A transposição de um texto em prosa para o teatro pode seguir caminhos
diversos na sua constituição: o texto narrativo pode ser um dispositivo para se pensar uma certa situação, a recriação da trama ou ate mesmo a transposição fiel do texto para o palco. O diretor de Comunidade, espetáculo livremente inspirado no livro de Camus, O Estrangeiro, optou pela fidelidade ao texto. O gênero dramático tem sua base na ação, é isso é o que menos se encontra no espetáculo. A grande riqueza de Comunidade está na palavra, naquilo que é dito, mas não é exibido. Se por um lado ele é abundante no discurso é escasso em teatralidade. Nessa performance solo, Ismael Canappele rompe com um cânone do drama: a ação. O que se tem em cena é a fluição do relato existencial de um m. Meursault contemporâneo. A proposta de dialogismo com o espectador ancora-se em outra perspectiva: ao ouvir o relato da personagem, que é feito de maneira linear, o espectador precisa recorrer à representação imagética que completa a dramaturgia discursiva. A opção Canappele pelo não “mínimo de movimento”, conforme transcrito no programa da peça, é uma forma de dramaturgia que rompe com o tradicional e em alguma medida, esse pode ser o ponto critico do espetáculo e nesse sentido, as exibições de vídeos e os recursos midiáticos amezinham essa percepção a dar uma certa mobilidade à peça. O que eclode no espetáculo, na minha percepção, é o brilhante texto de Camus, que serve de interface para a narrativa das experiências pessoais do ator/diretor. Como que se Ismael encontrasse nas palavras do autor argelino a sua outra face do espelho, não sendo preciso criar o seu relato vivencial, afinal, a experiência de ser um estrangeiro fora e dentro de sua pátria, de si mesmo já fora criada por Camus. Muitos elementos subjetivos da personagem camoniana estão ali a indiferença, a incapacidade de estabelecer vínculos e afetos com o outro, o narcisismo expresso através da apatia dele com as demais personagens, e porque não dizer com o espectador? Sim! Essa experiência narcísica ultrapassa a quarta parede e chega ao espectador em um grand finale: ao término do espetáculo fecham-se as cortinas e Ismael não retorna ao palco. Uma espécie de suspensão do gozo final da relação entre ator espectador que são os aplausos. A para aplausos a plateia é silenciada. Fica um “não dito”, estabelece- se, uma cisão, um hiato na relação estabelecida até então com o espectador.