a execução de sessões «ruidistas. [Lista 1975,
p. 22]. O economista francês Jacques Attali escreveu Bruits (1977) - uma

Nível poiético
(escolha do compositor)
Nível neutro
(definição física)
Nível estésico
Gulgamemo perceptivo)
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é também aquela cujo prelúdio talvez simbolize melhor a conquista


Som progressiva do espaço sonoro, desde o som original, com os seus harmónicos
Som musical sinusoidal puro Som agradável
Glmo, (011 movirncmo :1l1q~1O

Ruído
Ruído Ruído
(som complexo)
(não musical) desagtadhel pp

Figura 1.
Níveis de análise do som e do ruído.
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•• SOMlRulDO 218 219 SOM/RUfoo

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A iniciativa da extensão do music:ú pettence, quase sempre, aos compo-
sitores; na realidade, a barreira que sepm música e ruído também cede, mas
com alguma demora. Propomo-nos, neste parágrafo, examinar quais foram as

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atitudes de alguns compositores do século XX que, no nosso entender, contri-
buíram para. deslocar a fronteira entre 2i música e o ruído: Russolo, Schaeffer,
Cage e Murray Schafer. A t;amplexidade dos fen6menos simbólicos é tal, que

•• até, passando por sucessivas rransformações,


o estudo da atitude poiética dos compositores se desmultiplica de novo segun-
do os termos da tripartição, conforme o compositor tem, face aos sons, uma
atitude de dominante poiética ou estésica. .e assim que Russolo, Varese e

•• N
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Schaeffer, embora manifestando divergências entre eles, têm em comum o
facto de a sua integração do mundo dos ruídos no musical não significar o
abandono da responsabilidade composicional. Momaremos que a escolha de
Cage reside essencialmente numa atitude perceptiva e que a orientação de

-
1 Murray Schafer representa uma síntese das duas posições .

••
••
- 3.2. A atitude composicional

••
• 1
--- ~ No esquema da figura 1, a parte ttacejada representa a zona da música
«anterior» que as novas músicas abandonaram. A tal ponto que, no caso dos
futuristas italianos, é a totalidade do domínio fisicamente considerado como
li) ~ ruído que tem direito de cidadania no domínio do musical, e só ele:
«Beethoven e Wagner sacudiram-nos deliciosamente o coração e os nervos,
•• durante bastantes anos. Estamos saciados; eis porque temos infinitamente
li mais prazer em combinar idealmente ruídos de eléctricos, de autom6veis, de
carruagens e de multidões que gritam, do que ouvir, mais uma vez a
•• "Her6ica" ou a: "Pastoral" ... Saiamos depressa, porque já não posso reprimir
• 1-
~ por muito tempo o meu desejo louco de criar enfim uma verdadeira realidade
musical, distribuindo à esquerda e à dill:ita belas bofetadas sonoras, saltando
11 e dando cambalhotas por cima dos violinos, pianos, contrabaixos e 6rgãos
li gementes. Saiamos!. [Rus~lo 1913, eei. 1916 pp. 11-12].
De que maneira opera Russolo? Parte das definições acústicas, baseando-
li à saturação completa da oitava:
-se nos trabalhos de Helmholtz: «Chamamos som ao que é devido a uma

• sucessão regular e peri6dica de vibRações; ruído, ao que é devido a


movimentos irregulares, tanto no que se refere ao tempo, como à intensidade.
• .'Uma sensação musical, diz Helmholtz, apresenta-se ao ouvido como um

I no!
som perfeitamente calmo, uniforme, invariável". O carácter de continuidade
que o som tem em relação ao ruído, o qual nos aparece, pelo contrário,
• f
fragmentário e irregular, não é, no entanto, um elemento suficiente para

• I'
distinguir nitidamente entre som e ruído. Sabemos que, para que haja som,
basta não somente que um corpo vibre regularmente, mas ainda que essas
• O c/uster e o ruído branco (isto é, um som que ocupa todo o espectro das
vibrações sejam suficientemente rápidas para que persista, no nervo auditivo,
a sensação da primeira vibração até a chegada da vibração seguinte: então, os
frequências) não estão longe. impulsos periódicos fundic-se-ão num som musical contínuo. É necessário,
••
Como fizemos para a harmonia (cf. o artigo citado, pp. 266-67), esta
• evolução pode ser esquematizada, colocando a representação tripartida dos
fenómenos sonoros, sobre o eixo da diacronia (fig. 2).
para isso, que o número das vibrações não seja inferior a 16 por segundo. Ora,
se eu conseguir reproduzir um ruído com esta rapidez, obtenho um som
constituído pelo conjunto de numerosos ruídos, ou melhor, um ruído cuja

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SOM/RUfDO 220 221 SOM/RUfDO

repetição sucessiva será suficientemente rápida para dar uma sensação de residem as possibilidades máximas de extensão do musical: «A verdadeira
continuidade, comparável à do som. IRussolo 1916, pp. 27-28]. O autor e fundamental diferença entre o som e o ruído reside unicamente nisto:
prossegue a sua análise examinando o problema do timbre, e os seus escritos O ruído é bastante maL ,iço em sons harmónicos do que o é, geralmente, o
merecem que nos detenhamos neles por um instante, visto que contêm, por som. libid., p. 30]. «Eis a razão da enorme variedade de timbres dos ruídos,
outras palavras, as ideias-chave que Pierre Schaeffer desenvolverá quarenta em relação à dos sons, que é limitada. libid., p. 29]. Esta extensão é devida
anos mais tarde.
sobretudo, a uma escuta mais atenta do som: «Existem variedades de timbres
Existe, tanto em Russolo como em Schaeffer, uma espécie de num mesmo ruído. Em certos ruídos rítmicos, como o tiquetaque de um
deslumbramento perante as imensas possibilidades libertadas pela sua rel6gio ou o trote de um cavalo numa estrada pavimentada regularmente,
descoberta: cCom a introdução, na música, do número e da variedade dos
percebemos, muitas vezes, uma diferença de uma pancada para outra •. Entre
ruídos, tem fim a limitação do som enquanto qualidade ou timbre ... Com a
duas pancadas de rel6gio da mesma altura, «não chegamos a sentir uma
introdução de ruídos utilizados em fracções mais pequenas que o meio tom,
diferença de tom, mas a sensação de que as pancadas não são iguais persiste~
ou seja, com o sistema enarm6nico, está igualmente suprimida a limitação do
libid., p. 41]. Russolo pratica aqui o que Schaeffer definirá como «escuta
som na sua quantidade. [ibid., p. 62]. Como resultado, há. nos dois autores,
uma atenção privilegiada pelo que é, em geral, chamado timbre, onde reduzida., e, nos exemplos citados, descobre o que se chamará, mais tarde, a
«alimentação. (entretien) de um som. Em Russolo, a escuta reduzida efectua-
-se segundo os mesmos princípios que em Schaeffer, baseando-se um na
percepção reiterada do mesmo som e o outro na experiência da espira fechada:
Ruído «Ap6s o quarto ou quinto ensaio, Ios executantes dos concertos de ruídos]
\ I
P
Ruído diziam-me que uma vez o ouvido familiarizado e ganho o hábito do ruído

I
I
afinado e variável transmitido pelos difusores de ruídos, lá fora, na rua, eles
~ encontravam um grande prazer em seguir os ruídos dos eléctricos, dos
Ruído
autom6veis, etc., e constatavam com espanto a variedade de tom que
Música Som encontravam nesses ruídos. libid., p. 42]. Existe mesmo nos futuristas
italianos - o que não deixa de ser um paralelismo flagrante com Schaeffer _
a mesma atitude normativa que leva a afastar, da arte dos ruídos, os sons de
que se reconhece, com demasiada facilidade, a origem (a acusmática de
Schaeffer): «É necessário que esses timbres de ruídos se tornem matéria
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Ruído
Música
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E
Som
RuídoN abstracta, para que se possa forjar com eles a obra de arte. Com efeito, o
"I'/;//~~j~~
~ Som I ruído, tal como nos chega da vida, remete-nos directamente para a pr6pria
vida, fazendo-nos imaginar as coisas que produzem o ruído que ouvimos».
Ruído I
O ruído deve perder «todo o seu carácter de resrdtado e efeito ligado às causas
que o produzem» [ibid., p. 91]. Em termos schaefferianos, a escuta reduzida
pode também ser considerada acusmática.
Os termos 'artes' e 'obras de arte' aparecem com frequência em Russolo:
trata-se de organizar concertos com instrumentos, os difusores de ruído,
(bruiteurs) especialmente construídos para o efeito: os zumbidores, os
P \ N E estrepitadores, os estrondadores, os estridentadores, os fungadores ... !
"'''''//////// Infelizmente, pouco sabemos acerca dessas obras, já que os instrumentos de
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////,.////;'/
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SoIn
Som
Russolo foram destruídos, as partituras não foram conservadas e, salvo erro, s6
///////////
""/""//" //" possuímos em disco Serenata e Corale, duas obras de Russolo apresentadas
em Paris em 1921, reeditadas pela etiqueta His master's voice [Lista 1975, pp.
Música I Ruído 29 e 155].
Ruído
É difícil, portanto, saber o que eram essas obras enquanto composições.
Mas Varese , com a energia que lhe é conhecida, reprová-Ias-á por
Figura 2. introduzirem, sem discernimento, os ruídos da cidade na sala de concertos:
Representação diacrónica dos fenómenos sonoros. «Porquê, futuristas italianos, reproduzir servilmente a trepidação da nossa
SOM/RUlDo 222 223 SOM/Rufoo

vida no que tem de superficial e incómodo? [citado in SanouilIet 1966, p. Duchamp transformava um urinol em esculrura. Cage faz ready-made
42]. Em Varese, o gênero composicional predomina. A propósito de uma musical, onde tudo se toroa aceitável, devido a uma preocupação de liberdade
execução de /onisation (1931) - que é, não o esqueçamos, a primeira obra absoluta: é necessário realizar cuma situação inteiramente nova. na qual
exclusivamente para percussões - diz o compositor numa conferência: «[ As qualquer csom ou ruído se conjuga com qualquer outro. [ibid., p. 71].
percussões] são chamadas instrumentos produtores de ruídos, mas eu chamo- Donde a sua predilecÇ.io pela execução simultânea das suas obras, o seu
-Ihes instrumentos produtores de som. [1937, p. 3]. E o jornalista que concerto para vinte gira-discos, a sua esperança de Olrvirum dia rodas as fugas
relatava estas afirmações acrescentava, de um modo particularmente do Cravo bem temperado (Das wohltemperiert C/avier, 1722 e 1744)
clarividente para a época: «Empregadas por ele, são mais do que produtores executadas ao mesmo u:mpo. Sendo o cluster o remate 16gico do acorde do
de som, fazem música» [ibid.]. Mesmo que Varese se proponha «abrir todo o Tnstão, Cage não faz mais do que levar um pouco mais longe o princípio da
universo dos sons à música ... , fazer música com todos os sons possíveis. politonalidade. «Não se poderia conjecturar que o ruído ... não é, ele próprio,
[1939, p. 83], é o compositor, em última instância, que decide quais deve a soma de uma multitude confusa de sons diversos que se fazem ouvir
incorporar na obra. simultaneamente ... ? A questão não é de Cage, mas sim de Rousseau [1768,
Schaeffer, que por várias vezes reconheceu a sua dívida para com Varese,
p. 59] que, na sua visão profética, anuncia um tempo em que não se poderá
teorizou este problema fazendo da distinção entre o sonoro e o musical um dizer se o ruído foi admitido na música, ou se a música foi absorvida no
dos eixos essenciais do seu Traité des objets musicaux [1966]. O compositor
ruído, e onde já não existe separação entre a música e a vida. Para Alan
concreto deve limitar-se ao «domínio dos objectos convenientes, aqueles que
Warrs, diz ainda Cage, «não se devia pegar no rumor das grandes cidades para
sentimos instintivamente que são propícios ao musical» [Schaeffer 1967, 83,
o transplantar para uma. sala de concertos: a separação dos sons do seu meio
4]. Para os caracterizar, o autor combina três critérios de construção
era, para ele, funesta. Ora bem, eu nunca pretendi outra coisa. O meu voto
(impulsão, som prolongado, construção iterativa) e três critérios de massa
(carácter tónico, massa complexa, massa variada), aos quais acrescenta um mais profundo seria que se escutassem enfim os sons no seu ambiente, no seu
critério de equilíbrio temporal. De descritiva, a abordagem de Schaeffer espaço natural. [1976, p. 102].
torna-se normativa, e os compositores do Groupe de recherches musicales não A atitude de Cage opõe-se radicalmente à de Schaeffer, no qual a escuta
tardaram a explorar sons musicais para além das fronteiras estabelecidas por acusmática deve-nos fazer esquecer a origem do som. Para Cage, é na pr6pria
Schaeffer. Isto porque o «instinto do musical» é profundamente subjectivo, cidade que é necessário captar a música, recusando aquilo a que o compositor
variando com o utilizador e o contexto do som. O eclodir da tipologia inicial canadiano Murray Schafer chamou, de uma maneira muito bela,
de Schaeffer, na prática composicional mais recente, é uma prova de que o cesquizofonia •. Mas poder-se-á impedir o compositor contemporâneo de
musical não é senão o sonoro aceite por um indivíduo, um grupo ou uma escutar os sons por eles pr6prios, pode ele renunciar por mais tempo às suas
cultura. responsabilidades?

3.3. A atitude perceptiva 3.4. A caminho do lZCusticdesign

Assim como Russolo, Varese e Schaeffer, Cage propôs-se, desde há


A este respeito, a atitude de Murray Schafer representa uma interessante
muito, «explorar todas as possibilidades instrumentais não reportoriadas
síntese dos pontos de vista de Cage, por um lado, de Russolo, Varese e
ainda, o infinito das fontes sonoras possíveis de um terreno inculto, de uma
Schaeffer, por outro .. Reatando uma tradição poética romântica, a de um
lixeira, de uma cozinha ou de uma sala de estar. [1976, p. 68]. mas a sua
Kleist, que ouvia verdadeiros concertos no vento do Oeste, Murray Schafer
atitude difere radicalmente da dos seus colegas: em vez de agir criativamente,
pôs-se à escuta de Vancouver. Com a sua equipa, partiu em busca dos ruídos
escolhendo e organizando, Cage define uma nova atitude de escuta: «Maisse
«musicalmente interessantes.: propôs assim um passeio acústico num bairro
descobre que os ruídos do mundo exterior são musicais, e mais música existe»
da cidade. Atento à sinfonia do mundo, o ouvido do músico selecciona e,
[ibid., p. 84]. O que é então o musical? «Todo o ruído que nos pareça poder
tornar-se musical, pelo simples facto de o incluirmos numa peça de música. pouco a pouco, o compositor vem ao de cima: Murray Schafer imagina uma
Não era o que ensinava Schoenberg e de maneira alguma o que procurava nova disciplina, que talvez um dia o ecologismo imponha, o acustic design.
Varese» [ibid., p. 69]. Podemos dizer que Cage pratica um nominalismo Num livro recente, o autor imaginou cjardins soníferos» [1977, capo XI]. C~be
radical que engloba tanto o som como o silêncio, como já se viu: «Partida de agora aos compositores confeccionar, a partir de um estudo selectivo do
xadrez, eu te baptizo concerto», poderia ter dito, da mesma maneira que ambiente sonoro, a paisagem musical da Cidade de amanhã.

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SuM I RUIDO 224
225 SOM/RUloO

,1. As consequéncias estéticas da introdução do ruído na música


Pode-se ainda citar, como exemplo, esta observação de Schaeffer: «Para
Webern, a partitura é necessária no plano da fabricação, mas já não reflecte a
Este deslocamento progressivo da consciência musical face à distinção
obra, é apenas um meio de a obter. Webern tem necessidade da sua partitura
som/ruído não pôde deixar de afectar a natureza da música. Examinaremos,
para dar indicações aos instrumentistas ... Que Ihes pede ele? Essencialmente,
para terminar, seis consequências da nova situaçãO assim criada. pede-Ihes para realizar objectos musicais. O que conta, com efeito, nessas
Antes de tudo, a noção de nota é ultrapassada pelo conceito mais vasto
curtas peças, o que se ouve, não são as relações de altura e duração que se
de objecto sonoro. Como sempre, quando um novo fenómeno se impõe na podem ler na partitura, mas sim o seu extraordinário requinte na exploração
uiação, segue-se a teoria. Schaeffer, no fim do seu Traité, imagina uma do material sonoro, obtido pela subtileza dos modos de execução, utilização
«musicologia generalizada., ainda por nascer, que se basearia na descrição das do arco, atritos sonoros, etc .• [in Pierret 1969, pp. 54-55].
cuacterísticas sonoras das músicas de todo o mundo. Encontramos aqui e ali Não se trata aqui de imperialismo, somente da tomada de consciência de
alguns fragmentos desta abordagem, como nesta observação de Mâche sobre a uma universalidade do fenómeno musical sob as espécies do sonoro.
AfJPassionata (1803-804) de Beethoven: «Conquistámos finalmente todas as possibilidades:>, exclama Russolo [1916,
p. 65]. Donde uma nostalgia da totalidade de que Michel Chion soube falar
a) Tema inicial: eloquentemente: «O que esta música sonharia ser, ela sabe-o: uma espécie de
supra-música, de convocação de todos os sons do universo, de exploração de
todas as acústicas possíveis. A utopia de uma música que englobasse todas as
outras, o que é que parece poder realizá-Ia, senão, pela sua capacidade de
recolher e urdir todos os sons, a música electro-acústica? ... [Mas] remetida ao
seu ghetto de expressão marginal, a música electro-acústica continuou a
acariciar em segredo esse velho sonho de uma música total e, outra utopia, o
de uma música "inaudita". [Chion e Reibel 1976, p. 320].
Por que razão falar de ghetto? Fascinados pela infinidade dos achados
sonoros, os compositores concretos ou electro-acústicos absorveram-se, a maior
b) Repetição: parte das vezes, na pesquisa de sons sempre novos, em detrimento dos
problemas de composição propriamente ditos, ou seja, da organização desses
IR
"~ objectos sonoros no seio de uma obra. Dificilmente se encontrará nos escritos
de Russolo ou no Traité de Schaeffer um longo desenvolvimento destas
~
..
questões, e a passagem do livro de Chion e Reibel consagrado ao «trabalho de
composição. não ultrapassa as quatro páginas [ibid., pp. 237-40]. Ora,
produziu-se nas músicas electro-acústicas o mesmo fenómeno, mutatis
-------- mutandis, que na música serial académica: a busca árdua de sons inéditos dá
as mãos à utopia bouleziana de uma música não repetitiva, conduzindo
ambas a uma indiferenciação monótona.
Mostrando que, na repetição (b) do tema inicial (a), o compositor Cremos que, no caso das músicas electco-acústicas, essa indiferenciação é
intercala um novo objecro sonoro, Mâche escreve: «A noção de objecto devida, na realidade, à predominância do timbre sobre a melodia. Se Russolo
sonoro, nascida directamente da técnica da fita magnética, pode aplicar-se à tem razão ao ver no timbre a característica que distingue o ruído do som, e se
IIllÍsica instrumental. .. A análise harmónica ou melódica do tema, no seu ,este tipo de música é feito de ruídos, então a melodia desaparece. Varese
('stado primeiro ou na sua repetição entrecortada, é desprovida de qualquer manifestava já muitas reticências a este respeito: «A percussão, quanto à sua
interesse: tónica-dominante, um acorde arpejado e uma meia cadência; é a essência sonora, tem uma vitalidade que os outros instrumentos não
prÓpria tonalidade. A substância musical reside noutro lugar: na oposição possuem .. , As obras rítmicas de percussão estão desembaraçadas dos ele-
extrema, para um mesmo acorde, das duas dinâmicas pp e ff, na qensidade mentos anedóticos que, com facilidade, encontramos na nossa música. A par-
uesrente do segundo objecto (a novidade do pedal do piano bastava então tir do momento que a melodia domina, a música torna-se soporífera:> [citado
para dar a ilusão de um "inchar" sonoro que só o órgão pode realizar com ibid., p. 20]. E Chion define da seguinte maneira a aposta da música concreta
hatlidão) e, sobretudo, no facto de o segundo objecto, totalmente oposto ao desde os primeiros estudos de Schaeffer: demonstrar que critérios tais como o
primeiro, ser no entanto derivado da mesma matéria sonora, "manipulada" andamento (a//ure), mas também o "grão", a "massa", o "critério de inten-
diferenremente, se assim se pode dizer:> [1959, pp. 18-20]. sidade" , são susceptíveis de criar, pela sua variação de um objecto sonoro para
outro, um discurso semelhante ao que criavam, na música tradicional, as
••• SOM IRlJrnO
226
•• 227
SOMI Rufoo

•• v;lria~'úesde altura de uma nota para outra. É possível, por exemplo, criar
Il\(')odias, não de alturas, mas de andamento, pela junção de objectos sonoros Mas não se pode fazer uma pura música de timbres, porque a mustca
•• de taractcres mais ou menos "extensos" ou "cerrados", "profundos" ou universal ntio existe. Estamos irremediavdmente condenados ao mundo do
•• "Iisos"?~ [ibid., p. 58}. Podemos perguntar-nos, com o risco de passarmos misto, do quase e do entre. É talvez isso que, após o esquerdismo «ruidista»,
as obras dectro-acústicas mais conseguidas encontraram: um equilíbrio difícil
por lamentáveis passadistas, se as músicas de tradição oral (que nunca
!li abandonaram a altura, não o esqueçamos), clássicas e românticas, não devem entre os parâmetros tradicionais da música e as novas conquistas obtidas pela
extensão do musical a domínios até então inaceitáveis.
•• ao parâmetro «altura~ a existência desse fio do discurso, que tantas vezes faz
E se estivéssemos a iniciar uma nova idade clássica? [J.-]. N.} .
Edta na música electro-acústica. Se nos voltarmos para os grandes trabalhos,
•• para aqueles que os músicos e os críticos reconhecem unanimemente como
•• obra..~-primas, que constatamos? O Canto dos adolescentes (Gesang der
Alain, O.
jiinglinge, 1955-66) de Stockhausen trabalha com as consoantes, tratadas
•• ramo ruídos, e com as vogais, tratadas como sons - analogia que Russolo foi, 196' Le langage mUJical de Scb6nberg a nOIiOtl17, in N. Dufoureq (org.), l.J musique, leI
sem dúvida, o primeiro a assinalar [1916, p. 51} -, o que permite o uso de bommu, lu inItrumentI, lu IZuvru, vol. lI, Larousse, Paris. pp. 3H.86.
•• Cage, J .
variações de frequência. Omaggio a joyce (1958) e Visages (1961) de Berio 1976 Pour lu oiuaux: mtretiem avec Damel Cbanu, Belfond, Paris.
•• baseiam-se também num material retirado da voz humana. Quanto ao Chion, M., e Reibel, G.

li soberbo De Natura Sonorum (1974-75) de Parmegiani, é possível, do


princípio ao fim da obra, identificar a sua «melodia~ dominante. E não será
1976 leI mUliquu électroacouItiquu,
Chocholle. R.
Edisud. Aix.en-Provenee.

1973 Le hruit, Presses Universitaires de France. Paris.


•• ncccssário interrogarmo-nos sobre o número crescente de músicas mistas, que Gribenski, A.
combinam os recursos electrónicos e instrumentais? Lembremo-nos da querela 1975 L 'audition, Presses Universiraires de Frarl(e, Paris.
Ia entre os «concretos» e os «electrónicos:>nos anos 50. Os primeiros censuravam Leibowirz, R.

Ia os segundos pela pobreza de timbre dos sons electrónicos e acusavam-nos de 1951 L 'évolution de Ia musique, de Biú:1f a Schomberg, Corrêa, Paris.
Lisra, G.
privilegiar o controlo matemático dos parâmetros tradicionais. É certo que os
••• 197' Prefácio e comenrários:l rrad. francesa de Russolo 1916. L'âgc d'Homme, Lausanne.
«electrónicos:>viam na máquina o meio de realizar com exactidão as exigências Mâehe, F.-B.

•• do serialismo generalizado, mas tratar-se-ia apenas disso? Não haveria, na sua 19'9 ConnaÚIance des JtructureJ JOnores, in .La Revue Musicale •. n? 244, pp. 17-2' .
Maneveau, G.
atitude, a consciência, mais ou menos clara, de que não nos desembaraçamos
•• com facilidade da altura? 1977 MUJique et éducation, Edisud, Aix.en.Provence .
Molino,J.
" A penetração do «ruído:>na música chamou a atenção de uma maneira
197' Fait musical et Jémiologle de Ia mUlique, in eMusique cn jeu •. n? 17, pp. 37.62.

• jamais igualada, para os problemas do timbre, e isto é talvez a contribuição


mais importante da música electrónica para o desenvolvimento da linguagem
Murray Schafer, R.
1977
Pierrer, M.
Tbe Tuning of the Wond, McOelland and Stewasd, Toronto - Knopf, New York.

t musical e da musicologia. Mas pode-se construir uma obra utilizando apenas


sucessões de timbres? 1969
Rouget, G.
EntreiienJ avec PiefTe Scbaeffir, Belfond, Paris.

,
t
t
Se procurássemos uma última oposição lapidar entre som e ruído,
diríamos que se distinguem pelas dimensões horizontal e vertical, porque as
múltiplas qualidades sonoras de um ruído são dadas simultaneamente na
riqueza e na complexidade dos harmónicos. Exactamente porque falta ao
1968 L 'ethnomuJicologie, in J. Poirier (org.), Etbnologle générale, in EncYc/OPédte de Ia
Pléiade, vol. XXIV, Gallimasd, Paris, pp. 1339.90.
Rousseau, J.-).
1768 .Bruir~, in Dictionnaire de mUJique, Duchesne, Paris, pp. 59-60.
Russolo, L.
ruído a dimensão temporal, Russolo, como vimos, propunha transformá-Ia
t em som, por alongamento, e Schaeffer teve a possibilidade de apreciar a
1913 L 'arte dei rumon. ManijêJto futurista, in .Corriere di Napoli.,
aerualmenre rambém in Russolo 1916, pp. 9-17.
11 de Março;

• riqueza de um som isolado graças à experiência acidental da espira fechada. 1916 L 'arte dei rumon', Edizioni futurisre di .I'~ia" MiJano.
Sanouiller, M.
Vemos aqui em que reside a mais profunda utopia da música electro-acústica:
I ter tentado fazer uma arte irredutivelmente temporal com um material
vertical.
1966 FrancÚ Picahia et '391>, Losfeld, Paris.
Schaeffcr. P.
• Mas, ao descobrir a riqueza infinita dos timbres, os «ruidistas» e os seus
1966 Traité des ohjetJ mUJicaux, Seuil, Paris.
1967 So/fige de I'ohiet sonore, Scuil, Paris (rrês discos de exemplos sonoros por Schaeffer
sucessores foram tentados por uma outra utopia: criar uma nova forma de 1966).
música pura. Russolo sonha com uma música de ruídos puros; Schaeffer, 1968
Varese, E.
l.J Iévere mimon de Ia mUJique, in .Reme d'esthériquc., XXI. 2-3-4. pp. 253-91.
aplicando ao sonoro a redução eidética dos fenomenólogos, sonha com uma
1937 Modero percumon f1tI1Jterpiece illuJtrateI compoJer'I luture, in .Santa Fe New
música livre das impurezas da anedota; Cage sonha com um mundo Mexican~, 9 de Serembro, p. 3.
harmonioso onde a diferença entre a vida, a música e os ruídos é abolida. [i 939] Comunicação ao seminário de escudos musicais de Princeron, in G. Charbonnier,
Entrettem avec Edgard Varese, Belfond, Paris 1970, pp. 83-86.

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,"'.'~',\ . :~''~;;~.~
.... .•. ~..•;. v.' ,'?- .•.. -1'· )/ ,c,; n".,; .' .•.-."
SOM/RUrOO 228

Wiora, W.
1961 Die vIer Weltalter der MIIJI"k, Kohlhammer, Stuttgart (trad. francesa Payot, Paris
1963).

ESCALA
rJ Definem-se muitas veles os fenómenos (rf. fenÔmeno) que wnstituem o objecto da
muskologia, ma.s não o próprio conceito de música; esta definição depende wrn efeito de uma
orientação estétira (rf. críltca, gOJto, JenJib/lidude) ou de uma opção ideol6gira (d. ideologia).
Em todas as culturas (rf. cu/tura/cu/turaJ, natureza/cultura) a palavra 'múska' indica uma
família específira de aronterimentos sonoros (cf. acontecimento, eJcala) e examina-se aqui a
questão da fronteira entre som e ruído em relação rom a definição de música, mais do que o
problema da distinção entre som musical e som linguístiro (cf. eJcuta, canto, linguagem, As escalas, com as quais o homem tem a possibilidade de tornar discreto
métrica, .'oz). A música é um farto social total. constituído cert~mente por mais do que o som, e
implirando muita..s variáveis, muitas combinações, não apenas musicais (cf. me/adia,
o continuum sonoro, constituem a matéria-prima de qualquer organização
musical.
tonal/atonal; e para alguns aspectos particulares, dança, cena). A distinção entre som e ruído
pode também fundar-se em termos acústiros, mas os tritérios respectivos são diversos e Posto isto, elas põem problemas fundamentais à musicologia: de onde
numerosos, e implicam dimensões diversas da semiologia musical (cf. harmonia, rítmica/métrica; vêm, como são constituídas? Nenhuma cultura musical as dispensa. Mesmo a
mas também língua/fa/a, Jigno, Jignificado, Jímbolo, texto). A dialéctica entre som e ruído
aparece então não apenas romo complexa, mas rambém em contínua evolução.
música electro-acústica, da qual se poderia pensar que é rebelde a todo o tipo
de descontinuidade, visto que se baseia, em primeiro lugar, no timbre, não
f pode deixar de, num dado momento, identificar e classificar os seus
componentes: a morfotipologia do Traité des objets musicaux de Schaeffer
[1966, pp. 389-472] é, ao fim e ao cabo, uma vasta «gama de timbres~ _
retomando a expressão de Nicole Beaudry -, o que não é de espantar da
parte de um autor que teria desejado prolongar o solfejo tradicional [ibid.,
11
'
. pp. 490-508] .
Em primeiro lugar, ponhamo-nos de acordo sobre os termos. Uma escala
1) consiste numa sucessão de intervalos;
2) determina um número dado de alturas;
3) está privada de funções privilegiadas;
4) e tudo isto no interior de um corpus dado.

,
':
Esta definição requere alguns esclarecimentos.
1) Uma sucessão de intervalos, e não de alturas, porque, inde-
pendentemente do ponto de partida da escala, o que conta para a sua des-
crição é a presença (ou ausência) de intervalos, numa ordem dada. Assim, é
1 indiferente representar uma das várias formas da escala pentat6nica deste
modo

~ --
.....
~~ ~~ ~ ~...---0 ----
ou deste

"'--n -::.::.=-.

~ ..~-

;
-,,
2) Em compensação, as escalas possuem um número definido de alturas.
Veremos, mais adiante, que uma das dificuldades do seu estudo consiste,
precisamente, em estabelecer o seu número.
~
d
230 231 ESCAlA
liSCAI.A

3) Não possuem funções privilegiadas, sendo a função característica do Não é improvável que Chailley se aproxime da noção de gamut, quando
1II0do. No caso da pentatónica, por exemplo, existem cinco modos conforme define JÍJtema: «Do interior d:f escala emerge um sistema que compreende os
la.!;l urna das alturas é considerada, por sua vez, «tónica. (tonal center para os sons efectivamenre empreg:uibs» [tüid.]. Mas se, por um lado, o termo
'sistema' peca pela sua generalidade, por outro, Chailley atribui-lhe uma
Anglo-saxónicos, Grundton para os Alemães). O termo 'centro tonal' é
posição intermediária numa evolução ideal, que conduziria da escala ao modo
•crt amen te preferível, a fim de evitar conotações excessivas com a tonalidade
o.idclltal. [ibid., pp. 83-84; 1959, p. 153]; melhor é conservar gamut, com o seu
estatuto de inventário neutro.
A maior parte das discussões sobre as escalas gira à volta de questões de
.. a .. ordem física e matemática [cf. Weber 1963; e, em particular, Chailley 1960,
~ •• e
pp. 293-94J. O debate milmário acerca das vantagens dos sistemas de
" .. •• e Pitágoras, Zarlino ou tempaado poderia fazê-Io pensar. Ora, quando,
@ e segundo o princípio adoptado nos artigos musicais da presente Enciclopédia,
examinamos os postulados nos quais se apoiam as teorias das escalas,
constatamos que é mais importante adoptar um ponto de vista antropológico .
~ .• ~ ~ .. e Na Europa, e até 1960, aproximadamente, essas teorias s6 podem ser
compreendidas à luz do evolucionismo e do difusionismo, que marcaram a
~ ~ ~ .. e •• antropologia, nomeadamente germânica, do século XIX e da primeira merade
do século xx. Mais ainda, são o próprio estatuto e concepção de históna, não
só na musicologia, mas também na etnomusicologia - de onde esta noção
8 .•
~ u .. .. poderia facilmente ser excluíd:t -, que estão em jogo.
Utilizaremos como espinha dorsal da nossa investigação os trabalhos
4) Foi necessário precisar que tudo isto só tem sentido quando sobre as escalas, aos quais Jacques Chailley consagrou vários anos de reflexão.
relacionado com um corpuJ; de facto, não se pode estabelecer uma escala a Não porque representem a última palavra no campo teórico, mas porque a
partir de uma só peça. Chailley faz notar que, vista de fora, a escala dej'ai du sua precisão, coerência e influência (através do ensino na Sorbonne e do
1m" tabac parece pentat6nica [1954-55, p. 146], sendo o conhecimento do importante colóquio internacional sobre a ressonância nas escalas musicais,
cor!JIIs tonal o que nos permite constatar que esta canção particular s6 utiliza realizando em 1960 [cf. Chailley 1960]) fazem deles um caso-tipo, a partir do
."inlO sons de entre sete. Convém, no entanto, referir que o inventário da qual se podem pór numerosas questões.
lotalidade dos sons utilizados numa só peça, ou num subgrupo de peças no Os trabalhos de Chailley não se inspiram directamente no evolucionismo
seio de um corpus homogéneo, é perfeitamente legítimo, nomeadamente em antropológico, mas sim na fimlagia literária, o que não impede que a sua
(·tnomusicologia, na análise das idiossincrasias estilísticas: é aquilo a que os maneira de proceder ponha os mesmos problemas que o evolucionismo
Americanos chamam gamut. O gamut de j'ai du bon tabac escreve-se assim: antropológico. «O estudo da linguagem musical - diz Chailley - deve
inspirar-se nos princípios comparativos e evolutivos que transformaram a
/'J filologia literária numa ciência exacta. Ele deve apoiar-se tanto no documento
~- .•• u e·· .• escrito e datado - comentário antigo ou música notada - como nos
testemunhos vivos da etnologla musical, e estabelecer a ligação entre as duas
c eis o de FrereJacques: fontes; deve, enfim, estudar em que medida os factos constatados estão
conectados com os fenómenos físicos da ressonância e com a fisiologia. [1955,
pp. 93-94]. É pela ressonância:que começaremos.
~ _ -e- U'
e .. e ••
U-

1. A históna natural
Segundo uma prática que, ao que parece, remonta a Hornbostel, o
Ilaj('('1Ode utilização dos sons no gamut pode ser indicado por meio de Existe em Chailley um primeiro tipo de tempo histórico, aquele que ele
11('(lias:
julga poder derivar da ressonância natural:


E ----..

rr-.-/_~6~e
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- ';',"" _.~ ,'"\l/,·',f ,~~ Y",'.".j~ :., _;••~ ""'-_.'\.'~,~""~,, \\,
.)L 233
ESCALA

:1
Baseando-se nesta, Chailley desenvolve o seu raciocínio da seguinte maneira:
1) Os intervalos mais frequentes são-nos oferecidos pela natureza, em vez, introduzem um intervalo novo, que se junta aos precedentes libid.,
pp. 80-81].
particular, aquando da produção involuntária de sons sucessivos: «O homem
que sopra num instrumento primitivo, como a flauta, ou outro, possuindo
Esquema parcial
palheta ou bocal, não pode deixar de notar, ao fim de pouco tempo, que do cido das quinras Intervalos E.<;<al:.ts

modificando ligeiramente o modo de soprar, é produzida, por vezes


involuntariamente, uma nota diferente da anterior, e que entre as duas notas
Quinta. quana Bilónic;l. == ••
se estabelece uma relação constante. De entre essas relações, as mais 1-2~
~. -4L
e---
-~~-& -----
frequentes são aquilo a que chamaremos, mais tarde, oitava e quinta. Temos
já aqui, só pela via da constatação material, dois intervalos fixos, oferecidos •• 8 Tritónic2
,- 3 , •• Tom (s<~unda maior) EJ ••
pela natureza à atenção do homem. [1954-55, p. 26]. ~ o

-_.-&-
•••

•• n-'-
2) Entre todos os intervalos encontrados no curso de diversas experiências
de ressonância (sinos, gongos, etc.), «só dois se repetem com uma real TC'ttat6nica
,.{ ~ •••••• Tm<;ra m<I1O,
~--
-. -- ~-~

-
constância: a oitava e a quinta. São estes os dois primeiros intervalos da lL --_- •.e.''tY
I

! ressonância. [ibid., p. 26].


3) São exactamente estes que é necessário considerar, visto que a 1-5 ~ •••••••• Tm<;ra maior
PC'Ilf:U6nira
.~.~---~
==. n--&--U---
•. --~.o'lY- ------
intensidade dos harmónicos decresce da esquerda para a direita. Um
fundamento natural das escalas só pode ser encontrado entre os sons que se 1'(1
@ .. •• 8
.•..•• Meio tom dla[. Hexalónica
podem detectar sem aparelhagem experimental [cL ibid., pp. 25, 29] . ~:~-rr ••••
4) A partir daqui, o raciocínio torna-se analógico: «Devemos concluir
que só pela observação directa, o homem entrou em contacto com a
ressonância? Seria presunçoso afirmá-Ia. Ignoramos o percurso espiritual dos
I+~ I
~ •• •.• 8
....
_. O TrÍlono
Heplalónica
..~
• ---=-='-0-. ~ o ..•
0 ..• 9 ....
nossos primeiros antepassados. Apenas podemos dizer "tudo se passa como
se",. [ibid., p. 30]. E, mais adiante: «Tudo se passa como se os harmónicos, 7) Para o autor, este quadro apresenta «uma ordem de apartição
1 -'j
descobertos mais tarde do que a lItilizaçiio dos fen6menos aos quais se
referem, não fossem a causa desses fenómenos, mas se nos apresentassem
cronológica (pelo menos provável) mas também, e sobretudo, uma hierarquia
ntrutural que subsiste, em graus diversos, mesmo após a estabilização das
como a consequência de uma causa comum; como se o homem se tivesse escalas terminais. [1959, p. 148]. Cada novo esrádio assimila «os resíduos dos
entregado, de forma instintiva e intuitiva, a uma construção progressiva, estádios anteriores» [1954-55, p. 81] e a escala heptatónica _ a nossa escala
segundo a necessidade interna de uma ordem, cujos dados lhe eram diatónica - constitui o «ponto culminante do ciclo» [ibid .• p. 85] de onde o
fornecidos psicologicamente, e de que, mais tarde, a natureza, pelo dodecafonismo é excluído, porque uma escala octotónica, que introduza o
j, fenómeno dos harmônicos (descobertos ulteriormente) lhe tivesse mostrado a meio tom cromático, nunca foi registada [ibid., p. 84].
justeza. [ibid., p. 41]. Esta argumentação contradiz o ponto 3, porque se Deste modo, Chailley mata três coelhos de uma só cajadada: explica o
tudo se passa ao nível do «como se., nada impediria as escalas de seguir passado, o presente e o futuro da linguagem musical. O passado, porque situa
completamente a ressonância.
1'1 a origem das escalas na natureza; o presente, porque as hierarquias ainda vivas
'i!
5) A formação das escalas explicar-se,á pelo ciclo das quintas, derivado
no actual sistema tonal explicam-se em função das que regem as escalas; e o
dos quatro primeiros sons (dó-dó-sol-dó). Obtemos assim, a partir de um fá
~ futuro, visto que proclama o falhanço ele um dodecafonismo que, segundo
il escolhido por razões de comodidade, a seguinte disposição [ibid., p. 44]:
, ele, não existe, porque não devia ter existido. ,

~•
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....
u~_=Iiii-_m~=:n-~_:-~:
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m~#u- ~'J~~'
11"
•••
Existe um primeiro obstáculo à teoria de Chailley: a oitava, a quarta e a
quinta - as três consonâncias - estão documentadas universalmente?
Comecemos pela oitava. Observamos que, num número significativo de
4 civilizações musicais, a oitava não é conhecida, ou seja, o âmbito efectivo do
6) Para Chailley, «esta construção não é um postulado a prion', é o desenrolar melódico situa-se num espaço inferior à oitava.
princípio imposto pelos factos e do qual encontramos a base em todas as «A oitava não é, de maneira nenhuma, um intervalo óbvio na musICa
músicas primitivas, ou, pelo menos, nos mais antigos sistemas coerentes primitiva», escreve Curt Sachs [1957-59, p. 54]. e no seu Wellspn'ngs of Musie
conhecidos. [ibid.]. Chailley propõe, portanto, uma classificação hierárquica encontram-se exemplos de sistemas musicais desprovidos desse intervalo,
das escalas, a partir dos diferentes estádios do ciclo das quintas que, de cada como é o caso dos Marind -anim da Nova Guiné, segundo Kunst [citado ib,d. ,

I p. 166]:
-•• 1',',1 AI A 234 235

••
<:SCM.A
••
& ' ~'l - primitivas. Schneider. por exemplo. propõe o seguinte diagrama [1947 •
r ~ 19JI"/In~;;k=i-3f~( '" UI'6:J UI p. 12]:

••
• I 4/.J), b - -

011.111\l'i~:fllelJ~Batwa do C--<Jngo,segundo Brandel [citado ibld., p. 180]: Culturas remoras o


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-8


'"

~ 'tc~:a~f U-=t:0~r ,r ICiUi"


~ i -I } :E
8c
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Afi:is, em cerras culturas musicais. a oitava, ao que parece, é ligeiramente E
••
•• 111;11\ alra ou mais baixa do que a definição habitual 2: 1; seria o caso,
\('~:lIl1doCharlcs Boiles, da música dos Otomi e dos Tepehua, no México.
f{("',lasabcr se o som à oitava é percebido como idêntico ao primeiro.
.;;:
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•• 1~1Ilsq~undo lugar, existem no património músical escalas bitónicas e


11i,(ÍlIicas quc não correspondem aos tipos de quarta e quinta, e quarta,
'1"illla c sq~unda, previstos por Chailley. Schneider [1960], que neste ponto
Recokctores Cl

«A esta classificação etnográfica:. - que Danckert [1937) aplicou sistema-

• clIlIcorda ((>lUSachs [1943, pp. 31-44]. distingue dois tipos: 1) as peças de


:l,"hiIO ('crrado, constituídas por segundas maiores ou menores dentro de um
ticamente à música - «não corresponde uma musical:., afirma Schneider
[1947, p. 13], propondo a seguinte generalização especulativa [ibrd.]:
• :l'lIbiIO dc segunda, terceira ou quarta, como nos Esquimós do Cariboo (caso
Caçadores
• «"(olhido por Esrreicher [citado in Sachs 1957-59, p. 59]): Pastores Agricultores
Homem Mulher

• it=J---+-J
~'j1 '- ) ) .rJ) J ) })] n) Predomínio do metro
Polifonia
Predomínio da mdodia
Harmonia
•• 1111
(()lI]Oneste exemplo, recolhido por Kunst [cf. Schneider 1947, p. 61], dos
K:li da Nova Guiné: Neste texto, que corresponde a um primeiro estádio do seu pensamento,
••
• fi: J ) ~:J 1) J
Schneider explicava a formação das escalas a partir do ciclo das quintas: «[As
escalas] nascem progressivamente, na música vocal primitiva, a partir de
• ~ J J.: ). 1,- -
formas semelhantes às fanfarras e a partir de relações elementares de quarta e
de quinta:. [ibid., p. 17]. No colóquio de 1960, Schneider destacava a acção
I ou ainda, entre os Fueginos, num espécime recolhido por Hornbostel [cirado da terceira: «Se bem que a quarta e a quinta desempenhem um papel muito
I i/l Wiora 1956, p. 192]: importante na polifonia primitiva, não se encontram propriamente na base
do desenvolvimento, nem participam na génese da polifonia. A sua
• ~ t] r U U'r O GLr-r í í ~I influência manifesta-se somente nas formas mais evoluídas ou estagnadas ...
Na maioria dos povos primitivos, a génese das escalas parece ser fortemente
• influenciada pela acção da terceira:. [1960, p. 151].
c 2) o tipo dito crriádico. ou «de fanfarra. acima o sistema dos Marind-
t -a/lim).
(cE.
A partida, Wiora é levado a fazer a mesma constatação empírica: «As três
consonâncias [oitava, quarta e quinta] não existem ... nas formas melódicas
I É de sublinhar que estas escalas conjuntas ou triádicas não podem, de cerradas, cujo âmbito é inferior ao intervalo de quarra:. [1960, p. 132]. E mais
I maneira nenhuma, ser explicadas pelo ciclo das quintas. É neste ponto que o
raciocínio evolucionista causa perplexidade e que os teóricos fazem intervir
adiante: «Nas suas origens, a música não foi regida por quartas, quintas e
oitavas:. [ibid., p. 133]. Mas é difícil desembaraçar-se de uma explicação tão
• um segundo tipo de temporalidade. racional, quanto o ciclo das quintas. «A quarta, a quinta e a oitava
assumiram, no entanto, uma grande importância, se não no estádio mais

antigo, seguramente numa era bastante recuada:. [ibrd.]. Visto que estes
2. A história relativa intervalos se encontram nos Bosquimanos, nos povos siberianos, nos Lapões e
nos Esquimós, cé necessário admitir que já estão nitidamente caracterizados
A contradição reside no facto de que estes exemplos são recolhidos em na época paleolítica. A partir daí, regem quase toda a música primitiva que
populações consideradas, do ponto de vista evolucionista, como muito ultrapassa o âmbito de terceira:. [ibld.]. Na realidade, a dificuldade do
raciocínio está ligada às suas próprias premissas: uma música baseada em duas
ESCALA 236
237 ESCALA

ou três notas é mais simples, e logo mais antiga, do que as músicas


inscrevem-se numa trajectória unilinear de desenvolvimento. Por sua vez, o
heptatónicas ou pentatónicas. É essencial respeitar o «primitivismo» do
bitónico e do tritónico, sob risco de comprometer a influência da teoria do difusionismo data as culturas em função da sua posição em relação a um
centro de difusão. Encontramos um resumo do método, aplicado à música,
ciclo das quintas.
Para Schneider, as escalas formam-se, seja por expansão, a partir de um em Towards a prehistory oloccidental music de Sachs [1937]. A técnica
IIi
funbito de terceira, seja por sobreposição de terceiras [1960, p. 151]. Uma vez consiste em estabelecer cartas de distribuição geográfica dos fenómenos, e
relacionar biunivocamente o estilo musical observado e a datação relativa da
conquistados os harmónicos 7 e 9, «a relação do oitavo para o nono grau
I

transporta-se facilmente para os primeiro e segundo graus, preenchendo assim cultura em questão. Dentro desta perspectiva, as «regiões de recessão. (vales,
a terceira de base com duas segundas. [ibid.]. O mesmo processo reproduz-se ilhas, pântanos) são mais antigas do que as regiões em terreno aberto; os
entre os quinto e sétimo graus [ibid., p. 152]. Quanto ao primeiro tipo fenómenos situados na periferia de uma zona cultural são mais antigos que
I (âmbito de terceira preenchido, sol-lã-si), é a consonância de quarta aqueles situados no seu centro; num território homogéneo, o estilo dos locais
dispersos é mais antigo; as colónias são mais primitivas que a terra-mãe [ibid.,
(reencontramos aqui o ciclo das quintas) que o vem completar por adjunção.
«O material africano e americano permite mesmo observar de que modo essa p. U1].
1\
mudança de limites se processa no curso de uma canção. As primeiras frases Em The Rise 01 Music in the Ancient World [1943] e, mais tarde, em
não ultrapassam nunca o âmbito de terceira; somente na segunda parte, Wellspn'ngs 01 Music [1957-59], Sachs propõe uma classificação evolutiva -
nitidamente separada da primeira, a quarta é ostensivamente introduzida» indo do simples ao complexo - de escalas, relacionando-as com o grau de
[ibid., p. 151]. Desta maneira. o próprio desenrolar de certas peças reflecte a evolução das sociedades nas quais são recolhidas. Ao intervalo mínimo de
evolução das escalas: a filogénese explica a ontogénese. Schneider retoma o segunda junta-se a segunda, depois a terceira e a quarta, e o mesmo processo
mesmo raciocinio para explicar o nascimento da escala pentatónica: uma vez é retomado para cada intervalo [1943, pp. 37-38]. Apesar dos cambiantes e da
1\ I I que a consonância de quarta consolidou tetracordes como ré-fã-sol e sol-lá-dó, prudência da exposição de 1957-59, a obra, no seu conjunto, é altamente
o si, que se tinha introdu7.ido, por imitação, entre o lá e o d6, é, segundo o especulativa.
autor, repelido em certos cantos. Como se pode ver, a formação das escalas Neste contexto, a reacção de Brãiloiu. a partir de 1953, assinala uma data
efectiva·se em três tempos: escalas de âmbito reduzido e triádicas nos povos importante para a etnomusicologia europeia. É verdade que este autor
,I,
mais primitivos (Terra do Fogo, Malaca, Tasmânia, Vedas e Papuas, por um continua sensível à lei evolutiva do «como se.: «Os primeiros movimentos [da
.,.:~.
,li
lado, Mrica, Nova Guiné, )és e Esquimós, por outro), em seguida, a escala música]. quaisquer que sejam a época e o local geográfico do seu nascimento,
pentatónica, «inexistente no património musical dos povos primitivos, no são guiados por uma espécie de "ordem das coisas", a qual não lhes é dado
I] sentido estrito do termo» [ibid., p. 153], e, por fim, a formação de escalas modificar. E esta ordem dá-se a conhecer para além das especulações e das
I1I
«mais evoluídas ou estagnadas» [ibid., p. 151]. filosofias. Cingindo-nos aos documentos, tudo parece passar-se como se, uma
r Chailley não está tão implicadd quanto os seus colegas alemães nos vez encontrado o primeiro som de vibrações regulares (ou musical), as vias
para uma música estivessem traçadas para sempre. O avanço por essas vias é
postulados evolucionistas da antropologia. Todavia, quando depara com uma
111
escala que escapa totalmente ao ciclo das quintas, explica a «aberração» como lento, simultaneamente entravado e apoiado por leis físicas elementares:>
11'."
resultado de um estado bastante primitivo, ou, antes pelo contrário, bastante [1958, pp. 124-25].
I~ i avançado. Para ilustrar as primeiras, Chailley limita-se a citar um «chant par Mas realmente importantes, são as advertências de Brãiloiu contra as
glissement. da Formosa, mas, seguramente, o seu sistema teria dificuldade datações relativas e as hipóteses difusionistas aventurosas: «Uma classificação
em explicar esta surpreendente escala heptafónica, reconstituída por Vida em estados de desenvolvimento clamava imperiosamente por uma bitola de
Chenoweth [1966, p. 287]. dos Gadsup da Nova Guiné: primitividade, e acreditou-se encontrá-Ia num silogismo. A "estreiteza
mental" do homem primitivo teria por corolário m,aterial a estreiteza do seu
canto, cuja amplitude não excede a sobreposição de alguns sons contíguos .
~--- =---------'--- --.--
• =u_~=~=Jln::::::~~..::-~·::_= Paralelo que, infelizmente, assimila, sem as devidas cautelas, uma metáfora a
uma propriedãde concreta» [ibid., p. 123]. «Indubitavelmente, falou-se com
em que as cruzes indicam uma diferença de um quarto de tom em relação à
muita ligeireza, no presente, de músicas neolíticas ou da Idade do Bronze"
altura precedente. Sem dúvida, se tivesse conhecido este exemplo, Chailley
não teria hesitado em dizer: cEstas escalas, minoritárias em relação ao [ibid., p. 124]. cA escala pentatónica só relativamente é primordial, se
tomarmos em consideração as músicas ditas "eruditas" ou "artísticas",
desenvolvimento das escalas por quintas, são testemunhos extremamente
primitivos ... É o balbuciar instintivo de ensaios que se procuram a si próprios» conscientemente elaboradas, em momentos históricos indiferentes, a partir da
[1954-55, p. 196]. sua substância elementar, como a helénica, a perso-árabe ou a nossa:>[1953,
A especulação torna-se ainda mais complexa, quando o difusionismo dá ed. 1967 p. 313].
a mão ao evolucionismo. Na concepção evolucionista, as diversas civilizações Cada cultura musical tem, com efeito, uma história que lhe é própria. É
característico constatar que as hipóteses de datação relativa só se referem às
ESc:A!.A 238 239 ESCALA

~Kinlades de tradição oral: a partir do momento que nos encontramos em pre- p. 153J, porque, adquirid:t:li. funcionalidade, é possível raciocinar em termos
SCIlf.;;!
de documentos escritos, passamos a um terceiro tipo de temporalidade. de modos e já não de escalas.
Chailley invoca estes princfpios de atracção, igualização e tolerância,
3. A história documental quando tenta explicar um ouuo género de caberração.: a escala pentatónica
do Bali, que o ciclo das quintas não pode justificar. No s/endro, por exemplo
[McPhee 1933-63, ed. 1976 p. 47J,
Chailley recorre a este novo tipo de temporalidade, a partir do momento
em que a formação das escalas se explica mediante factos observáveis. Para a
cstala hexatónica e heptatónica, prossegue a ordem implícita no ciclo das ~ ;•. u •• ,....
quimas, mas em situações concretas o autor introduz graus intermediários.
Aliás, Chailley deu-se coPta da contradição, já que na formulação condensada aparecem meios tons escandalosos. Para Chailley, existe, neste caso, uma
do seu curso na Sorbonne, o Essoi sur les structures mé/odiques, a teoria da cigualização erudita da pentat6nica instintiva •. Nos rãga indianos [1954-55,
elaboração figura o por da formação directa pelo ciclo das quintas [1959, p. 199J
1'. 117 J.
Para descrever este estádio de formação, Chailley serve-se do _ u ~••
importantíssimo conceito dos pien, usado anteriormente por Brailoiu. Este
lermo, elaborado pelos teóricos chineses, designa as alturas que se introduzem e nos maqãm árabes
Ilum sistema pentatónico, mas que não o alteram. Trata-se, no nosso
exemplo, dos sons 4 e 7:
~ .•
.• " 11 •.•
Il. '"
..
1 a .. ti
- .... " I4 I4 I I

vê apenas a alteração de escalas obtidas pelo ciclo das quintas: «Quando uma
~
4
1
4

escala, aparentemente irregular, se apoia num sistema frxo de quintas ou de


Ilráiloiu resume da seguinte maneira, aquilo que os caracteriza: «Os pien quartas, sem ultrapassar o número de graus do diatonismo heptatónico (4
I) são sempre mais raros do que os sons constituitivos; 2) possuem apenas o numa quarta, 5 numa quinta), podemos considerar infinitamente provável o
papel de notas ornamentais; 3) variam; 4) reconhecem-se, muitas vezes, por tratar-se de uma deformação da escala normal, e não de escalas irregulares.
uma entoação hesitante:> [1953, ed. 1967 p. 334]. [ibid., p. 191]. Na opinião de Chailley, este processo é característico das
Para Chailley, a «solidÚlcação:>dos pien explica a passagem da escala sociedades «altamente evoluídas.: é seguindo os princfpios da igualização e da
pcntatónica à hexatónica, por introdução hesitante do mi [1954-55, p. 82]. tolerância, que a escala (gamme) natural de Pitágoras foi adaptada no sistema
Brãiloiu, que parece admitir a formação da escala pentat6nica a partir do temperado, a ftm de permitir a transposição.
ciclo das quintas [1953, ed. 1967 pp. 321-22]. recusa-se a ver nos pien o A formação do sistema temperado por igualização é um facto histórico do-
resultado de um calongamento do rosário das quintas:>. cTudo indica, com cumentado. Mas a modiftcação, seja de que natureza for, em relação a um ciclo
efeito, que os dois pien não foram encontrados por progressão de de origem natural, não explica grande coisa. Hornbostel [resumido in Schmidt
wllsonâncias. Visível, mesmo na China, em certos documentos escritos do 1919-20, pp. 569-70] propôs, nos primórdios da etnomusicologia, uma teoria,
stculo XVI, a sua mutabilidade deve ter sido motivada por razões débeis. E já dita das quintas obtidas pelo sopro (blownfifths) , para explicar, numa perspec-
que a música popular de todas as partes do mundo ignora igualmente o 4 e o tiva difusionista, vinte e três alturas atestadas em diversas escalas, que apresen-
7 racionais, deduzidos do ciclo das quintas, deduz-se que eles são, tanto um tam um desfasamento em relação ao ciclo das quintas pitagóricas. Segundo
mmo outro, sons de preenchimento acidentais e que a marcha de consonância Hornbostel, a partir de um centro de difusão situado algures na Ásia cenual, os
em mnsonância se interrompeu bruscamente, assim que deparou com o meio sons reais corresponderiam àqueles que se obtêm soprando com força nas flautas
tom:o [ibid., p. 324J. de Pã, que se teriam propagado através do mundo (Oceânia, Peru pré-colom-
Por fim, para explicar a passagem da escala hexatónica à heptatónica, biano, Equador moderno, Colômbia e Nordeste brasileiro). Posta de parte a
Chailley retoma a mesma hipótese [1954-55, pp. 130, 194], demonstrando própria hipótese difusionista, que não pode ser verifrcada, a discussão técnica
llaramente que o si é, antes de tudo, uma nota de passagem débil [ibid., [cf. por exemplo Kunst 1948] em torno dos desvios aceitáveis (a tolerância) en-
p. 1:36J. Ainda a propósito dessas mesmas duas escalas, irá ainda mais longe, tre as escalaspor ele estudadas e as alturas calculadas por Hornbostel, não prova
ao invocar a clei do caminho mais curto, ou seja, uma tendência universal nada, porque inscrevendo-se, geralmente, as variações em cent no interior de
para () movimento por graus conjuntos:> [ibid., p. 148], princípio que se um meio tom, é sempre possível falar de acomodação em relação às alturas deri-
eSI("llllcrá ao da catracção do grau fraco em direcção ao grau forte» [ibid., vadas naturalmente do ciclo das quintas.

,n I .'- "'1 .. :-;.,


ESCALA 241
240 ESCALA

Não obstante todas as dificuldades encontradas e os contra-exemplos dos Pn'mitive Music, um dos exemplos de Schneider [1947, p. 67] é precisamente
etnomusicólogos, Chailley não hesitava em sustentar, no fim do colóquio de retirado do corpus de cantos esquimós, recolhidos por Helen Roberts [Roberts e
1960, que ca estabilidade do bloco quinta-quarta parece ser um fenómeno Jenness 1925, p. 282, n? 80]. Em Schneider, o exemplo lê-se deste modo (trans-
praticamente gera!:. [1960, p. 297]. Deste modo, preserva-se ca perenidade portamo-Io, para facilitar a comparação com o texto original de Roberts):
dos princípios sobre os quais se construiu, desde há milénios, a linguagem
musical. [1954-55, p. 141] e a existência de cleis inamovíveis da música.
[ibid., p. 212]. Curiosa teoria genética, porque, em última instância, leva, no ~1)J j~)lJ\)lJ U\.,;'1)j,i)1))I)':)))J, :
universal e na eternidade, à negação da história.

~ )1)1; :)fl)1JI!J~'))I)1 ~)); :1')1)1J.!)I}l'):ll~)))b -~


4. A determinação das escalas
,I
enquanro que em Roberts possui a seguinte forma integral:
Brãiloiu teve o grande mérito de ser um dos primeiros, na Europa, a opor
a um estudo especulativo da génese das escalas, uma abordagem que se pode- ~ ) 1'1!]I )\
ye ye ye ye
l' .lI]1 ..h j) 1,}lJ
)'C ye i
I~}\]I ~#)I
ye iye ye ya hi yai ya yai ya ya i ya ha
), ) }I I
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ria qualificar de estrutural; para ele, as escalas (e os modos) são, antes de tu-
do, sistemas, na condição de reunirem os seguintes caracteres: cEstreito paren-
tesco entre os graus, segundo as leis da consonância, modos diversos corres- ~t)I)')IJ.I~ )1)1; 1))I~)ll\I!~l')I))'
ya a i p ha - i ya )'3 ya - a ha ya ya ~ i ya
I~lI);
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11')), )1))\) )11
lia - )'a qcyq-t.Jy-lu - ci -lu n~x-lk-t:JY-
f'ondendo a cada um dos graus, torneios melódicos típicos, numa palavra:
possibilidade de uma prática musical, tendo por condição suficiente uma es-
cala de 4,3 ou 2 sons. [1953, ed. 1967 pp. 370-71]. As escalas bitónica, tritó- ~ )1)~J\)1))I)); 1)1)';I~~)I;
1)~}\)lJ'Jl)lJll!Jl)lJ I
lu-ci laj-va ni ai ye-e qa qa-i ya i ya qol-i Yol qa - noqcap-kwa a - i - ye ya-a qa
nica e tetrat6nica são assim estudadas enquanto tal, e não como balbuciamen.

III
tos premonit6tios de uma humanidade musical, ainda na infância.
Brãiloiu, praticamente desconhecido nos países de língua inglesa, não
~bt~ ~~J I ~I).
i Y\' y:t i Y" <13 cap-ku
~IJ\ l')' Jll~II J'1)1
• li - ni q:it-qlt •. CCY·I - It -
ll~'~ll
pat m· u •.
l,)1 lll)1ll)1)11
il ti nan - u •. it - u cap.
exerceu nenhuma influência além-Atlântico. Mas, pelo seu empitismo
elegante, aproxima-se de alguns dos estudiosos anglo-saxónicos, para quem a
tarefa consiste não em reconstruir hipotéticas géneses das escalas, mas sim em
descrever-Ihes a estrutura.
_~q.f\tl)It~J'J'\)I)IMlA)'))))\~~))IJ
i
kna ai ye ve i- ya ye ye ye ye i yc ye hi ya-a hi ya - i rol - a i)'a ha - i ya
I

Talvez tivesse sido necessário, na Europa, tirar as conclusões das


observações de Ellis que, em 1884, publicava o que é considerado o primeiro
~ ))~J'IJ'II'~)\))I)I'I!)); I))1)I)\t))) )1~ljl)1 ),1
)";l ya-a ha yaya-i ya ha-i ya qcyq-l:Jylu-ci-lu na~-lk-lJy-lu-ci taj-va-ni ai
texto etnomusicológico dedicado às escalas musicais das diversas nações: cA
conclusão final é que não existe uma escala musical única, nem' 'natural", ou ~ )')1) 1~)IJ'\)I)+J~N--J!#=~~~l}1 ~ :tr1
!II sequer baseada necessariamente nas leis da constituição do som musical, )'(' - e <ta <ta - 3 1 y;"':" 3 i)'3 qa - i ya Il<li-yat - ka IIEr _ i-yuk-tun-nt. _ i yc
elaboradas de uma maneira tão magnífica por Helmholtz, mas sim escalas
muito diversas, artificiais e caprichosas. [Ellis e Hipkins 1884, p. 374].
Foi característico dos investigadores americanos tomar este capricho à
~!~J"-)';
ya
..
I - ya a qa
IW~),).t})1
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k . k
IlC - Yl-YU ·-tun-sq - I
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~~-*)')II
a-vu1J-a - a - (q _ p3 _ Y<lf) a _ ta
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letra. Desde 1932, e após ter transcrito e estudado mais de um milhar de
peças provenientes de dezassete culturas diferentes, Helen Roberts recusava-se ~ ,)1. .f1)}.!!]I
@ ~ ) )1,-~ ~ ) J I~.}o.l' )~-J-II~j, crv t'-.Jl
..

a empreender a análise das escalas. baseando-se em comparações estabelecidas yc}'c i - P' - c i-ye yc i- )'C )'c yc hi ya a

em termos de desenvolvimento [1932, p. 79], e acrescentava: «Se olharmos as


escalas emitidas pelos seus criadores, do ponto de vista das nossas normas o símbolo I
indica que a nota se encontra elevada um quarto de tom;
estabelecidas, teremos tendência para detectar nelas derivações em relação aos ~ indica que esta está abaixada na mesma medida. A barra dupla ( ..f ou '" )
assinala uma diferença inferior a um quarto de tom.
nossos princípios e aos nossos sistemas, sobretudo se essas derivações
parecerem coincidir com sistema escalares, teconhecidos noutros lugares como O procedimento de Schneider põe dois problemas graves. O seu exemplo
formas aceites. [ibid., p. 80]. Em compensação, propunha alguns critérios está, ao mesmo tempo, mutilado e truncado. Estando truncado, faz pensar
prudentes para a reconstituição das escalas. que este canto é um caso típico das «músicas primitivas por sobreposição de.
Examinemos agora, de mais perto, os exemplos musicais a partir dos terceiras_ (lá-d6-mi-sol) e, de facto, na sua comunicação de 1960, quando o
quais a escola etnomusicológica alemã fundamentou as suas teorias. Em autor remete para os exemplos musicais de Pn'mitive Music, os Esquim6s são
I'S<:ALA 242 243 ESCALA

rit;ldos nesse contexto (1960, p. 151). Schneider pratica aquilo que E1isabeth no fim de contas, a filobgia musical não se tenha servido de um dos capítulos
lknrand chama pigisme, ou seja, a construção de uma teoria a partir de essenciais da ciêncía·lire.rária, que, ao menos, lhe teria permitido apoiar-se
excmplos apanhados (pigés) aqui e acolá, sem zelar pela homogeneidade do numa base sólida, a s2iber. a ftxação do texto?
{orjms implícito, assim obtido. Mais. Helen Robem tinha tido o cuichdo de Temos que partir da reconsttução das escalas. Daí não será difícil, se se
n;10 supor a pnÓn' que alturas vizinhas (um quarto de tom de diferença), dispõe de testemunhos tangíveis, traçar a sua história no interior de uma
idênticas para nós, o fossem também para os Esquimós. Notemos que, no cultura bem circunscrita: o aperfeiçoamento das técnicas de trabalho de
quinto compasso, Schneider omitiu o quarto de tom, escrupulosamente campo e de análise fazem com que, 11 pnÓn', a hipótese não seja de afastar.
anotado por Robem. Ora, quando ela faz o balanço das alturas empregadas. Quanto à crença 00 fundamento natural das escalas - e tudo o que daí
chcga ao seguinte gamut [Robert e Jenness 1925, p. 397] (não criticaremos deriva -, esta apoia-se na mesma ideologia que justificava os primeiros passos
aqui a legitimidade da apresentação descendente): da antropologia: existência de uma lei natural, explicação racional baseada na
comparação, evolução conduzida pelo progresso e sempre perfectível.
O racionalismo do século XVIII dava a mão ao deísmo; mas o facto de não se
~"_=~e "~«----v.. e ~ •••.• #_ q_ o
saber qual a origem da espécie humana não implica que, para a explicar, se
Obviamente, Roberts não propõe uma escala, já que, dos cento e treze tenha de postular a existência de Deus. [J.-J. N.].
CHltOStranscritos. são obtidos cento e dois gamut diferentes. Seria necessário
levar a cabo uma análise minuciosa - que Roberts, deliberadamente. não
quis empreender - para determinar a escala ou escalas deste corpus. Sem Brãiloiu, C.
dúvida, alguns desses quartos de tom são devidos a variações da voz e à 1953 Sur une milodie rrme, in P. Suvlinskj (org.). MUJÚ/ue ruHe, vol. lI, Presses
inlluência do contexto, mas antes de tomar isto como cerro, é necessário UniversÍlaires de funce. Paris; actualmeme também in ObraJ , vol. I, Editura Muzicla
prová-Ia. A transcrição ética de Roberts, ou seja, aquela que dá conta das a Uniunii Compozitorilor din Republica Socialislã România, Bucure~li 1967. pp. 307-
·339.
diferenças mínimas (as minutiae), permitiria hoje seguir um procedimento
[1958J Ia vie anlineure, in R. Manuel (org.), Hirloire de Ia mUJique, I. DeJ orrgineJ à
análogo ao de Vida Chenoweth, para demonstrar que é pertinente falar de }ean-Sibl1Slian &tIh, in Eneyclopidie de 111 Pliiade. vol. IX, GaJlimard, Paris 1960,
quartos de tom entre os Gadsup (cf. supra, p. 236). Eis como a autora pp. 118-27.
justifica o seu método: «Baseando-nos no facto de que os quartos de tom são Chailley, J.
IÚ'quentes nos dados. e claramente distintos de um som adjacente, que (1954- 55J FOrmillion eI f1:lImformalion du langage mUJiea/. I. In/erva/leJ e/ éehelleJ. Cemre
poderia ser considerado como a sua flutuação, e notando que esses quartos de de Documemation Universitaire. Paris 1961.
tom são cantados ao uníssono por um grupo, sem qualquer desvio dos (1955J Reeherche des prineipeJ d'une phiJologie muJiea/e. in cRevue de musicologie.,
XXXVIII (19%). pp. 93-94.
participantes, pôde-se concluir que os quartos de tom têm uma identidade 1959 EHai Jurles slruel.res milodiques, ibid., XIlV, pp. 139-75.
distinta da dos meios tons e constituem os limites de um intervalo fonémico
(1960] Syn/hhe el eom:/imons, in Weber 1963, pp. 291-99.
de um quarto de tom,. (1966, p. 286]. Chenoweth, V.
Uma discussão rigorosa das técnicas utilizadas por Chenoweth nas suas 1966 Song Jlruelure 01 a New Guinea HighlandJ Irr"be, in eEthnomusicology>, X, 3. pp.
obras mais recentes [1972. pp. 50-58; 1979. pp. 123-29] para determinar as 285-97.
escalas excederia os limites deste artigo. Mas o procedimento empírico do 1972 Me/odie PercepiWn and Ana/YJÚ, Summet Institute of ünguistics. Papua. New
Guinea.
autor obriga a pôr em causa o valor dos textos musicais nos quais Schneider se
1979 The MUJie o/ lhe l.!JarufaJ, Summer Instilute of linguistics, Dallas Tex.
baseia. Em Primitive Music, este parte do princípio que os desvios em relação Danckert, W.
ao ciclo das quintas são explicáveis pelos erros do cantor. «É verdade que 1937 MUJlk und KulltnkreÚlehre, in eAmhropos., XXXII, pp. 1-14.
existem frequentes desvios em relação ao sistema das quintas naturais. mas, Ellis, A. J., e Hipkins, A. J
1884 Tonometrri:a/ obsLrvlllions on some exiJling non-harmomi: muJiea/ Jea/eJ, in ePro-
na maior parte dos casos. sobrestimou-se a signiftcação de tais notas. Parece-
ceedings of tbe !ll!JyalSociety of London., XXXVII, pp. 368-85.
-nos duvidoso que a mensuração das alturas vocais conduza a resultados Emery, E.
frutuosos. tanto mais que não traduz a diferença entre o que o tantor tem a 1961 Ia gamme elle fangage mtmi:a/, Presses Universitaires de France, Paris.
intenção de fazer e o que ele executa realmente,. (1947, p. 16]. Deste modo, Kunst, J.
Hm princípio transcendente impede que os dados sejam questionados. Mas 1948 Around von HomlJoJlel'J Theory ollhe Cycle o/ Blown FifthJ. Het Indisch Institut,
Amsterdarn .
não podemos deixar de nos preocupar ao constatar que. dos 176 exemplos PcPhce, C.
deste texto, 69 foram transcritos pelo próprio Schneider (e vimos que [1933-63] MUJie in &/i. A Sludy in Form and lmlrumen/a/ OrganÚa/ion in Balinese
princípios o guiam) e que, por seu lado, Wiora [1960], na sua comunicação, OreheJ/ra/ MUJie. '{ale University Press, New Haven Conn. 1966; ed. Da Capo Press.
(ila nada menos que 60 exemplos de Schneider. Não é estranho observar que, New York 1976.

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'H' -,.,-'-U! ~'nl',-,


ESCALA 244

RohellS. H. H.
1932 MeIodic compoJitlon and scale foundatiom in pn'mitive music. in .American
Anthropologist •. XXXIV. pp. 79-107.
RobellS. H. H .• e Jenness. D.
1925 (org,) Reporl of the Canadian Aretic Expedition (1913-18). XIV. Eskimo 50ngs.
Acland. Ottawa.
Saehs. C.
11 (1937] Towards a prehislory of occidenlal muJic. in .Musical Quarterlp. XXlV (1938).
HARMONIA
pp. 147-52.
1943 The Riu of AluJie in lhe Ancient Wo"{d. F..arland Ir/est. Norton. New York.
(l957-59J The JFe/lJpnngJ of MUJ/c. Nijhoff. TI1e Hague 1962.
Schaeffer. P.
1966 Trailé des objetJ muJicaux. Seuil. Paris.
Schmidt. P. G.
1919-20 Ú1géné,zlogie des imtrumenlJ de musique elles eyeles de civilisalion. in .Anthro- 1. Em 1962, era possível ao music6logo alemão Martin Vogel consagrar
pos •• XIV. pp. 565-70. um livro de 163 páginas ao famoso «acorde do Tristão.: O acorde do «Tnstão»
Schneider. M.
(1947) Primitive Music. in E. Wellesl (org.). Neu' Oxford Hislory of Music. I. Ancienl e a crise da teona harmónica moderna, título este que continha, à partida,
and Orienlal AluIÍc. Oxford University Ptess. London 1957. pp. 1-82. uma resposta à importante obra de Ernst Kurth A harmoma romântica e a sua
(1960] Préunee ou absenee de Ia comtante de quarle. de quinle. d'oclave 1'1 de lieree. mse no «Tristão» de Wagner [1920]. Com efeito, Vogel examinava, uma à
50" róle slruelurel .Iam Ia comonanee polyphonique primilive. in Weber 1963.
uma, todas as análises do acorde pub]icadas desde 1879, e chegava à
pp. 149-58.
Weber. E. conclusão que a «crise da harmonia romântica é, na realidade, uma crise da
il\ 1963 (org.) Ú1 réJOnance .Iam les éche/les musicales. Co/loques inlemalionaux .lu eNRS teoria harmónica. [1962. p. 82].
(PanJ. 9-14 mai 1960). CNRS. Paris. Este ponto de vista é capital, pois significa que a harmonia própria de
Wiora, W.
um dado período da história da música ou de um dado compositor só é
1956 Aller alJ die Penlalo",k. Ober die 2- bis 4-Jlufigen Tonarlen i" Ali-Europa und bei
compreensível através de uma metalinguagem que a justifique. Não existem
I
Na/urvoIAiem. in 5114.1"1 Memon'ae Belae Barlák Sacra. Aedes Academiae Scientiarum
Hungari(ae. Budapest. pp. 185-208. fen6menos harm6nicos em si: estes s6 são acess}\.eisenquanto objecto de um
[1960] Préunce ou abJenee de Ia eomlanle de quarle, de quinle 1'1 d'oelave. processo de simbolização, que os organiza e os torna inteligíveis. Falar de
50n róle slruclurel .Iam /'elhnomusieologie primilive. in Weher 1963. pp. 129-42. «crise teórica. é admitir que os instrumentos utilizados para descrever os
fen6menos pr6prios de um período deixam de ser adequados logo que o
material tenha atingido um certo estádio de desenvolvimento. Pode parecer
[J As escalas. com a,< quais se torna discreto o contínuo sonoro (cf. contínuo/discrelo, paradoxal determo-nos num fen6meno tão ambíguo e isolado quanto o
diferenCIal. som/ruído). constituem a matéria-prima da organizafJo musical (veja-se também acorde do Tnstão, na tentativa de melhor compreender o que se passa na
enlropia). Nenhuma cultura «(f. cullura/culturas. nalurezalcullura) parece poder prescindir elaboração do discurso da harmonia, mas é precisamente essa ambiguidade
dd,,-<; mesmo a música de(tro-acústica não escapa à necessidade de sislemálica e eli1Jsificaçdodos que faz com que se manifeste, em todas as análises consideradas, a
seus componentes (veja-se também combinalón'a e labin·nto). O conceito de escala requer o
conhecimento de um .corpus. (cf. também tonal/alonal) no seio do qual apenas se podem
diversidade dos cn'tén'os que intervêm na análise harmónica. Longe de ser um
reconhecer os valores de cenas características (d. código. signo). caso particular, o acorde do Tn'stão torna-se então a verdadeira «pedra-de-
Se. na prática. as discussões sobre as escalas têm até agora girado principalmente à volta de -toque. [Vogel 1962, p. 15] para as elaborações musicol6gicas que aqui nos
questões pertencentes à fi,ica ou às matemátieaJ. é contudo mais importante a adopção de um ocupam, e ap6s ter estudado, não somente as diversas interpretações do
ponto de vista antropológico (cf. anlhropoJ; e também canto. dança); e mais importante ainda é
acorde, mas também os diversos tratados de harmonia usados nos diferentes
o estatuto da hislória. não SÓ em musicologia. mas também em ernomusicologia. que está aqui
em jogo (cf. harmonia. melodia. rítmica/métrica). A crença (d. crençaJ) no fundamento natural países, chegamos, como mostraremos mais adiante, à mesma conclusão que
das escalas encontra-se apoiada na mesma ideologia que guiou os primeiros passos da Vogel: «A situação crítica da teoria musical exige uma crítica sistemática dos
antropologia - a saber. a existência de uma lei natural - e parece dever partilhar a mesma sorte seus métodos e conceitos. libid., p. 83].
dda.
Não nos propomos aqui retomar as análises de Vogel. nem discutir a sua
própria visão do acorde. Podemos dizer que. de uma certa maneira, o autor
acrescenta a sua análise pessoal às análises existentes, com a particularidade.
por demais rara em musicologia, de a fundanlentar numa leitura sistemática e
crítica dos seus predecessores. Estamos bem longe da atitude de Schoenberg
[1911] que, a prop6sito do mesmo acorde, confessava estar plenamente
consciente da existência de outras análises, mas que queria, a todo o custo.
tentar propor a sua.
IIAIlM()NIA 246 247 HARMONIA

o que falta, todavia, na obra de Vogel é uma tematizaflio das razões que têm, ao menos, o mérito de lembrar que 43: mlÍsÍca é movimento no tempo.
c-xplilalll as divergências entre autores. A fim de salientar a natureza [Salzer 1952, I, p. 30J.
s("(JliológÍcada apreensão dos fenómenos harmónicos, é necessário tentar dar
No seu excelente Harmony il1 Westem Music, o music610go americano
resposta à seguinte questão: porquê e como chega um dado musicólogo a Richard Frank Goldman insiste bastante no papeI que o tempo desempenha,
propor o que diz? por exemplo, no estabelecimento de uma tonalidade ou, e é este o caso que
Esta abordagem do fenómeno harmónico inscreve-se no âmbito mais nos interessa, na existência de uma entidade harmónica [distinguimos, pelo
geral da nossa abordagem semiológica da música [cf. Nattiez 1975J. Sem uso do itálico, o sentido estrito de tempo (termo técnico musical, significando
mIrar em pormenores, podemos dizer que a nossa perspectiva aplica à música pulsação) da sua acepção mais lataJ: «O sentido da relação, da mudança ou do
a Iripartição proposta por Jean Molino (1975 J, a qual distingue, num objecto efeito harmónicos depende da velocidade (ou do tempo), assim como da
de {:sllIdos,o seu aspecto material, as estratégias de produção que conduziram duração relativa das notas em particular ou das tríades. Numa análise
;1 sua criação, e as estratégias perceptivas projectadas no objecto. (Sobre o conduzida do ponto de vista harm6nico, há que tomar em consideração tanto
fundamento semiológico destas distinções, cf. a noção peirciana de interpre- o tempo absoluto (extensão e velocidade mensurávc:is)como o tempo relativo
tall!es [Nattiez 1975, p. 57]). (proposição e divisão). [1965, p. 26J.
Insistimos neste ponto porque, se o acorde do Tnstão constitui um
2. O exame das diferentes análises (e completaremos o inventário de problema, é devido ao facto de esta configuração «bizarra_ durar o suficiente
para aceder ao estatuto de entidade harmónica.
Vogd com algumas análises publicadas posteriormente) leva-nos a isolar os

:i:~t~~J
princípios a partir dos quais se elabora o discurso sobre a harmonia.
O princípio de base poder-se-ia enunciar assim: Não existe teoria harmónica
Jl'1n o reconhecimento e a identificação de entidades harmónicas.
Esta proposição é menos banal do que se poderia pensar. Se, por um
lado, podemos encontrar numa obra acordes no estado puro, L-:
~' . x
,
Há quem se tenha divertido a encontrá-Ia em obras anteriores, em Guillaume

!~
de Machaut, Gesualdo, Johann Sebastian Bach, Wolfgang Amadeus Mozart
~. ou Ludwig van Beethoven [Vogel 1962, p. 12J.

as mais das vezes é necessário partir do dado textual para uma representação
mais abstracta dos acordes utilizados:

[Q~J: ~~J:I~T~1t~rJ
!~:;
~=~~~ ~J '-}J)1) ~
_3 ~
~ ~ v.0 I
Mas neste exemplo do opus 31, n? 3, de Ikethoven, é bem clara a diferença
em relação ao Tnstão. Ali, o tempo é allegro (J,= 160); aqui, langsam und
schmachtend, ou seja, lento e langoroso. Para mais, o compositor pôs o
acorde no início da obra; retoma-o três vezes (compassos 6, 10 e 12); e repete-
-o quase no fim do último acto: dramática e harmoniosamente, possui o

~ ~II#S e 1===~ I ~====~ I


carácter de uma «declaração., de um statement, como diz a seu propósito
Charles Bailes, um music610go americano.
-1 Deste ponto de vista, uma das análises mais curiosas que já foram
É, portanto, absolutamente essencial conhecer os critérios desta operação
I propostas - mas veremos, mais tarde, as razões que também legitimam esta
de abstracção. O primeiro princípio parece-nos ser o seguinte: Para que uma ! maneira de proceder - é a de Jacgues Chailley. .o cromatismo do Tnstão, à
configuração sonora seja reconhecida como acorde, é necessário que possua base de appoggiature e de notas de passagem, representa, técnica e
uma certa duração.
espiritualmente, o apogeu da tensão. Ainda não cheguei a compreender como
O facror tempo nem sempre ocupou o lugar que merece na musicologia se pôde ter difundido, sob a autoridade interessada de Schoenberg, a ideia
e, por delicadas que possam ser, por vezes, as proposições de Schenker, elas extravagante de o transformar no protótipo de uma atonalidade baseada na
HARMONIA 248 249 HARMONIA

destruiriJo de toda a tensiJo, ao ponto de Alban Berg citar os primeiros nica organiza e «manipula., de um modo específico, os componentes de um
compassos do Tristão na sua Suite lín"ca, na qualidade de homenagem ao acorde. Agrupamo-Ios no seguinte esquema:.
precursor da atonalidade. [1962, p. 8J.
Na realidade, Schoenberg não sabe como descrever a estrutura do acorde, Estruturas Notas integrantes Fundamental

mas situa-o no segundo grau de um contexto perfeitamente tonal [1948, p. I I


77J. Prossigamos a citação: cEsta curiosa concepção só se pôde formar no Função Grau
seguimento de uma destruirão dos reflexos analíticos normais, que leva a
isolar artificialmente uma agregaçãoformada em parte de notas estranhas, e a
I
Tonalidade
considerá-Ia, abstraindo do seu contexto, como um todo orgânico; torna-se
desde logo fácil demonstrar aos ingénuos que uma tal agregação escapa às Colocámos à esquerda deste quadro as duas variáveis essenciais. Com
classificações dos tratados tonais. [Chailley 1962, p. 8). efeito, toda a descrição harmónica define uma estrutura e uma função:
falaremos assim de um acorde de sexta aumentada sobre o quarto grau, de
~ '1'1'
- -;ppi'-"---" --...-,---
u um acorde de sétima da dominante, de um acorde de sexta sobre o segundo

I
,-----,~-- ~- .. , '--1; ---o~_·_---
grau, ete. .. Mas a denominação a partir destas duas variáveis pressupõe, de
facto, que, num caso concreto, se tenham determinado quatro outras
~~~~:=.c__= ...
c~==;:::=,-~;:=c~'é~;=:I:;~~==-=-~::":=i~:'::"t.E:t=t
::>1']
I V ~
variáveis: qual a tonalidade da passagem? sobre que grau está construído o
acorde? qual a sua fundamental? que notas são consideradas integrantes do
Para o nosso autor, o acorde explica-se da seguinte maneira: no compasso
acorde? É necessário compreender que, conforme as situações musicais e a
I, o fá é uma appogglátura do mi, longamente apoiada; no compasso 2, o fá
teoria no âmbito da qual a análise é levada a cabo, as decisões relativas a estas
é uma appoggiatura do mi, o ré:ltuma appoggiatura do ré, o lá uma nota de
variáveis podem começar em qualquer ponto do quadro. Se raciocinamos no
passagem; no compasso 3, as appoggiature precedentes são resolvidas, salvo o
1;1.#, nota de passagem e appoggiatura, qll~ se re~lve no si. O sol# e o si do
âmbito de uma teoria funcional, como acontece frequentemente na América
do Norte, pro(,\lrnrt'mo~, amc~ de tudo, definir a tonalidade, depois o grau e
compasso 2 trocam de voz e reencontrámo-Ios no compasso 3.
a fundamental, e daí se deduzirá a estrutura do acotde. Se, em vez disso, nos
Sem falar dos preconceitos ideológicos de Chailley (animosidade visceral
interessarmos pela estrutura do acorde e pela condução das vozes, como
contra a atonalidade, vontade de explicação pelos meios tradicionais), esta
acontece em muitos tratados franceses, é a descoberta da função o que resulta
análise possui, de qualquer maneira, um carácter fantástico, porque assim o do raciocínio.
acorde do Tristão niJo é um acorde, mas sim a antecipação, por via de duas
appoggláture e de duas notas intervertidas, do acorde da dominante do É-nos então possível dar uma primeira definição do que são uma teoria e
uma análise harmónicas. No começo deste século, o epistemólogo Paul
compasso 3. Ora, se os musicólogos o procuraram definir, é precisamente
porque a sua duração lhe confere os caracteres físicos de uma entidade Duhem [1906J dizia que uma teoria física é uma classificação de leis; nós
diremos que uma teoná harmónica é uma classificação hierarquizada de
harmónica. (Quando afirmamos. juntamente com Goldman, que um acorde
pressupõe um certo lapso de tempo, não precisamos o seu tamanho, visto dados. Para compreender o peso que, numa análise, é atribuído a uma
que o sentimento temporal que estabelece a existência de uma entidade determinada variável, é necessário, portanto, remontar à teoná que organiza,
depende de numerosos factores: o tempo, o contexto, a dinâmica da para o conjunto dos fenómenos harmónicos do período tonal, as variáveis,
passagem, ete.). Pelo menos a esteo nível, a sua tentativa era legítima. umas em relação às outras. Reciprocamente, diremos, e eis-nos perante um
O drama é que a configuração fá-si-ré:jj:-so\.j1:
não corresponde, enquanto tal, a terceiro princípio: A análise harmónica define um acorde pn'vtleglándo um
qualquer das etiquetas que nos oferecem as teorias harmónicas tradicionais. certo número de variáveis, em função do peso que Ihes é concedido pela
O segundo factor que intervém na simbolização abstracta dos dados teorrá de referência.
harmónicos é o seguinte: Para que uma configuração possa ser descn'ta como Ilustraremos este princípio, classificando as diferentes análises do acorde
um acorde, é necessánÓ defini-Ia a partir do stock taxonómico dos acordes, do Tnstão, segundo as decisões tomadas a propósito das suas variáveis
proposto por uma teon'a harmónica. constitutivas. Ver-se-á, deste modo, quais os valores dados às variáveis
Por stock taxonómico entende-se um sistema geral de classificação de consideradas, isto é, aos pontos a partir dos quais se tenta abordar o acorde.
entidades, ao qual podemos reportar uma entidade, para fins de caracteriza- No caso que nos ocupa, a descrição do acorde depende de três decisões: é
ção. No caso do acorde do Tristão, é necessário recorrer a um expediente, ou ou não o sol~ uma nota integrante? Se sim, o acorde descrito é fá-si-ré:jj:-
seja, negligenciar certos aspectos da configuração e aproximá-Ia assim, o mais -sol:jj:;se não, o acorde descrito é fá-si-ré~-Iá. Em segundo lugar., cada uma
possível, de uma entidade conhecida. Isto significa que uma análise harmó- das duas famílias, já de si mais abstractas que o dado da partitura, pode dar
••
•• II,\IlMIINIA

nJIIlIlfnf .•d .•••


2~O 2~1

geral lá menor, mas cenas análises - em panicular, a de Jadassohn -


HARMONIA

• ~ .,'n~~,;~
..". nWW ".=jíii~ mudam a tonalidade em. cada acorde).
Este percurso através do nosso quadro das variáveis não é genético, ou
••
•• I" ~~l~~~=_,=--·==_ --=-=====::::::::::::_
seja, não corresponde ao trajecto necessariamente seguido por cada
music610go na sua estntégia de decisão. K escolha dos valores atribuídos a
cada variável depende, com efeito, do peso concedido pela teoria de

•• _'R ,"__. S",1r M,,,h,1I referência à sequência das funções ou à estrutura do acorde.
~,._._::=~ _::.~~.~~ ----
.':~"'.'."_.' " .... Juf;e\\t,hn Llf{'II/ Poderemos, ponanto, juntar ao princípio precedente o que se segue: A
\'11' IV li ~ partir do momento em que fazemos uma análise harmónica inserimo-noJ,
1.i#,llItrhlf Li 11lC'IlOf mib menur I~I1lt'fl"f


conscient.f! ou inconscientemente, numa família teón'ca de análise.

•• ~11U:
--:-:.:~-==--=:qr
". ~ =l_~
.. ','
--
K'\I1c".\X,';erd'I
VII
IJ mellor
:,
-"
I ;§-+ 1I11
I
crnu
h o II
3. Deste ponto de vista, as análises do acorde do Tnstão podem ser
repartidas em três classes:
a) o baixo cifrado;

•• b) a análise funcional (com todas as suas variedades);

•• 1;·:I~~·
.2

~~JN>.".KX.'II~,." "'" "".U'da c) as identificações não funcionais (o que não significa que o grau não
seja identificado, mas sim que o acorde não é integrado num esquema
funcional típico).

Apresentamos junto (cf. tab. 1) a lista cronol6gica das decisões adoptadas

• .~ #u II ##0
M'yrb<rg"
bqO I #0
(ar"'k" I #0
Sch"y" I di-.J
Ergo
pelos music610gos, para cada uma das variáveis.
a) Baixo cifrado. A análise de Jadassohn [1899] é a única que se


V li V7{1t-17 VdC'V
(0111 ~~ Jb com j. ~h interessa exclusivamente pela estrutura; a de um acorde de sétima (fá-sol#-si-
mlfneOUf menor lámcnm Illcl1~)r mi m:'llor

••
l.oí Li
-r~ = mi#-sol#-si-ré~) consrruído sobre o sétimo grau em f~ menor.
Karg-Eleu Louis-Thuille Kuuh O r~ é por ele introduzido no acorde seguinte, com o lá do sexto tempo (fá-
-lá-si-ré#), como segundo grau em lá menor.
----~~-#"lI,~ I di IU"-#\lII
• Vde V
l:imenof
11' lJ'ou IV
l:imeflor
Vd,V
I••menor

• Arend-Rjemann

ll;:~-J;~~
• ~ lf # II q lf· li II

IV SVII c' • 1 ,
f· •.••

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~
'ir II '.fI
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O'lndy
ii I '.fI
Pí'ton
I ,4~
•••
... - .. IJ ~): 3 "~~~~ &~~'----
.I .
x1--~êl~
. .

Ia,"
f •• ,
11°' IV'
"
li' . li',..
••
I •

• me flor Vil' 11' VII V'


lá menor lá menor lá menor l.oí

f~ mll"OOr lá menor si maior 12 menor

lugar a quatro estruturas possíveis, já que cada uma das notas pode, por sua
• vez, ser considerada como fundamental do acorde. Numa tal análise, o grau não tem, evidentemente, nenhuma importância

• Encontramos, no quadro junto, a repartição de todas as análises,


segundo essas oito possibilidades. Na família do so~ integrante, as soluções
funcional, já que o autor passa, nos dois primeiros compassos, por três
tonalidades. E se esta análise tem o mérito de integrar o sol#, por outro lado,
• si e ré# enquanto notas fundamentais não são atestadas (a análise de Larenz,
todavia, pode ser considerada como baseada na configuração ré# .fá-sol#-si).
vê-se obrigada a im2.ginar, provisoriamente, um ré#.
b) As análzSes funcionazS. São numerosas. Predomina aqui um
Na família do so4i appoggiatura ou suspensão, o lá fundamental não aparece. princípio: a música total é constituída por encadeamentos característicos de
Em terceiro lugar, a atribuição de um grau a essa fundamental depende graus; a estrutura do acorde é relativamente secundária (aspecto ao qual
da tonalidade em relação à qual se considera toda a passagem ou o acorde (em voltaremos mais adiante). Mas não devemos, por isso, crer que todas as aná-

·I
~ ..:.;..~~~..~'~••••••
. ~ . '",
... , .... _ ,- ,,',_.,
,
"

·~ft - -~,'f
HARMONIA
252 253
HARMONIA
Tabela 1.

Variáveis e valores nas análises do acorde do Tnl/ilo. lises funcionais chegam às mesmas conclusões. A escola riemanniana
Esta/u/o considera, por exemplo, que todos os acordes podem ser reportados às funções
Au/oreI do JO/jf I, IV e V, mas os musicólogos não utilizam este princípio da mesma maneira.
Es/ru/ura do acorde Função Tonalidade
Arend [1901] vê no acorde do Tnstão um «acorde de sétima diminuta
Kisrler 1879 + Sétima diminuta VII lá menor com modificações.: passa-se, por enarmonia, de fá-si-rét+-solt+a fá-dót?-lá~-
(com tríade débil)
Mayrberger 1881
-mit?, e depois, a fá-si-láq-ré. Ele considera o solt+ uma suspensão, e que
Acorde híbrido 11
Si fundamenral
Wagner após um sustenido ao ré, a fim de este subir ao mio Este acorde, si-ré-
V mt menor }
lá.menor
D'lndy 1897·98 -fá-lá, é, segundo a teoria de Riemann, um acorde de quinta (ré-fá-Iá), ao
Sexta complicada IV lá menor
(1903) qual se adiciona a «sétima inferior.. Riemann [1909] explica o mesmo acorde
mantendo o rét+. Schreyer [1905] retoma a mesma ideia, a partir de um
~ ir . Ir
Jadassohn (1899) + 4 e 4
Vll07 fált menor esquema diferente: para ele, estamos em mi maior (o acorde do terceiro
J ~ 3 11°7 lá menor
compasso é uma sétima sobre o primeiro grau) e encontramo-nos perante uma
Arend 1901
~ fá.dóq.lá/1.mi!1 ->- 5,.11 lá menor sétima da dominante com a quinta abaixada (o fáq). D 'Indy [1903]
fá·si·lá·réq = considerava que, na música, só havia um único acorde (o acorde perfeito),
I si·ré·fá·lá com modificações sujeito a adições e alterações [pp. 33 e 100]. Uma vez despojado das «notas
Capellen 1902 Sérima si7·mF lá menor artificiais dissonantes, devidas unicamente ao movimento melódico das
Schreyer 1905 V7 com quinra abaixada V7·17 partes, mas estranhas ao acorde. [ibid., p. 117], o acorde do Tnstão «não é
mi maior
Louis·Thuille 1907 Sétima outra coisa senão o acorde tonal de lá, com função de subdominante,
11 "'" IV lá menor
Riemann 1909 Cf. Arend contraído melodicamente sobre si mesmo, e a sucessão harmónica, cujo
5vII lá menor
• rélt abaixado esquema apresentamos, é, em suma, a mais simples do mundo. [ibid.]:
Schoenbcrg 1911 + Acorde erranre 11 lá menor
Ergo 1912
v

1~1::::1
~ abaixada de V lá menor
Knorr 1915
Acorde de substituição IV lá menor
Kurrh 1920
V de V
. :u_
lá menor IV' V
6
lorenz 1926 + 4
IV Por outras palavras, um acorde de sexta um pouco complicado. Constatamos,
3 lá menor
Koechlin 1928 Sexta francesa neste caso, que duas ideias dirigem a análise: reencontrar o esquema l-IV-V,
lá menor
Combinação de dois w que reproduz o de Riemann; considerar como notas estranhas tudo o que
{Karg.Elen
Tiessen 1948
1931, lá menor altere a pureza do acorde perfeito.
acordes de sétima V de V
Hindemirh 1937 + Acorde de soljf menor ~ Os mesmos princípios riemannianos podem aplicar-se ao nosso acorde,
lá menor
com sexta adicionada mas considerando o soJ.1tcomo integrante. Larenz [1926] é, no século xx, o
(sollt fundamental;
primeiro a readmitir o soJ.1t no acorde. (A análise de Kistler 1879,
fá enarmónico do milt)
Distler 1940 historicamente a primeira das análises do acorde do Tnstão, integrava o
Quinta abaixada, V de V lá menor soijt. Também a de Jadassohn 1899, como vimos). Considerá-Io-á um
com sexta adicionada,
elevada appoggiatura do acorde do IV grau, segundo o raciocínio já citado, mas fará dele u~ :
lá, sem preparação 3

Piston 19·11 Sexra francesa a partir


soijt ... do fá-Iá-rét+, ao qual adiciona a dissonância si e abaixa o lá para obter
11 lá menor
Schoenbcrg 1948 + Sétima 11 lá menor
Chailley 1962 ± Sempre dentro da perspectiva funcional, pode-se ver nesta passagem
Acorde appoggia/ura \I lá menor
Alain 1965 uma relação de dominante secundária (V de V) entre o «acorde do Tnstão. e a
Sexta francesa 11 lá menor
com terceira abaixada
sétima sobre mi. Para isso, Ergo [1912] faz do si a fundamental em lá menor
Seade 1966 + Sétima diminuta 11
(e não em mi maior, como o havia proposto Schreyer, sete anos antes): o
mil:/ menor
.fá.lá!1.dó!1.mi !1 esquema do raciocínio é o mesmo, mas em vez dos malabarismos com a
Mirchcll 1967 + Sétima diminuta evidência tonal, é utilizada a relação de dominante no contexto de lá menor
\I lá menor
Ward 1970 + Sétima diminuta VII
(de notar que, aqui, o solt+ não é integrante). Abre-se assim toda uma série
lá menor
com appoggia/ura do ré de análises que insistirão no carácter de dominante do acorde, sendo a
importância dada ao movimento si-mio Para nos fazer aceitar este V de V,
••"•,li
t••••
1
II.\IIM! INlII
n·, 2~~
HARMONIA

":lIIlh 1"'.'01 I'lrfrlldr I(lIr o ;I(OId("r(";ll ~("ja si-rlit-fá1j: (e não fátj)-Iá.


l"lr'll/ (11111011.1vl"lrlll;lfll("llI(" nla illl("rpretat;:10, ao propor ~ sobre IV,
I
I'ldnllldo 11111 rdl illl;lI:IfI;lIIO,w Li~ de Kurth. Torna·se claro que todos estes
I·,w.n dr III;igll;l 11I1111 a (onduzem a uma solução satisfat6ria, porque o que se
p,.lllh.• .Ir 11111
1111101
lado, Jlndc-sc do ouero: no caso de Lorenz, é embaraçoso ter
IlIlId,IIII("III,,1("levada em lá menor e, para isso, ser obrigado a abaixar o
I/!t, rIOLI\O .1("KUflh, supor um fá# que não existe.
fl~ :.- _---~...~
~;;~_~.r ...••.

r~:~r~J
Apú, o IV e o V de V, era fatal encontrarmos também o lI, como tinha
111"1" "to Mayrherger [IH8 1) invocando a dupla tonalidade. Mas, também
•11(111, o 1IH"\1II0equívow: no sentido estrito, V7 de V dever-se-ia escrever si-
ItU I.rlt b, e 11' si-réq-fãq -Já, ao passo que temos r~ e fáq. Louis e Thuille
/11)011 faL1I1Ielll sétima alterada de 11.
L )& dtSC •.. __

H 1'1
o(I("lldo a outra etiqueta, já não o acorde de sétima, mas sim o de
',01;1 ,lIl1l1elltada, instala-se mais solidamente o acorde no segundo grau, Este autor, considerando os três primeiros compassos, mostra que o
I.I/rllllo do «acorde do Tnstão» uma sexta francesa (fá-lá-si-rqt): é a solução movimento do soJit não é apenas o de uma appoggiatuTa, já que o sol sobe
.I!' Konhlill [I <)28-30, II, p. 76J e da maior parte dos music610gos americanos para o si, enquanto que no fagote, o si tcoca com o sol ; a linha ascendente
11'1',(011 I'}ill, p. 279J. O único problema é que Seperdeu pelo caminho o sol~ do oboé responde à linha descendente do violoncelo (fá-mi-ré~). prolongada
I(Ifr ()livÍer Alain [1965 J reCUpera, ao falar de uma Sexta francesa com a (ré~) pelo carne inglês, e inscrita no âmbito de uma mesma terceira. Factores
1('" ('rfil tlbtlrxada.
lineares impedem-nos, pois, de considerar o so~ como appoggiatura.
No exemplo que nos ocupa, a multiplicidade das análises funcionais (IV, Podemos, aliás, juntar aos argumentos de MitcheIl, que a duração do sol~ é
V de V, lI) tem qualquer coisa de suspeito. Se o nosso acorde é de tal modo idêntica à do fá do compasso 1 e que. no baixo, o fá-mi dos compassos 2 e 3
1I1.\I:ívd que um ligeiro desvio te6rico pode facilmente mudar a sua retoma o fá-mi do compasso 1 (como Cone [1960, p. 35] é provavelmente o
Illlld,lIllclltal, poderemos dizer que a função é, neste caso, pertinente? único a sublinhar).
De qualquer maneira, é legítimo encarar outras possibilidades O autor, no entanto, não se abstém de remeter o acorde para algo
d(·scritivas.
que ele não é. Em virtude da resolução do ré# para o réq, ele ouve uma
c) As identificações não juncionaÚ. É o caso de Kistler [1879J, Ward sonoridade subjacente de réq. que lhe permite falar em acorde de sétima
(11)70], Searle [1966J, Hindemith [1937], que adicionam uma sexta (mi~= dirrunuta. Sem aprofundarmos a análise deste flOVOpaSse de prestidigitação,
= fá) a sol1j: si-ré#. Schoenberg, em 1911, mostra-se bastante hesitante e
apoiar-nos-emos na argumentação mel6dica de MitcheIl, e diremos que o
propõe o conceito de «acorde errante» (vagierender Akkord): «pode ter a sua acorde do Tnstão prendeu a atenção dos music6logos porque soa como uma
origem onde quer que seja» [1911, p. 284].
entidade harm6nica, embora resulte de factores melódicos (o que explica que
Todas estas descrições não funcionalistas integram o sol~ no acorde. Seria ChailIey esteja, ao mesmo tempo, certo e eceado): «A música, - escreve
ele que,tornaria a análise funcional, senão impossível, pelo meJ,losdifícil? Ora Olivier Alain, - é o lugar de um perpétuo conflito entre o vertical e o
- e Vogel tem toda a razão ao insistir neste ponto - o que confere horizontal, sendo este "horizontal", pura e simplesmente, a tendência da
especificidade sonora a este acorde não é o agregado fá-si-ré~-lá, mas melodia a exercer os seus deslocamentos verticais sucessivos dentro de uma
sim, fá-si-ré~-sol~: o sol~ ouve-se durante cinco tempos; o lá somente durante completa liberdade de direcção, tendo em conta a lei do "caminho mais
um. Como se pode, nestas condições, falar de appoggiatura ou de suspensão? cuno", a qual prescreve o uso do menor intervalo possível, sempre que tal se
«Quem espera cinco tempos pela sétima de um acorde, ao qual falta a quinta, possa fazer» [1965, p. 39J. O acorde do Tristiiosó é aberrante à luz do hábito
cuja fundamental é diferente do baixo, cujo baixo é alterado e não pode ser que nos faz definir um acorde a partir de um empilhamento de terceiras.
integrado no acorde?~ [Vogel 1962, p. 58].
Inscrito num movimento melódico, duração e progressão determinados,
Reencontramos aqui o critério da duração: «O som não harmónico deve
oferece-nos uma configuração inédita, talvez demasiado característica para se
claramente aparecer tal como é, e não deve, pelo seu ênfase ou duração, tomar uma nova entidade cIassificável. demasiado tardia na história da
produzir uma mudança de harmonia~ [Goldman 1965, p. 26J.
música para não deixar de ser um acorde abortado. Goldman não analisa,
Como explicar, então, o acorde, respeitando simultaneamente a integra-
ção do sol~ e a sua duração? Queremos aqui chamar a atenção para um no seu livro, o acorde do Tristão, mas sim um acorde idêntico do Pamfa/,
aspecto importante da análise proposta por William Mitchell [1967]. com uma disposição diferente (fá-láq-d6q-miq), escrito fá-sol~-si-ré#, o que,
por terceiras, dá: si-ré~-fá-láq. Escreve a seu propósito: «Este seria, na

;f~ r.;.;· .•••.·.:;.-:.•;: i"':,.\ ;C~·-·i·~~"'··j.r·. ;_...~. ,•..., ':r _{\,"


HARMONIA
256
2H
HARMONIA

verdade, um novo acorde, mas a tentação de encontrar para ele uma etiqueta
deve ser combatida. Estamos dentro da razão ao explicá-Io e compreendê-Io Chamaremos a estes princípios de base «princípios transcendentes.,
com base nas suas propriedades dinâmicas, ou seja, segundo as tendências dos porque os autores emitem a hipótese de que, para lá da actividade prática de
cada compositor, eles explicam o funcionamento global da harmonia tonal.
seus componentes para se deslocarem em passos auditivamente
compreensíveis. [1965. p. 159]. O muito funcionalista Goldman não cai na Rameau é muito claro nesse ponto, logo a partir da primeira página do seu
Traité: «Se a experiência nos pode advertir acerca das diferentes propriedades
tentação de sustentar a explicação funcional. Já que o acorde do Tristão
da Música, ela não é, por si só, capaz de nos fazer descobrir o princípio dessas
aparece num período de transição da história da música, é de esperar que
propriedades com toda a precisão que convém à razão: as consequências que
todas as teorias aí venham desembocar. A ambiguidade do material sonoro
através dela tiramos são. muitas vezes, falsas ou, pelo menos, deixam-nos em
traz ao de cima os pesos preferenciais concedidos pelos musicólogos a essas dúvida, a qual só a razão deve dissipar. (1722, p. 1]. Riemann concebe a
quatro notas, em função da orientação de cada teoria. É, portanto, necessário harmonia como uma ciência pura e teórica: ela tem por fim indicar as leis
remontar às próprias teorias, para compreender a desarmonia do Tristão. segundo as quais o nosso espírito concebe as relações dos diferentes sons
(1887]. Mas como, segundo ele, apenas os músicos profissionais estão
4. Basta ler um certo número de tratados, de diferentes épocas e países, interessados no conhecimento dessas leis, o estudo teórico da harmonia
para constatarmos que uma dada classificação dos acordes, uma dada maneira confunde-se com o seu estudo prático.
de apresentar os seus encadeamentos, repousam sobre um princípio É, sem dúvida, em virtude do carácter transcendente dado ao princípio
explicativo da harmonia tonal. Na maior parte dos casos, esse princípio é de base, que alguns destes autores consideram as suas concepções como
enunciado logo nas primeiras páginas. Trata-se, ao mesmo tempo, de um absolutamente definitivas. Riemann: «Que o meu sistema esteja destinado a
princípio gerador, pois procura-se explicar a formação dos acordes. Rameau sofrer no futuro outras transformações, eis o que não me parece verosíroil.
baseia a sua obra teórica na ressonância natural e, até uma data recente, a Bem pelo contrário, estou convencido de que, no que se refere a reportar
maior parte dos tratados abriam com a exposição dos harmónicos que se todos os acordes, até na sua cifra, às três funções Tónica, Subdominante e
obtêm a pareir de um dó grave. Dominante, obtive com os meus trabalhos uma visão definitiva a esse
I 2 J • \ 6
respeito. (1887]. Fétis: «Muitas pessoas, dotadas de espírito filosófico,
compreenderam que a doutrina exposta na minha obra não é outra coisa
~~. -&' 7 8 9 10 II 12 I senão a revelação do segredo da arte, a lei fundamental sem a qual as obras
-_c~f::=n=~:::":~C~'~_~_,c~~~Jr~~l~=:_~c:::-~_
.c~~_-=:- desta arte, produzidas de há quase quatro séculos a esta parte, não existiriam.
(1844]. A visão dos teóricos é, com frequência, apocalíptica: cada um tem a
I' esperança e a convicção de ser o último.
Como se sabe, a teoria «natural. não consegue explicar o acorde perfeito
11'
menor. Eis porque Riemann e D'Indy apelaram para a teoria da ressonância O conhecimento desses princípios transcendentes é fundamental para
inferior, proposta por Zarlino, nas suas Instituzioni armoniche (1558), e explicar em detalhe as análises ou as decisões apresentadas pelos autores de
baseada, não na divisão harmónica (I, 1/2, 1/3, 1/4, 1/5, 1/6), mas na tratados: face a uma determinada análise é necessário remontar não somente à
divisão aritmética da corda (1, 2, 3,4, 5, 6). [Para um resumo desta teoria da teoria de referência, mas também ao princípio transcendente dessa teoria (no

:1'

,
I
i.!I
I
ressonância inferior, d. D'Indy 1903, I, pp. 98-104, e para a referência a
ladino, ibid., pp. 134-35; e também Riemann 1887. De notar que estes dois
autores atribuem à predominância do baixo cifrado a pouca atenção prestada
caso de existir), princípio donde deriva um certo número de consequências.
Dizemos «princípio transcendente. e não «axioma., para que não se pense
que as consequências do princípio têm o mesmo carácter de necessidade dos
à concepção de ladino]. teoremas de uma teoria formalizada. Essas consequências são, na realidade,
li I 6
reconstituídas pelo epistemólogo ou pelo historiador das teorias musicais e,
10 11 12 13 14 15 16
I
portanto, fazem parte de uma abordagem própria da hermenêutica). Fétis,
por exemplo, só admite como naturais o acorde perfeito e a sétima; todos os
~ ~__
-- ._~~-.r~~_~
.. ~ ~o •••• --...:...-t:o-..---.--------
=n:=J-••-~n-u-~q-u--_-- outros são obtidos mediante três procedimentos, essencialmente melódicos e
justificados pela lei da tonalidade: a substituição de um intervalo por outro, a
Na sua obra, concebida desde 1815, Fétis (1844] tinha tido o imenso prolongação de uma ou mais notas, a sua alteração ascendente ou

i
I'
I mérito de se recusar a basear a harmonia numa lei natural, opondo à
tonalidade os sistemas operantes nas músicas de tradição oral, o que era
absolutamente revolucionário para a época. Preferia falar de uma «lei da
descendente. D'Indy, ao basear os acordes menores na ressonância inferior,
não pode seguir Rameau no que se refere à preponderância atribuída à nota
fundamental e explica a formação dos acordes a partir do acorde perfeito,
tonalidade., válida tanto para a harmonia como para a melodia, e que definia como resultado de fenómenos melódicos. «Todas as combinações a que
I
as leis de atracção entre os graus. chamamos "acordes dissonantes" provêm de sucessões melódicas em

,
I·'
movimento, e podem ser sempre associadas a uma das três funções tonais do
I
•• 258 2~9


HARMONIA HARMONIA

• acorde: I-IV-V... Qualquer consideração sobre os acordes, enquanto tal, é aprendizagem, os conselhos do seu preceptor, os manuais utilizados, as

• estranha à música. [1903, pp. 116-17J. Este autor chega mesmo a recusar a
ideia de classificar os acordes. Vemos assim, através deste exemplo limite, que
teorias que aprendeu.
Ora, Olailley baseia-se num princípio transcendente bem conhecido: os

• o stock taxonómico de cada teoria é em grande parte dcpendente do princípio novos acordes que foram ptogressivamente admitidos como entidades, ou

• transcendente.
Mas, face a uma análise que se inscreva no quadro de uma qualquer
seja, segundo a sua concepção, como consonâncias, corresponderiam ao
desenvolvimento da ressonância!natural. Donde o seu esquema [ibid., p. 12J:
• teoria, não se pode deixar de perguntar até que ponto a descrição é

•• pertinente. Ou se admite que a história da linguagem harmónica tonal se Un 8~ ~. J- ]I 9' lI- 12'

explica pelo princípio geral de referência - e nada há a objectar a uma


posição de carácter transcendental, a não ser o facto de esta não poder ser 9' & I •• =--+-:,:- ~• ••• : J-....-.-~M-:':.::-c:=:'=~-=c:---c:==!
~. ~n··
pura, como se verá mais adiante -; ou então, há que se interrogar sobre

PrimitiTQS Gráia ldalc Mfdia R('nucim~nto Do IX Wa~fl('r r:x Ravt:l
antJga ~(Ulo xvu ;l Dcbussy I Messl;lcn
aquilo que a análise descreve, e aí existem, a nosso ver, três soluções possíveis. • fkClhoycn

• A análise harmónica pode corresponder às «estratégias de produção. do


compositor, às suas categorias de pensamento, que explicam a organização das Desta maneira, Chailley recusa a existência de nonas em Bach [ibtd., p.
• obras - é aquilo a que chamamos o ponto de vista poiético. Ou, por outro llJ e declara, a propósito de um exemplo de Rameau, que «acordes que se

• lado, tenta dar conta da maneira como os fenómenos harmónicos são


percepcionados - é o ponto de vista estésico. Ou ainda, contenta-se em
apresentam em aparência como exemplos prematuros de nonas, não o são na
realidade. libid., p. 45).
• descrever, a partir de um dado stock taxonómico, o que o compositor faz, sem A esta abordagem podemos opor duas objecções. Em primeiro lugar, po-

• se interrogar sobre a perrinência poiética ou estésica dos factos apontados - é


o ponto de vista «neutro. ou matenal. «Neutro., segundo a terminologia de
der-se-á seguir cegamente o princípio transcendente que serve de base à análi-
se poiético-histórica? O Traiti de Koechlin [1928- 30J fornece-nos um antído-

• Molino [1975 J aqui adoptada, não porque as categorias utilizadas pelos to eficaz: «Existe, nesta evolução, uma lei geral e, de alguma maneira, cientí-

• musicólogos estejam isentas de todo e qualquer condicionamento cultural (cf.


in Nattiez 1975 o nível «metametalinguístico. do quadro da p. 60), mas
fica? Muitos espíritos bem-pensantes o advogam; e, sobretudo, o desejam. De
qualquer modo, a linguagem musical parece encaminhar-se do simples para o

• porque elas não se pretendem, a pnÓri, pertinentes para a poiética ou para a


estésica.
complexo. Alguns teóricos vÍlam nessa marcha o reflexo do movimento dos
harmónicos de um som. Existem, obviamente, cerras coincidências entre esta
• Na realidade, mesmo quando não tematizam explicitamente estes teoria e a história. A quinta CD [estes números referem-se à ordem dos harmó-

• aspectos, as teorias transcendentes são sempre levadas a justificar as suas


posições, adoptando ora o critério poiético, ora o critério estésico, ora ambos.
nicos: cf. o exemplo na p. 256) apareceu antes da terceira@; a terceira antes
da sétima da dominante CV e esta, antes da nona maior ®. Mas é necessário
• Assim, Rameau admite perto do fim do seu Traité: «O conhecimento não notar igualmente os acordes, cujas cronologias não são explicáveis pela se-

• basta para se atingir a perfeição, se o bom gosto não vem em seu socorro... e
não temos outras regras para o bom gosto, senão a variedade na composição.
quência dos harmónicos. O acorde perfeito menor" (6.7.9) aparece-nos nesta
série bastante tarde, enquanto que a história da música no-lo apresenta como

• [1722, p. 323J. O critério é essencialmente estésico (o efeito de uma


determinada ordenação). Em D'Indy, os acordes resultam de movimentos
aproximadamente contemporâneo do acorde maior (1.3.5). Em relação à no-
na menor da dominante, temos de esperar' pelo harmónico ® ou, pelo me-
• melódicos: o critério é implicitamente poiético, etc. nos, pelo harmónico @ (e similarmente no que se refere a sétima diminuta,

I Todavia, certas teorias harmónicas adoptam mais radicalmente, seja o


ponto de vista das estratégias composicionais, seja o do auditor. O Trat"té
que é uma nona sem fundamtntal). Ora, a sétima e a nona menor, antes pelo
contrário, precederam a nona maior. Aliás, :; é mais antigo que 7 sobre a sen-
• historique d'analyse musicale [1951 J de ChailJey é um exemplo característico sível (no modo maior): e a série dos harmónicos indicaria o contrário; ~

I das primeiras: «Visto que a análise consiste em "meter-se na pele" do


compositor, e em explicitar o que ele sentiu ao escrever, é evidente que não se
(harm. 5.6.7) foi escrito correll:temente antes de : (4.5.6.7), o que não nos é
sugerido por esta série harmónica; a quinta aumentada (7.9.11) aparece, nos
• deveria, tanto para a análise tonal, como para a análise harmónica, estudar
uma obra mediante critérios estranhos às preocupações do autor. (p. 104).
músicos, antes da nona maior (4.5.6.7.9). E como encontrar nas vibrações
1.2.3.4 .... , acordes tais COIOO Ré Fá Lá Dó? Ora encontramo-Ios em Monte-
I Mas a obra de Chailley baseará a perrinência poiética das análises no conjunto verdi, preparados exactamenle da mesma maneira que a sétima da dominan-
I dos factos que determinam uma estratégia composicional? «Sendo a
consonância um fenómeno subjectivo, a tarefa primordial é colocar-se nas
te ... Em suma, existe evidentemente alguma analogia, algum paralelismo en-
tre os intervalos da série dos harmónicos e aqueles que gradualmente foram
I condições de análise, que correspondam exactamente à noção que o autor admitidos pelo ouvido como susceptíveis de formarem acordes. Mas a concor-

• analisado podia ter desse fenómeno. [ibid., p. 11]. Para isso, dever-se-ia ter
em conta a música ouvida pelo compositor durante os seus anos de
dância afigura-se-nos por demais incompleta, para que se possa ver aí uma
"lei exacta" .• [lI, p. 106].
I
• •-, I' .~.'".•• "J- , ~~ r' .- ·'·l ,."~; ','oIJ-"

~ -{1
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tI' .~~r
"
HARMONIA 260 261 HARMONIA

Em segundo lugar, o princípio transcendente de Chailley substitui-se ao é realizado, a sua relação com a melodia e o ritmo» [ibid., pp. 171-72].
estudo filológico de todos os factores poiéticos atrás enunciados. Ora, directa E mais adiante: «Não atribuo uma grande importância ao (1{;ordeem si,
ou indirectamente, parece possível reconstituir, avançando pelo menos porque tudo depende do que autor faz dele. A relação com o contexto, com a
algumas hipóteses, quais eram as noções conceptualizadas pelos compositores. melodia (que continua a ser a essência de toda a música), com a harmonia de
No caso de Rameau, citado por Chailley, perguntamo-nos como é a sua teoria uma passagem (tonal ou atonal, tanto faz), é o principal» [ibid., p. 263]. Isto
compatível com o capítulo XXX do livro III do Traité de 1722, De 1'(1{;cordde significa que o reconhecimento de entidades harmónicas, a partir da
Ia neuvilme, no qual este acorde é descrito como entidade harmónica de classificação adoptada pelo musicólogo, não tem sentido, a não ser integrada
pleno direito! Quanto ao de décima primeira, relegado por Chailley para o numa descrição estilística combinatória de todos os constituintes da substância
período Wagner-Debussy, ele é analisado no capítulo XXXI do mesmo livro, musical. A pertinência poiética desta descrição material vem em seguida ou
ainda que Rameau o considere «pouco usado, pois é extremamente duro» paralelamente: ela não pressupõe os mesmos instrumentos de decisão.
[1722, p. 278]. A questão é, portanto, definir o que se entende por acorde No outro extremo da cadeia da «comunicação» musical situa-se o pólo
real de nona ou de décima primeira. perceptivo. Goldman [1965], na sua obra Harmony in Western Music,
No prefácio à Harmony de Schenker, lonas recorda a carta de Carl escolhe deliberadamente o ponto de vista estésico, num contexto que parece
Philipp Emanuel Bach a Kirnberger: «Pode anunciar publicamente que os adaptar um tom novo na história dos manuais de harmonia: «Segundo todas
princípios do meu pai e os meus são anti-Rameau» (Jonas 1973, p. XII]. Isto as probabilidades, o estudante não irá hoje compor no estilo dos corais de
significa que uma análise de Bach, feita à luz de uma t(('lia cujas raízes se Bach, ou em qualquer outro idioma baseado no uso convencional dos séculos
encontrem em Rameau, não pode ser poieticamente pertinente. Toda a XVIII e XIX. De certa maneira, ele já não tem necessidade da harmonia clássica
perspectiva de Chailley, mesmo quando não parece ter em conta os escritos de ou tradicional, enquanto técnica. Do que ele realmente necessita é de uma
Rameau a propósito das suas próprias obras, baseia-se numa teoria da compreensão dos princípios harmónicos que formam a base da sua herança
ressonância que, na nossa tradição, remonta a 1722. Estamos no direito de artística» (pp. IX-X). Evidentemente, o terreno já tinha sido preparado por
supor que, mesmo escrito ap6s a morte de Bach, o Ensaio sobre a verdadeira outros tratados americanos, como o de Piston (publicado em 1941 e, a pa.rtir
arte de tocar instrumentos de tecla (Versuch iiber die wahre Arl das Klavier zu dar. constantemente reeditado com modificações), que li talvez o mais
spielen, 1753-62) de C. Ph. E. Bach pode fornecer-nos indicações sobre as utilizado na América do Norte. Piston entende propor regras
categorias musicais do seu pai. (Schenker baseou-se muito neste tratado do sistematicamente deduzidas da observação da prática dos compositores nos
filho de Bach para justificar a sua própria teoria, mas se esta é pertinente para séculos XVIII e XIX. O ponto de vista adoptado já se não propõe reconstituir o
explicar Bach de um ponto de vista poiético, sê-Io-á ainda para Mozart ou que o compositor tinha em mente ao escrever, mas situa-se deliberadamente
Chopin, ou inclusive para Debussy e a escola serial, como propuseram certos post festum. «O tratado de harmonia convencional, - disse ainda Richard
discípulos seus?) Frank Goldman, - está apontado na direcção errada; o seu objectivo é, na
~ necessário, portanto, distinguir duas fases da análise: o reconhe- maior parte das vezes, o exercício correctamente resolvido, mais do que a
cimento, em função de um dado stock classificatório, de configurações har- compreensão dos princípios» [ibid., p. xI].
mónicas e, também, da sua pertinência poiética. No seu último artigo so- O princípio, vê-Io-emos: o círculo das quintas. A pertinência: a estésica
bre música, Nicolas Ruwet propõe a utilização dos princípios da gramática - «Aquilo que nós ouvimos é que dá sentido a uma progressão harmónica.
generativa no {"studo da harmonia, na seguinte direcção: para analisar [ibid., p. XII]. Mas que ouvimos nós? Essencialmente, esquemas funcionais.
Rameau, não há nada que nos impeça de utilizar as suas próprias teorias, de Piston tinha sido bastante claro nesse ponto: «A variedade de acordes
as formalizar e, por tentativa e erro, adicionar regras que dêem conta da construídos sobre essas fundamentais é de importância secundária, e
prática efectiva de Rameau [1975, p. 24]. Há que ver que este caminho fará nenhuma alteração da constituição dos acordes pode remediar uma progressão
aparecer a diferença entre as estratégias poiéticas explícitas e as configurações inadequada de fundamentais» [1941, p. 17]. Na escola harmónica americana,
estilísticas (de nível neutro) empiricamente observáveis. ~ à descrição «neutra» é.a função a variável com mais peso. Piston foi, sem dúvida, um dos primeiros
ou material destes factos que se entrega Koechlin na secção histórica do seu a não começar o seu tratado com uma invocação ritual aos harmónicos
Traité de I'harmonie: «Não nos deteremos nas "teorias", nem a pesquisar a naturais. Não existe nele um enunciado explícito de um princípio
existência de causas científicas para o aparecimento de um dado acorde antes transcendente: observa a «prática comum:> nos séculos XVIII e XIX e baseia-se
doutro. Permanecendo no domínio musical, esforçar-nos-emos por manter nas funções. Goldman é mais radical: a série dos harmónicos «deixa por
vivo este estudo, através de numerosos exemplos» [1928-30, lI, p. 107]. explicar a selecção que a arte faz dos dados aritméticos ou acústicos ...
Koechlin possui uma particular consciência da importância estilística dos laços Qualquer divisão aritmética ou proporcional pode ser usada como base para a
que unem o acorde ao seu contexto. «Não é o acorde, e nem sequer, em criação de uma escala utilizável dentro da oitava. [1965, p. 5]. A explicação
llIuitos casos, o tipo de encadeamento desse acorde com um outro, que deter- encontra explicitamente em Goldman a sua raiz no princípio transcendente
llIinam o carácter de uma música, mas sim o modo como esse encadeamento do ciclo das quintas. Como ele próprio afirma, não existe fundamental
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IIAIlM()NfA 262 263 HARMONIA

Ilalulal: «A fÓrça da dominante, ou seja, o nosso sentimento de que ela a essas fórmulas:. Dito isto, pode-se discutir a tese de Goldman a partir de três
re«uere resolução ou movimento em direcção à t6nica, é arbitrária. Não se observações:
ha~eia em nenhuma lei acústica; é uma significação adquirida. 1: o único facto 1) A explicação 11 posterion' através do ciclo das quintas deixa em abcrco
imponallle sobre o qual repousa a sintaxe musical... Outros períodos e outras a questão de S2iberse os compositores do período tonal tinham consciência: 11)
culturas utilizaram outras f6rmulas:. [ibid., p. 30]. Força arbitrária, mas de que a música é regida por esse princípio; b) de que as obras se constroem a
capital: no seu livro, o autor introduz a sétima da dominante logo no capítulo partir de fórmclas de base. Se a coisa «iclo das quintas:. existe, a aparição do
11 c no capítulo III insiste no papel das dominantes secundárias (V de V): conceito é bastante mais difícil de determinar .
«llalquer grau da escala pode ser precedido da sua própria dominante, sem Fétis não o assinala em nenhum dos autores citados no capítulo
«ue a tonalidade principal enfraqueça por isso. E em todo o resto da obra, a documentado que consagra à história das teorias harmónicas: ele classifica as
Iclaç:io de dominante desempenha um papel chave. teorias consoante se pretendem baseadas em considerações acústicas, numa
Se examinarmos comparativamente os tratados da tradição francesa escolha arbitrária de acordes fundamentais ou numa divisão arbitrária do
(Ikher, Dubois, Koechlin), encontramo-nos perante algo bastante diferente . monocórdio.
Evidentemente que aí é dito claramente que a progressão dos acordes deve ser A situação é tanto mais difícil se pensarmos que. numa mesma época •
wl1Struída a partir das fundamentais, mas essa progressão não é, de maneira nada justifica que as estratégias poiéticas dos compositores sejam idênticas.
Ilcnhuma, baseada numa série de fórmulas, como nos autores americanos (1- Na realidade, nunca existem teorias falsas, mas teorias situadas num
-IV-VII-I1I-VI-II-V-I, I-V-I-V-VI-II-V-I, I-VI-V-IV-II-V-I, etc.); ela apoia-se determinado grau de abstracção, e pertinentes em relação a um ou vários
Iluma série de conselhos práticos e poiéticos (seguindo, aliás, as proposições aspeccos privilegiados dos fenómenos. Quando confrontam as suas teorias,
de Rameau, cujo pensamento é interválico e não funcional): a lista dos estarão os musicólogos a falar da mesma coisa?
intervalos que são excelentes, toleráveis ou maus, entre duas fundamentais O princípio de Goldman, ao mesmo tempo que é perceptivo, pretende
[Reber 1842; Dubois 1891; Koechlin 1928-30]. Todavia, neste último, abranger a totalidade do período tonal: procura reconstituir «a continuidade
explicitam-se todos os acordes e graus que podem preceder V-I (a saber: IV\ lógica da harmonia tradicional. (1965. p. 163]. Escreve ainda o autor: «O
~, ~, 7; IP, IF; acordes de sexta, ~. 7 sobre o IV grau elevado; acordes de sexta
estilo de Bach difere claramente do de Schubert ou Wagner, mas ... os
aumentada sobre o VI grau abaixado, VP. VI6 [Koechlin 1928-30, I, p. 108]); princípios sintácticos a partir dos quais cada estilo evoluiu permanecem
a importância já não é dada ao intervalo. aproximando-nos assim do fundamentalmente os mesmos. [ibid .• pp. 3-4]. Existe aqui um cerco
pensamento funcional. Difeririam enormemente os exercícios escolares feitos hegelianismo: se a evolução da harmonia está teleologicamente orientada,
a partir de dois tratados tão diferentes, quanto o de Dubois e o de Piston? qual 6 a pertinência auditiva desses princípios? A «compreensão auditiva_
Nunca ninguém se divertiu a analisar e a comparar os trabalhos dos alunos. proposta por Goldman [ibid., p. 100] é a de um musicólogo dos anos 60 que
Podemos pensar que os exercícios «à Dubois_. na medida em que o seu livro ouve cada obra do período tonal em função do seu conhecimento da
não introduz diferenciações diacrónicas, engendram sequências de acordes totalidade do período (a peninência da análise de Goldman situa-se ao nível
próximas dos corais de Bach. revistos e corrigidos pelo academismo fin-de- do «estilo tonal> [Nattiez 1975. p. 83]). Esta percepção é retrospectiva, e nada
-siicle. e que os exercícios «à Piston. estão mais próximos de pastiches nos diz acerca da maneira como os estilos se foram construindo ao longo da
correspondentes aos diversos períodos da história da harmonia tonal. história da linguagem tonal.
As diferenças aparecem sobretudo quando se utilizam os tratados como 2) Prime.i1'Oque tudo. é necessário admitir que a percepção do auditor
reservatórios de conceitos analíticos. Que se passa, quando procuramos as ou do musicólogo dos anos 70 não é necessariamente a de Beethoven.
dominantes secundárias nos tratados franceses? Segundo uma tradição que Koechlin. no que se refere a este ponto. é razoavelmente prudente: «Hoje.
remonta a Jelensperber. estas só são introduzidas para explicar os acordes de que aceitamos todas as sétimas e nonas consecutivas ...• é difícil imaginarmos
sexta aumentada. obtidos pela alteração descendente da quinta. Goldman faz qual seria o estado dos ouvidos por volta de 1830. [1928-30, II, p. 176]. Sobre
deles uma variedade de V de V (na realidade, um acorde de sexta aumentada a percepção das obras clássicas na sua época, só podemos recolher testemunhos
não é um acorde de sétima, mas acusticamente está muito vizinho da sétima indireccos. Neste caso, a sociologia musical pode ser-nos útil quando nos
diminuta, donde a assimilação), ou melhor, um acorde sem fundamental, refere de que modo as obras foram acolhidas. aquando da sua criação. Houve
precedendo o quinto grau [1965, p. 88]; Piston prefere falar (no caso das uma ocasião em que se falou em reimprimir as sinfonias de Beethoven,
sextas italiana e alemã) de um quarto grau elevado (1941, p. 278]. de origem corrigindo-Ihes os «erros de harmonia.: seria importante saber quais [t'bid.].
contrapontística, e de um segundo grau, no caso da sexta francesa. As críticas acerbas que Fétis dirige a certas passagens da quinta sinfonia,
Quando, a propósito de Goldman, falamos de princípio transcendente. fazem hoje souir, mas constituem um documento importante. Olivier Alain
que não se entenda «metafísicol>. A ideia é que a harmonia total. de Bach a diz que «tentar compreender a história da harmonia. é tentar reencontrar as
Wagner, se pode explicar pela imbricação, cada vez mais complexa, de um diferentes etapas da audição no Ocidente. É constatar a relatividade da
certo número de fórmulas de base, e que o nosso ouvido é sobretudo sensível linguagem sonora, mas também as possibilidades indefinidas de adaptação

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I

HARMONIA 264 265 HARMONIA

do ouvido. [1965, p. 6]. Toda a dificuldade consiste em reconstituir essa Não procuramos negar que os compositores tenham tido consciência do
dialéctica do costume e da transgressão: um dado estado da linguagem efeito produzido pelo desenrolar do plano harmônico; trata-se de saber se é
harmônica não corresponde necessariamente às percepções musicais do esse o único factor fundamental, tanto da poiética como da estésica. Na
tempo, e as teorias musicais, em particular, estão muitas vezes atrasadas em realidade, Goldman está perfeitamente consciente do problema já que, logo a
relação à prática que Ihes é contemporânea. seguir, admite que o ritmo e a melodia desempenham um papel importante,
Podemos, ao contrário, tentar estudar experimentalmente como são mas que esses dois parâmetros inserem-se numa «maneira de pensar
percepcionadas, hoje em dia, as obras de Beethoven. As análises de Goldman fundamentalmente harmônica. (1965, p. 131]. O autor fala aqui do período
pretendem-se auditivas, mas sô podemos considerá-Ias como hipóteses sobre o que se estende do barroco médio ao fim do século XIX e segue, neste ponto,
modo de percepcionar a harmonia tonal. O nosso autor está, aliás, o ensino corrente dos professores de harmonia, segundo o qual a melodia
perfeitamente consciente de que ninguém ouve uma mesma obra da mesma é um produto da harmonia. Jean-Philippe Rameau tinha-o enunciado com
maneira; é um dos raros autores a tematizar as ambiguidades da análise firmeza: .Habitualmente, divide-se a música em harmonia e melodia,
(1965, 1'1'. 104-6] e a deixar em aberto a possibilidade de várias análises de embora esta última seja apenas uma parte da outra, bastando assim conhecer
uma mesma passagem [ibid., p. 163]. a harmonia para estar perfeitamente instruído acerca de todas as propriedades
Ora, a dificuldade da posição estésica, em matéria de análise harmónica, da música. (1722, p. 1].
é que os conhecimentos ou os a priori teóricos são um dos factores da Dois séculos mais tarde, tal já não é a opinião de Vincent D'Indy: .A
percepção. Arriscamo-nos a cair num circulo vicioso: a partir do momento em harmonia resulta da sobreposição de duas ou mais melodias diferentes. [1903,
que as progressões harmónicas são explicáveis de maneira satisfatócia pelas p. 91]. «A preponderância atribuída pelos harmonistas à nota grave ...
fórmulas funcionais baseadas no ciclo das quintas, não se irá ouvir em função remonta ao estabelecimento do baixo contínuo, um dos princípios do
dessa. teoria? A teoria de Schenker também se pretende perceptivelmente RenascÍmento que mais contribuiu para falsear o estudo da harmonia. [ibid.,
pertinente, mas, ao mesmo tempo, ele afirma: Podem verificar que os p. 101]. Ao menos para D'Indy, que neste aspecto é fiel a uma tradição
esquemas propostos correspondem à vossa percepção. Necessariamente, a romântica de que Wagner, nos seus escritos, é um brilhante exemplo, a
temarização de um fenómeno orienta a atenção perceptiva. melodia tem a precedência sobre a hatmonia. Se, no seguimento de Rarnellu,
3) Goldman rejeita portanto a análise harmônica dos fenômenos que se pode imaginar que durante todo um período, a melodia foi concebida
não podem ser ouvidos (1965, p. 163]. Esta posição é radical. já que a harmonicamente, a partir de que altura se inverteu a relação entre os dois
observação do aspecto harmónico pode pôr em evidência factos que o ouvido componentes? Com Beethoven? A leitura dos seus cadernos de esboços [Mies
(mas o ouvido de quem?) não capta, mas que são pertinentes em relação a um 1924] poderia fazer pensar que os temas e motivos começaram por ser
nível mais ou menos absttacto de descrição estilística, ou a um factor poiético: concebidos melodicamente ... E antes de Rameau? «O contra ponto de Bach
aqui, aliás, os fenômenos .não harmônicos., como os deslocamentos lineares e é harmônico., afirma ainda Goldman (1965, p. 131]. Esta opinião não
melôdicos, podem ser totalmente determinantes. De facto, Goldman ilude a é partilhada por todos, e Riemann, adoptando um ponto de vista
questão poiética, ou antes, absorve-a na estésica: .Em todo o caso, é ao plano essencialmente poiético, recusava-se a analisar as fugas harmonicamente.
harmónico e ao movimento das obras musicais, especialmente no período É normal hoje, com o recuo histôrico, que vejamos uma lôgica harmônica
clássico, que o auditor deve ser sensível. Na tradição da música ocidental, o nessas fugas, mas Goldman parece admitir em toda esta passagem, e isto sem
compositor espera isso do ouvinte, porque só partindo desse princípio ele querermos menosprezar a importância e as qualidades do livro, que o seu
pode aplicar o seu engenho ou o seu génio à gramática básica da comunicação princípio explicativo corresponde necessariamente à nossa percepção, que esta
musical. (1965, p. 130]. O raciocínio articula-se assim: a análise deve traduzir corresponde à dos contemporâneos das obras do passado, e que os processos'
a compreensão auditiva; esta percepção deve sobretudo captar o plano composicionais correspondem a esta última percepção.
harmónico elaborado pelo compositor, visto que o compositor o constrói em Na verdade, na música entram em jogo diferentes parâmetros, como a
função da percepção dos auditores. Reencontramos aqui um dos mitos mais harmonia, a melodia, o ritmo, etc., que em diferentes épocas tomam pesos
tenazes, não apenas da musicologia, mas também, até uma data recente, da diferentes, e não é certo que numa mesma época a harmonia tenha, do ponto
linguística e das ciências humanas, em geral: no intercâmbio humano as de vista poiético, o mesmo peso que do ponto de vista estésico. De outra
estratégias de percepção corresponderiam às estratégias de produção. maneira, como explicar que, a partir de um dado momento, os compositores
Sentimo-nos, inclusive, no direito de perguntar se, durante o período clássico do século XIX tenham consagrado a melodia como rainha da música? Olivier
- relativamente breve, não o esqueçamos -, o equilíbrio entre poiética Alain sustenta uma posição bastante justa, ao recordar que a música tonal é o
e estésica se realizou verdadeiramente. De facto, admitir uma correspondên- teatro de uma tensão entre o horizontal e o vertical: o retardo, fenómeno
cia absoluta entre os dois polos, é privar-se da compreensão da evolução melódico, cria novos acordes dissonantes (1956, p. 31], «o uso de acordes sem
da linguagem musical, a qual é feita da ultrapassagem das situações fundamental desenvolve, primeiro temporariamente, mais tarde de uma
adquiridas. maneira cada vez mais prolongada, uma harmonia sem base, cuja significação
IIARMONIA 266 267 HARMONhl

melódica múltipla (em princípio, não harmónica) não deixa por isso de o ser:. 2) Mas a criação musical não é um fenómeno estático, e de Bach a
[ibid., p. 124]. Wagner existe uma continuidade. ~, ponanto, necessário situar este edifício
tripanido no eixo do tempo: a poiética de Beethoven alimema-se da obra dos
5. Não pretendemos contestar a inteligência de nenhuma das teorias seus predecessores.
harmónicas existentes. Pretendemos sim, mostrar que a construção de uma 3) Até agora, introduzimos nos nossos esquemas os tratados susceptíveis
tcoria harmónica obedece a um quinto princípio, que enunciaremos do de ter influenciado as obras estudadas, ou de ser o seu reflexo imediato, mas o
seguinte modo: A maior parte das teorias harmónicas baseiam-se num conjunto deste complexo fenómeno dinâmico é descrito a partir do ponto de
pn'ncípio transcendente, que se pretende válido para todo o período tonal, e a vista dos anos 70. Ora, a observação, quer se trate das obras ou das teorias que
pertinência das análises que se podem desenvolver no âmbito dessas teonas Ihes estão ligadas, é filtrada, em cada musicólogo, por um conjumo de
apela para a poiética, para a estésica ou supõe que estes dois pontos de vista conhecimentos musicais e de conceitos teóricos, produto da sua formação
são equivalentes. pessoal, a qual se baseia geralmeme no corpus da musicologia ocidemal,
Não existem teorias totalmente falsas. Como diz André Regnier, «elas constituída, grosso modo, a partir de 1850.
morrem devido àq uilo em que não falaram:> [1974, p. 99]. As que nos Esse corpus musicológico é, também ele, uma construção simbólica, com
ocupam têm talvez o defeito essencial de nunca terem considerado na sua a diferença, característica do século XIX, de que adopta um ponto de vista
amplitude a complexidade dos !enómenos simbólicos em jogo no facto histórico, ao englobar o conjunto dos séculos passados. A situação é
harmónico. Esta complexidade pode ser articulada em três momentos: particularmente complexa, porque se os tratados são ao mesmo tempo
1) A obra de um compositor, que pode ser objecto de uma análise factores e produtos da evolução harmónica, tornam-se, na época da
estilística, combinatória, «neutra:>, no semido acima definido, é o produto de musicologia, um testemunho sobre a poiética do compositor-teórico,
um conjunto de estratégias poiéticas, onde se combinam as aquisições apresentando-se simultaneamente como teoria do conjunto da música tonal.
musicais, teóricas e práticas do compositor e as determinações socio- O capítulo sobre a harmonia do Coursde composition de D'Indy é, para nós,
-psicológicas que com ele interferem. As obras são objecto de percepções radical e revelador: a sua recusa de classificação dos acordes é um índice da
diferentes, por parte dos auditores e dos teóricos do tempo. concepção poiética de fenómenos harmónicos obtidos a partir da melodia,
As teorias harmónicas, distintas dos factos harmónicos tal qual se mas nada impede uma análise neutra - ou seja, uma descrição das
encontram nas obras, são, simultaneamente, resultado e motor das mesmas, sobreposições de notas empiricameme utilizadas, a partir de um stock
na medida em que codificam dados de facto, e orientam a criação em taxonómico dado, e culturalmente estabelecido - de reconhecer na sua
direcções que definem regras positivas e negativas. Um tratado de harmonia própria obra uma determinada configuração, como Koechlin faz, ao citar uma
é, também, uma construção simbólica que se alimenta do facto simbólico que passagem de Feeroal [1928-30, lI, p. 201]. Aliás, nenhuma análise poiética é
é a música; e não é propriamente uma novidade afirmar que a relação entre suficieme para o conhecimento de um estilo musical; se assim fosse, seria
teoria e prática é uma relação dialéctica. necessário admitir que as regras de um tratado escrito por um compositor-
Se, por conseguinte, de entre os fenómenos poiéticos e estésicos, -teórico como Rameau, uma vez formalizadas, explicariam inteiramente os
privilegiarmos o aspecto «conceptualização teórica:>, obtemos este primeiro factos observáveis na sua obra, o que nunca acomece.
esquema: Impõe-se, por consequência, um nível descritivo e estilístico «neutro:>.
Sendo a música essencialmente movimemo no tempo, a apreensão desse mo-
vimemo depende da estésica, e tal apreensão só pode ser explícita se puder-
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HARMONIA 268 269 HARMONIA

Como já dissemos. os filtros teóricos não são máscaras, mas, quando identificar, para lá dos princípios gerais que a governam. o reg isto poiético,
muito. vidros foscos. A partir do momento em que se admite a realidade material ou estésico dos aspectos simbólicos que ela privilegia no dado musical
dinâmica do carácter simb6lico da obra musical e a sua inserção no eixo do estudado.
tempo, torna-se difícil conceber a teoria harmónica elaborada hoje em dia Os conceitos da harmonia tonal são conceiros culturais. A história das
como uma actividade unidimensional baseada num princípio único e teorias harmónicas descreve sucessões de paradigmas explicativos que, por
suficiente, e que privilegiaria um único tipo de pertinência. Deste ponto de transcendentalismo, normativismo ou reducionismo, não conseguiram
vista, talvez estejamos a entrar num período crítico. Os próprios tratados do traduzir a complexidade do facto harmónico na sua tripla dimensão
passado. à excepção dos de Goldman e de Piston. ressentiram-se da simbólica. O mínimo que se pode fazer é restituir à harmonia a sua dimensão
necessidade de jogar com um pau de dois bicos: obrigados a reflectir uma semiológica, o que permitirá talvez explicar as insuficiências das teorias, as
prática estabelecida. a partir da qual formulavam regras descn"tivas. cabia-Ihes suas contradições recíprocas e as circunstâncias vividas da evolução e da
também - servindo-se dum tonal ainda imperfeito (o que é ainda verdade construção da harmonia tonal. assim como da sua teoria. [J.-J. N.].
para Koechlin, mesmo que se deva falar de modalidade ao mesmo tempo que
de tonalidade) - cumprir uma função pedagógica e normativa, impondo
regras prescn"ivas (sobre estes dois tipos de leis, cf. Molino 1975, p. 49.
O autor insiste na «discrepância entre a regularidade da norma e a Alain, O.
regularidade das práticas •. A posição de Koechlin é reveladora da 1965 L 'harmonie, Presses Universitaires de France, Paris.
Arend, M.
ambiguidade das leis harmónicas. No fundo, ele diz ao aluno: siga os
1901 HarmoniJche Ana/yse des TrÚfam-VorJpieh, in «Bayreuther Blatter., n? 24, pp. 160-69.
princípios aqui consignados a fim de passar nos exames, mas a harmonia
Capellen, G.
, tonal. de maneira alguma funciona assim!) 1902 Harmonik und Melodik bei R. Wagner, in «Bayreurher Blattel> , n? 25, pp. 3-23.
A musicologia era a um tempo juiz e parte. Encontrava-se um pouco na Chailley, J.
situação da economia política que, ao descrever, age sobre o que descreve 1951 Traifé hiJforique d'ana/yse muiica/e, Leduc, Paris.
(bastá falar de inflação para criá-Ia), ao contrário da astronomia. cujas 1962 Nofes sur TnJfan ef bolde (lI Efude harmonique), in «L'éducation musicale., n? 88,
pp.8-9.
equações não modificam a trajectória dos corpos celestes. Hoje que os teóricos Cone, E. T.
da harmonia já não estão implicados eles próprios na sua evolução, visto que 1960 Ana/YJls Today, in Problems of Modem Music, Norton, New York, pp. 34-50.
esta chegou ao seu termo. não se trata de apreender a escrever segundo uma D'lndy, V.
norma mais ou menos académica, mas sim de compreender, ao ponto de se 1903 Cours de composition musica/e, vaI. I, Durand, Paris.
Distler, H.
conseguir produzir pastiches. A propósito disto. Goldman é eloquente: «Não
1940 Funkfionelle Harmonielehre, Kassel und Basel.
11:
existem regras [prescritivas]. mas apenas estilos. [1965, p. 127]. Como já se Dubois, T.
disse, trata-se de saber como, nos vários momentos da história da harmonia, 1891 Traifé d'harmonie fhéon'que ef prafique, Heugel, Paris.
se constituiu a linguagem de cada compositor, como era vivida a tonalidade Duhem, P.
na época de Mozart, corno ele a compreendeu para escrever o que escreveu, e 1906 Ia fhéorie physique, Rivicre, Paris.
Ergo, E.
como, por sua vez, a obra de Mozart mudou a imagem da tonalidade para os
1912 Über Wagner's Harmonik und Melodik, in «Bayreuther Blatter., n? 35, pp. 34-41.
compositores que lhe sucederam. Fétis, F. J.
Pensar-se-á talvez que tudo isto já existe. que a «história da língua 1844 Traité complef de Ia fhéorie ef de Ia prafique de I'harmonie eonfenanf Ia doetrine de
musical. é hoje conhecida. Certo. Mas se se admite que a criação é, Ia science ef de I'arf, Bruxelles.
Goldman, R. F.
, parcialmente, o resultado de urna conceptualização e que. nesta
1965 Harmony in Wesfem MUJle, Norron, New York.
conceptualização. a teoria tem urna parte maior ou menor conforme os Hindemith, P.
indivíduos, é então necessário estudar sistematicamente a história da 1937 UnterweiJung in Tomafz, Schott, Mainz.
,'I'racfào entre teoria e criação; esta é inexistente. Fétis é certamente um dos Jadassohn, S.
primeiros musicólogos a ter contextualizado a sua própria teoria, através de 1899 Melodik und Harmonik bei R. Wagner, Berlin.
um estudo histórico e c1assificativo das teorias anteriores à sua. Koechlin Jonas, O.
1973 Prefácio a H. Schenker, HamlUny, Mit Press, Casnbridge Mass.
oferece-nos um belo capítulo sobre a evolução do fenómeno harmónico Karg-Elerr, S.
llll musical, independentemente de qualquer teoria ou tentativa de explicação 1931 PolansfÚche Klang-und Tona/ifJfslehre, Leipzig.
científica. Kistler, C.
Devemos hoje reunir essas duas histórias. a do material musical e a do 1879 Harmonielehre für Lehrer und Lemende, München.
Knorr, I.
discurso sobre a música. tornar a situar a conceptualização que dela propõe a
1915 Sfellverfrefende Akkorde, injahresben'ehf des Hoehschen Konservaton'ums, Frankfurr
musicologia moderna no contexto intelectual que lhe deu vida e, depois, am Main.
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Paris.

«TnIJan., Bern und lLipzig.


narural. (para OS seus fundamentos frsicos, cf. diferencial) e o atonalismo (cf. tonal/atonal) são
historicamente importantes. A possibilidade de resolver a harmonia na sobreposiç:lo de melodias
e, de algum modo reciprocamente. de .gerar. a melodia a partir da harmonia, constitui uma
grande aquisiç:Io tcárica e introduz um dualismo que parece todavia resolver-se numa concepçao

••
11).'0 UOflt.JfJ/II/I,,, //,Jf7f10n,k il1 f,f'i1gner.r
)oU'II/, " semiológica mais ampla da música (cf. Iigno. significado). Revela-se mais simples o
!'il(, /I~r rrJullkJ//J(h~ /lujb"u tan R. Wagnerr .TnJtan und Ira/de., Sehn~jd~r, Tutzing. reconhecimento do vínculo entre os fenómenos harm6nicos e a duraç:lo temporal na qual se
I••"", Il . r Thllill~, L. desenvolvem (cf. n/mo, ríJmlcl1/mimca).

••
!'iO 1 II.Jrrnonu/rhrr, Stuugan.
M .•y/ hr'p,rr. C.
IIlllI I )i~ fl"rrnanik R. Wagner'I an den Leitmotiven dei VorIpie/s zu •TriItan und Iro/do
rrl.iutat. in cBay,~uther Blaner., n? 4, pp. 169-80.


M,,·,.I'.
!'Il..j /.wÚ Skizunbücher von Seethoven, Lcipzig.

••
MIl.hrll. W. J.
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t
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t apenas no interior de um processo de simbolizaçao que a organize (cf. Iímbolo) e permita uma
c1assificaçao dos acordes. Exclui-se assim a existência de fenómenos harmónicos em si, assim
como aliás de fenómenos «musicais. em geral (cf. Iom/ruído). Todavia, a teoria da «harmonia

,J','- __,T.,-",. "1/:::' c r,,··· L '-, ,.",~,


"

~i~;it"'" ',,"
f1 273
I
MELODIA

e analítica. Donde o aspecto não-cumulativo da teoria melódica no seu


conjunto. Mas, mesmo sem conhecer a profusão dos tratados de harmonia, as
teorias da melodia surgem com uma certa regularidade, ao longo dos tempos.
Cingindo-nos ao período que vai de Rameau aos nossos dias, é possível (se
MELODIA pusermos de parte as considerações, muitas vezes especulativas, mas
importantes, de Rousseau) que o Traité de mélodie de Reicha seja o primeiro
do género, em língua francesa, mas de maneira nenhuma o primeiro na
Europa. Nancy Baker demonstrou recentemente [1976, p. 38] que as ideias de
Reicha não estavam longe das de Koch, cujo Ensaio de introdução à
composição (Versuch einer Einleitung zur Composition, 1782-93) é, sem
1. O paradoxo das teonas da melodia dúvida, a primeira importante teoria melódica do século XVIII, depois de O
perfeito mestre de capela (Der vollkommene Capellmeister, 1739) de
Não existe, que saibamos, conservatório ou escola de música que ofereça, Mattheson, que é sobretudo um conjunto de prescrições estéticas, dos
a par das classes de harmonia e contraponto, «classes de melodia •. Equivale Princípios de composição musical (Anfangsgründe zur musikalischen
isto a dizer que a escrita e a análise de uma melodia não exigem qualquer Setzkunst, 1752-62) de Riepel e A arte da perfeita composição musical (Die
aprendizagem técnica? Ou que a melodia, em si, não constitui um objecto Kunst des reinen Satzes in der Musik, 1771-79) de Kirnberger. A julgar por
suficientemente autónomo para fornecer a matéria de um ensino particular? esta série de autores alemães, aos quais é ainda necessário acrescentar Weber e
11; A primeira vista, a situação não é mais brilhante no campo das teorias da o seu Ensaio de teona ordenada da composição musical (Versuch einer
melodia, e a maior parte dos trabalhos que lhe são consagrados começam com geordneten Theorie der Tonsentzkunst, 1817-21), a afirmação de Marx, acima
uma lamentação ritual sobre a ausência de estudos sistemáticos neste citada, parece excessiva, tal como, um século e meio mais tarde, o último
domínio. Durante quase dois séculos, os autores interessados estiveram ponto de vista, cronologicamente falando, o de Meyer.
sempre de acordo em dois pontos: por um lado, a teoria melódica ficou Mas não está apenas em causa o egotismo dos teóricos. Deve-se também
aquém da teoria harm6nica; por outro, cada um considera que nada foi feito falar da mútua surdez das civilizações musicológicas: o Tratado da me/odia
antes dele. (<<Dehá vários séculos a esta parte, foram publicados uma (Melodielehre, 1972) de Abraham e Dahlhaus, entre dezassete referências
quantidade de tratados de harmonia e nem um único sobre a melodia. bibliográficas, contém apenas um título francês e um outro inglês. Pior ainda:
[Reicha 1814, ed. 1832 p. 1]; «Em toda a parte faz falta o ensino da melodia. a surdez musical; porque tanto este livro como o artigo de Dahlhaus [1961],
[Marx 1839, ed. 1841 p. 16]; «É um facto surpreendente que o ensino da com o mesmo título, e com eles, a maior parte das obras consagradas à
composição nunca tenha desenvolvido uma teoria da melodia ... Não melodia não fazem menção alguma às teorias e aos modelos que se
deveríamos ser capazes de analisar a melodia, já que é possível reduzir os desenvolveram em etnomusicologia para a descrição das monoqias da tradição
! !

I
fenómenos harmónicos, incomparavelmente mais numerosos e ambíguos, a oral. O campo das teorias da melodia engrandece-se de súbito quando,
um corpo comparativamente pequeno de regras? [Hindemith 1945, I, pp. rompendo com o nosso etnocentrismo, nos abrimos a todas as músicas do
175-76]; «O número de livros consagrados à melodia pode ser contado pelos mundo, a fim de alargar o mundo das músicas. Ainda que Meyer pareça
dedos. [Smits van Waesberghe 1951, trad. inglesa p. 7]; «Na maior parte dos pensar que a teoria da melodia se desenvolveu menos que a harmonia porque
casos, os teóricos persistem em cingir-se, na música, aos elementos se estaria mais interessado na sua essência do que na sua técnica, não nos
contrapontísticos. harm6nicos e. num menor grau, rítmicos; o desenvolvi- parece inútil demorar-nos, por um momento, nas definições de melodia.
mento da melodia é apenas mencionado de passagem como um elemento se- Quando uma disciplina tem dificuldade em se constituir, devemos procura'r
cundário e acidental. [Edwards 1956, p. V]; «Surpreendentemente, os compo- saber se ela se soube atribuir um objecto próprio.
sitores pouco escreveram sobre a melodia ... Seria um grave erro acreditar que
a melodia não possui aspectos técnicos. [Siegmeister 1965, p. 92]; «Hoje em
dia, não existe praticamente um quadro conceptual viável para a crítica analí- 2. A melodia entre a autonomta e a amálgama
tica da melodia ... Possuímos uma boa teoria da harmonia tonal, precisamente
porque não nos perguntámos "o que é a harmonia?", mas, sim, construímos Na tentativa de alcançar um pouco de clarificação semântica, partiremos
uma teoria da prática harmónica. [Meyer 1973. p. 109]). dos seguintes enunciados:

Sem dúvida, as pesquisas sobre a melodia não são em número suficiente 1) A melodia que se consegue assobiar é muito agradável.
2) Na Tetralogta as melodias são difíceis de reter.
para que se tenha criado uma tradição, ao mesmo tempo pedagógica, teórica
2') Panzera gravou as melodias de Dupare.
t
t JH MELODIA
275 MELODIA
\~

)) Em Dcbussy a melodia é pelo menos tão importante quanto a
harmónico por oposição ao melódico, quer dizer, notas que, verticalmente,
• harmonia.
têm uma função que define a harmonia, rmplícita ou presente, que a
01) No Sacre du Pnntemps o ritmo prevalece sobre a melodia.
sustenta, e notas que, horizontalmente, têm igualmente uma função
harmónica, no sentido em que elas criam, :10 nível da progressão linear, um
• Os enunciados 1) e 2) estão bastante próximos um do outro: 'melodia' é
jogo de tensão e distensão, que nos conduz, mais ou menos rapidamente, em
aqui sinónimo do francês air. Em inglês, utilizar-se-ia o vocábulo tune. Se, no
direcção a um ponto de repouso. As primeiras pertencem claramente à teoria
entanto, propomos dois sentidos diferentes, é porque achamos legítimo harmónica, embora sendo um componente da melodia; talvez fosse mais
• distinguir as melodias cuja autonomia é dada - trata-se das monodias
correcto, para evitar as confusões terminológicas, denominarmos as segundas
(assobio, canto sem acompanhamento, peça para instrumento solo) -,
• daquelas cuja autonomia é construída, ou seja, obtida pela extracção de uma
«tonais:>,a fim de obstar às conotações verticais da palavra 'harmónico'.
É de notar que, no raciocínio que temos vindo a desenvolver, se
linha melódica a partir de um conjunto caracterizado pela dimensão
produziu um facto novo: deixámos de falar em melodia por oposição à
polifónica (ou multissonante, para seguir a proposta terminológica de
harmonia, mas sim em melódico e harmónico. Ao passarmos do substantivo
Kolinski [1973 J que evita conotações históricas impróprias). «As melodias
ao adjectivo, ou mais exactamente ao adjectivo substantivado, avançámos um
(tunes) não são apenas claramente delineadas, homogéneas e fáceis de
grau no caminho da absrracção: em vez de nos encontrarmos perante um
recordar: são também auro-suficientes, e podem soar de uma maneira
material físico, delimitado e autónomo, fatamos das propriedades dessa
completamente satisfatória quando retiradas do seu contexto ... Para os
substância. Se queremos evitar a perplexidade a que conduz a busca de uma
membros de um auditório, a grande vantagem de uma melodia (tune) é a de
teoria homogénea da melodia, é sobre esta distinção que temos de operar; a
poder ser assobiada em privado. Muitos auditores acham que uma melodia presença do harmónico na melodia não o impede de ser uma das propriedades
(tune) é tudo o que subsiste quando uma execução terminou. [Holst 1962, do melódico.
pp. 11-12). Nota-se aqui a presença de um ponto de vista normativo e O que é então esse melódico linear? Alturas sucessivas, apenas? «O
estético: a melodia é aquilo que é cantável, a boa melodia é aquela que se
princípio constante de qualquer melodia reside na mudança de entoação
pode facilmente memorizar. Escreve Schubert que «se após despojarmos uma (ascendente ou descendente) dos sons sucessivos. [Riemann 1931, p. 829).
obra da sua elaboração, ainda encontramos uma melodia pura, então o Não se pode, com efeito, falar em melodia, a não ser que se possam detectar
compositor passou o teste e render-Ihe-emos homenagem:> [citado ibid., p. alturas disttntas. Este conhecido fragmento rítmico;
12). Michel Butor afirmou uma vez [1960J que se tinha surpreendido a
assobiar Stockhausen. Se a anedota é verdadeira, provaria que, a partir do
material de qualquer tipo de música, é possível efectuar operações de ~~---
abstracção tais que a melodia se torne um objecto autónomo.
O enunciado 2') é de algum modo o corolário do precedente: em certos
géneros polifónicos, a melodia toma uma tal importância que, pars pro to to ,
não é u~a melodia. Do mesmo modo, repug,nar-nos-ia falar de melodia n~
caso segutnte:
f
ela Ihes dá o seu nome. A necessidade de distinguir o sentido dos dois
primeiros enunciados e o deste, aparece claramente numa frase como: «A
melodia dos Lieder de Schumann é tipicamente alemã:>.
• . _L: UJi
~ UJI
~ -tf+f::Ef-EEEt
r;--. ~~~ .-r:t:--c:r:r=kf-
Se é possível isolar uma melodia de um todo polifónico, é porque uma a tal ponto que certas legislações sobre os direitos de autor definem trecho
das dimensões essenciais da melodia é a linearidade: Guy Ferchault defende musical como uma sequência de alturas melódicas e harmónicas distintas.
que «uma melodia é um conjunto de sons sucessivos de altura variável, Quando se diz que uma música de tradição oral baseada numa ou duas
possuindo entre eles relações tais que a sua percepção global seja susceptível notas «não é melódica:>, o aspecto estético e normativo, assinalado nos
de satisfazer, ao mesmo tempo, a inteligência e a sensibilidade:> [1957-58, lI, enunciados 1) e 2), vem ao de cima. De f3lCto,as palavras 'melodia' ou
p. 35). Encontramos o mesmo reparo em André Souris: «É uma noção muito 'melódico' raramente têm um sentido apenas, dos apontados acima, donde a
geral que cobre todas as relações possíveis na ordem da sucessão:> [1961, p. ambiguidade do termo. É possível, na música ocidental, imaginar uma obra
178). Ou ainda Ferchault: «Este aspecto linear, horizontal, da música, opõe-se monotónica? Se, com Webern, se pôde falar de Klangfarbenmelodie, é
ao aspecto vertical dos conjuntos de sons individuais simultâneos, ou acordes, porque as diferentes cores dadas a uma mesma.nota pelo timbre, introduzem
cuja formação e encadeamento constituem a harmonia:> [1957-58, lI, p. 35J. o elemento da variedade, necessário à melodia.
Mas não é certo que a oposição harmonia/melodia se possa fazer unicamente Falámos de alturas, mas há que precisar que as alturas relativas de cada
segundo o modelo da oposição vertical/horizontal. Porque, ao fazermos isso, nota são definidas pela distância interváhí::l que as separa, já que a
não nos afastamos do enunciado 2) no qual uma substância linear é separada configuração de uma melodia (air) permanece a mesma, ainda que esta seja
da substância multissonante; mesmo na melodia horizontal, existe o
transposta. Mas, com esta precisão, a sucessãOde alturas constitui o núcleo

-,;',' .(.;, , ";"1'\" .~.. ~~ 't· '; "'"; ~.


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I
MELODIA
276
277
MELODIA

duro, irredulível, da melodia, sem o qual não se pode, de facto, falar de


melodia. O ponto capital, aqui, é a necessidade de distinguir a altura Privada das notas de passagem (não-harmónicas) ou melódicas (como se
enquanto realidade física, a qual nos permite continuar a falar de melódico diz em certos tratados), a melodia perde lodo o seu carácler. E nunca
autónomo no sentido do enunciado 2), das propriedades ou dasfunções que a ninguém pensou examinar uma melodia só sob o ângulo das suas notas
nOla assume, segundo o seu contexto. Na realidade, uma altura nunca «puramente melódicas. (não-harmónicas). A ambiguidade congénita do
aparece sozinha. A sucessão das alturas é sempre organizada no tempo, e adjectivo 'melódico' reside no seguinte: a palavra toma uma acepção tanto
mesmo no caso de durações perfeitamente regulares, pelo menos na música mais restrita, quanto mais se utiliza num contexto que lhe precise o sentido
ocidental, certos pattems interválicos, em virtude das suas funções tonais, (melódico vs harmónico, melódico vs rítmico, melódico vs métrico, etc.),
sugerem urna organização métrica: mas, ao mesmo tempo, é melódica toda a teoria que se refira a, pelo menos,
uma das variáveis discerníveis na melodia, desde que ela esteja relacionada
com alturas sucessivas.

:f-~'~=~.ii:=~~---n-_~~ A prática pedagógica dá-nos a ilusão de que possa existir harmónico no


estado puro. Dizemos bem, a 'ilusão', porque qualquer encadeamento de
acordes faz aparecer uma melodia, pelo menos no soprano. Talvez se possa
C~!,~_=~..... admitir com maior facilidade a existência do «rítmico puro., e ainda assim é
necessário para isso que a sucessão de durações não dê origem ipso facto a um
ou
~l~=4~lJ JJJJlq~ metro. Mas uma passagem melódica é sempre e, ao mesmo tempo, outra
coisa. Mais ainda: não se pode definir senão em relação com essa outra coisa.
mas não Não existe melódico puro. Eis porque as teorias autónomas da melodia
~~T-ff~ tiveram tanta dificuldade em se constituir. Todas as variáveis da música se
juntam na melodia pura para lhe darem corpo. Se existem poucas teorias da
O silêncio de Riemann a propósito do ritmo, na sua definição de melodia, é talvez porque os musicólogos foram acometidos de vertigem
melodia, acima citada, explica-se pela pos5ihilidade de, numa melodia (air), perante o facto da teoria melódica parecer dissolver-se numa teoria de toda a
música.
se isolar o aspecto melódico, desta vez no sentido do enunciado 4), ou seja,
por oposição ao rítmico. Mas, visto que a melodia se desenrola no tempo, esta
dimensão pode ser também incluída na definição, como o faz, por exemplo,
3. A querela do melódico e do harmónico
wstere: «Uma linha de sons sucessivos, ordenados em altura e duração.
li!
[1961, p. 178]. Mas não há razão para nos determos a meio de um tão bom
caminho: às alturas e às durações D'Indy junta a intensidade e a acuidade das Estaríamos quase tentados a escrever que a melodia é a própria música, se
"
noras [1903, ed. 1912 p. 29]. Na realidade, e Souris tinha razão ao insistir a supremacia da harmonia no ensino e nas teorias musicais não nos desse que
!
pensar.
:11

neste ponto, a melodia joga com «todos os componentes das relações musicais:
No artigo «Harmonia. da presente EncicloPédia fizemos alusão à questão
escalas, âmbito, durações, timbres, intensidades, articulações. [1961, p. 178].
da predominância da harmonia sobre a melodia, apresentando
ê, sem dúvida, possível alargar a lista indefinidamente. Resumindo: os dois
nomeadamente as posições opostas e separadas por um intervalo de dois
primeiros enunciados demonstram q\le a melodia é um facto maten'al
séculos de Rameau e D'lndy [Nattiez 1977, ed. 1984 p. 265]. Ao tratar da
relativamente autónomo, isolado, ou isolável, de um todo mais complexo. melodia, um musicólogo tão eminente como Apel, queixa-se desta
Mas os enunciados 3) e 4) fazem-nos compreender que a melodia autónoma é
I
supremacia: de 1750 até hoje «houve uma tendência crescente para fazer da
II amá/gama de constituintes relativamente heterogéneos. melodia a serva da harmonia ou, pelo menos, de a considerar apenas como o
I

I
O melódico é aquilo que se refere a uma melodia. Apel demonstrou o mero resultado de progressões harmónicas. A explicação corrente da melodia
que havia de absurdo em analisar o tema da primeira sonata de Beethoven
como "superfície da harmonia" ilustra claramente este ponto de vista. Alguns
apenas do ponto de vista das suas notas harmónicas:
autores foram tão longe que sustentam que uma melodia que não pode ser
interpretada harmonicamente é, pura e simplesmente, incompreensível.
Bastaria lembrar-nos do grande tesouro de música puramente melódica que é
Ir .•~=f.~L-
=t46t:~'=ft-c:c.;~ o canto gregoriano, para recusarmos uma tal concepção, totalmente falsa»

ê
[1944, p. 436]. Apel teria podido citar, na mesma ordem de ideias, essas
'111i aberrações musicológicas e etnocêntricas que são as harmonizações de
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monodias medievais levadas a cabo pela escola de Niedermeyer e de cantos
I' índios, na obra da etnomusicóloga Alice Fletcher. Não é certo, todavia, que
II.,~J
III
••
••


••
MI'It II1IA

Al'd lellha illleiralllcnte razão quando fala de uma tendência crescente para
278 MELODIA

deve seguir em relação à outra. muitas vezes perdemos de vista aquelt. que
279

fa/er da melodia a serva da harmonia, Na pedagogia, talvez, mas, nas teorias, nos tínhamos proposto. ou. pelo menos, somos obrigados a alterá-Ia; essa
qualllo mais a evolução da música põe em causa o equilíbrio clássico, mais a primeira pane nem st'mpre nos permite dar às outras um canto tão perfeito
melodia é, ao contrário, objecto de uma consideração muito particular, quanto se poderia doejar. h ponanto a harmonia que nos guia e não a
•• melodia. libid .• p. 139']. Evidentemente. Rameau admite «que um músico
••
•li Voltemos a Rameau. Ao ler o Traité de I'harmonie de 1722, a
(;/"émÚon harmonique de 1737 e a Démonstration du pn'ncipe de I'harmo-
fIIl: de 1750, podemos notar dois tipos de argumentos nos quais o autor se
b;l~eia para justificar que a melodia emana da harmonia:
sabedor pode propor-se um belo canto conveniente à harmonia. [ibid.], mas
precisamente porque conhece as leis harmónicas (ressonância natural e
progressão dos acordes) que sustentam, segundo ele, a sucessão melódica:
«Encontrar a base fundamental de um canto dado, é encontrar não somente

li a) Antes de tudo, um princípio que classificaremos de transcendental toda a harmonia de que o canto é susceptível, mas também o princípio que o


••
porque, ainda que fundamentado na acústica, possui um alcance universal:
deve explicar toda a música. «Com os dois sons que a primeira divisão da
((lrda nos oferece, poder-se-á formar urna melodia? Não, sem dúvida, porque
IIflI homem que cantasse de oitava em oitava, não formaria um canto
sugeriu. [1737. p. 192]. Este princípio é, evidentemente. o aspecto
transcendental de que se falou. Rameau propõe a seguinte ilustração: «Se se
perguntasse a um músico por que razão, quando quer proceder
diatonicamente após um som dado, ao qual tenciona voltar imediatamente,
partimlarmente belo. A segunda e terceira divisões dessa corda, de onde entoa o tom acima e o meio tom abaixo? Ficaria provavelmente bastante
••

••
provém roda a harmonia, não nos fornecem sons mais convenientes à
melodia, já que um canto composto somente de terceiras, de quartas, de
quintas, de sextas e de oitavas, estaria longe de ser perfeito: a harmonia é,
impressionado, ainda que nada seja mais natural. Impressionados pela
harmonia de um prilMiro som, a sua quinta, enquanto a sua mais perfeita
consonância, preocupa-nos de tal maneira que, à falta dela, entoamos nesse

• portanro, criada em primeiro lugar; assim, é dela que devemos absolutamente


tirar as regras da melodia, ao tomarmos à parte esses intervalos harmónicos,
dos quais acabámos de falar, para com eles formar uma progressão
caso um dos seus harmónicos que, corno presentemente sabemos,
representam sempre o seu som fundamental, fazendo, numa palavra, pane
dele. Consideremos. por exemplo, que dó seja esse primeiro som; a sua
•• fundamental que ainda não é, de maneira nenhuma, uma melodia; mas com quinta será o sol, cujos sons harmónicos são ré e si; ora, é precisamente esse ré
•• esses intervalos postos em conjunto, por sobre um dos sons que os compõem, que está um tom acima do dó. e esse si que dista dele meio tom: donde é

• seguindo naturalmente um caminho diatónico, que Ihes é imposto pela


própria progressão, quando se fundamentam mutuamente, tiramos, nesse
evidente que o princípio desta sucessão reside no som fundamental sol. que
nos impressionou ao ouvirmos o dó. [ibid .• pp. 193-94], Em Rameau, a
• caso, dessas progressões consonantes e diatónicas, toda a melodia necessária; melodia não tem salvação. porque a sua ptogressão, em aparência livre e

• de modo que foi necessário conhecer os intervalos harmónicos antes dos


melódicos» [Rameau 1722, p. 139]. O princípio de Rameau é de tal modo
espontânea. se fundará em princípios dos quais se pode não estar bem
consciente, mas que sCl'iammais convincentes por se basearem na natureza.
• universal, que explica mesmo as músicas privadas de harmonia, corno as dos
alll igos: «Se eles fiznalll progressos espantosos no l'ampo da melodia, se
Este segundo argumento remete-nos, ponanto, para a poiética pessoal do
compositor (sobre os termos 'poiético', 'neutro' e 'estésico', cf, «Harmonia.
• avançaram com alguma segurança por esses caminhos, isso aconteceu porque neste volume da EncicloPédia, p. 258), para a prática daquele que cria a

" eram secretamente guiados pela natureza. [1750, p. 3]. Este primeiro
argumento é, evidentemente, aquele que, hoje em dia, se pode pôr em causa
partir da harmonia. Seria historicamente errado pensar que os contemporâ-
neos de Rameau aceit31'amimediatamente a sua maneira de ver as coisas. Os
I com maior facilidade, já que o suposto fundamento natural da harmonia está
estreitamente dependente das concepções acústicas do tempo. Como diz, de
especialistas estudaram as discussões de Esteve (Nouvelle découverte du
pn'ncipe de I'harmonie, 1752) e de Serre (Essats sur les pn'ncipes de
Ia uma maneira excelente, Boulez, «poder-se-ia escrever uma história da música I'harmonie, 1753), mas a posteridade reteve mais facilmente os argumentos
a partir dessas correcções feitas às observações físico-acústicas ... Nem o acorde de Rousseau, em virtude da personalidade do seu autor. Falta-nos' o espaço
Ia
perfeito menor, nem o temperamento igual são naturais: quando muito, para reponarmos em detalhe os elementos da querela Rameau-Rousseau, que
Ia tornaram -se-nos familiares ... A teoria da tonalidade é tão natural quanto Duchez tão bem reconstituiu [1974]. Bastará, para o fim em vista, sublinhar
artificial: mostra-nos o estado da imaginação científica no século XVIII. [1962,
t pp.413-14].
que a teoria de Rousseau, após os argumentos transcendentais e compo-
sicionais de Rameau, propõe um terceiro tipo de explicação genética da melo-
Ia b) O segundo argumento é de ordem composicional: «Qualquer que seja dia, ligando a origem da música e do canto à origem da linguagem humana.
a ordem de melodia que observemos em cada parte em particular, Segundo Rousseau, uma melodia é «simples, natural e apaixonada ... não
t dificilmente elas formam em conjunto uma boa harmonia (para não dizer que tira a sua expressão das progressões do baixo, mas das inflexões que o
• isso é impossível) se essa ordem não Ihes for ditada pelas regras da harmonia»
[Rameau 1722, p. 138]. Se se começa por escrever o canto, cedo deixaremos
sentimento dá à voz. [1755. p. 206]. Em Rameau e em Rousseau existem, por
trás da música, duas naturezas diversas: a natureza de Rameau é a dos corpos
de o dominar; «enquanto nos exercitamos a buscar o caminho que urna parte sonoros que ressoam, a de Rousseau é a das paixões do homem. Ora, para

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MELODIA 280 281
MELODIA

Rousseau, a posição de Rameau é, ao contrário, uma desnaturação: «A arre


algo mais. Olivier Alain sublinha-o oporrunamente: «A escala menor e os seus
começou a substituir as suas regtas às da natureza~ libid., p. 205) e ele
não tetá palavras suficientemente duras contra o imperialismo harmónico: acordes não são outra coisa senão o resultado da actividade melódica, e não se
«A harmonia é uma invenção gótica e bárbara, boa para suprir, à medida deveria limitar a harmonia apenas aos agregados do modo maiorx. 11965, ed.
1969 p. 39]. É necessário retomar aqui a tensão dialéctica entre o horizontal e
dos nossos rudes ouvidos, o acento da melodia, que já não possuímos.
A harmonia, longe de ser o princípio da melodia, nasceu pela sua ausência, o vertical, já evocada no artigo «Harmonia.: ao contrário de Rameau, os
acordes dissonantes são explicados, a maior parte das vezes, como o resultado
serve-lhe de suplemento. [citado in Duchez 1974, p. 54).
de movimentos melódicos, sendo, por exemplo, a constituição do acorde de
Duchez demonstrou, com uma exactidão convincente, que no sistema
filosófico de Rousseau, a música ocupa um lugar privilegiado entre a quarra e sexta descrita como duas appoggiat1lre do estado fundamental sobre
linguagem, a natureza e a sociedade [ibid., p. 60]: a melodia tira a sua o quinto grau. A maior parte dos tratados consideram notas
origem da linguagem, para exprimir, pela imitação dos acentos da palavra, as «não-harmónicas., ou até notas melódicas; as notas de passagem, os ornatos,
paixões que aquela traduz e atingir com ela esse objectivo comum que é a as appoggiature, os retardos, as escapadas, as cambiata e as antecipações que,
comunhão humana. Com as suas características próprias, a explicação de se duram o suficiente ou se se encontram num tempo forre, dão origem a uma
Rousseau inscreve-se numa tradição que lhe é anterior; os teóricos barrocos agregação harmónica etiquetada. «O desenvolvimento do cromatismo tem
como único motor o instinto do deslocamento melódico em todas as
analisavam a música com os termos da retórica, precisamente porque partiam
da hipótese que as arres da linguagem e as da música tinham um mesmo direcções, deslocamento esse facilitado pela multiplicação das sensíveis
artificiais, e logo das "dominantes secundárias", até chegarmos não somente
objectivo - a expressão das paixões - e, por conseguinte, deviam empregar
os mesmos meIOs. à modulação indefinida, mas mesmo, como é lógico, à capacidade de
Mas Rousseau não será o último: Reicha situa muito claramente o seu relacionar cada um dos doze sons com qualquer outro. libid., p. 41].
Trait! de mélodie na perspectiva rousseauniana, ao lembrar que a melodia Portanto, o melódico está como que embebido de harmónico, sendo possível
exprime ali diferentes modificações do sentimento [1814, ed. 1832 p. 34]. «A classificar tanto os tratados de harmonia como as teorias da melodia tonal,
melodia é uma sucessllo de sons, assim como o discurso é uma sucessão de segundo a Sua maneira de conceber a relação harmonial melodia.
palavras. libid., p. 4J. D'Indy justifica a sua definição de melodia - «uma «Uma série de intervalos ascendentes e descendentes, repetidos,
Sucessão de sons diferentes entre eles pela sua duração, intensidade e organizados e movendo-se ritmicamente, contém, em si própria, uma
acuidade. - através da sua ligação com a linguagem: «O ponto de partida da harmonia latente. [Busoni, citado in Holst 1962, p. 13]. «Na audição tonal,
melodia é o acento ... Desde sempre, o acento da palavra esteve associado ao os sons isolados só tiram o seu significado dos acordes subentendidos dos
acento musical. .. A linguagem musical e a linguagem falada são regidas de quais fazem parte. [Souris 1976, p. 189]. Os Exercises in Melody Wn'ting de
uma maneira idêntica pelas leis do acento. Os grupos rítmicos são a imagem Goetschius obedecem à mesma progressão de um tratado tradicional de
musical das sílabas, cuja sucessão gera as palavras e as frases. [1903, ed. 1912 harmonia e o autor afirma que a melodia segue as leis da escala e dos
p. 29J. principais acordes [1900, p. 1]. Piston, autor do tratado de harmonia mais
A origem linguística da melodia possui ainda partidários mais próximos utilizado na América do Norre, ainda hoje se encontra bastante próximo do
'Ili!
de nós: esta «deriva de uma fonte dupla: a palavra, cujas inf1exões ponto de vista de Rameau: «Durante o período que consideramos como sendo
amplificadas inspiraram, primeiro que tudo, a escolha dos intervalos; e a o da prática corrente da harmonia [ou seja, de Bach a Wagner). quase todas as
11, dança, cujos gestos simétricos ditaram a ordenação dos rirmos. IBrenet 1926, melodias são de origem harmónica. Estas eram desenvolvidas a partir das
i";.1 notas dos acordes, com a adição de notas não-harmónicas, ou então
p. 244). Compare-se esta passagem com a primeira versão do arrigo «Méloqie.
I' do Dictionnaire de m1lsiq1le de Rousseau: «A melodia era composta de concebidas de maneira a possuir um significado harmónico, expresso ou im-
tempos e tons, ou seja, do acento propriamente diro e do ritmo: o acento era plícito. Em relação ao processo de harmonização, isto significa invenção, 'mas,
a regra da elevação e do abaixamento da voz, o ritmo a da medida e dos pés. de certa maneira, redescoberta de elementos já exisrentes» [1970, p. 67). Este
[citado in Duchez 1974, p. 66J. Claro que a explicação genética da melodia ponto de vista entra em conflito com um facto que é admitido por todos, e
não é das mais difundidas hoje em dia, sem.dúvida em virtude do seu carácter inclusive por Piston, ou seja, que as implicações harmónicas de uma melodia
especulativo, mas não será inútil recordar que Rousseau também não tinha são múltiplas: considerando apenas acordes de três sons, cada nota de uma li-
ilusões a esse respeito. Ele via nas suas proposições «raciocínios hipotéticos e nha melódica pode ser a fundamental, a terceira ou a quinta de um acorde,
condicionais, mais próprios para esclarecer a natureza das coisas do que para Citemos o ponto de vista de um tratadista: «Uma melodia pode ser harmoni-
mostrar a sua verdadeira origem. [1754, p. 133]. zada de maneiras muito diferentes, enquanto que melodias diferentes (envol-
Após as explicações transcendentais, composicionais e linguísticas, há vendo diferentes funções melódicas) podem ser construídas sobre uma única
também lugar para os argumentos de ordem rigorosamente histórica. Se a base harmónica. O presente método é, por isso, baseado na convicção de que
acústica não consegue englobar a totalidade da harmonia tonal, deve haver a função melódica é algo independente, e que não pode ser deduzida do con-
texto harmónico. [Smits van Waesberghe 1951, trad. inglesa p. 8].
.-
• MELODIA
282 283 MELODIA


• Assim, quanto mais os autores são levados a interessar-se de um modo contradiria. uma análise que procura somente mostrar a lógica harmónica de
uma melodia, e que não tenta conftrmar de uma outra maneira o que se ficou
específico pela melodia, mais lhe começam a reconhecer as características
a próprias, independentes da harmonia. Um século após Rameau, Reicha a saber a. partir da análise da progressão dos graus da harmonia na sua
• classifica as peças musicais em três categorias: aquelas em que a harmonia é totalidade» [ibid., p. 187). Para concluir este parágrafo, é necessário referir a
posição intermediária de Goldman. O facto de de: se re:cusara tomar posição
• predominante, aquelas onde o é a melodia e, enfim, as que, equilibradas,
classifica de mistas [1814, ed. 1832 p. 89). Mas o autor restringe o âmbito do no debate: é, já de si, significativo: eA que:stão de saber se a mdodia aparece
seu tratado ao «interesse melódico, em que a Harmonia está completamente primeiro e se (mais uma vez para os nossos ouvidos) implica uma harmonia,
••

,
subordinada à melodia,. [ibid., p. 8). Evocando a disputa que aqui nos ocupa, ou se a mdodia é um desenvolvime:nto horizontal da harmonia, é secular.
•• escreve: «A harmonia e a melodia são muito diferentes uma da outra. É pois Não tem resposta, nem vale a pena procurá-Ia. Na tradição musical ocidental,
necessário dar a cada uma o que lhe pertence, e não confundi-Ias» [ibid., p. harmonia e melodia interagem e: são inseparáveis» (1965, p. 53].
87). Podemos considerar que este interesse crescente pela dimensão melódica Este ponto de vista é o resultado, mais uma ve:z,da ambiguidade do vo-
•• de uma peça, o qual é, ao mesmo tempo, o reconhecimento da dimensão cábulo 'melódico'. Examinemos a questão das enotas de movimento obrigató-
temporal da obra musical, explica a distinção proposta por Schenker e pelos rio,. e das enotas estranhas à harmonia». As primeiras. em virtude da sua fun-
•• seus discípulos entre os «acordes harmónicos,. e os acordes contrapontísticos, ção tonal, devem resolver de um modo obrigatório: o seu movimento é fisica-
ou seja, aqueles que «observam os princípios contrapontísticos que governam
" a condução das vozes,. [Katz 1945, p. 12).
mente melódico, mas só explicável harmonicamente. Aqui, 'melódico' tem o
sentido material dos enunciados 1) e 2) do parágrafo precedente. As notas es-
•• Chegaremos assim, progressivamente, à completa inversão da posição de tranhas são por vezes notas de movimento obrigatório, mas nem sempre, e
Rameau: «A harmonia deve derivar da melodia ... Possa este pequeno livro
nesse caso o seu movimento será considerado «puramente melódico», ou seja,
•• ajudar a derrubar o despotismo harmónico,. [Smits van Waesberghe 1951, «melódico» não s6 no sentido dos enunciados 1) e 2) - movimento da linha
trad. inglesa pp. 92 e 98]. Sem declarações tão estrondosas, Hindemith é - mas sobretudo no sentido do anunciado 3), emelódico,. por oposição a
••
talvez aquele que, ao nível da análise concreta, levou mais longe a autonomi- «harmónico •. Este exercício de semântica do discurso musicológico não tem
•• zação da melodia, ao reconhecer-lhe uma dimensão harmónica distinta da nada de académico, já que de permite compreender por que razão os musicó-
harmonia que a sustenta. É a melody degree-progression, «totalmente logos não se entendem: falam de noções diferentes com as mesmas palavras e
••
independente da progressão principal dos graus sobre a qual repousa a de noções idênticas com palavras diferentes. Para lá das armadilhas da lingua-
•• harmonia de conjunto das várias vozes de uma peça,. [1945, I, p. 186]. Como
gem, a questão verdadeiramente importante reside em saber que variáveis são
a identifica Hindemith? Uma linha melódica articula-se em grupos
•• tomadas em consideração numa análise ou teoria mdódica. São elas que nos
constituídos por acordes de três sons, o que permite distinguir a fundamental aparecem, quando tentamos classificar as teorias da melodia.
" dos acordes contidos em cada grupo. O autor está consciente de que os grupos

• se podem imbricar, como no exemplo seguinte [ibid., p. 184):


4. Teorias da melodia e vanavei.ranalíticas

• É extremamente difícil situar estas teorias umas em relação às outras. Por
comodidade distinguiremos três grandes famílias de teorias da melodia, mas
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~•.... Progressão
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não se trata de uma classificação rígida. Em primeiro lugar, porque há dois

" Para demonstrar a independência das duas progressões de graus, dá como


géneros de teorias melódicas: quelas construídas «de propósito,. e as que
acontecem «por acaso•. Em relação às segundas, pensamos, por exemplo, nas
• tentativas de classificação de cantos em etnomusicologia que necessitam, para

r'
exemplo este tema da sinfonia A Surpresa de Haydn [ibid., p. 186].
• isso, de descrever o incipit melódico da peça, ou de"a analisar inteiramente .
Os trabalhos de Bart6k e Kodaly são talvez os mais conhecidos dentro do
• .~ .tfn-rtt;::-rflfJ1 Jl JT ... género fef. Erdely 1965]. A segunda razão da flexibiiidade da nossa
I I l LI .. classificação é o facto de cada um dos autores colocados numa das três
• Para Hindemith, melodicamente não existe modulação à dominante no
categorias tratar, de maneira menos desenvolvida, pontos abordados
" fim da passagem, mas apenas uma nota auxiliar do sol, já que não há, na
principalmente nas outras duas, ou apenas numa delas. Essas três famílias são:
a) o estudo da fraseologia; b) o estudo dos comamos, desenhos e curvas; c) a
• melodia, nem ré nem lá. «Isto pode parecer um tanto grotesco num exemplo
análise da progressão da linha mel6dica.
I como o precedente, mas em construções mais complexas ver-se-á que é
completamente convincente. Seria naturalmente fácil ler na melodia
a) A fraseologia é indubitavelmente a mais antiga. Consiste em articular
a linha melódica em segmentos, os quais, hoje em dia, se diriam .hierar-
• harmonias simples, que concordassem com a harmonia do todo. Mas isso

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MELODIA 284 285 MELODIA

quizados_, ou seja, encaixados uns nos outros, desde o mais pequeno ao além disso, distingue entre a Satz de oito compassos e a Halb-Satz de quatro
maior: segundo Baker, a primeira grande teoria da melodia, no século XVIII, é [ibid., pp. 241-52].
a de Heinrich Cristoph Koch, que consagra um capítulo do seu Ensaio de O problema da fraseologia conheceu um interesse renovado, sob a
introdução ao ensino da composição às «regras mecânicas da melodia_o influência das preocupações semiológicas e da introdução dos modelos
O autor procura sobretudo definir diferentes tipos de frases que, em linguísticos na musicologia. É sem dúvida a Ruwet (1966) que se deve a
conjunto, formam um período. Distingue a frase de base (enger Satz) , a proposta de uma teoria da segmentação de uma peça musical, baseada em
extensão da frase (erweiterter Satz) , e a frase combinada (zusammen critérios explícitos, no que foi seguido por diverso~ investigadores, que
geschobener Satz), sendo as duas últimas baseadas na primeira. A frase de adaptaram ou criticaram as suas primeiras proposições [Arom 1969; Nattiez
base possui quatro compassos. Metade de uma frase é um segmento ou inciso 1975a, 1975b; Lidov 1975). Sem propor uma metodologia tão sistematizada,
I (Einschnitt); as frases de cinco, seis e sete compassos são derivadas das frases encontramos abordagens análogas nos etnomusicólogos americanos (por
de quatro ou de oito compassos, mediante diferentes procedimentos. Koch exemplo, os trabalhos de McLeod (1966) e de Becker [1969]). Estas
I
i estuda os diferentes tipos de cadências que caracterizam os segmentos metodologias empíricas parecem particularmente adaptadas às peças da
i
constitutivos da linha melódica. Baker sublinha que o autor é provavelmente tradição oral e às obras que não respeitam os canônes da segmentação clássica,
um dos primeiros a ter mostrado o papel que a métrica desempenha na visto que elas permitem pôr a claro níveis de hierarquização complexos e
importância de uma nota, já que, segundo ele, esta depende menos da sua imbricados, assim como tipos de unidades que hesitamos em qualificar de
frases ou motivos.
função harmónica do que do seu lugar no compasso [1976, p. 30). Estudando
b) Os musicólogos impressionaram-se muitas vezes com o facto de a
as extensões de frase, Koch faz o inventário dos processos de desenvolvimento
linha melódica desenhar contornos, a partir dos quais se pode tentar construir
da frase de base (repetição, adição de um apêndice, continuação de uma
uma tipologia. O nosso trabalho está, neste caso, grandemente simplificado,
.
1
idcia, parênteses). As frases compostas são obtidas por meio de quatro
processos: supressão de um compasso, supressão dos elementos de finalidade visto que um etnomusicólogo americano, Charles Adams [1976], fez
,
1
de uma frase, mistura de secçôes pertencentes a duas frases diferentes e
recentemente o inventário de todas as tentativas levadas a cabo neste sentido.
Um dos grandes pontos de interesse do trabalho de Adams fi! o de ter
inserção de uma frase completa noutra.
classificado essas pesquisas segundo o tipo de métodos que utilizam para
Koch teve precursores: Riepel, que, nos seus Pn'ncípios de composição descrever os contornos: a descrição metafórica [Herzog 1949-50); a lista de
musical (1752-62), tinha definido a frase de quatro compassos e os processos palavras (o arco, o pêndulo, a descida gradual, em Nettl [1964, pp. 147-48];
para a sua extensão; e Kirnberger que, na Arte da perfeita composição a onda, a onda ascendente ou descendente, o arco, a linha ascendente,
musical (1771-79), distingue o período (pén'ode) da frase (Abschnitt) e do descendente, ou horizontal, a combinação, em Siegmeister [1965, I, pp. 64-
inciso (Einschnitt); mas terá sobretudo continuadores: Daube com o Guia
-77]); as representações gráficas [Hornbostel 1932; Edwards 1956; Brandel
para a ;nt1enção di melodia e seu desenvolvimento (Anleitung zur Erfindung 1962; Kolinski 1965b; Seeger 1960]; e Adams propõe, ele próprio, uma
der Melodie und ihrer Forsetzung, 1797-98), Weber com o Ensaio de teoria
análise de traços baseada em quatro critérios (notas inicial, final, mais aguda e
ordenada da composição musical (Versuch einer geordneten Theon'e der mais grave) que levam a doze tipos de combinações.
Tonsetzktmst, 1817-21), Marx [1839) e Riemann [1903]. c) A terceira família de teorias melódicas é dinâmica, por oposição às
O Traité de mélodie de Reicha analisa detalhadamente os processos de duas primeiras, que são francamente estáticas: trata-se aqui de descrever como
segmentação simétrica da peça: «Uma boa melodia exige: 1) que esteja dividi- progride uma linha melódica. Na medida em que, na música tonal, as alturas
da em membros iguais e semelhantes; 2) que esses membros façam pausas têm uma função em relação à tónica, um segmento melódico exige tlma
mais ou menos fortes, as quais se encontrem a distâncias iguais, dispostas si- prolongação ou, ao contrário, dá a sensação de conclusão: é a consequência,
metricamente_ [1814, ed. 1832 p. 9). Um período é constituído por vários rit- em nada surpreendente, do grande princípio tonal da oposição entre tensão e
mos, formados por segmentos de dois, quatro ou seis compassos, ou de três, distensão.
cinco ou sete compassos. Um ritmo pode apresentar um desenho melódico No seu manual Melodieleer, Smits van Waesberghe estuda as leis do
mais curto. O período termina sempre com uma cadência perfeita. Se bem comportamento das notas conforme a melodia utiliza duas, três, quatro, n
que Reicha afirme que não deve a ninguém as suas ideias, o seu conceito de alturas distintas nos âmbitos respectivos de segunda, terceira, quarta, etc ...
ritmo já está presente em Kirnberger: a divisão da peça em segmentos de qua- O autor baseia as suas leis na distinção entre quatro funções próprias da
tro compassos cria um outro nível do ritmo, distinto do do valor (duração) das melodia, distintas das da harmonia: a identidade funcional, o elo funcional, a
notas. Weber, Marx e D'Indy insistirão muito no papel do acento na segmen- unidade funcional e o contraste funcional, que lhe permitem estabelecer leis
tação da melodia. Riemann é célebre por ter construído toda a sua teoria como esta (no caso de uma melodia de três notas): «Se a repetição de uma
do fraseado a partir da unidade de base «tempo fraco I tempo forte_ e da nota fundamental é interrompida por uma terceira ascendente, seguida de
anacrusa que esta produz [cf. por exemplo Riemann 1903, pp. 1-18]. Para uma segunda descendente, então: 1) essas duas novas notas formam um
MELODIA 286 287 MELODIA

I
contraste com a nota fundamental; 2) constituem uma unidade que vai contra i critérios explícitos para definir as «notas de importância estrutural., mas
a nota fundamental; 3) depois delas. o ouvido exige o regresso à nota admitindo que é difícil propô-Ios com carácter definitivo. Meyer atribui
fundamental. [1951. trad. inglesa p. 23J.
I importância primordial ao metro, não lhe concedendo. todavia, a
A teoria de Hindemith. exposta no capítulo cMclody. do seu importante exclusividade. cEsta proposição não é insensata, se se considerar a
Craft of Musical Composition. é um bom exemplo destas teorias ou, mais J regularidade fundamental d:l organização métrica e o ritmo harmónico no
exactamente, destas práticas frequentes que procuram definir, numa linha I estilo da música tonal. [ibid .• p. 121]. Todavia, a questão que se pode pôr a
!
melódica. quais são as notas características da sua evolução: cCada melodia i Meyer é a de saber se se pode estabelecer uma hierarquia de critérios a pn"on',
consiste em notas proeminentes e outras que Ihes estão subordinadas. Por um ou se as variáveis que levam a dar mais peso a uma nora do que a outra, a fim
lado, as fundamentais dos pequenos grupos de acordes existentes na de deduzir o paliem, não são ditadas para cada situação hic et nUnc. Dito
melodia .. _ devem ser consideradas as notas proeminentes ... Mas numa isto, as leis do comportamento propostas [ibid., pp. 131-241J podem ser
resumidas da seguinte maneira:
melodia existem outras notas principais cuja significação é, antes de tudo,
a) Pattems conjuntos: os patlems lineares (escalas, diatónicos
melódica; entre elas, as fundamentais dos grupos de acordes .... mas mais
cromáticos) têm como implicação principal a de prosseguirem por graus
importantes ainda são aquelas notas que estão dispostas em posições
conjuntos até atingirem um ponto de relativa estabilidade.
importantes na estrutura bidimensional da melodia: as notas mais agudas, as b) Pattems disjuntos: existem essencialmente dois tipos: a gap-fill
mais graves, e as que assumem uma importância particular em virtude da sua melody e a melodia acórdica. A gap-fill melody inicia-se com um salto, as
posição métrica ou por outras razões. [1945. I. p. 193]. Para Hindemith. esta mais das vezes ascendente. cujo âmbito é em seguida preenchido por um
step-progression das notas importantes de uma melodia processa-se por movimento conjunto descendente.
segundas. Numa mesma melodia podem existir várias progressões. como se Àmhuo PrccTlthilllcnlO
pode ver no seguinte exemplo:

; .~~~
\tp4 ~-
""~'rr
L-....:, ' íl :-'í . ,-=,..;( . T f-litJl
Mas. tanto quanto sabemos, a teoria mais completa da progressão
melódica encontra-se na segunda parte, Explorations - lmplication in Tonal
~?I~:f-.'~
~:~J.+:l n~=l
~=~=+~=+=+==+~==I_$=~~__
Os intervalos disjuntos, tais como as terceiras, as quartas e as quintas,
Melody, da obra de Leonard Meyer Explaining Music. O próprio autor podem ser percepcionados como pertencentes a determinados acordes:
resume bastante bem o seu propósito: .cUma vez insralado, um pattem tende implicam algo que um segundo movimento da melodia explicitará.
a prolongar-se até que seja atingido um ponto de relativa estabilidade tonal e c) Pattems simétricos: trata-se de melodias cuja segunda metade é, de
rítmica. Prolongamentos e extensões podem retardar a conclusão; por outro uma maneira ou outra, o espelho da primeira. Meyer distingue as
lado. desvios podem dar origem a fins subsidiários ou alternativos, enquanto complementary melodies,
pontos de conclusão. Em termos de realizações remotas, a regra geral seria: as
continuações não realizadas - ou realizadas apenas provisoriamente - antes
que um pattem conclusivo e significativo tenha ocorrido, deverão aparecer
P dokc Un poco :lllq~reuo e gcaÚoso ~ ~ ~ ~
subsequentemente» [1973, p. 130]. Toda a construção de Meyer repousa
naquilo a que chama as «inferências razoáveis. [ibid., p. 110]; no âmbito de
um estilo determinado, sendo dado à partida um pattem ou um
_:_:~~~1íi~mrJE-$~rnrrrrfcrrtr-lenrjrf1,=fJ
U:ttttU - 1- r-- i~-·-D·.ítLLJ
~-----~---,_.,-~
Chlflncte ~ !
Modelo Complemento
acontecimento musical, como se prevê que a melodia se prosseguirá?
O interesse do trabalho de Meyer é o de ter proposto uma tipologia (talvez a as melodias axiais,
primeira) dos processos seguidos por uma melodia para dar unia sensação de Invc~~~(J_C'~ cspe_lho

acabamento a partir das expectativas criadas pelo seu início. As proposições


analíticas de Meyer repousam evidentemente na ideia de que a melodia
Modelo
comporta certas notas mais importantes que outras: as que têm uma função
Allegro /7"
estrutural, por oposição às noras de passagem e aos ornamentos.
É particularmente estimulante constatar que esta teoria da progressão
,v v- v,~v ~
~ 8"~#
~---~
/"- iP++l
melódica se baseia nas notas harmónicas ... Consciente de que são necessários

, , I
MELODIA 288 289 MELODIA

J ... _-~- em relação à tónica, frequência de ocorrência, orientação ascendente ou


I, wt~~~~~~:"c==:-::-=-=:;===~=:===:=;::=~] descendente do intervalo, relação com as notas iniciais e finais do canto [cf.
McLean 1966]. Mas o autor sustenta que o diagrama que sintetiza estas

~!:g=st.I-fIJbXrrJ
-J r!.
.",(
r:-- --- --- -." t;t:=E_.-
~
~
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=======--
~!rn informações «dá uma imagem completa da estrutura melódica do canto que
representa. [ibid., p. 175]. Nenhuma teoria ou análise deveria arriscar-se a
afirmar que cobre a totalidade de um fenómeno. No exemplo citado, é
e as changing-nole me/odies, análogas às precedentes, mas em que as notas impossível conhecer a distribuição dos intervalos (qual o intervalo que precede
mais agudas e as mais graves têm um carácter estrutural muito forte. ou segue um outro?) Na realidade, basta relacionar, de um modo original,
d) Contradições contextuais: por vezes, certas notas de um todo duas variáveis para que apareça uma nova forma de descrição da melodia.
melódico vêem as suas implicações explicitadas mais tarde do que se poderia Desta forma, o número de tipos de análises possíveis é ilimitado.
esperar, o que lhes dá uma importância retrospectiva.
No fim do seu longo capítulo, Meyer insiste no facto de que numa
5. As metalinguagens da melodia
melodia nem tudo é passível de implicações; existem prolongamentos
1IIIl
que vêm retardar a sua resolução. Assim, o prolongamento de uma melo-
Num campo de pesquisa que não conheceu o progresso cumulativo de
dia por retorno à t6nica, ap6s uma curta excursão harm6nica, a repetição, a
outros sectores da musicologia, convém agora tentar explicar a heteroge-
extensão (o início do prelúdio do TnsliJo é um exemplo perfeito), os
neidade das teorias da melodia. Esta provém, sem dúvida, da grande multi-
I'
I parênteses, retardam a progressão de um paliem e a efectivação das suas
plicidade das variáveis susceptíveis de serem isoladas, mas também do facto
implicações.
de, no decorrer do tempo, a melodia ter sido objecto de tipos de discurso de
Quer se trate de teorias da frase, do contorno ou da progressão melódica,
vários géneros, com objectivos analíticos divergentes. São estes que
a altura é evidentemente a variável essencial: segmentação de unidades de tentaremos classificar.
alturas, perfil das alturas ou jogo das tensões e distensões dessas mesmas
alturas. Mas a altura nunca é, nem o pode ser, a única variável de todas estas
5.1. Antf.'s de tudo o mais, uma teoria da melodia pode ser normativa
análises. Dado que a melodia é uma amálgama de numerosas variáveis em
ou descritiva, tom a caução de que toda a teoria normativa é, ao mesmo
('onstante interacção, o music610go procede à selecção das que julga
pertinentes e suficientes. Pode·se pois estabelecer, a pltttir do conjuntO das tempo, um pouco descritiva, O Trat'té de mélodie de Reicha não pode deixar
de ser oQrmadvQ, num momento em que finda a ldade Clássica: a
teorias da melodia que examinámos para este artigo, uma lista das variáveis
que intervêm na análise mel6dica: regularidade é dada como norma. Mas cedo acontece o mesmo que com
- as escalas: constituem o tema de um artigo particular nesta a teoria harmónica: as instruções pedagógicas sobrepõem-se à observação
empírica. Os ExercÚes in Melody Wn"ting de Goetschius (1900] são um dos
Enciclopédia, mas estão tão profundamente ligadas à melodia, que
raros exemplos de tratado melódico comparável aos tratados harmónicos.
Chailley Ihes consagrou um artigo inteiro e, significativamente, o
intitulou Essai Stlr les slruclures mélodiques (1959); O livro é aliás construído à sua imagem, consagrando a primeira parte às
- as implicações tonais e harmónicas, as notas estruturais, ornamentais e «notas essenciais. e a segunda às «notas não-essenciais ou ornamentais.,
I'
,li
de passagem; embelezado com conselhos, permisssões e interdições. Na realidade, qualquer
tratado de harmonia aborda, em determinado momento, a divisão da obra
- as alturas, os intervalos, o âmbito e o registo;
- o movimento melódico (conjunto, disjunto, ascendente, descen- musical em períodos e em frases: isto desde a meia página do Traité
dente); d'harmonie de Reber (1842, pp. 39-40]. de finais do século XIX, ao grande
- o ritmo e os silêncios, a estrutura métrica, a agógica, o tempo, a trabalho de Siegmeister [1965] em que a melodia ocupa tanto espaço quanto
intensidade, as articulações e todos os tipos de acentos· (métricos, a harmonia. Mas, em todos os casos, chega-se a tentativas de definição
uniforme da frase melódica, que se contradizem de um dicionário de música
rítmicos, dinâmicos, agógicos, melódicos. harmónicos, expressivos);
- as células, motivos, frases, períodos; o fraseado; as estruturas temá- para outro [cf. Nattiez 1975b, pp. 94-98]. Eis porque a «cura linguística. foi
i!ll
ticas e o desenvolvimento; as grandes formas. salutar: ela obriga, pelo menos na Europa, onde o peso da tradição é mais
forte que noutros locais, a um pouco mais de empirismo e de ingenuidade.
Toda a teoria e toda a análise pressupõem, portanto, não só uma
I
'··'1'

selecção, mas também uma combinação de alguns destes critérios. Por 5.2. Distinguiremos duas grandes famílias de trabalhos descritivos: aque-
I les a que, simplificando, chamaremos «verbais., e os trabalhos «ffiodelizadores •.
exemplo, um método estatístico de análise interválica, para fins de
comparação estilística, reúne os seguintes dados: duração das notas, distância Entre os primeiros deparamos, antes de tudo, com os dÚcursos
impressionÚtas: exprimem o conteúdo da melodia de maneira mais ou menos
:il'
111'


• MELODIA
290 291 MELODIA


• literária, procedendo a uma selecção particularmente arbitrária e subjectiva
dos elementos considerados característicos. Em segundo lugar. encontramos as
considerado. por meio de uma tabela. O exemplo mais di~-sicoé, sem dúvida,
o traÍl listing proposto por Ne:ttl [1964].
• paráfrases: no fundo. trata-se de ~redizeu, por palavras, o rexro musical sem A análise c1assificatóriareparte os fenómenos em classes. Assim, Kolinski

• nada lhe juntar. Por exemplo, a análise que Warburton faz do início da
bourrée da terceira suite de Bach: cAnacrusa, frase inicial em ré maior.
A figura assinalada (a) é imediatamente repetida, uma terceira abaixo, e é
[1956; 1961; 1965b] propõe um sistema universal de classificação dos tipos
de: contornos melódicos, onde o número de alturas na escala é relacionado
com uma hie:rarquização das alturas baseada no ciclo das quintas. Obtém
••
bastante usada ao longo da peça. A frase leva-nos logo à sua resposta, a qual assim 348 tipos. Os movimentos melódicos são igualmente objecro de uma
•• modula de ré maior a lá menor. A figura (a) é utilizada mais duas vezes, cada taxonomia de cem tipos [1965a], sendo o todo tratado estatisticamente.
• vez mais aguda. Esta secção repete-se:> [1952, ed. 1960 p. 151]. Este tipo de
discurso permite ao estudante tomar, ao menos, consciência dos elementos
Trata-se apenas de um tipo de análises c1assificatórias, por entre muitos
outros.
•• presentes na melodia. Chamaremos explicação do texto ao último tipo de Todos os métodos recentes, baseados na paradigm:Hização sistemática
descrição verbal. O termo é oriundo da análise literária, mas não conhecemos das unidades, têm um carácter fundamentalmente classificatório: aliás,
••
expressão standard em musicologia. A explicação do texto musical repousa qualificam-se: a si próprios de: taxonómicos. Na medida e:mque a explicação é
•• numa descrição, numa «nomeação:> dos elementos da melodia, mas um dos critérios fundamentais desta abordagem, a delimitação de unidades é
•• acrescenta-lhe uma profundidade fenomenológica e hermenêutica que, na acompanhada da sua definição, segundo as variáveis que a constituem. Ora,
pena de homens de talemo, pode originar obras-primas. Trata-se de este é um ponto importante. Muitas análises melódicas apresentam
•• apreender a riqueza da melodia, de pôr em evidência, sem preocupação dificuldades, precisamente porque não conseguem explicar a escolha de tais
sistemática, os seus factos relevantes, com a intenção explícita de apreender a variáveis numa dada unidade. Podemos olhar de novo o exemplo de
••
• «essência»do texto. Tudo depende da orientação hermenêutica da análise: as
ilustrações apresentadas no Tratado de melodia (1972) de Abraham e
Hindemith, em que este analisa o e:xcertoda sinfonia A Surpresa de Haydn
(p. 282) e imerrogarmo-nos sobre os critérios de se:gmentação da última
• Dahlhaus são de carácter histórico; os belos estudos de Rosen em The C/assica/
Style (1972) procuram captar a essência do estilo da época; a análise da sonata
unidade. Na sua pesquisa sobre os contornos, Adams escreve. por exemplo:
cA selecção de um qualquer tipo de segmento melódico ... não é um aspecro
•• Les Adieux de Beethoven, que conclui a obra de Meyer [1973, pp. 242-68]. da própria tipologia, mas uma parte das aplicações da pesquisa sujeita a
• opera este aprofundamento de um ponto de vista perceptivo. Qualificámos objectivos de pesquisa diferentes:> (1976, pp. 195-96]. Isto não é assim tão

• estes três tipos de discursos como «verbais:>porque, independentemente da


terminologia musical e da análise, não recorrem a outros meios senão os da
seguro, porque um contorno define-se sempre em relação a um segmento. As
variáveis que emergem de uma segmentação, ou em função das quais esta é
• linguagem, para traduzir a melodia.
Tudo se passa de maneira diferente, com as análises que se propõem
efectuada, são inumeráveis. Citemos mais uma vez a notável lista elaborada
por Arom: feI1Ómenosde repetição, presença ou ausência de modos rítmicos,
• construir modelos do funcionamento melódico. Não se trata aqui de duração igual ou desigual dos segmentos, regularidade ou iccegularidade da
• verbalizar a música, mas sim de a simular, em princípio com suficiente
precisão para que seja possível reencontrar, a partir do modelo, as
recoccênciadas pausas, equivalência ou não da duração das pausas, autonomia
de certas fórmulas e sua localização em relação ao todo, relações exactas de
IJ configurações naturais do objecto de origem. Nesse sentido, para uma variável duração e de posição entre elementos rítmicos binários e ternários, existência
dada, a construção de modelos apresenta, em relação às descrições verbais, a de graus-Pivote sua posição, número de elementos dos graus que permutam a
IJ
vantagem de proceder a uma exploração linear e completa do corpus. sua posição, escalas e modos, intervalos geradores de fórmulas melódicas,
IJ E embora isso não implique necessariamente a apreensão da totalidade do
permutação no interior de uma mesma fórmula melódica e/ou rítmica,
corpus - uma vez que o número de variáveis e combinações possíveis de constância de elementos melódicos e rítmicos, relações palavra / música,
IJ variáveis é infinito -, evita uma grave lacuna epistemológica das descrições
oposição de registo, fenómenos de atracção, «soldaduras:>, cadências
IJ
verbais: a aquisição do objecto por selecção descontínua de alguns elementos
melódicas, a1ternância para cada elemento dos graus com incisos conclusivos,
considerados representativos.
t Existem duas grandes famílias de modelos a que chamaremos «globais» e aparição ou não de um dado intervalo e sua recorrência, frequência dos graus
extremos que delimitam o âmbito, presença de pyens e sua função estatística
• "'ineares». Por globais entendem-se as descrições que dão uma imagem de
conjunto do corpus estudado, com a ajuda de listas de traços, de classificações (1969, pp. 205-6J.
t dos fenómenos ou de ambas, dando deles, muitas vezes, uma avaliação Classificámos todos estes procedimentos como «globais:>, porque não
procuram recollstituir a totalidade da melodia segundo a ordem de sucessão
• estatística. A análise por traços é talvez aquela que mais praticada foi em
clI1omusicologia: trata-se de pôr em relevo a presença ou a ausência de uma dos acontecimentos no tempo. Em contrapartida, os modelos lineares
t variável, e de dar uma imagem de conjunto do canto, do género ou do estilo descrevem o corpus com a ajuda de um sistema de regras que não só se

"
~ _-~~J.' -~""f,
MELODIA 293 MELODIA
292

encarrega de pôr em relevo a organização hierárquica da melodia, como Ring é poiético a um nível bastante individual, já que se cinge à evolução dos
1 também a distribuição (ambiente) dos acontecimentos. Chenoweth [1972]
descreve a sucessão das alturas de cantos da Nova Guiné, baseando-se nos
esboços deixados por Wagner. A teoria do desenvolvimento temático em Réti
[1951] faz apelo a um outro tipo de determinação, ao admitir um elo
vínculos distribucionais de cada intervalo. As tentativas de descrição subconsciente ligando os temas melódicos de uma mesma obra. E é necessário
transformacional de Herndon [1974; 1975] realizam-se sobre tipos de colocar na rubrica poiética os quatro tipos de explicação da melodia, de que se
acontecimentos previamente identificados na sua sucessão. Devemos a Baroni falou no parágrafo consagrado às relações com a harmonia.
e a Jacoboni (1976] uma notável gramática da parte de soprano dos corais de As teorias perceptivas da melodia não datam de agora. Todas as teorias
Bach, que, testada pelo computador, permite criar dentro desse estilo. do Affiktenlehre, nos séculos XVII e XVIII (Schütz, Bernhard, Mattheson,
Mas uma teoria da melodia não se define unicamente pelos tipos de Spiess), procuram definir o efeito perceptivo e nomeadamente semântico de
discurso que utiliza. Define-se também pelos seus objectivos, os seus fins, o uma configuração melódica. Pertencem às teorias estésicas da melodia todos
seu alcance: aquilo a que chamamos situação analítica. Que pretendemos os esforços dos psicólogos experimentais que tentam compreender o funcio-
expor? Uma só peça ou todo um corpus? E qual a razão porque expomos? namento da percepção musical a partir de testes que utilizam geralmente
Para isolar a individualidade de um estilo, como é o caso na maior parte dos artefactos mel6dicos (cf., por exemplo, Laperception de Ia musique (1958) de
music610gos da música ocidental, ou para proceder a uma comparação das Francês). Será necessário recordar que, historicamente, o texto que apresentou
culturas musicais, como tentam fazer, as mais das vezes, os etnomusicólogos? a primeira formulação da célebre teoria da Gestalt tomava como exemplo uma
O pr6prio desígnio compararivo pode ser orientado segundo filosofias melodia, afirmando que o resultado perceptivo de uma suite
divergentes: numa perspectiva diferencial ou, pelo contrário, numa de alturas era diferente da soma das suas partes [Ehrenfels 1890]? Há que
perspectiva universalista, como em Kolinski. Por trás de cada teoria ou análise dizer que a influência da Gestaltpsychologie foi, durante muito tempo,
melódica, existem, como na harmonia, princípios rranscendentais [Nattiez programática em musicologia. Souris [1976] falava de uma forma de análise
1977, ed. 1984 p. 257]. E, por fim, todos estes procedimentos se repartem musical que fosse algo mais do que o inventário dos seus elementos, mas não
segundo três grandes situações nas quais se baseia uma das tendêndas da deixou ele próprio exemplos de análise gest;1,ltistll '111e demonstrassem a
semiologia: a análise «neutra-, textual ou estillstica, que procura dar conta da superioridade desta abordagem em relação à prática melódica do seu tempo.
orgarll.; -o de um corpus segundo diferentes níveis de pertinência estilística Talvez fosse cedo demais. Que saibamos, s6 Meyer [1973] parece ter proposto
(características próprias de uma obra, de um compositor, de uma época, etc.); um modo de explicação gestaltista operatório que, aplicado às melodias de
a descrição poiética que, baseando-se no texto e /ou partindo de dados obras concretas, permite estabelecer a ponte entre o neutro e o estésico ou,
exteriores a este, mostra de que maneira as estruturas textuais são o resultado retomando os termos de Meyer, entre o estrutural e o funcional.
de determinadas estratégias de composição ou de execução; a abordagem Falámos atrás de abordagem combinatória das teorias melódicas. Com
«estésica_, que descreve o modo como essas estruturas são apreendidas pelos efeito, é possível resumir o que precede no quadro seguinte:
canais perceptivos.
Tipos de discurso
É interessante sublinhar que uma das primeiras tentativas de síntese das
e instrumentos analíticos Variáveis Situações analíticas
teorias melódicas do pós-guerra, a de Edwards [1956], tenha sido baseada em I

distinções muito próximas da nossa uipartição. O autor procura saber de que Normativo
modo funcionam, na melodia, a repetição, o contraste, o clímax, o retorno e Descritivo
o equilíbrio. Mas estes cinco conceitos de base são encarados de maneira verbal
A dimensão do corpus
distinta segundo os critérios estéticos que estão na origem da melodia, as suas impressionista Os níveis de perrinência
implicações perceptivas e a técnica de escrita: trata-se também de ver que parafrástico estilística
hermenêutico A poiética, o neutro
processos concretos os objectivos desencadeiam, a fim de provocar um deter-
minado efeito. modelo e o estésico
linear
A maior parte das análises melódicas em etnomusicologia têm um
não linear
carácter neutro ou imanente, já que só raramente se conseguiu, até agora,
averiguar se as estruturas musicais descobertas por nós são concebidas e
! percepcionadas da mesma maneira pelos autóctones. Mas, sob a influência da Substituindo, neste quadro, as variáveis a que se fez referência na secção
antropologia, grandes esforços são feitos para chegar a uma conclusão. anterior, queremos mostrar que uma teoria da melodia se caracteriza não
A poiética melódica pode ser concebida de variadas maneiras. Por somente pelo tipo de discurso que adapta e pelos objectivos que se atribue,
exemplo, o estudo que Westernhagen [1973] faz da formação dos motivos do mas também pelas variáveis que considera pertinentes e adequadas. Estes três


• MU( HHA 294 295 MELODIA


aspnloS rorrespondem, na realidade, às três interrogações que estão na base Baker, N. K.
• de qualquer investigação científica: 1976 Hemneh Koch and lhe Iheory of me/ody. in .Journal of Music Theory., XX, I, 1'1'.
148.
• Metalinguagem Baroni. M., e Jacoboni, C.
I 1976
(kcker, J.
Vmo una grammalrea deI/a mtlodia, Universit:l. degli Studi. Bologna.

• 1969 AnalOmy ofa mode. in .Ethnomusicology.. XIII. 2, 1'1'. 267·C9.


Boulez, P.
• 1'>62L 'cJlhi/ique cl leJ fi/leheJ, in C. Samud (org.). Panoram.J dc I'ar! mUSIcal
Objecro
I 1) Qual é, no meu objecro, o horizonte da minha análise?
c01llemporain, lTolllimard. Paris, pp. 401·15.
Brandel, R.

• 2) Quais são as variáveis a que dou importância, em fun~jo dos meus 1962 TYPlJ of melod,e movemenl
75-87.
i1l Cenlral Afnea. in .Ethnomusicology>, VI. 2. 1'1'.

I objectivos (1) e do meu mérodo (3)?


3) Quais são os instrumentos e o estilo de discurso que adapto para
Brenet. M.
1926 .Mélodie., in Dráionnaire pratique el hislon"que de Ia mUl/que. '.olin, Paris,
I expor (I)?
Butor, M.
pp. 243-47.

I Seria necessário estudar igualmente a validade (4) dos tipos de discurso 1960 La muJique, ar! réalÚle, in .Esprit •. XXVIII, 1'1' 138·5(,
Chenoweth, V.
• adaptados, mas a sua relacionação com os diferentes horizontes possíveis do
objecto poria problemas por demais complexos para serem abordados aqui. 1972 Mclodze PercePlion and A 1Ia1ysis
, Summer Institute of Linguisrics, Papua. New
Guinea.
• Vemos, a partir destas observações, que não se pode definir uma boa teoria da Costere, E.
• melodia apenas com a ajuda de um dos seus três componentes. Se se espera de 1961 cMélodie (B)., in EncycloPédit dela MuÚque, vol. 11I. Fas'luelle, Paris. rI' 178·81.
uma análise científica que exprima o maior número de factos com o máximo Dahlhaus, C.
• rigor, a abordagem mais eficaz da melodia seria aquela que tomasse a forma 1961 cMelodie., in F, Blume (org.), Die IHuJik in GeJehichle und Gegenwurl, Baremeiter,
Kassel, 1'1'. 19-55.
t de uma gramática: isto não significa que esta rejeite os métodos de nível D'Indy, V.
«inferior» na nossa classificação, mas sim que os integra; ela propor-se-á 1903 COUTJde compositlÓ1I mUJleale (1897-98), vol. I. Durand, Paris 1912\.
• igualmente a combinatória de variáveis mais refinada, e analisará o corpus Duchez, M. E.

I melódico a partir do maior número de pontos de vista diferentes. 1974 Pn"ncipe de Ia mélodit el on"gi1ledeJ /angun' U1lbrouzllon i1lédil de J. J. Rousseau
sur I'ongine de Ia mélodz"e, in cRevue de musicologie., LX, 1-2, 1'1'. 33-86.
É que a melodia, tal como as compoteiras de Picasso, muda de aspecto Edwards, A. C.
segundo os ângulos de que é olhada. Acabou o tempo dos modelos 1956 The Arl of Melody, Philosophical Library, New York.
I unidimensionais na musicologia e nas ciências humanas em geral. Se se aceita Ehrenfels, C. V.
1890 Über GeJlallqualitiilen, in cViene/jahrschrift fOr wissenschaftliche Philosophie., XIV,
a perspectiva aqui apresentada, as dificuldades que nos esperam provêm não
1'1'. 249-92.
tanto da elaboração de um qualquer modelo particular, mas da coordenação Erde/y, S.
espacial dos diferentes modelos convocados para expressar um corpus 1965 MelhodJ and Pn"ncip/eJ of HU1lgan"anElhnomuSle%gy, Indiana University Press,
homogêneo, debaixo de diferentes perspectivas. Após os modelos combinató- Bloomington Ind.
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o Parece à primeira vista que não foram feitos estudos sistemáticos da teoria da melodia.
Cal, diversamente do que aconteceu em relação à harmonia. E, com efcito. as investigações não são
ainda suficientcmente numerosas e influenres para criarem uma tradição pedagógica. tcórica e
Nattiez, J.-).
analítica (cf. di.rciplina/disciplinas). A «surdez. da civilização musicológica, desenvolvida
1975a Demiti 21.) de Varese: eJJi1Íd'analyse simiologique, Monographies de sémiologie segundo direcções peculiares, é também causa da situação; de facto, o campo das teorias da
et d'analyses musicales, Groupe de recherches en sémiologie musicale. UniversitE de melodia aumenta repentinamente quatldo se dá uma ruptura do etnocentrismo (cf.
MontrEal, Monuéal. etnocentrismos, mas também centradolacentrado).
1975b Fondements d'une simiologie de Ia musique. Union gEnErale d'Editions, Paris. Para chegar a algumas conclusões será preciso: uma notável clareza umântica, que
1977 cArmonia •. in Enciclopedia. vol. I. Einaudi, Torino, pp. 841-67 (ed. ponuguesa: desenvolva uma atlálise esclarecedora também dos termos linguLsticos (cf. linguagem) e
Imprensa Nacional·Casa da Moeda. Lisboa 1984, vol. 11I, pp. 245-71). decompor o conceito de melodia numa plural idade de elementos. que considerem os conteúdos
Nettl. B. de cantabilidade (d. canto. 10m/ruído). os conteúdos rítmicos (d. rítmica/métrica. n"tmo), sem
1964 Theory and Method in ElhnomuJ/cology. Free Press. Glencoe, 11I. descurar nem a particular import~ncia dos elementos historicameme adquiridos (cf. tonal/atonal,
Piston, W. escala). nem a presença na música de elementos ligados à combinatónÍ1 dos sÚTIbolos(cf. também
1970 lIarmony. Norton, New York 19701. Hgno. símbolo, significado).
Ranleau, ).-Ph. lIarmonia e melodia são rermos que não devem ser contrapostos, mas elevados pela
1722 Tralfl de /'harmome réduite ii us principer naturels. Ballard, Paris. abstracção (cf. abstriUto/concreto) a .propriedades., de modo a que no mesmo objecto possam
coexistir elementos harmónicos e melódicos (d. também oPOJiçiio/contradição. dado. quali.
1737 GEnération harmonique, ou TraitE de muJ/que thEorique et pratique. Prault, Paris.
1750 DEmonstration du principe de /'harmonie, Durand, Paris. dade/quantidade e dialéctica). Desta forma, coloca-se também em evidência o papel da música
Reber, N. 11. na natureza e na sociedade e é-se remetido para conteúdos profundos segundo as duas direcções
1842 TraitE d'harmonie, (~lombier, Paris. da conuadição. Para pôr em relação as teotias da melodia E necessário uma divisão que não seja
Reicha, A. rígida. Propõe-se urna tripartição segundo: a) o estudo da fra..seologia; b) o estudo dos contornos,
desenhos e curvas; c) a atlálise da progressão da linha melódica. Desta forma indaga-se
1814 TraitE de mElodie. abstraction faite de us rapports avec /'harmonie, Scherff, Paris; ed.
Farrenc. Paris 18322. adequadameme o fenómeno. segundo uma pluralidade de pontos de vista.
REti, R. A heterogeneidade das reorias da melodia deriva certamente da gratlde multiplicidade das
variáveis que se podem isolar. mas também do facto que a melodia foi objecto de discursos com
1951 The Thematic ProceH in Munc, Macmillan, New York.
Riemann, 11. objectivos atlalíticos divergentes. Tenta-se uma classificação de tudo isto (cf. sistemática e
clamficaf4o). distinguindo duas gratldes famílias de trabalhos descritivos: <verbais. (ef.
1903 5ystem der muJ/kalischen Rhythmik und Metn'k, Breitkopf und Hanel, Leipzig.
comunicação, oral/erm'to) e cmodelizadores. (cf. modelo) e utilizando quatldo necessário
1931 .Mélodie., in Dictionnaire de musique. Payot. Paris 1931}, pp. 829-30. divisões mais finas.
••
••

•• 299 RfTM1CAlMffRICA

•• o que se pode reter desta.primeira e primária experiência de comutação é que


o «grau zero. do ritmo consiste em intervalos de duração entre
acontecimentos. (Substitua-se 'duração' por 'espaço' e ter-se-á a chave de

••
expressões metafóricas, de que não trataremos aqui, tais como 'ritmo
pictórico'. 'irrmo arquiltcnónico·. etc.).
RÍTMICA/MÉTRICA Mas as coisas não são, infelizmente, assim tão simples. Exactamente


como se se soubesse, de forma precisa. o que é o rirmo. É que, na verdade. o
que impressiona, quando se estuda as teorias rítmicas. é a sua

•• I. Simplicidade e ambiguidade do concezlo de «n'tmo>


heterogeneidade. «De todos os elementos da música, - constata Bráiloiu
[1951, ed. 1967 p. 2391,- nenhum suscitou tanta controvérsia nem deu
pretexto a mais especulações do que o ritmo. As suas definições vão da
metáfora à tecnicidade mais estrita sem que. com isso, delas tenha resultado


••
o modo físico de existência da música é essencialmente temporal. Não
surpreende, assim, que todas as discussões relativas à organização do tempo
em música dêem a impressão de aflorar questões fundamentais, e, porque não
uma teoria coerente •. Um de Groot [19321 podia assinalar uma cinquentena
de sentidos diferentes para a palavra 'ritmo'. e Willems 11954, p. 53] diz ter
recolhido quatrocentos. A excepção de Curt Sachs [1953] que, por reacção, se
recusa a empreender o exame das diferentes acepções da palavra, não há obra
dize'·!o, metafísicas. «A música é urna especulação sobre o tempo, inseparável

•• duma experiência do tempo vivido:>, escrevia não há muito Gisele Brelet


I I'),j') , p. 35]: diz-me que música amas ou escreves, e compreenderei a
natureza da tua relação com o tempo. «~_'.!1..fí~~aéUql;J,J.!!~qu!l}a_desuprimir
o tempo», afirma ainda Lévi-Strauss [1964, p. 24] - como se o destino e a
sobre o rirmo que não se inicie por uma lamentação ritual sobre a desordem
das definições do ritmo, e não dê, em seu apoio, um florilégio dessas
definições [cf. Lussy 1883. ed. 1911 p. 1; Kunst 1950, pp. 1-6; Willems
1954, pp. 54-64; Fraisse 1956, pp. 1-7; Creston 1964, pp IV-V].

•• rr':lgilidade do homem constituíssem a verdadeira trama da música. Donde,


talvcz, o lugar que ocupa, na maior parte das mitologias, o sopro do deus
(fiador do universo. «No princípio era o ritmo», enuncia Hans von Bülow,
A opinião de Fraisseservirá aqui para resumir o sentimento geral: «Panir
de uma definição precisa é uma facilidade que é recusada a todos aqueles que
estudam o ritmo. Ruckmick constatava-o já em 1927. René Dumesnil insistiu

• rcwnduzindo a uma mesmaõiigem "âgênese do' mundo e da música.


Terna pois fundamental para o homem e para a música, o ritmo. Viu-se
nesse ponto e não receou falar, a propósito, de torre de BabeI. Os lexicógrafos
são incompletos e inexactos, e os musicólogos concluem por definições
• ;:í. a propósito da melodia, todas as ambiguidades conceptuais e teóricas que parciais ou exclusivas que não permitem unir as diferentes acepções. A origem

• pode levantar um tal objecto Icf. Nattiez 1979]. Conhecerá o que agora nos
onlpa urna sorte mais favorável?
desta dificuldade não reside em qualquer característica misteriosa, mas numa
complexidade que toma impossível toda e qualquer definição simples.

• Tal como sucede com a melodia, quase não existe, nas escolas de música,
ensino específico consagrado ao ritmo - em todo o caso, um ensino que se
O ritmo não é um conceito unívoco, mas um termo genérico. Só uma análise
pode descobrir os Setl.lS componemes e pôr em evidência a sua unidade
• possa comparar ao da harmonia. A este respeito, o cometimento pedagógico
do suíço ]aques-Dalcroze, apesar do seu exclusivismo por vezes sectário, visava
hierárquica:> [1956, p. lJ.

• mlmatar uma lacuna. «É significativo, - constatava ele, - que nenhum


Não é, portamo, para ceder à tradição que iremos examinar de novo
essas definições. mas para aí tem ar discernir os traços implicados no uso da
I tratado de harmonia ou de composição tenha indicado até hoje a influência
da títmica e da dinâmica sobre a melodia e a harmonia, e reciprocamente»
palavra 'ritmo'.

I [1920, p. 74J.

I Do lado das teorias, o discurso sobre o ritmo abunda: Aristóxeno, Aristi-


des Quintiliano, Reicha, Marx, Hauptmann, Lussy, Westphal, Riemann, Me-
2. O ritmo em geral: desenvolvimento, penÓdicidade e estruturação

I yer e Cooper, Fraisse e Yeston, para citar apenas os mais marcantes. Sem dú-
vida porque, relativamente à melodia, o ritmo faz figura de objecto mais fa-
Na medida em que a palavra 'ritmo' não é específica do domínio
musical, não é inútil, num primeiro tempo, considerar definições
• ,i1mente identificável. Pode imaginar-se algo como um ritmo puro: uma me-
gerais - mesmo as do «senso comum». Num brilhante estudo filológico,
lodia de que se tivesse retirado as alturas, as intensidades e o timbre.
• Emile Benveniste [1951J pôde mostrar que «rythmos, segundo os contextos
em que é dado, designa a forma no instante em que é assumida pelo que é
• ~~~
.'1~.~---.lL~~t+=Tlr
• 11 movente, móbil, fluido, a forma do que não tem consistência orgânica:
r
• convém ao paliem de um elemento fluido, a uma letra arbitrariamente

:..ii li ~ lU
2
r Ir í· í
modelada, a um pepto que se dispõe a seu grado, à disposição particular do
4~ I'
••
'Ul' !
I ..
I' I' I.' , I II
carácter ou do humor... Pode então compreender-se que rythmos, signifi-

_UiliI·o " ~~"


1If""!:

Ilfll\lltMMrlll1t i\ 300 301 RITMICA/MFrRICA

lando literalmente "maneira particular de fluir", tenha sido o termo mais mática, num ou vários dos seus atributos qualitativos ou quantitativos. Para
apropriado à descrição das "disposições" ou "configurações" sem fixidez Forel [1920J, o ritmo é uma sucessão mais ou menos regular de duas ou mais
nem necessidade natural e resultando de um arranjo sempre sujeito à unidades rítmicas, sendo a unidade rítmica constituída pela sucessão de
mudança. (p. 333). 56 mais tarde, particularmente em Platão, é que «ritmo. à{versos fen6menos coordenados. E Warren [1934] define ritmo como o
se aplica à música para designar «a ordem (ta:as) no movimento. [LeÚ, 665a]. retorno serial de um intervalo de tempo dado, ou de um gropo de intervalos
«Poder-se-á então, - comenta Benveniste [1951, p. 335), - falar do de tempo marcado por sons. Assim, nestas definições - na sua maior parte
"ritmo" de uma dança, de um andar, de um canto, de uma dicção, de um assinaladas pOli- Fraisse - vê-se a periodicidade apagar-se a favor da
trabalho, de tudo o que supõe uma actividade contínua, decomposta pela diferenciação, mas de uma 'diferenciação organizada, a que Fraisse chama
métrica em tempos alternados •. Donde o sentido das expressões correntes: o «estruturação. [1956, pp. 2-3J.
~II ritmo das vagas, o ritmo cardíaco, o ritmo respiratório, o ritmo das estações. Todas estas definições convidam a uma primeira série de comentários.
Contêm estas quer a ideia de um desenrolar no tempo, quer a de um retorno O traço comum às noções de periodicidade e de estruturação é a
pen"ódico de um acontecimento. Com cambiantes, são os dois temas que se existência de um espaço de tempo entre dois eventos. Forel não se exime
encontram na maior parte das definições gerais do ritmo: para Meumann de falar de duas ou mais unidades rítmicas; pois, do mesmo modo que se
I' (1894J o ritmo é uma emoção que se livra em movimentos ordenados; para pode dificilmente falar de melodia sem, ao menos, duas alturas diferentes
Servien (1930J o ritmo é periodicidade percebida; WilIems (1954J diz do [cf. Nattiez 1979, ed. 1984 pp. 275-76J, parece difícil falar de ritmo com um
ritmo que é uma relatividade entre o·movimento e a ordem; Souriau [citado só evento. J é um valor de duração, e só se começa a falar de ritmo quando há
in Souris 1948, p. 4] afirma que o ritmo é a forma conferida a uma progressão ao menos dois deles: J J, por exemplo.
A noção de periodicidade que preocupá' tantos autores parece bem
pelo retorno, a intervalos iguais, de elementos de uma organização delica, à
qual presidiu um esquema, o mais simples possível, reproduzindo
indefinidamente e continuamente os seus efeitos.
ambígua: de que periodicidade, afinal, se trata? A figura rítmica
constitui um ritmo, sem dúvida, mas 'não comporta, contudo, qualquer
m
Um certo número de definições do ritmo, desta vez musical, retomam figura recorrente; tem a sua própria organização, que se pode descrever
ll:qudas duas mesmas ideias de fluidez e periodicidade: o ritmo musical é, aritmeticamente (3/16 + 1/16 + 2/16), mas, pata distinguir uma perio-
para Delacroix [1927J, a ordem no tempo; segundo Emmanuel [1926J o ritmo dicidade, é preciso que se faça aparecer uma escansão subjacente: ; ; J.
Pode igualmente falar-se de periodicidade se houver retorno de um mesmo
111:1I
é a organização da duração; para Quintiliano [citado in Lussy 1883, ed. 1911
p. 1J o ritmo é um conjunto de tempos dispostos segundo uma determinada motivo rítmico, por exemplo o m no ritmo da bigorna que separa as cenas
ordem; D'Indy (1903 J, finalmente, define o ritmo como a ordem e a 11 e III do Ouro do Rena (Das Rheingold, 1869) de Wagner:
'''111
proporção no espaço e no tempo.
No seguimento desta exposição, alguns termos correntes nas discussões
sobre o ritmo reaparecerão insistentemente. Não é talvez inútil redefini-Ios, a
~Rmm~,] X24

fim de evitar toda a ambiguidade. Por 'periodicidade' entende-se o retorno A totalidade deste compasso constitui igualmente, e a um outro nível,
de um mesmo acontecimento. Se a duração que separa duas ocorrências do uma unidade periódica, já que é repetido vinte e quatro vezes. Este retorno
mesmo fenómeno é constante, fala-se de Úacronia. É importante reter a ideia delico é identificável graças à primeira nota do primeiro motivo que,
de que existem períodos não isócronos. Pot exemplo, na sequência seguinte, cpntrariamente às duas outras, se dá no tempo forte:
há retorno periódico mas não isócrono de uma mesma figura rítmica:
Ili

ft JTI ..n J :DJ


: J J JLOJJ
-:' 1m ~
:
3> rnm~rn'rn m ~ I> ele

Por conseguinte, existe um nível de periodicidade subjacente, maior que


O traço semântico de fluidez parece constante, mas será que o de aquele que identificámos inicialmente (l' l' J) e que consiste na escansão a
«periodicidade. basta para caracterizar o ritmo? Em McDougall [1902], os três tempos, marcada por um primeiro tempo forte:
ritmos elaborados, ainda que minimamente, compreendem não apenas o 3) -
retorno regular de estímulos sensoriais, mas também a sua diferenciação
2) J. J. J.
periódica. Rambaud vai no mesmo sentido: «Numa obra de arte, um ritmo
não existe senão pelas suas constantes, mas não vive senão pelas suas variáveis. 1) )1)1)1 )1)1)1 )1)1~
[citado in Willems 1954, p. 65). Ruckmick [1927] é ainda mais categórico: Identificaram-se, portanto, dois tipos de periodicidade: o que se poderia
para ele, de facto, o ritmo é a percepção de uma forma temporal na qual os
membros periodicamente repetidos são feitos variar, de uma maneira siste-
chamar uma periodicidade de superfície (o retorno do motivo m,
o de
todo o compasso), e uma periodicidade mais profunda, que é implicada pelo
~
1111
~II' ,\nllllll< ,\ \01 JOJ RfTMICA I MÉTRICA

.lnnllol.lI 1111111<"() 1>11111"11"IlJlI) /. ,d:lllv:lIllcnle trivial, já que em todo o colltínua resulta, por vezes, num efeito global de monotonia, como se um
,'''1do 11111\1<;11,
\ell.l" o 1IIIIll<'fOde clcmclIlos combináveis limitado. não se mínimo de repetição fosse necessário à percepção da irregularidade:> [1972, p.
1")('" ('vilar " r('I'>lII" d(' figllras idênricas. Em conrrapartida. a periodicidade 567]. Pode, em todo o caso, perguntar-se se o auditor não restabelece pontos
"Pllllllllda. parece (omlituir um dos princípios organizadores do ritmo: eO de referência não previstos pelo compositor, a partir das convergências de
11111I0po,k apClla5 roncebcr-se por percepção de relações entre pontos de massas ou de dinâmicas, por exemplo.
;lfll>lO, divididos ou não, isócronos ou não; nunca por adição de parcelas As músicas e1ectro-acústícas parecem ser de um outro tipo, bem diferente
IIldiIC-l('lIciadas, iguais ou desiguais:> [Chailley 1971, p. 9]. Dito de outro das músicas p6s-webernianas. eEm última análise. - escrevia GiseJe Brelet
11IOdo , o ritmo não existiria sem a existência de um sistema de referência (l949, p. 349], - a sonoridade tende para a arritmia:>. O encadeamento e a
,halllado metro, combinação de objectos sonoros que se distinguem peJa massa, grão, andamen-
to, e não já pela altura. pela duração ou pela intensidade. criam talvez uma
música onde está ausente todo o sistema de referência temporal estável. eEscu-
5. [)IÚrsidade das métn'cas tar a sonoridade é precipitar-se no eterno presente da sua presença, é dissipar-se
nas profundezas do instante e desertar o devir. Por outro lado, a sonoridade é
continuidade indivisa, transição fluente:> libid. J. Mas é sobretudo para as músi-
o exemplo de Wagner atrás citado permite compreender a natureza do
cas de tradição oral que há que dirigir a nossa atenção. Numa das descrições rít-
!C·f(·/clIcial métrico na música ocidental. A estrutura métrica de uma peça é micas mais minuciosas que a ernomusicologia terá produzido, Brãiloiu observa-
';lI;l<lcrizada por dois elementos: uma batida isócrona (semínimas pontuadas. va.que o Ocidente etem muita dificuldade em imaginar que uma rítmica autô-
rll' 1I0SS0exemplo) e uma acentuação, igualmente isôcrona, que regressa de noma se possa fundar sobre dados essencialmente diferentes daqueles que crê
1/'('5 ('m três tempos. Esta acentuação permite retirar, do continuum da batida universalmente válidos:> 11951, ed. 1967 p. 240]. Examinemos por exemplo esta
dc base, unidades ternárias. O que é típico da música ocidental, é que a figura rítmica, uma das mais simples, recolhida em África, entre os Gbaya. por

i
ulIidade métrica é delimitada por urna acentuação. Não é sempre assim, como Sirnha Aram 11978, p. 171]:
vtTe/llOS em breve; queremos somente insistir no facto de que se não pode
Ld:lr de metro sem uma escansão e uma repartição em unidades.
[) ) J ))
Mas não haverá músicas sem um referencial? É para um tal ideal que
r("llde a música de Webern e dos seus diScípulos. «Apenas Webern ... , - es- Qualquer músico ocidental não prevenido escandirá esta fórmula, com as
neve Boulez [1948, p. 68], - chegou a deslocar a medida regular por um melhores intenções, da seguinte maneira:
emprego extraordinário dos contratempos, das síncopas, das acentuações em
tempos fracos, das quedas em tempos forres, e demais arrifícios adaptados
para nos fazer esquecer a quadrarura:>.
[~ ~ J ~ J ~ J ~ J ~ J-~-J~]
l
Bou/o
J J Ora, se se pedir a escansão a um Gbaya, obrém-se isto:

rJ'tr- l
[~ j I ~~ ~J.
2 J 4 ~.
i) t~J-~:~
(I 7 R

Em emomusicologia, não há uma pletora de métodos para descobrir qual é o


referencial subjacente próprio de urna cultura: é preciso perguntar-lhe. «Na
quase totalidade dos casos, obtém-se uma batida regular, isócrona: é a
l
An(('(cdcnrc

r 3
J materialização do tempo musical, da "batida" - base da fórmula» [ibid., p.
169}. Eis um outro exemplo retirado do mesmo trabalho. Trara-se do ritmo
mandiJba, dos Pigmeus Aka [ibld., p. 168J:
~~--- 3
A questão está em saber se é possível uma música sem sistema de
referência subjacente. A citação de Chailley encerra, evidentemente.
muitas vezes sucede nos seus escritos, uma frechada contra a estética
como r: ~~)1 ~~.)1
> )1:,:)1)1
\. > )1 \>
:)1 )1}> }1 )1 ,,~
> "h }1\:,,~
> )1 .~ ,,~
> )1 }1
> )1 ,,~:~

bouleziana. Nicole Lachartre nota, a propósito de Boulez: «A renovação A batida obtida é a seguinte [ibid., p. 170]:
RlTMICAIM~TRICA 304 30~ RlTMICA IMFrRICA
J

I?~f'S3
ç ~~i:H' Gr j'
nin-go - no - S3
I
nin-go - sa
P í I
nin-go - S3
i U l-i
nin- go - S3
Ui
ni - gi

I;}}~}}}}}}}}}}}}}}};};}}~
I I I I I I I I
Estamos, assim, perante uma fórmula baseada em oito tempos, compreen- nm - go .. S2

dendo cada um três valores mínimos, mas em que o sistema acentual coincide
apenas três vezes com a batida subjacente. A unidade métrica é aqui A percussão parece, portanto, independente da voz. Mas será que o tambor
caracterizada por uma pulsação subjacente de oito tempos. Para além constitui um referendal métrico para a voz, segundo qualquer princípio não
disto - e é ai que repousa a grande diferença relativamente à métrica e1uddado, ou será que a voz possui um referendal métrico distinto da batida
ocidental - este reagrupamento em oito tempos não é determinado por uma do tambor? Neste caso, tratar-se-ia de uma música sistematicamente fundada
acentuação que serviria de «marcador de frase., mas pela periodicidade de um sobre o que se chama, impropriamente, «polirritmia., e que mais valeria
padrão de vinte e quatro unidades, caracterizadas por nove acentuações chamar, como sugere Kunst [1950, pp. 24-27], «polimetria •.
irregularmente disttibuidas, o que é muito diferente. Os cantos esquimós que acompanham, juntamente com o tambor, a
Para mais, não se deve necessariamente confundir batida métrica e
dança, constituem um caso ainda mais desconcertante: a batida do tambor é
acompanhamento de percussão. Mais exactamente: é preciso pôr a questão.
Frances Densmore mostrou que, entre os Chippewa, o acompanhamento de frequentemente não isócrona e, se se grava o mesmo canto três vezes, não se
obtém as mesmas batidas:

~.I~_r"
tambor se desenrolava segundo o tempo J = 104, ao passo que o canto se
desenrola segundo a seminima a 168 [1910-13, ed. 1972 p. 28J:
A
~-I68

A-wi-hi-ne .. dj. Ira ni - wi ..


~~U(~
do-se .. ma Ira a .. wi-hi-ne - dja

I?~r' Ira
P11r'
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T:l.nlbor
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RilO)() do raml-w .lf
A
lambor ,; - 10.

l~n~=en~n~~n5::1 <1<.
J J
Num outro exemplo libido p. 58), é o tambor que é mais rápido (J= 152,
contra J = 96 para a voz): B

~r·.~lí· ç~
t\in - go . ho • SOl /'a ha nin- go - ho _ 53 nin - go - 110-

c
SJ ha ha nin-go-JIO - 5a nin-go- ho - S3 nin -=20 - sa nin- go •

/-
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•" HIIMII ,11M!' 111"

r
,\
306

I
307 RITMICAI

maneIra que o tempo, a duração que assume, pode ser dividido de uma
METRICA

• di})~r"J-t---~~-';'"
__ =_,. J .•~ ~ _~ :/S J ....~
JI)' )1)';~ ,.
maneira regular em pequenos fragmentos, então chamamos-lhe ritmo:>
(Westphal, citado in Souris 1948, p. 3). cO ritmo fala da pulsação da
ti música - o elemento temporal:o [Reeve, citado in Creston 1964, p. IV]. Para

• Verrier [1912J, o ritmo é cOllS-tiruídopelo rerorno isócrono do tempo forre, ou


ictus. Lowe, no cMusical Times:> (1942), afirma que o termo 'ritmo' é
• constantemente utilizado de maneira errónea: tem apenas um significado

,,
fi

• verdadeiro em música - o número de compassos numa frase. E Fraisse, que


é, contudo, muito sensível às ambiguidades de vocabulário, indica
explicitamente que não crê necessário deter-se na distinção entre ritmo e
metro: cO ritmo pode coincidir com o compasso ou não coincidir. A questão é
fundamental em estética. mas não muda essencialmente o nosso problema:>
c
• [1956, p. 4). Ou ainda: cAcentuações e durações concorrem para a criação de

,, J J J-J J JJ J J
uma estrutura rítmica empírica. Não há nenhuma razão para opor, do ponto
de vista psicológico, o merro ou o compasso ao ritmo:>[ibid_, p. 21 J. Esforçar-
-nos-emos por ver adiante explicada a sua posição.

t
, Todos estes cantos foram gravados em 21 de Maio de 1976 por Ramon
Pelinski, em Rankin lnlet. As três versões são cantadas pela mesma
informadora (Teresa Kimalardjuk), enquanto o tambor é tocado por Kurok,
Vê-se, assim, nas definições que se acabaram de ler, que a palavra
'ritmo' designa, aí, não a estruturação das unidades de superfície, mas o
referencial periódico métrico. Também não surpreende que certos
nas versões A e B, e por Anarvak, na restante. As versões B e C foram musicólogos, mantendo embora a distinção lexicográfica entre ritmo e metm,
definam francamente o metro como uma parte do n/mo. Santo Agostinho
transcritas por Patrick Halliwell e a A por Ramon Pelinski, a quem agradeço
afirmava que rodo o metro é ritmo, mas nem todo o ritmo é necessariamente
ter-me autorizado a reproduzir aqui estes documentos até agora inéditos.
O «sistema:>- se o há - ainda não foi objecto de um estudo específico. metro. Monod, por seu lado, diz-nos que cO metro é uma das formas do
ritmo. É métrico rodo o ritmo que subdivida a duração em partes iguais ou
Será que canto e tambor têm, cada um deles, uma estrutura métrica própria,
nitidamente comensuráveis entre si:> [1912, p. 71]. E Creston vai no mesmo
ou será que esta lhes é comum, apesar de, até agora, não ter sido evidenciada?
sentido: cO metro é somente um dos elementos na organização da duração,
ao passo que o ritmo os inclui a todos:>[1964, p. 2].
4. Ritmo e metro: da confusão à segregação Enfim, um cerro número de autores separa claramente o metro e o ritmo_
Hauptmann: cChamaremos metro à medida constante pela qual é medido o
Uma vez admitida a especificidade - ou a ambiguidade - das tempo; e ritmo ao tipo de movimento contido nessa medida. [citado ibid., p.
organizações métricas segundo os estilos e as culturas, regressemos à música IV]. D'Indy: cBater o compasso e ritmar uma frase musical são duas operações
ocidental para estudar urna outra dificuldade. Quando o dicionário Robert completamente diferentes, e muitas vezes opostas:>[1903, ed. 1912 p. 27].
define o ritmo como «distribuição de urna duração numa sucessão de Pertencem a esta terceira família de definições todas aquelas que,
intervalos regulares, tornada sensível pelo retorno de um ponto de anotando especialmente o papel dos tempos fones e dos tempos fracos no
referência:>, não estará ele a descrever, de facto, aquilo a que, nas páginas metro, colocam a acentuação, não sob a alçada do ritmo, mas sim do metro.
preceden tes, chamámos 'metro'? Creston: «O ritmo, em música, é a organização da duração num movimento
Deste modo, numerosas definições do ritmo se confundem com as do ordenado ... O metm é um agrupamento de pulsações:>[1964, pp. 1, 17].
metro. Tratar-se-á, daqui em diante, neste artigo, do metro da música Blom: «Metro: padrões rítmicos produzidos na música por notas de
ocidental. «Entende-se sobretudo por ritmo o carácter de um movimento comprimento variável, combinadas com tempos fortes e fracos (arsis e tesi)>>
periódico na medida em que este comporta uma sucessão de máxima e de [citado in Kunst 1950, p. 8}. Lussy, por seu rumo, define o metro como «o
mínima, de tempos fortes e de tempos fracos:> [Lalande, citado in Fraisse retorno periódico, a cunas distâncias, de um som mais forte, que subdivide
1956, p. 3]. «Movimento no tempo, caracterizado pela igualdade dos uma porção de música em pequenos fragmentos, chamados compassos, tendo
compassos e pela sucessão de tensão e relaxamento» [Century Dictionary, rodos eles um valor ou duração iguais:>[1874, ed. 1897 p. 6].
citado ibid.]. «O ritmo procede por relações de grandes unidades divisíveÚ, Em Riemann, a duração é característica do ritmo, enquanto que a inten-
estabelecendo-se, de seguida, novas relações nas divisões internas, e não por sidade (acentual) é própria do compasso. Para Kunst [1959, p. 1) a métrica es-
justaposição de pequenas unidades indecomponíveis agrupadas em células:> tuda os agrupamentos de elementos melódicos em sons longos e curtos, acen-
[Chailley 1971, p. 12J. "Se um movimento de que temos percepção é de tal tuados e não acentuados. Esta precisão é interessante e conduzir-nos-á mais

'.,.\ . , ,.".-",--

~lit'íi!±.'J.' :\•••__ ---------------


I
I
II1

RíTMICA IMIOTRICA 309 RITMICA/METIW:A


308

adiante ao estudo do laço entre acentuação e duração; justifica, em todo o Assim, todo o fenómeno recorrente pode dar nascença, não s6 a um
caso, a utilização de esquemas oriundos da métrica poética (_vv, v_, n/mo, mas também a um metro, desde que a recorrência seja periódica e
I
v_v, ete.) na análise do ritmo musical (Aristóxeno, Westphal, Meyer' e isócrona. Explica-se então a generalidade do conceito de ritmo. Como diz Eric
Cooper). Fraisse sublinha que «a estruturação pode ser de tipo intensivo Blom [1946, p. 495], «em sentido lato, a palavra 'ritmo' significa tudo o que,
(apoio e suspensão, diferenças de acentuação) e de tipo temporal (breves e na música, diz respeito a coisas dependentes do tempo, como o metro, a
I'
111'

longas, notas de música ... ). [1956, p. 3]. distribuição conveniente e o equilíbrio das frases, ete.., ou, como se pode ler
De uma noção de ritmo que absorve a de metro passou-se, assim, àquela mais abertamente em Fox Strangways [1954b, p. 479]. «o ritmo é tempo,
.,, movimento ordenado, metro e outras coisas amalgamadas numa, e não
do ritmo que engloba o metro, para se chegar enfim ao ritmo distinto do
I
surpreende que o termo tenha sido usado para nomear cada uma delas
IIII
metro, com a intervenção de um terceiro elemento: a acentuação. Como separadamente •.
explicar esta situação, e que conclusão haverá a retirar dela?
3) Consequência prática: se toda a periodicidade is6crona entre
1) Se o metro pode ser confundido com o ritmo, isso acontece, como
quaisquer fen6menos tende a criar o sentimento de um metro, o metro
afirmámos de início, porque a palavra 'ritmo' designa fundamentalmente um
implicado pode entrar em conflito com aquele que o compositor indicou
intervalo de tempo entre dois acontecimentos, sejam eles quais forem. Por um
explicitamente na partitura. Examinaremos em detalhe este ponto essencial
lado, fala-se do ritmo das estações como se fala do ritmo cardíaco: o espaço de do conflito ritmo/metro.
1M!

tempo identifica-se com a periodicidade. Por outro lado, o metro e o ritmo


4) Consequência te6rica: do mesmo modo que as diferentes teorias
podem ser confundidos porque uma estrutura métn'ca possui duas qualidades
mel6dicas se constituem a partir de uma selecção dos parâmetros considerados
que se atribuem ao ritmo em geral: o intervalo de tempo, peri6dico e
I
is6crono, entre as batidas subjacentes, e o intervalo de tempo, este maior, e característicos da melodia [cf. Nattiez 1979, ed. 1984 p. 288], as diversas
igualmente peri6dico e is6crono; entre os retornos do tempo forte, que serve teorias do ritmo privilegiam alternadamente os diferentes elementos que
de ponto de referência e que subdivide o continuum das batidas em unidades podem ser objecto de uma articulação rítmica. Detenhamo-nos para esboçar,
1111
is6cronas (os compassos). antes de ir mais longe, uma rápida panorâmica histórica destas teorias.
I. 2) Deste modo, o conceito de ritmo pode, não somente designar o
próprio fenómeno métrico, mas também aplicar-se a qualquer faceta do
material musical: 5. Breve bosquejo das teonas do n'tmo
I
- a acentuação, bem entendido: «o ritmo, - diz D'lndy [1903, ed. o parágrafo precedente deu, porventura, azo a alguma perplexidade face
I

1912 p. 23], -- aplica-se não s6 à duração relativa dos sons, mas às definições de Reicha, que aplicam a noção de ritmo a um conjunto de
também às suas relações de intensidade, e mesmo de acuidade •. A compassos formando uma frase. Desde o século XVIII que os te6ricos
posição de Fraisse, que atrás nos tinha embaraçado, explica-se assim preocupados em aproximar a forma musical das figuras da retórica, entendem
facilmente: «A análise psicológica mostrará que as estruturas acentuais por 'ritmo' um número constante de compassos (periodicidade) marcadas por
não podem ser separadas das estruturas temporais. [1974, p. 11]; um movimento cadencial. Segundo Yeston [1976, pp. 14-18], Riepel [1752-
- uma mesma altura (veja-se como exemplo a Sinfonia Pastoral de -1754] é um dos primeiros te6ricos a conceber a segmentação de uma peça em
Beethoven ): grandes unidades regulares, marcadas pela função tonal das alturas. Note-se
que os homens do século das Luzes não tinham esquecido o sentido que a
palavra podia ter tido na Antiguidade. Assim, um Kirnberger precisaVa:
!II

~:r~" .__ ~_===..LT~~~r~


---c--==f-~ =~ - ----=-
-' _ . I t:-D Ir~~ «Utiliza-se esta palavra [ritmo] de duas maneiras: às vezes, para designar o
que os antigos chamavam Rythmopoma, isto é, o carácter rítmico de uma
- o ritmo da linha melódica (sons ascendentes e descendentes) [WilIems peça; mas, por outro lado, pode querer-se designar com elas uma frase (Satz)
1954, p. 14]; ou um segmento (Einschnitt). É usada no primeiro sentido quando se diz:
- o ritmo harmónico (sucessão de acordes e cadências) [ibid.]; "Esta composição está escrita num ritmo incorrecto" ou "não tem um bom
- e mesmo as unidades musicais de idêntica duração: um ritmo é «um ritmo". No outro sentido, usa-se quando se fala de "um ritmo (Einschnitt)
desenho melódico curto com uma cadência fraca (quatro compassos e de quatro compassos" [1771-79, p. 135]. Reicha, no princípio do século XIX,
uma meia cadência). [Reicha 1814, ed. 1832 p. 9]. «o ritmo é um representante tardio de uma concepção largamente divulgada no século
subdivide em partes iguais, e por conseguinte de maneira simétrica, precedente: «o ritmo compara o número de compassos de uma parte
uma sucessão de compassos. Daí que se possa muito bem dizer que os constituinte com o número de compassos de outra, e procura igualar os
I,
compassos são os tempos do ritmo, como as semínimas e as pausas são termos desta relação, sem ter em conta o valor das notas. [1814, ed. 1832 p.
I! li os tempos de um simples compasso. [ibid., p. 10].
! 13]. Assim, quando Rousseau escreve no seu Dictionnaire de musique que «o


• RfTMICA/MITRIU\ 310 311 RIrnICA I M.ITR1C.A

• ritmo se aplica, propriamente, ao valor das notas e chama-se, hoje em dia. a fim de tornar aparentes as mudanças de metro deduÚveis da «superfície»
• compasso» [1768, p. 422], René Dumesnil [1949, p. 47] erra ao ver nisso uma rítmica. Lussyencontra·se assim identificado com a preocupação fundamental

• heresia: Rousseau segue simplesmente o uso do século.


Esta concepção do ritmo prolongar-se-á pelo século XIX fora. mas
de Riemann - a cujas ideias fará ampla referência nas edições ulteriores dos
Traités - segundo o qual o primeiro tempo do compasso é sempre
• concorrendo com o sentido que a palavra 'ritmo' tinha para os Antigos, e que
reaparece. Em Marx, um dos primeiros a reconhecer a existência de uma
acentuado. Riemann [1884; 1903J ia mesmo mais longe..afirmando que toda

• organização hierárquica da acentuação [1839, ed. 1841 pp. 133-34], a palavra


a música se haseia num tempo de preparação, existente ou subentendido,
precedendo o tempo apoiado (v_). 1: a sua famosa teoria da anacrusa.
• 'ritmo' preserva ainda o sentido do século XVIII: são combinações de membros
de dois, quatro ou oito compassos, mais raramente de três ou cinco compassos
Dentro da mesma linha sistemática e normativa, pretendia ainda Riemann

• que, segundo ele, produzem um «ritmo igual» [ibid., p. 202]. Em Weber, os


que as unidades de quatro (e oito) compassos - a Vierhebigkeit - cons-
tituíam a norma da organização periódica das obras. O teórico procura assim
• termos 'ritmo', 'compasso' e 'metro' são praticamente sinónimos: designam
eles segmentos musicais iguais, simetricamente acentuados [1817-21, I, pp. reconduzir a diversidade dos fenómenos musicais a um pequeno número de

• 80-81], e 'ritmo' substitui 'frases' e 'períodos', termos por ele não utilizados,
se bem que os segmentos não-simétricos sejam ditos não-rítmicos [Smither
unidades elementares. Mas, à custa de tamanha redução da complexidade a
fim de lhe captar a essência, acaba-se por distorcer os factos, e as afirmações
• 1960, pp. 31, 37]. Por fim. em Lussy, apesar de uma atenção especial aos de Riemann não apresentam hoje senão um interesse histórico.

• problemas da acentuação, a definição do ritmo é ainda tomada dos seus


predecessores: «o retorno periódico de dois em dois, de três em três ou de
Se se exceptuar Wiehmayer [1917; 1927J, cujos trabalhos se podem
considerar uma espécie de síntese de Hauptmann, Westphal e Riemann, está-
• quatro em quatro compassos de valores idênticos, formando, assim, grupos, -se no direito de achar que. ao lado de diversas compilações e obras de carácter

• desenhos simétricos. em que cada um contém um trecho de frase musical


correspondente a um verso de poesia» [1874, ed. 1897 p. 6].
geral, The Rhythmic Structure of Music de Cooper e Meyer [1960] constituía,
até à obra de Yeston [1976J, a única teoria operatória do ritmo neste século,
• No entanto, já vinte anos antes - em Hauptmann [1853, p. 223J - o
metro designava nitidamente o retorno regular do tempo, e o ritmo o
na medida em que os autores propõem uma abordagem analítica das obras,
de um pomo de vista rítmico e métrico.
• movimento particular contido num compasso. Os autores quase se não detêm nas fontes da sua teoria. Reenviam à
• Paralelamente, ao longo do século XIX, a acentuação leva progressiva-
mente a melhor. Weber. mesmo se a acentuação permanece um assunto de
opção gestaltista geral da obra precedente de Meyer [1956; sobre a aplicação

,,
da Gestalttheorie à teoria musical em Meyer, cf. Nattiez 1979, ed. 1984 pp.
• «sentimento interiOr» [1817-21, I, p. 106J. introduz a noção de terminação 286-88] e. do ponto de vista psicológico, citam o trabalho já antigo de Mursell
masculina ou feminina [ibid., p. 152J que, via D'Indy, continua hoje em dia [1937J, a propósito do qual Yeston [1976, pp. 31-32, nota 30] demonstra
em uso. Mas são sobretudo Hauptmann [1853], em termos hegelianos. e impiedosamelilte que não propõe nenhum fundamento psicológico tangível
Westphal, ressuscitando as teorias acentuais de Aristóxeno, que colocam a para uma teoria do ritmo. Em contraparrida, sente-se a influência indirecta de
acentuação no primeiro plano das teorias rítmicas. Hauptmann constrói um
• verdadeiro sistema, baseado na trindade hegeliana. para determinar a
Schenker, no sentido em que a «estrutura rítmica da música» é posta em
evidência em termos de níveis hierárquicos sobrepostos (Cooper e Meyer
• acentuação dos diferentes tipos de metro. Esta teoria terá uma influência
assinalam incidentemente essa influência [1960, pp. 70, 146J e utilizam por
decisiva sobre Riemann. não só por lhe trazer um quadro hegeliano de
• pensamento, mas também porque. nela, a análise rítmica e métrica pressupõe
duas vezes [ibid., pp. 91. 178J a sua técnica de redução gráfica). Mais
evidente é a influência de Arist6xeno (ou de Westphal, ou dos dois), já que
• uma delimitação de unidades. Westphal [1880J, por seu turno, reintroduz a
cada padrão rítmico é descrito segundo cinco modos fundamentais de
problemática de Aristóxeno caracterizando os diferentes tipos de metro por
• uma combinação de longas e breves. Westphal analisa assim a música agrupamento: o iambo (v_), o anapesto (vv_), o troqueu (_v), o dáctilo

I posterior a Bach em termos de troqueus, de iambos, de dáctilos. de


espondeus, ete. Esta perspectiva terá em França um continuador na pessoa de
(_vv) e o anfíbraco (v_v) [ibid., p. 6J.
A originalidade desta teoria reside no facto de que os cinco esquemas
I Combarieu, cujo trabalho tem um título sugestivo: Théon'e du rythme dans Ia rítmicos de base são utilizados para descrever a totalidade da estrutura musical
composition modeme d'apres Ia doctn'ne antique [1897J. aos seus diferentes níveis. Eis. por exemplo, a análise de uma passagem do
Lussy merece um lugar à parte. Mais preocupado com a eficácia empírica Quinteto em dó menor K. 406 de Mozarr [ibid., p. 75J:

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• das interpretações do que com o rigor sistemático e teórico, há, ao longo dos
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seus trabalhos, um esforço contínuo visando a determinação de regras para a
acentuação correcta das obras musicais. A acentuação métrica indicada após a
armação de clave (o compasso) cede de vez o passo, em ordem de
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1.1
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importância, à acentuação rítmica, e Lussy propõe mesmo reescrever as obras 3.1 V I

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RfTMICA/MITRICA 312 313 RfTMICA I MllTRICA

de segmentação. «Não há regras sólidas e rápidas para calcular o que, numa


qualquer instância particular, é a ligação ... A ligação de todos os níveis
arquitectónicos é um produto da similaridade e da diferença, da proximidade
v v - I e da separação dos sons percebidos pelos sentidos e organizados pela mente.
As unidades do primeiro nível são integradas em duas estrururas de nível mais [ibid., p. 10].
alargado, se bem que este método não descreva somente a estrutura rítmica É certo que não há já ninguém que acredite na possibilidade de prover
imediata, mas as unidades formais mais vastas. Os autores vão mesmo mais regras algo rítmicas para a segmentação de um texto musical. Em
longe: a forma de todo um andamento ou de toda uma peça é considerada contrapartida, é sempre possível explicar o porquê de uma segmentação, e é
como relevando do ritmo [ibid., capo vI]; prova disso é esta imagem do precisamente isso que os autores não fazem, em particular para os níveis
primeiro andamento da Oitava Sinfonia de Beethoven [ibid., p. 161]: rítmicos mais elevados sujeitos a discussão. (Deverá todavia assinalar-se que
Meyer, nos capítulos 1II e IV do seu Exp/aining Music [1973], forneceu uma
Desenvol- Recapi- metologia bastante mais elaborada para o trabalho de segmentação).
Exposição Reexposição vlmento tulação Coda The Rhythmic Structure of Music representa assim, para o problema
~ v rítmico, uma síntese das principais correntes dos três séculos precedentes: o
I v v
conceito de ritmo como unidade formal no século XVIII, a análise métrica da
Ora, pode razoavelmente duvidar-se de que os «níveis arquitectónicos. música (Aristóxeno, Westphal), a organização sistemática e redutora dos
cada vez mais elevados, aos quais se aplicam estes cinco padrões elementares dados - atrás da qual se sente a influência de Riemann - e a noção de nível.
constantes, sejam da mesma natureza. A bem examinar o exemplo de Mozart, Mas fica-se com a impressão de que a metodologia permanece intuitiva e não
o que é que permite afirmar que os compassos 45 -47, ao segundo nível, explicativa. Regressaremos às teorias psicológicas e ao cometimento de Yeston
COnstituem ó ritmo _vv? Na realidade, subentende-se no seu trabalho uma que, segundo o nosso parecer, vão mais longe neste sentido, logo que
ideologia universalista: «Estudar o ritmo é estudar tudo da música. O ritmo tivermos examinado a pedra-de·toque das teorias rítmicas, ou seja, os
organiza (e é organizado por) todos os elementos que criam e dão forma aos problemas levantados pelas contradições entre ritmo e metro.
processos musicais ... O ritmo é mais do que uma mera sequência de
proporções de duração. Experimentar o ritmo é agrupar sons separados em
padrões estruturados. [ibid., p. 1]. Coaper e Meyer redescobrem portanto o 6. O conflito n'tmo/metro
ritmo do século XVIII: «Um simples agrupaml:'nto é o resultado da interacção
entre os vários aspectos dos materiais da música: altura, intensidade, timbre, «É o ritmo que determina o metro, ou o inverso?, perguntam Cooper e
textura e harmonia - bem como a duração. [ibid.]. Meyer [1960, p 96]. No primeiro caso, a pulsação métrica será"'deduzida da
Que o estudo do ritmo implique todos os outros parâmetros musicais, é organização rítmica de superfície; no segundo, será o metro indicado na
coisa de que estamos plenamente convencidos, e que é aliás amplamente partitura que terá força de lei.
demonstrada pela história das teorias rítmicas. Mas isso não significa que, aos A resposta dos dois autores interessa-nos particularmente na medida em
diferentes níveis, as diversas manifestações do ritmo, em geral, na música, que difere segundo o ponto de vista em que nos colocarmos - o do composi-
possam ser descritas com os mesmos instrumentos. A acentuação de uma nota tor ou o do auditor - segundo a análise adopte, diríamos, uma pertinência
não pode ser comparável à que permite distinguir dois compassos, ou mesmo poiética ou estésica [para um exame mais aprofundado destes dois termos, cf.
fragmentos inteiros de andamento sirúónico. E isto tanto mais, quanto se Nattiez 1977, ed. 1984 p. 258].
renuncia a tentar e1ucidar as causas da acentuação: «Não se pode actualmente Para o compositor, não haveria um metro a pn'on', mas um metro ditado
afirmar de forma inequívoca o que faz que um som pareça acentuado e outro pela organização melódica criada. Para o executante, pelo contrário, esse
II
não o pareça ... Em síntese: dado que a acentuação parece ser produto de um metro constituiria uma norma, determinando ligações e acentuações. Simba
certo número de variáveis cuja interacção não é rigorosamente conhecida, Arom (1975, comunicação pessoal) propõe a este propósito uma imagem
temos de nos contentar em admiti-Ia relativamente ao nosso trabalho como bastante e1oquente: um 3/4 inscrito após a armação de clave teria o papel de
um conceito básico, axiomático, que é compreensível como experiência, mas uma armação temporal, comparável à armação tonal. Um «metro-c1ave», de
indefinido em termos de causa. [ibid., p. 27]. alguma maneira.
A obra de Cooper e Meyer, permanecendo um instrumento descn'tivo
Mas pode ver-se a questão de forma invertida. Não será que o compositor
não desprezável, tem o grande mérito de mostrar que a análise rítmica supõe de valsas tem na ideia um metro a três tempos antes de começar a escrever?
a partição em unidades, que o «sentimento. de ligação varia sob a influên- Quanto ao intérprete, não deve ele esquecer o metro escrito para seguir
cia da duração, da melodia, da pulsação, da instrumentação, da harmonia
aquele que a especificidade rítmica de uma peça lhe dita? É este último ponto
[ibid., em particular capo Ij, mas que renuncia a fornecer regras explícitas de vista que é mais frequentemente adoptado na literatura.

I i
1(11MJ<A/Mr.TIlICA 314 315 RITM1CA/M1h1ucA

Para Willems [1954, p. 27J o compasso não é senão uma «simples na «escandalosa. Tetralogia do Centenário em Bayreuth, não teve o mínimo
indicação exterior-, uma «mensuração da duração •. Guy de Lioncourt [citado pejo em usar sistematicamente, na cena de Mime e do viandante (Siegfn'ed,
ill Biton 1948, p. 11] faJa de ficção. Souris [1976, p. 2611 é ainda mais acto I), o 2/2 para Mime e o 4/4 para o viandante.
IOlltundente: «Simples meio de referenciação tendo por padrão um valor Mas a solução não é sempre tão evidente. Cooper e Meyer fazem notar
médio de duração, o compasso, no seu próprio princípio, é estranho à [1960, p. 90J que o tema do Andame da Sinfonia Júpiter de Mozart poderia
estrutura rítmica da frase, tal como à forma da composição. Não põe qualquer ser escnta como segue:
problema, senão a debutantes e teóricos, obnubiJados pelas convenções da
escrita ... As discussões sobre a relação compasso / ritmo são assim praticamente
falhas de objecto •. E noutro lugar: «Se se entende por "compasso" urna
sucessão de valores iguais regularmente acentuados, este constitui certamente
~wlec.m'b~
. ,,-,V· "J1"~'I'pl~'~~~~lr
f
(5)
p I
uma figura rítmica. Diz-se que tal figura rítmica, chamada figura "métrica",
está subentendida. E para a subentender, é necessário que tenha sido ao passo que se lê:
suficientemente materializada, e sej,a suficientemente poderosa para impri- And .•.nte camahd('
mir à nossa percepção subsequente um ritmo subjacente, sobre o
qual se sobrepõem e se enxertam os outros ritmos do discurso. [ibzd., pp. ~
p
243-44 J.
Lussy, no século XIX, não hesitando em submeter a acentuação métrica à p

acentuação rítmica, adoptava uma posição radical a que não faltava interesse.
Virado para a prática da interpretação, a sua teoria do ritmo propõe p

literalmente reescrever as obras dos mestres, isto é, deslocar as barras de


compasso a fim de as fazer coincidir com as acentuações implicadas pelas mas fazem-no, assinalando que o quadro estilístico da época impõe
estruturas rítmicas. «O aluno deve examinar os n'tmos de todos os trechos que absolutamente que se respeite o ritmo de sarabanda. mesmo se se pode ser
toca e corrigir sem escrúpulo todas as acentuações e indicações defeituosas. tentado por uma execução mais ambígua. Todavia, poder-se-á manter este
[1874, ed. 1897 p. 91J. O carácter normativo desta prescrição pode chocar. ponto de vista quando se chega um pouco mais longe a esta passagem, que
Mas, se ref1ectirmos um pouco sobre ela, perguntar-nos-emos se, de facto, não Marx [1839, ed. 1841 p. 114] se propunha reescrever a dois tempos?
há metros que se impõem, independentemente do compasso, em certas Andame
passagens, e se aquilo que escandaliza o musicólogo não poderá ser mais
facilmente aClmitido pelo intérprete. Como executar, por exemplo, toda a
segunda secção do terceiro andamento do concerto de Schumann (A) sem
bater o compasso a dois tempos (B), e mesmo a três tempos adoptando um
«ritmo di tre battute» (C)?

f p I p I p I p I p

Há, enfim, casos - talvez os mais interessantes - onde é possível ao


intérprete explorar a ambiguidade métrica. Por exemplo, o Sonho
(Traümerei) das Cenas infantis (Kinderszenen) de Schumann:

~~~~ 'i I i I j' PI'i I í I í' ,)rp I r mJ I J, Plu') I r Ir ' ~ I


J-~

c ~·II~~ 'i í j' IWi r- ( ,)rp I í ~,J J. PI~,J í r' ~I


Na verdade, os maestros adaptam o batimento métrico que Ihes parece
L,
mais adequado para servir a obra que dirigem. Pierre Boulez, por exemplo,

"
RITM[CA IM~TRICA 3[6 RITM[CA/MtrR[CA
317

Monod, O comentador de Lussy, propõe reescrevê-Io deste modo (1912, terminações femininas. De forma mais geral, trata-se de todo o alongamento
p. 73]: de uma nota relativamente ao seu contexto (Creston, Apel, Fox Strangways),
o que arrasta uma modificação de tempo.
~~I-L~4~~1~.=l'-=- 3) Michel, Lesure e Fédorov são os únicos a falar de acentuação rítmica:
«O aumento de intensidade de uma nota ou de um acorde colocados num
Não objectamos ao compasso de cinco tempos. É evidente que, para os três tempo fraco, para lhe dar mais importância que ao tempo forte normal: o
compasso~ que seguem, Monod se baseou no ritmo harm6nico. Mas não virá a exemplo mais comum é a síncopa. (1958-61, I, p. 241]. Note-se que a
nova quadratura contradizer o movimento melódico? Há uma repetição nítida síncopa é raramente posta no tempo fraco; encontra-se em geral entre o
da mesma estrutura: tempo forte e o tempo fraco.
:>

~~ +t--1'-J-J-Jt~lJ--)I·J----
-.....:..-

~~n]1 4) Os mesmos autores falam de acentuação dinâmica: «Disposição das


cambiantes no interior de um motivo. [ibid.]. Ter -se-á necessidade de

--
que determina a acentuação do sol e do fá iniciais desses segmentos, o que conceber toda a espécie de acentuação como apropriada para caracterizar a
daria: expressão do discurso musical? Para Creston e Apel, trata-se aqui
simplesmente de aumento da intensidade de um tempo, indicado pelos sinais
1\ ,> ou sf (sforzando). Apel distingue a acentuação dinâmica irregular, de

~)~~
.' JJ.n'iF'~;D
í '--'"
}I,~- que dá como exemplo o tema da Sinfonia n. o 40, em sol menor K. 550 de
Mozart:
:>-

Perante a alternativa, será necessário optar por uma única solução? Cremos
que não. Um pianista dotado de uma grande independência de mãos saberá
fazer sentir a diferença de articulação acentua!.
~í Uí urr-f-~
O que estes exemplos nos mostram claramente, em todo o caso, é que o
Fox Strangways não a define, mas precisa que pode alterar a forma de uma
conflito ritmo/metro, quando surge, não é mais que um conflito entre
frase; reserva em contrapartida um lugar à parte à acentuação cumulativa,
sistemas acentuais contradit6rios, mas não necessariamente incompatíveis.
«comandada pelo contexto, a maior parte das vezes sob a forma duma
O presente debate conduz-nos assim a um exame mais circunstanciado da
appoggiatura ou de uma dissonância. (1954a, p. 474]. Talvez esta seja de
natureza da acentuação.
aproximar da acentuação harmónica de Creston (1964], acentuação de um
tempo arravés da dissonância.
Tentou-se já assimilar a acentuação dinâmica à acentuação patética ou
7. Definições da acentuação expressiva de Fox Strangways, que, «em geral, não coincide com a acent\lação
normal. (1954a, p. 474]. A noção de acentuação patética reencontra-se nos
Examinaremos para começar a terminologia, porque a sua profusão textos de Lussy, que lhe dedica um capítulo especial, ao lado da acentuação
desordenada ilustra bem a diversidade das fontes atribuídas à acentuação. métrica e da acentuação rítmica. Esta noção agrupa em si todas as acentuações
:: I
Sobrepondo algumas obras que lhe dão uma classificação [Michel, Lesure e «que não estão sujeitas a qualquer espécie de regularidade. (1874, ed. 1897 p.

i
I

Fédorov 1958-61; Creston 1964, pp. 28-33; Apel 1944a-c; Fox Srrangways 92]. Há em Fox Strangways e Lussy uma cambiante semântica suplementar;
1954a], obtém-se o seguinte reagrupamento: Lussy dizia que a acentuação patética se situa do lado do sentimento, ao passo
1) A acentuação métrica (Michel, Lesure e Fédorov; Creston; Apel; Fox que a acentuação métrica e a acentuação rítmica correspondem respecti-
1 Srrangways), resultado da aumentação de uma nota no tempo forte. vamente à inteligência e ao sentimento [ibid., p. 11]. Michel, Lesure e
! 2) A acentuação ag6gica: Michel, Lesure e Fédorov retomam a definição
do dicionário de Riemann, que introduz o termo na sua obra Dinâmica e
Fédorov falam ainda de acentuação retórica, próxima, quer-nos parecer, da
acentuação dinâmica de Creston e Apel e da acentuação expressiva de Fox
I agógica musicais (1884] e o define como alongamento de duração que exige o Strangways: «Reforço irracional de uma nota ou de um acorde (por exemplo,
signo 1\ posto por cima de uma nota para facilitar a interpretação clara das a maior parte das dissonâncias no período "clássico") exigido e indicado
••
•••
/lIIMIl '\tMfllt((,~


318 319 RITMICA IMtnuCA

•• 1'''' 1111I
(d. I. I' z.l1I·
)) (h :IUlores
;lllIpI I1lIIll dClcrrnillado

anglo-saxónicos
momento (por exemplo

distinguem
sfol'Zando),. [1958-

uma acentuação de altura


~ ~J .•~••• " J ••• li •••
...
)')1[; J11~'JJ)J UJ'IU ~Ic.:: ~ ....
U ctcr~

••
(f'II,!1 011 tonic aaent), correspondente à nota mais alta (Creston, Apel, Fox
SILllIgways) ou à mais grave (Creston) de um grupo.
ú) Creston e Apel citam igualmente a acentuação ornamental, @ ~~-<~l~'!' @lf'1 @lr-rUJ ~J~lr ~'f~
'. ~
par! indarrnenle frequente na música francesa dos séculos XVIII e XVIII e em
1\;11 h (/\pc1). Regra VII.• Uma nota prolongada pelo compasso ou tempo seguintes é

•• 7) Terminaremos com definições isoladas, podendo


;qlloxirnar-se entre si, apesar dos vocábulos diferentes:
algumas delas
fortÍ5sima, qualquer que seja o seu valor,. [lbid .. p. 24].

@' . í
I rir
••
-- «o ictus normal que a primeira nota de um texto ou de um motivo
comporta, mais particularmente notável se coincidir com uma
~J I (TI' r J U r R!~I r ,.~
anacrusa» libido J.


- O paliem accent, evidente numa figura
característico [Creston 1964, p. 32J.
repetida, com contorno
~
~c.f~IJ - -rüI!I~IU ~T~. ~

• - A acentuação analítica,
um tema ou de um
«reforço a que deve ser sujeito o enunciado de
motivo quando estes servem de elementos
estruturais» [Michel, Lesure e Fédorov 1958-61, I, p. 241J.
Regra VIII. «A nota que, no início de um compasso, de um tempo ou
de uma fracção de tempo cai sob ou sobre uma prolongação (impropriamente
•• chamada síncopa), sob ou sobre uma pausa, é fortÍssima,. [ibid.)

• - A acentuação articulatória,
repetidas,
«hiato exigido pela execução de notas
mais sensível se intervém o sopro: a voz, o órgão, os
fk('rhovtn

• -
instrumentos de sopro,. [ibld. J.
o weight accent (acentuação de peso) resultante da textura ou do
• volume de som. Esta noção proposta por Creston é particularmente

• interessante e parece-nos pertinente sobretudo em relação à música

,
contemporânea (em especial a música e1ectro-acústica) e à música
• polifónica de tradição oral.

Tudo o que precede constItuI mais uma enumeração que uma


t
,

classificação. Creston sublinha-o várias vezes: uma dada acentuação pode ser
nomeada de diversos modos e, a propósito do exemplo de Mozart atrás citado,
Apel diz, e bem, que essa acentuação «dinâmica irregular:> é, ao mesmo
tempo, tónica e agógica.
1

Todas estas definições parecem assim ter um carácter ad hoc. É a mesma


• impressão que se tem perante as regras empíricas de acentuação que Lussy
• teve o mérito de ser o primeiro a tentar redigir. Defendendo que o compasso
indicado pelo compositor devia ser corrigido em função do metro implícito no
ritmo, Lussy considera, por isso mesmo, que essas regras são as da acentuação
métnCi1 [1874, ed. 1897 pp. 22-25J.
As suas primeiras cinco regras definem os tempos fortes e fracos segundo
os tipos de compasso, como fazem todos os manuais de teoria musical. Já as
regras seguintes (VI -XIII) não devem passar despercebidas. Regra IX .• Quanto mais raramente, ou excepcionalmente, se apresenta
um grupo ou tempo denso, mais a sua nota inicial é acentuada:> [ibid.).
Regra VI. «Tanto nos compassos de três tempos como nos de dois
e quatro tempos, a nota que começa um tempo dividido em várias
(uma figuração, um grupo) é /órte mesmo se cair num tempo fraco:> [ibid., Gottschalk ~ •
p. 23J. ~~It~(.r
r Ir r..r r r I r IJ [J nl C1 cJ r r\~dU~r II

"
,
~.4.Ú.L.,) •.'I•. ,,_
I, RrTMICA IM{;TRICA

Regra X. «Se a nota que termina um compasso, um tempo ou uma


fracção de tempo é repetida, isto é, se começa o compasso, o tempo ou a
fracção de tempo seguinte, então é fortíssima; chama-se-Ihe repetição
temporal .• libid.].
Wt~r Straddla
320 321 RfTMICA

posta de mínimas, semínimas, colcheias, semicolcheias, ete., se apresenta ex-


cepcionalmente um compasso com uma disposição interna ascendente, com
uma única nota por tempo, e tantas notas quanto os tempos, estas são
acentuadas .• libid., p. 96].
I MÉTRICA

M,y«bw __ ..-. ~ •~ __.

~~r~ln=tJaaal ~~'-..:: ~~lt('f~1 ar ~rtrí ~~rtm


~~~ . ~ 3

~.J í r Ilr-r ' I r)'~bb~~ l "J J JI J] ~ Não há vontade sistemática em Lussy. A regra XIII, entre outras, parece-
-se demasiado com a descrição de um exemplo musical particular. Mas será
Regra XI. «Quanto maior é o valor, quer dizer a duração, de uma nota inevitável concluir, com Cooper e Meyer, que não se pode explicar o
- sobretudo tratando-se da primeira do compasso -, mais da é acentuada .• aparecimento da acentuação através de um número determinado de princípios
libid., p. 25]. simples? Segundo nos quer parecer, os mais recentes trabalhos da psicologia
Ros.~ini "Auber experimental respondem em parte a este problema.

~~I~~(.:,
C11~ ~~lr ~CU~ 8. Abordagens psicológicas do ritmo

Regra XII . «Toda a nota precedida de um silêncio é forte .• ibid. ]. I Desde Wundt que se sabe que toda a percepção do ritmo comporta a
percepção de um titmo motor espontâneo subjacente [d. Fraisse 1974, p. 74].
« ..
.~ '~~~:~:ri±~H:,jt~ .. - ==--. "p.,~
A AI
«A hip6tese quinestésica, - precisa Fraisse, - corresponde ao facto de à
recorrência dos agrupamentos estarem ligadas manifestações mororas mais ou
menos explícitas .• libid., p. 78]. E mais longe: «A acentuação estaria ligada ao
acompanhamenro motor suscitado pela repetição de grupos is6cronos. [ibid.,
p.84].
A noção de grupo é, na verdade, fundamental na análise do ritmo.
É interessante notar a convergência entre Cooper e Meyer, de um lado, e
Fraisse, do outro, os quais, por sinal, não se citam entre si: os primeiros
consideram - como se viu concretamente - que o seu livro não faz senão
tratar, desde que começa até que acaba, o problema do agrupamento [1960,
Regra XIII. «Quanto mais vivo é o andamento, menos força têm as p. 8]; Fraisse analisa, ao longo das suas experiências, como os sujeitos
notas iniciais dos compassos e dos tempos .• libid.]. organizam, isto é agrupam, os elementos constituintes de um continuum
rítmico: «Em certas condições de sucessão, os estímulos são percebidos como
Damos estas oito regras a título de exemplo, pois no resto do seu Traité estando agrupados, e a repetição desses grupos dá origem à percepção do
de I'expression musicale, Lussy propõe ainda nove regras para a acentuação ritmo. [1974, p. 74].
rítmica e toda urna série de excepç'Ões métricas, rítmicas, tonais-modais e
Tentemos resumir as constantes destes resultados experimentais.
harm6nicas que são outras tantas regras para a acentuação «patética .•. 1) Uma sucessão de mais de três estímulos tem tendência a ser objecto
Eis um exemplo de regta de acentuação rítmica: «A primeira nota de de fragmentação perceptiva. Assim, um motivo de cinco estímulos ... é
cada ritmo é forte, qualquer que seja o lugar que ocupa no compasso ou no percebido como uma colecção de três mais dois libid., p. 94].
tempo, a) quando é a nota mais alta de um ritmo descendente ou a mais alta
2) Por isso, é preciso que o intervalo-pausa (o terceiro no exemplo que
de um ritmo secundário, se o principal começou por uma nota grave; acabámos de examinar) seja percebido como mais longo que o mais longo
b) quando, excepcionalmente, cai num tempo desapoiado ou último intervalo contido no grupo precedente libid., p. 80].
do compasso, se os ritmos precedentes tiverem começado no tempo forte .• Este papel da pausa nos agrupamentos justifica que, em certas definições
libid., p. 84]. E dois exemplos de excepção rítmica: «Se se apresenta, do 'ritmo, ela constitua um dos parâmetros. Aristides Quintiliano: «o tempo é
excepcionalmente, um grande valor após pequenos valores, este toma uma a medida do movimento e da pausa. lcitado in Souris 1948, p. 5]. Gevaert:
grande importância. libid., p. 95]. Ou ainda: «Quando, numa frase com- «As leis do belo exigem que o tempo preenchido pela execução de uma obra
••
•• HITMI< :A/MrTRICA 322 323 RfTMICA/MITRICA

•• Illllsical seja dividido de tal maneira que o sentimento possa, sem esforço,
discernir uma regularidade nos diversos grupos de sons e palavras, tal como no
regresso periódico do repouso. Uma tal disposição não é senão o ritmo:> [1875-
forma geral, o nascimento do fenómeno 7(entual. Separação dos grupos
mediante intervalos-pausa, acentuação de rnicia.! ou de final de grupo,
tendência à acentuação das longas relativamente às breves, nocas culminativas

•• -1881, lI, p. 1). Lussy: «O ritmo consiste em dispor sons alternadamente


li!rtes e fracos, de modo que a grandes intervalos, regulares ou irregulares,
uma nota rraga ao ouvido a sensação de um repouso, de uma paragem.
e notas ou padrões repetidos, tais são os princípios que, a maior parte das
vezes combinados - se necessário, de maneira conflituosa -, criam a base
acentua.! das estruturas rítmicas e métricas e dão a impressão de uma

•• [1883, ed. 1911 p. 1]. Esta noção de repouso corresponde evidentemente à


noção de cadência ou de meia cadência. A observação da psicologia
experimental explica a postenÓn" como o termo 'ritmo' pôde ser essencial na
fraseologia proposta no século XVIII.
multiplicidade de situações. Compreende-se então melhor como todos os
tipos de parâmetros musicais podem, pela su:! repetição isócrona, sugerir uma
pulsação métrica regular: não apenas a intensidade isócrona de uma nota num

•• • 3) Corolário da observação precedente: é o tempo curto que serve de


referência à percepção do tempo longo [Fraisse 1956, p. 84], mas dentro de
certos limites:
tempo dado, mas a repetição periódica de células caracterÍSticas, de alturas, de
pausas. A partir do momento em que a acentuação - real ou
sugerida - assume o seu papel de marcador de unidade, pode supor-se a
existência de um metro. pois o compasso não é mais do que um
a) a duração dos elementos sucessivos não deve ser inferior a 15 ou 20 reagrupamento elementar de pulsações is6cronas delimitadas por uma baliza.

•• centésimos de segundo [Fraisse 1974, p. 75];


b) a sua duração não deve ser superior as 150-200 [ibid.];
c) são percebidos como curtos os elementos que oscilem entre 15 e 30 9. Teon"atonal do n"tmo e do metro

••
centésimos de segundo [ibid., p. 102];
d) são percebidos como longos aqueles que duram enrre 40 e 100 Sabemos agora melhor o que explica, psicologicamente falando, o
centésimos de segundo [ibid.]; aparecimento da acentuação. Em contrapartida. não dispomos sempre de um
e) entre 100 e 200 centésimos de segundo, a duração tende a criar uma

••
• fragmentação e a assumir o papel dum intervalo-pausa [ibid.];
f) a duração total de um grupo rítmico não pode ultrapassar 4-5
segundos [ibid., p. 79].
ctitério claro que nos permira distinguir o ritmo do merro. Numerosos autores
assina.!am que, em muitos casos (por exemplo numa valsa), a acentuação
métrica e a acentuação rítmica se confundem. Isso significa que, noutros,
podem estar separados. Fraisse está certamente na boa pista quando sugere,
inspirando-se na poética generativa de Kayser e Halle: «Poder-se-ia transpor

•• 4) As durações e as pausas não são os únicos factores a intervir no


agrupamento. A acentuação tem igualmente um papel importante. Aparece
quer no princípio quer no fim do grupo [ibid., p, 81]. Seja a sequên-
cia > - - - > - - - > - - - >. onde a duração de cada elemento é
essa distinção entre estrutura profunda e estrutura superficial sobre a distinção
entre compasso e ritmo. Na música clássica, o wmpasso é um modelo. Todo
o ritmo é compatível com ele, mas não o actualiza integralmente senão

• constante; ela ver-se-á fragmentada em > - - -I > - - -I> - - -I>· ..


nos casos, facilmente monótonos, em que há completa adequação entre os
dois níveis da estrutura. [ibld., p. 140]. Eis um exemplo de urna tal ade-



ou, dadas certas circunstâncias, em - - - > 1- - - > 1- - - > I, mas nun-
ca em - > - -: - > - -:, etc. [ibid., p. 82].
5) Há uma estreita relação entre duração e acentuação. «O intervalo que
se segue a um som (e uma batida) acentuado, é percebido e reproduzido
quação:

~~ ~ ~
~
~
,--....
J I~ ) Id
--j
J Id

J I, ~ -
v - v v
como mais longo que os outros intervalos:>[ibid.]. Inversamente, «pode criar-

,

I
-se acentuação por um ligeiro aumento da duração de um elemento. Neste
caso, ele começa o grupo rítmico. Se o aumento é maior, termina o grupo,
porque é então identificado a uma pausa e já não a uma acentuação:> [ibid, p.
83]. Eis a razão pela qual convém reter que a acentuação pode ser uma
realidade totalmente psicológica, «corresponda ou não essa percepção a uma
Neste outro exemplo,

~l' J J JI;. :;~ 1,--

I maior intensidade do estímulo:> [Fraisse 1956. p. 92]. fenômeno sobre o qual


Apel muito insiste.
há actualização parcial no sentido em que o segundo tempo do primeiro e

I 6) Por fim, uma diferença de altura ou de timbre pode provocar


do segundo compassos, bem como o quarto tempo do segundo, não são arti-
culados.

I acentuação. «Os sons agudos, mais do que os graves, têm tendência a começar
o grupo:> [Fraisse 1974, p. 83]: um som mais alto parece mais intenso.
Não obstante, a metáfora linguÍStica proposta por Fraisse apresenta uma

I Os trabalhos experimentais têm portanto uma vantagem sobre as defi-


dificuldade: a de conceber a estrutura métrica como um modelo, isto é, como
um a pn'on" anterior ao próprio desenrolar da música. Ora, as suas próprias
• nições de acentuação e as tentativas normativas de Lussy: explicam, de experiências e todas aquelas a que faz referência tendem a mostrar que a


.,
'1_'
~_;)l1j_C'IIiiiííi';1t_; '••.•• ~_
"\
I

i,
RITMICA I MhTRICA 324 325 RfTMICA/MhTRICA

pulsação métrica real (não necessariamente a indicada na partitura) resulta das


Ili configurações de superfície.
B ~~ :
Temos igualmente urna certa simpatia pela teoria, bastante original,
il\
apresentada por Maury A. Yeston na sua obra The Stratification of Musical
Rhythm, onde se apoia nas teorias harmónicas de Schenker. Embora não \'
i r- r' r r' T- r- r' r'
i
r_-_-r r r-r r f-=-""'-,
ri r-(r
'i"1

,li
encaremos as ideias de Schenker sem reticências, não é necessário endossar a A~~ N

i !
global idade de uma teoria para apreciar as virtudes da utilização, num
domínio particular, de alguns dos seus princípios. A herança schenkeriana ill ~_: !
consiste em decompor uma peça musical num certo número de níveis
hierárquicos - o plano de fundo (Hintergrund em Schenker, background Yeston observa que as estruturas repetitivas fazem aparecer, para o ritmo, os
I;I!
nos schenkerianos americanos), os níveis intermédios (Mittelgrund, middle- três níveis de periodicidade A, B e C. Do ponto de vista métrico, o nível A
ground) e o primeiro plano (Vordergrund, foreground) - para descrever fornece a pulsação de base, enquanto o nível C determina o agrupamento da
:,il
II
diversos níveis de organização rítmica, sistematicamente posta em relação com batida em três tempos.
li\i a organização tonal e harmónica. Mas há um outro elemento interessante na teoria de Yeston. Porque será
",i

li No que diz respeito às relações entre ritmo e merro, a ideia chave de que a «boa. análise é aquela que liga A a C, e não B a C? Tal facto deve-se à
Yeston é que não há um nível métrico por um lado, e um nível rítmico por organização harmónica deste trecho. Yeston não é, contudo, o primeiro a
I"
1,1,,'1,'\

i
outro - e portanto nenhuma estrutura profunda em oposição a uma fundar uma teoria rítmica sobre a tonalidade; ele próprio se coloca na tradição
i estrutura de superfície - mas que o metro é uma resultante da interacção de do século XVIII, na qual os ritmos eram delimitados em função das meias
dois níveis. «Para criar um reagrupamento regular de elementos dentro de cadências. Sem o ter aprofundado, Lussy - cuja definição de ritmo, vimo-Io
II uma pulsação simples, deve existir um acontecimento regular que nela é já. era uma herança setecentista ~ tinha abordado o mesmo problema; ele
representado, a intervalos regulares. (1976, p. 66]. Yeston precisa bem que propunha a sucessão rítmica seguinte, com a articulação indicada pelas •
esse evento pode ser dado conc:retamente na música ou estar implicado [1883, ed. 1911 p. 36]:
conceptualmenre. Sejam as sequências coordenadas seguintes:
ete. J,JJJ J,J J,Jmnn,J J,mJ J,J'J ,JJJJJ ,/
B{
A~ R
11 J J J J JJ J J J ete. Esta segmentação pode ser explicada pelas observações de Fraisse. A mínima
tem aqui o papel de in,tervalo-pausa (Lussy nota, de resto, que é possível uma
hesitação no sexto compasso). De facto, este esquema é retirado da Mazurka
Nenhum destes níveis representa por si só o metro. O metro resulta da op. 7, n. o 2, de Chopin:
interacçâo da batida com um outro nível que faz aparecer um agrupamento Vivo. ma non nappo J .. 160
de pulsações de nível inferior. Noutros termos, o metro resulta da interacção ~ 3 strctto

de dois níveis de pulsações isócronas, sendo uma mais rápida que a outra. «A
mais rápida fornece os elementos e a mais lenta agrupa-os. libid.]. Esta ==--- f
UCSCClldo
:11,

concepção, como é evidente, enquadra-se perfeitamente na definição do ....•


metro constituído por dois elementos: uma batida isócrona (regida pelo 1
tempo) e uma divisão isocrónica dessa batida (ligada, na música ocidental, a
,\
uma acentuação). Um exemplo de Yeston libid., pp. 68-70] ilustrará A estrutura harmónica (repouso sobre lá-dó-mi no fim do segundo e do
ill concretamente a sua concepção. Trata-se da análise de um extracto do Quinto quarto compassos, etc.) impõe uma outra segmentação: «O esquema rítmico é
pequeno prelúdio em ré menor de Bach: incapaz de nos fornecer a verdadeira acentuação desta frase ... As pausas não
resultam unicamente dos elementos rítmicos propriamente ditos, mas
III também do meios e da harmonia. [ibid.].
Mais recentemente, ]aques-Dalcroze fazia notar: «Toda a mudança de
1'1'
compasso ou de ritmo leva necessariamente a modificações na harmonização.
I'!
i'!
:1'1 [1920, p. 80]. Forte põe mais precisamente a quesrão: a que nível estrutural é
que os eventos rítmicos começam a determinar a estrutura tonal de uma obra
" I' " r' dada? A teoria de Yeston tem o grande mérito, senão de responder
••
•• RITMICA/MITRICA 326 327 RfTMICAI MITRICA

•• detalhadamente a este problema, pelo menos de torná-Io parte integrante da


sua abordagem.
No exemplo de Bach precedentemente citado, é a presençl do acorde
Qualquer que seja a resposta a estes problemas, e mesmo se, por gosto
pessoal, nos inclinamos, em matéria analítica, para uma «moral da
ambiguidade:>, a perspectiva de Yeston é uma contribuição importante ao

••• perfeito arpejado ré-fá-Iá que permite determinar a existência do


middleground A. O seu reaparecimento determina igualmente a isocronia do
nível C, cuja relação com A define a estrutura métrica. Yeston dá ao seu
conjunto das teorias rítmicas. Fraisse não ignora, nas suas experiências, a
influência das alturas, mas não tematiza a sua função tonal. É uma lacuna
séria, já que a determinação tonal da acentuação obriga pelo menos a pôr em
questão a validade universal das experiências psicológicas. Não será porque a
método o nome de pitch-to-rhythm analysis porque parte das estruturas
tonais para interpretar os fenômenos rítmicos. Não rejeita o método inverso música dos Gbaya e dos Aka, citada no início, ignora a tonalidade, que o seu

• rhythm-to-pitch que determina o peso das alturas a partir de fenómenos


rítmicos recorrentes, mas inclina-se claramente para a abordagem que se
sisteml'. rítmico e métrico funciona de maneira totalmente diferente? E no seio
da nossa própria cultura, não dependerá o peso das variáveis igualmente dos
• funda na raiz da música ocidental: a tonalidade.
Procedendo deste modo, Yeston espera sair da circularidade analítica que
estilos e das épocas, como se viu nos exemplos de Mozart (p. 315), de
Schumann (p. 315) e de Chopin (p. 325)?
., consiste, simultaneamente, em estabelecer o valor de uma altura em função Esta diversidade de siruações tenderia a provar que não é nunca possível

• da sua posição acentual, e em determinar o esquema acentual em função da


altura [1976, p. 33]. Com uma tal apresentação das coisas, continuaria evi-
exibir uma variável «fundamentalmente explicativa:>da complexidade rítmica,
mesmo quando essa variável é a tonalidade. E, assim, a uma classificação das
., dentemente a haver circularidade, já que o encontro das duas abordagens sig- combinatórias possíveis que somos, uma vez mais, reconduzidos. U·-JN.] .

,


nificaria que a posição acentual e o peso dependente da totalidade são efecti-
vamente coincidentes. Mas se é ceno que a rhythm-to-pitch analysis repousa
na recorrência de fenômenos «puramente:> rítmicos, também é certo que pode
fazer aparecer uma acentuação não coincidente com a estrutura harmónica. É Apel, W.

,
t
o que procurávamos mostrar com o nosso exemplo do Sonho de Schumann
(cf. p. 315). Aqui não há já circularidade, mas contradição; e Yeston admite a
possibilidade de uma tal ocorrência, ao deixar entender que, em última ins-
tância, o factor determinante é o peso tonal. «A análise "da-alrura-ao-ritmo"
1944a .i\cc~nt., in Haf'llard Dietionary 01 Mune, Harvard Univ~rsi[y Pr~ss, Cambridgc
Mass.; ed. H~inemann, London 196516, pp. 6-7.
1944b .Agogic., ibid., p. 20.
1944e .Tonic Accenh, ,bid., p. 154.
Arom, S.
da música tonal é baseada em certos princípios, bem estabelecidos, da tonali- 1978 Rylhmique et polyrythmie eentrafrieaines: 10netÚms, struetUTe. in Conlérenees des
• dade, como as implicações das estruturas triãdicas no contexto de um sistema journées d'é/lldes du ftstival international du son baule fidélité stéréopbonique.

i de alturas rigoroso. A luz da inesgotável história da análise de alturas da mú-


sica tonal, a metodologia "do-ritmo-às-alturas" pareceria empobrecida. Nos
Radio, Paris, pp.163-7\.
Benvenist~. E.
. 1951 La notion de rythme dans son expression linguistique, in ~ournal d~ psychologie
t capítulos seguintes, todavia, são investigadas algumas estruturas rítmicas bási- normaJe ~t pathoJogiqu~., XIJV, pp. 401-10; aClualm~nte também in Prob/imes de
linguistique générale, GaJlimard, Paris 1966, pp. 327-35.
• cas, que nascem da interacção dos níveis de altura:> [ibzd., p. 76].
BilOn, ph.
Mas não é seguro que esta posição possa ser constantemente mantida. No
1948 Le rylhme musical, le rythme de Ia langue française, paroles et musique, le rytbme en
exemplo de Bach atrás citado, o nível B não é posto em relação com C para a général, Henn, Gt:neve .•
determinação do metro, porque a estrutura hatmónica de A o traz implicado. Blom, E.
Poder-se-ia contudo objectar que ré-lá-fá é tão representativo da harmonia de 1946 .Rhythm., in Everyman's Dictionary 01 MUJic, D~nt, Inndon, pp. 495-96.
Boulez, P.
base como ré-fá-Iá, e que a regularidade da repetição do ré torna esse nível
1948 Propositions, in .Polyphonj~., n.o 2, pp. 65-72; aClua1m~nte também in RelevéJ
pertinente para a análise. De resto, o autor contorna a dificuldade, sem a d'apprenti, Seuil, Paris 1966, pp. 65-74.
afrontar. Por um lado, afirma que o 3/4 se impõe aqui devido à «evidência:> Brãiloiu, C.
do gesto «intencional:> referido à tónica - à terceira e à quinta [ibzd., p. 70]. 1951 Le rytbme abak, in .Revue de musicoJogie., nova séri~, XXXIII, 99-100, pp. 71-108;
Pouco depois, Yeston prossegue na mesma linha: «A estrutura e a concepção actuaJmente também in Obras, vol. I, Editura Muziclã a Uniunii CompozilOrilor din
Rcpublica SociaJistã România, Bucur~~ti 1967, pp. 237-79.
da música precedem claramente a sua notação:> [zbid.]. Mas a propósito de um Brdet. G.
outro exemplo, admite que «o compasso indicado é uma instrução para ler de 1949 Le temps musical. Essai d'lIne esthétique nouvelle de Ia musique, Pr~sses
modo diverso o middleground:> [ibid., p. 116]; o que significa que seria deci- Universitair~s d~ France, Paris.
siva nos casos de ambiguidade. É talvez o que, na realidade, se passa no ChailIey, J.
exemplo de Bach. Seria verdadeiramente uma traição ao estilo de Bach e às 1971 Rythme verbal et rythme gestuel, essai sur l'organÚation musica/e du temps, in
~ournaJ de psychoJogie normaJe et pathologique., LXVIII, pp. 5-14.
suas «intenções:>que um pianista hábil, embora respeitando cuidadosamente Combarieu, J.
o acorde perfeito em cada tempo, tornasse também perceptível o ré em cada 1897 Théone du rythme dans Ia eomposition moderne d'apres Ia doctn'ne antique, Picard,
tempo e meio? Paris.

~iiiiZJi1!iili"!.IÍIIIi:'I •••
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,
III

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III
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!lI MI<A/Mf:TRICA 330

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•• I I () lI1odo físico de existência da música ê essencialmente temporal. razão pela qual as


di\{ 1I,,'\e, relarivas à organização do tempo (cf. lempo/lempor.uidade) em música remetem em

•• 11II1I1Ia allálise para a melafísica. O destino do homem ê metaforicamente expresso (cf. an.uogla e
",rI,i/llra, meláfora) pelo fluir de uma obra musical; daí talvez o papel. na maior parte das
1IIl1011IRias
",,'U/o,ongem).
(cf. mllo/rilo. mylhos/logos), do sopro de um deus criador do universo (cf. deuJl!s,
Quis O acaso alfabético que esta série de artigos sobre música (<<Escala».
«Harmonia., «Melodia., «Rítmica/métrica., «Som/ruído.) terminasse com o
estudo do par de noções que recupera esses componentes e os organiza siste-

•• Tal wmo sucede com a melodIa, as definições são incenas. Ainda que o estado da questão se
1"""1 consideras satisfat6rio sob cenas pontos de vista, não existe tão-pouco em relação ao ritmo
11111ellsillo comparável ao da harmOnia. Há nas teorias sobre o nimo muito pouca
maticamente. Ao longo destes estudos, seguimos um mesmo objectivo
metodológico: mostrar como o conteúdo semântico das categorias
fundamentais da música se articulava através de determinados traços, e como

•• hllll1l1geneidade. se bem que os elementos de periodicidade (cf. ciclo. pen'odizaçào. e tambêm


ulmlidade/dlferença) e de emuturação (cf. eslrulura) apaseçam de modo eminente.
A necessidade de conceber mais unidades rítmicas coexistentes evidencia-se sobretudo nas
lI1ú,icas de tradição oral (cf. or.u /escn'lo, esen'la, e também umlo, dança e Iradições); por sua
a concepção, a teoria e a análise desses componentes dependiam da selecção
de traços que, segundo as épocas e as culturas, se operou. Observou-se, em
particular, de que maneira o alcance dos adjectivos 'harmónico', 'melódico',
'rítmico' e 'métrico' se modificava segundo o contexto em que eram usados e

• vn. parece ser casacterÍ5tica da música ocidental a ligação das unidades métricas mediante o
,u elllO (cf. mélrica, relón'ca). Na música ocidental citmo e metro pasecem intimamente conexos a mesmo segundo as suas combinações. A esta diferenciação semântica em

•• lIível definit6rio, e o exame compasado das várias teorias pode ser esclasecedor; evidenciam-se
lIe1a, várias aproximações que envolvem a totalidade dos pasárnetros musicais: a tendência pasa
lalalogar tegras empíricas (cf. empiria/expenêncla) de acentuação ou pasa procuras a nível
",iwI6gico um ritmo motor espontâneo (cf. cnatlvidade, inalo/adquirido) subjacente à
traços, ao nível da linguagem metamusical, corresponde, no plano da
substância sonora, uma tendência para a harmonização dos parâmetros
constitutivos da matéria musical: assim, a harmonia e a melodia que, na
idade clássica, pareciam obedecer aos mesmos princípios, tendem a cindir-se

• lornposição. Uma teoria rítmico-métrica tonal (cf. escala, lonal/alonal) apasece ponanto
perfeitamente motivada embora se conserve uma certa ambiguidade que, determinada pelo
para seguirem, cada uma delas, as suas leis próprias.

• confluir dos vários pontos de vista, constitui um casácter conceptual importante. O exame das noções de «tonalidade. e de «atonaljdade. será levado a
cabo dentro da mesma ordem de ideias. Ao nível semântico, os conceitos de

• tonalidade e de tonal têm um alcance mais ou menos largo, conforme o


contexto de utilização; ao nível musical, a dialéctica - mais que a oposição

• - entre tonalidade e atonalidade analisa-se considerando a «porção» de

• tonalidade que a atonalidade simultaneamente conserva e rejeita, o que


significa tentar carac.terizar os traços que, na música tonal, do século XVII ao

• século XIX, podem ser classificados como tonais.


I 1. Tom, tonal, tonalidade

I Encontramo-nos aqui perante uma primeira dificuldade de carácter espe-


cífico: a análise semântica deve distinguir as diferenças que nos aparecem de
• uma língua para outra. Com efeito, a ambiguidade da palavra «tonalidade» é

I devida, em grande parte, à ambiguidade da palavra «tom», da qual deriva,

•• 1.1. O tom

• a) O inglês fone e o alemão der Ton designam, primeiro que tudo,


• uma altura determinada: C i.r a tone 'dó é uma altura' [ou também, em


~::rUi" 'J ",;\ ,',
TONAL! ATONAL
332 333
TONAL! ATONAL

como termo invariável de comparação. A noção de tonalidade é


português, 'dó é uma nota', vocábulo que designa tanto a altura como o
extremamente subtil, em virtude do seu carácter subjectivo: varia, com efeito,
símbolo gráfico]. Em francês e em português, o sentido é já mais ambíguo,
porque, se é possível falar dos tons aigus de Ia voix 'tons agudos da voz' para segundo as diferenças de educação musical e o grau de perfeição do nosso
aludir à sua altura num dado momento, não se trata, neste caso, de designar entendimento. Ela aplica-se, aliás, aos três elementos da música: entre certos
uma altura precisa. O italiano tono aproxima-se do sentido inglês e alemão, povos selvagens, onde o único carácter musical digno de estima é a sucessão
simétrica dos ruídos, a tonalidade, simples 1midade de tempo, é puramente
mas mais raramente; prefere-se neste idioma o vocábulo diapason para falar
rítmica. As monodias medievais, nas quais as relações entre as fórmulas
de uma frequência específica.
decorativas acessórias e a nota principal se estabelecem sucessivamente, são
b) O vocábulo francês ton, assim como o português 'tom', é sobretudo
concebidas dentro de tonalidades exclusivamente melódicas. Totalmente
utilizado, no seu sentido técnico musical, para o «intervalo. entre duas
diferente é a tonalidade contemporânea, baseada sobretudo na constituição
alturas: «Um tom (ton) separa o dó do ré, e um meio tom (demi-ton) o mi do
fh. O italiano, o inglês e o alemão usam o vocábulo na mesma acepção. harmónica dos períodos e das frases, ou seja, nos parentescos ou afinidades
existentes entre os sons, em virtude da sua ressonância harmónica natural,
c) Mais uma vez se separam as línguas europeias, ao depararmos com um
sentido específico e comum ao francês, italiano e português: as expressões le superior ou inferior. [1903, ed. 1912 p. 108].
Não discutiremos cada um destes três exemplos, sobre os quais muito
lon de do, illono di do e 'o tom de dó' não designam uma altura, mas sim
uma escala musical, assim chamada em consequência da sua tônica e teriam a dizer o etnomusicólogo, o medievalista e o estudioso de acústica.
possuindo uma estrutura interna característica e estável. No mesmo sentido, o O que importa é constatar que o conceito de tonalidade ultrapassa a própria
inglês adopta o vocábulo key e o alemão Tonarl. O babelismo acentua-se música tonal, para englobar as músicas em que o sistema se organiza à volta
de um centro.
II ainda mais, já que o francês, o italiano e o português utilizam ainda o
'li sinônimo 'tonalidade' (tonalilé; lonalità), fonte de um equívoco, que Falar de tonalidade a propósito das músicas extra-europeias, faria hesitar
convém desde já sublinhar. o ernomusicólogo. «Se insistimos em falar de tonalidade na descrição etnomu-
d) Por fim, convém çh:tmar a atenção p;1r;J uma açepção mais lata, de sicológica, - escreve Netrl -, dever-nos-íamos limitar a uma concepção
uso corrente, que encontramos nas cinco línguas: o tom é também uma directamente descritiva da música. [1964, p. 147]. E, se numa obra anterior
qualidade, uma expressão, uma colocação. Por exemplo, na expressão 'o tom [1956, ed. 1977 pp. 45-50], o autor falava em «tónica» no mesmo sentido que
familiar da voz' o vocábulo designa o efeito produzido pelo aspecto do D'lndy, no seu clássico Theory and Method in Ethnomusicology prefere
fenómeno sonoro considerado. adoptar o conceito de «centro tona). [1964, p. 147]. Já nos primórdios da
etnomusicologia, no primeiro trabalho sobre os Índios da América, Baker
[1882, pp. 18-28] falava de Grundton (nota fundamental), e reconhecia a
existência de vários «tonalidades» (Tonart), mas não falava da (Tonalitat) em
1.2. A tonalidade «generalizada.
geral.
Ainda antes de D'lndy, Fétis, um dos primeiros a introduzir a palavra
O primeiro significado da palavra 'tom' faz com que o adjectivo 'tonal' 'tonalidade', tomava um especial cuidado em sublinhar a multiplicidade dos
seja sinónimo de 'referente a relações de altura', e, neste sentido, 'tonal' é sistemas musicais, embora o seu objectivo fosse o de caracterizar a música
quase sinónimo de 'melódico', por oposição a 'rítmico' e a 'métrico'. Esta tonal clássica. Tirando partido dos primeiros testemunhos sobre as músicas de
acepção do termo 'tonal', que não é talvez a mais frequente hoje em dia, teve tradição oral (influenciado, nomeadamente, por Perne e Villoteau), Fétis
uma certa importância histórica no princípio do século xx, na medida em que recusou-se a considerar, ao contrário de Rameau, cuja opinião era ainda
o adjectivo 'atonal', forjado pelos inimigos da escola de Schoenberg, se predominante na época (mas o não será ainda um pouco, hoje?), que a
tornava sinônimo de 'anti-musical'. Esta significação bastante ampla de tonalidade europeia pudesse ser baseada na natureza: «Não temos nós a prova
'tonal' não deixa de estar ligada a uma concepção determinada de tonalidade, de que a tonalidade nem sempre foi a mesma em todo o lado e em todas as
a qual, adoptando lima visão simplificada, transcende a «música tonal. de épocas? Não sabemos nós que, mesmo hoje, ela não é idêntica em todos os
Bach a Wagner: chamar-se-á tonal a toda a música apresentando uma povos, e que na Europa se formula de uma maneira muito diferente, se
organização sistemática das alturas e com uma nota que funcione como compararmos os cantos de igreja com a música cénica? [1844, ed. 1875 p.
I" referência ou centro atractivo. Encontramo-nos, portanto, perante o conceito VIII]. Quando o autor atribui à metafísica libid., p. 249] a escolha dos
de uma espécie de «tonalidade generalizada., conceito esse que Vincent parâmetros particulares próprios de um sistema, nós preferiríamos, sem
d'lndy foi um dos primeiros a formular: «A tonalidade, - escreve, - é o dúvida, falar de cultura, mas, ao fazê-Ia, ele liberta a teoria da tonalidade de
conjunto dos fenómenos que o entendimento humano pode apreciar por um certo número de explicações pretensamente científicas (ressonância,
comparação directa com um fenómeno constante - a tónica -, tomado acústica), hoje reconhecidamente caducas.
.-

• TONAlIATONAL 334 335 TONALlATONAL



Nos anos 50, a situação do conceito de tonalidade era considerada tão cado em 1844, teria sido terminado em 1816 (isto segundo o autor, sempre
confusa que no VII Congresso internacional de musicologia foi criado um ate- desejoso de deter a primazia). Muiw provavelmente, Simms tem razão ao

• lier propositadamente dedicado a esse assunto [Chailley 19581; é de lamentar


que não se possuam aetas detalhadas. Sabe-se, no entanto, que um dos parti-
creditar a primeira utilização da palavra a Choron que, em 1810, escreveu no
seu Sommaire de I'histoire de Ia musique: «Limitar-me-ei a dizer que foi
• cipantes (Wilhelm Heinitz) «queria alargar o domínio da tonalidade, toman- durante o século XVI que esta tonalidade moderna se fez sentir mais

• do por base de discussão a sensação puramente fisiológica da distensão que


ocorre após sucessivos períodos de tensão» [ibld., p. 333]. Proposta interessan-
fortemente, que exerceu a sua inf1uéncÍia sobre a composição, e que, com a
escola de Nápoles, e particularmente com Durante, foi fixada em todos os
• te, sem dúvida, porque se trata de uma definição não somente geral, mas seus aspectos, pelo menos no que se refere à prática» [1810, p. XXXVlII; cf.

• também perceptiva da tonalidade, e juntando-se assim a outras definições


que põem em relevo esta dimensão do fenómeno. Por exemplo, Helmholtz
também Simms 1975, pp. 119 e 135]. Fétis defini-Ia-á, com mais precisão,
como «o conjunto das relações necess.árias, sucessivas ou simultâneas dos sons

• define a relação com um som predominante como «a relação perceptiva possí-


vel ao ouvido» [1863, ed. 1913 p. 395]. Güldenstein é ainda mais preciso: .A
da escala» (1844, ed. 1875 p. 2lJ, ou, ainda, falando .das afinidades
melódicas e harmónicas dos sons da escala, donde resulta o carácter de
•• tonalidade não é um facto acústico, mas um modo de percepção, requerido necessidade das suas sucessões e dos seus agregados» [ibid., p. 2481 .
por um contexto musical particular» [citado in Beswick 1950, pp. 10-11]. Um Decorrerá, portanto, quase um século até que a tonalidade temperada
Ia outro participante no congresso de Colónia, Jens Rohwer, propunha uma de- ilustrada por Bach no seu Cravo bem temperado (Das woh/tempenÚte
• finição da tonalidade que excluía a modalidade medieval [cf. Chailley 1958, C/avier) e teorizada por Rameau no seu Traité de /'harmonre - ambos

• p. 333]. Quando Dahlhaus distingue, na música modal medieval, um perío-


do «pré-tonah, em que os modelos melódicos e as fórmulas têm mais impor-
datados
metalinguagem
de 1722 - seja tematizada com um termo específico
da musicologia. Mas, na verdade, a ideia de tonalidade, ou
da

• tância do que a nota final de referência, e uma tonic phase, a palavra 'tonali-
dade' remete, não para a existência de uma hierarquia funcional, como a dos
seja, da organização hierarqurZada em rdação a um centro tonal, constituía já
um pilar do Traité de Rameau, como se vê nesta passagem histórica: .0
., modos maior e menor, mas sim para a existência de um centro tonal. princípio da harmonia não subsiste apenas no acorde perfeito, a partir do qual

• Como conclusão final, o congresso da Sociedade internacional


musicologia adaptou uma definição geral de tonalidade: «Um modo de
de se origina o de sétima, mas ainda, m:ris precisamente, no som mais grave
desses dois acordes, que é, por assim dizer, o centro harmónico ao qual todos
• percepção musical, segundo o qual, numa dada escala de observação, todos os os outros sons se devem reportar ... Não é suficiente aperceber-se de que todos

• sons são compreendidos em relação a uma final conclusiva única, real ou


virtual. [ibid., p. 334]. Exceptuando a referência à dimensão perceptiva, esta
os acordes e as suas diferentes propriedades tiram a sua origem do acorde
perfeito e do de sétima; é preciso, para além disso, notar que todas as
• definição é praticamente igual à de Fétis, proposta cento e trinta anos mais
cedo. Dado que ela foi proposta por ChaiHey, parece razoável perguntarmo-
propriedades destes dependem absolut:mIente desse centro harmónico e da
sua progressão: os intervalos que os formam s6 o são em relação a esse centro,
t -nos se esta concepção generalizada - por justificada que o possa ser - não que se apropria em seguida desses mesmos intervalos para formar a sua
• serviria uma qualquer intenção ideológica de integrar as músicas «primitivas»
e a música medieval no seio de uma visão teleológica da história da música, a
progressão; sobre a qual, e apenas sobre ela, se determinam a ordem e a
progressão desses acordes primeiros ... que princípio maravilhoso na sua
• qual deveria necessariamente conduzir à música tonal do século XVIII a XIX. simplicidade!. [1722, pp. 127-281. Aqui a expressão «centro harmónico»
do Traité historique d'analyse musicale (1951) e dos
• A argumentação
lnterva//es et éche//es (1954-55) já aqui discutida [Nattiez 1977, ed. 1984 pp.
designa o mesmo que «centro tonal», ou seja, a nota em relação à qual todos
os outros sons estão organizados num siJtema, com a particularidade, no caso
t 259-61; 1981, § 1] poderia fazê-Ia pensar. O inconveniente da definição de Rameau, de que o termo 'harmónico' põe em relevo o facto de se tratar de
generalizada é que, se por um lado alarga a ideia de organização à volta de um sistema polifónico complexo. Donde a nuance apontada por Rosen no seu
• um centro tonal a um bom número de músicas extra-europeias, por outro, livro sobre Schoenberg, que é, sem dúvnda, uma das obras mais notáveis que
• falta-lhe a especijicrdade daquilo que o uso corrente entende precisamente já se escreveram sobre a tonalidade, a despeito (ou devido) à sua concisão: .A
por 'música tonal', ou seja, a música das eras barroca, clássica e romântica. tonalidade não é, como por vezes se pretende, um sistema organizado em
t torno de uma nota central, mas um sistema organizado em torno de um
acorde perftito central; todos os oum.lsa:cordes perfeitos - maiores e menores

t
1. 3. A tonalidade «restrita» - distribuem-se hierarquicamentei sua volta; chamado tónica, ele
determina o tom de cada trecho» [197~, pp. 27-28].
A primeira aparição do vocábulo 'tonalidade' não está, na realidade, Que o centro de atracção seja uma nota ou um acorde, não modifica o
ligada a uma concepção generalizada da tonalidade, mas sim ao tipo de facto de nos encontrarmos aqui em pFesença do paradigma das definições
música escrita no Ocidente, a partir do século XVI. Durante muito tempo, correntes de tonalidade. Daremos em seguida três exemplos, entre muitos,
atribuiu-se esta invenção a Fétis, cujo tratado de harmonia já citado, publi- retirados de autores conhecidos. Riemann diz, no seu Musik-Lexicon (1882):

'." '''I"
1

336 337
TONAL!ATONAL
TONAL! ATONAL

a tonalidade é «a significação particular que os acordes adquirem através da Tonalidade harmónica. O estilo tonal é o conjunto dos acordes e das
sua relação com um acorde principal: a tónica. [citado in Beswick 1950, p. 5]. relações entre acordes, atestados na música considerada tonal. Escreve Réti:
Para Schoenberg é «a arte de combinar os sons, mediante sucessões e «O esquema I-x-V-I simboliza, ainda que duma forma muito sumária, o
harmonias - ou sucessões de harmonias -, tais que a relação de todos os percurso harmónico de uma qualquer' composição do período clássico. Este x,
acontecimentos com um som fundamental seja possível- libid., p. 7]. E, por aparecendo normalmente sob a forma de uma progressão de acordes (uma
fim, Bukofzer: «A tonalidade é um sistema de relações de acordes baseado na série completa, por exemplo), constitui a música presente no interior do
atracção exercida por um centro tonal_ [1947, p. 12]. O importante em todas esquema que, através da fórmula V·I, se torna uma unidade, um grupo, ou
estas abordagens é o facto de a relação com um centro implicar uma mesmo uma peça inteira. [1958, pp.10-11], Sendo uma súmula, à proposição
hierarquia. de Réti é particularmente interessante: tenta apreender, englobar, a essência
Tendo o conceito de «tonalidade generalizada- prevalecido no congresso harmónica da tonalidade, segundo uma fórmula não muito afastada do I-V-I
de Colónia, em 1958, o relatório de Chailley dá conta de uma «definição do Hintergrund de Schenker [1935, ed. 1956 p. 27]. Réti traduz, em termos
complementar., proposta para a «tonalidade clássica-: «Concepção limitativa de graus harmónicos funcionais, o que Fétis exprime em termos de estruturas
da tonalidade, na qual as relações dos sons com a tónica são exclusivamente do acorde, quando sustentava que toda a música tonal podia ser derivada do
acorde consonante perfeito e do acorde dissonante de sétima.
definidas pelas funções que ocupam nos dois modos maior e menor,
analisáveis relativamente ao baixo fundamental e aos acordes constituídos A fórmula de Réti apresenta-se sob a forma embrionária de uma
gramática generativa. I-V-I é a condição harmónica, necessária e suficiente, de
sobre cada grau_ [1958, p. 334]. Esta definição não difere essencialmente dos
toda a música tonal. GDldman, no seu Harmony in Western Music [1965, p.
tipos de definição que apresentámos, mas registámo-la porque nos conduz a
37], cita, entre outros, o exemplo de uma valsa de Schubert (op. 9b)
uma definição de tonalidade ainda mais restrita, a que não distingue entre
inteiramente construída sobre esse esquema:
tonalidade em geral e tonalidade de um trecho. Kfenek: «Tonalidade
(tona/it.'!) significa simplesmente o tom (key) no qual uma composição está
esnita_ [ritado in Ikswick 1950, pp. 8-9). Piston: «Tonalidade é sinónimo de
tom_ [1941, p. 291. A estreiteza destas concepções confina com a confusão, já
que a tonalidade, enquanto traço característico de todo um período da histó-
ria da linguagem musical, é uma abstracfão: é o conjunto das propriedades da
música, habitualmente classificada de tonal, onde se encontram tons
(intervalos), tónicas e tonalidades. Numa palavra, a tonalidade, distinta da
.;.~.~
música modal que a precedeu, por vezes qualificada de pré-tonal, é um estilo
[Molino, citado in Nattiez 1975, p. 83]. Para descrevermos a sua especifici-
dade, é necessário ultrapassarmos o estreito âmbito de uma qualquer defini-
ção, e inventariarmos os seus traços característicos.
t~:: I

2. O estilo tonal Todas as obras tonais apresentam pelo menos este encadeamento. O x d~ Réti
remete para tudo aquilo que se vem inserir na estrutura de base, podendo ser
x igual a zero, como no exemplo de Schubert. Obtêm-se assim fórmulas como
Se as definições bastassem para caracterizar a tonalidade, ao escutar uma
1+11 + V + I, 1+ VI+II + V +1, 1+ III + VI + 11+ V + I, ete., cuja estrutura re-
peça ter-se-ia o «sentimento da tonalidade", em virtude simplesmente do
cursiva convida quem conheça a gramática generativa de Chomsky, a redigir
sistema de relações e hierarquias definido pelos diferentes graus de uma escala
uma tal gramática para músicos. A analogia merece ser tentada, tanto mais
maior ou menor. Mas a tonalidade é um estrIa, ou seja, não apenas um
que o eirado trabalho de GDldman está redigido em termos que se podem
conjunto de características idemificáveis e de combinações na substância classificar de «pré-formais": cada novo esquema de encadeamento dos acordes
sonora de um trerho, mas também um conjunto de fenómenos, que são apresenta-se como uma complexificação do imediatamente anterior, salva-
perrepcionados ou não, segundo o grau de cultura musical e de acuidade guardando a possibilidade de várias opções. Exemplo: I-(I1I)-VI-II-V-I [ibid.,
auditiva dos indivíduos. Isto significa que a tonalidade não se refere a este p. 61]. Simplesmente, se bem que estes esquemas sejam o objecto de fórmu-
sistema hierarquizado, mas ao conjunto dos parâmetros - harmónicos, las explícitas, o conjunto das restrições que regem as estruturas e as funções
melódicos, rítmicos, ete. - regidos pelo sistema. Tentaremos em seguida dos acordes não é formalizado. A gramática que se segue tenta exprimir, sob a
localizar algumas dessas características estilísticas. forma de regras explícitas, a apresentação que GDldman faz, no seu livro, da
TONAl.! ATONAL 338 339 TONAL! ATONAL

harmonia tonal [ibid., pp. 30-106]. Não nos ocupamos do capítulo VIII, 7) Regras de progressão por terceiras
rderente aos acordes de sétima diminuta, nona, décima primeira e décima IV -+ VI+IV+II
terceira, precisamente porque o autor não estuda de maneira suficientemente v ...•VII+V
precisa os contextos em que ocorrem estes acordes.
Como em qualquer gramática generativa, cada flecha lê-se «reescreve-se Bem entendido, as lacunas desta gramática são gritantes e evidentes: em
como.; a barra oblíqua significa «no contexto de.; os elementos entre particular é de notar a falta de uma teoria da modulação. Esperar-se-ia
parênteses são optativos; as chavetas significam «ou, ou •. Só os grupos de também que uma gramática generativa da harmonia tonal descrevesse a
regras 1), 2) e 4) são obrigatórios, mas podem ser corrigidos pelas regras de dobragem de certas notas. o seu espaçamemo, a condução das vozes, ou seja,
outros grupos, que assumem assim o papel de regras transformacionais. o vulgar dos tratados de harmonia. Goldman varre tudo isso em poucas
linhas: o seu objeccivo é caracterizar a harmonia tonal, a de toda a música
1) Ponto de partida 6
Música tonal lU + V + I europeia de Bach a Wagner, remetendo esses problemas para um estudo das
propriedades estilísticas particulares, de época para época [ibid., pp. 44-45].
2) Fórmula de encadeamento Mas, de qualquer maneira, não construímos esta gramática com o propósito
V-+II+V de fornecer uma lista de regras definitivas da harmonia tonal, mas sim para
11 -+ VI + 11 ilustrar o facto de, no que se refere ao seu componente harmónico, o estilo
VI -+ III + VI tonal se analisar por uma combinatória de restrições explicitamente descritas,
III -+ VII + III que, quando observadas, contribuem para a aparição no auditor do
VII -+ IV + VII sentimenw da tonalidade. Ora, uma tal gramática generativa permite explicar
porquê, ao escutarmos a obra de um músico como Debussy - a propósito do
3) Dominantes secundárias qual ninguém se lembraria de falar de atonalidade -, certos aspectos da
V -+ V de V substância musical escapam à tonalidade. Observemos este exemplo, aliás
11 -+ V7 de 11 simples, da Cathédrale engloutie, compassos 28 e seguintes:
V -+ VIP de V
Sonor~ 5ans dumt

4) Regras das estruturas dos acordes


11 ...• j
VI 5 ou 6
6 6
2}
I
4 ou 4 IV-+{
III I -+ 7 ou ~ ou 3 2
V] M ou m
5) Regras dependentes (do contexto
IV: VI -+ VI/VI + 11
p
VIP
N6
V(7) de N6 1-+ P/I+IV
x +V Fr 6
r
-+ )
It 6
G6 VII -+ '-6o·
\VWP)7 /VII + III
VII6/VII + I (~y)
Se admitirmos que a gramática estabelecida a partir do livro de Goldman
[~:J descreve a «prática comum. (common practice, entre os musicólogos anglo-
-saxónicos) do período tonal, segue-se que pertence à tonalidade harmónica
6) Regras de progressão por segundas um encadeamento de acordes explicável graças a uma ou mais regras dessa
VI -+ V + VI gramática. É óbvio que esta sucessão de acordes de quinta ao estado
III -+ II + III fundamental, sobre todos os graus, escapa a estas regras. Em contrapartida,
V-+IV+V sente-se que aqui existe algo de tonal: a pedal de dó, a estrutura destes
IV -+ III + IV acordes, a qual é, efectivamente, uma característica tonal e o ineqUÍVoco tom
VII -+ VI + VII de dó maior, na melodia.

!!I.DUIí\ "'1.'
"li' ." "i. -"".--.,
TONAL! ATONAl 340 341 TONAl! ATONAl

Tonalidade melódica. Se isso é assim, é necessário admitir que possam o que enfraquece o sentimento tonal é a pedal de si[, (grau modal que cria
existir características de tonalidade presentes num parâmetro, mas um outro pólo de atracção) que se prolonga, alternando com um lá (segundo
ausentes - ou parcialmente ausentes, como neste último exemplo - grau, igualmente débil), do compasso 9 ao compasso 26, enquanto que a par-
noutros. Esta situação é absolutamente conforme à tendência para a te superior desenha uma simples descida cromática. que termina nesse mesmo
autonomização dos parâmetros, que nos parece necessário tornar em linha de terceiro grau (mib-ré-dó~-dóq-dób-sib), harmonizada com acordes de quinta
conta, tanto para a análise semântica da linguagem musicológica, corno para a aumentada, acordes instáveis por excelência. '~m contrapartida, o que reforça
análise da estrutura e da evolução da linguagem musical. a impressão de tonalidade, no exemplo anterior, é seguramente a repetição da
Fétis, ao fazer alusão às teorias de Reicha [das quais se trata in Nattiez figura melódica, porque se o encadeamento V-I é apenas esboçado e, de qual-
1979, ed. 1984 p. 280], propunha definir uma «lei da tonalidade~ que se quer maneira, não harmonizado, a repetição da figura corresponde a um ges-
aplicaria por igual à harmonia e à melodia. Não voltaremos a este ponto. to tonal tendente a dar-nos pontos de referência, desde o início.
Lembramo-Io apenas para sublinhar que é normal que um parâmetro (neste Após um nítido retorno ao pólo de sol menor (compassos 21-28, dos
caso, uma melodia sem acompanhamento harm6nico), susceptível de se quais apresentamos os quatro últimos)
destacar fisicamente do seu ambiente, adquira regras próprias de
funcionamento. Réti [1958] propõe uma distinção radical entre tonalidade
harmónica e tonalidade melódica, não somente por causa da melodia das

i
músicas de tradição oral e do período «pré-tonal~ (referindo-se aqui à
«tonalidade~ na acepção generalizada, definida no § 1.2), mas também
devido à tonalidade - desta vez, restrita - que se manifesta nas melodias
do período posterior à tonalidade Jtandard.
(~:~::
r~~J~t~ r-;;r
Liszt finge dirigir-se para a tónica (subida cromática fá~-sol-sol~-Iá-sib-siq.dó-
I

Frase tonal. tÚmo tonal, timbre tonal. .. Urna vez admitido tudo isto, -d~-ré-mi[,-miq-fá-fá#-sol, do compasso 33 ao 49 final). Mas, antes pelo
não existe razão alguma para nos determos a meio de um tão bom caminho: contrário, acumula os' sinais de ambiguidade tonal: com o baixo si[,.lá que
todos os outros parâmetros da melodia (por oposição à harmonia) devem tende para o sol sem nunca o atingir; com uma harmonia um tanto «dura para
a época~.
qualquer coisa à tonalidade.
Qualificam-se por vezes de atonais as últimas obras de Liszt, escritas em
1880 e 1886. A expressão de «pancromatismo atonal~ [Alain 1965, p. 92]. r
utilizada a propósito de NuageJ gns [Alain 1965, p. 92] é excessiva; e
preferiríamos falar de uma surpreendente modernidade. Mais precisamente,
estas obras interessam-nos na medida em que nos obrigam a definir o
sentimento da tonalidade que experimentamos quando as ouvimos.
Examinemos NuageJ gns: no início não existe urna verda&eira instalação da
(~
e com uma conclusão harmónica que foge precisamente à tonalidade: o
tonalidade de sol menor, no sentido da harmonia clássica, sendo no entanto último acorde podia perfeitamente pertencer a uma escala de tons inteiros.
I
discernível o movimento cadencial V-I entre o ré inicial e o acorde perfeito r<tllcnu.ndo - - - - - - - - - - - - - _

sol-si[,-ré (com dó~ appoggiatura do ré):

Numa palavra, Liszt evoca as características tonais. por omissão; alude a


elas, não as nomeia. Mas jogar com a tonalidade é, precisamente, pensar
continuamente nela: o perfil das figuras melódicas, o ritmo destas, e mesmo a
articulação da descida e, depois, da subida cromática, pertencem, a par da
referência ao centro tonal sol, ao estilo tonal.
A expressão 'timbre tonal' pode parecer ainda mais surpreendente
[ do que a de 'ritmo tonal'. E, no entanto, basta escutar a admirável versão
orquestral do Ricercare a 6 vozes da Oferenda musical (MusikalÚcheJ Opfer,
p
••
••
T()NALlATONAL 342 343 TONALlATONAL

Ba,h
17-17) de Bach, realizada por Webern, para justificar o seu uso. Encontramo-

•• -1I0S perante um imenso «teste de comutação~,


nigente dos experimentalistas
com o qual nem o mais
ousaria sonhar. Por sobre a orquestração
'lIeutra~ de Bach - seis partes não especificadas - Anton Webern projecta

I+I,~~
Wdxrn
í I i r lilJ I! I !Ir' Ilr' I

•• UllI estilo de orquestração


decomposição
saído precisamente da experiência atonal: a
da frase melódica unificada em diversas cores, confiadas a
instrumentos distintos, sem falar de todos os outros recursos disponíveis, tais
Tromba t'm f1
~
(/' I [J
<om .urdm,
i'
P ==-
I ~r' I

••
tolllO dinâmicas diferenciadas, legato vs pizzicato, acentos, uso da surdina. Tromj:'('ft' t'm d6
(.~
tJ
(e I I - I 'I
<em .urdm,
11,1--
Bastará apontar, como exemplo, o tema da fuga, confiado por Bach a uma
única parte de contralto (cf. p. 343).
Operando desta maneira, Webern procede a uma verdadeira «análise
Tromboot'
~

jR'J, ~ l~ i --==
i
com sutd~

I
_

f ==--
: tV:
~

I
p :::::-

•• musical através da música~: mostra-nos como segmentaria uma melodia tonal,


se tivesse de a reduzir a um jogo de segmentos interválicos, donde derivaria
todo o desenvolvimento de uma obra seria!.
PI'

•• Formas tonais. A tonalidade não é apenas um sistema de organização


das alturas, é um princício de organização das obras. Por outras palavras, é

•• lícito procurar um vínculo entre a tonalidade e as formas características do


período tonal, em particular, a forma-sonata. Escreve Rosen: «A maior parte
das nossas concepções da forma musical derivam da tonalidade. A função de 5<Kundo ,"olu", I ~ ~bl, (t ! I I I

ri
"moldura" assumida pelo acorde de tónica (dentro da qual cada nota adquire
um sentido definido) implica uma simetria formal, à qual obedecem todos os

•• elementos musicais. A forma da capo, ternária ou, mais simplesmente, ABA,


é o meio mais simples possível de patentear essa simetria; mais sofisticada é a
"forma-sonata", onde a exigência de simetria por vezes obriga a que a
IBlh li ~í r Ir r I qJ i i [' í
j í I I I, ~ -

• música, tendente desde o início a afastar-se da tónica em direcção a uma nova


tonalidade, seja interpretada no fim, e para restabelecer o equilíbrio, na
~ ~r~:J I' JJrl 1===
• "região" da tónica» (1975, p. 31]. «No século XVIII, a frase musical encerrava =-- ~
• dentro de si o movimento de afastamento da tónica, no qual se baseava
também a estrutura geral» [ibid., p. 36]. Diga-se de passagem que é sem ~ Id I 1=_-==_
-=~~J J I -
• dúvida por isso que Dahlhaus
'tonalidade'
identifica um significado
que ultrapassa a referência ao sistema hierarquizado
da palavra
das escalas Ij,~~
~ -~
r Ir r~)
PI'-
1==========1=_
~='=_-=
• maiores e menores. «Uma tonalidade (tona/ity) - diz - é um tom (key)
11
p

• alargado» (1980, p. 52]. visto implicar o sistema dos tons vizinhos, que lhe
são associados no curso do trecho.

• A propósito da ligação entre a estrutura da frase harmónica e a estrutura

t do trecho, encontramo-nos
imperialista,
perante uma posição que se poderá qualificar de
visto que explica de maneira unívoca a forma através da f~'
(:~: "r II : I : I~ di:
• harmonia de base: «O mecanismo (harmónico) pode constituir (e constitui) o
fundamento de secções harmónicas mais amplas nas composições dos séculos
~ XVIII e XIX, especialmente nas secções do desenvolvimento das formas-sonata. ~~
; I, I, 1=_
-==_-==_, 1 IwmJ mrd;n,
~"v_

t Por outras palavras, a mais simples progressão harmónica (por exemplo, VI-lI-
-V-I) pode atingir a dimensão de secções harmónicas ou de blocos tonais, XlX, o quadro temático da época anterior mantém-se, enquanto que a infra-
pp

• construídos sobre um mesmo pattern» [Goldman 1965, p. 60]. Sem dúvida


que é necessário matizar este «pan-harmonismo». É verdade que, no século
-estrutura harmónica se desagrega. «A forma, no século XlX, é determinada
pela repetição, variação e desenvolvimento dos temas» [Rosen 1975, p. 34].
[I XVIII, existe na forma-sonata uma correspondência estreita entre o tema e os Mas isto não impede que a forma, em geral, esteja estreitamente ligada à
seus desenvolvimentos, a fraseologia e a estrutura harmónica, mas, no século
[I harmonia tonal, visto que a sucessão dos graus harmónicos de uma frase


• Jt.••i".k>" ..,'!:ii;.<:-._J
,'!" . "
.-. '---",,'1", "I.yr
__ '_c.~_., ...
,~jl'i.'

TONALlATONAL 344 345 TONAL! ATONAL

musical repousa sobre os mesmos princípios que a organização das zonas A busca da totalidade. Seja a obra tonal baseada na consonância e dis-
tonais, ao longo do trecho. Existe assim correspondência entre a micro- sonância, ou na tensão e distensão, nos dois casos é a totalidade do universo
-estrutura e a macro-estrutura: eis uma ideia que os cOP-lpositoresseriais não sonoro possível que, de cada vez, articula os contrários num todo homogéneo.
esquecerão.
É precisamente no momento em que a harmonia tonal atinge o seu ponto de
ruptura, mas em que os outros parâmetros conservam a sua lógica tonal e asse-
o estilo tonal é, portanto, o conjunto das características que cada um dos
guram ao antigo edifício a sua coerência, que Schoenberg empreende a cons-
parâmetros da substância musical deve à tonalidade. Mas, à medida que nos
trução de um novo sistema sobre as «ruínas» do antig~: a aventura dodecafó-
afastamos da eta histórica da tonalidade, ela torna-se, como o diz
nica consistirá, portanto, em reencontrar, com novos meios, os princípios que,
acertadamente Costere, uma «maneira de ser» [1961, p. 802], e sentimo-nos aos olhos dos compositores seriais, tinham permitido o sucesso da tonalidade
tentados a reportar os seus traços diferenciados a um princípio único, que
clássica. Neste sentido, não é exagerado dizer que as pesquisas
tornaria, ao mesmo tempo, a sua essência clara. Para n6s, essa «essência» é
atonais - numa acepção larga (seria melhor dizer «não tonais») - consti-
apenas a maneira como uma época percebe uma outra, mas esta percepção é tuem a última manifestação, sempre inacabada, da crise da tonalidade.
neste caso capital porque, na passagem da tonalidade à atonalidade, é
precisamente em função de uma concepção global da tonalidade que se
desenham novas linguagens musicais. Qual é ela, essa percepção global? Com 3. A atona/idade enquanto crise da tonalidade
cambiantes conforme os autores, ela parece-nos passível de ser -descrita em três
pontos, aliás estreitamente relacionados: a dialéctica da consonância e da 3.1. Princípios da tonalidade no seio da atonalidade
dissonância, a alternância tensão I distensão e a busca da totalidade.
Precisamente porque tinham como modelo a tonalidade clássica, os
Consonância Idissonância. Indo ao encontro da proposição inicial e
compositores da escola de Viena parecem tudo fazer para não cortar as suas
fundamental de Fétis, Rosen afirma: «A distância que separa qualquer acorde ligações com ela. Schoenberg e Berg tecllsaram, inclusive, o termo
do acorde de tónica é uma relação de dissonância: a sua situação na hierarquia
'atonalidade', o qUlll nunca tinha sido proposto por eles, mas sim pelos seus
indica quanto está afastado da resolução definitiva. Uma obra tonal deve-se
detractores. «O termo "atonal", - diz Berg, - chegou a designar,
iniciar designando o papel central atribuído à tõnica. de tal maneira que tudo
colectivamente, a música da qual não somente se afirmava que não possuía
o que se segue ao começo e precede o acorde final possa ser considerado como
centro harmónico (a tonalidade na acepção de Rameau), mas, igualmente,
dissonante em relação ao acorde perfeito da tónica, que é a única consonância
aquela privada de todos os outros atributos musicais como o melos, o ritmo, a
perfeita» [1975, p. 28J. Aqui, o autor estende à organização de uma peça a forma parcial ou geral; tanto que o termo refere-se, hoje em dia, a uma
distinção entre intervalos (ou acordes) consonantes e dissonantes: mais uma
música que é uma não-música» [1930, ed. 1971 p. 1311J. Berg não quer,
vez, passagem da micro-estrutura à macro-estrutura.
portanto, insistir numa ruptura entre os parâmetros tradicionais da música
tonal e o novo estilo; ao contrário, deixa bem claro que, à parte os modos
Tensão / distensão. É a contrapartida psicológica da distinção preceden- maior e menor, «todas as características que esperamos de uma música
te, já que, se os fenómenos consonantes e dissonantes podem ser descritos verdadeira e autêntica estão presentes ... Nesta música, como em qualquer
acusticamente, o juízo de consonância ou dissonância permanece eminen- outra, a melodia, a voz principal, o tema são fundamentais, porque, num
temente perceptivo. «A consonância é um som musical que não exige certo sentido, o desenrolar da música é determinado por eles» (ibid.', p.
resolução., diz Rosen [ibid., p. 24]. Mursell, um dos primeiros grandes 1312J. Schoenberg não era menos ardente ao recusar o termo. Utilizando a
psicólogos da música. propõe: «O sistema da expectativa tonal, eis aquilo a palavra 'tonal' no sentido mais genérico, assinalado no princípio (relação
que chamamos tonalidade. [1937, p. 122J. Um musicólogo canadiano, entre os sons), ele escreve: «Um trecho de música é sempre nitidamente tonal,
Graham George, baseou toda uma teoria da tonalidade na oposição pelo facto de que existe sempre um parentesco entre um som e outro e que,
claro I escuro em relação ao centro tonal, desenvolvendo implicitamente o em consequência disso, dois sons, dispostos um ao lado do outro, ou um por
quarto dos sentidos da palavra 'tom', inventariados no início deste artigo. Ele cima do outro, se encontram em condições de associação perceptíveis ... existe
atribui importância ao aspecto qualitativo do som [1970, pp. 20 e 78J, a somente uma diferença de grau entre a tonalidade de ontem e a de hoje»
partir do qual sublinha o aspecto dramático das mudanças de tonalidade: «A [1927J. Donde o conceito de «pantonalidade» proposto por Schoenberg no
seu Tratado de harmonia (Harmonielehre, 1911): «Com este termo queremo-
forma-sonata clássica não é definida por uma série de procedimentos
-nos referir às relações recíprocas dos doze sons entre si» [ibid. J. «É fácil
temáticos, mas por uma série de zonas tonais, em relação específica umas com
as outras» [ibid., p. 79]. imaginar que o conceito de tonalidade possa ser alargado até englobar todas
as combinações sonoras» libido J.
••
~

•• I( IH.\I/.\ I' 'H.\I 346 347 TONAL I ATONAL

•• A 11111'011;1 ;lIollal dos primciros Vienenses visa, portanto, recriar, numa


nova ling\lal'.nll, ;1 tolalidade inCfente à tonalidade. Porquê e como?
1':111 OlllfalllOS, primeiro yue tudo, uma justificação de ordem ontológica:
3.2. Os fantasmas da mnalidade

Para Schoenberg, este princípio é, evidentemente, a série. Mas

••
SIIIIll"nbrrg (rê nos fundamentos naturais e acústicos da tonalidade .• Na encontramo-nos perante rrês dificuldades: a) a ambiguidade da noção de
vI'ldadc, cu creio que esta relação entre todas as notas existe, não apenas por série; b) o facto de a série só organizar as alturas; c) a diferença radical das
(alISa da sua derivação dos primeiros treze harmónicos dos três sons concepções de Schoenberg e Berg, por um lado, e Webern, por outrO, quanto
f II/l(!;tmclltais ... A tonalidade não é um postulado imposto por um contexto

••
ao estatuto da série, em relação à economia de conjunto da obra.
nalUral, rna.s sim a exploração particular de condições naturais. libido J. Em Em Schoenberg, a noção de série é ambígua, porque se propõe, por si só,
Wcbern encontramos uma argumentação sensivelmente idêntica: .A
substituir dois componentes de uma obra tonal: a escala de referência e o
disson;lllcia é apenas um escalão ulterior», que se atinge quando continuamos
material temático. Assim, escreve Schoenberg: .[A sérieJ não ... deve ser
• a percorter a série dos harmónicos [1932-33J. Aliás, a ligação com a natureza
soa corno um verdadeiro Lei/moti/. ao longo do seu Caminhos para a nova
considerada uma escala, se bem que ela tenh~ sido inventada como um

• mÚJica (lPege zur neuen MUSlk): «A composição com doze sons é o resultado
substituto, que conserva algumas das vantagens lógicas e construtivas da
escala e da tonalidade. [1945]. Mas pode-se ler mais abaixo: .A série
• natural da evolução da música ao longo dos séculos. [ibid.]. Tratando-se de
mnferências pronunciadas em 1932 e 1933, sentiria Webern a necessidade de
fundamental funciona à maneira de um motivo. Eis o que explica porque há

I justificar, frente aos seus auditores, o novo estilo como a continuação de uma
tradição? De facto, ele parece ter, de uma maneira sincera, o sentimento de
que inventar uma série nova para cada peça, série essa que constitui o
primeiro pensamento criativo. É indiferente o facto de a série aparecer desde

• um desenvolvimento inelutável. logo na composição, como um tema ou uma melodia, ou de ser caracterizada
por particularidades salientes a nível de ritmo, fraseado, construção, carácter,
• Mas, na verdade, não reside aí, pelo menos para Schoenberg, a razão
essencial da referência à tonalidade. Diríamos que existe nele, subjacente,
ete.. [ibzd. J.
• uma teoria da comunicação musical. «A verdadeira razão do grande sucesso do
estilo tonal consiste no facto de tornar as coisas facilmente compreensíveis. A
Schoenberg atribui à série as funções de articulação e de unidade que ele
reconhecia à tonalidade, mas pede-lhe também que desempenhe as funções
~ do tema tonal, do qual dizia: .Todas as evoluções possíveis de um trecho
tonalzdade não é um fim em si, mas um meio de atingir um fim. [Schoenberg
musical estão em germe no seu tema: previstas, preditas, encaradas, dirigidas,
t 1925]. lnteligibilidade e tonalidade estão, em Schoenberg, indissoluvelmente
prefiguradas. [1931, p. 290]. O problema é que o tema era, evidentemente,
ligadas. As obras tonais são «legíveis» porque estão claramente articuladas:
a uma configuração melódica, mas com todos os componentes harmónicos,
elementos «que primeiro estiveram unificados podem ser em seguida isolados
rítmicos, métricos que deve à tonalidade, enquanto que a série apenas
• e separados, mediante uma aplicação diferente dos mesmos meios. [1927]. organiza as alturas: as suas características rítmicas, fraseológicas, dinâmicas só
Paralelamente, essas obras possuem uma forte unidade graças à «referência de
I todos os elementos a um pólo único, a uma nota fundamental, centro de
podem provir do estilo tonal.
1) A melodia. Vimos mais acima que Berg não reinvindicava uma
gravidade dos sons»' [ibzd.]. Em resumo: «É assim que concebo os dois papéis
particular originalidade para a música «atonal •. No que respeita à melodia,
essenciais da tonalidade. Por um lado, ela reúne, une, por outro, ela articula,
não pode ser mais claro: «Pergunta: Existe evidentemente qualquer coisa [na
separa, individualiza. As vantagens que disso resultam para o compositor e
música atonal] que nunca se ouviu antes ... Berg: Só no que diz respeito à
para os seus auditores são as seguintes: através da unidade que se estabelece harmonia. Mas é errado considerar a nova linha melódica, como tendente
por via das afinidades entre os sons, o auditor dotado de uma para uma direcção radicalmente nova» [1930, ed. 1971 pp. 1312-13J.
cerra inteligência musical não pode deixar de sentir que a obra foi concebida
Nesta passagem do seu Concerto para violino sente-se claramente, com o
como um todo. Por outro lado, a sua memória é ajudada pela função de
movimento em espelho do primeiro compasso, a repetição do fá e do fá,# e a
articulação, que aclara a maneira como os elementos estão ligados entre eles e
imitação no segundo compasso da figura melódica do primeiro, que Berg
ao todo, facilitando assim a compreensão de certos momentos fugitivos»
procura reencontrar o gesto da tonalidade romântica:
[ibid.].
As consequências, no que se refere à música pós-tonal, são evidentes:
«Apenas se pode pensar em abandonar a tonalidade se se encontrarem outros
meios satisfatórios de assegurar a coerência e a articulação» [ibid.]. «É apenas
necessário servir-se de uma nova razão lógica, suficientemente forte para
assegurar a unidade do conjunto sob um denominador comum. [1925]. I
Consciente de que as leis da harmonia permitiam ao ouvido apreender a ,
articulação da forma, Schoenberg busca então um novo princípio que 2) O ritmo: bastará observar este exemplo retirado do Quarto Quarteto

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permitirá criar uma nova forma de inteligibilidade e de tonalidade. para cordas de Schoenberg:
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Alk~1l1 fIlllho C'lU-r,l:lIl'

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3) A fraseologia. Não disse o próprio Weber~ c::lue « ~I\~
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Schoenberg repousa sobre as formas do período e da frG3.Se de l)i\ \11"

[1932-33]? Quando Schoenberg se interessa pelas e~truJtu.r"_~il'


1
'~/,6,\':loli • ~ ';'1.

procurando exemplos em Brahms [cf. 1947], fá-Io ma1~ p.a.r<\ ~e H\


tradição estabelecida, do que para mostrar em que é qtae essas ir \\;':h lJll\11

anunciam a modernidade. '\\',;::1. W,VI P1iil::\\'.

4) A harmonia. É evidentemente em relação à haa.rrrr:10tlÍ'I '1;I'i'lll~r


oldflllll\li\'IJII~
atonalidade se permitiu libertar mais radicalmente. Ma3 e~t:a.:rí'l~,\lllfQPdb~'1 ,lii!'''\II!II~I'

pensás~emos ~ue os Vien~nses


propÓSito: assmala-se a esqueceram,
multas vezes de proprositoO
que Berg, fazendo 1:)1.\~S'III,I\~.I~
do . dOd~c~1\ill U lU!> ".
ol·s f111:\~,

princípio pantonal, procurou englobar a tonalidade n: ;1 nnGsica'\:'II\li!k_ . Ijl~


.. " d b d .' .1'1':!·I~ao.oIIJi
função disso organiza as suas seCles e ase, e m:u-nel-1ra ~ Y'I,:'I':II"
b' - I " . S 'I' d Q "i."'II'lte .. Im

com maçoes 1armorllcas tonais. amson, numa ana Ise. o Uq~. 11,'II"pqlb
:dl~
de Berg, mostra bem como o segundo-, andamentc::> f1l:~rn C.\I",\\.
",,\,'I'''=eOOI!& 1'
como centro tonal, com uma afirmaçao de re mt=noor n~ :il:,\j:;~ d . 001
p .. 159]' I ~J
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Com p.iS."O I 4 23 34 59 61 "1 \!l]eljllbll~


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Perle, pelo seu lado, evidencia o facto de a série da Suite lírica (Lynsche Suite,
o_~
#:&--0-
- I~
\
7 1925-26) ser organizada de maneira a produzir acordes de quinta e de sétima
[1977, p. 90]:
{ I I I I I I ,---n-'-1
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Podemos divertir-nos a substituir as alturas da série por uma melodia e uma


harmonia tonais, sem mudar o ritmo: Por acaso: o ouvido do auditor moderno está sempre aculturado
tonalmente. É, portanto, inevitável que, em certos casos, ele estabeleça entre
duas alturas uma relação tonal, mesmo se o compositor a não quis.
Sentimento tonal flutuante, e mais ou menos forte, pois que variará com o
comportamento perceptivo próprio de cada auditor. Samson [1977. p. 156]
demonstra que, m~gmo tlUt11l'l obra tão afMtada da tonalidade éomo
{ Contrapontos (Kontrapunkte, 1952) de Stockhausen, se pode ouvir uma
relação napolitana entre o si natural dos compassos 515-20 e o si bemol do
3) A fraseologia. Não disse o próprio Webern que «um tema de compasso final.
Schoenberg repousa sobre as formas do período e da frase de oito compassos" 5) A forma. Lembrámos que a forma-sonata tinha estado particular-
[1932-33]? Quando Schoenberg se interessa pelas estruturas assimétricas, mente ligada ao jogo das tonalidades e das funções harmónicas, mas é
procurando exemplos em Brahms [cf. 1947], fá-Io mais para se inserir numa também verdade que, sobretudo no século XIX, a estrutura temática
tradição estabelecida, do que para mostrar em que é que essas irregularidades representa uma componente essencial, Uma vez totalmente destruída a
anunciam a modernidade. componente harmônica tonal, pode restar um quadro formal no qual é
4) A harmonia. É evidentemente em relação à harmonia clássica que a vertida a substância musical não-tonal. Os exemplos de forma-sonata não
atonalidade se permitiu libertar mais radicalmente. Mas estaríamos errados se faltam entre os Vienenses: basta pensar no op. 16, n. o 1 de Schoenberg ou na
pensássemos que os Vienenses a esqueceram, de propósito ou por acaso. De sonata da Lulu de Berg,
propósito: assinala-se muitas vezes que Berg, fazendo do dodecafonismo um Equivale isto a dizer que a música não-tonal não consegue criar formas
princípio pantanal, procurou englobar a tonalidade na música serial, e em sui genens? É, sem dúvida, necessário distinguir entre dois sentidos da palavra
função disso organiza as suas séries de base, de maneira a engendrarem 'forma': a) a organização de uma peça, segundo um dado agrupamento de
combinações harmónicas tonais. Samson, numa análise do Quarteto de cordas secções identificáveis - é a «grande forma" no sentido clássico; b) o resultado
do tratamento dos motivos que estão na base da peça. Assim, existem em
de Berg, mostra bem como o segundo andamento tem claramente ré
Schoenberg dois tipos de forma: 1) a forma temática: «Seguimos a peça
como centro tonal, com uma afirmação de ré menor no final [1977,
guiando-nos quase exclusivamente pela identificação dos motivos e das suas
p. 159]:
transformações" [Rosen 1975, p. 38]; 2) a forma como resultado desse
desenvolvimento. O problema dos compositores não-tonais foi o «de
, , 59
64,--..
344 I 23
C.omp<l\.'''o
' --+
---4:--+ , , 91 encontrar um método de organização formal e de progressão no tempo, que
~ pudesse substituir o temático" [Samson 1977, p. 197].
Em 1965, durante os famosos cursos de composição de Darmstadt, foi
--+
organizado um colóquio sobre forma [Thomas 1966]. As intervenções dos
r - compositores e musicólogos (Adorno, Boulez, Brown, Dahlhaus, Hauben-
#- .. stock-Ramati, Kagel, Ligeti) testemunhavam um certo mal-estar em relaçãO' a
,cJ

iill',
t
I
TONAL! ATONAL 350 351 TONAL! ATONAL
••

I urna noção cujo semantismo está tão fortemente enraizado na tradição clássica
I e romântica. Boulez [1966]. num escrito humorístico. rapsódico e irónico,
•• dava mesmo a entender que a questão não tinha interesse. Dahlhaus, como

• musicólogo atento aos desenvolvimentos da música contemporânea, insistiu


na necessidade de não reencontrar o antigo conceito de forma através das
I novas manifestações musicais [ibid., pp. 71-75]. As .-formas» da música pós-

I -tonal são sobretudo processos: a «forma» muda de uma obra para outra,
resulta do material de base; já não é possível identificar regularidades estrutu- --'
• rais ao nível das grandes secções que atravessam um período razoavelmente
longo da história da música .
••
Apesar dos vestígios da harmonia tonal e da forma clássica, a atonalidade
li via-se privada de um sistema de organização geral de todos os parâmetros;
I a série destruiu a harmonia tonal mas, mesmo abolindo a distinção entre
o horizontal e o vertical (sobretudo em Webern), não organiza senão as
.-Todo o pnimeiro membro da frase (a) constitui já urna variação - e que
variação! - do primeiro intervalo de quarta. Este aparecerá ainda várias vezes
I alturas. na pequena frase descendente que se lhe segue (b, c, d); transformar-se-á.
I conforme as situações harmónicas, em intervalos sempre diferentes» [1920.

I 3.3. Em busca da totalidade perdida


trad. francesa pp. 54-55]. Berg não olha verdadeiramente para o terna da
peça, este é já visto como o desenvolvimento de um intervalo fundamental.
Webern, por seu lado, via na «Arte da Fuga um grosso volume de ldeias
••
musicais, cujo conteúdo deriva de uma só ideia! Desenvolver o todo a partir
• A pesquisa atonal é essencialmente a manifestação da crise da
tonalidade, dissemos mais acima. Mostrámos também quanto os Vienenses
de uma só ideia principal! Esta é a mais forte coerência» [1932- 33 J. A ideia da
• tinham sido sensíveis ao princípio de unidade presente na tonalidade. Mesmo
geração do múltiplo a partir do único andava realmente no ar, no período
pós-româmico, e Webern não hesitava em encontrar-lhe a origem na
•• se, em muitos pontos, Berg ainda é tributário dos gestos tonais, a sua
Metamorfole da.r plantas (Versuch, die Metamorphose der Pflanzen zu
insistência em construir uma obra a partir de uma célula mínima é típica
• dessa busca da totalidade. Sabemos que as suas duas óperas são ambas
erkliiren, 1190) de Goethe [ibid. J. Podemos aproximar desta maneira de ver o
método de análise de Réti, que deriva as sonatas de Beethoven de alguns
• construídas a partir da sua série. «Que seja possível confiar a um ritmo, -
intervalos fundamentais. Assim, para a Patética, ele propõe as seguintes
escreve a Schoenberg, - um papel tão importante do ponto de vista
• construtivo, demonstrei-o, pela primeira vez, numa cena da minha ópera
células primitivas



Wozzeck» [1925 J. Como muitas vezes os compositores lêem os seus próprios
princípios através das obras de outros, é interessante sublinhar a sua maneira
de analisar o Sonho de Schumann:
o
Vtl
t.J .•
L
v-
e
..
~-c----~
mediante as quais analisa desta maneira a frase inicial:
Ia
Célula Ulula aluI••
• CtLulJlprim:1ria primiri:J. primiJu Célul:.t pnmiri:.l prlm.óÍ.na



~J'~~j)~,~
--
aluI. alula Ctlul.
a prim<iría primária primária MOIivo (OndU~lvo
--, ~ r---=o r----"l' ,


~~Il r tJ ~~II::::4I±::)~ =
Ia
Em Beethoyen, o tema, enquanto grande unidade, está sempre presente, mas
• os Vienenscs esforçam-se por encontrar a célula geradora. Do ponto de vista
• composicional, que não analítico, a perspectiva beerhoveniana é invertida; a

•• ~itl 'J , .... ", ,", .•• ' ~. ," 'J , '
I. 'fJt\11 Ali )Nt\1.
352 353
TONAL! ATONAL

',I 11{'l'"d('~('1 vir de tema quando a textuta, o fraseado ou os silêncios lhe


."rdrlC"1I1nS(' car:lctcr, como a série da Suite lírica, por exemplo: Boulez, em matéria de composição serial: a recusa da antiga «retórica»,
presente em Schoenberg e Berg, a passagem da micro-estrutura (a série e os
seus motivos constitutivos) à macro-estrutura (a organização da totalidade da
~!~~~~~ 110 •••• 1 ...••.•.•.••...
peça), a concepção da composição a pattir do material. Trinta anos mais
tarde, é ainda desta maneira que Boulez concebe a relação entre «material e
111,1',
(; flllldamcutalmente a célula - e ao invés do intervalo - que serve de invenção.: no seminário levado a cabo em 1980 pelo Ircam (Institut de
1II,IlIi, pala o desenvolvimento, como se pode ver na Sonata para Piano de Recherche et de Coordination Acoustique/Musicale), subordinado a este
II",~~,11111:1 obra atonaJ não dodecafónica: título (disponível em cassette [Boulez 1981 J), ele compara as estratégias
MlI11/I.ArAlllrlllf ITln\'ld composicionais de Oebussy (Etudes pour les quartes) e de Varese (lntégra/es).
Neste último, Boulez constata que a composição resulta da justaposição e da
sobreposição de um material simples e quase imutável. Em Oebussy, pelo
contrário, é o conjunto da peça que parece derivar da quarta inicial. E,
exactamente como Webern. Boulez volta ao exemplo de Bach. no qual vê um
caso de «relação uterina entre a própria escrita e a arquitectura». «Aqui, o
"tema" engendra todas as figuras sonoras do seu desenvolvimento e a sua
própria arquitectura, emanando esta daquelas» [1951, p. 23]. Situando-se na
filiação serial, levando às suas extremas consequências um princípio de
composição, ele próprio derivado de uma reflexão sobre a tonalidade, Boulez
cortava as últimas amarras com esta. Esperava assim ter encontrado o sistema
coerente do qual faria nascer um tlOVO universo musical i global e unificado.

4. O fim da música?
Piú vcloce dei tempo I
12
3 ------=:----
Mas O advento do novo sistema total não se deu. Sem dúvida porque o
. --.Jc.!dm
1/ ~
> --I~--'--- grau de abstracção que devia garantir a coerência da obra a todos os níveis era
~ tal, que o sistema de relações instaurado já não era funcionalmente
I~·#
~IJ~!-~ .~----------
~ij-=-:':=-
perceptível.
A música moderna buscou várias soluções para a crise da tonalidade. É de
~~-f
,/, ~-r p# ••.
~
notar que ela sempre o fez dando uma importância nova a um parâmetro
anteriormente negligenciado. A música concreta, que rapidamente se tornou
«e1ectro-acústica» e, hoje em dia, «acusmática», deslocou a fronteira entre som
r~110 clIlanto Webern aquele que vai mais longe nesta busca de unidade: e ruído e integrou - retomando a expresssão de Schaeffer _ uma parte
.1\ ((I('r{'ueia, a unidade, é-me garantida pela série que está na base do todo. considerável do sonoro no musical, mas sem estabelecer um sistema de
Snllprc id{'lIlica, aparece sob formas sempre diversas» [ibid.]. E Boulez [1951] composição. O teatro musical, ilustrado principalmente por Kagel, joga com
• (', ~('m dÚvida, o primeiro a ter caracterizado a sua originalidade em relação as variáveis da peiformance musical - concertista e instrumento _

• :IO~~(,1IS predecessores: «Em Webern, A EVIDÉNCIA SONORA é alcançada pelo


('lIl',clldrarnellto da estrutura a partir do material. Referimo-nos ao facto de a
tomando, com frequência, como tema, o esgotamento da música, o que é,
diz-se, um sinal de decadência. A new tonality dos compositores americanos
t ;ll'luitntura da obra derivar directamente da ordenação da série. Enquanto
lIC1g (' Sehoenberg limitam, de certa maneira, o papel da escrita serial ao
adopta a simplicidade como princípio, reinvindica o hedonismo como valor e

t 1'1;11111 scmântico da linguagem - a invenção de elementos que serão


utiliza a repetição tonal de uma maneira que nem mesmo a tonalidade tinha
ousado; não podemos deixar de pensar numa regressão. A politonalidade dos
((IllIhillados mediante uma retórica não serial -, em Webern, o papel dessa
t ('~,rila abrange o plano da própria retórica. É com Webern, portanto, que
anos 30 era demasiado simplista para oferecer um substituto para a
illlllllJ1('rn na sensibilidade adquirida os primeiros elementos de uma forma tonalidade; e não são propriamente geniais os compositores que exploraram o
~ domínio dos micro-intervalos ...
.1(' J1clISamellto musical irredutível aos esquemas fundamentais dos universos
• SOIlOroSque o precederam» (pp. 17-18). Esta interpretação que Boulez faz de Será que chegámos a um círculo vicioso? É ainda demasiado cedo para
saber se o lrcam de Boulez - a mais gigantesca operação de salvamento de
t \Xl('h(,[1I condcllsa também nalgumas linhas o essencial da concepção de
uma arte contemporânea que alguma vez um Estado pôs à disposição de um

-.,..
~
TONAl/ ATONAL 354 355 TONAL! ATONAI

compositor - conseguirá, consolidando o encontro entre a música e a Choron, A.-E.


ciência, abrir a nova via. 1810Oiclionnaire hiIlonque der mUlicienl, miIlu ou I1ml1leurl. mar/I ou viVl1nJ,I"" r.lr
d'un lOmmaire de /'hiIloire de Ia mu1ique, VaJade, PaÚs.
E se fosse o fim? Se a música, enquanto arte ocidental, tivesse esgotado Costere, E.
as possibilidades contidas nos seus princípios de partida? Intelectualmente, a 1961 eTonaJité>. in Encyciopldie de /11 MUllque, vol m, Fasquelle, Paris. pp. 802
ideia é escandalosa: não existe povo sem música, sempre houve e sempre Da.hJhaus. C.
haverá música. Correcto, enquanto facto antropológico. Mas enquanto forma 1980 eTonaJily., in S. Sadie (org.). The New Grove Dic/ÚJnl1ryof MUJleI1nd MumIJr", ""I
renovada de expressão? Os géneros musicais não são eternos, e quase todos XIX. Maemillan, London, pp. H-~~.
O'lndy, V.
sabem, mesmo que não o ousem declarar alto e bom som, que Lulu foi a
1903 CourJ de compoli/ion mUlicale (1807-98), vol. I. Ourand, Paris 19121.
última ópera. Ao fim e ao cabo, não seria a primeira vez que uma forma de Fétis, F..J.
arte, no Ocidente, vive e morre. A arte do mosaico, em Itália, floresceu entre 1844 Trazlé complel de Ia /héone el de Ia prl1/lque de /'hl1rmome conlml1n/ 111doam" ,Ir
os séculos IX e XII e depois, mais nada. Quatro séculos! Mais ou menos o lalcimce e/ de /'11r/. Schlesinger, Paris 18442; ed. Brandus, Paris 187~II
Grorge, G.
espaço de tempo que separa Monteverdi de Boulez ...
1970 Tonality I1nd Mu1ical SlrucltJre. Praeger, New York.
Arriscamos estas afirmações desejando, ao mesmo tempo, estar errados. Goldman, R. F.
Se for este o caso, poder-se-á sempre interpretá-Ias mais tarde, como o 196~ Harmony in Wel/em Mune. Norton, New York.
resultado do pessimismo do autor, ou então, como um sinal dos tempos: em Helmholrz. H. L. F. von
ambos os casos, como uma reacção perante o «apogeu do vazio •. Se tivermos 1863 Ore Lehre von den Tonempfimlungm alI phy1iologÚche Grund/l1ge für d1e 71"",,,
der Muni!.. Vieweg, Braunschweíg 19136.
razão, será então necessário consagrar a «apoteose de Rameau. e tentar
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compreender porquê, durante um breve período da história humana, foi 1937 The Plychology of Mu1ic, Norron, Mew York.
possível elaborar um sistema musical no qual todos os componentes Nattiez. J. -J .
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PLANO DA OBRA


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I li "'I:f I./U //"/(1/ ,lfll".I:. 11I1ivet,~1Edilion, Wien 1960. Volume
Volume
Volume
1
2
3
Memória -História
Linguagem -Enunciação
Artes -Tonal / atonal
Volume 4 Local/ global


••
I I 1'"01,, ,lil<l '" 'I"r 11 "., dr 1I111'1c'~'1ui examinado recupet~ todos os componentes dos
lilfl t d. IIlflll "IIIH'" Illll'\it ;.ai" (rf. lunl/ruído,

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l'Hala, harmonia. melodia. rítmica Ifnéltica) ,
"'Mo"I •• "dl '" ".'r",od, o"'rnle (If. JtJ/fml1). Atinge-se assim uma posição merodol6gica (cf.
o tOIlIC'lido s~rn;tntico (cf. Jemântica) das categorias
IA (ef.
Volume
Volume
Volume
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Anthropos -Homem
Orgânico / inorgânico - Evolução
Modo de produção-Desenvolvimento/subdesenvolvimento
h~i"N'II"'lillll"J:l""dl""I) 1lIIItl:.unrlll:.lis da nlúsira pode ser articulado (cf. combinatória). Região
.110."" " 'I'" o .1,,111, I" ,I rllllr '"l1alidade e ~ton~lidade ultrapassa o âmbito da música tonal Volume 9 Matéria -Universo

•I Ji~U;lIlfllll'h"t'lIlln
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Volume
Volume
Volume
10
11
12
Dialéctica
Oral/escrito -Argumentação
Mythos / logos - Sagrado / profano

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'-11"'- .""1 r 1!lIdo
1110 t talllO ~qude que existe tonal e atonal. mas sobretudo o limiar Volume
Volume
13
14
Lógica -Combinatória
Estado - Guerra
• Volume 15 Cálculo -Probabilidade

• Volume
Volume
16
17
Homo -Domesticação - Cultura material
Literatura -Texto
I Volume
Volume
18
19
Natureza -Esotérico / exotérico

• Volume 20
Organismo -Hereditariedade
Parentesco

,,
Volume 21 Método -Teoria/modelo
Volume 22 Política -Tolerância / intolerância
Volume 23 Inconsciente -Normal / anormal
Volume 24 Física
Volume 25 Criatividade -Visão
t Volume 26 Sistema
I Volume
Volume
27
28
Cérebro - Máquina
Produção / distribuição -Excedente
Volume 29 Tempo / temporalidade
Volume 30 Religião -Rito
Volume 31 Signo
Volume 32 Soma /psiche -Corpo
Volume 33 Explicação
Volume 34 Comunicação -Cognição
Volume 35 Estruturas matemáticas - Geometria e topologia
t Volume 36 Vida/ morte -Tradições -Gerações
Volume 37 Conceito -Filosofia / filosofias
Volume 38 Capital
Volume 39 Sociedade -Civilização
Volume 40 Direito - Classes
Volume 41 Conhecimento

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