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ESTUDOS
CLÁSSICOS
II
HISTÓRIA, LITERATURA E ARQ UEOLOGIA
GABRIELE C ORNELLI
G ILMÁRIO G UERREIRO DA C OSTA
UNESCO | CÁTEDRA UNESCO ARCHAI - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA | IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | ANNABLUME
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Brasília, 2013
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Esclarecimento
A UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as
suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se nesta publicação,
os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo
do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao
gênero feminino.
Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas
opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As
indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer
opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de
suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
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Gabriele Cornelli
Gilmário Guerreiro da Costa
(Orgs.)
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Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC)
em cooperação com a UNESCO.
Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora.
Estudos clássicos II: história, literatura e arqueologia / organizado por Gabriele Cornelli
e Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai, Annablume
Editora; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
190p. – (Coleção filosofia e tradição; 2).
Incl. Bibl.
ISBN: 978-85-7652-183-9
Gabriele Cornelli
Editor da coleção filosofia e tradição
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Sumário
Apresentação ................................................................................................................9
Apresentação
1. Universidade de Brasília, coordenador da Cátedra UNESCO Archai e Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos.
2. Universidade Católica de Brasília e pós-doutorando na Universidade de Brasília (Cátedra UNESCO Archai).
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de caminhos experimentados por esses textos. Isso posto, a autora enfrentará tais
dificuldades mediante estudo, tanto quanto possível, da escrita de mulheres, e
organizará o seu trabalho acerca das representações do amor em três grupos: amor
entre homem e mulher, entre mulheres e entre homens.
Na literatura grega, a tonalidade erótica no amor entre homem e mulher sobressai
antes ou fora do casamento. Neste, tende a esmaecer-se, tornando-se em afeto, o
que implica, no enfraquecimento do desejo, perder os traços do amor, por lhe ser
agora escassa a visita de Eros. Em acurada análise de passagens dos poemas
homéricos, a autora evidencia o quanto o arrebatamento erótico no matrimônio
ocorre em situações excepcionais. O amor entre mulheres, por sua vez, pelas
evidências de que dispomos no momento, parece ter sido prática menos assente
culturalmente, se comparada ao homoerotismo masculino. De qualquer forma, sua
elaboração artística encontra forma rica e delicada nos poemas de Safo. Somos
conduzidos, assim, da poesia épica para a lírica, apresentados ao quadro rico e
variegado da literatura grega. Por fim, no que se refere ao amor entre homens, a
autora sublinha tratar-se de prática culturalmente estabelecida na época, o que o
atestaria todo um quadro literário e iconográfico. Em uma sociedade ausente de
instituições de formação educacional, recorria-se com frequência aos symposia, nos
quais os jovens se inseriam em espaço pedagógico mais aprimorado, o que incluía
a iniciação erótica. O quadro formativo era amplo, desde a poesia à partilha de
valores éticos. No intercurso erótico, evidenciava-se a relação entre um homem
maduro e outro mais jovem, que se notabilizava pelo tom afetivo, raiz de uma
fidelidade transposta futuramente para a cena política. No âmbito literário, aparece
especialmente na prosa do século V a.C., como por exemplo, em Tucídides, a cuja
análise a autora dedica considerável espaço.
O segundo texto da profa. Sandra ocupa-se do tema da morte, cuja compreensão
acha-se intimamente ligada à questão da vingança e da honra, articulada por via
diferente no caso da morte individual e da coletiva. No tocante à primeira, intentou-
se desde a Lei de Drácon, em 621 a.C., impor limites consistentes à prática do
homicídio enquanto resgate da honra. É um horizonte sobremodo fértil para a
análise do tema conforme disposto nos poemas homéricos, sobretudo em Aquiles,
premido que se sentia, na “Ilíada”, por vingar a morte do amigo, Pátroclo. Promete
manter um propósito incoercível de reconquistar para si e para o amigo a honra
que o assassínio cometido por Heitor lhes roubara. Em belo diálogo com Vernant,
a autora sustenta a necessidade da morte do herói, uma vez que a sua honra,
medida da sua vida, não mais se pôde resgatar. A proximidade de som e sentido
entre honra (timé) e vingança (timoría) sugere o fato de se buscar reparação,
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Capítulo I
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Bem observa Simon Goldhill que, quando o Ocidente se inquieta com questões que
dizem respeito ao amor e à sexualidade, sobretudo dos homens, a Grécia Antiga
emerge ou como um fantasma da depravação ultrajante ou como o paraíso perdido
da liberdade sexual (GOLDHILL, 2004, p. 66) – visões obviamente simplificadoras
do passado. Assim, ao abordarmos esse assunto, é necessário, em primeiro lugar,
adotarmos a perspectiva do antropólogo que se esforça conscientemente para
despir-se de seus preconceitos ao estudar determinada cultura. Só assim poderemos
entender um pouco da Grécia Antiga quanto a dois aspectos que os gregos
consideravam tão fundamentais para a continuidade da vida: amor e sexo. Esse
par assim se coloca porque, diferentemente de concepções amorosas que hoje
em dia buscam separá-los na experiência humana3 – concepções cujos traços
podem também ser rastreados entre os gregos antigos –, amor e sexo constituíam
um par inextrincável para a maior parte dos gregos dos Períodos Arcaico e Clássico.
A potência divina de Afrodite está em estimular a geração da vida, para a qual
a prática do sexo é condição sine qua non no universo humano, enquanto Eros
representa as atribulações emocionais que o desejo físico, para a continuação da
espécie, pode provocar. Portanto, Afrodite e Eros não existem para representar um
amor puramente espiritual.
Há que se considerar ainda, à guisa de introdução, que a maioria das evidências
literárias das representações do amor são produzidas por homens, poetas ou prosa-
dores, fato que, por si só, ilustra a preponderância de uma certa visão masculina
sobre o tema. O fato de nos terem chegado representações masculinas não significa,
entretanto, que vozes femininas tenham sido de todo caladas no que diz respeito
à expressão do amor. Não é somente Safo que nos deixa seu registro excepcional,
não menos marcante, na história da literatura grega, mas também Corina, Erina e
Nossis, e outras poetisas ainda pouco conhecidas, cujos fragmentos têm sido
recentemente estudados (GREENE, 2005). Devido à importância e extensão do corpus
poético da poetisa de Lesbos, se comparada às outras, nos restringiremos à sua
valiosa contribuição quando abordarmos a representação do amor por voz feminina.
Para tratar do tema, distinguimos três tipos de representações do amor que se
encontram nos textos gregos e que, de resto, são as que mais povoam nosso
imaginário e despertam nossa curiosidade sobre o universo cultural da Grécia Antiga
quanto a esse aspecto: o amor entre homem e mulher, o amor entre mulheres e o
amor entre homens.
3. Edgar Morin fala da “verdadeira disjunção entre o amor vivido como mito e como desejo” (MORIN, 2011, p. 23).
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4. As traduções da “Ilíada” utilizadas neste texto são de Frederico Lourenço (ver bibliografia).
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relações extraconjugais, todas dignas de menção por lhe terem provocado desejo
incomparável até então, das quais nascera uma prole não menos digna de registro.
Pois é fora do matrimônio que o Olímpio está habituado a ser tocado por Eros. Com
efeito, no presente instante, é graças à cinta especial de Afrodite, que a auxilia, que
Hera consegue abalar eroticamente o ímpeto do marido. Nem ela própria, como
esposa, havia anteriormente despertado tamanho desejo – diz Zeus –, salvo em
seus primeiros encontros. De fato, a situação coloca-se de tal modo em nível de
exceção, que o narrador homérico buscará a semelhança desse encontro entre
marido e mulher na primeira vez em que Hera e Zeus fizeram amor:
Assim que a viu, o amor [eros] envolveu-lhe o espírito
robusto,
tal como quando primeiro fizeram amor [philoteti],
deitados na cama, às ocultas dos seus progenitores.
(Ilíada, XIV, 294-297)
Por outro lado, o decoro e o respeito que o matrimônio devia manter entre cônjuges,
à distância dos arroubos eróticos, manifesta-se na resposta de Hera a Zeus:
Se o que tu queres agora é deitar-te em amor
nos píncaros do Ida, isso estaria à vista de todos!
Como seria se um dos deuses que são para sempre
nos visse a dormir e depois fosse contar a todos os deuses?
Pela minha parte já não poderia regressar à tua casa,
depois de me levantar do leito, pois isso seria uma vergonha.
Mas se é essa a tua vontade e se é agradável ao teu
coração,
tens um tálamo, que te construiu o teu próprio filho,
Hefesto, tendo ajustado às ombreiras portas robustas.
Vamos então deitar-nos lá, visto que o leito é o teu desejo.
(Ilíada, XIV, 330-340)
5. Em toda a poesia arcaica, termos que se referem a leito são usados em referências metafóricas ao contato sexual entre amantes
(CALAME, 1996, p. 47).
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É preciso que uma nuvem, dourada como Afrodite, envolva o cume do monte
Ida para que a esposa possa deitar-se5 em amor com o marido fora do tálamo –
aposento onde a conjunção carnal e erótica entre cônjuges é apropriada. Com essa
solução, arremata Homero, destacando o estatuto insólito da parceira sexual em
tais circunstâncias:
Falou; e nos seus braços tomou a esposa [parakoitin] o filho de
Crono.
(Ilíada, XIV, 346)
Com essas considerações, não se quer dizer que o amor entre homem e mulher,
porém, se reduzisse a um intercurso sexual de hábito, sem desejo e destituído de
afeto. Eros (amor-desejo) e philotes (afeto) aparecem associados, embora essa
associação se destaque mais frequentemente na representação das relações
homoeróticas masculinas da poesia mélica, em que a confiança entre homens, em
relações eróticas, se transfere para a vida política (CALAME, 1996, p. 44-45). É que
philotes marca um traço de confiança, de afetuosidade, que pode acompanhar o
arrebatamento erótico, embora não lhe seja necessário. Dada a composição
coetânea da poesia épica e lírica, não é de nos surpreender que, na citação do
narrador homérico acima, em que se descreve o súbito efeito de Hera aos olhos de Zeus,
este seja tomado de eros e philotes simultaneamente, termos que o tradutor traduziu
por amor em português.
Outro exemplo homérico do caráter afetuoso que prepondera no matrimônio, pouco
povoado de expressões de desejo erótico entre homem e mulher, é encontrado no
último encontro de Heitor e Andrômaca. Diz Andrômaca ao esposo:
Heitor, tu para mim és pai e excelsa mãe; és irmão
e és para mim o vigoroso companheiro do meu leito.
(Ilíada, VI, 429-430)
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Eis a voz do homem envelhecido, de condições físicas precárias, diante das virgens
de voz adocicada pelo charme de Eros8. Seu desejo é poder constituir um par
amoroso à semelhança do que narra o mito de Alcíone e Ceíce, cuja felicidade os
fazia comparar-se a Hera e Zeus, irritando o casal olímpico de tal forma, que os
transformou em pássaros, o alcatraz e a alcíone, os quais representam no poema a
leveza do enlace repleto de energia e vigor para desfrutar do dulcíssimo amor. É
importante lembrar que a virgindade entre os gregos não é vista como sinônimo
de castidade, como na tradição judaico-cristã, mas apenas como uma fase de
intensa sensualidade das jovens, entre a infância e a idade adulta (RAGUSA, 2010,
p. 165). Assim, não há elemento algum de perversão, no sentido mais comum do
termo, no desejo do homem mais velho pela virgem.
6. Fragmento n. 26 da edição de Page (= P): D.L. Page (ed.) Poetae melici Graeci. Oxford: Clarendon Press, 1962 (FERRATÉ, 2000,
p. 172).
7. Tradução minha.
8. É comum na poesia arcaica a associação de Eros com a doçura, muitas vezes evocando mel e abelhas
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nem ] grutas
] danças
] ou sons9
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O poema apresenta a expressão do amor impedido, nesse caso pela partida de uma
das envolvidas na relação amorosa. Não há dúvida de que são duas vozes femininas
cujo discurso direto se reproduz no poema, e, apesar do vocativo Safo, não tem
relevância a discussão biografista quanto a se tratar de expressão de experiência
pessoal da própria poetisa ou de sua persona poética. Nisso, são acertadas, no
geral, as considerações de Ragusa (2005, p. 303). Por outro lado, o poema descreve
a dor da ausência da mulher amada sentida por outra mulher, que a recorda a partir
de experiências compartilhadas, descritas por uma linguagem povoada de imagens
eróticas. Gentilli oferece uma interessante interpretação da existência de relações
homoeróticas em Lesbos, que poderia acomodar uma possível leitura do poema
acima no quadro do homoerotismo feminino. Havia em Lesbos, assim como em
Esparta, grupos de mulheres que partilhavam de rituais religiosos comuns e relações
pessoais, marcadas por fortes identidades, afetos e rivalidades; no interior desses
grupos, as relações entre mulheres eram variáveis, podendo ter o caráter oficial de
vínculo afetivo de compromisso ou ainda compreender um breve período de
iniciação de jovens à vida adulta, anterior ao casamento com homens (GENTILI,
1990, p. 72 e ss.)10. Talvez o poema acima represente uma situação desse tipo, em
que a jovem amada se despede da outra com a qual compartilhara momentos de
intimidade no grupo (“Sabe o que nos prendia a ti”), encaminhando-se agora para
o matrimônio (“eu me vou contra a vontade”). Se, por um lado, os poemas de Safo
impõem certa cautela a leituras que neles privilegiem somente o homoerotismo
feminino (RAGUSA, 2005), por outro lado tais conjecturas, quando possíveis, como
no caso do poema acima, não devem ser ignoradas, tendo em vista alguns
testemunhos antigos e a pesquisa de tantos outros sérios estudiosos do assunto
nas últimas décadas.
10. Segundo West, com relação ao grupo de Safo, a visão mais aceita atualmente é a de que jovens mulheres fossem confiadas a seu
grupo para instrução em música e talvez em leitura e escrita (WEST, 1994, p. xiii).
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Bibliografia
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VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1996.
WEST, M. L. (Ed.). Greek lyric poetry. Oxford: Oxford University Press, 1993.
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Capítulo II
A vingança e a honra, dois conceitos que Aristóteles elenca entre aqueles funda-
mentais para que o orador entenda como o prazer deve ser considerado como
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11. Cf. Lísias, Oração fúnebre, 17-23; Ésquines, Contra Timarco, I.5.
12. A Lei de Drácon dispõe sobre homicídio intencional e não intencional. O conhecimento que se tem dos termos da lei remete à
sua republicação pelos atenienses em 408/9 a.C., em que aparecem disposições somente sobre o homicício não intencional,
que deve ser punido com exílio ou recompensa monetária. Há várias conjecturas sobre o tratamento dado, na Lei de Drácon, ao
homicídio intencional, sobretudo em vista de a lei punir com morte outros crimes, como o roubo e traição; entretanto, a inscrição
com a republicação da lei não traz os termos referentes ao homicídio intencional.
13. Na “Ilíada”, 18.497-508, no novo escudo de Aquiles feito por Hefesto há uma narrativa visual que menciona um julgamento
que refere compensação monetária por homicídio. Alguns estudiosos têm assumido isso como evidência de tipo de punição de
homicídio na Grécia Arcaica (GAGARIN, 1981).
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“Heitor não perder a vida pela minha lança e pagar a espoliação de Pátroclo” (Ilíada,
XVIII, 93). Aqui se refere Aquiles às armas de Pátroclo, de que Heitor se apossara.
Entretanto, logo em seguida ele explicita com mais ênfase seu desejo: “E agora irei
ao encontro de quem a cabeça amada me matou: Heitor” (Ilíada, XVIII, 114-115).
Eis o real motivo que movimenta o herói de volta às hostes dos aqueus – vingar o
amigo morto, matando o assassino e mais alguns troianos:
Visto que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixo
da terra,
não te sepultarei, antes que para aqui eu tenha
trazido
as armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti,
magnânimo.
E na tua pira funerária cortarei as gargantas a doze
gloriosos filhos dos Troianos, irado porque foste chacinado.
(Ilíada, XVIII, 333-337).
Como bem salienta Vernant, o herói morre porque sua honra não pode ser
empenhada; sua honra é a medida de sua vida, em um plano metafísico, não social,
razão pela qual o prestígio social, que pode ser gozado e adquirido no plano de
sua existência mortal, não lhe interessa (VERNANT, 1989, p. 47). Por estar em
outro plano de valores, a honra do herói é o que o faz trocar a vida mortal pela
imortalidade na memória coletiva, pela lembrança reiterativa do canto. Ora, a
vingança (τιμωρία), que, na Grécia Arcaica, pode permitir que uma morte se pague
com outra morte, não é nada mais do que o ato de resguardar a honra ultrajada,
o que bem mostra a relação entre os termos honra (τιμή) e vingança (τιμωρία),
que partilham de um mesmo radical (τιμ-). McHardy, em seu estudo sobre a
vingança na cultura grega, mostra que o vocábulo τιμωρία resulta da composição
entre os radicais do substantivo τιμή (honra) e do verbo ὄρομαι (resguardar)
(McHARDY, 2008, p. 3)14. No caso de Aquiles em relação a Pátroclo, a honra que o
pelida busca resgatar, ao lançar-se sobre Heitor para vingar Pátroclo, é como se
fosse a sua própria15. Nesse contexto, é fundamental a Aquiles recuperar o corpo
do amigo, pois deixar Pátroclo insepulto é não concretizar a passagem do amigo
ao mundo dos mortos, como que o deixando no vácuo entre a vida e a morte,
já não mais vivo, mas ainda não exatamente na condição de morto, que é a do
14. Em trabalho de iniciação científica por mim orientado, Luiz Eudásio Barroso Capelo Silva (2009) mostra que, em Antifonte e em
Tucídides, o conceito de τιμωρία não compreende somente o resgate da honra ultrajada, mas também o reguardo, a proteção
da honra que pode vir a ser ofendida. Nesse sentido, o verbo τιμωρέω é muitas vezes traduzido para o português como
“proteger”, pois ocorre em contextos em que se procurar proteger a honra de uma possível ofensa a ser ainda sofrida.
15. Ilíada, XVIII, 79-81: “Mas que satisfação tenho eu nisso, se morreu meu companheiro amado, Pátroclo, a quem eu honrava acima
de todos os outros, como a mim próprio?”
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indivíduo cujo corpo, finda a vida, passa pelos ritos fúnebres de limpeza e purificação
para chegar ao Hades (VERNANT, 1989, p. 70-73).
O ideal da honra preservada, se necessário, pela vingança de morte deve ter
influenciado o imaginário dos atenienses por muito tempo, a julgar pelas evidências
de alguns textos do Período Clássico. Apesar de o homicídio ter sido regrado pela
Lei de Drácon, que aparentemente não sofreu grandes modificações ao longo do
tempo (Antifonte, Acerca do Coreuta, 2; Demóstenes, Contra Aristócrates, 51), muito
embora os termos relativos ao homicídio intencional não nos tenham chegado, é
possível que uma série de disposições tenham sido acrescentadas à lei original para
regulamentar, por exemplo, a execução de pessoas julgadas por homicídio
intencional e consideradas culpadas16. Mais frequentemente, a pena capital era a
contrapartida para o descumprimento da pena de exílio. Apesar de, em princípio, o
sistema legal ateniense pressupor que cabe à pólis julgar e processar os casos de
homicídio em geral, existe no Período Clássico uma retórica bem articulada e
empenhada em afastar, dos casos levados a júri, o desejo de vingança pessoal como
motivo desencadeador da ação penal. Tal retórica, argumenta Cohen, pode muito
bem indicar que, na realidade, o valor corrente entre os atenienses era buscar o
tribunal – no caso de homicídios, o Areópago – para obter a vingança pessoal
(COHEN, 2005b, p. 219 e ss.).
Alguns discursos de Antifonte obliteram claramente a distinção entre vingança
pessoal e punição do Estado. Em “Contra a madrasta”, o litigante, filho do pai
assassinado pela madrasta, interpela o júri a assumir seu papel de “vingadores do
morto” (21: τῷ τεθνεῶτι τιμωρούς)17, vingando simultaneamente as leis de
Atenas – ou, para lembrarmos o sentido de τιμωρία, resgatando a honra do morto
e resguardando a honra das leis atenienses. Para os atenienses, o homicídio,
ressalte-se, é um crime que, mesmo perpetrado na esfera privada, tem repercussão
direta sobre a vida da pólis, certamente porque contém um aspecto diretamente
relacionado à vida religiosa da cidade. Os homicidas eram proibidos de entrar nos
espaços públicos e julgados somente pelo Areópago. Em “Contra a madrasta”, o
filho dirige-se aos juízes, dizendo-lhes que o morto
16. Gernet (2004) traz uma interessante discussão sobre diversas penas de morte utilizadas até o século IV a.C. em Atenas:
ἀποτυμπανισμός (morte em que a vítima é amarrada nua a um poste de madeira para “morrer viva” – pena que lembra a
crucificação); o envenenamento por cicuta, que tão bem conhecemos pelo caso de Sócrates; e o βάραθρον (lançamento de
vítimas em abismo – se vivas ou já mortas, há controvérsias entre os estudiosos). À pena de morte podia somar-se também a
pena de privação do sepultamento da vítima.
17. Além de “Contra a madrasta”, ver “Tetralogia” I, 9.
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18. Não se pense que execuções sumárias, sem julgamento, não fossem permitidas por lei. Sobressai como peculiar – e figura no
discurso de Lísias, “Sobre o assassinato de Eratosthenes” – o caso do homicídio lícito, permitido quando um homem surpreende
outro com sua mulher, mãe, filha, irmã ou concubina que mantenha para procriar filhos livres (cf. também Demóstenes, Contra
Aristócrates, 53).
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19. Péricles refere-se a desfrutar de sua riqueza, no caso dos combatentes ricos, ou escapar da pobreza e tornar-se rico, no caso
dos pobres – caso visassem somente à sobrevivência.
20. Tradução minha.
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de Tucídides aqui visa a sensibilizar, não para o lamento, mas para a exaltação, a
fictícia audiência interna da história tucidideana, ou seja, os demais atenienses vivos
que ouvem as palavras de Péricles (LORAUX, 1986, p. 48). Nesse sentido, ressalta-
-se mais uma distinção entre a oração fúnebre ateniense e a tradição épica: nada
na oração de Péricles relembra o lamento de Troia inteira a ver Príamo chegar com
o corpo de Heitor (Ilíada, XXIV, 720-776). A oração fúnebre ateniense inscreve-se
em um contexto didático em que os vivos são convocados a identificar-se com os
belos feitos dos mortos de forma imediata, excluindo-se o distanciamento que
favorece o lamento, pois a glória da cidade, mantida por aqueles que em deter-
minado momento entregaram sua vida bravamente e que merecem então ser
honrados, depende da continuidade da bravura nos cidadãos vivos. A oração fúnebre
é uma lição de moralidade cívica endereçada aos vivos, acrescenta Loraux (1986,
p. 98). A morte transfigura-se assim em um destino resultante do acaso que deve
ser aceito pelos sobreviventes em nome da glória da cidade, que celebra seus
cidadãos somente porque estão mortos, uma forma igualmente de apelar aos vivos
que não desistam em combate e morram pela cidade, para tornar-se objeto de tal
celebração.
Tanto na representação do homicídio levado a julgamento quanto no elogio dos
mortos de guerra de Atenas, a honra é característica marcante da abordagem dos
vivos em relação aos mortos, tal qual já cantava Homero. Em um caso, ela conecta-se
com a vingança; em outro, com a glória. Todavia, na oração fúnebre, os mortos não
têm mais nome, e, no julgamento do homicídio, os juízes são convocados a vingar
não só o morto, mas também as leis da cidade. No âmbito das instituições e
ritos atenienses, a morte é representada como uma experiência que se incorpora e
se ressignifica no discurso da pólis e do cidadão, subestimando-se seu caráter
individual.
Bibliografia
ANTIFONTE. Testemunhos, fragmentos, discursos. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2005.
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Capítulo III
O poeta Marcial deixa-nos um retrato da Roma do século I. E quando nos fala das
ruas da urbe, dos edifícios, dos espaços de convívio públicos e privados, não faz
uma descrição arqueológica, do gênero de um catálogo de museu, mas dá-nos um
testemunho vivo das gentes que povoavam tais espaços, desde o rico, ou novo-rico,
ao mais miserável dos arruinados; desde o mais poderoso patrono ao último dos
clientes, desde o romano da mais pura gema aos mais extravagantes provincianos,
desde as mais nobres matronas às mais repelentes rameiras. Por isso, Marcial é
considerado il poeta di Roma vivente – como dirá Enrico Paoli. Reflete a Roma imperial,
com a sua sociedade piramidal e a monumentalidade de cariz totalitário, acumulada
sobretudo durante o período dos Júlio-Cláudios e dos Flávios.
Roma é o cenário privilegiado dos epigramas. No prólogo do Livro XII, Marcial refere com
saudade os espaços por onde costumava passear (12.21). É a Roma engrandecida
pelos Flávios e motivo de adulação por parte do poeta, é o local de atuação dos
tipos sociais que vai referindo, são os espaços da vida literária (vendas dos livreiros,
percursos dos livros para saudar um patrono) e são os trajetos das deambulações
e canseiras do poeta, que descreve as impressões dos meandros urbanos. Embora
21. Foi usado neste trabalho, embora com uma organização diversa, grande parte do material publicado em Brandão (2012, p.
135-161).
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deseje o otium fora da urbe, Marcial vive esta contradição de necessitar do espaço
urbano para a sua criação poética. A representação topográfica da urbe é, pois,
uma estratégia literária associada ao gênero que o nosso poeta cultiva; para mais,
em um período em que as estruturas da urbe sublinham a afirmação do poder de
uma nova dinastia. Muitos dos epigramas integram-se no consagrado gênero da
laus urbis22.
A Roma dos epigramas é um espaço em metamorfose. Augusto dissera que encontrara
uma Roma de tijolo e a deixara de mármore. Como outrora Augusto23, Vespasiano
e os filhos procuraram restaurar e ornamentar moral e fisicamente a cidade depois
da sumptuosidade de Nero e das consequências do conflito civil de 68-69 d.C. na
disciplina e nos edifícios24. O “Liber spectaculorum”, cuja publicação celebra a
inauguração do anfiteatro Flávio em 80 d.C. No segundo epigrama desse livro,
Marcial estabelece o contraste entre passado e presente por meio do louvor das
construções que se elevaram no lugar da Domus Aurea, o extravagante palácio de
Nero, construído no centro da urbe na sequência do incêndio de 64 d.C. Agora,
reddita Roma sibi est (“Roma foi restituída a si mesma”) (Sp. 2.11). A oposição entre
passado e presente corresponde à metamorfose de espaço fechado em espaços
abertos de deslocamento, de convívio e de espetáculo; à transformação dos deleites
do tirano (dominus) em deleites do populus (Sp. 2.12)25. A imagem da Fênix é
associada a Roma, que por obra de Domiciano renasce das cinzas, provavelmente
depois do incêndio de 80 d.C. (5.7). Uma alusão a Domiciano enquanto restaurador
e construtor de templos é feita de forma espirituosa em 9.3: ao colocar o imperador
como credor do pai dos deuses, Marcial sublinha o aspecto religioso da política de
construções, em continuidade com a herança augustana (8.80).
Roma permite um cruzamento de percursos poéticos e interpoéticos. Marcial refere-se
diversas vezes a percursos da cidade feitos pelas personagens dos epigramas, por
si próprio ou pelo livro que envia como seu embaixador. É o caso do roteiro de Sélio,
que circula pelo o Campo de Marte na ânsia de conseguir um convite para jantar
(2.14). Outro itinerário destacado é o que faz o poeta até aos seus protetores (1.70;
22. Vide SULLIVAN, 1991, p. 147 e ss.; ROMAN, 2010, p. 99 e ss.; COLEMAN, 2006, p. 15.
23. Cf. Suetônio, Aug. 28.3: “Vrbem neque pro maiestate imperii ornatam et inundationibus incendiisque obnoxiam excoluit adeo, ut iure sit
gloriatus ‘marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset’. Tutam uero, quantum prouideri humana ratione potuit, etiam in posterum
praestitit”.
24. Suetônio, Ves. 8.1: “Ac per totum inperii tempus nihil habuit antiquius quam prope afflictam nutan-temque rem p. stabilire primo, deinde et
ornare”.
25. Vide PAILLER, 1981, p. 79-87; ROMAN, 2010, p. 111.
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1.108; 1.117; 2.5; 5.22; 10.20.4-5; 10.56; 10.82). A relação entre o autor e os
espaços da urbe opera-se também por meio do livro, usado muitas vezes como
metonímia do poeta. O motivo ovidiano de enviar o livro do exílio26 é transferido
por Marcial para o contexto das obrigações de cliente, como forma de evitar a perda
de tempo de ir pessoalmente cumprir a salutatio (1.108). Encontra, assim, pretexto
para introduzir passo a passo alusões topográficas e arquitetônicas na descrição
de um percurso: é o caso do trajeto do livro que envia ao amigo Próculo (1.70)27,
ou do livro que envia a Plínio (10.20)28. Contudo, há também os percursos descritos
no sentido de levar os leitores até ao lugar dos epigramas, com indicações do nome
dos livreiros e dos locais onde se podem encontrar os epigramas à venda (1.2;
1.117; 4.72). Nesses itinerários, a criação literária recorre a relações intertextuais e
interpoéticas, pela interseção com a arquitetura, a pintura, a vida cultural e social.
1. Roma viva
Atento ao mundo em que vive na busca de inspiração para a sua obra, Marcial
capta a realidade e representa-a por meio do olhar de poeta epigramático. E nos
quadros representados figuram caracteres, virtudes e vícios, tipos sociais, grupos,
profissões. O leitor depara-se com alguns dramas humanos, transmitidos algumas
vezes de forma crua e irônica, outras vezes, empática, e a maior parte das vezes
espirituosa, como manda o gênero: o epigrama, pela sua tradição. É a escolha
adequada para descrições concisas, argutas e contundentes. Marcial deixa-nos,
por isso, um retrato ao mesmo tempo realista e divertido da vida social da Roma
dos Flávios. É uma poesia que, apesar da caricatura, mantém o sabor humano,
como salienta o poeta (10.4.10). A mordacidade e a sátira vão alternando com
a sensibilidade e a empatia com o sofrimento.
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social estava tradicionalmente associado à riqueza. Desde tempos antigos, que nos
comitia centuriata votavam em primeiro lugar os mais ricos, os da primeira classe.
Nos tempos do poeta, o status de senador e cavaleiro estava dependente da posse
de um determinado valor patrimonial, um milhão de sestércios para o primeiro e
400 mil para o último. A ordem senatorial tem o seu estatuto e patrimônio
tradicionalmente ligados à posse da terra. Para um cavaleiro, a indústria e o grande
comércio são recomendados29, mas um naufrágio, por exemplo, pode arruinar um
homem rico30. As atividades assalariadas e laborais são consideradas desonrosas
para um homem ilustre. Por vezes, os imperadores tinham de subsidiar indivíduos
dessas classes para que não perdessem o estatuto. Marcial zurze, com voz
moralizante, as situações que subvertem a realidade social.
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35. Vide MARACHE, 1961, p. 38-53; MOHLER, 1967, p. 241; AUGELLO, 1968-1969, p. 259-260, e n. 156.
36. Vide ROBERT, 2004a, 48 e ss.
37. Sob tal designação se podem incluir os presentes oferecidos durante o jantar, como sugere Plínio (Ep. 2.14.4), e nesse caso é
comparável com os xenia ou apophoreta; ou pode ser dada durante os banhos (Marcial 8.42), ou durante a salutatio (Juvenal
1.95-102; 120-122;127-128): vide MOHLER, 1967, p. 251 e ss.
38. Cf. 1.80: “Cano morreu depois de receber a sportula: foi esta que o matou... porque foi só uma”.
39. Vide AUGELLO, 1968-1969, p. 263.
40. A abolição temporária da sportula é um dos temas recorrentes nesse livro: 3.7, 3.14, 3.30, 3.60. Vide SULLIVAN, 1991, p. 31.
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1.1.3. Novo-riquismo
Como seria de esperar, em uma sociedade que tem escravos, os libertos e novos-
-ricos são bastante atacados pelo poeta, sobretudo aqueles que procuram ostentar
insolentemente as riquezas ou disfarçar os sinais da antiga escravatura (2.29). Zoilo
é quem melhor encarna o liberto e novo-rico sumptuoso, luxurioso, cultor de falsas
aparências, imbuído de mau-caráter e de mau gosto45. As suas extravagâncias
durante o jantar recordam as de Trimalquião no “Satyricon” de Petrônio46. Usurpou
o status de cavaleiro47, e a ostentação frívola que marca a sua vida evidencia-se
pelo tamanho do anel (11.37), pela excessiva mudança de roupa durante a cena
(5.79), pelo esplendor das colchas do leito (2.16), pela envergadura da liteira48.
Contudo, afinal, tudo assenta em bases falsas. Marcial diz que ele é ladrão e escravo
fugitivo (11.54) e um filho de ninguém, dada a sua origem servil, jogando com o
fato de, à face da lei romana, um escravo não ter pais nem filhos (11.12). Marcial
mostra-se preocupado com o status das ordens sociais e as tentativas de usurpação
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por parte dos libertos, como denotam os reiterados ataques contra os que violavam
a lex Roscia theatralis, que impunha uma distribuição dos lugares no teatro de acordo
com a posição e a hierarquia social49.
Os libertos imperiais são exceção à regra, porque se trata da intocável majestade
do imperador, cujos mores eles espelham (9.79); mas também porque eles estão na
sua correta posição social: ao serviço do seu patrono, com as funções que este neles
delega. Por outro lado, Augusto usara escravos e libertos da sua casa para
desempenhar tarefas administrativas no Império, por não achar apropriado
empregar cidadãos livres em tais serviços. No entanto, com Cláudio os libertos
atingiram um poder invejável à frente dos gabinetes da administração imperial.
Na crise de 68-69, tanto Otão como Vitélio empregaram cavaleiros nestas funções;
e Domiciano distribuiu-as entre cavaleiros e libertos (Suet. Dom. 7.2), apesar de, na
“Historia augusta”, se dizer que Adriano foi o primeiro a substituir os libertos por
cavaleiros nas secretarias de ab epistolis e a libellis. O biógrafo Suetônio, membro da
classe equestre, desempenhou esses cargos nos principados de Trajano e Adriano.
49. Cf. 5.8; 5.25; 5.35; 5.38; 5.41. Vide MOURITSEN, 2011, p. 91, 106 e n. 190.
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50. Vide HOWELL, 2009, p. 74-75; HANSON, 2010, p. 492-496. A referência aos Romanos como bárbaros reproduz o ponto de
vista grego, recorrente por exemplo em Plauto (Asin. 11; Poen. 598; Tin. 19).
51. Marcial, jogando com o sentido do cínico, diz que um determinado seguidor dessa escola, de tão sórdido que está, parece um
verdadeiro cão (4.53).
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com um encômio à sua arte (6.52). Podia-se também recorrer aos tonsores, que
ofereciam o seu serviço na rua, ou às tonstrinae das tabernae52. Os barbeiros são
criticados pela sua lentidão (7.83) ou pelo sofrimento que causam aos clientes
(11.84). Com efeito, eram proverbiais os riscos que envolvia confiar o pescoço à
navalha (3.74). Eram também censurados pelos elevados preços que cobravam53:
Marcial critica o fato de um certo barbeiro atingir o estatuto de eques por benefício
da sua patrona (7.64.1-2)54.
Os professores são ferozmente atacados, pelo barulho que fazem logo de manhã
(9.68; 5.84; 8.3) e porque o poeta é movido pela compaixão para com as crianças,
submetidas à dureza da disciplina (10.62). Um conhecido relevo de Arlon mostra
um mestre-escola empunhando um bastão. Contudo, essas acusações parecem ser
mais fruto da hostilidade do poeta, que parece ter habitado nas proximidades de
um desses professores, do que reflexo de uma real desconsideração por parte da
sociedade romana.
Essas profissões são talvez as mais representativas na obra do bilbilitano. Porém,
muitas outras ocupações figuram nos epigramas, como prostitutas, taverneiros,
libitinarii, agricultores, vendedores ambulantes, dançarinas, etc. E nem sempre as
atividades honestas são as mais bem remuneradas. Na cidade, prosperam os
delatores, os caluniadores, os fraudulentos, os traficantes, os devassos, os mestres
de gladiadores (11.66; 4.5; 6.50), para o deleite de qualquer poeta epigramático55.
52. Figura também uma tonstrix da Suburra (2.17): “Non tondet, inquam. Quid igitur facit? Radit!” (“Não barbeia, digo-te eu. Que faz
então? Esfola!”).
53. Cf. Juvenal 10.226.
54. Cf. Juvenal 1.24-25.
55. É porque apresenta tantas deformidades que Roma atrai um poeta epigramático. Vide CASTAGNOLI 1950, p. 67-78.
56. Vide ROBERT, 2004a, p. 48-68.
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nem sequer são abrangidos pelas distribuições frumentárias. Marcial tinha patronos
poderosos, alguns hispânicos como ele. Podia enveredar pela advocacia. É provável
que o não tenha feito, porque não teria tido necessidade ou não ambicionava
riquezas exageradas.
O poeta valoriza o ato de dar e, além de muitos epigramas sobre ofertas, publica
dois livros para acompanhar as dádivas dos jantares e das Saturnais: “Xenia” e
“Apophoreta”. No entanto, acima dos bens materiais, valoriza o apreço pela sua
obra (7.88). Assume-se, pois, como pobre, “sed non obscurus nec male notus eques”,
uma vez que pela sua obra é reconhecido no orbe (5.13; 5.16; 5.60). A consciência
do seu status social e literário emerge quando, ao enumerar as riquezas de Calístrato
em comparação com a sua pobreza, conclui: “Hoc ego tuque sumus: sed quod sum,
non potes esse / tu quod es e populo quilibet esse potest” (5.13.9-10) (“Isto somos eu e
tu; mas o que eu sou, tu não podes ser / o que tu és, qualquer plebeu o pode ser”)
– o que conta é o estatuto social; as riquezas são triviais57.
1.2.1. Sabores
Não se estranha que, para o cliente Marcial, uma fonte privilegiada de inspiração
seja, pois, a situação de banquete: a decoração da sala de jantar, a beleza dos
jovens escravos, os odores requintados, os perfumes, as flores, os poemas e a
música. Era natural que os mais ricos tentassem imitar os requintes dos banquetes
de Nero na chamada cenatio rotunda da sua Domus Aurea, cuja abóbada rodava
continuamente à semelhança do universo, e cujo artesoado do teto permitia
derramar flores e perfumes sobre os comensais58. Os pratos descritos por Marcial
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59. 1.20. O tema, comum nos poetas satíricos, é frequente em Marcial (2.43; 3.60; 4.68; 4.85; 6.11; 10.49). Também Juvenal
(1.139) representa o cliente a sofrer a indignidade de lhe ser negado um convite, ou de receber uma ração de comida inferior
à do patrão ou vinho de pior qualidade. Plínio, o amigo do poeta, deplora o mesmo vício e diz-se incapaz de incorrer em tal
mau gosto (Ep. 2.6). Vide HOWELL, 1980, p. 151-154.
60. 2.37.10-11: “Vllus si pudor est, repone cenam / cras te, Caeciliane, non uocaui” (“Se tens alguma vergonha na cara, restitui o jantar
/ não foi para amanhã, Ceciliano, que eu te convidei!”).
61. 3.22. Trata-se de uma anedota, também transmitida por Sêneca (Dial. 12.10.8-10), sobre o fim de Apício, o provável autor do
conhecido livro de culinária (De re coquinaria) que, não podendo suportar a ideia de viver com apenas dez milhões de sestércios,
se suicidou. Vide Sullivan 1991 100-101. O nome de Apício é também associado ao daqueles que não suportam não ter
convites para jantar (2.69.3-4).
62. 6.92; cf. 10.49: Cota oferece a Marcial vinho mau em copo de ouro.
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1.2.2. Odores
O poeta aprecia a ordem. Tudo deve estar no seu lugar. A beleza é feminina; um
homem que cultiva a beleza não é bem visto à luz da austeridade tradicional; revela
um caráter efeminado65. Às suas características de hispano hirsuto, Marcial opõe
as de um efeminado de Corinto que ostenta uma cabeleira ondulante e luzidia, à
força de unguentos e perfumes, que se depila diariamente e tem uma fala débil
(10.65). Critica os depilados (2.36; 3.74; 8.47; 12.38), aqueles que tingem os
cabelos (4.36) e os perfumados (7.41); e diz que, em vez de cheirar bem, prefere
não cheirar a nada (6.55.5); ou, dirigindo-se a Póstumo, ajuíza que quem sempre
bem cheira não lhe cheira bem (2.12). Trata-se de uma abordagem moral. Por um
63. 9.9.4: “Liber non potes et gulosus esse” (“Não podes ser livre e glutão ao mesmo tempo!”)
64. Cf. 11.52.16.
65. “Sed qui bellus homo est, Cotta, pusillus homo est” (1.9.2); “Res pertricosa est, Cotile, bellus homo” (3.63).
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moral imperial a esse respeito. Domiciano procurou restaurar a lex Iulia de adulteriis
coercendis promulgada por Augusto, que castigava os adultérios, mas certas mulheres,
contornando a lei, casam com os sucessivos amantes (6.7 e 6.22). Para o poeta,
uma madrasta que permanece em casa do enteado depois da morte do pai nunca
foi madrasta (4.16), situação mais grave porque implica adultério e incesto. O
incesto jamais foi admitido pela sociedade romana e estendia-se às relações parentais
procedentes da adopção. O caso mais famoso é talvez o do imperador Cláudio, que
necessitou de uma dispensa especial do senado para casar com a sobrinha Agripina,
união que na época era considerada incestuosa. O incesto estava associado aos
tiranos – talvez por meio da tragédia e dos costumes de reinos orientais. A tradição
histórico-biográfica regista anedotas de incesto entre Calígula e as irmãs,
especialmente Drusila, entre Nero e a mãe Agripina, e entre Domiciano e a sobrinha
Júlia, mas provavelmente essa seria uma forma de associá-los a típicos tiranos.
No que toca a homossexualidade, Marcial condena a relação entre senhor e
escravos quando o homem livre assume uma atitude passiva (3.71), porque tal
implica uma subversão de papéis sociais78. Os banhos são um local privilegiado
para devassos e voyeurs e para o engate (1.23; 1.96.12 e ss.; 9.33; 11.63). E havia
banhos mistos (3.51; 3.72; 11.63), mais tarde abolidos por Adriano. Na censura da
desordem, ao poeta não passou despercebido um matrimônio gay, segundo os ritos
habituais de um casamento romano79, inspirado possivelmente nos boatos que
corriam sobre estranhos rituais de Nero com o eunuco Esporo80. E quanto à ideia
de que as orgias eram apreciadas como forma de entretenimento pelos romanos,
não há evidência de que assim seja81. Marcial as desaprova (12.43). O vocabulário
do poeta é amiúde congruente com os vícios que pretende censurar. Trata-se da
dicacitas, a linguagem acirrada, própria dos versos fesceninos, que se aplica a zurzir
os defeitos físicos e morais, por vezes visível nos cognomes. Está presente nos
grafitos e nos libelli de epigramas, bem como nos versos que os soldados cantam
aos triunfos de César (Suet. Jul. 49.4; 51)82.
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uma ordem social estabelecida, onde cada qual cumpre o seu papel e não admite
subversão; e a promoção deve ser baseada no mérito e acompanhada de elevação
de caráter.
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Confessa-se, pois, saturado por ter de suportar tal vida durante três décadas (3.36).
Por altura da publicação do Livro X, o poeta parece atingir a exaustão: cansado
(ruptus) de deambular pela urbe (10.56), farto de suportar o frio e a neve87, a única
coisa que deseja é dormir (10.74). O topos da dificuldade em escrever em Roma,
que já vem de Horácio (Ep. 2.65 e ss.), é transposto para o prejuízo que as obri-
gações de cliente acarretam para a produção literária (1.70; 10.70; 11.24). O patro-
cínio não era já o mesmo do tempo de Virgílio e de Horácio, e Marcial queixa-se
de não ter um mecenas que lhe faculte o otium de que aqueles poetas gozaram
(1.107; 3-4); e a generosidade dos patronos tende a diminuir (12.36).
Além disso, a cidade é um labirinto insalubre: as ruas são estreitas e sinuosas
(1.86.1-2)88; o ambiente é doentio ao ponto de tornar o rosto descorado (10.12.8-
12); há cheiros nauseabundos (6.64.18-21); há ruídos dos pregões de vendedores
(1.41), há a azáfama noturna (12.57)89. Por isso, louva a casa que o amigo Júlio
Marcial possui no Janículo, de onde se pode apreciar a cidade sem lhe ouvir os
ruídos (4.64). Com a chegada do verão, a alta sociedade romana procura as águas
de Baias para uns tempos de descanso e devaneio (1.62; 3.20.19; 3.58.1; 10.14.3).
O poeta, que se assume como preguiçoso, quer afastar-se da cidade, mas não ficar
muito longe dela. A celebrada propriedade de Nomento, cerca de 20 quilômetros a
noroeste de Roma, cumpre os requisitos. Aí procura o otium, na sua casa de campo,
que substitui as delícias de Baias (6.43.5-6). Para lá se dirige o poeta em busca da
libertação da vida citadina e do sono tranquilo (2.38; 12.57). O poeta aprecia o
sossego, longe da confusão dos locais que estão na moda. De resto, ao sol abra-
sador das praias da Campânia diz preferir a frescura de Tíbur (4.57) e as praias de
Altino, rivais de Baias, na Gália Cisalpina (4.25).
A vida feliz que propõe não inclui desejos de riquezas (9.22.16), mas uma vida
diária simples com noites tranquilas e dias sem disputas (2.90; 7-10). Prestes a
rumar à Hispânia, o poeta propõe ao amigo Júlio Marcial um estilo de vida mais
feliz (uita beatior), que é uma típica versão romana da filosofia epicurista (10.47)90:
a toga rara representa o almejado afastamento da vida pública, um princípio
epicurista, porque a toga é símbolo da vida social romana, do foro e da clientela, o
87. 10.82. A primeira edição deste livro é do ano 95, mas a segunda, revista (segundo 10.2.3), é de 98, ano do retorno a Bílbilis.
Vide SULLIVAN, 1991, p. 44.
88. Vide TORRÃO; ANDRADE, 2008, p. 63-79.
89. Vide AUGELLO, 1968-1969, p. 242-244.
90. Cf. Horácio, Epodo 2. Sobre o paralelismo entre o epigrama acima transcrito e a filosofia epicurista, vide SULLIVAN, 1991, p.
215-217; ADAMIK, 1975, p. 62.
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91. “Bis iam paene tibi consul tricensimus instat, / et numerat paucos uix tua uita dies. [...] et solum hoc ducas, quod fuit, esse tuum. [...] gaudia
non remanent, sed fugitiua uolant. [...] Non est, crede mihi, sapientis dicere ‘uiuam’: / sera nimis uita est crastina: uiue hodie”. Outros exemplos
de sentenças de espírito epicurista em SULLIVAN, 1991, p. 225.
92. Cf. SULLIVAN, 1991, p. 44-52.
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93. Segundo Frassinetti (1973, p. 173-180), Marcial ostenta, nesse epigrama, um falso entusiasmo: trata-se já do desfazer do
sonho de paz. Seja como for, o certo é que o poeta descreve agora como real aquilo que em Roma era apenas um sonho.
94. “Sed gestatio, fabulae, libelli / campus, porticus, umbra, Virgo, thermae”.
95. Para uma análise detalhada do fluir do tempo em Marcial vide PIMENTEL, 2000, p. 221-230.
96. Cf. 12. Pref.: “[...] Accedit his municipalium robigo dentium et iudici loco liuor et unus aut alter mali, in pusillo loco multi”.
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tomada pelo espírito do poeta, que se sente, como Ovídio97, privado de Roma: “ad
populos mitti qui nuper ab Vrbe solebas / Ibis, io, Romam nunc peregrine liber” (“Ainda há
pouco costumavas partir da urbe, às gentes enviado / eis que agora irás para Roma
como livro forasteiro”) (12.2). O poeta visualiza a morada do amigo Estela com as
habituais indicações precisas. E o envio do livro é acompanhado da consciência de
que será imediatamente identificado e apreciado porque é irmão dos outros
produzidos na urbe. Se Roma é o centro irradiador de cultura, é também aí que o
livro produzido na província vai buscar a autoridade, o selo de qualidade que lhe
garantirá o sucesso.
Se Roma é para o poeta a negação de Bílbilis, Bílbilis transforma-se com o tempo
na negação de Roma. Feito o confronto realista, Roma fica a ganhar; continua a
ser a “deusa das terras e das gentes”. Com efeito, o Livro XII, embora composto
em Bílbilis, está cheio de reminiscências que o poeta guardara da urbe: os habituais
temas satíricos como a hipocrisia dos patronos, a decadência do rico, a captatio, as
pretensões dos clientes, a má conduta social, a pederastia, a crítica às mulheres, os
defeitos físicos, a poesia e os críticos, os plagiários, enfim, um livro não de assunto
hispânico, mas apenas escrito na Hispânia98. Desse modo, o Livro XII contém ao
mesmo tempo o grito de libertação da opressão da urbe, pelo retorno à casa, e
uma subjugação a um novo exílio, com ecos ovidianos99. É o preço a pagar por
quem tem duas pátrias no coração. Pouco depois, chega a Roma a notícia da morte
do poeta: é Plínio, o Moço quem a transmite com pesar em uma de suas cartas:
Ouço dizer que Marcial faleceu, e isso pesa-me. Era um
homem engenhoso, arguto, vivo, e que ao escrever tinha
muito sal e fel e não menos candura. Eu tinha-lhe oferecido
o dinheiro para a viagem de regresso. Dera-lho pela amizade
e por causa de uns versos que ele compos acerca de mim.
[...] Deu-me o máximo que podia. Daria mais se tivesse
possibilidades. Todavia o que de maior se pode dar ao
homem do que a glória, o louvor e a eternidade? As coisas
que escreveu talvez não fossem eternas; mas ele escreveu-
as, como se o viessem a ser. Adeus (Ep. 3.21).
97. A intertextualidade de 12.2., no que toca aos versos 1-2 de 15-18 com Ovídio, é notória: cf. Trist. 1.1. versos 1-2; 27-28; 61.62.
Vide HINDS, 2007, p. 133.
98. 12. Praef: “non Hispaniensem librum mittamus, sed Hispanum”. Sobre o conteúdo do livro XII, Vide SULLIVAN, 1991, p. 52-55.
99. Comparem-se as palavras “non Hispaniensem librum mittamus, sed Hispanum” com Ovídio, Trist.3.1.17-18: “siqua videbuntur casu
non dicta Latine / in qua scribebat, barbara terra fuit”; e Trist. 3.14.49-50: “crede mihi, timeo ne Sintia mixta Latinis / inque meis scriptis
Pontica verba legas”. Há também evidentes ecos de Ovídio no envio do livro para a urbe em Marcial 12.2 (cf. Trist. 1.1): vide
HINDS, 2007, p. 129-136 e n. 58.
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Bibliografia
ADAMIK, T. Martial and the vita beatior. AUB, n. 3, p. 55-64, 1975.
AUGELLO, G. Roma e la vita romana testimoniata da Marziale. ALGP, n. 5-6, p. 259-
260 e n.156, 1968-1969.
BRANDÃO, J. L. Amor e morte em Marcial. Humanitas, n. 56, p. 33-48, 2004.
BRANDÃO, J. L. Da quod Amem: amor e amargor na poesia de Marcial. Coimbra:
Colibri, Faculdade de Letras, 1998.
BRANDÃO, J. L. Marcial e o amor da liberdade. Humanitas, n. 50, p. 171-172, 1998.
BRANDÃO, J. L. Marcial e o público e os críticos: autodefesa do poeta. Humanitas, n.
49, p. 177-195, 1997.
BRANDÃO, J. L. Marcial e a urbe: o meio físico e histórico-social dos epigramas. In:
PIMENTEL, C.; BRANDÃO, J. L.; FEDELI, Paolo (Coords.). O poeta e a cidade no mundo
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BURZACCHINI, G. Filenide in Marziale. Sileno, n. 3, p. 239-243, 1977.
CASTAGNOLI, F. Roma nei versi di Marziale. Athenaeum, n. 28, p. 67-78, 1950.
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Capítulo IV
Este texto tem como objetivo proporcionar ao leitor uma leitura de conjunto sobre
as “Vidas dos césares” de Suetônio, procurando salientar a presença da ficção
na narrativa histórica. Em traços muitos gerais, procura-se esboçar a imagem
que Suetônio dá de cada César, mediante a habitual distorção dos fatos, descontex-
tualização dos exemplos, generalização, organização em crescendo, utilização de
fontes romanescas.
4.1. Os Júlio-Cláudios
Suetônio começa o seu trabalho pela “Vida de César”100, colocando desse modo a
tônica no processo de mudança de regime e na sua verdadeira natureza. Assim, é
apresentada uma história da gênese do principado a partir dos seus antecedentes.
Desde o início da “Vida de César” (perderam-se os primeiros capítulos), Suetônio
apresenta-nos um predestinado, que, apesar dos muitos reveses, atingirá os seus
objetivos últimos. No entanto, depois, pagará o preço: a ideia da morte desde cedo
se faz presente. Os primeiros capítulos apresentam claramente os objetivos e os
meios para os atingir. Entra em cena um homem de ação que trabalha com eficácia
100. Plutarco escreveu “Vidas” de oito imperadores, de Augusto a Vitélio, de que só restam as de Galba e Otão; Tácito começa
pela ascensão de Tibério.
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escolha se revela melhor que o esperado. Contudo, essa esperança será brutalmente
frustrada na segunda parte e transformada, primeiro em desilusão, depois em aversão.
Nesta vida, há um aumento da tendência para a tirania: à liberalitas dos antecessores
opõe Tibério a avareza que progride até à rapina; e à clemência, a crueldade. Acresce
o caráter dissimulado (dissimulatio), característico dos tiranos, manifesto logo nas
hesitações – que Suetônio classifica de impudentissimus mimus, “mimo completa-
mente descarado” – no momento de assumir o poder. A sua personalidade é difícil
de compreender, porque Tibério se fechou sobre si mesmo. Entretanto, fica a suspeita
de que a inacessibilidade e incapacidade de comunicar – o caráter taciturno, que,
desde cedo, revelara – prejudicam gravemente a reputação desse imperador.
O secretismo da Ilha de Cápreas (atual Capri), na qual se refugiou, faz levantar
rumores de atos abomináveis, tomados como reais. Tibério é vítima do seu próprio
caráter; ele próprio tem consciência disso. É surpreendente como todos os que lhe
estão próximos vão morrendo, enquanto Tibério, conhecedor do seu caráter e cultor
da astrologia, sabe que se tornará maldito. E, já velho, no meio de um cortejo de
mortes, vê, com amargura, que se transformara no que não desejava. Por detrás do
texto suetoniano – organizado por categorias do caráter –, parece adivinhar-se o drama
interior de Tibério. Como nas anteriores vidas, a artificialidade da figura do imperador,
reforçada pela exposição suetoniana, leva o leitor a aderir à causa do biógrafo.
Entre memórias da crueldade de Tibério101, surge em cena Calígula, uma esperança
que se revela vã, de uma nova era. Com efeito, a biografia está construída de forma
a sugerir uma reviravolta. O absurdo manifesta-se na forma como Calígula passa
de um extremo ao outro: de bom príncipe, que começa por ser, transforma-se depois
no monstro que tem de ser abatido. O assassínio do tirano acontece no momento
em que, à semelhança de César, projetava ações ainda mais megalômanas.
Característica relevante é o fato de se apresentar afeiçoado a atores102, a gladia-
dores e a aurigas.103 Não só encoraja as representações teatrais – mesmo durante
a noite, como nota o biógrafo104 –, mas ele próprio é tão dedicado ao canto e à
dança105, que se não contém durante os espetáculos e acompanha o ator trágico
com a voz ou imita os gestos do histrião, como para os louvar ou corrigir. Para o
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dia em que foi morto tinha projetado a sua estreia em cena em um espetáculo
noturno. Certa vez, convocara mesmo, à meia-noite, três cônsules que assistiram,
apavorados, a uma sua demonstração de dança, vestido com uma túnica até aos
pés.106 Fica patente o seu gosto em se travestir de heróis e de deuses107, e a
predileção pela noite, aproveitando a licenciosidade da ocasião (licentia temporis)108,
e ao mesmo tempo a forma teatral como faz sentir o seu poder tirânico e atemoriza
os súditos. A sua paixão pelas corridas do circo leva a concessões extraordinárias
aos aurigas e até ao seu cavalo. O caráter teatral de Calígula acaba por se
manifestar nas ações do dia a dia, potenciadas pelo poder imperial de que dispõe.
De fato, as realizações aparecem exageradas para o bem, com atos grandiosos, ou
para o mal, com atos que se apresentam fora de toda a lógica e que vão até a
crueldade gratuita, mas que, muitas vezes, não passam de rumores. Suetônio modela
a personagem por meio da escolha das anedotas e da sua disposição, privilegiando
o recurso a certas estruturas de cor dramática. O resultado chega a ser, por vezes,
perturbador pela exploração do sem sentido: o absurdo que Camus explora na sua
peça de teatro “Calígula”.
Por outro lado, a sucessão dos acontecimentos faz lembrar um mimus uitae, com o
burlesco, a obscenidade e indecência, os exageros gestuais, a busca do ridículo,
características do popular mimo, que, como é sabido, teve amplo êxito entre os
césares. De igual modo, poderá ter influenciado o biógrafo o parente áulico do
mimo, a pantomima. Este “balé trágico”, como lhe chama Florence Dupont, é
evocado, na “Vida de Calígula”, pela presença do pantomimo Mnester e pelo gosto
de Calígula em dançar papéis e em travestir-se de figuras mitológicas.
Diferentemente da biografia de Calígula, há na “Vida de Cláudio” uma divisão
estrutural entre boas e más ações: o texto constrói-se por meio da alternância
contínua de aspectos positivos e negativos, em um equilíbrio hesitante, antes de
tender, na parte da vida privada, para uma apresentação desfavorável. Tal oscilação
perturba o leitor que busque um juízo inequívoco, já que ocorrem sucessivas
mudanças de opinião e reformulações na leitura da personagem. Também se não
trata propriamente de uma evolução na degeneração – teoria que Suetônio parece
seguir – que, a partir de Augusto, se vai verificando de vida para vida. De fato,
há um recuo na geração do poder: um retorno à geração do pai de Calígula,
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Germânico, de quem Cláudio era irmão. Talvez por isso, a biografia de Cláudio tende
a apresentar-se como uma espécie de retardamento da katastrophe constituída pela
biografia de Nero.
Informam essa biografia muitos episódios que apresentam “um mundo às avessas”
ou que nos lembram enredos de comédia.109 Suetônio não desdenha introduzir,
sutilmente muitas vezes, sugestões do ridículo. Coloca em cena uma personagem
grotesca, em contínuas Saturnais. Para tal figura terá contribuído a tradição histórica
anterior e a “Apocolocyntosis” de Sêneca. Muitas das reações de Cláudio são as
de um velho da comédia – o típico senex da palliata – que, dominado por mulheres e
libertos, se torna objeto de troça ou manifesta uma ira desproporcionada. As intrigas
familiares fazem lembrar um enredo de mimo. O riso é uma forma eficaz de o
biógrafo reforçar o seu ponto de vista, sem ter de o explicitar (ridendo castigat mores).
Não fora o papel que Cláudio desempenha, o de imperador, e o objetivo do biógrafo
pareceria ser simplesmente o de divertir. Porém, o fato de este senex cômico estar à
frente do mundo conhecido gela o riso do leitor. O contraste entre o nobre papel,
por um lado, e ações não nobres e até ridículas, por outro, transforma o enredo em
tragicomédia. A própria morte tem algo de burlesco, pela sordidez da descrição.
Contudo, no final, há uma mudança que move a compaixão do leitor. A conclusão
é triste: a tragédia de Cláudio não foi, afinal, o não ter agido a tempo – foi ver a
aproximação da morte sem já querer afastá-la. A imagem de Cláudio parece
melhorar aos olhos do leitor que fica a interrogar-se se ele seria assim tão tonto
como sugeriam as suas ações.
A sucessão das vidas até Calígula sugere um crescendo em vista de um fim. A “Vida
de Cláudio” funciona como um intermezzo tragicômico que parece retardar um final
anunciado. A catástrofe do primeiro ciclo de vidas reserva-se para a “Vida de Nero”,
a última da dinastia Júlio-Cláudia.
Nessa biografia, Suetônio parece querer exprimir a osmose, buscada pelo imperador,
entre as atividades teatrais – sobretudo a música e o canto – e a sua própria vida,
toda ela voltada para o espetáculo. As referências ao teatro, ao canto e à execução
musical constituem um leitmotiv ao longo de cada uma das fases da “Vida de Nero”.
Embora Suetônio não explicite esta ideia, deixa a forte impressão, no seu leitor, de
que a biografia é construída à volta do conceito de Nero como príncipe-ator. É uma
109. Como sublinha, no seu comentário a essa vida (GUASTELLA, 1999, p. 43): “A differenza del personaggio disegnato da Tacito o da
Cassio Dione, il Claudio di Svetonio è senza dubbio una figura manifestamente ridicolizzata, le cui imprese spesso ricordano molto da vicino
situazioni che si potrebbero riscontrare negli intrecci della palliata o del mimo”.
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4.3. Os Flávios
Este conjunto de biografias, constituído pelo Livro VIII das “Vidas dos césares”,
começa e acaba com uma nota de esperança. O crescendo de otimismo, que se
verifica em Vespasiano e Tito, vem, na segunda parte do principado de Domiciano,
a degenerar em frustração.
De modo semelhante ao início do Livro VII, também o começo do Livro VIII parece
funcionar como uma introdução às três “Vidas dos Flávios”. Há uma simetria nos
dois começos, de modo que um parece continuar o outro: no limiar da “Vida de
Galba”, temos a passagem do fim de uma família (“progenies Caesarum... defecit”)
para o caos e a morte; na breve introdução à “Vida de Vespasiano”, temos a
passagem do caos (“rebellione... et caede; incertum diu et quasi uagum imperium”) de
indivíduos isolados (tres principes) para a segurança (firmauit) de uma nova família
(gens Flauia).113 Apesar da origem humilde, essa família recebe o reconhecimento do
Estado; mas, no final, ocorrerá um desenlace justo: o castigo que Domiciano
merecerá pela sua cupiditas e saeuitia.114 Esse conjunto de vidas é, assim, determinado
por uma contingência no tempo: desde o início se anuncia o fim da dinastia.
No começo da “Vida de Galba” o tom era de insegurança, agora é de esperança.
A oposição entre diu (“durante longo tempo”) e tandem (“finalmente”) traduz bem
113. Para Tácito, o desaparecimento de Vitélio e o advento de Vespasiano está longe de trazer a segurança referida por Suetônio.
Cf. Hist. 4.1.1.
114. Ves. 1.1: “Rebellione trium principum et caede incertum diu et quasi uagum imperium suscepit firmauitque tandem gens Flauia, obscura
quidem ac sine ullis maiorum imaginibus, sed tamen rei p. nequaquam paenitenda, constet licet Domitianum cupiditatis ac saeuitiae merito
poenas luisse”.
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o tempo psicológico de 18 meses de guerra civil, entre a morte de Nero (em junho
de 68) e a de Vitélio (dezembro de 69). No Livro VII, de três indivíduos se fala; no
começo do Livro VIII, surge o coletivo gens Flauia. A nova dinastia permite, de algum
modo, restaurar a linhagem dos césares (progenies Caesarum) que fora cerceada com
a morte de Nero.115 Às pretensões de nobreza dos três imperadores anteriores116 o
biógrafo opõe o contributo efetivo – “suscepit firmauitque tandem” – desta nova
família que, em vez de ostentar uma linhagem ilustre, mostra a genuína mediocritas
pristina (Ves. 12).
Duas ideias, que se apresentam na referida introdução geral às “Vidas dos Flávios”,
são reiteradas e desenvolvidas na narrativa da ascensão de Vespasiano ao poder:
por um lado, a salvação do Estado, por outro, a origem humilde da família a que
pertencia. O aparecimento de Vespasiano, pelo que tem de inesperado, torna-se
miraculoso, como irão acentuar os prodígios que oportunamente se verificam em
Alexandria. São esses prodígios, afirma Suetônio (Ves. 7.2), que lhe conferem a
autoridade e a majestade que a linhagem lhe não concede.
Apresenta-se como a antítese de Galba (Gal. 2). Este era de família ilustre: tinha
uma árvore genealógica exposta no átrio da sua casa; Vespasiano é de família
obscura e desprovida de retratos de antepassados ilustres (“sine ullis maiorum
imaginibus”). Galba procura uma origem divina em Júpiter e Pasífae, Vespasiano troça
da sua própria deificação. Galba era aparatoso; Vespasiano, modesto. Partem de
extremos opostos do Império. Também no caráter são opostos: Galba é cruel;
Vespasiano, clemente. Uma característica une os dois generais: a avareza. No
entanto, a abordagem que o biógrafo faz desse vício visa a acentuar a culpa do
primeiro e escusar o segundo.
Um traço, reiterado, torna esse imperador especialmente simpático: o sentido de
humor, que o próprio Vespasiano usava como forma de atenuar a impopularidade
das formas de acumular rendimentos. O biógrafo aproveita a sugestão dests
característica de Vespasiano e transforma-a em fio condutor, desde a narração do
início da carreira, quando é agredido com rábanos em África, até ao relato da morte.
Assim, o biógrafo dá um pendor cômico a essa vida.
De novo encontramos uma evolução positiva, que culmina no segundo elemento
da dinastia, Tito, o acme da evolução moral, a que se segue uma degradação,
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imperador tem conhecimento do tempo, mas não sabe que a ameaça parte dos
que lhe são mais próximos.
Suetônio usa as técnicas habituais para acentuar o bom nos bons e o mau nos
tiranos. Em Vespasiano e Tito são escamoteados alguns elementos que poderiam
enegrecer a imagem positiva desses imperadores, e em Domiciano a tônica nos
aspectos negativos e a organização da biografia contribuem para sublinhar a
imagem de um tirano, cuja crueldade e misantropia vão aumentando com o tempo.
O caráter eminentemente positivo das vidas de Vespasiano e Tito contribui para
acentuar, pelo contraste, o negrume da “Vida de Domiciano”.
Encontramos, nesse conjunto, um pouco de comédia, na “Vida de Vespasiano”; um
pouco de romance sentimental, no final da “Vida de Tito”, e grande dose de
tragédia, na parte final da “Vida de Domiciano”. Esta última termina com uma
progressão irresistível para a catástrofe final, onde se acentuam elementos trágicos.
Como no final das vidas de César, de Calígula e de Nero, o biógrafo situa-se em
um ponto intermédio entre a atitude do historiador e a do dramaturgo e novelista.
A ficção dos fatos visa a transmitir uma mensagem moral – exageram-se
determinados traços do caráter, escondem-se outros, para a conseguir uma imagem
coerente e “exemplar” de cada personagem. O equilíbrio será restabelecido com a
referência implícita aos optimi principes que se seguirão a Domiciano: Nerva, Trajano
e Adriano. A mensagem final, por oposição aos vícios de Domiciano, e dos tiranos
anteriores, será a apologia das virtudes da abstinentia e da moderatio.
Bibliografia
AILLOUD, H. Suétone, vie des douze Césars, v. 1-3. Texte établi et traduit. Paris:
Les Belles-Lettres, 1931-1932.
BALDWIN, B. Suetonius. Amsterdam: Hakkert, 1983.
BASSOLS DE CLIMENT, M. C. Suetonio Tranquilo, vida de los doces Césares, v. 1-3. Testo
revisado y traducido. Barcelona: Alma Mater, 1964.
BASSOLS DE CLIMENT, M. C. Suetonio Tranquilo, vida de los doces Césares, v. 4. Testo
revisado y traducido. Barcelona: Alma Mater, 1970.
BRADLEY, K. R. Suetonius’ life of Nero: an historical commentary. Bruxelles: Latomus,
1978.
BRANDÃO, J. L. Máscaras dos césares: teatro e moralidade nas vidas suetonianas.
Coimbra: CECH, 2009.
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Capítulo V
117. Artigo publicado originalmente sob o título “A representação do casamento e do amor matrimonial na cerâmica ática:
sentimentos íntimos da mulher ateniense (séc. VI – V a.C.)”, no livro: SILVA, Úrsula Rosa da; MICHELON, Francisca Ferreira;
SENNA, Nádia da Cruz (Orgs.). Imagens tangenciadas no tempo: estudos sobre representações femininas. Pelotas: Editora e
Gráfica Universitária da UFPel, 2010. p. 119-159.
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118. Cf. Pélica. Figuras vermelhas. Pintor de Pã. Madri, Museu Arqueologico. Bib.: OLMOS, 1986, p. 139-40.
119. Lécito. Figuras negras. Rio de Janeiro, Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, s/inv. Em torno de 480. Bib.: SARIAN, 1987, p. 80, fig. 6.
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Em nosso texto, o uso do termo mulher cidadã refere-se a uma questão social básica:
ser filha ou esposa de cidadão ateniense. O termo cidadã (polîtis), tardio na democracia
grega, surgiu, com um sentido muito limitado, no começo do século IV a.C., em
Aristóteles, Demóstenes e autores da comédia nova. A verdadeira qualidade da
cidadania – as funções políticas de participação nas assembleias, tribunais e ordens
militares – era prerrogativa exclusiva do sexo masculino (MOSSÉ, 1989, p. 51;
CALAME, 1996, p. 123; FLORENZANO, 1996, p. 41). Porém, apesar de sua exclusão
da esfera política, a mulher cidadã estava incluída na comunidade que se autogeria
nas assembleias, pois a ela cabiam funções cívicas no âmbito religioso, consideradas
vitais para o bem-estar da pólis (BRULÉ, 1987; CALAME, 1996, p. 141 e 193). Em
vista disso, os termos mulher cidadã e mulher ateniense servem para diferenciá-la das
mulheres pertencentes a outras categorias, como as hetairas.
120. Cf.: Cratera com colunas. Figuras vermelhas. Grupo de Polygnotos (ARV2 1052/25). Ferrara, Museo Nazionale, 2897 (T 128).
Ca. 440. (CVA Ferrara 1, pr. 11.1-4.). Descrição: Ritual a Cibele e Dioniso. Mulheres em transe.
121. Cf. Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor de Syriskos (ARV2 261/19). Míconos, Museu, inv. 971. Datação: 500-490. (DUGAS,
1852, p. 9-11, nº 9, pr. 5-7). Descrição: Dança nupcial. Duas rodas em círculo em movimento oposto, com um personagem
tocando kithára. Segundo Dugas, moça, segundo Beazley, Apolo. A visualização direta da peça permitiu dar razão a Beazley,
segundo nossa interpretação, pelo fato do musicista ser a única personagem a não adornar a orelha com brinco.
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Figura 4 – Exposição do morto: lamento das carpideiras levando as mãos aos cabelos
Cratera. Figuras negras. Sem atribuição. Tóquio, Museu da Cultura do Mediterrâneo Antigo, 3. Datação: 530-20
(CVA Japão 2, pr. 40.1-2. CERQUEIRA, 2001, cat. 292). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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´ Figuras vermelhas. Pintor de Brygos (ARV2 377/115). Bruxelas, Musées Royaux, R 263. Ca. 480
Kylix.
(CVA Bruxelas 1,III I c, pr. 1.4). Desenho: F.V. Cerqueira.
Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1126/6). Nova York, Metropolitan Museum,
16.73. Ca. 430-20 (BUNDRICK, 2000, cat. 75, fig. 9). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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124. Nesse sítio, na porção meridional da Acrópole, acima do santuário de Dioniso, foram encontrados inúmeros vasos, sobretudo
lutróforos, lébētes gamikoí (lebetes nupciais) e figurinhas de terracota.
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125. Instrumento de sopro, composto por dois tubos, de osso, madeira ou metal, denominado por vezes flauta dupla, apesar de se
assemelhar mais ao oboé pelo uso da palheta dupla.
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Figura 8 – Loutrophoría: cortejo noturno para buscar água para o banho purificatório
Lutróforo. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1127/18) Atenas, Museu Nacional, 1453. Em torno de 430
a.C. (ZEVI, 1938, p. 353-4, fig. 5. CERQUEIRA, 2001, cat. 282). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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Ânfora. Figuras negras. Exekias (Para 59/3). Nova York, Metropolitan Museum of Art, 17.230.14a-b.
Datação: 540-30 a.C. (CVA Metropolitan Museum of Art 4 (EUA 16) pr. 16-19.
CERQUEIRA, 2001, cat. 291). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
Apesar de ser a cena da esfera nupcial mais representada, alguns autores rejeitam
sua validade para elucidar o ritual de casamento. Argumentam que reproduziriam
um modelo mítico, o cortejo nupcial de Tétis e Peleu. Coloca-se aqui uma questão
teórica central: como se posicionar entre uma interpretação humana ou mitológica?
Responder a essa questão importa para a legitimidade epistemológica do uso desse
registro para pensar os sentidos imanentes à representação da mulher na iconografia
do casamento na antiga Atenas.
Reflitamos um pouco. Muitas dessas cenas retratam episódios mitológicos conhe-
cidos pela tradição literária, como os casamentos entre heróis (Alceste e Admeto),
entre mortais e imortais (Peleu e Tétis), ou entre imortais (Poseidon e Anfitrite).
Reconhecemos uma narrativa mitológica de duas formas: por meio de inscrições
(Figura 10) ou de atributos, como o atum na mão do noivo, na ânfora de Berlim,
onde identificamos o casal Poseidon e Anfitrite (Figura 11). São exemplos de
referência efetiva a uma narrativa literária de fundo mitológico. Porém, a forma
de narrar iconograficamente o mito referencia-se em costumes nupciais atenienses.
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Hídria. Figuras negras. Maneira do Pintor de Lisyppides (ABV 260/30). Florença, Museo Archeologico, 3790.
Datação: 520 a.C. (CVA Florença 5, III H, pr. 26.1-2; 28.1-2). Desenho: P. Faber.
Ânfora de colo. Figuras negras. Grupo de Leagros. Berlim, Antikesammlung, F 1896. Final do século VI a.C.
(CVA Berlim 5, pr. 36. CERQUEIRA, 2001, cat. 286). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
Por outro lado, em uma parcela desses vasos, representando cortejo nupcial, podemos
afirmar que o pintor registrou um episódio humano, de modo que as representações
deviam guardar relação com os rituais praticados. Quatro critérios nos apontam
essa identificação: o primeiro, as inscrições, é bastante seguro126; nos outros três:
a) atributos domésticos, b) comparação com a cena da outra face do vaso, e c)
função dos personagens (Figura 5), a interpretação sugere com muita probabilidade
que o pintor representou cenas nupciais inspiradas diretamente no cotidiano.
Mesmo nos vasos de abordagem humana, não devemos imaginar uma imitação
ilusionista da vida diária. Essas pinturas não são um documentário fotográfico, mas
uma representação que evoca uma experiência real. A referência a essa experiência
real não exclui, porém, idealizações do cotidiano feitas por meio de símbolos
evocativos de uma realidade mítica ou imaginária – essas idealizações, portanto,
não correspondem imediata e denotativamente a uma situação cotidiana. Poderia
126. Hídria. Figuras negras. Pintor de Lysíppides. Grupo de Londres B 339. “Potter probably Andokides” (ABV 264/1, abaixo). Londres,
Museu Britânico, B 339. Datação: 530-20. Descrição: Os noivos são identificados por inscrição como Lysíppides e Rodon.
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ser o caso, conforme a análise de Lissarrague (1993, p. 211-2), dos carros com
cavalos nas cenas de cortejo nupcial representadas pelos pintores da segunda
metade do século VI a.C. Nessa época, o uso desses carros limitava-se, conforme
esse autor, às corridas realizadas em festivais, não devendo participar de celebrações
diárias como festejos nupciais e atos fúnebres. A representação do carro, do mesmo
modo que a de um músico apolíneo, enalteceria a cena humana sustentando-a
sobre um paradigma mítico: o carro com cavalos ou o deus citaredo.
Na grande maioria dos vasos, porém, não temos condições de traduzir a intenção
do pintor: registrar uma cena diária ou representar uma narrativa mítica (Figuras
14 e 16a)? Esse é um dos pontos nos quais percebemos a mudança de modelos de
interpretação iconológica. Em grande parte das publicações mais antigas e até
mesmo em muitas atuais, como catálogos de museus ou exposições, os autores
tendem a identificar essas cenas – que se multiplicam a perder de vista pelas
coleções espalhadas mundo afora – com modelos mitológicos. Nas descrições mais
correntes, lemos “casamento de Tétis e Peleu” ou de alguma outra divindade.
Rejeitamos a necessidade de descrever estes personagens como figuras mitológicas,
em vez de simples figuras humanas, mortais. André Chevitarese denomina esse
modelo interpretativo como associação valorativa, pela qual se busca a identificação
de uma cena comum com uma grande tradição literária influenciada por temas
lendários ou míticos; este modelo implica negar que o pintor simplesmente retratava
uma cena cotidiana. Este modelo empobrece o potencial historiográfico e arqueo-
lógico das narrativas iconográficas, pois as refuta como registro da vida diária.
Chevitarese (2001) propõe que busquemos outro modelo de análise: a possibilidade,
quando o pintor não indica claramente o mito, de se tratar de referência a cenas
do dia a dia.
Compartilhamos a perspectiva desse autor: na ausência de atributos divinos, parece
mais acertado evitar um paralelo mitológico, optando por uma abordagem humana,
mesmo que idealizada, do matrimônio. Ora, até mesmo nas cenas mitológicas
encontramos referências da realidade concreta e não simples ilustrações de
tradições literárias. Por esse motivo, a perspectiva teórica de Chevitarese deve ser
combinada com a proposta de Ingrid Krauskopf, para quem muitos desses vasos
misturam elementos humanos e divinos, com o intuito de valorizar o momento
retratado, transpondo o casamento de uma esfera humana para uma esfera mais
elevada, a esfera mítica (KRAUSKOPF, 1977, p. 27-28). Os elementos mitológicos
inseridos em uma cena humana equivaleriam às citações míticas frequentes nos
cantos nupciais, registradas pela tradição literária. Nesses casos, quando o pintor
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127. Já no século XIX, Cecil Smith (1893, p. 115) chamava a atenção para o “costume de acrescentar nomes mitológicos às figuras,
com o objetivo de aumentar o interesse pelo seu desenho”.
128. De acordo com a autora, as imagens não transcrevem eventos nupciais reais, pois a intenção do pintor seria “uma criação
simultânea e emblemática usando todos os elementos iconográficos que conotem a ideia do casamento”. Para tanto, o pintor
não reproduzia a sequência narrativa dos fatos reais, mas “criava cenas incorporando simultaneamente todos os elementos
que conotavam o casamento”, de modo que os incidentes individuais contidos nas imagens referiam-se ao casamento
como um todo.
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Cratera. Figuras vermelhas. Pintor de Peleu (ARV2 1038/1). Ferrara, Museo Nazionale, 2893 (T. 617). Em torno
de 430 a.C. (CVA Ferrara 1 [Itália 37] pr. 22.1-2. Cerqueira, 2001, cat. 285); Desenho: F. Vergara Cerqueira.
129. Instrumento de cordas, com caixa de ressonância com base plana, associado a Apolo. Era o instrumento de construção mais
complexa. Instrumento vinculado à música de concerto, ao profissionalismo musical e às procissões suntuosas.
130. Apetrecho musical usado para friccionar as cordas da lýra e a kithára, equivalente em sua função à atual palheta dos violonistas.
131. Denominação, de origem homérica, muito usada pelos poetas, de instrumento de cordas.
132. Cf. Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor de Syriskos (ARV2 261/19). Míconos, Museu, inv. 971. Datação: 500-490. (DUGAS,
1852, p. 9-11, nº 9, pr. 5-7). Descrição: Dança nupcial. Duas rodas em círculo em movimento oposto, com um personagem
tocando kithára. Segundo Dugas, moça, segundo Beazley, Apolo. A visualização direta da peça permitiu dar razão a Beazley,
segundo nossa interpretação, pelo fato do musicista ser a única personagem a não adornar a orelha com brinco.
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Hídria. Figuras vermelhas. Pintor de Peleus (ARV2 1040/19). Atenas, Museu Nacional, 17918. Em torno de 440 a.C.
(MAAS, SNYDER, 1989, p. 121, col. 2, fig. 18 [cap. 5]. Cerqueira, 2001, cat. 315.1). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
133. Instrumento de cordas (7), semelhante à lýra, com braços longos e som mais grave, com caixa de ressonância em forma de
tartaruga. Com origem na Ásia Menor, sua introdução em Atenas é atribuída ao poeta Anacreonte e associado também à
poetisa Safo.
134. Cf. Ânfora. Figuras negras. Sem atribuição. Paris, Louvre, F 207 (Campana 183). Em torno de 520 a.C. (CVA Louvre 3 [França 4]
III H e, pr. 22.1 e 4. CERQUEIRA, 2001, cat. 293). Descrição: Cortejo nupcial, liderado pelo pais amphithales.
135. No sistema iconográfico de cortejo a pé, vemos a figura da mãe nas Figuras 16b e 17.
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Hídria. Figuras negras. Pintor de Príamo. (ABV 333/25) Oxford, Ashmolean Museum, 1965.108. Em torno de 510 a.C.
(CVA Oxford 3 [Grã-Bretanha 14] pr. 37.7-8; pr. 39.3-4. CERQUEIRA, 2001, cat. 289). Desenho: P. Faber.
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Figura 15 – Noivo conduzindo noiva pela mão, em presença de Eros (atenção à troca de olhares)
Lutróforo. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1127/14; Para 453). Atenas, Museu Nacional,
214895 (1174). Datação: 430-20 a.C. (KAUFMANN-SAMARAS, 1996, p. 445, fig. 138;
CERQUEIRA, 2001, cat. 295). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
A noiva tem a cabeça parcialmente coberta por um lenço, o que traz, perante o
público, um resguardo de dignidade inerente à condição de virgem. Zevi vê na
solenidade e gravidade da expressão dos partícipes do cortejo uma atitude
conveniente a uma iniciação mística, modo como o matrimônio era visto pelos
gregos. Não identifica uma linguagem iconográfica atenta à individualidade e
sentimentos (ZEVI, 1938, p. 362-363).
Em alguns casos, o pintor apresenta, de forma justaposta, o ritual que devia
anteceder a partida dos noivos, ao final do banquete: a retirada do véu. Com
conotação religiosa, tratava-se de um momento crucial para os sentimentos da
noiva, que passava a ser vista não mais como uma menina, uma párthēnos (virgem),
mas como uma nýmphē, preparada para assumir sua futura função de gynē, de mãe
e esposa. O ritual foi assunto de uma píxide de meados do século IV a.C, em que
um jovem Eros se encarrega de retirar o véu da noiva136.
136. Cf. Píxide. Figuras vermelhas. Sem atribuição. Berlim, Staatliche Museen, Antikesammlung, 3373. Em torno de 360 a.C.
(REINSBERG, 1993, p. 58-59, fig. 14a-c; CERQUEIRA, 2001, cat. 296). Descrição: Preparativos e festejos nupciais. Ritual de
anakalyptēría, observável no detalhe de Eros retirando o véu da noiva.
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Figura 16a-b – Face A: final de cortejo nupcial (identificação mitológica: Tétis e Peleu?),
mulher tocando kithára / Face B: chegada dos noivos (identificação humana?),
mãe do noivo e jovem com lyra ´
´ Figuras vermelhas. Pintor de Anfitrite (ARV2 831/20). Berlim, Staatliche Museen, F 2530.
Kylix.
Final da primeira metade do século V a.C. (CVA Berlim 3 [Alemanha 22] pr. 101.1-4; SARIAN, 1990,
n. 45 [face B]. CERQUEIRA, 2001, cat. 294) Desenho: F. Vergara Cerqueira.
137. Instrumento de cordas, com caixa de ressonância em forma de carapaça de tartaruga, dois braços e um jugo de madeira, ao
qual se fixavam as cordas, em número usual de sete. Associado a Apolo, aos meninos e à vida escolar.
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menina que abandona seus brinquedos para assumir a vida de esposa, a noiva vem
cabisbaixa, introspectiva, como se temesse seu futuro. Respirando o modelo do
rapto da noiva, segue contrariada, a nymphēútria empurrando-a, por detrás, com as
mãos na cabeça e nas costas, enquanto o noivo a puxa pela mão.
Lutróforos. Figuras vermelhas. Maneira do Pintor de Sabouroff (ARV2 841/75). Copenhague, Museu
Nacional, 9080. Pouco anterior à metade do século V a.C. (CVA Copenhague 8 [Dinamarca 8]
pr. 341.2a-c; pr. 342.1a-b; CERQUEIRA, 2001, cat. 298). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
Píxide. Fundo branco policromado. Sem atribuição. Londres, Museu Britânico, D 11. Datação: 460-
50 a.C. (SARIAN, 1999, p. 78, fig. 10; CERQUEIRA, 2001, cat. 297). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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Por outro lado, temos muitas mudanças. Uma delas é a introdução da figura de
Eros, em substituição à do paîs amphithalés, que, conforme Zevi, corresponde à
tendência de menos realismo e mais idealização, aguçada na iconografia a partir
do terceiro quartel do século V a.C. Calame, porém, vê outro sentido: a presença
de Eros corresponderia a uma promessa de reciprocidade afetiva no casamento
(ZEVI, 1938, p. 362-363). Não vemos incompatibilidade entre essas duas pers-
pectivas: o olhar atento para o ritual e o místico, da análise de Zevi, não anula a
perspectiva aberta por Calame, de perceber expectativas de sentimentos amorosos
femininos que nos levam a detectar na pintura do final do século V a.C. certa
atenção pela psicologia feminina.
O componente místico e religioso das cenas de nymphagōgía a pé, destacado por
Zevi, era reforçado pela simbiose entre o humano e o divino. Essa simbiose pode
ser constatada, por exemplo, em aspectos referentes ao culto dos antepassados
que a noiva devia prestar diante do altar da família de seu noivo, antes de ingressar
em seu novo lar. Assim, o pintor deixa transparecer as crenças e convenções
religiosas envolvidas no ato cerimonial de aceitação da noiva à sua nova casa. Esses
componentes religiosos são apresentados ou pela presença de um altar ou da
divindade Héstia, deusa identificada com o altar-lareira. A divindade pode ser
representada de forma inconfundível, com seus atributos, como o cetro (Figura 18),
e diante do altar, ou de forma simbiótica, confundindo-se com uma figura humana.
É o que ocorre na kýlix do Pintor de Anfitrite (Figura 16b), na qual a figura feminina
recepcionando os nubentes na porta da casa exerce a função da mãe do noivo; no
entanto, o pintor colocou em suas mãos duas tochas, atributo iconográfico que leva
Sarian a identificar a figura de Héstia dadófora (SARIAN, 1999, p. 72-3, fig. 1-3;
1990, n. 45). A assimilação da mãe do noivo à Héstia porta-tochas faz sentido na
função atribuída a essa divindade nos atos religiosos do matrimônio, seguindo uma
longa tradição gráfica que remonta às pinturas de Sóphilos e Kleitias, dos anos 80
e 70 do século VI a.C.
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sexual e afetivo da noiva, defendido, por exemplo, por Eva Keuls (1985, p. 41).
O aspecto mais ousado nestas novas narrativas é a visibilidade conferida ao convívio
entre os diferentes sexos em ambiente doméstico. A iconografia do século VI a.C.
já apontava a possibilidade de moças da família dos noivos atuarem como musi-
cistas nos cortejos. Na iconografia do século V a.C., em vários momentos das
comemorações nupciais vemos o entrosamento, no ambiente familiar, por ventura
da prática musical, entre indivíduos de ambos os sexos da categoria dos cidadãos,
algo via de regra evitado na vida social ateniense. Meninos, tocando aulós ou lýra,
participam, junto com meninas e rapazes, moças e mulheres, de momentos distintos
dos festejos nupciais, como a loutrophoría, a nymphagōgía e a recepção da noiva. Os
membros jovens da família, independente do gênero, colaboraram com os festejos.
Da mesma forma, mulheres bem-nascidas, jovens ou adultas, noivas, amigas ou
esposas, tocam instrumentos musicais em distintos momentos da festa: na anakalyptēría
e na nymphagōgía, o aulós; nos cortejos com quadriga, a kithára ou bárbitos; nas
danças nupciais, a lýra; na epaulía, o trígōnon (harpa triangular).
Existe um detalhe instigante em algumas cenas no gineceu: a presença de rapazes
nesse recinto doméstico que resguarda a honradez das mulheres bem-nascidas
(Figura 19). Timidamente colocados em segundo plano, não têm a atitude da visita
ao prostíbulo. Nunca trazem uma bolsa de dinheiro, não tomam a iniciativa do
assédio ou abordagem: como coadjuvantes e não como protagonistas, na espreita,
apoiam-se sobre um cajado, atrás do espaldar de uma cadeira.
Figura 19 – Competição de dança em armas no gineceu;
detalhe da cena: rapaz no ambiente feminino
Hídria. Figuras vermelhas. Grupo de Polygnotos (ARV2 1060/144). Florença, Museo Archeologico,
4014. Datação: 440-30 a.C. (CVA Florença 2 [Itália 13] III I c, pr. 57.4; 59.1-6.
CERQUEIRA, 2001, cat. 338). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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Figura 20 – Rapaz apoia mão no ombro da moça, que toca aulós no gineceu, diante de Eros com lyra
Hídria. Figuras vermelhas. Pintor de Duomo. (ARV2 1119/29) Londres, Museu Britânico, E 191. Em torno de 440
a.C. (CVA Museu Britânico 6 [Grã-Bretanha 8] III I c, pr. 86.2. CERQUEIRA, 2001, cat. 326).
Desenho: F. Vergara Cerqueira.
Sobre uma hídria londrina (Figura 20), vemos um rapaz. Recatadamente, posiciona-
se atrás da cadeira, sobre a qual está sentada a moça, que toca aulós. Coloca sua
´
mão sobre o ombro dela, permitindo-se um toque físico alusivo à dimensão erótica
do amor que se estabelecerá entre os noivos, enquanto Eros, reforçando o
simbolismo de expectativas amorosas, com uma lýra na mão, aproxima-se da aulētrís,
provavelmente a noiva.
Sobre uma enócoa ateniense do último quartel do século V a.C. (Figura 21), a
abordagem idealizadora do amor entre os noivos é tratada de forma mais evidente:
a moça está sentada tocando bárbitos, enquanto um jovem com uma lança conversa
com um pequeno Eros alado, posicionado entre ele e a moça.
Figura 21 – Moça toca bárbitos, diante de Eros abraçado a jovem com lança
Enócoa. Figuras vermelhas. Sem atribuição. Atenas, Museu Nacional, 1263. Datação: 420-10 a.C.
(MAAS; SNYDER. 1989, p. 118; CERQUEIRA, 2001, cat. 329). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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Píxide. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1133/196). Würzburg, Martin von Wagner Museum, 541
(H 4455). Em torno de 420 a. C. (CVA Würzburg 2 [Alemanha 46] pr. 33.4; 34.1-5; 35.1-8.
CERQUEIRA, 2001, cat. 333). Desenho: F. Vergara Cerqueira.
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Abreviações:
ARV2 = BEAZLEY, J. D. Attic Red-figured Vase-Painters, v. 1 e 2. 2.ed. Oxford: Clarendon
Press, 1963.
CVA = Corpus Vasorum Antiquorum. Union Académique Internationale.
LIMC = Lexicon Iconographicum Mithologiae Classicae. Union Académique
Internationale, Bruxelas; Conseil Internationale de la Philosophie et des Sciences
Humaines, Paris; Association Internationale d’Études du Sud-est Européen, Bucarest;
UNESCO, Paris. Genebra: Artemis Verlag, 8 volumes, 1981-1995.
ABV = BEAZLEY, J. D. Attic Black-figure Vase-Painters. Oxford: Clarendon Press, 1956.
115
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Capítulo VI
Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos, dos gregos aos modernos:
desnaturalizando noções, diversificando a homo/heterossexualidade138,139
138. Artigo publicado originalmente na Métis, Revista de História e Cultura da Universidade de Caxias do Sul, vol. 10, n. 20, p. 53-
78, 2011, sob o título “Sobre efeminação e virilidade, a Grécia vista do pampa”. Texto elaborado a partir da palestra
apresentada na I Jornada Homoerotismo e Diversidade, realizada em novembro de 2011, no Instituto de Ciências Humanas
da UFPel. Na adaptação da palestra, procurou-se manter a cadência discursiva de uma apresentação oral.
139. Agradecimentos: sou grato aos meus alunos Gabriela Rosselli, pela gravação da palestra, e Fabiano Pretto Neiss, pela paciente
degravação do texto. Agradeço, ainda, ao colega Renato Pinto, pela leitura do texto, e, principalmente, pelo ambiente fértil e
bem-humorado de trocas intelectuais sobre homoerotismo e diversidade, no mundo antigo e contemporâneo. Porém, os
argumentos expostos neste artigo são de responsabilidade do livre pensar deste autor.
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que ele procura entender é o que justificava que entre os citas houvesse uma
ocorrência tão acentuada de travestis, os chamados anarieus (HIPÓCRATES, Ares,
águas e lugares, XXII.1-13; cf. HERÓDOTO, Histórias, I.105.4 e IV.67.4).
Os citas eram povos que habitavam as zonas fronteiriças ao mundo grego que
equivaleriam ao que é hoje o sul da Rússia, a Ucrânia, a Geórgia, ou seja, a região
que está ao norte do Mar Negro. Aquela é uma região de imensas pradarias que,
na Antiguidade, além de ser uma grande produtora de trigo, era grande criadora
de cavalo, de onde se importavam cavalos para a Grécia, Roma e outras regiões.
Há aí, do ponto de vista identitário, uma questão contrastante, pois exatamente
não era a Grécia a região produtora de cavalos. Então, na representação dos gregos,
os citas eram grandes cavaleiros. Tal como os gaúchos, a imagem que se tinha deles
era que cavalgavam pelas pradarias o tempo inteiro (HIPÓCRATES, Ares, XVIII.4);
enfim, que dominavam a arte do cavalo.
Partindo dessa representação, Hipócrates encontra a explicação de por que era
tão comum o travestismo entre os citas. O motivo era que a saúde, segundo a
medicina de Hipócrates, era o resultado do equilíbrio dos humores (FRIAS, 2005, p.
40-68). Esses humores eram o quente e o frio, o seco e o úmido... Dentro dessa
lógica do equilíbrio, o corpo feminino encontra o equilíbrio entre frio e o úmido; já
o corpo masculino, entre o seco e o quente. Por exemplo, recomendava-se no discurso
médico da época que o homem fosse parcimonioso na prática sexual, que ele
evitasse o excesso. Não por uma questão moralista, mas sim por uma questão
médica, pois se achava que se o homem praticasse sexo em demasia, ficaria
efeminado, já que ele perderia o calor. Então, o homem teria de se cuidar, pois,
pensava-se, a mulher teria uma voracidade por consumir esse calor do homem,
visto que ela seria fria.
Na mesma linha, o que Hipócrates pensa é que essa coisa do homem ficar sacole-
jando em cima do cavalo geraria uma bagunça nos humores, de sorte que não faz
bem para a saúde sacolejar muito. Então, essa bagunça gera uma inversão no
equilíbrio, fazendo com que predomine no homem cita o princípio do frio e do úmido
(HIPÓCRATES, Ares, XX). Como o homem cita, de tanto sacolejar no cavalo, fica
úmido e frio, ele acaba assumindo um papel feminino (HIPÓCRATES, Ares, XVII-
XXII; FRIAS, 2005, p. 67).
Vejam bem: não é uma condenação moral que pesa, mas apenas uma caracte-
rização científica da medicina da época, em oposição à medicina mais sagrada, que
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daria outras explicações para essa efeminação (cf. HERÓDOTO, I.105.4 e IV.67.4).
Ele aponta existirem outras explicações, no contexto da medicina tradicional, com
as quais ele não concorda, explicações ligadas à ordem divina. Não concorda, por
entender que o travestismo cita decorre de um fenômeno natural (HIPÓCRATES,
Ares, XXII.3).
O motivo pelo qual eu trago esse exemplo é sua potencialidade de estranhamento.
Vejam: o que para o gaúcho é índice de virilidade, o cavalgar, a intimidade com o
cavalo, para Hipócrates, dentro do discurso científico do século V a.C., transforma-
-se em índice de efeminação. Para piorar, a alimentação dos citas se baseia na carne
assada, e são conhecidos por usarem calças largas (HIPÓCRATES, Ares, XVIII.4 e
XXII.13), vistas pelo médico grego como uma das causas da falta de virilidade – e
as calças largas, as bombachas, aqui entre nós paradoxalmente compõem o kit
macheza do gaúcho. Qualquer semelhança, nesse caso, é mera coincidência!
Contudo, bem, isso nos ajuda a pensar, em um primeiro momento, nessas ligações
simbólicas que, apesar de contingentes, acabam sendo naturalizadas pela cultura
– ou pela ideologia. Precisamos perceber essas armadilhas da naturalização, e a
partir daí colocar em prática o exercício de estranhamento, que a história crono-
logicamente distante nos propicia. Por isso eu, mesmo não tendo preconceito com
a história recente, penso que a história presentista nos priva dessa oportunidade
de irmos ao encontro do radicalmente diferente, e que nos obriga a fazer esse
exercício de quebra das coisas que temos entre nós como naturalizadas.
A história de períodos mais recuados e de locais mais distantes nos impõe esse
exercício antropológico de desconstruir essas coisas naturalizadas. Nessa linha, o
que eu tenho observado, no estudo da Antiguidade, é que o tema da sexualidade
em geral, e do homoerotismo em específico, propicia enormes estranhamentos.
A homossexualidade não tem constituído, para mim, até o momento, um tema
central de estudo. Contudo, propus algumas interfaces entre os temas da homos-
sexualidade, da educação, da sedução e da violência em alguns textos publicados,
pois chego ao homoerotismo indiretamente, por meio dos meus estudos sobre
iconografia e música da Grécia Antiga, que são temas nos quais tenho me apro-
fundado (CERQUEIRA, 2011a; 2011b). Eu acabo, volta e meia, me encontrando
com isso, com esse estranhamento, e, diante do que vejo, fico suspeitando: suspeito
dos modelos de interpretação da “homossexualidade” grega em que tudo parece
muito regrado, muito normatizado. E aí eu falo, brincando, com o Renato Pinto e
outros que se interessam pelo tema, que a gente precisa escrever uma espécie de
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140. Alfred Kinsey derrubou por completo o esquema binário excludente (heterossexual vs. homossexual) em que se baseou a
sexualidade científico-cristã ocidental desde meados do século XIX, propondo a Escala Kinsey, que indica uma graduação de
oito alternativas de comportamento sexual: heterossexual exclusivo, heterossexual ocasionalmente homossexual, heterossexual
mais do que ocasionalmente homossexual, igualmente heterossexual e homossexual (bissexual); homossexual mais do que
ocasionalmente heterossexual; homossexual ocasionalmente heterossexual; homossexual exclusivo; e indiferente sexualmente.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Kinsey (extraído em 02/03/2012).
141. Biólogo e psicólogo, concluiu seu doutorado em 1919, em Harvard, estudando a diversidade biológica de uma espécie de
vespa. Ingressou na Universidade de Indiana como professor de entomologia. Ao constatar a diversidade de comportamento
sexual nos animais, percebendo que nenhuma vespa era igual à outra, pressupôs essa diversidade como inerente aos animais,
e que, portanto, precisava ser estudada entre os humanos. É aí que cria a disciplina de Sexologia e, a partir de 1935, recebe
recursos da Fundação Rockefeller para financiar sua pesquisa sobre a sexualidade humana. Foi um estudo sem precedentes,
dado o enorme número de pessoas envolvidas. Sobre o “Relatório Kinsey”, ler, recentemente: SENA, Tito. Os relatórios Kinsey,
Masters & Johnson, Hite: as sexualidades estatísticas em uma perspectiva das ciências humanas. Tese de Doutorado. Florianópolis:
UFSC, 2007. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Kinsey (extraído em 02/03/2012).
142. Um dos resultados práticos foi que, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da lista de
distúrbios mentais, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1986, excluiu-a da lista de doenças. Para uma análise dos
dados de Kinsey sobre a homossexualidade, ver: BUFFIÈRE, 1980, p. 13-15.
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143. O primeiro volume da coleção, dedicado à “Vontade de saber”, foi lançado na França em 1976 e traduzido no Brasil em
1979 pela Edições Graal, que foi responsável pela tradução dos volumes seguintes, dedicados ao “Cuidado de si” e ao “Uso
dos prazeres”, que foram publicados por Foucault em 1984, pouco antes de seu falecimento.
144. Conforme Collin Spencer (1998, p. 52-3): “A bissexualidade equilibrada, na qual o cidadão casado se apaixonava por um
garoto e frequentava cortesãs ou uma amante, representava o comportamento normal. [...] A aceitação da bissexualidade
como resposta natural era tão fortemente enraizada na consciência grega quanto a ideia de heterossexualidade exclusiva o
é em nossa sociedade. Trata-se, certamente, de sociedades onde a sexualidade do cidadão é mais construída do que fixada
biologicamente” (“La bisexualité équilibrée, dans laquelles le citoyen marié s’entichait d’un garçon et fréquentait des courtisanes ou une
maîtresse, représentait le comportement normal. [...] La acceptation de la bisexualité comme réponse naturelle était aussi fortement enracinée
dans la conscience grecque que l’idée d’hétérosexualité exclusive l’est dans notre société. Il s’agit, bien sûr, de sociétés où la sexualité du
citoyen est construite plus que fixée biologiquement.”).
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145. Na mesma direção, Collin Spencer (1998, p. 52) afirma que: “A sexualidade ateniense é bem mais complexa e contraditória
do que parece à primeira vista. De fato, mesmo que a norma social seja sem sombra de dúvida a bissexualidade, esta noção
era cercada por muitas qualificações. Muitos comportamentos não se conformavam à norma, mas apesar de tudo eram bem
aceitos” (“La sexualité athénienne est bien plus complexe et contradictoire qu’il n’y paraît au premier abord. En effet, bien que la norme
sociale soit sans aucun doute la bisexualité, cette notion était entourée de nombreux qualificatifs. Bien des comportements ne se conformaient
pas à la norme, mais étaient malgré tout bien acceptées.”).
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aquilo que não é aceito, que está um pouco em desacordo com a norma hege-
mônica, mas sabe-se que as pessoas praticam “dentro de quatro paredes”, na
intimidade, é aceito que as pessoas o façam, desde que não seja levado a público;
é aquela dose de liberdade que é assegurada às custas do funcionamento dos
mecanismos de hipocrisia social, que se vive no segredo e entre os grupos fechados
de cumplicidade. Eu acredito que o momento que vivemos hoje, de clamor pelo
direito à visibilidade das vivências homoafetivas e homoeróticas, passa muito por aí:
passa por se entender que essa segunda situação deva ser convertida na primeira,
ou seja, não basta a tolerância com a homossexualidade praticada de forma discreta,
poupando a opinião pública do conhecimento de práticas sexuais heterodoxas, pois
impõe-se que a homoafetividade possa ser vivida em igualdade de direito, portanto,
em consonância com o que é socialmente aceito para ser vivenciado em público.
A terceira categoria hipotetizada por Veyne corresponde a um comportamento que
é condenado moralmente. A pessoa vai ser discriminada caso ela for vista na rua
fazendo aquilo, ou caso se comente que ela pratica às escondidas. Contudo, de um
jeito ou de outro, esta pessoa vai seguir levando sua vida. Ela vai ser estigmatizada
e vai sofrer certos preconceitos no seu dia a dia que vão fazê-la mais infeliz, talvez
até possa sofrer atos de violência pelos mais intransigentes, apesar de que não
tenhamos registros de agressões propriamente homofóbicas na Antiguidade. Temos
apenas relatos de pequenos furtos, como o manto de Sófocles roubado quando ele
se divertia com um garoto próximo às muralhas do Cerâmico, ou brigas que
envolviam disputas amorosas, como as encrencas que envolviam Timarco. Essa
pessoa, mesmo que estigmatizada, não vai ser condenada à forca ou à fogueira. A
sociedade como um todo precisa dela, para, por meio do preconceito, da chacota,
da agressão, afirmar que seu comportamento é condenável, e, dessa forma, afirmar
a heterodoxia sexual – no caso moderno, a heteronormatividade. Esse seria o caso
dos efeminados na Grécia Antiga, como o ator Agaton, personagem que conhecemos
do “Banquete”, de Platão, onde é homenageado como ator premiado, mas que
conhecemos também por meio da chacota que dele faz Aristófanes (Tesmoforiazusas,
137-9; 151-2), ridicularizando-o como um quase travesti, que veste trajes próprios
a mulheres, com tecidos transparentes, afeita a barba, e se movimenta de forma
delicada.
Por fim, o quarto comportamento é aquele categorizado como monstruoso e é
completamente inaceitável, totalmente incompatível para o convívio social, visto
como excrescência. Veyne diz que é monstruoso, dentro da análise que faz da
sociedade romana, o homossexualismo feminino.
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Não tenho dúvida de que quando li o texto, ainda graduando em História, achava
que era assim mesmo: que as interpretações trazidas por Veyne para explicar a
homossexualidade romana eram pertinentes. Porém, de lá pra cá, eu acho que o
esquema teórico construído pelo autor nesse texto é mais interessante do que as
análises que ele faz com ele. Acredito que muito mudou nestes últimos 30 anos
para podermos interpretar e colocar em relação o que as fontes escritas, as fontes
materiais e as fontes iconográficas nos trazem. A dicotomia entre passivo e ativo,
como correlata do sistema de dominação do cidadão romano e da dicotomia entre
livre e escravo, parece-nos hoje um sistema mecanicista por demais normativo e
que não dá conta da heterogeneidade dos desejos146. No entanto, eu acho que
segue muito interessante o modelo quadrangular para pensar sexualidade proposto
por Veyne, sem que precisemos segui-lo à risca. Há algo de paradoxal no texto, pois
ele se mantém fiel ao modelo passivo e ativo, usado também por seu amigo Michel
Foucault, mas ao mesmo tempo a criação desse modelo quadrangular enceta outros
elementos, que levam à ruptura do dualismo entre passivo e ativo. O modelo de
Veyne cria de certo modo um clima favorável à percepção queer das realidades
sexuais antigas e mesmo modernas. Ele já colocava que existe, em matéria de
sexualidade, uma variação muito grande entre, de um lado, o que a sociedade diz
que é para se fazer, e, de outro, o que realmente as pessoas fazem. E nos permite
ainda antever a percepção de que há um dégradé multi e microtonal em relação a
esse faz/não faz, pode/não pode, sabem/não sabem. Ele permite antever uma
instabilidade comportamental, apesar de postular a vigência de regras falocráticas
resultantes do sistema político que, como pensa Foucault, ordena o corpo. Nesse
sistema quadrangular, anuncia-se que há um jogo algo imprevisível de ajustes e
desajustes entre o que é permitido ou proibido pela política, pela lei, pela cultura, entre
práticas incluídas e excluídas, anunciadas ou escondidas, toleradas ou execradas.
No meio de tudo isso, o que acaba interessando mais hoje, de meu ponto de vista,
é pensar como se coloca a questão da tolerância nas diferentes sociedades, ontem
146. Para uma crítica recente ao modelo normativo usado por Foucault e Veyne, ver Feitosa (2005, p. 49-50): “Quando Foucault e
Veyne defendem o ideal aristocrático do autodomínio e do controle social, necessariamente têm que distanciar o amor, a
paixão e a volúpia de seu perfil a fim de sustentarem o argumento que apresentam. Dessa maneira, o desatino das emoções
era mais ajustado aos não aristocráticos e às mulheres, ou seja, àqueles que não tinham em suas mãos o seu controle pessoal
e social. É certo que Foucault salienta a construção discursiva do papel sexual aristocrático masculino como uma imposição
de poder, mas apresenta-a de maneira exclusiva, como se não houvesse diferentes concepções em diálogo ou em confronto
com ela. Outras fontes, além da literatura aristocrática utilizada por Foucault, podem auxiliar na composição de variados
discursos. Afinal, não é possível aceitar a imagem de uma ‘inferioridade natural’ e de ‘indolência e lassidão’ destinadas às
mulheres e aos demais ‘homens’ que não pertenciam à elite. E, ainda, essa posição de apresentar um único padrão do que
seria o discurso do ‘homem aristocrático’ em uma sociedade diversa como a romana, é muito complicada” (grifos da autora).
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147. Collin Spencer (1998, p. 53) reporta alguns exemplos dessa fluidez com que o homem grego transitava entre relacionamentos
homossexuais e heterossexuais: “O poeta Meleagro escreve sobre como as mulheres acendem-lhe o fogo, mas como os
meninos seguram as rédeas do desejo. ‘Onde ir, pergunta-se ele, a um garoto ou a sua mãe?’. Teócrito, poeta pastoral, fala
de uma mulher que, rejeitada por seu amante, se pergunta se ele se deita com uma mulher ou com um homem. Xenofonte,
mencionando a liberação de prisioneiros de guerra, evoca os soldados tentados a guardar em segredo um belo rapaz ou uma
mulher bonita” (“Le poète Méléagre écrit comment les femmes alument en lui le feu, mais comment les garçons tiennent les rênes du
désir. ‘Où aller, demande-t-il, vers le garçon ou vers sa mère?’. Théocrite, poète pastoral, parle d’une femme qui, rejetée par son amant, de
demande s’il couche auprès d’une femme ou d’un homme. Xénophon, mentionant la libération de prisionniers de guerre, évoque les soldats
tentés de garder en cachette un beau garçon ou une jolie femme.”).
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Por aí não se explora muito. A “pegação” nos muros do Cerâmico, onde ocorrem
as aventuras de Sófocles com um michê que lhe rouba seu manto, bem, histórias
dessa ordem não costumam despertar muito a atenção dos estudiosos. A aceitação
social de um efeminado, quase travesti, como o ator Ágaton – afinal é o
homenageado do banquete relatado por Platão, do qual participam indivíduos
respeitáveis na Atenas da época – não costuma ser objeto de reflexão; por outro
lado, o deboche de Aristófanes com relação a ele costuma ser lembrado como prova
da rejeição social à efeminação, própria do sistema hegemônico da virilidade que
emanava do cidadão-soldado, e dele se exigia (“Vespas”, “Tesmoforiazusas”).
Para mim, não me parece suficientemente clara a forma como é vista a efeminação
pelos gregos. Buscamos entendê-la com base nos paradigmas heteronormativos
modernos, em que se pressupõe a dicotomia, na sexualidade masculina, entre a
macheza heterossexual e a efeminação homossexual? Ficam algumas perguntas:
como é tratada a questão da efeminação em uma sociedade da virilidade que não
é uma sociedade heteronormativa, como é o caso da Grécia Antiga? Basta responder
que é rejeitada? Não será mais complexo, mais cheio de meandros? Como é tratado
o amor entre dois homens adultos ou adultos jovens, que se instauraria contra esse
modelo de pederastia que foi elevado à condição de paradigma da homossexua-
lidade antiga? Como é visto se dois jovens continuarem, em idade adulta, a manter
um relacionamento homoerótico?
Pois bem, existem ressonâncias, seja na mitologia ou na tradição dos fatos históricos,
de relacionamentos entre homens que não se enquadravam no modelo vigente na
historiografia hegemônica sobre a homossexualidade grega – e tenho lá minhas
dúvidas se podemos considerá-lo um modelo de fato vigente na Grécia Antiga!
O exemplo mais conhecido é o de Aquiles e Pátroclo, pois, primeiramente, a
diferença de idade entre os dois heróis é muito reduzida. Pátroclo, primo distante
de Aquiles, é acolhido na Tessália por Peleu, pai de Aquiles, em razão de seu exílio.
São educados juntos na música, na arte militar e até mesmo na medicina. Esta-
beleceram-se laços fortíssimos de amizade entre os primos. Combateram juntos em
várias frentes.
Usando a armadura de Aquiles, Pátroclo enfrenta os troianos, massacrando
inúmeros guerreiros. No entanto, ao final, confundido com Aquiles, pela arma-
dura e pela bravura, é morto por Heitor. A vingança de sua morte torna-se uma
obstinação para Aquiles, que a coloca acima dos interesses de guerra dos aqueus.
Indo a Troia, desafia o filho de Príamo para um duelo, que resulta na morte do
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que amou em vão”. Seguindo na mesma linha, que em uma visão heterossexual
da história pode ser considerada muito exagerada, porque desabonadora de herói
notabilizado por seus feitos militares, apresenta um Alexandre que titubeia no
interesse sexual por Roxana, evocando a lembrança de Kleitos: “Infelizmente, aquele
a quem eu teria abraçado com a maior das vontades, é aquele que matei...”
(MOSSÉ, 2004, p. 210-11).
Heféstion era seu amigo desde a infância. Além de acompanhá-lo na campanha da
Ásia, recebeu importantes comandos e títulos administrativos. Em 324 a.C., morre
subitamente, deixando Alexandre desolado. Da mesma forma como Aquiles proce-
dera com relação à memória de Pátroclo, Alexandre “lhe concedeu funerais grandio-
sos e o elevou à posição de herói, instituindo festas em sua honra” (MOSSÉ, 2004,
p. 226). Fato análogo se repete quando o imperador Adriano, após a morte por
afogamento no Nilo, em 130 d.C., de seu favorito Antínoos da Bitínia, divinizou-o,
espalhando o seu culto, bustos e retratos pelas cidades do Império.
Após a perda de Heféstion, é com o eunuco Bágoas, variante antiga do que hoje
chamamos transgênero, que o Alexandre de Klaus Mann vai reconfortar seus
sentimentos homossexuais. Com liberdade ficcional, Mann transforma-o de eunuco
em hermafrodita. Claude Mossé pensa que a ênfase na homossexualidade de
Alexandre seja uma escolha do autor (MOSSÉ, 2004, p. 212). De certo modo, penso,
é um argumento vazio, pois o desinteresse pelos amores homoeróticos de Alexandre,
comum em outras biografias, deveria ser visto nessa lógica também como uma
escolha de autoria, de autoria heterossexual. Contudo, não é isso que nos interessa
aqui, afinal, Mann tem todo o direito de contar a vida de Alexandre dando valor a
uma forma afetiva com a qual se identifica. Para nossa reflexão, queria destacar o
seguinte: independentemente dos pormenores dos relacionamentos afetivos
mantidos por Alexandre com Kleitos, Heféstion e Bágoas, podemos destacar alguns
aspectos que evidenciam a não sujeição desses afetos à norma homoerótica
pederástica tida como oficialmente aceita e recomendada. Primeiro, Alexandre
pertence à mesma faixa etária de Kleitos e Heféstion, não configurando a assimetria
geracional. Segundo, o relacionamento erótico é mantido após ingressarem na idade
adulta, sem que isso configure qualquer prejuízo à virilidade e vida militar desses
personagens. Por fim, Alexandre mantém com o eunuco Bágoas um relacionamento
homossexual que não se conforma ao modelo pederástico.
Como vimos, temos, na tradição literária e iconográfica, relatos e modelos de
relacionamentos homoeróticos que não se enquadram no padrão esperado da
relação homoerótica baseada na assimetria geracional e na clara oposição passivo-
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-ativo. Esse modelo é visto por autores como Veyne e Foucault como correlato
das estruturas de poder das cidades-Estado antigas, no que se refere ao valor da
virilidade, bem como à projeção, sobre as categorias de gênero e idade, da hege-
monia social e política do homem livre, cidadão e soldado. É a estrutura de dominação
invadindo o corpo e disciplinando as relações sexuais, sejam elas heterossexuais
ou homossexuais.
Ora, ao trazer esses exemplos, eu me pergunto: será que era assim mesmo? Será
que essa coisa de identificar nas fontes um discurso normativo, uma ideologia
sexual, não foi um conforto da ideologia sexual do século XIX e XX? Não foi um
conforto, a serviço de resolver um dilema?
Vejam bem, comecemos pelo dilema: como é possível que a Grécia, propalada como
o berço da civilização ocidental, seja caracterizada por um comportamento
completamente contrário ao paradigma que a civilização ocidental vitoriana assume
com relação a gênero e sexualidade? Esse paradigma, como vimos, estabelece a
dualidade entre heterossexualidade e homossexualidade, em que a primeira é
definida como polo positivo, e a segunda, como negativo – mais ainda, estabelece
a excludência intrínseca entre os universos abarcados pela heterossexualidade e a
homossexualidade. Esse paradigma oitocentista consegue se consolidar de tal forma
que, graças à convergência entre ciência e religião, razão e fé, estabelece-se como
princípio natural e universal, com base no qual toda a experiência humana deveria
ser entendida, julgada e disciplinada.
Então, esse dilema é um problema que precisou ser resolvido pelos historiadores,
filólogos e arqueólogos do século XIX e início do XX. Qual foi a solução: afirmar
que os gregos não eram propriamente homossexuais, mas tinham uma forma
atenuada de amor assimétrico entre indivíduos do mesmo sexo, que não previa
relação carnal, o chamado “amor platônico” – e que os gregos, portanto, não
aceitavam a homossexualidade definida como relação amorosa simétrica entre dois
homens. Resolvido o dilema! Criada a armadilha!
Prestem atenção: afirmar que na Grécia Antiga havia uma forma corrente de amor
homoerótico, porém baseado na assimetria geracional, com fins pedagógicos e
iniciáticos, amor que deveria ser convertido em apenas amizade após o ingresso
do amado na idade adulta é uma forma de neutralizar o potencial desestabilizador
que a homossexualidade grega apresentava para a sustentação do mito fundacional
do Ocidente. A identidade de Ocidente, em construção, escolhia a Grécia racional
como “berço da civilização”, e, portanto, não poderia essa mesma Grécia cometer
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de fuga, de escape, em que os desvios a essa norma são permitidos. Dos manicuros
do Egito Antigo aos cabeleireiros de hoje, parece-me que há algo quase estrutural,
em termos de longa duração, que define que profissões tais como cabeleireiros,
manicures, maquiadores, estilistas e artistas são espaços no mundo do trabalho
reservados aos homossexuais – homossexuais com atitude afetada estereotipada!
–, espaços em que certa efeminação é sempre tolerada e, por vezes, até presumida.
É como se ali fosse criado um nicho em que é permitido que um homem ou uma
mulher tenham uma conduta que fira a regra geral que determina a virilidade
(macheza) ao homem, e a feminilidade (delicadeza) à mulher.
Peguemos novamente o caso dos cabeleireiros de hoje e dos manicuros do Egito
Antigo. A longuíssima duração poderia fazer pensar que exista algo natural que
vincule cortar cabelo ou cuidar de unhas a ofícios para efeminados, quando
exercidos por homens. Tanto isso não é verdade que, hoje, existem muitos meninos,
heterossexuais ou no mínimo sem postura efeminada, que fazem sucesso entre a
“garotada” como cabeleireiros, sem se associarem esteticamente à efeminação ou
à homossexualidade.
Pois bem, voltando para a Grécia, vejamos o caso dos atores. Eles representam
papéis femininos com máscaras, isto é, são homens que fazem os papéis femininos.
Isso, por si só, não os vincularia a uma postura social cotidiana efeminada, apesar
do desconforto que a performance de papéis femininos causaria perante o imaginário
da virilidade. Isso nos remete a outra questão: Como se colocaria, simbolicamente,
a profissão de ator – ou até mesmo de músico – face o valor da virilidade?
Ora, o banquete que ambienta o diálogo de Platão ocorre em uma festa realizada
em homenagem a Agaton, que é um ator premiado no concurso trágico das
Dionisíacas. O mesmo que é alvo dos maiores deboches de Aristófanes em razão
de sua efeminação. No entanto, pessoas de setores respeitáveis da sociedade
ateniense se fazem presentes nessa festa. É prestigioso estar ali. E, a crer no
Aristófanes – e o que ele fala não parece algo muito estranho para um ator ou
artista grego, até por que as vestimentas que conhecemos dos músicos lembram
aquelas atribuídas a Agaton pelo comediógrafo – Agaton é completamente
“bichinha”, completamente efeminado. No entanto, não há qualquer problema
nisso, visto que ele é ator. Modernamente, outros profissionais, mesmo reconhecidos
por sua efeminação, como estilistas, cantores ou bailarinos, usufruem de fama e
são frequentados, assim como os prestigiados atenienses foram à festa de Agaton,
pois, mesmo havendo o preconceito heteronormativo predominante, há um
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Ora, a esse ponto, cabe que nos remetamos à dimensão linguística, em que a
palavra kitharōidós, em certo linguajar popular, devia significar algo como “bichinha”.
Usava-se então, por vezes, com sentido pejorativo, carregando a insinuação de
passividade sexual148.
Ora, sobre o músico recaía a suspeita de fraqueza e efeminação. Um músico
profissional era visto como alguém inapto à vida cívica e relapso na condução de
assuntos particulares. Ele compartilhava, pensava-se, da covardia feminina. Esses
são os argumentos utilizados pelo Zeus de Eurípides para desqualificar o lirista
Anfião – suspeita de feminilidade, incompetência militar e déficit de coragem e
virilidade:
A natureza deu-te um coração robusto, mas tu exibes uma
aparência que imita a de uma mulher [...] Tomes um escudo
e não saberás o que fazer com ele, nem serás capaz de
defender outros através de estratégias corajosas e viris
(Eurípides, Antíope, fr. 185).
148. Sobre a vinculação simbólica entre o citaredo, a efeminação e a homossexualidade passiva, ver: CERQUEIRA, 1997, p. 126-129.
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masculinas pouco definidas – e que ainda não haviam completado 18 anos, nem
o período de treinamentos militares da efebia, não sendo ainda legalmente cidadãos
– submetiam-se servilmente ao prazer de adultos, assumindo o papel passivo. Ora,
muitos desses púberes, em função dos costumes do sistema educacional ateniense,
podiam ser identificados como cantores ou citaristas.
A língua tratou de cristalizar essa confusão semântica entre menino, homossexual
passivo e citarista ou cantor. Dispomos de vários exemplos. Em um fragmento de
uma comédia de Aléxis, o filho pede à mãe que não o ameace com Mísgolas, pois
ele não é um kitharōidós (ALEXIS, fr.3). Parece que o menino queria dizer que ele
não era uma “bichinha”. Em outro fragmento, do filósofo cínico Antístenes, não
fica claro se os termos empregados significam “guri” ou “fresco”: “Mas aqui temos
um mocinho (kítharos)”. É bastante possível, acredito, que a língua ferina de
Antístenes quisesse dizer: “Ora, vejam, uma ‘bichinha’”. Na sequência, comenta:
“Se ele [Mísgolas] o vir, não conseguirá ficar sem agarrá-lo. As pessoas não
percebem o quanto ele é louco por kitharōidoí” (ANTÍSTENES, fr. 26, 12-18). E agora,
o que significa essa acepção do vocábulo: Mísgolas é louco por citaredos, por
meninos pubescentes ou por “mariquinhas”? No caso, a polissemia serve à ironia
literária. Por conseguinte, nesse ambiente cultural, tão logo se falasse de um citarista
ou citaredo, imediatamente podia vir à mente a suspeita de que se tratasse de um
homossexual passivo, o que seria absolutamente inaceitável para um cidadão
adulto, apesar de tolerado para um ator ou músico.
Kitharōidós fica consagrado como um termo pejorativo, que é usado para diminuir
moralmente. Ao menos é o que vemos na acidez de alguns comediógrafos e no
azedume dos logográphoi. Essa linguagem exclui, mas ao mesmo tempo inclui, uma
vez que linguisticamente se situa no dégradé de condutas recriminadas, mas
toleradas. E, diferentemente dos comediógrafos e advogados, os pintores de vaso
souberam traduzir esta tolerância moral ao expressarem o grande prestígio de que
esses músicos desfrutavam, mesmo sendo reconhecidamente efeminados na
aparência, o que se traduzia também pela falta de perfil atlético, alguns deles até
bastante barrigudos.
Quando eu falo, assim brincando, em fazer um “Relatório Kinsey” do homoerotismo
grego, eu na verdade estou falando de uma coisa muito complicada, ao menos se
partirmos do padrão dicotômico “hetero e homo” estabelecido no século XIX.
Complicada, pois, diferentemente dessa dicotomia, havia na Grécia Antiga uma
“trissexualidade” – ou um tríplice erótica – no parâmetro da ideologia oficial e, ao
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ciadas entre os gregos. Isso evidencia uma realidade que não se conforma de todo
ao modelo que a gente aprende na maioria dos livros que tratam da sexualidade,
pois até os anos 2000 ainda predominava uma visão normativa da homossexuali-
dade grega, apesar de alguns estudiosos já terem apresentado sensibilidade para
perceber a heterogeneidade (BUFFIÈRE, 1980; SPENCER, 1998). O próprio Foucault
é um exemplo. Para nós, seu pensamento é referência em termos de filosofia e
teoria social, quando desconstrói a noção essencialista de indivíduo, de unicidade
do indivíduo, e apresenta o sujeito não como “indiviso”, mas como “diviso”, porque
constituído ao ser dividido, atravessado por múltiplos discursos: isso quer dizer
que leva ao rompimento com a ideia de essência do indivíduo. Essa quebra de
paradigmas nos levaria, como consequência, em uma perspectiva pós-moderna,
ao paradigma da diversidade, que norteia o pensamento social contemporâneo.
Ora, quando Foucault entra no campo da homossexualidade grega, ele opta pelo
modelo normativo, caindo na armadilha.
Então, foi isso que eu quis trazer para vocês, muito obrigado.
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Capítulo VII
Nos últimos anos, tenho estudado aquilo que chamamos de usos do passado que,
em linhas gerais, busca entender qual é a importância do mundo antigo e de suas
leituras na modernidade149. No entanto, essa preocupação é mais antiga e começou
ainda durante o meu doutorado, em 2000, e o produto dessas reflexões pode ser
visto nos capítulos 1 e 2 da tese desenvolvida (GARRAFONI, 2005). Gostaria de
retomar aqui, de maneira resumida, alguns desses aspectos, pois os considero
importantes para a compreensão dessa primeira aula. Logo, gostaria de, antes de
me centrar no mundo romano, convidar a todos para olharmos um pouco o território
italiano do final do século XVIII e início do XIX. No entanto, podemos nos
questionar: por quê? A razão dessa reflexão se justifica na medida em que é nessa
época que começa a surgir uma preocupação que está ligada com as primeiras
ideias do que é patrimônio cultural, de como se seleciona e preserva o passado
romano, tema muito caro aos estudiosos da atualidade150.
Nesse período mencionado (final do século XVIII e início do XIX), com as campanhas
napoleônicas sobre a Península Itálica, o papado inicia um processo de luta pela
tutela e preservação do patrimônio histórico contra os saques e espoliações que
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151. Para detalhes sobre o momento histórico em que a carta a Leão X fora recuperada, propostas de traduções dos manuscritos
e todas as polêmicas ao seu redor, cf. Teodoro (1994).
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152. Sobre a relação entre arqueologia e Rafael cf., por exemplo, Burns (1984, p. 381-404) e Nesselrath (1984, p. 405-408).
153. Sobre essa questão, cf., por exemplo, White (1994, p. 39-63).
154. Sobre a relação da arqueologia com o nacionalismo veja, por exemplo: Díaz-Andreu (1999, p. 161-180) e Díaz-Andreu (2001,
p. 3-20).
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155. Cf, por exemplo, os trabalhos Richard Hingley, que caminham nessa direção de crítica ao conceito (HINGLEY, 1996, p. 35-48,
2000, 2002, 2010).
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156. Tradução de minha autoria. No original em inglês lê-se: “Rather, we are being forced by our present conditions of existence to rethink
how we construct the-past-as-history”.
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Capítulo VIII
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Capítulo IX
A arqueologia clássica tem suas origens mais remotas na busca, por parte dos
colecionadores e antiquários do Renascimento, de estátuas e outras belezas antigas
que serviriam de inspiração para os modernos. Esses antiquários buscavam os
vestígios de gregos, egípcios e, principalmente, dos romanos, tanto por estarem
mais disponíveis, como por representarem o poder imperial. O Império turco-
-otomano não permitia o acesso às antigas terras gregas e egípcias, enquanto os
restos romanos eram abundantes em toda a Europa. Os ingleses interessaram-se
pelos romanos na antiga província da Britânia (43-410 d.C.), pois consideravam
sua missão conquistadora na Irlanda e na América do Norte semelhante à dos
romanos frente aos antigos bretões. Durante esse período, objetos romanos
completavam a educação dos meninos das elites europeias, que estudavam latim
e sabiam de cor passagens de Cícero (103-43 a.C.) e Virgílio (70-19 a.C.), para que
pudessem servir às monarquias absolutistas dos séculos XVII e XVIII.
O século XVIII, já sob influência do Iluminismo, viria a testemunhar o surgimento
do que ficou conhecido como grand tour, uma viagem de descoberta que poderia
durar meses ou mesmo anos, como um rito de passagem para jovens da elite dos
principados alemães, da França, Inglaterra e de outros centros distantes do Mediter-
râneo. Esse passeio centrava-se nas escavações arqueológicas, se assim pudermos
chamar, de Roma, em primeiro lugar, mas também de Pompeia e Herculano e dos
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sítios etruscos, no norte da Península Itálica. Era, portanto, uma viagem entre a
Toscana e a Campânia, tendo como principal atração as antiguidades romanas.
O resultado foi o surgimento dos primeiros desenterramentos sistemáticos, precur-
sores do que viriam a ser as escavações arqueológicas. Buscava-se desenterrar as
grandes estruturas arquitetônicas, como casas, templos e palácios, e retirar objetos
íntegros de valor estético elevado, como estátuas e pinturas parietais. O desenter-
ramento sistemático de Pompeia iniciou-se em 1748 e permitiu que a segunda
metade do século XVIII, sob o influxo de entusiastas como Johan Joachim
Winckelmann (1717-1768), testemunhasse a passagem de antiquários para
arqueólogos ou historiadores da arte romana.
As escavações das cidades sepultadas pelo Vesúvio em 79 d.C. iniciaram um novo
surto de classicismo, que levaria ao movimento neo-clássico a partir da publicação,
em 1857, do primeiro volume de um total de sete – “Le antichità di Ercolano
esposte” (“As antiguidades de Herculano expostas, 1757-1792”). Após a leitura
de Winckelmann, o poeta J. W. Goethe (1749-1832) decidiu-se por visitar a Campânia,
a partir de 1787, tendo sido um dos primeiros a propor que as cinzas e poeira do
vulcão teriam pairado sobre Pompeia antes de descer e sepultar a cidade. Os objetos
eram levados de Herculano e Pompeia para o Museu de Nápoles em verdadeira
procissão, sob os auspícios e inspeção dos reis de Nápoles e das duas Sicílias.
Esses princípios da arqueologia romana foram muito caracterizados pelo fascínio
pelas estruturas arquitetônicas, como atestam as atuações pioneiras do arquiteto
suíço Karl Jakob Weber (1712-1764) na escavação da Villa dos Papiros, em Her-
culano, e dos prédios de Júlia Félix em Pompeia. Incluíam-se requintes até hoje
raros e muito valorizados, como as representações axonométricas ou tridimensionais.
A arqueologia clássica surgia, assim, como pioneira, e pode ser considerada, por
isso, como a primeira arqueologia, se a definirmos como a disciplina voltada ao
estudo sistemático dos objetos, ainda em pleno século XVIII, muito antes, portanto,
da arqueologia pré-histórica. Ela surgia como parte da filologia e da história da
arte, e como arqueologia romana. A Península Itálica concentrou a atenção dos
estudiosos das artes e objetos romanos, tendo contribuído para isso a invasão de
Roma por Napoleão, em 1809. Desde a Revolução Francesa de 1789, o mundo
romano foi tomado como fonte de inspiração. Napoleão lia as obras do general e
ditador romano Júlio César (100-44 a.C.); o imperador romano Augusto (63 a.C.-
14 d.C.) serviu de modelo para o bonapartismo; o código napoleônico de 1810
moldava-se nos códigos de direito romano. Tudo isso contribuía para que, tudo que
fosse romano, de moedas a inscrições, passasse ao centro das atenções.
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A cidade de Roma foi, por décadas, caracterizada por escavações desse tipo e pela
demolição de construções medievais e modernas, com reconstruções também, em
diversos casos, criando o que viria a ser a moderna Roma Antiga que se pode visitar.
Como fica claro no relato de Lanciani, o desenterramento não estava interessado
nos vestígios encontrados no que era denominado de lixo, pois apenas grandes
objetos de arte portentosos eram considerados relevantes, como fica claro em outro
testemunho do mesmo escavador: “Na minha longa experiência de escavações em
Roma, apenas duas vezes descobri estátuas em seus antigos lugares, em seus
pedestais originais” (9 de junho de 1883).
A busca por inscrições era a outra grande febre que caracterizava a arqueologia
romana em toda a Europa. A Academia de Ciências de Berlim iniciou os trâmites
para a publicação de todas as inscrições latinas em 1847, e o estudioso Theodor
Mommsen (1817-1903) capitaneou a publicação dos volumes. a partir de 1853.
Até o dia de hoje já foram publicadas mais de 180 mil epígrafes. As inscrições
monumentais, que já eram coletadas desde o Renascimento, continuaram a merecer
atenção especial, como no caso de uma inscrição proveniente do templo de Ísis
em Pompeia:
N. Popidius N. F. Celsinus
Aedem isidis terraemotu
Collapsam a fundamentis P. S. restituit.
Hunc decuriones ob liberalitatem
Cum esset annor. sexs.
Ordini suo grati adlegerunt.
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Capítulo X
Questões introdutórias
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“cultivar”. Para fazer isso teremos que entender o quê e quem tencionamos estudar,
qual aspecto do pensamento de um autor queremos destacar e porque nos parece
necessário nos envolvermos em uma pesquisa.
A primeira coisa que é preciso estabelecer é o problema que desejamos resolver, e
em seguida circunscrevê-lo e identificar as questões que estão em jogo. Para fazer
isso é preciso explorar a bibliografia referente ao objeto de pesquisa.
Claramente a categoria estudos clássicos poderia ser entendida como abarcadora de
todas as conceituações antigas. Contudo, podemos verdadeiramente compreender
sob uma única categoria as produções intelectuais ou artísticas antigas da China,
da Índia, da Babilônia? Talvez sejaexagero pretender tudo isso, embora possa ser
interessante, sem dúvida, e embora haja importantes pesquisadores que se ocupam
ao mesmo tempo e comparando entre si aspectos da Grécia e das culturas orientais
(Geoffrey Lloyd é o exemplo mais famoso hoje em dia). Precisamos, todavia, sempre
ter claros os pontos de contato e de alteridade entre as diversas civilizações, e não
somente, por exemplo, entre a grega e a chinesa, mas também entre civilizações
muito mais próximas, tal como a grega e a romana.
É preciso compreender onde, entre uma cultura e outra, haveria um continuum, e
onde não. Isso é um discurso, para o nosso campo de estudos, que pode, por exemplo,
interessar a antropologia histórica, âmbito por muitos invocado, mas poucas vezes
desenvolvido verdadeiramente.
Por outro lado, como se faz para criar um objeto de pesquisa? Claramente o ponto
de partida é o texto, qualquer tipo de texto, seja ele tratado, diálogo, poema, carta,
testemunho sobre um autor, imagem pictórica, estátua etc. Cada um desses tipos
de texto terá uma metodologia diferente de pesquisa, sendo diferente do tipo de
texto em que o pensamento do nosso autor x se expressa.
Como primeira coisa, o texto! No entanto, os estudos clássicos são feitos a partir
de duas línguas, o grego e o latim, que é preciso conhecer para começar uma pesquisa.
Assim, a segunda coisa importante a se ter em conta é a língua. Porém a língua,
especialmente a grega, não foi sempre a mesma ao longo de sua vida; os signi-
ficados das palavras podem mudar, pode haver termos que em um âmbito significam
uma coisa e, em outro, outra. Precisamos estar cientes de que a língua grega escrita
teve uma vida muito mais longa do que a das nossas línguas “vulgares”, uma vida
que vai do século VIII a.C., mais ou menos, até os desdobramentos bizantinos: uma
vida de mais de dois mil anos! Claramente temos todos os instrumentos para não
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nos perdermos nesse mare magnum, mas desses instrumentos vou falar
brevemente na segunda aula. O que queria fazer era indicar, imediatamente,
quanta atenção temos que prestar quando entrarmos em contato com um texto
distante de nós mais do que dois mil anos.
Clássico e antigo
Falamos de definir e de definições. Precisamos, por isso, ser um pouco mais precisos
nesse assunto.
Demos, en passant, uma definição do termo metodologia por meio de uma imagem
que coloquei, a da estrada, do caminho por um lugar que afinal leva ao destino,
um caminho que tem etapas. Gostaria de falar brevemente do conceito de antigo,
introduzindo-o com uma anedota.
Certa vez, quando era doutorando e estudava em Paris, me aconteceu de sair com
os meus amigos e outros pesquisadores que nunca havia encontrado antes. Na Rue
de Rivoli, perto do Hôtel de Ville, converso com uma doutoranda que estudava
paleografia. Em certo momento, ela me pergunta o que eu estudava, e claramente
lhe digo que estudava filosofia antiga. A essa altura, ela me pergunta à queima-
roupa: “Mas ‘antiga’, quanto?”. Fiquei um pouco confuso por uma pergunta tão
ingênua, de modo que pensei que ela queria tirar sarro de mim. Seja como for,
também a ingenuidade da pergunta me empurrou a dar uma resposta e, para
não parecer soberbo, lhe disse laconicamente: “Estudo Platão”. Porém, a pergunta
poderia se especificar neste sentido: “Quão ‘antigo’ é Platão?”. Felizmente ela
não a fez!
Isso me impele, agora, ao problema de propor uma resposta: o quão antiga é a
filosofia antiga? Podemos dizer que antigo pode significar também velho, e nesse
sentido não há dúvida de que a filosofia antiga seja uma coisa muito velha.
Entretanto, antigo leva consigo também outros significados, como clássico e funda-
mento, e talvez a resposta esteja nesses dois conceitos. Comecemos pelo segundo.
Antigo, no sentido de fundamento, pode dar significado a tudo o que veio depois, na
história da cultura, e apoia o próprio ser sobre o que a Antiguidade já disse. Nesse
sentido, as discussões dos filósofos, dos historiadores, dos cientistas suces-
sivos são construções na base das quais há toda a especulação antiga. Não pode-
ríamos entender, em resumo, o aristotelismo e o antiaristotelismo da época moderna
sem Aristóteles, ou a teoria copernicana, ou ainda o hipocratismo na medicina, que
chega até o século XIX, sem conhecer os autores antigos.
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Entretanto, o conceito de antigo como clássico indica também uma outra pers-
pectiva, que age mais por dentro das coisas e no nosso modo de entender a cultura.
Considerar o antigo como clássico significa que o pensamento que gregos e
romanos expressaram funciona como um paradigma, um código genético que
a literatura, a filosofia e a política têm por dentro de si, como uma espécie de
impostação que, também no mudar das doutrinas e das correntes de pensamento,
nunca desaparece. A esse ponto se põe a pergunta acerca do conceito de clássico e
do uso que desse conceito os modernos, nós mesmos, fazem, porque podemos ter
muitos usos de clássico também irreduzíveis uns aos outros. Para ficar no século XX,
pensemos na escultura da Rússia soviética, em que a estatuária se inspirava em
cânones gregos para propor um novo modelo de homem. Ou pensemos no
classicismo dos anos 1920 e 1930 da Alemanha nazista, em que o modelo grego
era considerado uma chave nacional-socialista para operar uma regeneração, uma
palingénesis do povo alemão – pensemos no fato de que os nazistas, em sua
propaganda, se referiam muitas vezes à “República” de Platão para se propor como
os guardiões do novo Estado regenerado. Pensemos também no fascismo na Itália,
que não foi um movimento só político, mas interessou pelos mais importantes
aspectos da cultura, como a arquitetura; pensemos, enfim, no pós-moderno e nas
colunas dóricas dos locais dos anos 1980!
Claramente o “clássico” serviu para justificar conceituações da arte, especulações
filosóficas e também visões da vida e da política. Nesse sentido, a categoria de
clássico atravessa toda uma cultura e um tempo e, se pensamos na nossa época
“democrática”, não podemos não notar o quanto a propaganda da democracia
“exportada” se refere ao exemplo grego! Somente após a devida reflexão é possível
descobrir que a democracia dos antigos não era mesmo o que quereriam mostrar
os sustentadores da “democracia em todos os países”. É preciso, portanto, prestar
muita atenção quando a categoria de clássico está sendo utilizada sem uma reflexão
adequada sobre as conceituações antigas, porque poderíamos perceber que
os “clássicos” dos quais estamos falando na verdade são “muito modernos”. O
trabalho do classicista é também o de refletir sobre as interpretações modernas
acerca do mundo antigo.
O clássico se torna, assim, uma macrocategoria capaz de incluir coisas que não
podem ser próprias do mundo clássico. Nesse sentido, clássico indica uma coisa que
é um ponto firme, uma perspectiva privilegiada com que observar a cultura em suas
mais diversas manifestações. Aqui, todavia, vamos além dos limites da nossa
matéria, porque clássico indica uma coisa que é um ponto de referência, não importa
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o quão “velho” seja. Italo Calvino, em “Perché leggere i classici”, nos diz que o
clássico é um texto que nunca deixa de nos falar, que nos indica sempre perspectivas
novas; clássico é um texto em que notamos, cada vez que o lemos, coisas que antes
nunca achamos. Um clássico pode ser, e com certeza é, o “Dom Quixote”, mesmo
não tendo sido escrito por um grego ou um latino.
Temos que tentar mediar essa linda sugestão com o dado da história, e dizer que
antigo tem uma data de nascimento e uma de morte.
Podemos dizer que o mundo clássico nasce na Grécia e nas colônias da Ásia Menor
e da Magna Grécia por volta do século VIII a.C. e termina com a data símbolo do
529 d.C., ano do encerramento da Escola de Atenas pelo imperador Justiniano, ou
seja, com o que se chama de época tardo-antiga, em que o pensamento pagão
(grego e romano) se confronta cada vez mais com o pensamento cristão – pensemos
em Agostinho, por exemplo. Nesse sentido, antigo deve ser entendido como Período
Antigo, que vem antes da Idade Média. No entanto, essas são distinções temporais
que interessam também à história propriamente dita, e indicar uma data se torna
bastante arbitrário, porque, falando de literatura ou de filosofia, temas, estilos e
métodos de pesquisa que podemos chamar de antigos se encontram deste lado e
além desta data. Como conselho a todos, digo para ler um bom manual de história
antiga para compreender um pouco melhor o que acontece na história desse
período, porque a pesquisa sobre o pensamento antigo não pode abster-se da
história geral em que esses pensadores, poetas e artistas viveram, nem das suas
condições materiais.
Para os especialistas de uma disciplina, talvez o problema principal seja o de fazer
dialogar o próprio âmbito específico com os outros que se ocupam do mesmo
período histórico. Por exemplo: a filosofia antiga foi, talvez mais do que outros
campos da Antiguidade, a que mais sofreu de leituras modernas que alteraram sua
fisionomia. Também porque falar de filosofia antiga significa remontar às origens
mesmas da filosofia. A pergunta sobre a origem da filosofia teria que ser: “O que
era a filosofia antiga para os antigos?”157. Há uma posição, proposta por vários
estudiosos, pela qual a filosofia começa com Sócrates, por ser ele o “primeiro” a
fazer da ética um âmbito próprio de pesquisa. Contudo, para sermos fiéis ao
princípio da aderência textual, encontramos a primeira ocorrência do termo filosofia,
com o sentido de especulação peri physeos, ou seja, a pesquisa sobre a natureza! O
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cresce e morre. Porém, esse terceiro ponto, a interdisciplinaridade, nos leva – por
assim dizer – a um último ponto que precisa da nossa atenção, a saber, o da
historicidade do saber.
Procurando oferecer uma metodologia para quem quer estudar a filosofia antiga,
a questão da historicidade é de grande importância. O que significa dizer que um
saber é histórico? Como todas as produções humanas, também o saber tem
características determinadas pelo espaço e pelo tempo em que nasce. Dessas
características temos que estar cientes.
Quem estuda o mundo clássico necessita prestar muita atenção ao interpretar os
antigos, para não tentar analisar suas doutrinas com instrumentos que eles não
possuíam e, portanto, para não operar anacronismos nos dois sentidos da história:
nem levar categorias modernas ao antigo, nem projetar categorias antigas no
moderno.
Para recapitular, gostaria simplesmente de lembrar os pontos que coloquei para
conceber uma metodologia da pesquisa em estudos clássicos:
a) aderência ao texto;
b) conhecimento da língua e consciência da evolução histórica da língua em que
um texto está escrito;
c) interdisciplinaridade;
d) consciência da historicidade dos textos e dos autores que nós estudamos.
Com esses poucos pontos não quero ser exaustivo; quis somente dar, nos limites
deste pequeno texto, algumas indicações que me pareceram fundamentais.
Bibliografia
CASERTANO, Giovanni. La nascita della filosofia vista dai Greci. Con in Appendice: Può
ancora Talete essere considerato il “primo filosofo”? Pistoia: Petite Plaisance, 2007.
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Capítulo XI
1. Tipos de textos
Uma vez que a metodologia no estudo da Antiguidade, como disse antes na primeira
aula, não pode ser única, pois tem de se adaptar de maneira inteligente aos vários
objetos de estudo, gostaria de indicar brevemente dois tipos de textos que podemos
encontrar, mesmo porque não se podem resolver problemas sem que existam
problemas concretos a resolver. Isso pode ser útil também para quem não estuda
propriamente a filosofia e a ciência antigas.
Quando abrimos um texto filosófico da Antiguidade, temos que prestar atenção
não somente ao que está escrito, às afirmações feitas, mas também ao tipo de texto
em que essas afirmações estão propostas.
Quereria dar dois exemplos somente, não podendo claramente tratar de todos os
tipos de texto que podemos encontrar nas nossas pesquisas. Trarei, por isso, como
exemplo, os fragmentos dos pré-socráticos e os diálogos de Platão, para dar também
algumas informações técnicas acerca de como realizar as citações.
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queria mostrar dele. Precisamos sempre, nesses casos, compreender a intenção com
que um autor escreve sobre outro autor; e o caso de um Sócrates é um dos mais
representativos porque está posta em discussão a imagem mesma da filosofia.
Da outra vertente, aquela dos estudos platônicos, o problema do que quer dizer
Platão e de quem fala por Platão já foi posto na Antiguidade.
Ao iniciar um estudo sobre um autor como Platão, são postos alguns problemas
metodológicos que podem ser resumidos pela pergunta: onde procurar a filosofia
de Platão? Responder a tal pergunta significa querer obter uma chave de acesso
para conseguir decifrar o pensamento. É óbvio que lá onde se procura a filosofia
platônica é onde também se a encontra. A instância metodológica se impõe,
portanto, à atenção de quem começa uma análise dos diálogos.
O problema é, como dissemos, gerado pela natureza mesma da obra platônica; são
diálogos em que se alternam vários personagens que expõem doutrinas próprias
ou alheias. A resposta à pergunta sobre onde se pode encontrar a filosofia platônica,
pensou-se, é encontrada se nos textos identificarmos quem fala no lugar de Platão.
Galeno julgava que apenas Sócrates fosse o porta-voz de Platão, enquanto que
Diógenes Laércio o individuava naquele que conduz o diálogo158, ou seja, naquele
que tem o papel mais importante na troca dialógica.
Um trabalho desse tipo destina-se a encontrar graves incongruências, não somente
de conteúdo, mas também metodológicas: um exemplo, sobre todos, é a concepção
da alma que encontramos no “Ménon”, no “Fédon”, na “República” e no “Timeu”.
Nos vários diálogos há várias imagens da alma, que é tratada de diversos modos.
Podemos, portanto, dizer que Platão se contradiz em sua obra? Ou, talvez, não seria
melhor pensar que é o tipo de texto, a forma literária que produz voluntariamente
problemas que o leitor tem que se colocar e tentar resolver? O problema do
conteúdo da obra de Platão transforma-se no problema da forma com a que o
pensamento de Platão se expressou.
Um modo para resolver o problema das contradições internas à obra platônica foi
o de prestar atenção ao diálogo em si, julgando que Platão, sendo o autor, está
presente em todos os diálogos e em todos os personagens que se alternam nas
discussões. Esta vertente interpretativa é definida abordagem dialógica159. Ainda que
158. Na maioria dos casos Sócrates, mas em outros diálogos, como o “Parmênides”, o “Sofista”, o “Político” e o “Timeu”, o papel
seria respeitivamente de Parmênides, do Estrangeiro e de Timeu.
159. Cf. VEGETTI, 2003, p. 77 e ss.
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2. Interpretar citações
Como dissemos antes, o diálogo platônico traz consigo muitas dificuldades,
diferentes dos outros tipos de texto por meio dos quais a tradição filosófica se
expressou. Tenhamos em conta que também outros autores escreveram diálogos,
como Sêneca, mas nesses outros autores o diálogo com um amigo é mais um
pretexto para tratar com calma o que se quer tratar. O diálogo platônico mantém
sua característica de ser um diálogo “verdadeiro”, marcado por batalhas e situações
contingentes. A essa dificuldade se adiciona outra, a de ter que interpretar as
citações de outros autores que Platão faz ao longo dos diálogos. Esse problema
liga-se à questão da petição de princípio e do razoamento circular, e gostaria de
mostrar um caso particular, mas famoso, que encontramos no corpus platonicum,
no “Fedro”, porque interessa tanto a problemáticas filosóficas, quanto filológicas.
No “Fedro” (270), Sócrates trata da alma e da dialética, e diz que é preciso conhecer
a natureza das almas às quais se fala, porque determinados discursos são
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Bibliografia
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
VEGETTI, Mario. Quindici lezioni su Platone. Torino: Einaudi, 2003.
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