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COLEÇÃO FILOSOFIA E TRADIÇÃO

ESTUDOS
CLÁSSICOS
II
HISTÓRIA, LITERATURA E ARQ UEOLOGIA

GABRIELE C ORNELLI
G ILMÁRIO G UERREIRO DA C OSTA

UNESCO | CÁTEDRA UNESCO ARCHAI - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA | IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | ANNABLUME
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Brasília, 2013
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Esclarecimento
A UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as
suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se nesta publicação,
os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo
do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao
gênero feminino.

Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas
opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As
indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer
opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de
suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
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Gabriele Cornelli
Gilmário Guerreiro da Costa
(Orgs.)
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Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC)
em cooperação com a UNESCO.
Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora.

© UNESCO 2013. Todos os direitos reservados.

Revisão técnica: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil


Revisão: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil e Cátedra UNESCO Archai
Projeto gráfico: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil
Ilustrações: Fábio Vergara Cerqueira, Cora Dukelski e Paulo Faber

Estudos clássicos II: história, literatura e arqueologia / organizado por Gabriele Cornelli
e Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai, Annablume
Editora; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
190p. – (Coleção filosofia e tradição; 2).

Incl. Bibl.
ISBN: 978-85-7652-183-9

1. Filosofia 2. Ensino de filosofia 3. Filosofia da história 4. Estudos culturais


5. Civilizações antigas 6. História 7. Literatura 8. Arqueologia 9. Metodologia científica
I. Cornelli, Gabriele (Org.) II. Costa, Gilmário Guerreiro da (Org.) III. Cátedra UNESCO
Archai IV. Universidade de Coimbra

UNESCO Imprensa da Universidade Cátedra UNESCO Archai


Representação no Brasil de Coimbra (IUC) Universidade de Brasília
Rua da Ilha, 1 Caixa Postal 4497
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar 3000-214 70904-970
70070-912 – Brasília/DF – Brasil Coimbra, Portugal Brasília/DF
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Fax: (55 61) 2106-3967
Site: www.unesco.org/brasilia
E-mail: brasilia@unesco.org
facebook.com/unesconarede
twitter: @unescobrasil

Impresso no Brasil pela Annablume Editora


Impresso em Portugal pela Imprensa da Universidade de Coimbra
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Coleção filosofia e tradição

A coleção “Filosofia e tradição” é um reflexo das atividades da Cátedra UNESCO


Archai, que, desde 2001, promove investigações, organiza seminários e elabora
publicações com o intuito de estabelecer uma metodologia de trabalho e constituir
um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as origens do pensamento
ocidental. O objetivo fundamental consiste em compreender, com base em uma
perspectiva cultural, a nossa tradição, isto é, de onde viemos, para que possamos
compreender nossos caminhos presentes e desejos futuros. Nesse sentido, visando
a uma apreensão rigorosa do processo de formação da filosofia e, de modo mais
amplo, do pensamento ocidental, os problemas que orientam as pesquisas da
Cátedra UNESCO Archai são de ordem histórica, ética e política. Trata-se de uma
reação ao mal-estar experimentado com a forma excessivamente presentista de se
contar a história desse processo de formação, forma que pensa a filosofia como
um saber estanque, independente das condições históricas que permitiram o
surgimento desse tipo de discurso. A proposta de trabalho historiográfico-filosófico
da Cátedra procura, portanto, lançar um olhar diferente sobre os primórdios do
pensamento ocidental, em busca de novos caminhos de interpretação éticos,
políticos, artísticos, culturais e religiosos. Este trabalho dedica-se, em particular, a
enraizar o “nascimento da filosofia” na cultura antiga, e se contrapõe às lições de
uma historiografia filosófica racionalista que, anacronicamente, projeta sobre o
contexto grego valores e procedimentos de uma razão instrumental estranha às
múltiplas e tolerantes formas do lógos antigo. A questão é politicamente relevante,
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em virtude da influência que ainda mantém essa “narrativa” das origens do


pensamento sobre a compreensão da atual epistême ocidental. De fato, na tentativa
de justificar sua pretensão à verdade absoluta e universal da cultura dos vencedores,
a ciência e as culturas ocidentais servem-se de um mito das origens, fundamentado
nessa mesma visão presentista e asséptica da filosofia clássica. Esse mito, aliás,
utiliza a diversidade da cultura ocidental em contraposição – e não em diálogo –
com as outras culturas e visões de mundo que a globalização aproximou de maneira
mais forte nos últimos anos. O que esta coleção deseja, portanto, é realizar um
olhar sobre o passado, sobre as origens do pensamento ocidental, que se revela
extremamente atual e contemporâneo.

Gabriele Cornelli
Editor da coleção filosofia e tradição
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Sumário

Apresentação ................................................................................................................9

Parte I: profa. dra. Sandra Lúcia Rocha


Literatura grega ..........................................................................................................15
Capítulo I : Representações do amor na literatura grega .........................................17
Capítulo II: Ecos homéricos em representações da morte em Atenas .......................29

Parte II: prof. dr. José Luiz Brandão


Literatura romana .......................................................................................................37
Capítulo III: A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial ..........39
Capítulo IV: Os césares segundo Suetônio: elementos dramáticos e novelísticos ..........67

Parte III: prof. dr. Fábio V. Cerqueira


História grega .............................................................................................................83
Capítulo V: Sentimentos íntimos femininos vistos pela poesia imagética
dos pintores de vaso: representação iconográfica do casamento
e do amor matrimonial na cerâmica ática (séculos VI e V a.C.) .......................85
Capítulo VI: Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos,
dos gregos aos modernos: desnaturalizando noções, diversificando
a homo/heterossexualidade ........................................................................119
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Parte IV: profa. dra. Renata Garraffoni


História romana ........................................................................................................147
Capítulo VII: Pensando conceitos para estudar a história de Roma ........................149
Capítulo VIII: O exército romano: diferentes maneiras
de pensar sobre Roma e seus exércitos .....................................................155

Parte V: prof. dr. Pedro Paulo Funari


Arqueologia ..............................................................................................................163
Capítulo IX: Arqueologia clássica: os inícios ..........................................................165

Parte VI: prof. dr. Sílvio Marino


Metodologia da pesquisa em estudos clássicos ..........................................................173
Capítulo X: Questões introdutórias ......................................................................175
Capítulo XI: Problemas de interpretação dos textos antigos ..................................183
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Apresentação

Prof. dr. Gabriele Cornelli1


Prof. dr. Gilmário Guerreiro da Costa2

Muitas vezes se indagou sobre os motivos de persistirem os estudos clássicos ao


longo da história, em geral, e em nossa época, mais especificamente. De onde
proviria seu encanto e sedução? A história da recepção dos textos clássicos antigos
notabiliza-se por respostas percucientes a essa questão, dentre as quais vem a
propósito destacar a amplitude das pesquisas e os planos múltiplos oferecidos no
tratamento dos seus objetos de investigação. Mostra significativa desse movimento
pode atestar-se no segundo volume do Curso de Introdução aos Estudos Clássicos
que ora oferecemos aos nossos leitores, com trabalhos que articulam história,
literatura e arqueologia. No arremate desta publicação, uma seção é dedicada a
problemas metodológicos peculiares a essa área de pesquisa.
Este volume consta de seis partes. Inicia-se com estudos em torno a aspectos
importantes da literatura grega, escritos pela profa. dra. Sandra Lúcia Rocha, da
Universidade de Brasília (UnB). Lida com dois temas complementares em sua aparente
antítese: as representações do amor e da morte na literatura grega, os quais
haveriam de fundar toda uma tradição incessantemente revisitada e reinventada.
No que tange ao tema do amor, a autora evidencia a força formadora do tema no
Ocidente, não raro motivada por distorções e exageros consideráveis na representação
da cultura grega: ora vista enquanto espaço e tempo de costumes dissolutos, ora
imaginada na qualidade de nostálgica era de liberdade erótica. Tais extremos
respondem a simplificações que obstam uma análise mais acurada do tema. Haveria
ainda outras duas dificuldades nesse gênero de estudo: o fato de ser a literatura
amorosa grega escrita na maior parte das vezes por homens, e a grande profusão

1. Universidade de Brasília, coordenador da Cátedra UNESCO Archai e Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos.
2. Universidade Católica de Brasília e pós-doutorando na Universidade de Brasília (Cátedra UNESCO Archai).

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de caminhos experimentados por esses textos. Isso posto, a autora enfrentará tais
dificuldades mediante estudo, tanto quanto possível, da escrita de mulheres, e
organizará o seu trabalho acerca das representações do amor em três grupos: amor
entre homem e mulher, entre mulheres e entre homens.
Na literatura grega, a tonalidade erótica no amor entre homem e mulher sobressai
antes ou fora do casamento. Neste, tende a esmaecer-se, tornando-se em afeto, o
que implica, no enfraquecimento do desejo, perder os traços do amor, por lhe ser
agora escassa a visita de Eros. Em acurada análise de passagens dos poemas
homéricos, a autora evidencia o quanto o arrebatamento erótico no matrimônio
ocorre em situações excepcionais. O amor entre mulheres, por sua vez, pelas
evidências de que dispomos no momento, parece ter sido prática menos assente
culturalmente, se comparada ao homoerotismo masculino. De qualquer forma, sua
elaboração artística encontra forma rica e delicada nos poemas de Safo. Somos
conduzidos, assim, da poesia épica para a lírica, apresentados ao quadro rico e
variegado da literatura grega. Por fim, no que se refere ao amor entre homens, a
autora sublinha tratar-se de prática culturalmente estabelecida na época, o que o
atestaria todo um quadro literário e iconográfico. Em uma sociedade ausente de
instituições de formação educacional, recorria-se com frequência aos symposia, nos
quais os jovens se inseriam em espaço pedagógico mais aprimorado, o que incluía
a iniciação erótica. O quadro formativo era amplo, desde a poesia à partilha de
valores éticos. No intercurso erótico, evidenciava-se a relação entre um homem
maduro e outro mais jovem, que se notabilizava pelo tom afetivo, raiz de uma
fidelidade transposta futuramente para a cena política. No âmbito literário, aparece
especialmente na prosa do século V a.C., como por exemplo, em Tucídides, a cuja
análise a autora dedica considerável espaço.
O segundo texto da profa. Sandra ocupa-se do tema da morte, cuja compreensão
acha-se intimamente ligada à questão da vingança e da honra, articulada por via
diferente no caso da morte individual e da coletiva. No tocante à primeira, intentou-
se desde a Lei de Drácon, em 621 a.C., impor limites consistentes à prática do
homicídio enquanto resgate da honra. É um horizonte sobremodo fértil para a
análise do tema conforme disposto nos poemas homéricos, sobretudo em Aquiles,
premido que se sentia, na “Ilíada”, por vingar a morte do amigo, Pátroclo. Promete
manter um propósito incoercível de reconquistar para si e para o amigo a honra
que o assassínio cometido por Heitor lhes roubara. Em belo diálogo com Vernant,
a autora sustenta a necessidade da morte do herói, uma vez que a sua honra,
medida da sua vida, não mais se pôde resgatar. A proximidade de som e sentido
entre honra (timé) e vingança (timoría) sugere o fato de se buscar reparação,

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mediante a vingança, da honra ferida. Amiúde se intentava satisfazê-la no tribunal,


recorrendo-se à ação do Estado, que se encarregava de julgar a sua pertinência,
seja pelo interesse em proteger a piedade religiosa da cidade, seja pela relevância
educativa do evento, passível de evitar a recorrência de comportamentos julgados
indesejáveis pelo Estado. Em diversos outros níveis também avulta o liame entre
honra e morte, como é o caso da oração fúnebre, objeto de sensível exame no texto.
De aspectos da literatura latina ocupa-se a segunda parte deste volume, a cargo
do prof. dr. José Luiz Brandão, da Universidade de Coimbra (UC). A princípio,
interessa-lhe o estudo da representação da Roma Antiga conforme se lê nos
epigramas de Marcial. Aqui se sublinha o caráter vivo do modo de inserir essa
cidade na literatura, pois não interessa ao escritor um registro arqueológico, mas
artístico e repleno de movimento. Conforma os traços das suas personagens com
esse objetivo. A mordacidade de Marcial alia com arte rara o senso espirituoso e a
compreensão profunda do sofrimento das vidas a que seus versos oferecem a tessitura.
Sua Roma viva lida com a difícil articulação entre ter e ser e com o belo e o horrendo.
No primeiro caso, por exemplo, oferece o molde de uma crítica às graves assimetrias
sociais em Roma, não com o intuito de palmilhar o caminho da subversão, mas
precisamente com o receito de que ela se efetiva. Move-o, portanto, um impulso
conservador. Nos tipos inesquecíveis que então dispõe, sobressaem-se os caçadores
de heranças; os que parasitam em diversos jantares; os novos-ricos; e profissões,
dentre as quais a advocacia, que, segundo o poeta, não oferecem muitos rendimentos,
se o seu praticante for honesto... Configura-se assim todo um quadro com o qual
o poeta submete ao castigat ridendo mores os contornos do ridículo na relação assimétrica
entre as classes, desde as que se enchem de orgulho com o trato bajulatório de
pessoas despossuídas de bens, até a ginástica exaustiva de muitos ao propugnarem
por agradar os superiores na luta pela sobrevivência diária.
O segundo texto, um pouco mais breve, mas não menos denso, examina a obra
“Vida dos césares”, de Suetônio, a partir de uma questão instigante: os elementos
ficcionais em uma narrativa que se pretende histórica. Tome-se o caso de César:
move-se no livro muito mais próximo de uma forma teatral do que de uma
representação estritamente factual, além do farto e hábil uso de recursos narrativos.
Desde o plano tenso do embate entre vício e virtude nas ações de Augusto, ao
plano degenerativo da vida de Tibério, urde-se um texto capaz de oferecer tanto
inteligibilidade histórica, quanto narrativa, ampliando consideravelmente o quadro
hermenêutico de aproximação da vida activa dos imperadores romanos, e por via
de consequência, oferta por entre as fímbrias desses homens um olhar sobre

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a vida e a sociedade da época. Caracteres teatrais a conformar a figura de Calígula,


o uso de expedientes de retardamento narrativo na apresentação de Cláudio,
preparatório da katastrophe representada por Nero, são alguns dos muitos recursos
literários farta e ricamente urdidos por Suetônio em sua biografia. Por toda a obra,
recursos tomados à comédia, ao romance sentimental e à tragédia se disseminam,
explicando parte considerável do seu encanto imperecível.
O prof. dr. Fábio V. Cerqueira, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), encarrega-
-se da terceira parte, dedicada à análise de aspectos da história grega antiga. Em
um de seus textos, focaliza a representação pictórica da intimidade da vida
feminina da mulher ateniense, conforme se veem em vasos áticos. Avultam-se as
cenas ligadas ao casamento e os divertimentos no espaço interior da residência, o
gineceu. É ao primeiro tipo que se dedica o texto, movido pela investigação da
abordagem dos sentimentos femininos nessa série iconográfica, em um caminho
diverso do palmilhado por uma historiografia hegemônica, que reputava ser o
casamento entre os gregos antigos em tudo infenso ao afeto e ao amor. Certamente
o matrimônio entrelaçava-se a um conjunto de práticas econômicas e políticas, seja
por facultar aos descendentes os meios de partilha da herança, seja por lhes
oferecer os direitos de cidadania pertencentes aos pais. Esse quadro institucional,
no entanto, fez com que muitos historiadores negligenciassem o papel dos sentimentos
femininos no interior da vida conjugal. Seguindo de perto os resultados dos estudos
de Claude Calame, o prof. Fábio articula cuidadosamente uma leitura mais sensível
e apropriada do cotidiano desses espaços familiares, julgando assim indevido o
hiato entre casamento e desejo, conforme o sustentou, por exemplo, setores de uma
investigação de jaez feminista. Estaria longe de significar, portanto, a anulação dos
sentimentos da noiva. As narrativas iconográficas analisadas pelo autor ofertariam uma
sensível inserção poética no universo dos sentimentos amorosos no casamento grego.
Da relação entre homossexualismo e heterossexualismo trata o segundo texto do
prof. Fábio, movido pelo intento crítico de desmontagem de aparatos discursivos
que buscam naturalizar o tratamento da questão. Com uma fluência agradável, em
parte devida a uma apresentação oral da qual se originou, o seu escrito discorre
sobre os benefícios do estudo da história de épocas e culturas afastadas no tempo
e no espaço, exercício passível de oferecer certo estranhamento com respeito a
ideias e procedimentos que se naturalizaram em nossa época. Rompe-se a pretensa
atemporalidade dos valores, matriz do esquecimento da sua feição transitória e
relativa ao tempo e ao espaço. Tal se lhe afigura vetor necessário à análise da
efeminação na Grécia Antiga, reveladora de outras modalidades de leitura da

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sexualidade nessa cultura. Em uma passagem especialmente esclarecedora e


perspicaz, sublinha o quanto os preconceitos têm de jogo entre as ações permitidas
e a transgressão dessas regras – transgressão essa que exibe o caráter de
artefato, de jogo, precisamente de tais regras.
Ainda no âmbito dos estudos históricos, depara-se-nos a contribuição da profa. dra.
Renata Garraffoni, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na quarta parte
deste volume. Roma é seu objeto de estudo, que se inicia com análise preparatória
em torno aos conceitos fundadores desse gênero de investigação, atendo-se ao
contexto do seu desenvolvimento e ao modo como seriam relidos e reinterpretados
em períodos posteriores. Resiste-se dessa maneira a um objetivismo acrítico, com
o seu intento de sobrevoar as teias contextuais de produção de significado pelos
historiadores. Em vez disso, a autora opta pelo exame de temas importantes na
história romana, tal como o dos gladiadores, evidenciando seu contexto de
elaboração e sua recepção posterior. Texto e contexto se entrelaçam intimamente
nesse tipo de pesquisa.
É a esse respeito assaz esclarecedor o artigo que a profa. Renata dedica ao estudo
do exército romano. Sublinha o lugar de destaque dessa instituição em diversos
setores da vida romana, dado um percurso histórico marcado por conflitos com os
mais diversos povos durante as guerras de conquista, a exigir um apuro especial
na organização dos seus militares, que permitiria a Roma constituir um império
de notável extensão. Tal percurso dá azo a que se reflita sobre as formas de se
escrever o passado, mormente devido ao fascínio que exerceria a história romana
sobre militares diversos ao longo da história, sobressaindo, no caso, estudos de
história militar. E visto que a história se lê a partir de modelos inter-pretativos que
os estudiosos colhem da sua época, a autora julga oportuno atentar-se para as
críticas pós-coloniais dirigidas precisamente a aspectos da história militar. Se no
século XIX, marcado pelo imperialismo europeu, abundavam estudos que preten-
diam extrair da história romana lições militares importantes, a partir dos eventos
em torno do 11 de Setembro de 2001, o interesse passa a residir nas margens de
todo o discurso triunfalista, com a atenção agora residindo no modo como os
romanos lidavam com a perda, bem como no sofrimento dos povos conquistados
e dos escravos. Tudo isso acena para uma maior diversificação dos estudos,
conforme o testemunha o diálogo com a arqueologia, a servir-se de traços da cultura
material (por exemplo, ânforas, lápides etc.) capazes de mover as pesquisas para
além dos temas ligados à dominação de povos por Roma.
Contribuição fundamental a essa discussão é oferecida, na quinta parte, pelo prof.
dr. Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esclarece

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ter sido a arqueologia clássica pioneira nos estudos de arqueologia. O Iluminismo


e a obra de Winckelmann exerceram impulso decisivo nessa direção, mormente no
âmbito dos estudos dedicados a Roma, que se desenvolveram com notável
celeridade a partir do século XIX, beneficiados pelos novos rumos técnicos e de
industrialização. O interesse inicial moveu-se em direção a grandes edifícios, cujas
escavações mudariam a feição da cidade, e inscrições, as quais abriram vias férteis
de investigação de objetos os mais diversos. Notabiliza-se, assim, o desenvolvimento
de uma ciência hoje crucial nos estudos clássicos, de cujo diálogo bem se beneficiam
a filosofia, a história e a literatura.
O volume não poderia encerrar-se de modo mais oportuno: detém-se em conside-
rações metodológicas guiadas com segurança e desvelo pelo prof. dr. Sílvio Marino,
da Universidade de São Paulo (USP) e Unicamp. Explorando inicialmente a etimologia
do termo método, o autor sublinha tratar-se de um instrumento com vistas a tornar
mais efetivos os resultados de uma investigação, cujo arremate é, não obstante,
matéria controversa, sobretudo no âmbito das assim chamadas humanidades, para
marcar a sua diferença com respeito às ciências exatas. Os textos não são um dado
objetivo da natureza, mas uma interpretação inserida no âmbito dos diversos
extratos da sua época e cultura. É o movimento de um trabalho marcado pela
interpretação de interpretações. Tal assesto poderia facilmente sugerir a defesa de
um relativismo irrefreável, mas não é essa uma conclusão necessária. Um bom
método ofereceria limites desejáveis a essa operação, precisamente a sorte de
esclareci-mento que o prof. Sílvio apresenta. Acima de tudo, cumpre ater-se a um
elemento crucial em pesquisas em estudos clássicos: o texto. Para esse fim, é mister
conceder-se a devida atenção às línguas em que foram escritos, a uma predisposição
ao diálogo interdisciplinar e à análise do contexto histórico no qual se inserem os
escritos antigos. São notas efetivamente úteis e passíveis de fomentar bons trabalhos.
O segundo texto do autor aprofunda essas questões, desdobrando alguns dos
principais problemas na interpretação da obra dos pré-socráticos e de Platão, bem
como orientações sobre a peculiaridade da indicação das citações nesses tipos
textuais. Sua defesa da atenção à intenção do texto, em vez da intenção autoral,
é, sob todos os aspectos, crucial ao entendimento crítico das obras, propensa a
fazer avançar efetivamente os estudos consagrados a essa área.
Nossa expectativa é a de serem os textos reunidos neste volume um meio valioso
de pesquisa e aprimoramento nos estudos clássicos, inspirando, esclarecendo e
fortalecendo o ânimo dos seus leitores na dedicação a uma fonte abundante de
reflexão e beleza.

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Profa. dra. Sandra Lúcia Rocha


Universidade de Brasília (UnB)
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Capítulo I

Representações do amor na literatura grega

O amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com


fios extremamente diversos, de origens diferentes. Por trás
de um único e evidente ‘eu te amo’ há uma multiplicidade
de componentes, e é justamente a associação destes
componentes inteiramente diversos que faz a coerência do
’eu te amo’. Em uma extremidade há um componente físico
e, pela palavra físico, entende-se o componente biológico,
que não se reduz ao componente sexual, mas inclui o
engajamento do ser corporal. No outro extremo, encontram-
se os componentes mitológico e imaginário; incluo-me entre
aqueles para quem o mito e o imaginário não representam
uma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão,
mas, sim, uma profunda realidade humana. (Edgar Morin,
2011, p. 26)

Como em várias culturas, o amor se manifesta de múltiplas formas na Grécia Antiga,


mesmo quando escolhemos um determinado período de tempo para investigá-lo.
O amor, como sentimento culturalmente determinado que é, envolve hábitos e
atitudes que variam no tempo e de indivíduo para indivíduo durante determinado
período e região. Codificações culturais prescrevem essas variações. Dando ênfase
à reflexão sobre o amor na literatura grega, veremos como alguns desses códigos
funcionam na Grécia Antiga.

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Bem observa Simon Goldhill que, quando o Ocidente se inquieta com questões que
dizem respeito ao amor e à sexualidade, sobretudo dos homens, a Grécia Antiga
emerge ou como um fantasma da depravação ultrajante ou como o paraíso perdido
da liberdade sexual (GOLDHILL, 2004, p. 66) – visões obviamente simplificadoras
do passado. Assim, ao abordarmos esse assunto, é necessário, em primeiro lugar,
adotarmos a perspectiva do antropólogo que se esforça conscientemente para
despir-se de seus preconceitos ao estudar determinada cultura. Só assim poderemos
entender um pouco da Grécia Antiga quanto a dois aspectos que os gregos
consideravam tão fundamentais para a continuidade da vida: amor e sexo. Esse
par assim se coloca porque, diferentemente de concepções amorosas que hoje
em dia buscam separá-los na experiência humana3 – concepções cujos traços
podem também ser rastreados entre os gregos antigos –, amor e sexo constituíam
um par inextrincável para a maior parte dos gregos dos Períodos Arcaico e Clássico.
A potência divina de Afrodite está em estimular a geração da vida, para a qual
a prática do sexo é condição sine qua non no universo humano, enquanto Eros
representa as atribulações emocionais que o desejo físico, para a continuação da
espécie, pode provocar. Portanto, Afrodite e Eros não existem para representar um
amor puramente espiritual.
Há que se considerar ainda, à guisa de introdução, que a maioria das evidências
literárias das representações do amor são produzidas por homens, poetas ou prosa-
dores, fato que, por si só, ilustra a preponderância de uma certa visão masculina
sobre o tema. O fato de nos terem chegado representações masculinas não significa,
entretanto, que vozes femininas tenham sido de todo caladas no que diz respeito
à expressão do amor. Não é somente Safo que nos deixa seu registro excepcional,
não menos marcante, na história da literatura grega, mas também Corina, Erina e
Nossis, e outras poetisas ainda pouco conhecidas, cujos fragmentos têm sido
recentemente estudados (GREENE, 2005). Devido à importância e extensão do corpus
poético da poetisa de Lesbos, se comparada às outras, nos restringiremos à sua
valiosa contribuição quando abordarmos a representação do amor por voz feminina.
Para tratar do tema, distinguimos três tipos de representações do amor que se
encontram nos textos gregos e que, de resto, são as que mais povoam nosso
imaginário e despertam nossa curiosidade sobre o universo cultural da Grécia Antiga
quanto a esse aspecto: o amor entre homem e mulher, o amor entre mulheres e o
amor entre homens.

3. Edgar Morin fala da “verdadeira disjunção entre o amor vivido como mito e como desejo” (MORIN, 2011, p. 23).

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O amor entre homem e mulher


Entre os gregos, a relação amorosa entre homem e mulher encontra sua expressão
mais erótica antes ou fora do casamento. Quando a moça é virgem e está prestes
a casar-se, ou quando ainda é recém-casada, o desejo do marido se manifesta de
forma ardente; mas, após o casamento, o amor erótico parece diluir-se em certa
afetividade que toma seu lugar (GOLDHILL, 2004, p. 50). Nesse caso, não se trata
mais exatamente de amor, pois não há Eros, não há desejo; mas de afeto produzido
pelo respeito e por boa dose de convenções sociais e familiares. Quando
representado na literatura, o desejo entre cônjuges marcado por Eros normalmente,
associa-se à tragédia ou a situações trágicas ou muito excepcionais dentro de
determinada narrativa. É assim que, na épica homérica, Zeus é surpreendido pelo
desejo súbito que sente pela esposa, Hera, quando a deusa decide interferir junto
a ele, para favorecer a reação grega na Guerra de Troia. Após ter recebido de
Afrodite uma cinta com todos os encantamentos do amor, Hera aproxima-se de
Zeus, de modo dissimulado, informando estar de partida para visitar Oceano e Tétis.
Tomado de desejo nesse momento, diz-lhe o soberano Olímpio:
Hera, para lá também poderás ir mais tarde:
voltemo-nos agora para o prazer do amor.
Pois dessa maneira nunca o desejo de deusa ou mulher
me subjugou ao derramar-se sobre o coração no meu peito,
nem quando me apaixonei pela esposa de Ixíon,
que deu à luz Pirítoo, igual dos deuses no conselho;
nem por Dânae dos belos tornozelos, filha de Acrísio,
que deu à luz Perseu, o mais valente dos homens;
nem pela filha do famigerado Fênix,
que me deu como filhos Minos e o divino Radamanto;
nem por Sémele ou Alcmena em Tebas,
esta que deu à luz Héracles, seu filho magnânino,
ao passo que Sémele deu à luz Dioniso, alegria dos mortais;
nem pela soberana Deméter das belas tranças;
nem pela gloriosa Leto – e nem mesmo por ti própria
me apaixonei como agora te amo, dominado pelo doce
desejo.
(Ilíada4, XIV, 313-328)
A situação é tão incomum, que, ao externar sua estupefação diante do repentino
desejo que lhe desperta a deusa esposa, Zeus apresenta uma lista de mulheres, de

4. As traduções da “Ilíada” utilizadas neste texto são de Frederico Lourenço (ver bibliografia).

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relações extraconjugais, todas dignas de menção por lhe terem provocado desejo
incomparável até então, das quais nascera uma prole não menos digna de registro.
Pois é fora do matrimônio que o Olímpio está habituado a ser tocado por Eros. Com
efeito, no presente instante, é graças à cinta especial de Afrodite, que a auxilia, que
Hera consegue abalar eroticamente o ímpeto do marido. Nem ela própria, como
esposa, havia anteriormente despertado tamanho desejo – diz Zeus –, salvo em
seus primeiros encontros. De fato, a situação coloca-se de tal modo em nível de
exceção, que o narrador homérico buscará a semelhança desse encontro entre
marido e mulher na primeira vez em que Hera e Zeus fizeram amor:
Assim que a viu, o amor [eros] envolveu-lhe o espírito
robusto,
tal como quando primeiro fizeram amor [philoteti],
deitados na cama, às ocultas dos seus progenitores.
(Ilíada, XIV, 294-297)

Por outro lado, o decoro e o respeito que o matrimônio devia manter entre cônjuges,
à distância dos arroubos eróticos, manifesta-se na resposta de Hera a Zeus:
Se o que tu queres agora é deitar-te em amor
nos píncaros do Ida, isso estaria à vista de todos!
Como seria se um dos deuses que são para sempre
nos visse a dormir e depois fosse contar a todos os deuses?
Pela minha parte já não poderia regressar à tua casa,
depois de me levantar do leito, pois isso seria uma vergonha.
Mas se é essa a tua vontade e se é agradável ao teu
coração,
tens um tálamo, que te construiu o teu próprio filho,
Hefesto, tendo ajustado às ombreiras portas robustas.
Vamos então deitar-nos lá, visto que o leito é o teu desejo.
(Ilíada, XIV, 330-340)

Ao que lhe responde Zeus:


Hera, não receies que algum deus ou homem
observe o ato, tal é a nuvem dourada com que
te esconderei. Nem o próprio Sol nos descortinaria,
embora nenhuma luz veja mais agudamente que a dele.
(Ilíada, XIV, 342-345)

5. Em toda a poesia arcaica, termos que se referem a leito são usados em referências metafóricas ao contato sexual entre amantes
(CALAME, 1996, p. 47).

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É preciso que uma nuvem, dourada como Afrodite, envolva o cume do monte
Ida para que a esposa possa deitar-se5 em amor com o marido fora do tálamo –
aposento onde a conjunção carnal e erótica entre cônjuges é apropriada. Com essa
solução, arremata Homero, destacando o estatuto insólito da parceira sexual em
tais circunstâncias:
Falou; e nos seus braços tomou a esposa [parakoitin] o filho de
Crono.
(Ilíada, XIV, 346)

Com essas considerações, não se quer dizer que o amor entre homem e mulher,
porém, se reduzisse a um intercurso sexual de hábito, sem desejo e destituído de
afeto. Eros (amor-desejo) e philotes (afeto) aparecem associados, embora essa
associação se destaque mais frequentemente na representação das relações
homoeróticas masculinas da poesia mélica, em que a confiança entre homens, em
relações eróticas, se transfere para a vida política (CALAME, 1996, p. 44-45). É que
philotes marca um traço de confiança, de afetuosidade, que pode acompanhar o
arrebatamento erótico, embora não lhe seja necessário. Dada a composição
coetânea da poesia épica e lírica, não é de nos surpreender que, na citação do
narrador homérico acima, em que se descreve o súbito efeito de Hera aos olhos de Zeus,
este seja tomado de eros e philotes simultaneamente, termos que o tradutor traduziu
por amor em português.
Outro exemplo homérico do caráter afetuoso que prepondera no matrimônio, pouco
povoado de expressões de desejo erótico entre homem e mulher, é encontrado no
último encontro de Heitor e Andrômaca. Diz Andrômaca ao esposo:
Heitor, tu para mim és pai e excelsa mãe; és irmão
e és para mim o vigoroso companheiro do meu leito.
(Ilíada, VI, 429-430)

Uma leve evocação ao amor-desejo se vislumbra em “vigoroso companheiro do


meu leito”, pois é, em primeiro lugar, a conjunção de afetos familiares o que define
a importância de Heitor na vida de Andrômaca. A menção ao leito constitui, todavia,
uma referência indireta ao amor erótico, em linguagem bastante discreta. Da mesma
forma, a Heitor preocupa tão somente a condição de escrava a que será submetida
Andrômaca, quando ele morrer. Não se lhe aventa a possibilidade de que, também
como escrava, seja Andrômaca forçada a ter relações sexuais com seu futuro dono.
Outra expressão que o amor entre homem e mulher pode adquirir é a de um desejo
não concretizável, impossibilitado. Na poesia dos cantos corais, em que o amor é

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manifestado, em geral, por homens maduros, e dirigido para jovens, moços ou


moças, encontra-se, frequentemente, a impossibilidade da realização do desejo.
Alcman, poeta de Esparta e autor de partênios, canção entoada por um coro de
virgens em festivais cívico-religiosos, celebra o amor sem reciprocidade ou
dificultado por alguma condição ou circunstância impeditiva. O fragmento a seguir,
em que o sujeito poético dirige-se a mulheres virgens, exemplifica essa temática
(fragmento 26 P6):
Não mais, ó virgens de doce e sagrada voz,
as pernas me levar podem. Ah, ah, se eu fosse um alcatraz,
que sobre a flor da onda junto com as alcíones voa,
e tem valente coração – ave sagrada, púrpura como o mar!7

Eis a voz do homem envelhecido, de condições físicas precárias, diante das virgens
de voz adocicada pelo charme de Eros8. Seu desejo é poder constituir um par
amoroso à semelhança do que narra o mito de Alcíone e Ceíce, cuja felicidade os
fazia comparar-se a Hera e Zeus, irritando o casal olímpico de tal forma, que os
transformou em pássaros, o alcatraz e a alcíone, os quais representam no poema a
leveza do enlace repleto de energia e vigor para desfrutar do dulcíssimo amor. É
importante lembrar que a virgindade entre os gregos não é vista como sinônimo
de castidade, como na tradição judaico-cristã, mas apenas como uma fase de
intensa sensualidade das jovens, entre a infância e a idade adulta (RAGUSA, 2010,
p. 165). Assim, não há elemento algum de perversão, no sentido mais comum do
termo, no desejo do homem mais velho pela virgem.

O amor entre mulheres


A existência de relações homoeróticas entre mulheres gregas – apesar de contar
com alguma tradição interpretativa entre os estudiosos – tem sido mais
recentemente objeto de controvérsia, tendo em vista as poucas evidências de fato
em que se apoiam os que acreditam que o homoerotismo feminino tenha
correspondido a uma prática culturalmente bem estabelecida como a da
homossexualidade masculina (RAGUSA, 2005, p. 68 e ss.). No entanto, não vemos
problema em refletir sobre a representação do homoerotismo feminino, por tratar-
-se de uma possibilidade de interpretação que não deve ser descartada, quando os

6. Fragmento n. 26 da edição de Page (= P): D.L. Page (ed.) Poetae melici Graeci. Oxford: Clarendon Press, 1962 (FERRATÉ, 2000,
p. 172).
7. Tradução minha.
8. É comum na poesia arcaica a associação de Eros com a doçura, muitas vezes evocando mel e abelhas

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textos a permitem, e que tampouco precisa estar associada de imediato a um


discurso excessivamente marcado por questões de gênero. Além disso, apesar de
poucos, há poemas de Safo que favorecem sobremaneira tal interpretação. É o caso
do seguinte fragmento:
] que morta, sim, eu estivesse:
ela me deixava, entre lágrimas
______
e lágrimas, dizendo: [
‘Ah, o nosso amargo destino,
minha Psappha: eu me vou contra a vontade’.
______
Esta resposta eu lhe dei:
‘Adeus, alegra-te! De mim,
guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti
______
– se não, quero trazer de novo
à tua memória [ ]
... [ ] as lindas horas que vivemos
______
] de violetas,
de rosas e aça[flor]
... [ ] nós duas lado a lado
______
[ ] tecendo grinaldas
[ ] teu delicioso colo
] flores [
______
[ ] e perfumes
[ ]
] feitos
para rainhas;
______
ungias com óleos, num leito [
delicioso [
e o desejo da ausente [

nem ] grutas
] danças

] ou sons9

9. Tradução (e notações) de Joaquim Brasil Fontes (ver bibliografia).

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O poema apresenta a expressão do amor impedido, nesse caso pela partida de uma
das envolvidas na relação amorosa. Não há dúvida de que são duas vozes femininas
cujo discurso direto se reproduz no poema, e, apesar do vocativo Safo, não tem
relevância a discussão biografista quanto a se tratar de expressão de experiência
pessoal da própria poetisa ou de sua persona poética. Nisso, são acertadas, no
geral, as considerações de Ragusa (2005, p. 303). Por outro lado, o poema descreve
a dor da ausência da mulher amada sentida por outra mulher, que a recorda a partir
de experiências compartilhadas, descritas por uma linguagem povoada de imagens
eróticas. Gentilli oferece uma interessante interpretação da existência de relações
homoeróticas em Lesbos, que poderia acomodar uma possível leitura do poema
acima no quadro do homoerotismo feminino. Havia em Lesbos, assim como em
Esparta, grupos de mulheres que partilhavam de rituais religiosos comuns e relações
pessoais, marcadas por fortes identidades, afetos e rivalidades; no interior desses
grupos, as relações entre mulheres eram variáveis, podendo ter o caráter oficial de
vínculo afetivo de compromisso ou ainda compreender um breve período de
iniciação de jovens à vida adulta, anterior ao casamento com homens (GENTILI,
1990, p. 72 e ss.)10. Talvez o poema acima represente uma situação desse tipo, em
que a jovem amada se despede da outra com a qual compartilhara momentos de
intimidade no grupo (“Sabe o que nos prendia a ti”), encaminhando-se agora para
o matrimônio (“eu me vou contra a vontade”). Se, por um lado, os poemas de Safo
impõem certa cautela a leituras que neles privilegiem somente o homoerotismo
feminino (RAGUSA, 2005), por outro lado tais conjecturas, quando possíveis, como
no caso do poema acima, não devem ser ignoradas, tendo em vista alguns
testemunhos antigos e a pesquisa de tantos outros sérios estudiosos do assunto
nas últimas décadas.

O amor entre homens


Ao contrário das relações eróticas entre mulheres, o relacionamento homoerótico
entre homens, amplamente atestado na iconografia e descrito em textos de prosa
e poesia da Grécia Antiga, é tema de consenso entre os estudiosos. Não
surpreende o fato de que, em uma cultura que se desenvolve sob o controle dos
homens, também sobre o homossexualismo masculino nos tenham chegado mais
evidências. Na Grécia Arcaica, as relações erótico-afetivas entre homens desenvol-

10. Segundo West, com relação ao grupo de Safo, a visão mais aceita atualmente é a de que jovens mulheres fossem confiadas a seu
grupo para instrução em música e talvez em leitura e escrita (WEST, 1994, p. xiii).

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veram-se provavelmente no interior dos sumposia, encontros masculinos de


entretenimento e discussões, regados a vinho, que ofereciam também a
oportunidade de os jovens se iniciarem à vida social. Segundo Calame, a iniciação
à vida adulta – e que inclui experiências eróticas – que se dá no sumposium
corresponde ao espaço destinado à educação em uma sociedade, como a grega,
em que não há instituição estabelecida para a formação educacional (CALAME,
1996, p. 120 e ss.). Esse espaço, que se fundamenta em laços de afeto entre os
convivas, compreende não só a recitação de poemas como também a exaltação de
valores éticos que devem ser transmitidos aos jovens. Portanto, o amor erótico que
se manifesta nesses contextos tende a ocorrer especificamente entre um homem
maduro e um jovem rapaz, e normalmente vem acompanhado de afetuosidade
(philotes), que será a base igualmente de ligações e fidelidades políticas,
posteriormente, entre eles, quando o jovem já tiver se transformado em homem
adulto e atuante politicamente na cidade (CALAME, 1996, p. 126-127). Goldhill
salienta que o desejo, nesse caso, se distribui entre papel ativo e passivo, cabendo
ao homem adulto (o amante) o ativo tanto na expressão e no sentimento do desejo
erótico quanto na transmissão de valores e ensinamentos, não sendo ele bem visto
socialmente caso se coloque na posição de amado (GOLDHILL, 2004, p. 52).
A prosa do século V a.C. tem inúmeros exemplos de representação do amor entre
homens e das repercussões sociais de suas relações. Um dos mais notáveis é
apresentado por Tucídides, em sua versão da história da sucessão de poder durante
a tirania dos pisistrátidas. O relato sobre a relação amorosa surge a propósito de
uma referência à tirania de Pisístrato, que teria sido lembrada pelo povo ateniense
quando os cidadãos associaram a mutilação das estatuetas de Hermes em Atenas,
em 415 a.C., cuja responsabilidade estava sendo investigada, a uma tentativa de
tomada de poder de tipo tirânico. O objetivo primeiro da menção ao Pisistrátidas é
corrigir informação histórica que Tucídides julga estar equivocada entre os
atenienses e os demais gregos. Diz Tucídides que quem sucedeu no poder,
quando Pisístrato morreu, foi seu filho Hípias, e não Hiparco, como acreditava a
maioria dos atenienses. É nesse contexto que se insere o episódio que aqui nos
interessa:

A ação ousada de Aristógiton e Harmódio foi levada a cabo


por causa de um incidente de natureza amorosa [di’ erotiken
xuntuchian], por meio do qual, após eu relatá-lo de forma
mais demorada, vou demonstrar que nem os outros

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[gregos], nem os atenienses nada dizem de exato tanto


acerca de seus próprios tiranos quanto acerca deste fato
ocorrido. [...] Quando Harmódio estava no auge de sua
brilhante juventude, Aristógito, um homem da cidade,
cidadão de posição social mediana, o tinha como amante.
E Harmódio, ao ser cortejado por Hiparco, o filho de
Pisístrato, embora por ele não tivesse sido seduzido,
denuncia o caso a Aristógiton. Este, sofrendo por amor
[erotikos perialgesas] e com medo do poder de Hiparco, de
que este pudesse aproximar-se de Harmódio à força,
planejou tão logo quanto possível, a partir da posição social
que detinha, a dissolução da tirania. E, nesse ínterim,
Hiparco, como, apesar de novamente ter cortejado Harmódio,
não o seduzisse de modo algum, e não querendo tomar
nenhuma atitude violenta, como se não fosse por isso,
de uma maneira encoberta preparava-se para insultá-lo
(Tucídides, VI, 54,1-4).

A empresa ousada fora o assassinato do filho do tirano Pisístrato, Hiparco, que o


casal, juntamente com outros companheiros políticos, cometem por ocasião da festa
panatenaica – o que Tucídides narra nos capítulos seguintes. No entanto, o que
interessa na representação da relação amorosa na narrativa tucidideana é
exatamente seu caráter subordinado a questões políticas, pois isso revela um
pouco da complexidade dos relacionamentos homoeróticos entre homens
gregos. Tucídides apresenta a situação destacando especificamente o que é
relevante para se compreender como tais relações funcionavam. Harmódio está
no “auge de sua brilhante juventude”, e Aristógito é um homem adulto, já
estabelecido socialmente. Hornblower salienta que a expressão grega aqui traduzida
como “de posição social mediana” significa, na prática, “de classe média”, e é
indicativa da influência política que Aristógito podia ter em Atenas, a tal ponto que
já sinalizaria para a existência do grupo de companheiros com as mesmas
convicções políticas que apoiará o casal no assassinato (Tucídides, VI, 56-57)
(HORNBLOWER, 2008, p. 442). A narrativa também mostra como o jovem amado
é subordinado e ligado ao amante por laços de confiança, já que, tão logo é
cortejado pelo filho do tirano, denuncia o caso a Aristógito. A reação deste é
ciumenta e passional, descreve Tucídides (“sofrendo por amor”), mas é provocada
também por uma consciência do poder político do rival (“com medo do poder de
Hiparco”). Ora, a relação entre homens, nesse caso, está intrinsecamente ligada a

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um contexto de formação do cidadão jovem para sua posterior atuação política,


estabelecendo um elo que vai além do simplesmente amoroso-sexual. Tucídides
fecha o excurso resumindo que a conspiração ocorrera “por causa de ressentimento
amoroso” (di’ erotiken lupen) e que, após o assassinato, a atuação dos tiranos
recrudesceu, gerando insatisfações entre os atenienses, que acabaram por derrubar
a tirania posteriormente.
O período a que se reporta o relato de Tucídides é o do século VI a.C., entretanto,
nos séculos V e IV a.C. abundam referências a tais relações, algumas famosas, como
a de Sócrates e Alcibíades. Do Período Arcaico ao Período Clássico, portanto,
encontram-se várias evidências desse tipo de relação homoerótica entre homens,
em contexto de educação e formação do indivíduo jovem para a vida adulta em
sociedade – o que permite afirmar que esse é um traço cultural relativamente estável
da Grécia Antiga, ao longo de alguns séculos. O amor, nesses casos, não se restringe
a um encontro afetivo e erótico, mas se desenvolve no seio de grupos masculinos
com afinidades diversas, de natureza intelectual a política, como se viu no trecho
acima.
Eis, portanto, alguns casos de representação do amor na literatura grega antiga.
Como se pode ver, algumas práticas amorosas dos gregos que aparentemente ainda
se mantêm na vida ocidental são, todavia, hoje destituídas dos caracteres culturais
específicos que as determinavam no contexto grego, como as relações homoeróticas
entre mulheres e entre homens, que emergiam, em geral, de uma necessidade social
de introdução e iniciação de jovens em práticas sociais do mundo adulto. Cabe
ainda frisar que as evidências literárias podem fornecer uma visão bastante limitada
da vida grega quanto a esse aspecto, tendo em vista o forte caráter oral da Grécia
durante toda a Antiguidade. A literatura, porém, ainda é uma fonte fértil que
continua atraindo pesquisadores a explorar esse mundo ainda tão desconhecido
para nós que é o dos antigos, em geral, e o dos gregos, em particular. Muito
provavelmente, como na maioria das sociedades, a manifestação do desejo erótico
seria muito mais variada e complexa do que os materiais objeto de pesquisa
restantes do mundo grego antigo podem indicar. Ainda assim, a precaução
investigativa, no âmbito de fontes textuais, requer que as interpretações se atenham
àquilo que temos de mais objetivo, os textos – o que constituiu nossa diretriz
principal ao longo das reflexões feitas aqui.

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Bibliografia
CALAME, C. L’Éros dans la Grèce Antique. Paris: Belin, 1996.
FERRATÉ, J. Líricos griegos arcaicos. Barcelona: El Acantilado, 2000.
GENTILI, B. Poetry and its public in Ancient Greece: from Homer to the fifth century.
Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1988.
GOLDHILL, S. Love, sex & tragedy: how the Ancient World shapes our lives. London:
John Murray Publishers, 2004.
GREENE, E. (Ed.). Women poets in Ancient Greece and Rome. Norman (OK): University
of Oklahoma Press, 2005.
GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Trad. Victor Jabouille. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
HOMERO. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
HORNBLOWER, S. A commentary on Thucydides, v. 3: Books 5.25-8.109. Oxford:
Oxford University Press, 2008.
HORNBLOWER, S.; SPAWFORTH, A. The Oxford classical dictionary. Oxford: Oxford
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KERENYI, K. Os deuses gregos. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1998.
MORIN, E. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
RAGUSA, G. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo.
Campinas: Editora Unicamp, 2005.
RAGUSA, G. Lira, mito e erotismo: Afrodite na poesia mélica grega arcaica. Campinas:
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SAFO DE LESBOS. Poemas e fragmentos. Trad. Joaquim Brasil Fontes. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
THUCYDIDES HISTORIAE. Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: Oxford
University Press, [s.d.]. (Oxford classical text).
VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1996.
WEST, M. L. (Ed.). Greek lyric poetry. Oxford: Oxford University Press, 1993.

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Capítulo II

Ecos homéricos em representações da morte em Atenas

A vingança também é agradável; pois, se é doloroso não


alcançar uma coisa, é agradável alcançá-la; e os iracundos
afligem-se em demasia quando não gozam vingar-se, mas
regozijam-se quando esperam fazê-lo.
[...]
A honra e a boa reputação contam-se entre as coisas mais
agradá-veis, porque cada um imagina que possui as
qualidades de um homem virtuoso, e sobretudo quando o
afirmam pessoas que ele considera dizerem a verdade.
Contam-se entre eles os vizinhos mais do que os que se
encontram afastados, os familiares e os concidadãos mais
do que os estranhos, os contemporâneos mais do que os
vindouros, os sensatos mais do que os insensatos, e a
maioria mais do que a minoria; pois é mais provável que
digam a verdade os que acabamos de mencionar do que os
contrários [...]
(Aristóteles, Retórica, p. 1370b, 1371a)

A vingança e a honra, dois conceitos que Aristóteles elenca entre aqueles funda-
mentais para que o orador entenda como o prazer deve ser considerado como

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matéria da oratória judicial, são também dois aspectos essenciais da representação


da morte entre os gregos, desde Homero. Nos espaços institucionais de Atenas,
no Período Clássico, eles figuram frequentemente associados à morte individual ou
coletiva, e incorporados a práticas bem estabelecidas, de natureza religiosa e social.
No caso da morte do indivíduo, é interessante analisar como a honra aparece
travestida em necessidade de vingança nas representações do homicídio levado a
julgamento. No que diz respeito à morte coletiva dos guerreiros-cidadãos que
morrem combatendo em nome da cidade, a honra transfere-se da morte do
indivíduo para a vida da coletividade, revelando como a ideologia ateniense
consolida a fusão entre o valor individual e a glória da pólis em uma ocasião
simultaneamente religiosa e político-educativa: a da oração fúnebre proferida por
ocasião dos ritos funerários aos mortos de guerra. Tanto no tratamento do homicídio
quanto na louvação coletiva aos mortos, percebe-se a exaltação desse importante
aspecto da representação da morte do herói homérico: a relação entre morte e honra.
Em uma cidade que se proclama, entre as demais da Grécia Antiga, a mais
“civilizada”11, é natural que, desde o início de sua constituição, a pólis ateniense
tenha normatizado, pela lei ou pelo costume, o ato brutal de tirar a vida alheia. Em
621 a.C., a Lei de Drácon dispõe sobre o crime de homicídio, pressupondo uma
certa tradição de procedimentos convencionais – anteriores à lei, portanto –
relativos ao homícidio. Uma das questões centrais da Lei de Drácon é limitar a
vingança individual: a lei estabelece que os casos de homicídio devem ir a julga-
mento12, do que se tem inferido que buscava impedir “justiça com as próprias
mãos”, provavelmente uma prática costumeira até então (COHEN, 2005). Percebe-
-se que a tradição que atravessa os termos da Lei de Drácon – e chega ao Período
Clássico – mantém um aspecto fundamental da justiça do herói homérico com
relação ao homicídio13: a vingança como resgate da honra.
Na Grécia Arcaica, Aquiles encarna não só o herói que se lança conscientemente
para a morte em troca de renome, mas também o vingador por excelência. Logo
após saber da morte de Pátroclo, diz ele à mãe, Tétis, que não viverá enquanto

11. Cf. Lísias, Oração fúnebre, 17-23; Ésquines, Contra Timarco, I.5.
12. A Lei de Drácon dispõe sobre homicídio intencional e não intencional. O conhecimento que se tem dos termos da lei remete à
sua republicação pelos atenienses em 408/9 a.C., em que aparecem disposições somente sobre o homicício não intencional,
que deve ser punido com exílio ou recompensa monetária. Há várias conjecturas sobre o tratamento dado, na Lei de Drácon, ao
homicídio intencional, sobretudo em vista de a lei punir com morte outros crimes, como o roubo e traição; entretanto, a inscrição
com a republicação da lei não traz os termos referentes ao homicídio intencional.
13. Na “Ilíada”, 18.497-508, no novo escudo de Aquiles feito por Hefesto há uma narrativa visual que menciona um julgamento
que refere compensação monetária por homicídio. Alguns estudiosos têm assumido isso como evidência de tipo de punição de
homicídio na Grécia Arcaica (GAGARIN, 1981).

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“Heitor não perder a vida pela minha lança e pagar a espoliação de Pátroclo” (Ilíada,
XVIII, 93). Aqui se refere Aquiles às armas de Pátroclo, de que Heitor se apossara.
Entretanto, logo em seguida ele explicita com mais ênfase seu desejo: “E agora irei
ao encontro de quem a cabeça amada me matou: Heitor” (Ilíada, XVIII, 114-115).
Eis o real motivo que movimenta o herói de volta às hostes dos aqueus – vingar o
amigo morto, matando o assassino e mais alguns troianos:
Visto que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixo
da terra,
não te sepultarei, antes que para aqui eu tenha
trazido
as armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti,
magnânimo.
E na tua pira funerária cortarei as gargantas a doze
gloriosos filhos dos Troianos, irado porque foste chacinado.
(Ilíada, XVIII, 333-337).

Como bem salienta Vernant, o herói morre porque sua honra não pode ser
empenhada; sua honra é a medida de sua vida, em um plano metafísico, não social,
razão pela qual o prestígio social, que pode ser gozado e adquirido no plano de
sua existência mortal, não lhe interessa (VERNANT, 1989, p. 47). Por estar em
outro plano de valores, a honra do herói é o que o faz trocar a vida mortal pela
imortalidade na memória coletiva, pela lembrança reiterativa do canto. Ora, a
vingança (τιμωρία), que, na Grécia Arcaica, pode permitir que uma morte se pague
com outra morte, não é nada mais do que o ato de resguardar a honra ultrajada,
o que bem mostra a relação entre os termos honra (τιμή) e vingança (τιμωρία),
que partilham de um mesmo radical (τιμ-). McHardy, em seu estudo sobre a
vingança na cultura grega, mostra que o vocábulo τιμωρία resulta da composição
entre os radicais do substantivo τιμή (honra) e do verbo ὄρομαι (resguardar)
(McHARDY, 2008, p. 3)14. No caso de Aquiles em relação a Pátroclo, a honra que o
pelida busca resgatar, ao lançar-se sobre Heitor para vingar Pátroclo, é como se
fosse a sua própria15. Nesse contexto, é fundamental a Aquiles recuperar o corpo
do amigo, pois deixar Pátroclo insepulto é não concretizar a passagem do amigo
ao mundo dos mortos, como que o deixando no vácuo entre a vida e a morte,
já não mais vivo, mas ainda não exatamente na condição de morto, que é a do

14. Em trabalho de iniciação científica por mim orientado, Luiz Eudásio Barroso Capelo Silva (2009) mostra que, em Antifonte e em
Tucídides, o conceito de τιμωρία não compreende somente o resgate da honra ultrajada, mas também o reguardo, a proteção
da honra que pode vir a ser ofendida. Nesse sentido, o verbo τιμωρέω é muitas vezes traduzido para o português como
“proteger”, pois ocorre em contextos em que se procurar proteger a honra de uma possível ofensa a ser ainda sofrida.
15. Ilíada, XVIII, 79-81: “Mas que satisfação tenho eu nisso, se morreu meu companheiro amado, Pátroclo, a quem eu honrava acima
de todos os outros, como a mim próprio?”

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indivíduo cujo corpo, finda a vida, passa pelos ritos fúnebres de limpeza e purificação
para chegar ao Hades (VERNANT, 1989, p. 70-73).
O ideal da honra preservada, se necessário, pela vingança de morte deve ter
influenciado o imaginário dos atenienses por muito tempo, a julgar pelas evidências
de alguns textos do Período Clássico. Apesar de o homicídio ter sido regrado pela
Lei de Drácon, que aparentemente não sofreu grandes modificações ao longo do
tempo (Antifonte, Acerca do Coreuta, 2; Demóstenes, Contra Aristócrates, 51), muito
embora os termos relativos ao homicídio intencional não nos tenham chegado, é
possível que uma série de disposições tenham sido acrescentadas à lei original para
regulamentar, por exemplo, a execução de pessoas julgadas por homicídio
intencional e consideradas culpadas16. Mais frequentemente, a pena capital era a
contrapartida para o descumprimento da pena de exílio. Apesar de, em princípio, o
sistema legal ateniense pressupor que cabe à pólis julgar e processar os casos de
homicídio em geral, existe no Período Clássico uma retórica bem articulada e
empenhada em afastar, dos casos levados a júri, o desejo de vingança pessoal como
motivo desencadeador da ação penal. Tal retórica, argumenta Cohen, pode muito
bem indicar que, na realidade, o valor corrente entre os atenienses era buscar o
tribunal – no caso de homicídios, o Areópago – para obter a vingança pessoal
(COHEN, 2005b, p. 219 e ss.).
Alguns discursos de Antifonte obliteram claramente a distinção entre vingança
pessoal e punição do Estado. Em “Contra a madrasta”, o litigante, filho do pai
assassinado pela madrasta, interpela o júri a assumir seu papel de “vingadores do
morto” (21: τῷ τεθνεῶτι τιμωρούς)17, vingando simultaneamente as leis de
Atenas – ou, para lembrarmos o sentido de τιμωρία, resgatando a honra do morto
e resguardando a honra das leis atenienses. Para os atenienses, o homicídio,
ressalte-se, é um crime que, mesmo perpetrado na esfera privada, tem repercussão
direta sobre a vida da pólis, certamente porque contém um aspecto diretamente
relacionado à vida religiosa da cidade. Os homicidas eram proibidos de entrar nos
espaços públicos e julgados somente pelo Areópago. Em “Contra a madrasta”, o
filho dirige-se aos juízes, dizendo-lhes que o morto

16. Gernet (2004) traz uma interessante discussão sobre diversas penas de morte utilizadas até o século IV a.C. em Atenas:
ἀποτυμπανισμός (morte em que a vítima é amarrada nua a um poste de madeira para “morrer viva” – pena que lembra a
crucificação); o envenenamento por cicuta, que tão bem conhecemos pelo caso de Sócrates; e o βάραθρον (lançamento de
vítimas em abismo – se vivas ou já mortas, há controvérsias entre os estudiosos). À pena de morte podia somar-se também a
pena de privação do sepultamento da vítima.
17. Além de “Contra a madrasta”, ver “Tetralogia” I, 9.

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é digno de receber de vossa parte compaixão, auxílio e


vingança [τιμωρίας], ele, que teve de abandonar a vida
antes do que lhe fora destinado, de modo inglório [ἀκλεῶς],
contrariamente ao divino [ἀθέως], pelas mãos dos mais
miseráveis (Contra a madrasta, 21).
A vingança restitui, assim, o estado de piedade divina que merece o morto, mas
também parece ter certo efeito educativo, como o de castigar comportamento que
deve ser evitado, funcionando também, portanto, como meio de justiça educativa
(COHEN, 2005a). Esse tipo de interpelação dos juízes, como observa Cohen a
propósito de outra peça de oratória (Licurgo, Contra Leócrates, 141-6), tende a
mesclar a distinção entre vingança e punição que o exercício da lei e o julgamento
público deveriam, idealmente, preservar em Atenas (COHEN, 2005b, p. 225). Em
“Contra a madrasta”, o julgamento e a declaração de culpabilidade atenderiam ao
pedido do pai do impetrante da ação, que, antes de morrer, em vista de ter ficado
vinte dias padecendo de doença decorrente do envenenamento, conseguira pedir
ao filho que buscasse a vingança (Contra a madrasta, 30). As vítimas de homicídio
premeditado, diz o filho, se “ainda conseguem reagir antes de morrer, chamam seus
amigos e os parentes ligados por necessidade, dizem por que mãos pereceram e
recomendam a vingança daqueles que sofreram injustiça” (Contra a madrasta, 29).
Em Atenas, o homicídio intencional, apesar de ser crime de efeito sobre a vida dos
cidadãos de um modo geral, só podia ser objeto de ação penal por algum membro
da família do morto. Aparece aqui a morte representada e regulamentada no âmbito
das instituições, mas ainda assim suscitando o desejo de vingança pessoal,
assumida, porém, ou, de certa forma, facultada, pelo encaminhamento de uma
acusação para julgamento, de modo que o corpo coletivo da cidade – que o corpo
de juízes representa – se torne o vingador da vítima18.
O valor da honra do morto, segundo Vernant, também se manifesta pelo seu contrário,
pela sua desvalorização com a profanação do cadáver impedido de sepultamento.
Na epopeia, obstruir a recolha do cadáver é privar o inimigo de ter fixada sua
memória de forma estável, em ato correlato ao canto, por meio do memorial que
constitui, no fim dos ritos funerários, a edificação do túmulo com a stele, estável,
imperecível, como marca da vida concluída ou da morte acabada, enquanto
processo de passagem para o mundo dos mortos (VERNANT, 1989, p. 70-1).

18. Não se pense que execuções sumárias, sem julgamento, não fossem permitidas por lei. Sobressai como peculiar – e figura no
discurso de Lísias, “Sobre o assassinato de Eratosthenes” – o caso do homicídio lícito, permitido quando um homem surpreende
outro com sua mulher, mãe, filha, irmã ou concubina que mantenha para procriar filhos livres (cf. também Demóstenes, Contra
Aristócrates, 53).

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A isso dedicam-se com empenho, respectivamente, Heitor e os troianos, com o


cadáver de Pátroclo, e, depois, Aquiles, com o de Heitor, ainda de modo mais
extremo. O resgate e consequente sepultamento do corpo do morto é, portanto,
desde sempre, um valor caro aos gregos em geral – com frequência ignorado por
inimigos, voluntariamente, em contextos de guerra.
Entre os atenienses, vinculada ao sepultamento de combatentes mortos em guerra
em nome da pólis está a oração fúnebre, que, entre outras funções, tem a função
retórica de disseminar em prosa a glória dos mortos, à semelhança do que faz o
canto em relação à bela morte do herói. Entretanto, na oração fúnebre o herói não
é mais indivíduo, mas faz parte de um grupo amorfo e inominado de cadáveres que
promovem, na realidade e acima de tudo, a glória da pólis; são “heróis” sem nome,
a serviço do renome da cidade. A famosa oração fúnebre de Péricles revela algumas
características, na apresentação do ethos coletivo dos mortos, que evocam, por
analogia e diferença, alguns aspectos da tradição da bela morte do herói homérico:
Considerando que a vingança contra seus inimigos era
mais desejável do que essas coisas19 e julgando que este
era o mais nobre dos riscos, decidiram vivenciá-lo e vingar-
se daqueles e abandonar aquelas. Deixaram à esperança a
imprevisibilidade do acerto e, quanto à ação que para eles
já era visível, julgaram-se dignos de vivê-la. E preferiram o
ato de defender-se e padecer a salvar-se entregando-se: de
um lado, escaparam do opróbrio da palavra; de outro,
enfrentaram a ação com o corpo e, no breve momento do
acaso, no auge da glória, não do medo, eles nos deixaram
(Tucídides, II, 42.4).20

Assim como Aquiles ou Heitor, os primeiros mortos da Guerra do Peloponeso perdem


sua vida vingando-se de seus inimigos, isto é, resguardando ou resgatando a honra,
em combate. Porém, diferentemente do herói homérico por excelência, seus destinos
não estão previamente selados, mas resultam do “breve momento do acaso”.
Tampouco é o vigor físico ou a juventude – qualidades do corpo do herói que
sucumbe à morte (VERNANT, 1989, p. 56-57) – o que se destaca quando se
mencionam a coragem e o enfrentamento com o corpo na ação fatal de guerra,
mas, sim, a δόξα – a fama, a glória advinda da opinião alheia. A linguagem poética

19. Péricles refere-se a desfrutar de sua riqueza, no caso dos combatentes ricos, ou escapar da pobreza e tornar-se rico, no caso
dos pobres – caso visassem somente à sobrevivência.
20. Tradução minha.

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de Tucídides aqui visa a sensibilizar, não para o lamento, mas para a exaltação, a
fictícia audiência interna da história tucidideana, ou seja, os demais atenienses vivos
que ouvem as palavras de Péricles (LORAUX, 1986, p. 48). Nesse sentido, ressalta-
-se mais uma distinção entre a oração fúnebre ateniense e a tradição épica: nada
na oração de Péricles relembra o lamento de Troia inteira a ver Príamo chegar com
o corpo de Heitor (Ilíada, XXIV, 720-776). A oração fúnebre ateniense inscreve-se
em um contexto didático em que os vivos são convocados a identificar-se com os
belos feitos dos mortos de forma imediata, excluindo-se o distanciamento que
favorece o lamento, pois a glória da cidade, mantida por aqueles que em deter-
minado momento entregaram sua vida bravamente e que merecem então ser
honrados, depende da continuidade da bravura nos cidadãos vivos. A oração fúnebre
é uma lição de moralidade cívica endereçada aos vivos, acrescenta Loraux (1986,
p. 98). A morte transfigura-se assim em um destino resultante do acaso que deve
ser aceito pelos sobreviventes em nome da glória da cidade, que celebra seus
cidadãos somente porque estão mortos, uma forma igualmente de apelar aos vivos
que não desistam em combate e morram pela cidade, para tornar-se objeto de tal
celebração.
Tanto na representação do homicídio levado a julgamento quanto no elogio dos
mortos de guerra de Atenas, a honra é característica marcante da abordagem dos
vivos em relação aos mortos, tal qual já cantava Homero. Em um caso, ela conecta-se
com a vingança; em outro, com a glória. Todavia, na oração fúnebre, os mortos não
têm mais nome, e, no julgamento do homicídio, os juízes são convocados a vingar
não só o morto, mas também as leis da cidade. No âmbito das instituições e
ritos atenienses, a morte é representada como uma experiência que se incorpora e
se ressignifica no discurso da pólis e do cidadão, subestimando-se seu caráter
individual.

Bibliografia
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ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2005.
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COHEN, D. Crime, punishment, and the rule of law in Classical Athens. In:
GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The Cambridge companion to Ancient Greek law. New

35
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York: Cambridge University Press, 2005b.


DEMÓSTENES. Discursos políticos III. Madrid: Editorial gredos, 2008.
GAGARIN, M. Drakon and early Athenian homicide law. New Haven: Yale University
Press, 1981.
GAGARIN, M. The unity of Greek law. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The
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GERNET, L. Capital punishment. In: RHODES, P. J. (Ed.). Athenian democracy.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.
HOMERO. Ilíada. [Trad. de Frederico Lourenço]. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
LISIAS. Discursos. Madrid: Editorial Gredos, 1988.
LORAUX, N. The invention of Athens: the funeral oration in the classical city.
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McHARDY, F. Revenge in Athenian culture. Washington: Duckworth, 2008.
THUCYDIDES HISTORIAE. Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: Oxford
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VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1989.

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Prof. dr. José Luiz Brandão


Universidade de Coimbra (UC)
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Capítulo III

A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial21

O poeta Marcial deixa-nos um retrato da Roma do século I. E quando nos fala das
ruas da urbe, dos edifícios, dos espaços de convívio públicos e privados, não faz
uma descrição arqueológica, do gênero de um catálogo de museu, mas dá-nos um
testemunho vivo das gentes que povoavam tais espaços, desde o rico, ou novo-rico,
ao mais miserável dos arruinados; desde o mais poderoso patrono ao último dos
clientes, desde o romano da mais pura gema aos mais extravagantes provincianos,
desde as mais nobres matronas às mais repelentes rameiras. Por isso, Marcial é
considerado il poeta di Roma vivente – como dirá Enrico Paoli. Reflete a Roma imperial,
com a sua sociedade piramidal e a monumentalidade de cariz totalitário, acumulada
sobretudo durante o período dos Júlio-Cláudios e dos Flávios.
Roma é o cenário privilegiado dos epigramas. No prólogo do Livro XII, Marcial refere com
saudade os espaços por onde costumava passear (12.21). É a Roma engrandecida
pelos Flávios e motivo de adulação por parte do poeta, é o local de atuação dos
tipos sociais que vai referindo, são os espaços da vida literária (vendas dos livreiros,
percursos dos livros para saudar um patrono) e são os trajetos das deambulações
e canseiras do poeta, que descreve as impressões dos meandros urbanos. Embora

21. Foi usado neste trabalho, embora com uma organização diversa, grande parte do material publicado em Brandão (2012, p.
135-161).

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deseje o otium fora da urbe, Marcial vive esta contradição de necessitar do espaço
urbano para a sua criação poética. A representação topográfica da urbe é, pois,
uma estratégia literária associada ao gênero que o nosso poeta cultiva; para mais,
em um período em que as estruturas da urbe sublinham a afirmação do poder de
uma nova dinastia. Muitos dos epigramas integram-se no consagrado gênero da
laus urbis22.
A Roma dos epigramas é um espaço em metamorfose. Augusto dissera que encontrara
uma Roma de tijolo e a deixara de mármore. Como outrora Augusto23, Vespasiano
e os filhos procuraram restaurar e ornamentar moral e fisicamente a cidade depois
da sumptuosidade de Nero e das consequências do conflito civil de 68-69 d.C. na
disciplina e nos edifícios24. O “Liber spectaculorum”, cuja publicação celebra a
inauguração do anfiteatro Flávio em 80 d.C. No segundo epigrama desse livro,
Marcial estabelece o contraste entre passado e presente por meio do louvor das
construções que se elevaram no lugar da Domus Aurea, o extravagante palácio de
Nero, construído no centro da urbe na sequência do incêndio de 64 d.C. Agora,
reddita Roma sibi est (“Roma foi restituída a si mesma”) (Sp. 2.11). A oposição entre
passado e presente corresponde à metamorfose de espaço fechado em espaços
abertos de deslocamento, de convívio e de espetáculo; à transformação dos deleites
do tirano (dominus) em deleites do populus (Sp. 2.12)25. A imagem da Fênix é
associada a Roma, que por obra de Domiciano renasce das cinzas, provavelmente
depois do incêndio de 80 d.C. (5.7). Uma alusão a Domiciano enquanto restaurador
e construtor de templos é feita de forma espirituosa em 9.3: ao colocar o imperador
como credor do pai dos deuses, Marcial sublinha o aspecto religioso da política de
construções, em continuidade com a herança augustana (8.80).
Roma permite um cruzamento de percursos poéticos e interpoéticos. Marcial refere-se
diversas vezes a percursos da cidade feitos pelas personagens dos epigramas, por
si próprio ou pelo livro que envia como seu embaixador. É o caso do roteiro de Sélio,
que circula pelo o Campo de Marte na ânsia de conseguir um convite para jantar
(2.14). Outro itinerário destacado é o que faz o poeta até aos seus protetores (1.70;

22. Vide SULLIVAN, 1991, p. 147 e ss.; ROMAN, 2010, p. 99 e ss.; COLEMAN, 2006, p. 15.
23. Cf. Suetônio, Aug. 28.3: “Vrbem neque pro maiestate imperii ornatam et inundationibus incendiisque obnoxiam excoluit adeo, ut iure sit
gloriatus ‘marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset’. Tutam uero, quantum prouideri humana ratione potuit, etiam in posterum
praestitit”.
24. Suetônio, Ves. 8.1: “Ac per totum inperii tempus nihil habuit antiquius quam prope afflictam nutan-temque rem p. stabilire primo, deinde et
ornare”.
25. Vide PAILLER, 1981, p. 79-87; ROMAN, 2010, p. 111.

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1.108; 1.117; 2.5; 5.22; 10.20.4-5; 10.56; 10.82). A relação entre o autor e os
espaços da urbe opera-se também por meio do livro, usado muitas vezes como
metonímia do poeta. O motivo ovidiano de enviar o livro do exílio26 é transferido
por Marcial para o contexto das obrigações de cliente, como forma de evitar a perda
de tempo de ir pessoalmente cumprir a salutatio (1.108). Encontra, assim, pretexto
para introduzir passo a passo alusões topográficas e arquitetônicas na descrição
de um percurso: é o caso do trajeto do livro que envia ao amigo Próculo (1.70)27,
ou do livro que envia a Plínio (10.20)28. Contudo, há também os percursos descritos
no sentido de levar os leitores até ao lugar dos epigramas, com indicações do nome
dos livreiros e dos locais onde se podem encontrar os epigramas à venda (1.2;
1.117; 4.72). Nesses itinerários, a criação literária recorre a relações intertextuais e
interpoéticas, pela interseção com a arquitetura, a pintura, a vida cultural e social.

1. Roma viva
Atento ao mundo em que vive na busca de inspiração para a sua obra, Marcial
capta a realidade e representa-a por meio do olhar de poeta epigramático. E nos
quadros representados figuram caracteres, virtudes e vícios, tipos sociais, grupos,
profissões. O leitor depara-se com alguns dramas humanos, transmitidos algumas
vezes de forma crua e irônica, outras vezes, empática, e a maior parte das vezes
espirituosa, como manda o gênero: o epigrama, pela sua tradição. É a escolha
adequada para descrições concisas, argutas e contundentes. Marcial deixa-nos,
por isso, um retrato ao mesmo tempo realista e divertido da vida social da Roma
dos Flávios. É uma poesia que, apesar da caricatura, mantém o sabor humano,
como salienta o poeta (10.4.10). A mordacidade e a sátira vão alternando com
a sensibilidade e a empatia com o sofrimento.

1.1. Sobreviver em Roma: entre o ter e o ser


Um dos problemas que mais preocupa a humanidade é o da procura dos meios da
sobrevivência. Marcial parece obcecado com o problema da distribuição da riqueza
e da pobreza na sociedade; não como um paladino da luta pela igualdade social
dos tempos modernos, mas como um cavaleiro conservador, preocupado com o
perigo da subversão da ordem na sociedade romana. Em Roma, o poder político e

26. Cf. Ovídio, Trist. 1.1; 3.7; Pont. 4.5.


27. Um poema que, pelo local e pelas referências, recorda também o “Ibam forte Via Sacra”, de Horácio (Sat. 1.9). Descreve uma
subida desde o Fórum, centro de Roma, até ao Palatino, com menção dos locais que se vão encontrando.
28. Vide ROMAN, 2010, p. 103-105.

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social estava tradicionalmente associado à riqueza. Desde tempos antigos, que nos
comitia centuriata votavam em primeiro lugar os mais ricos, os da primeira classe.
Nos tempos do poeta, o status de senador e cavaleiro estava dependente da posse
de um determinado valor patrimonial, um milhão de sestércios para o primeiro e
400 mil para o último. A ordem senatorial tem o seu estatuto e patrimônio
tradicionalmente ligados à posse da terra. Para um cavaleiro, a indústria e o grande
comércio são recomendados29, mas um naufrágio, por exemplo, pode arruinar um
homem rico30. As atividades assalariadas e laborais são consideradas desonrosas
para um homem ilustre. Por vezes, os imperadores tinham de subsidiar indivíduos
dessas classes para que não perdessem o estatuto. Marcial zurze, com voz
moralizante, as situações que subvertem a realidade social.

1.1.1. Heranças e dotes


Um dos principais alvos de Marcial são os caçadores de heranças. A caça à herança
ou ao dote é um fenômeno comum em Roma por causa das disposições testamen-
tárias que garantiam a propriedade privada e a defesa do direito de cada um dispor
dos bens a seu desejo. A captatio tornou-se topos dos poetas satíricos31. Os alvos
são mulheres ricas ou velhos sem herdeiros. É bastante conhecido e repetido, como
paradigmático do gênero cultivado por Marcial, o epigrama sobre as núpcias de
Maronila, que se torna atraente por estar tísica, e, por isso, perto da morte (1.10);
ou o caso de Névia que, para atrair um pretendente, usa de publicidade enganosa:
tosse de forma exagerada (2.26) – situações caricatas que refletem a realidade dos
expedientes a que se podia recorrer para sobreviver na urbe. Dada a proteção de
que gozava a propriedade da mulher romana, surge a suspeita de que certos
homens vendessem os seus favores sexuais em troca do dinheiro das mulheres – é
o que se deduz da censura feita a Basso, por gastar a sua potência sexual com
rapazinhos, subtraindo à esposa o vigor que ela tinha pago com o dote (12.97); da
ventura de Gélio, que casou com uma velha rica (9.80); ou da desgraça de Matão,
que para sobreviver tem comércio carnal com mulheres, contra os seus hábitos
(6.33). E, dadas as disposições legais sobre o adultério – a restauração por parte
de Domiciano da lex Iulia de adulteriis coercendis promulgada por Augusto –, certas
mulheres optam por casar com sucessivos amantes (6.7; 6.22). Na Roma Antiga,

29. Vide MARACHE, 1961b, p. 12-13.


30. Cf. Petrônio, Satyr. 76.
31. O topos foi aparecendo em Horácio (Sat. 2.5), Petrônio (117), Pérsio (5.73), Juvenal (por ex. 1.37-41). Vide SULLIVAN, 1991, p.
159 e ss.

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o homem tinha só direito ao uso do dote enquanto durava o casamento, e tinha de


o devolver em caso de divórcio32. Por isso, Proculeia descobre que é mais lucrativo
abandonar o marido por causa da despesa com a brilhante carreira dele (10.41).
Por outro lado, a morte de esposas ricas é uma fonte de rendimento (2.65; 5.37;
10.43), pelo que estas podem tornar-se vítimas de envenenamentos (4.69.3; 12.91).
Os velhos sem herdeiros são também vítimas naturais. Os caçadores de heranças
enchem-nos de presentes na esperança de verem o seu nome no testamento (8.27;
9.8; 11.44; 11.67). É a síndrome de Eumolpo do romance de Petrônio (Sat. 116-
141), que, ao saber que, em Crotona, só existiam heredipetae, se faz passar por velho
rico para conseguir benesses. O próprio Marcial se inclui no grupo: troça do seu
próprio desejo frustrado de ser incluído em um testamento (5.39; 9.48; 10.98;
12.73)33, ou de receber uma herança (10.97).

1.1.2. Espórtula e jantares


Outro tópico fértil são os convites para jantar e o parasitismo que existia nesse
contexto, como no caso de Sélio (2.11; 2.14; 2.27), de Vacerra (11.77) ou
Menógenes (12.82), que procuram por todos os meios receber um convite. Era sinal
de certo êxito social ter muitos convites34, pelo que alguns fingem ser bastante
requestados (5.47; 12.19). No entanto, também ficaria bem socialmente não
mostrar demasiado entusiasmo ou até certa contrariedade em jantar fora, como
sugere a denúncia por parte do poeta de atitudes desdenhosas que soam a
hipocrisia (2.69; 6.51).
A verdade é que ser convidado para jantar era uma forma de subsistência, como
demonstra o caso de Filão: jurava que nunca jantava em casa, porque, quando não
tinha convite, não jantava (5.47). Alguns aproveitam para fazer provisões, roubando
comida nos banquetes (3.23; 7.20). Esse topos está, pois, relacionado com as
obrigações padronizadas entre patrono e cliente. A provisão de comida é uma das
formas primitivas de suporte dos dependentes, que depois se transforma em dádiva
de dinheiro: a sportula. A “clientela” era uma verdadeira instituição em Roma e, ao
mesmo tempo, uma forma socialmente digna de um poeta pobre ganhar a vida.
Uma vez que o trabalho remunerado era considerado pouco acima de compor-
tamento servil, quem não tivesse meios de subsistência e quisesse manter o status

32. Vide SULLIVAN, 1991, p. 161.


33. Outros exemplos de caçadores de heranças: 2.76; 4.56; 4.70; 6.62; 6.63; 7.66; 8.44; 9.48; 9.82; 9.88; 11.55; 11.83
34. Etão considera como maldição ter de jantar em casa três dias seguidos (12.77).

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tinha de optar pelo recurso à “caridade” de um patrono poderoso. E Marcial


envereda relutantemente por esta prática, que juridicamente tem uma origem servil35.
É que o papel do cliente sofreu transformações desde a República: nessa fase, o
vínculo entre patronus e cliens consistia em uma relação moral bilateral baseada na
fides; o cliente encontrava proteção no patrono e este precisava do cliente, inclusive
para apoio armado. Com o advento do Império, a ligação moral deixa de existir,
porque o imperador é politicamente o único verdadeiro patrono, pelo que resta só
a ligação econômica36. Como o patrono nada tem a esperar dos seus clientes,
a relação paternalista torna-se uma espécie de vassalagem para garantir a
sobrevivência e ritualiza-se. Há dois momentos fortes do dia em que se efetua o
encontro ritual entre os patronos e os clientes: a salutatio matinal e a cena, se o
cliente tiver a sorte de ser convidado. Em troca, o cliente recebe a tal quantia que
lhe permite sobreviver na urbe (3.30), sem que isso constitua um estigma social.
Entretanto, à exceção dos dias especiais, como o aniversário do patrono, em que a
quantia pode aumentar consideravelmente (10.27), o valor da sportula37 é escasso
(3.7; 6.88; 8.42); pelo que o estafado cliente se vê obrigado a correr, para saudar
vários patronos.38
Domiciano, na sua tentativa de apagar de Roma os traços neronianos39, emitiu
legislação para transformar a sportula, cuja tarifa remontava a Nero (um cesto de
comida ou dinheiro), na dádiva de um jantar. Contudo, a nova disposição não
agradava nem aos patronos, que ficavam vinculados a ter à mesa os seus
dependentes, nem aos clientes, que necessitavam de dinheiro vivo. Tal circunstância
é repetidamente tratada no Livro III dos “Epigramas”. Afastado de Roma, em Forum
Cornelii (Ímola), com a justificativa de não poder suportar mais o aborrecimento
da toga (3.4.6), o poeta dá voz ao descontentamento gerado pela abolição da
sportula40. Em vez de um jantar, o poeta sugere a atribuição de um salário (3.7). No
entanto, a disposição de Domiciano acaba por ser esquecida e a anterior prática
retomada, como mostra o fato de o poeta continuar a referir a espórtula nos livros
seguintes.

35. Vide MARACHE, 1961, p. 38-53; MOHLER, 1967, p. 241; AUGELLO, 1968-1969, p. 259-260, e n. 156.
36. Vide ROBERT, 2004a, 48 e ss.
37. Sob tal designação se podem incluir os presentes oferecidos durante o jantar, como sugere Plínio (Ep. 2.14.4), e nesse caso é
comparável com os xenia ou apophoreta; ou pode ser dada durante os banhos (Marcial 8.42), ou durante a salutatio (Juvenal
1.95-102; 120-122;127-128): vide MOHLER, 1967, p. 251 e ss.
38. Cf. 1.80: “Cano morreu depois de receber a sportula: foi esta que o matou... porque foi só uma”.
39. Vide AUGELLO, 1968-1969, p. 263.
40. A abolição temporária da sportula é um dos temas recorrentes nesse livro: 3.7, 3.14, 3.30, 3.60. Vide SULLIVAN, 1991, p. 31.

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O poeta acusa repetidamente a humilhação e o cansaço resultante dessa veneração


– o termo que usa é colere em 2.55 – dos patronos. Queixa-se do fato de o cliente,
ao romper da aurora, ter de se dirigir aos átrios dos patronos para a salutatio
matutina, a tremer (9.92.5); da obrigação de ir vestido a rigor, isto é, de toga, peça
sobre a qual Marcial faz passar uma ideia de desconforto (3.4.6; 12.18.6.); da
humilhação de ter de saudar o patrono como dominus et rex, títulos tirânicos que o
poeta se mostra renitente em usar (1.112; 2.68.2; 10.10.5), mas o tratamento pelo
nome próprio em vez de por dominus pode implicar a perda da espórtula (6.88).
Nessa pirâmide social cujo vértice é o imperador, os patronos do poeta são, por sua
vez, clientes de outros mais poderosos, situação a qual Marcial não deixa de ironizar
(2.18; 2.32). E no Livro X confessa-se exausto41; o que deseja é levar uma vida frugal
e simples, longe do afã citadino (10.47), e dormir sossegado (10.74). Irá encontrar
essa paz, pelo menos inicialmente, com o regresso a Bílbilis, a sua terra natal42.
Em suma, sob o disfarce da caricatura, a abordagem é moral e pessimista. Homens,
provavelmente arruinados, que, com os seus bens, perderam todo o amor próprio:
Sélio desfaz-se em bajulações e, esgotado, corre a todos os locais em busca de
quem o convide, para, ao fim da tarde, deambular só por um pórtico vazio (2.14;
2.11); Menógenes suja-se de pó ao devolver a bola a um poderoso, para receber
um convite para jantar (12.82); Tuca come avidamente e até já se mostra feliz
quando lhe chamam alarve (12.41); Ceciliano não se inibe de roubar comida no
banquete, porque a antecipação da fome de amanhã já lhe é mais dolorosa que a
vergonha de hoje (2.37; 3.23); Santra chega ao quarto cansado com toda a comida
que conseguiu palmar, para no dia seguinte a ir vender (7.20); Filão, mais orgulhoso,
não admite, mas passa fome quando não o convidam (5.47); Cota, com a desculpa
de furtos, vem descalço e traz um séquito que é só um escravo (12.87); Etão
necessita tanto de um convite para jantar, que a sua falta é uma maldição dos
deuses (12.77). É degradante à vista o cortejo de trastes de Vacerra, que está a
mudar de casa com a mãe e a irmã (12.32). De qualquer modo, é preciso ter em
conta que se trata de tradição literária: certos retratos de indigência extrema (como
1.92) podem ser mais uma forma de glosar o mote do que expressão da realidade43.
A crueldade da troça em alguns dos quadros sugere que a pobreza é resultado de
culpa. Pode-se descortinar o topos da retórica contra a suntuosidade, presente na

41. 10.56; 10.82.


42. Vide PIMENTEL, 1993, p. 249-261; BRANDÃO, 1998, p. 151-172.
43. Vide HARRIS, 2011, p. 27-54.

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crítica aos esbanjadores44 e em vocabulário relacionado com luxuria. Porém,


intensifica-se a censura quando se trata de mostrar o que não se é. Com efeito, em
Marcial está patente o empobrecimento de um grupo em especial: uma classe nobre
com a qual o poeta convive e na qual se inclui. São pessoas de gostos requintados
e, por isso, dispendiosos. Assim, nesse século I d.C., ao lado de libertos riquíssimos,
surge uma ordem equestre arruinada. Entre os cavaleiros, há quem, apesar do
aparato, tenha mesmo de empenhar o anel distintivo da sua classe (2.57). São
pessoas que, habituadas a privar com a nata da nobreza romana, continuam a
cultivar o bom gosto. Contudo, para um homem de gostos requintados e empo-
brecido, como Mamurra, uma visita às montras transforma-se em um verdadeiro
suplício (9.59; 10.80). Quem se habituou a viver com sumptuosidade, dificilmente
se habituará a uma vida simples, como demonstra a referida anedota sobre a morte
de Apício. Em contraste, o liberto Sirisco herdou uma fortuna do patrono, mas
desperdiça-a com gostos plebeus (5.70).

1.1.3. Novo-riquismo
Como seria de esperar, em uma sociedade que tem escravos, os libertos e novos-
-ricos são bastante atacados pelo poeta, sobretudo aqueles que procuram ostentar
insolentemente as riquezas ou disfarçar os sinais da antiga escravatura (2.29). Zoilo
é quem melhor encarna o liberto e novo-rico sumptuoso, luxurioso, cultor de falsas
aparências, imbuído de mau-caráter e de mau gosto45. As suas extravagâncias
durante o jantar recordam as de Trimalquião no “Satyricon” de Petrônio46. Usurpou
o status de cavaleiro47, e a ostentação frívola que marca a sua vida evidencia-se
pelo tamanho do anel (11.37), pela excessiva mudança de roupa durante a cena
(5.79), pelo esplendor das colchas do leito (2.16), pela envergadura da liteira48.
Contudo, afinal, tudo assenta em bases falsas. Marcial diz que ele é ladrão e escravo
fugitivo (11.54) e um filho de ninguém, dada a sua origem servil, jogando com o
fato de, à face da lei romana, um escravo não ter pais nem filhos (11.12). Marcial
mostra-se preocupado com o status das ordens sociais e as tentativas de usurpação

44. Cf. 3.62; 7.98; 11.66.


45. O nome aparece em vários epigramas desde o início da carreira de Marcial: 2.16; 2.19; 2.42; 2.58; 2.81; 3.29; 3.82; 4.77;
5.79; 6.91; 11.12; 11.30; 11.37; 11.54; 11.85; 11.92. Marcial ter-se-á inspirado em um crítico homérico do século IV a.C.,
alcunhado de Homeromástix, odiado pela sua maledicência. Para o estudo das influências literárias e históricas sofridas por
Marcial na criação desta personagem, vide KAY, 1985, p. 92-93.
46. 3.82. cf. Petrônio, 32-78. Vide LEÃO, 2004, p. 191-208.
47. Cf. 3.29: possui os anéis distintivos desta classe.
48. Cf. 2.81; Filipe (6.84) e Afro (6.77) têm uma atitude semelhante de ostentação.

46
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por parte dos libertos, como denotam os reiterados ataques contra os que violavam
a lex Roscia theatralis, que impunha uma distribuição dos lugares no teatro de acordo
com a posição e a hierarquia social49.
Os libertos imperiais são exceção à regra, porque se trata da intocável majestade
do imperador, cujos mores eles espelham (9.79); mas também porque eles estão na
sua correta posição social: ao serviço do seu patrono, com as funções que este neles
delega. Por outro lado, Augusto usara escravos e libertos da sua casa para
desempenhar tarefas administrativas no Império, por não achar apropriado
empregar cidadãos livres em tais serviços. No entanto, com Cláudio os libertos
atingiram um poder invejável à frente dos gabinetes da administração imperial.
Na crise de 68-69, tanto Otão como Vitélio empregaram cavaleiros nestas funções;
e Domiciano distribuiu-as entre cavaleiros e libertos (Suet. Dom. 7.2), apesar de, na
“Historia augusta”, se dizer que Adriano foi o primeiro a substituir os libertos por
cavaleiros nas secretarias de ab epistolis e a libellis. O biógrafo Suetônio, membro da
classe equestre, desempenhou esses cargos nos principados de Trajano e Adriano.

1.1.4. Profissões com saída


Objeto da atenção do poeta são as profissões, ou o modo como são desem-
penhadas. Segundo Marcial, a advocacia era uma profissão rentável: recebiam
muitos presentes, sobretudo pela festa das Saturnais (4.46). E auferiam pagamento
(2.13; 8.16; 8.17). Já naquela época os litígios se arrastavam (7.65). É uma
alternativa respeitável que os amigos aconselham ao poeta, e que este declina: usar
os dotes retóricos para ganhar a vida como patronus ou causidicus. Entre os nomes
provavelmente fictícios desses conselheiros (1.17; 2.30; 5.16), figura um aparente-
mente real: o do célebre retórico Quintiliano (2.90). No entanto, em 3.38, Marcial
apresenta a advocacia – a par da poesia – como geradora de fracos rendimentos,
sobretudo se o praticante é um homem honesto. O poeta ataca tanto os advogados
que se calam (1.97; 8.7), como os palavrosos, que se apoiam em vãos floreados
retóricos: é bem conhecido o epigrama sobre o causídico que disserta sobre
momentos dramáticos e grandes heróis da história romana, quando em causa está
o simples furto de três cabrinhas (6.19). A Ceciliano, que pedira o tempo de sete
clepsidras para falar, como tem muita sede, o poeta aconselha-o a beber da clepsidra
(6.35). Há ainda aqueles que mudam de profissão, como Cípero, um antigo padeiro

49. Cf. 5.8; 5.25; 5.35; 5.38; 5.41. Vide MOURITSEN, 2011, p. 91, 106 e n. 190.

47
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que agora defende causas (8.16), ou um advogado que se tornou agricultor e


empobreceu (12.72).
Outra profissão ligada ao uso da voz e que envolvia muito dinheiro era a dos
leiloeiros: Marcial aconselha-a como forma de singrar na vida, e, surpreenden-
temente, associa-a à de arquiteto no rendimento (5.56); constata que, quando se
trata de casamento, um leiloeiro é melhor partido que pretores, tribunos, advogados
ou poetas (6.8). Por outro lado, expõe a falta de senso de alguns que, por causa de
tiradas infelizes no uso do seu proverbial espírito, acabam por prejudicar a venda
(1.85; 6.66).
A crítica aos médicos é comum na comédia, no epigrama satírico e mesmo em
epitáfios. Em Roma, os médicos eram sobretudo gregos, e abundava a incompe-
tência e falta de controle sobre a atividade. Plínio, o Velho, na sua “História natural”
(29.1-29), produz uma longa diatribe contra os médicos, apontando a sua avidez
por dinheiro, adultérios, assassínios por más práticas. Segundo esse autor, Catão, o
Antigo advertira o filho de que os gregos teriam jurado matar todos os “bárbaros”
por meio da medicina e de que cobravam pagamento para se tornarem mais
convincentes (Nat. 29.14)50. A troça centra-se, pois, nos médicos cujo desempenho
tem o efeito contrário do esperado, com resultados muitas vezes fatais – um certo
indivíduo antes era médico, agora é cangalheiro; mas o que faz como cangalheiro,
já o fazia como médico (1.47 e 1.30, ver 8.74); ou com o agravamento dos sintomas
– um dia o poeta estava adoentado, veio um médico com os seus cem discípulos e
o poeta foi apalpado por cem mãos gélidas do Aquilão: se antes não tinha febre,
agora tem (5.9.). A hipérbole no tratamento do tema leva o poeta a sugerir que se
pode morrer por ter sonhado com o médico (6.53). No entanto, há a ideia de que
os clínicos podem matar deliberadamente por razões passionais (6.31) ou
incapacitar permanentemente (11.74), e que seduzem as pacientes (11.71). Outro
motivo comum é de que aproveitam para roubar os doentes (9.96).
O hábito de fazer a barba existiu em Roma sobretudo desde o século III a.C. Adriano
(117-138 d.C.) restaurou a moda de usar barba, pelo que muitos o imitaram. Antes
esse costume era típico dos filósofos51. Era comum os romanos ricos terem barbeiros
entre os seus escravos. Marcial compôs um belo epitáfio do seu escravo barbeiro

50. Vide HOWELL, 2009, p. 74-75; HANSON, 2010, p. 492-496. A referência aos Romanos como bárbaros reproduz o ponto de
vista grego, recorrente por exemplo em Plauto (Asin. 11; Poen. 598; Tin. 19).
51. Marcial, jogando com o sentido do cínico, diz que um determinado seguidor dessa escola, de tão sórdido que está, parece um
verdadeiro cão (4.53).

48
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com um encômio à sua arte (6.52). Podia-se também recorrer aos tonsores, que
ofereciam o seu serviço na rua, ou às tonstrinae das tabernae52. Os barbeiros são
criticados pela sua lentidão (7.83) ou pelo sofrimento que causam aos clientes
(11.84). Com efeito, eram proverbiais os riscos que envolvia confiar o pescoço à
navalha (3.74). Eram também censurados pelos elevados preços que cobravam53:
Marcial critica o fato de um certo barbeiro atingir o estatuto de eques por benefício
da sua patrona (7.64.1-2)54.
Os professores são ferozmente atacados, pelo barulho que fazem logo de manhã
(9.68; 5.84; 8.3) e porque o poeta é movido pela compaixão para com as crianças,
submetidas à dureza da disciplina (10.62). Um conhecido relevo de Arlon mostra
um mestre-escola empunhando um bastão. Contudo, essas acusações parecem ser
mais fruto da hostilidade do poeta, que parece ter habitado nas proximidades de
um desses professores, do que reflexo de uma real desconsideração por parte da
sociedade romana.
Essas profissões são talvez as mais representativas na obra do bilbilitano. Porém,
muitas outras ocupações figuram nos epigramas, como prostitutas, taverneiros,
libitinarii, agricultores, vendedores ambulantes, dançarinas, etc. E nem sempre as
atividades honestas são as mais bem remuneradas. Na cidade, prosperam os
delatores, os caluniadores, os fraudulentos, os traficantes, os devassos, os mestres
de gladiadores (11.66; 4.5; 6.50), para o deleite de qualquer poeta epigramático55.

1.1.5. Exaltação da sua obra


Marcial reflete, pois, as alterações políticas e sociais do seu tempo. Juntamente com
a antiga aristocracia pode ter desaparecido grande parte dos valores morais
tradicionais da classe. Os novos patronos não sentem obrigação moral para com
os concidadãos56. Nesse contexto, Marcial apresenta-se como um poeta pobre, que
tem de se submeter a contragosto à situação de cliente para conseguir sobreviver
na urbe. Entretanto, a sua pobreza tem de ser relativizada perante aqueles que
nada têm, excluídos do quadro social: que não são patronos nem clientes, ou que

52. Figura também uma tonstrix da Suburra (2.17): “Non tondet, inquam. Quid igitur facit? Radit!” (“Não barbeia, digo-te eu. Que faz
então? Esfola!”).
53. Cf. Juvenal 10.226.
54. Cf. Juvenal 1.24-25.
55. É porque apresenta tantas deformidades que Roma atrai um poeta epigramático. Vide CASTAGNOLI 1950, p. 67-78.
56. Vide ROBERT, 2004a, p. 48-68.

49
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nem sequer são abrangidos pelas distribuições frumentárias. Marcial tinha patronos
poderosos, alguns hispânicos como ele. Podia enveredar pela advocacia. É provável
que o não tenha feito, porque não teria tido necessidade ou não ambicionava
riquezas exageradas.
O poeta valoriza o ato de dar e, além de muitos epigramas sobre ofertas, publica
dois livros para acompanhar as dádivas dos jantares e das Saturnais: “Xenia” e
“Apophoreta”. No entanto, acima dos bens materiais, valoriza o apreço pela sua
obra (7.88). Assume-se, pois, como pobre, “sed non obscurus nec male notus eques”,
uma vez que pela sua obra é reconhecido no orbe (5.13; 5.16; 5.60). A consciência
do seu status social e literário emerge quando, ao enumerar as riquezas de Calístrato
em comparação com a sua pobreza, conclui: “Hoc ego tuque sumus: sed quod sum,
non potes esse / tu quod es e populo quilibet esse potest” (5.13.9-10) (“Isto somos eu e
tu; mas o que eu sou, tu não podes ser / o que tu és, qualquer plebeu o pode ser”)
– o que conta é o estatuto social; as riquezas são triviais57.

1.2. O belo e o horrendo


Outra tensão que existe nos versos de Marcial é entre o belo e o horrendo; o meio-
termo, o comum não atrai tanto um poeta epigramático. Em muitos dos casos é
difícil separar o eidos do ethos, uma vez que o belo tendia a ser identificado com o
bom, bem como o disforme com o mau. O belo é o que está no devido sítio, que
cumpre harmoniosamente a sua função, é suave, agradável aos olhos e tem odor
agradável; o horrendo subverte a ordem estabelecida, ofende a vista ou os ouvidos
e fede. Não espanta que o poeta transmita impressões de prazer ou de desagrado
no que toca a sensações gustativas, olfativas, visuais, auditivas e táteis.

1.2.1. Sabores
Não se estranha que, para o cliente Marcial, uma fonte privilegiada de inspiração
seja, pois, a situação de banquete: a decoração da sala de jantar, a beleza dos
jovens escravos, os odores requintados, os perfumes, as flores, os poemas e a
música. Era natural que os mais ricos tentassem imitar os requintes dos banquetes
de Nero na chamada cenatio rotunda da sua Domus Aurea, cuja abóbada rodava
continuamente à semelhança do universo, e cujo artesoado do teto permitia
derramar flores e perfumes sobre os comensais58. Os pratos descritos por Marcial

57. Vide MOURITSEN, 2011, p. 112.


58. Cf. Suetônio, Vida de Nero 31.

50
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constituem uma fonte de informação sobre a cozinha romana. E as atitudes de


anfitriões e de convivas captam a atenção do poeta epigramático. Um dos temas
diz respeito à mesquinhez dos patronos, que por vezes faziam distinções nos
banquetes entre os clientes, ou entre eles próprios e os clientes, no que toca ao
requinte da comida e da bebida servidas. Ceciliano devora cogumelos enquanto os
convidados ficam a ver, pelo que o poeta considera que tal gula é digna do
cogumelo que Cláudio comeu, em uma alusão à morte desse imperador, em 54
d.C., alegadamente envenenado por um cogumelo, a mando de Agripina59.
Também a avidez dos convidados é objeto de censura. O mesmo Ceciliano – nome
certamente fictício, como é prática de Marcial para zurzir nos vícios – aparece
associado ao furto de comida nos banquetes60. A situação é mais indecorosa ainda
se o furto se destina a ser vendido, no dia seguinte, na Suburra (7.20). A gula é
objeto fácil de caricatura (11.86; 12.41). O vício é ilustrado com referência jocosa
a um nome que para qualquer romano evocava imediatamente a boa cozinha:
Apício. Diz o poeta que ele era tão guloso que, depois de quase arruinado, não
podendo suportar perspectiva de passar fome e a sede, bebeu – extrema gulodice!
– veneno61.
A mistura do bom e do mau gera efeito cômico, um manancial para o epigrama.
Em ambiente de banquete, a falta de gosto de alguns ricos fere a sensibilidade de
Marcial. Há vinhos bons e maus, mas misturar o celebrado falerno com vaticano é
um crime (1.18; 6.92). Aniano bebe essa zurrapa em uma pátera que é uma obra
de arte62, contradição sinestésica, em que o belo não é acompanhado de bom sabor;
e Basso bebe por um copo de vidro, enquanto defeca em um bacio de ouro (1.37),
um contraste entre a nobreza da matéria e o uso que lhe é dado. Outra falta de
sentido estético era esconder a matéria valiosa. Olo apresenta boas mesas, mas
cobertas com toalhas – certamente para as não estragar: assim até o poeta pode
apresentar mesas excelentes (10.54).

59. 1.20. O tema, comum nos poetas satíricos, é frequente em Marcial (2.43; 3.60; 4.68; 4.85; 6.11; 10.49). Também Juvenal
(1.139) representa o cliente a sofrer a indignidade de lhe ser negado um convite, ou de receber uma ração de comida inferior
à do patrão ou vinho de pior qualidade. Plínio, o amigo do poeta, deplora o mesmo vício e diz-se incapaz de incorrer em tal
mau gosto (Ep. 2.6). Vide HOWELL, 1980, p. 151-154.
60. 2.37.10-11: “Vllus si pudor est, repone cenam / cras te, Caeciliane, non uocaui” (“Se tens alguma vergonha na cara, restitui o jantar
/ não foi para amanhã, Ceciliano, que eu te convidei!”).
61. 3.22. Trata-se de uma anedota, também transmitida por Sêneca (Dial. 12.10.8-10), sobre o fim de Apício, o provável autor do
conhecido livro de culinária (De re coquinaria) que, não podendo suportar a ideia de viver com apenas dez milhões de sestércios,
se suicidou. Vide Sullivan 1991 100-101. O nome de Apício é também associado ao daqueles que não suportam não ter
convites para jantar (2.69.3-4).
62. 6.92; cf. 10.49: Cota oferece a Marcial vinho mau em copo de ouro.

51
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Desordem são também os exageros na bebida. O poeta, contrário a excessos (1.26;


12.27), reage contra os ébrios inveterados. Um topos muito frequente é o hábito
de beber merum, vinho puro, sem a habitual mistura com água (1.11; 6.89). Os
sintomas da dependência do álcool são a ruína da saúde (6.78), o hábito de beber
de manhã (1.28) e palavras inconsequentes: Polião quando bebe à noite promete
tudo, mas, pela manhã, não cumpre nada, pelo que o conselho do poeta é que
beba de manhã (12.12). A atitude contrária – a de levar a sério as palavras de quem
está ébrio – também é objeto de gracejo: Procilo bebeu uma dezena de copos, mas
não se esqueceu de que o poeta o convidou para jantar, no dia seguinte. “Não
gosto de companheiros de bebida com boa memória!” – diz o poeta em grego
(1.27). E, como não podia deixar de ser, está presente o topos das beberronas,
frequente na comédia (por ex. 1. 87; 2.73; 12.65).
O banquete pretende por tradição favorecer o ambiente de tertúlia. Contudo,
acontecia que o cliente tinha amiúde de se submeter à tirania de ouvir recitar
volumes descomunais (3.45; 3.50) e aplaudir a contragosto as prepotências dos
novos-ricos (3.82). Pelo que, durante o jantar, manifestam-se as atitudes bajulatórias
ao anfitrião (6.48; 12.82). O próprio poeta reconhece que o conviva/cliente perde
a liberdade de expressão63. A esses banquetes opõe o convívio sem artifícios, com
pratos simples (5.78; 10.48; 11.52), onde o conviva se sinta livre e não tenha de
ouvir récitas intermináveis (5.78; 23-25)64. E no que toca a requintes dos sentidos,
o poeta prefere “um jantar que possa retribuir” (12.48.18).

1.2.2. Odores
O poeta aprecia a ordem. Tudo deve estar no seu lugar. A beleza é feminina; um
homem que cultiva a beleza não é bem visto à luz da austeridade tradicional; revela
um caráter efeminado65. Às suas características de hispano hirsuto, Marcial opõe
as de um efeminado de Corinto que ostenta uma cabeleira ondulante e luzidia, à
força de unguentos e perfumes, que se depila diariamente e tem uma fala débil
(10.65). Critica os depilados (2.36; 3.74; 8.47; 12.38), aqueles que tingem os
cabelos (4.36) e os perfumados (7.41); e diz que, em vez de cheirar bem, prefere
não cheirar a nada (6.55.5); ou, dirigindo-se a Póstumo, ajuíza que quem sempre
bem cheira não lhe cheira bem (2.12). Trata-se de uma abordagem moral. Por um

63. 9.9.4: “Liber non potes et gulosus esse” (“Não podes ser livre e glutão ao mesmo tempo!”)
64. Cf. 11.52.16.
65. “Sed qui bellus homo est, Cotta, pusillus homo est” (1.9.2); “Res pertricosa est, Cotile, bellus homo” (3.63).

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lado, a antiga – e vã – condenação da luxuria66, nesse caso, no contexto da Roma


pós-neroniana: eram bem conhecidos os ditos de espírito de Vespasiano sobre o
uso de perfumes67. No entanto, acima de tudo, o uso de unguentos é interpretado
como uma tentativa de camuflar vícios de caráter, isto é, mascarar o hálito resultante
de depravação sexual (11.30; 12.85). Em causa está a suspeita de cunnilingus ou
fellatio, práticas que Marcial considera indignas de um cidadão livre68. O mau hálito
pode ser também sinal de abuso do álcool (1.28).
A situação é agravada quando se trata de beijoqueiros. O referido Póstumo
representa esse grupo69. A troca de beijos entre amigos torna-se prática habitual
no início da época imperial70, além de ser uma forma de uma pessoa mais poderosa
mostrar favor para com a mais humilde. Os beijoqueiros são implacáveis
perseguidores que o poeta procura evitar por causa do mau hálito ou de doenças
contagiosas (7.95; 11.95; 11.98; 12.59). A hipérbole é usada com efeito cômico: a
intensidade do mau hálito chega a conspurcar a comida ou bebida71, ou até os
perfumes (7.94). Há um nítido contraste com os aromáticos beijos de Diadúmeno
(3.65; 11.18)72, ou o hálito rescendente de Erócion (5.37): nesses casos o belo
equivale ao melhor dos perfumes.
Nessa tipologia, entram também mulheres malcheirosas. Certas fulanas, como Bassa
e Taís, recorrem a estratagemas para disfarçar os odores corporais (3.55; 4.4; 4.87;
6.93) ou o cheiro do vinho (1.87). Contudo, em vez do uso de máscaras, o poeta
prefere a autenticidade (simplicitas) (1. Praef.; 1.87.8; 3.42.3; 6.7.6; 10.83.9). Na
mudança de casa de Vacerra o leitor consegue sentir o cheiro a ranço e a peixe
estragado que ressuma dos trastes (12.32).

1.2.3. O visual: do eidos ao ethos


No que toca à exploração do visual, o poeta mostra uma complacência por vezes
cruel em identificar traços disformes. Os defeitos físicos eram temas comuns no
humor antigo, tal como eram alvo da atenção da biografia. Os uitia corporis podiam

66. Cf. Plínio, Nat. 13.20.


67. Vide Suetônio, Ves 8.2.
68. Parece, no entanto, não só tolerar, como até aconselhar a irrumatio, segundo o preconceito de que cura a impotência (4.17;
11.46). A irrumatio tem uma função punitiva de prevaricadores.
69. 2.10; 2.21; 2.22; 2.23.
70. Cf. Sêneca, Dial. 4.24.1; 8.44.4-5; 12.29.4.
71. Cf.2.15: Hormo, consciente do seu defeito, é por caridade que evita beber à saúde de alguém; 3.17: depois que Sabídio soprou
sobre uma tarte quente, “nemo potuit tangere: merda fuit”.
72. Vide SULLIVAN, 1991, p. 232-234.

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espelhar vícios da alma, e as teorias fisiognomônicas procuravam estabelecer


relação entre aparência física e traços de caráter73: por exemplo, ter um aspecto
pálido pode ser sinal de perversão sexual (1.77). Marcial não hesita em caricaturar
a fealdade: parece ironia chamar Febo – isto é, um Apolo – a um fulano que tem
as pernas em meia-lua (2.35) e apresenta uma cara contraída de quem está na
casa de banho (3.89)74; Sexto vangloria-se de que as moças ardem por ele, mas o
seu rosto lembra o de um nadador debaixo de água (2.87), pelo que se deduz que
apaga tal fogo. Há os sexualmente bem dotados (6.36), os impotentes (2.45; 3.70;
3.73; 3.75), os desdentados (6.74; 8.57), os carecas (5.49; 10.83; 12.45; 12.89),
os narigudos – e ter um grande nariz significa grande propensão para a crítica
(12.88). O poeta Júlio Rufo, no frontispício das suas “Sátiras”, parece-se com o
conhecido e grotesco rosto de Sócrates (10.99).
Da mesma forma, encontramos mulheres repelentes, como Maneia (1.83), a quem
só um cão pode beijar, seja qual for o significado que se queira dar aos os et labra75,
ou Filene, de quem o poeta evita o beijo (2.33; 10.22)76; feias por natureza (5.29),
ou por degradação do corpo: calvas (6.12; 12.7), desdentadas (1.19; 5.43), zarolhas
(2.33; 3.8). Outro grupo são as velhas gaiteiras que não assumem a idade (1.100;
3.32; 8.79; 10.39) ou pretendem casar-se (3.93; 3.32). O ataque às mulheres idosas
é um topos da comédia antiga grega, frequente no epigrama – especialmente na
“Grinalda de Filipe” –, e bem representado por Canídia, nome sugestivo da sátira
de Horácio (1.8). Brincadeiras sobre a falta de dentes, de cabelo, de um olho ou
outras deformidades representam para nós falta de gosto, mas devem ter sido muito
apreciadas na Antiguidade77. Ainda assim, há aqueles a quem só agradam velhas
decrépitas (3.76). São numerosos os epigramas que versam sobre as mulheres e
sobre os vícios mais conotados com o seu sexo. Nem sempre a beleza corresponde
à bondade: o poeta aproveita humoristicamente o efeito da contradição entre beleza
e falta de castidade (8.54); e entre beleza e riqueza, por um lado, e falta de modéstia,
por outro, quando se alardeiam tais qualidades (1.64).
A intervenção do poeta tem naturalmente em conta a virtudes do mos maiorum e os
vícios opostos. Espelha nomeadamente a transformação da família em Roma e a

73. Vide SULLIVAN, 1991, p. 168.


74. Semelhante anedota corria acerca da face do bem-humorado Vespasiano, imperador de 69 a 79 d.C. Cf. Suetônio, Ves. 20.
75. Com efeito há quem veja neste epigrama a referência a mau hálito decorrente da prática da fellatio ou ao uso do cão para
cunnilingus. Vide HOWELL, 1980, p. 287.
76. É negro o retrato que Marcial nos apresenta de Filene (cf. 4.65; 7.67; 7.70; 9.40; 12.22). O poeta parece inspirar-se no nome
da poetisa Filene de Samos, subvertendo os seus ensinamentos sobre a arte da sedução: cf. BURZACCHINI, 1977, p. 239-243.
77. Vide HOWELL, 2009, p. 74.

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moral imperial a esse respeito. Domiciano procurou restaurar a lex Iulia de adulteriis
coercendis promulgada por Augusto, que castigava os adultérios, mas certas mulheres,
contornando a lei, casam com os sucessivos amantes (6.7 e 6.22). Para o poeta,
uma madrasta que permanece em casa do enteado depois da morte do pai nunca
foi madrasta (4.16), situação mais grave porque implica adultério e incesto. O
incesto jamais foi admitido pela sociedade romana e estendia-se às relações parentais
procedentes da adopção. O caso mais famoso é talvez o do imperador Cláudio, que
necessitou de uma dispensa especial do senado para casar com a sobrinha Agripina,
união que na época era considerada incestuosa. O incesto estava associado aos
tiranos – talvez por meio da tragédia e dos costumes de reinos orientais. A tradição
histórico-biográfica regista anedotas de incesto entre Calígula e as irmãs,
especialmente Drusila, entre Nero e a mãe Agripina, e entre Domiciano e a sobrinha
Júlia, mas provavelmente essa seria uma forma de associá-los a típicos tiranos.
No que toca a homossexualidade, Marcial condena a relação entre senhor e
escravos quando o homem livre assume uma atitude passiva (3.71), porque tal
implica uma subversão de papéis sociais78. Os banhos são um local privilegiado
para devassos e voyeurs e para o engate (1.23; 1.96.12 e ss.; 9.33; 11.63). E havia
banhos mistos (3.51; 3.72; 11.63), mais tarde abolidos por Adriano. Na censura da
desordem, ao poeta não passou despercebido um matrimônio gay, segundo os ritos
habituais de um casamento romano79, inspirado possivelmente nos boatos que
corriam sobre estranhos rituais de Nero com o eunuco Esporo80. E quanto à ideia
de que as orgias eram apreciadas como forma de entretenimento pelos romanos,
não há evidência de que assim seja81. Marcial as desaprova (12.43). O vocabulário
do poeta é amiúde congruente com os vícios que pretende censurar. Trata-se da
dicacitas, a linguagem acirrada, própria dos versos fesceninos, que se aplica a zurzir
os defeitos físicos e morais, por vezes visível nos cognomes. Está presente nos
grafitos e nos libelli de epigramas, bem como nos versos que os soldados cantam
aos triunfos de César (Suet. Jul. 49.4; 51)82.

78. Vide GARRIDO-HORY, 1981, p. 300-306.


79. 12.42. Em 1.24, apresenta-se um fulano de aspecto austero que nupsit – isto é, casou no papel de esposa.
80. Cf. Suetônio, Nero 29.
81. Cenas eróticas representadas em um apodyterium de banhos de Pompeios parecem ser um expediente cômico para os utilizadores
memorizarem o cacifo das roupas. Vide HOWELL, 2009, p. 86-87.
82. A obscenidade satírica provoca uma espécie de exclusão, de algum modo semelhante ao que acontece no sacrifício do bode
expiatório. Os insultos mais violentos que o poeta usa são irrumo e paedico. Em qualquer dos casos, trata-se de penetrar/violentar
o visado, mas irrumare é o mais infamante porque condena o visado ao silêncio. Ora, a obscenidade do poeta tem o mesmo
papel castigador da irrumatio. No entanto, o poeta salienta que essa linguagem tem um contexto próprio e um objetivo apotropaico:
o dos Jogos Florais, associados ao culto da fertilidade (1. Praef.; 1.35.8), e o das Saturnais (11.2; 11.15), onde a licenciosidade
era admitida. Contudo, procura evitá-la quando se trata de adular o imperador (8. Praef.).Vide ROBERT, 2004a, p. 48-68.

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1.2.4. Sons e ruídos


O poeta é sensível ao que lhe fere os tímpanos. Em uma época em que a leitura era
feita em alta voz e a poesia era para ser ouvida, nos banquetes, nas termas, ou
outros espaços públicos, Marcial, consciente da qualidade dos seus versos e exigente
no labor limae, não deixa de criticar os maus poetas e recitadores: os pretensiosos
que nada compõem (4.33; 6.14; 10.102), ou que compõem maus versos (7.3; 5.73;
11.93); os que, conscientes da fraca qualidade, nem se atrevem a recitar (2.88;
8.20); os que recitam plagiando o poeta (1.52; 1.66), como faz Fidentino (1.29;
1.53; 1.72), apesar de recitar mal (1.38). Marcial mostra-se reiteradamente
agastado com os que aproveitam todas as oportunidades para massacrar os ouvidos
dos presentes (1.63; 2.71; 3.18; 3.44; 3.45; 3.50; 4.41; 4.80; 6.41). Nesses círculos,
movem-se também os invejosos. O poeta increpa asperamente os que veem com
maus olhos o seu sucesso literário e social (8.61; 9.97;4.27; 4.77)83.
A cacofonia da urbe torna-se cada vez mais odiosa para o poeta, que enumera um
por um os ruídos da noite, porque quem não habita em uma domus tem Roma à
cabeceira (ad cubile est Roma) (12.57)84. Em 1.41, a propósito de um fulano que se
considera urbanus, Marcial desfia uma longa lista dos vendedores de várias etnias
que apregoam a mercadoria pela cidade. A casa de Júlio Marcial no Janículo tem a
vantagem de facultar uma vista aprazível sobre a cidade: um quadro em movimento
da azáfama urbana ao qual que foram retirados os ruídos (4.64; 11-25).
O belo está na simplicidade, na ausência de artifício e, por isso, nas crianças. A
beleza está, pois, em Erócion, escravinha que morreu na infância. Em uma sinestesia
obtida por comparações com os arquétipos de beleza e bom gosto, diz o poeta que
a cabeleira da menina triunfa sobre o velo dos rebanhos da Bética, ou a pele
dourada de um esquilo; o seu hálito tem a fragrância das rosas de Pesto, dos méis
dos favos áticos, de um pedaço de âmbar. Ao pé dela o pavão perde a beleza, a
fênix torna-se vulgar (5.37.1 e ss.).
As tomadas de posição do poeta acabam por ser mais interventivas do que parece
à primeira vista e estão em continuidade com a tradição e com a moralidade
imperial. Ele próprio assume tal função moralizante quando admite que, poupando
embora as pessoas, zurze nos vícios (“parcere personis, dicere de uitiis”) (10.33). Reflete

83. Vide TORRÃO, 2010, p. 71-101.


84. Cf. Juvenal 3. O tema caro a Sêneca, que não está só consigo, está presente nos epigramas e condição de cliente desenraizado,
apresenta-se por referência ao espaço urbano. Há um sentimento de dependência em termos de alienação: cf. 10.58; 6-8. Vide
PAILLER, 1981, p. 79-87.

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uma ordem social estabelecida, onde cada qual cumpre o seu papel e não admite
subversão; e a promoção deve ser baseada no mérito e acompanhada de elevação
de caráter.

2. Fraturas interiores do poeta


Nos “Epigramas” de Marcial ecoa a universalidade da urbe, a ”deusa das terras e
das gentes” (12.8.1), na sua missão integradora e civilizadora, que levou a outrora
pequena cidade a ganhar a hegemonia no Lácio, a integrar progressivamente a
Itália no ager romanus, para depois se expandir pelo Mediterrâneo e se tornar o
centro de um vasto império85. A influência da urbe romana irradia para todo o
Império por meio das vias e da segurança dos mares. Marcial consegue perceber o
benefício da pax romana, uma facilidade de transação cultural que poderíamos
comparar à internet dos nossos dias. Em Roma, o poeta sente-se no centro do orbe
e, desse lugar privilegiado, pode dirigir-se ao mundo. A vocação universalista e
civilizadora da urbe é também a razão do sucesso do poeta, uma vez que possibilita
que os seus versos sejam lidos e apreciados, em tempo útil, na Gália (7.88), ou
mesmo em terras mais distantes, como ele próprio proclama: “Hic est quem legis ille,
quem requiris / toto notus in orbe Martialis” (1.1.1-2) (”Este é aquele que lês, aquele
que reclamas / Marcial, conhecido em todo o mundo”). Ou, de modo semelhante:
“Ore legor multo notumque per oppida nomen / non expectato dat mihi fama rogo” (3.95;
7-8) (“Sou lido por muitas bocas e um nome conhecido através das cidades / me
dá a fama, sem esperar pela pira”)86.
Contudo, há o reverso da medalha: a saturação da vida citadina, a idealização da
vida do campo e a saudade da terra natal na Hispânia.

2.1. Cidade versus campo


O topos helenístico do contraste entre vida do campo e vida da cidade está
continuamente presente. Em 1.55, o poeta expõe princípios de vida em colisão com
a vida na urbe: por um lado, a rejeição das obrigações sociais que a vida de cliente
impunha, simbolizadas pela “frieza colorida do mármore espartano” dos átrios dos
poderosos e pela saudação matinal (matutinum haue); por outro, o desejo epicurista
de uma vida simples e frugal em um campo que pudesse cultivar e donde extraísse
o necessário à sua subsistência.

85. Vide ROBERT, 2004b, p. 69-86.


86. Cf. 6.64.

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Confessa-se, pois, saturado por ter de suportar tal vida durante três décadas (3.36).
Por altura da publicação do Livro X, o poeta parece atingir a exaustão: cansado
(ruptus) de deambular pela urbe (10.56), farto de suportar o frio e a neve87, a única
coisa que deseja é dormir (10.74). O topos da dificuldade em escrever em Roma,
que já vem de Horácio (Ep. 2.65 e ss.), é transposto para o prejuízo que as obri-
gações de cliente acarretam para a produção literária (1.70; 10.70; 11.24). O patro-
cínio não era já o mesmo do tempo de Virgílio e de Horácio, e Marcial queixa-se
de não ter um mecenas que lhe faculte o otium de que aqueles poetas gozaram
(1.107; 3-4); e a generosidade dos patronos tende a diminuir (12.36).
Além disso, a cidade é um labirinto insalubre: as ruas são estreitas e sinuosas
(1.86.1-2)88; o ambiente é doentio ao ponto de tornar o rosto descorado (10.12.8-
12); há cheiros nauseabundos (6.64.18-21); há ruídos dos pregões de vendedores
(1.41), há a azáfama noturna (12.57)89. Por isso, louva a casa que o amigo Júlio
Marcial possui no Janículo, de onde se pode apreciar a cidade sem lhe ouvir os
ruídos (4.64). Com a chegada do verão, a alta sociedade romana procura as águas
de Baias para uns tempos de descanso e devaneio (1.62; 3.20.19; 3.58.1; 10.14.3).
O poeta, que se assume como preguiçoso, quer afastar-se da cidade, mas não ficar
muito longe dela. A celebrada propriedade de Nomento, cerca de 20 quilômetros a
noroeste de Roma, cumpre os requisitos. Aí procura o otium, na sua casa de campo,
que substitui as delícias de Baias (6.43.5-6). Para lá se dirige o poeta em busca da
libertação da vida citadina e do sono tranquilo (2.38; 12.57). O poeta aprecia o
sossego, longe da confusão dos locais que estão na moda. De resto, ao sol abra-
sador das praias da Campânia diz preferir a frescura de Tíbur (4.57) e as praias de
Altino, rivais de Baias, na Gália Cisalpina (4.25).
A vida feliz que propõe não inclui desejos de riquezas (9.22.16), mas uma vida
diária simples com noites tranquilas e dias sem disputas (2.90; 7-10). Prestes a
rumar à Hispânia, o poeta propõe ao amigo Júlio Marcial um estilo de vida mais
feliz (uita beatior), que é uma típica versão romana da filosofia epicurista (10.47)90:
a toga rara representa o almejado afastamento da vida pública, um princípio
epicurista, porque a toga é símbolo da vida social romana, do foro e da clientela, o

87. 10.82. A primeira edição deste livro é do ano 95, mas a segunda, revista (segundo 10.2.3), é de 98, ano do retorno a Bílbilis.
Vide SULLIVAN, 1991, p. 44.
88. Vide TORRÃO; ANDRADE, 2008, p. 63-79.
89. Vide AUGELLO, 1968-1969, p. 242-244.
90. Cf. Horácio, Epodo 2. Sobre o paralelismo entre o epigrama acima transcrito e a filosofia epicurista, vide SULLIVAN, 1991, p.
215-217; ADAMIK, 1975, p. 62.

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contrário da quietude de espírito (mens quieta). Acrescenta-se a saúde do corpo, a


simplicidade de vida, a amizade desafetada, o convívio simples sem artifícios em
vez de banquetes requintados, moderação na bebida, noites sem preocupações,
moderação nos prazeres, sono descansado – uma aurea mediocritas, em que cada
um se contenta com o que é, sem desejar ser outra coisa, de modo a não temer
nem desejar a morte.
Perante a consciência da fugacidade da vida, Marcial, em 1.15, advertira o amigo
de que estava a desperdiçar os melhores dias91. O tema do carpe diem surge ligado
à partilha da amizade em despreocupados passeios pelos espaços da urbe (5.20;
11.80): o Campo de Marte, pórticos, aqueduto da Água Virgem, as termas.
Entretanto, Júlio Marcial seria também um cliente e talvez exercesse a profissão de
advogado. Como impedimento para o tempus otiosum, surgem sempre os atria e as
domus potentum, as lites tetricae et forumque triste, as imagines superbae. Quando Marcial
envia o livro em vez de ir ele próprio, está, por meio da intertextualidade com Ovídio,
a assumir-se como um exilado da verdadeira vida (a uita beatior) que gostaria de
fruir na companhia dos amigos.

2.2. Regresso à terra natal


No que toca à oposição entre cidade e campo, Marcial, seguindo embora o modelo
de Horácio (Ep. 2. 65-80; Sat. 2.6), cruza o topos com a saudade da terra natal,
Bílbilis, na Hispânia (1.49), de que descreve os montes, os rios, os campos. Perante
as crescentes dificuldades políticas, sociais e econômicas da vida em Roma, a
saudade e a poesia juntam-se para lhe apontar agora novo rumo (10.96)92: a sede
do aurífero Tago e do pátrio Salão coincide com a procura de um local onde os
recursos da terra sejam suficientes para a sobrevivência. A partida para Bílbilis torna-
se iminente. O poeta prepara o seu regresso na expectativa de um bom acolhimento
por parte dos seus patrícios. Aos municipes da Augusta Bilbilis dirige um epigrama em
que apela à própria fama: Verona não deve mais a Catulo do que Bíbilis ao seu
vate encanecido em terras itálicas (10.103). Em 10.104, pede mais uma vez ao
livro, o garante da sua fama, que vá à frente a preparar-lhe o regresso.
Já em Bílbilis, o poeta confessa que está a fruir do modo de vida e da liberdade
que tanto desejara. No Livro XII, um longo epigrama dirigido a Juvenal estabelece

91. “Bis iam paene tibi consul tricensimus instat, / et numerat paucos uix tua uita dies. [...] et solum hoc ducas, quod fuit, esse tuum. [...] gaudia
non remanent, sed fugitiua uolant. [...] Non est, crede mihi, sapientis dicere ‘uiuam’: / sera nimis uita est crastina: uiue hodie”. Outros exemplos
de sentenças de espírito epicurista em SULLIVAN, 1991, p. 225.
92. Cf. SULLIVAN, 1991, p. 44-52.

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o contraste entre a vida de cliente, que o amigo continua a suportar em Roma, e a


sua própria vida de camponês liberto de cuidados em Bílbilis, onde já pode dormir
quanto quer (12.18)93. Esse modo de vida deve-o o poeta à generosidade de
Marcela, uma mulher cuja cultura poderia rivalizar com a de uma matrona de Roma
(12.21), como se disse.
No entanto, uma vez em Bílbilis, sente a falta dos argumentos que Roma lhe oferecia
como estímulo para a criação dos epigramas: [...] “illam iudiciorum subtilitatem, illud
materiarum ingenium, bibliothecas, theatra, conuictus, in quibus studere se uoluptates non
sentiunt, ad summam omnium illa quae delicati reliquimus desideramus, quasi destituti”
(“aquela argúcia dos juízos, aquela fecundidade dos argumentos, as bibliotecas, os
teatros, as reuniões, onde se estuda sem que o prazer se ressinta – em suma, tudo aquilo
que, por despeito, abandonei e de que agora sinto a falta, a modos que defraudado”).
A reforçar a saudade de Roma conta-se certamente a recordação dos velhos amigos
que deixara. Os locais de que diz sentir agora a falta correspondem grosso modo
aos lugares onde gostaria de gozar o ócio na companhia de Júlio Marcial (5.20.8-
10)94. Do balanço dos 34 anos que conviveu com o amigo em Roma conclui que o
resultado é claramente positivo (12.34).
O fluir do tempo está bastante presente nos epigramas com as consequentes marcas
de mudança95: mudou a política, mudou Roma, mudou o poeta, mudaram os amigos
e mudou a relação do poeta com Bílbilis. Se excetuarmos os casos de Marcela e de
Prisco, Marcial não parece ter encontrado o acolhimento caloroso que esperava da
parte dos conterrâneos. Pelo contrário, encontra a maledicência e a inveja de alguns,
que se tornam muitos em um meio pequeno96. Além disso, alguns oportunistas
locais procuram aproveitar, em benefício próprio, a posição social que a fama
conferiu ao poeta. Marcial constata que, mesmo aqui, na Hispânia, querem-lhe
negar aquilo que Roma lhe proibia: o ócio, o sono e a ausência de litígios; e propõe-se
voltar para a urbe se também aqui não o deixam dormir (12.68). No entanto, o
tempo escasseia; a morte está próxima.
Ao anterior itinerário centrífugo do livro, que sai de Roma para as províncias, opõe
agora o poeta um percurso centrípeto. A reversão do sentido representa a orientação

93. Segundo Frassinetti (1973, p. 173-180), Marcial ostenta, nesse epigrama, um falso entusiasmo: trata-se já do desfazer do
sonho de paz. Seja como for, o certo é que o poeta descreve agora como real aquilo que em Roma era apenas um sonho.
94. “Sed gestatio, fabulae, libelli / campus, porticus, umbra, Virgo, thermae”.
95. Para uma análise detalhada do fluir do tempo em Marcial vide PIMENTEL, 2000, p. 221-230.
96. Cf. 12. Pref.: “[...] Accedit his municipalium robigo dentium et iudici loco liuor et unus aut alter mali, in pusillo loco multi”.

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tomada pelo espírito do poeta, que se sente, como Ovídio97, privado de Roma: “ad
populos mitti qui nuper ab Vrbe solebas / Ibis, io, Romam nunc peregrine liber” (“Ainda há
pouco costumavas partir da urbe, às gentes enviado / eis que agora irás para Roma
como livro forasteiro”) (12.2). O poeta visualiza a morada do amigo Estela com as
habituais indicações precisas. E o envio do livro é acompanhado da consciência de
que será imediatamente identificado e apreciado porque é irmão dos outros
produzidos na urbe. Se Roma é o centro irradiador de cultura, é também aí que o
livro produzido na província vai buscar a autoridade, o selo de qualidade que lhe
garantirá o sucesso.
Se Roma é para o poeta a negação de Bílbilis, Bílbilis transforma-se com o tempo
na negação de Roma. Feito o confronto realista, Roma fica a ganhar; continua a
ser a “deusa das terras e das gentes”. Com efeito, o Livro XII, embora composto
em Bílbilis, está cheio de reminiscências que o poeta guardara da urbe: os habituais
temas satíricos como a hipocrisia dos patronos, a decadência do rico, a captatio, as
pretensões dos clientes, a má conduta social, a pederastia, a crítica às mulheres, os
defeitos físicos, a poesia e os críticos, os plagiários, enfim, um livro não de assunto
hispânico, mas apenas escrito na Hispânia98. Desse modo, o Livro XII contém ao
mesmo tempo o grito de libertação da opressão da urbe, pelo retorno à casa, e
uma subjugação a um novo exílio, com ecos ovidianos99. É o preço a pagar por
quem tem duas pátrias no coração. Pouco depois, chega a Roma a notícia da morte
do poeta: é Plínio, o Moço quem a transmite com pesar em uma de suas cartas:
Ouço dizer que Marcial faleceu, e isso pesa-me. Era um
homem engenhoso, arguto, vivo, e que ao escrever tinha
muito sal e fel e não menos candura. Eu tinha-lhe oferecido
o dinheiro para a viagem de regresso. Dera-lho pela amizade
e por causa de uns versos que ele compos acerca de mim.
[...] Deu-me o máximo que podia. Daria mais se tivesse
possibilidades. Todavia o que de maior se pode dar ao
homem do que a glória, o louvor e a eternidade? As coisas
que escreveu talvez não fossem eternas; mas ele escreveu-
as, como se o viessem a ser. Adeus (Ep. 3.21).

97. A intertextualidade de 12.2., no que toca aos versos 1-2 de 15-18 com Ovídio, é notória: cf. Trist. 1.1. versos 1-2; 27-28; 61.62.
Vide HINDS, 2007, p. 133.
98. 12. Praef: “non Hispaniensem librum mittamus, sed Hispanum”. Sobre o conteúdo do livro XII, Vide SULLIVAN, 1991, p. 52-55.
99. Comparem-se as palavras “non Hispaniensem librum mittamus, sed Hispanum” com Ovídio, Trist.3.1.17-18: “siqua videbuntur casu
non dicta Latine / in qua scribebat, barbara terra fuit”; e Trist. 3.14.49-50: “crede mihi, timeo ne Sintia mixta Latinis / inque meis scriptis
Pontica verba legas”. Há também evidentes ecos de Ovídio no envio do livro para a urbe em Marcial 12.2 (cf. Trist. 1.1): vide
HINDS, 2007, p. 129-136 e n. 58.

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A importância que Marcial dá à Hispânia corresponde à promoção que os Flávios


estenderam a essas comunidades por meio da atribuição do direito latino (ius Latii),
que essencialmente tornava cidadãos romanos os magistrados locais, e que
coincidiu com o incremento da atividade agrícola de larga escala (ao menos em
algumas regiões, de que se destaca a Bética: 1.96.5; 6.71.1; 12.65.5), à semelhança
da Itália. E o fato de Marcial, ao mesmo tempo que celebra Roma e as glórias de
Itália, fazer as laudes da Hispânia (1.49; 1.61) não pode deixar de recordar Plínio, o
Velho (Nat. 37.77), que, depois de considerar a Itália a mais bela e produtiva das
terras, coloca a Hispânia logo em segundo lugar, enumerando as suas riquezas.
A atitude de Marcial para com Roma é, como se viu, contraditória: por um lado,
Roma é barulhenta, fatigante e monótona (10.58; 2.5), por outro é bela e grandiosa.
Além disso, o poeta concebe um ideal de vida simples, longe do bulício e dos
afazeres da cidade, onde tenha tempo para se dedicar ao ócio produtivo e aos
amigos, e onde possa retirar da terra o sustento de uma mesa não artificiosa.
Contudo, por outro lado, precisa da urbe e da sua vida social como fonte de inspiração.
É da urbe que vivem os epigramas. Na urbe, o poeta está como que exilado do seu
ideal de vida, mesclado de nostalgia da pátria hispânica. Fora da urbe está exilado
do mundo dos epigramas.

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Capítulo IV

Os césares segundo Suetônio: elementos dramáticos e novelísticos

Este texto tem como objetivo proporcionar ao leitor uma leitura de conjunto sobre
as “Vidas dos césares” de Suetônio, procurando salientar a presença da ficção
na narrativa histórica. Em traços muitos gerais, procura-se esboçar a imagem
que Suetônio dá de cada César, mediante a habitual distorção dos fatos, descontex-
tualização dos exemplos, generalização, organização em crescendo, utilização de
fontes romanescas.

4.1. Os Júlio-Cláudios
Suetônio começa o seu trabalho pela “Vida de César”100, colocando desse modo a
tônica no processo de mudança de regime e na sua verdadeira natureza. Assim, é
apresentada uma história da gênese do principado a partir dos seus antecedentes.
Desde o início da “Vida de César” (perderam-se os primeiros capítulos), Suetônio
apresenta-nos um predestinado, que, apesar dos muitos reveses, atingirá os seus
objetivos últimos. No entanto, depois, pagará o preço: a ideia da morte desde cedo
se faz presente. Os primeiros capítulos apresentam claramente os objetivos e os
meios para os atingir. Entra em cena um homem de ação que trabalha com eficácia

100. Plutarco escreveu “Vidas” de oito imperadores, de Augusto a Vitélio, de que só restam as de Galba e Otão; Tácito começa
pela ascensão de Tibério.

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na realização do seu destino. Para este, concorrem uma série de adjuvantes e


oponentes. As contradições do caráter de César obrigam o leitor a refazer por várias
vezes o seu juízo sobre o ditador. No final, prevalece a imagem de uma personagem
excepcional com traços tirânicos e, ao mesmo tempo, virtudes admiráveis. Por
alguns dos seus atos arrogantes e culto da personalidade, César mereceu a morte;
mas os agressores, ao atentarem contra a sua vida, não podem livrar-se de cometer
uma impiedade.
César apresenta-se como uma personagem teatral, característica visível sobretudo
nos pontos altos da sua vida: o pranto de César junto à estátua de Alexandre em
Gades (7); a preparação e a passagem do Rubicão (30-33); a preparação e
consequências da morte (76-89). Paralelamente, destacam-se muitos outros
episódios pelo seu caráter cinemático, que antecedem ou são consequência dos
anteriores e que caracterizam César com um extraordinário homem de ação: a fuga
à perseguição de Sula (1); o rapto pelos piratas e castigos dos raptores (4); a
discussão da pena para os conjurados (14); a destituição do cargo de pretor e
reocupação do lugar (16); o consulado (20); os nove anos da Guerra da Gália (25);
a resistência às decisões do senado (29); o resumo da guerra civil e triunfos (34-
37); saques por dívidas (54); as virtudes militares (57-64); relação com os soldados
(65-70); atos e palavras que o levaram à morte (76-79); funerais e reações do povo
(84-85). Os momentos de ação assumem grande importância para a definição da
personalidade de César, na medida em que superam os relatos do mesmo teor das
outras vidas. Mesmo em certas rubricas, sobretudo nas que abordam qualidades
do general, os momentos narrativos submergem os descritivos. E a narrativa dos
fatos é pontuada com ditos célebres.
Por comparação com a “Vida de César”, o que a biografia de Augusto ganha no
aspecto formal, parece perder em dramatismo. Apesar disso, há momentos
dramáticos e novelísticos que se elevam de uma plana exposição acadêmica, per
species, das várias facetas do príncipe. Há momentos trágicos que resultam muitas
vezes da ligação entre a vida e a superstitio ou religio. Na juventude, Otávio é um
favorecido da sorte. Mais tarde, enquanto no Império reina a paz, a má fortuna
destrói a felicidade da casa de Augusto – essa é a perspectiva à luz da qual são
vistos os castigos das Júlias e de Agripa Póstumo. Além disso, vista no seu todo, a
biografia apresenta uma mudança radical da extrema crueldade para uma notável
clemência. A primeira parte da vida move-se sob o estigma da vingança cruel da
morte de César. Outra parte apresenta o bom governante. Outra, o homem privado:

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um pai de família infeliz, um adúltero e um viciado no jogo dos dados. Há momentos


cômicos, mais propriamente satíricos, ligados aos ataques políticos.
Quando, passados mais de cem anos sobre a morte de Augusto, Suetônio escreve
a sua vida, o princeps pertence ao domínio da lenda, atingiu proporções sobrenaturais.
O que Suetônio vai fazer é apresentar os fatos conhecidos, reinterpretados à luz da
divindade. É a singularidade de reencontrar o deus, de modo paradoxal, no mortal,
com os seus defeitos. Otávio, como Júlio César, surge, desde o início, apresentado
como um predestinado. A sua dimensão divina é posta em relevo no início da vida
e reiterada no fim, a encerrar o círculo. Pelo meio, ficam a crueldade e a clemência,
a guerra e a paz, a moralidade e os vícios da carne, os atos políticos e os prazeres
simples, a austeridade e o bom humor, o herói e o covarde, a beleza e as
deformidades físicas, o deus e o homem. A biografia de Augusto é mais do que o
balanço de aspectos positivos e negativos. Suetônio transpõe para a sua biografia
o processo de construção da imagem de Augusto, onde o argumento do mimo – o
mimus uitae a que o protagonista se refere no momento da morte – parece ser a
mitificação que o divino fundador do principado faz dos seus atos, onde não falta
também a obscenidade e a paródia dos deuses, características daquele gênero.
Depois do diuus Iulius, em que se preparou o advento do principado, o Augustus é
mais um ato neste longo ciclo júlio-cláudio: o consagrar do novo regime, claramente
distinto da República. Até ao momento, o caminho foi ascendente, a partir daqui
será o declínio em direção à katastrophe. Os dramas futuros já se preparam na
descendência atribulada e nos pressentimentos de Augusto a seu respeito.
As “Vidas dos césares” de Suetônio são uma sucessão de unidades encadeadas
entre si. Cada vida, embora independente em si mesma, tem de ser entendida em
relação com a anterior e com a seguinte. A biografia de Tibério apresenta uma
estrutura inversa da do seu antecessor. Enquanto em Augusto a evolução se
processava do negativo para o positivo, dos vícios para as virtudes, com predo-
minância das segundas, em Tibério encontramos o processo inverso e os vícios
predominam. Trata-se, pois, da fase seguinte de um processo manifestamente
degenerativo, que faz supor futuras etapas ainda piores. Explora-se a natural
propensão do leitor para fazer comparações com o modelo anterior: no final da
leitura, fica uma imagem negativa até à saciedade.
Essa imagem é reforçada pelo defraudar das expectativas. Depois da leitura da
“Vida de Augusto”, o leitor, dividido entre a esperança e o receio, perante a fase
positiva de Tibério, sentirá satisfação, por lhe parecer que esse sucessor de última

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escolha se revela melhor que o esperado. Contudo, essa esperança será brutalmente
frustrada na segunda parte e transformada, primeiro em desilusão, depois em aversão.
Nesta vida, há um aumento da tendência para a tirania: à liberalitas dos antecessores
opõe Tibério a avareza que progride até à rapina; e à clemência, a crueldade. Acresce
o caráter dissimulado (dissimulatio), característico dos tiranos, manifesto logo nas
hesitações – que Suetônio classifica de impudentissimus mimus, “mimo completa-
mente descarado” – no momento de assumir o poder. A sua personalidade é difícil
de compreender, porque Tibério se fechou sobre si mesmo. Entretanto, fica a suspeita
de que a inacessibilidade e incapacidade de comunicar – o caráter taciturno, que,
desde cedo, revelara – prejudicam gravemente a reputação desse imperador.
O secretismo da Ilha de Cápreas (atual Capri), na qual se refugiou, faz levantar
rumores de atos abomináveis, tomados como reais. Tibério é vítima do seu próprio
caráter; ele próprio tem consciência disso. É surpreendente como todos os que lhe
estão próximos vão morrendo, enquanto Tibério, conhecedor do seu caráter e cultor
da astrologia, sabe que se tornará maldito. E, já velho, no meio de um cortejo de
mortes, vê, com amargura, que se transformara no que não desejava. Por detrás do
texto suetoniano – organizado por categorias do caráter –, parece adivinhar-se o drama
interior de Tibério. Como nas anteriores vidas, a artificialidade da figura do imperador,
reforçada pela exposição suetoniana, leva o leitor a aderir à causa do biógrafo.
Entre memórias da crueldade de Tibério101, surge em cena Calígula, uma esperança
que se revela vã, de uma nova era. Com efeito, a biografia está construída de forma
a sugerir uma reviravolta. O absurdo manifesta-se na forma como Calígula passa
de um extremo ao outro: de bom príncipe, que começa por ser, transforma-se depois
no monstro que tem de ser abatido. O assassínio do tirano acontece no momento
em que, à semelhança de César, projetava ações ainda mais megalômanas.
Característica relevante é o fato de se apresentar afeiçoado a atores102, a gladia-
dores e a aurigas.103 Não só encoraja as representações teatrais – mesmo durante
a noite, como nota o biógrafo104 –, mas ele próprio é tão dedicado ao canto e à
dança105, que se não contém durante os espetáculos e acompanha o ator trágico
com a voz ou imita os gestos do histrião, como para os louvar ou corrigir. Para o

101. Cal. 2; 6.2; 7.


102. Cf. Cal. 33, Apelles tragoedus; 36.1, Mnester pantomimus.
103. Cf. Cal. 54.
104. Cal. 18.2.
105. Cal. 11.

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dia em que foi morto tinha projetado a sua estreia em cena em um espetáculo
noturno. Certa vez, convocara mesmo, à meia-noite, três cônsules que assistiram,
apavorados, a uma sua demonstração de dança, vestido com uma túnica até aos
pés.106 Fica patente o seu gosto em se travestir de heróis e de deuses107, e a
predileção pela noite, aproveitando a licenciosidade da ocasião (licentia temporis)108,
e ao mesmo tempo a forma teatral como faz sentir o seu poder tirânico e atemoriza
os súditos. A sua paixão pelas corridas do circo leva a concessões extraordinárias
aos aurigas e até ao seu cavalo. O caráter teatral de Calígula acaba por se
manifestar nas ações do dia a dia, potenciadas pelo poder imperial de que dispõe.
De fato, as realizações aparecem exageradas para o bem, com atos grandiosos, ou
para o mal, com atos que se apresentam fora de toda a lógica e que vão até a
crueldade gratuita, mas que, muitas vezes, não passam de rumores. Suetônio modela
a personagem por meio da escolha das anedotas e da sua disposição, privilegiando
o recurso a certas estruturas de cor dramática. O resultado chega a ser, por vezes,
perturbador pela exploração do sem sentido: o absurdo que Camus explora na sua
peça de teatro “Calígula”.
Por outro lado, a sucessão dos acontecimentos faz lembrar um mimus uitae, com o
burlesco, a obscenidade e indecência, os exageros gestuais, a busca do ridículo,
características do popular mimo, que, como é sabido, teve amplo êxito entre os
césares. De igual modo, poderá ter influenciado o biógrafo o parente áulico do
mimo, a pantomima. Este “balé trágico”, como lhe chama Florence Dupont, é
evocado, na “Vida de Calígula”, pela presença do pantomimo Mnester e pelo gosto
de Calígula em dançar papéis e em travestir-se de figuras mitológicas.
Diferentemente da biografia de Calígula, há na “Vida de Cláudio” uma divisão
estrutural entre boas e más ações: o texto constrói-se por meio da alternância
contínua de aspectos positivos e negativos, em um equilíbrio hesitante, antes de
tender, na parte da vida privada, para uma apresentação desfavorável. Tal oscilação
perturba o leitor que busque um juízo inequívoco, já que ocorrem sucessivas
mudanças de opinião e reformulações na leitura da personagem. Também se não
trata propriamente de uma evolução na degeneração – teoria que Suetônio parece
seguir – que, a partir de Augusto, se vai verificando de vida para vida. De fato,
há um recuo na geração do poder: um retorno à geração do pai de Calígula,

106. Cal. 54.1-2.


107. Cal. 52.
108. Cal. 54.2.

71
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Germânico, de quem Cláudio era irmão. Talvez por isso, a biografia de Cláudio tende
a apresentar-se como uma espécie de retardamento da katastrophe constituída pela
biografia de Nero.
Informam essa biografia muitos episódios que apresentam “um mundo às avessas”
ou que nos lembram enredos de comédia.109 Suetônio não desdenha introduzir,
sutilmente muitas vezes, sugestões do ridículo. Coloca em cena uma personagem
grotesca, em contínuas Saturnais. Para tal figura terá contribuído a tradição histórica
anterior e a “Apocolocyntosis” de Sêneca. Muitas das reações de Cláudio são as
de um velho da comédia – o típico senex da palliata – que, dominado por mulheres e
libertos, se torna objeto de troça ou manifesta uma ira desproporcionada. As intrigas
familiares fazem lembrar um enredo de mimo. O riso é uma forma eficaz de o
biógrafo reforçar o seu ponto de vista, sem ter de o explicitar (ridendo castigat mores).
Não fora o papel que Cláudio desempenha, o de imperador, e o objetivo do biógrafo
pareceria ser simplesmente o de divertir. Porém, o fato de este senex cômico estar à
frente do mundo conhecido gela o riso do leitor. O contraste entre o nobre papel,
por um lado, e ações não nobres e até ridículas, por outro, transforma o enredo em
tragicomédia. A própria morte tem algo de burlesco, pela sordidez da descrição.
Contudo, no final, há uma mudança que move a compaixão do leitor. A conclusão
é triste: a tragédia de Cláudio não foi, afinal, o não ter agido a tempo – foi ver a
aproximação da morte sem já querer afastá-la. A imagem de Cláudio parece
melhorar aos olhos do leitor que fica a interrogar-se se ele seria assim tão tonto
como sugeriam as suas ações.
A sucessão das vidas até Calígula sugere um crescendo em vista de um fim. A “Vida
de Cláudio” funciona como um intermezzo tragicômico que parece retardar um final
anunciado. A catástrofe do primeiro ciclo de vidas reserva-se para a “Vida de Nero”,
a última da dinastia Júlio-Cláudia.
Nessa biografia, Suetônio parece querer exprimir a osmose, buscada pelo imperador,
entre as atividades teatrais – sobretudo a música e o canto – e a sua própria vida,
toda ela voltada para o espetáculo. As referências ao teatro, ao canto e à execução
musical constituem um leitmotiv ao longo de cada uma das fases da “Vida de Nero”.
Embora Suetônio não explicite esta ideia, deixa a forte impressão, no seu leitor, de
que a biografia é construída à volta do conceito de Nero como príncipe-ator. É uma

109. Como sublinha, no seu comentário a essa vida (GUASTELLA, 1999, p. 43): “A differenza del personaggio disegnato da Tacito o da
Cassio Dione, il Claudio di Svetonio è senza dubbio una figura manifestamente ridicolizzata, le cui imprese spesso ricordano molto da vicino
situazioni che si potrebbero riscontrare negli intrecci della palliata o del mimo”.

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linha condutora que preside à ascensão, à conquista da popularidade, à queda em


desgraça e à morte do imperador. Essa vida é como que a “tragédia de um ator no
papel de si mesmo”.
A “Vida de Nero” é progressivamente organizada como um drama: tudo é
encenação, e muitos acontecimentos têm sentido mítico ou trágico. No centro da
intriga está um ator, cuja tragédia resulta de um esforço que não olha a meios para
atingir a perfeição na sua arte. O seu objetivo é a arte pela arte. O meio de expressão
preferido é o canto e a música. As máscaras têm os traços de personagens reais: o
imperador e as amantes. O palco é o palácio, Roma, Itália, o Império. Nero não quer
ser o ator que apenas representa: pretende ser o artifex total – único motivo de
orgulho na hora da morte. Para atingir a suprema inspiração, procura criar uma
fusão trágica entre mito e realidade. Nero ultrapassa a imitação (mimesis) e dedica-se
à poiesis, enquanto criação pura. O imperador/ator quer experimentar em si os
grandes motivos trágicos: e por isso os encena e encarna. Quer sentir o que sentiu
Orestes, depois de matar a mãe; o que sentiu Édipo, depois do incesto; o que sentiu
o Hércules insano, ao matar os que lhe eram caros; o que sentiu Príamo, ao ver
Troia em chamas. E, no final, diz-se perseguido pelas fúrias vingadoras, como
Orestes. Desempenha também papéis menos trágicos: como experimentar o que
sente uma virgem violentada ou Cánace a dar à luz. Tal desejo de perfeição artística
transforma-o em um monstro psicopata, motivo frequente nos filmes dos nossos
dias: o criminoso que concebe o assassínio como uma arte, levada com orgulho à
perfeição. Tal procedimento só pode terminar com a destruição do criminoso insano.
Como já antes sucedera com Calígula, um mortal não pode, sem castigo, fazer de
outros mortais um joguete, como só os deuses se permitem. A vida de Nero torna-
se insustentável; e a morte, uma necessidade. No final, a suprema e derradeira fonte
de inspiração decorre do papel real de protagonista da sua própria morte, com a
aproximação da hora fatal e a angústia, a hesitação e a necessidade do suicídio, o
medo, o artifício. Nero é ator até o último momento: mesmo então continua a
sentir-se e a agir como um artifex; e o que mais o afeta são as censuras à sua arte.
Quer tornar a sua morte grandiosamente trágica, com ditos memoráveis, épicos e
trágicos. O sentimento da proximidade da morte não ensombra, antes estimula
a sua consciência artística, que continua a apregoar. É um infelix, mas julga-se
um predestinado e favorecido da arte. Recusa-se a aceitar o seu ocaso: o mínimo
sinal serve para restaurar a sua confiança em um grande destino. E como Suetônio
tende a passar por cima das grandes questões políticas, Nero morre sem perceber
bem por quê.

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4.2. A crise de 68-69 d.C.: Galba, Otão e Vitélio


O Livro VII das “Vidas dos césares” trata do caos em que ficou o Império entre o
desaparecimento da dinastia Júlio-Cláudia e a ascensão dos Flávios. Assim, às
palavras iniciais deste livro110 se opõe o começo do Livro VIII.111 O primeiro capítulo
da “Vida de Galba” parece funcionar como a introdução ao conjunto das três vidas,
pois permite estabelecer a ligação ao conjunto anterior de biografias, de modo
semelhante ao que acontece com o primeiro período da “Vida de Vespasiano”. No
que respeita ao caráter dos césares, o acme situa-se na segunda posição, assumida
por Otão – como, entre os Júlio-Cláudios, estava Augusto e, entre os Flávios, estará
Tito – a que se segue um declínio em direção à catástrofe – representado, neste
ciclo, por Vitélio. As três vidas são praticamente paralelas e alguns acontecimentos,
porque contemporâneos, são mesmo fracionados, seguindo cada vida o ponto de
vista do biografado.112 Essas vidas ganham ainda unidade pela brevidade comum
dos governos, pelo contexto político, pela esperança frustrada em um bom príncipe,
pela morte sangrenta, pela presença/ausência de Nero. Entretanto, a realização de
cada um desses aspectos faz-se de forma diferente.
O contexto é de guerra civil. De sangue se fala, e de vingança. O punhal é um motivo
simbólico recorrente nas biografias, símbolo da liberdade e do direito de dar a morte.
Remete aos punhais que mataram César; aos punhais com que, segundo Suetônio,
alguns dos cesaricidas se suicidaram depois, os dois punhais que Nero experimentou
antes de morrer. Galba ostenta um punhal ao peito; Otão, em um eco de Nero,
verifica o gume de dois punhais, antes de se suicidar; Vitélio quer desfazer-se do
punhal: tenta entregá-lo ao cônsul, aos magistrados, aos senadores, e, como
ninguém aceita, diz que o vai oferecer à Concórdia – que simboliza o fim da guerra
civil –, mas depois decide retê-lo.
Suetônio apresenta a luta das forças que já um século antes, por ocasião da morte
de César, se digladiavam. Galba parece representar a linha política quebrada com
a morte dos cesaricidas; Vitélio, pelo contrário, apresenta-se como representante de
César, ao empunhar a sua espada, mas no que ele tem de mais radical: a tirania
com ecos de Nero. Otão parece situar-se no meio, porquanto tenta a concordia com

110. Gal 1: “Progenies Caesarum in Nerone defecit...”.


111. Ves.1.1: “Rebellione trium principum et caede incertum diu et quasi uagum imperium suscepit firmauitque tandem gens Flauia”.
112. Enquanto em Plutarco a “Vida de Otão” começa onde a de Galba termina, as “Vidas” suetonianas acompanham os três
Césares, do nascimento à morte, com acontecimentos comuns: a revolta do exército da Germânia, em janeiro de 69, diz
respeito à biografia de Galba, e de Vitélio; o assassínio de Galba às vidas de Galba e de Otão; a guerra entre Otão e Vitélio
interessa, em simultâneo, às respectivas biografias.

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Vitélio por intermédio do senado, o que, de certo modo, o aproxima, discretamente,


de Augusto.
Como nas outras biografias, a preocupação do biógrafo parece ser mostrar em que
medida cada imperador se acomoda ou não ao modelo do príncipe. Dado que não
pertencem à linhagem de Augusto, a nobreza da família vai ser um dos pontos de
interesse. Provada a nobreza da linhagem, segue-se naturalmente a aferição da
nobreza de caráter e das capacidades para desempenhar a função. A esperança em
um bom príncipe é frustrada por motivos diferentes. Galba não conserva o favor e
a autoridade que lhe deu o poder: de libertador transforma-se em tirano, devido à
avareza e crueldade e à incapacidade, agravada pela influência nefasta de três
ministros corruptos; Otão recusa-se a manter o Império à custa do sangue dos seus
homens e do risco do Estado e suicida-se; Vitélio não é capaz de reter o Império
que lhe foi assegurado pelos legados, devido à sua crueldade, gula e impiedade.
Porém, em cada caso, a providência divina é determinante. Nero continua a ser o
grande ausente, que se torna uma referência: ou é repudiado (Galba) ou é imitado
(Otão e Vitélio).
A cada esperança frustrada segue-se uma morte sangrenta, cujo significado varia:
enquanto Galba e Vitélio são castigados, Otão é exaltado e a sua culpa é anulada.
A morte de Galba traduz o castigo da sua avareza e o ódio de todos; a de Otão
simboliza a heroica remissão dos erros com um sacrifício altruísta: oferece o seu
sangue para evitar mais sangue, o que lhe vale a admiração universal depois da
morte; a de Vitélio é a suprema humilhação do linchamento de um ímpio guloso e
cruel que violou as leis divinas e humanas.
Assim, o biógrafo apresenta o retrato vivo das contradições de uma época trágica,
da história romana recente – no tempo em que o pai de Suetônio era militar –,
amaldiçoada pelos homens e pelos deuses. Os relatos vivos do pai decerto impres-
sionaram o futuro biógrafo.
A vida de Galba é constantemente marcada por presságios, quer da sua ascensão,
quer do seu desastre, o que faz pensar que o biógrafo pretende apresentar esse
imperador como um joguete dos deuses. A prodígios que lhe anunciam a ascensão,
seguem-se outros que lhe pressagiam a queda. É um protegido da Fortuna, mas
esta abandona-o no final da vida. Paralelamente à intervenção divina, Galba
cai também devido, sobretudo, a uma falta. Com efeito, na ânsia de contrariar a
liberalidade de Nero, cai no vício oposto, e a louvável austeridade inicial, ligada ao
mos maiorum (os costumes dos antepassados), transforma-se em censurável avareza.

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Galba apresenta-se, desse modo, como um bom candidato e um mau imperador.


No fecho, é um homem só, abandonado pelos homens e pelos deuses. Ao ver que
todos desejam a sua morte, acaba por se resignar como vítima para o sacrifício.
Parece retomar a imagem de César, por meio de ruptura e continuidade: é um bom
general; apresenta uma linhagem divina; é um predestinado; parte da Hispânia para
Roma; é morto no foro; é calvo; tem tendências homossexuais. Por outro lado,
politicamente apresenta-se como um anti-César: segue a linha dos cesaricidas, liga-
se ao senado; representa os idos de março; é avaro; é impopular entre os soldados;
é a paródia da beleza de César. A apreciação global é francamente negativa.
O biógrafo parece, como no caso de Cláudio, servir-se, em certa medida, do retrato
deformante da comédia, embora o efeito não seja propriamente cômico. O austero
e promissor general transforma-se em um senex avaro, cruel e incongruente,
submetido a três ministros corruptos, odiado e abandonado pelos homens e pelos
deuses. Afinal. o tiranicida libertador também se transformara em tirano: fracassara
a alternativa representada pelos opositores de César. O ódio gerado em torno da
imagem de Galba favorecerá o sucessor.
Otão aparece em cena como a antítese de Galba. O biógrafo desenvolve mais os
momentos que revelam o seu verdadeiro caráter: antes da ascensão ao trono e a
narrativa da morte. O tempo do principado, mais negativo, é brevemente resumido.
A influência do pai do biógrafo, que foi tribuno no exército de Otão, terá certamente
influenciado a imagem favorável que, no final, Suetônio nos dá desse imperador.
A evolução da personagem é inversa da de Galba. De jovem libertino que era e
companheiro dos desmandos de Nero, Otão, depois de uma tragédia amorosa,
transforma-se na única personagem digna do Império. Contra a avareza de Galba,
é generoso: generoso com os soldados e generoso com os cidadãos, pois prefere
morrer a aceitar a incerteza da guerra civil que traria mais sangue. Quando começa
a seguir a linha política de Nero, o destino passa a mostrar-se desfavorável.
É atormentado por sonhos funestos depois da morte de Galba. O sangue clama
por vingança, e Otão irá passar por um processo de expiação. A morte não é uma
necessidade, mas tem um objetivo: acabar com a guerra; pôr termo ao sofrimento
dos homens e ao perigo para o Estado. Ao abominar a guerra civil, Otão já atenua,
com as boas intenções, a gravidade do seu crime. Porém, ao morrer corajosamente,
aceitando o destino e expiando com o seu sangue a culpa coletiva dessa guerra, a
sua culpa pessoal é definitivamente anulada. Tal coragem contrasta com os seus
costumes efeminados. Apesar de o seu principado ser curtíssimo, àquela morte
segue-se o pranto coletivo e o reconhecimento universal póstumo.

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A “Vida de Vitélio” é a antítese completa da vida de Otão. O movimento é do já


negativo para o mais negativo. As poucas qualidades anulam-se completamente,
até se formar um caráter detestável. Se Otão odeia a guerra civil, Vitélio compraz-
-se com a vista de cadáveres de cidadãos. Ele foi o culpado pela morte de Otão e
mostra-se insolente junto ao seu túmulo: uma atitude imperdoável para o biógrafo.
No seu governo, segue o modelo de Nero, mas, de modo diferente de Otão, no que
Nero tinha de mais reprovável: histriônico, insolente, ímpio, luxurioso e cruel.
Suetônio socorre-se da deformação própria da comédia e apresenta o retrato
burlesco de um glutão. Depois de uma vida vergonhosa, a ignomínia é o castigo
merecido e há muito anunciado: o castigo da sua gula e da sua impiedade. A sua
morte (um linchamento) é a mais indigna de todas.

4.3. Os Flávios
Este conjunto de biografias, constituído pelo Livro VIII das “Vidas dos césares”,
começa e acaba com uma nota de esperança. O crescendo de otimismo, que se
verifica em Vespasiano e Tito, vem, na segunda parte do principado de Domiciano,
a degenerar em frustração.
De modo semelhante ao início do Livro VII, também o começo do Livro VIII parece
funcionar como uma introdução às três “Vidas dos Flávios”. Há uma simetria nos
dois começos, de modo que um parece continuar o outro: no limiar da “Vida de
Galba”, temos a passagem do fim de uma família (“progenies Caesarum... defecit”)
para o caos e a morte; na breve introdução à “Vida de Vespasiano”, temos a
passagem do caos (“rebellione... et caede; incertum diu et quasi uagum imperium”) de
indivíduos isolados (tres principes) para a segurança (firmauit) de uma nova família
(gens Flauia).113 Apesar da origem humilde, essa família recebe o reconhecimento do
Estado; mas, no final, ocorrerá um desenlace justo: o castigo que Domiciano
merecerá pela sua cupiditas e saeuitia.114 Esse conjunto de vidas é, assim, determinado
por uma contingência no tempo: desde o início se anuncia o fim da dinastia.
No começo da “Vida de Galba” o tom era de insegurança, agora é de esperança.
A oposição entre diu (“durante longo tempo”) e tandem (“finalmente”) traduz bem

113. Para Tácito, o desaparecimento de Vitélio e o advento de Vespasiano está longe de trazer a segurança referida por Suetônio.
Cf. Hist. 4.1.1.
114. Ves. 1.1: “Rebellione trium principum et caede incertum diu et quasi uagum imperium suscepit firmauitque tandem gens Flauia, obscura
quidem ac sine ullis maiorum imaginibus, sed tamen rei p. nequaquam paenitenda, constet licet Domitianum cupiditatis ac saeuitiae merito
poenas luisse”.

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o tempo psicológico de 18 meses de guerra civil, entre a morte de Nero (em junho
de 68) e a de Vitélio (dezembro de 69). No Livro VII, de três indivíduos se fala; no
começo do Livro VIII, surge o coletivo gens Flauia. A nova dinastia permite, de algum
modo, restaurar a linhagem dos césares (progenies Caesarum) que fora cerceada com
a morte de Nero.115 Às pretensões de nobreza dos três imperadores anteriores116 o
biógrafo opõe o contributo efetivo – “suscepit firmauitque tandem” – desta nova
família que, em vez de ostentar uma linhagem ilustre, mostra a genuína mediocritas
pristina (Ves. 12).
Duas ideias, que se apresentam na referida introdução geral às “Vidas dos Flávios”,
são reiteradas e desenvolvidas na narrativa da ascensão de Vespasiano ao poder:
por um lado, a salvação do Estado, por outro, a origem humilde da família a que
pertencia. O aparecimento de Vespasiano, pelo que tem de inesperado, torna-se
miraculoso, como irão acentuar os prodígios que oportunamente se verificam em
Alexandria. São esses prodígios, afirma Suetônio (Ves. 7.2), que lhe conferem a
autoridade e a majestade que a linhagem lhe não concede.
Apresenta-se como a antítese de Galba (Gal. 2). Este era de família ilustre: tinha
uma árvore genealógica exposta no átrio da sua casa; Vespasiano é de família
obscura e desprovida de retratos de antepassados ilustres (“sine ullis maiorum
imaginibus”). Galba procura uma origem divina em Júpiter e Pasífae, Vespasiano troça
da sua própria deificação. Galba era aparatoso; Vespasiano, modesto. Partem de
extremos opostos do Império. Também no caráter são opostos: Galba é cruel;
Vespasiano, clemente. Uma característica une os dois generais: a avareza. No
entanto, a abordagem que o biógrafo faz desse vício visa a acentuar a culpa do
primeiro e escusar o segundo.
Um traço, reiterado, torna esse imperador especialmente simpático: o sentido de
humor, que o próprio Vespasiano usava como forma de atenuar a impopularidade
das formas de acumular rendimentos. O biógrafo aproveita a sugestão dests
característica de Vespasiano e transforma-a em fio condutor, desde a narração do
início da carreira, quando é agredido com rábanos em África, até ao relato da morte.
Assim, o biógrafo dá um pendor cômico a essa vida.
De novo encontramos uma evolução positiva, que culmina no segundo elemento
da dinastia, Tito, o acme da evolução moral, a que se segue uma degradação,

115. Cf. Gal. 1.


116. Cf. Gal. 2; Otho 1.1; Vit. 1.1.

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causada pelo terceiro elemento, Domiciano. Tito é imediatamente apresentado no


início como “o amor e as delícias do gênero humano”. Beneficia-se do afeto dos
que morrem cedo, como Germânico, de quem se aproxima no retrato físico e
psicológico, e como Britânico (filho de Cláudio), o amigo nunca esquecido, que,
inocentemente, partilhara com Tito um pouco do cálice assassino. A forma positiva
como é apresentado no início da “Vida de Tito” é reforçada no final. Contudo,
também nesse imperador o movimento é do negativo para o positivo: de cruel,
suntuoso, libidinoso e rapace como coadjuvante de Vespasiano, passa a clemente,
generoso, continente, desinteressado e munificente, quando, por morte do pai, passa
a governar sozinho.
Por outro lado, a felicidade revela-se passageira e, no fim de contas, desaba em
tristeza. A “Vida de Tito” termina em um ambiente de comoção generalizada e
indignação pela injustiça: as grandes almas não perduram. Segundo a noção de
culpa/castigo, Tito é castigado sem o merecer, como ele próprio diz no lamento final.
Depois de um princeps excelente, só se pode esperar outro pior.
A “Vida de Domiciano” contrasta, desde o início, com a de Tito. A imagem inicial é
a oposta e a evolução psicológica e moral é a inversa. Começa por ser apresentado
com contornos negativos, passa por um período positivo, depois da ascensão ao
poder, para se tornar gradualmente um tirano cruel e rapace. Depois do acme que
se atingira em Tito, segue-se o já esperado momento descendente. Domiciano
representa, do ponto de vista da biografia suetoniana, a degeneração da dinastia
Flávia, a catástrofe desse conjunto de três vidas. Domiciano é apresentado como
um tirano sobre o qual pende uma espada de Dâmocles. A morte surge, na linha
de César, Calígula ou Nero, como o castigo merecido. Se a morte de Tito aparecia
como tragicamente injusta, dado o encarecimento que merecera durante a vida, a
morte de Domiciano é consequência de uma culpa pessoal: a progressão até um
estágio intolerável de crueldade, rapacidade e arrogância. Uma gradação conse-
guida, como habitualmente, à custa de alguma deformação histórica.
Os atos que envolvem a ascensão de Domiciano ao Império aproximam-na de uma
usurpação. Desde as insídias contra o irmão até o último sopro de vida, passando
pela execução de Métio Pompusiano, que se dizia ter um horóscopo anunciador do
Império, e dos astrólogos que anunciavam o fim de Domiciano, toda esta vida é
uma luta vã contra um destino adverso. Um ambiente trágico se gera do terror de
Domiciano, que conhece antecipadamente a hora da morte, e da vã tentativa de
evitar o destino. A tensão aumenta à medida que se aproxima o momento fatal. O

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imperador tem conhecimento do tempo, mas não sabe que a ameaça parte dos
que lhe são mais próximos.
Suetônio usa as técnicas habituais para acentuar o bom nos bons e o mau nos
tiranos. Em Vespasiano e Tito são escamoteados alguns elementos que poderiam
enegrecer a imagem positiva desses imperadores, e em Domiciano a tônica nos
aspectos negativos e a organização da biografia contribuem para sublinhar a
imagem de um tirano, cuja crueldade e misantropia vão aumentando com o tempo.
O caráter eminentemente positivo das vidas de Vespasiano e Tito contribui para
acentuar, pelo contraste, o negrume da “Vida de Domiciano”.
Encontramos, nesse conjunto, um pouco de comédia, na “Vida de Vespasiano”; um
pouco de romance sentimental, no final da “Vida de Tito”, e grande dose de
tragédia, na parte final da “Vida de Domiciano”. Esta última termina com uma
progressão irresistível para a catástrofe final, onde se acentuam elementos trágicos.
Como no final das vidas de César, de Calígula e de Nero, o biógrafo situa-se em
um ponto intermédio entre a atitude do historiador e a do dramaturgo e novelista.
A ficção dos fatos visa a transmitir uma mensagem moral – exageram-se
determinados traços do caráter, escondem-se outros, para a conseguir uma imagem
coerente e “exemplar” de cada personagem. O equilíbrio será restabelecido com a
referência implícita aos optimi principes que se seguirão a Domiciano: Nerva, Trajano
e Adriano. A mensagem final, por oposição aos vícios de Domiciano, e dos tiranos
anteriores, será a apologia das virtudes da abstinentia e da moderatio.

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Prof. dr. Fábio V. Cerqueira


Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
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Capítulo V

Sentimentos íntimos femininos vistos pela poesia imagética dos pintores


de vaso: representação iconográfica do casamento e do amor matrimonial
na cerâmica ática (séculos VI e V a.C.)117

Introdução: a iconografia do ritual do casamento e a intimidade feminina


A representação da vida íntima foi repartida, pelos pintores de vaso áticos, entre
dois grandes grupos: a vida no masculino e a vida no feminino. A temática da vida
diária masculina é amplamente majoritária, como se constata em um levantamento
quantitativo da iconografia ática da segunda metade do século VI ao final do
século V a.C.
A mulher cidadã, a mulher ateniense, no contexto da esfera doméstica, é a
protagonista de duas importantes séries de representação da intimidade: (i) cenas
referentes ao ritual do casamento e (ii) cenas de entretenimento feminino no
gineceu (recinto feminino da residência grega).
As séries referentes ao ritual do casamento e ao gineceu constituem uma unidade
temática: a representação da vida íntima da mulher ateniense na perspectiva da

117. Artigo publicado originalmente sob o título “A representação do casamento e do amor matrimonial na cerâmica ática:
sentimentos íntimos da mulher ateniense (séc. VI – V a.C.)”, no livro: SILVA, Úrsula Rosa da; MICHELON, Francisca Ferreira;
SENNA, Nádia da Cruz (Orgs.). Imagens tangenciadas no tempo: estudos sobre representações femininas. Pelotas: Editora e
Gráfica Universitária da UFPel, 2010. p. 119-159.

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instituição do casamento, pois este constitui o fundamento do estatuto da mulher


cidadã (MOSSÉ, 1989, p. 51). As cenas com mulheres no gineceu, na sua intimidade
doméstica, eventualmente em presença de um Eros alado ou de aves evocadoras
do reino amoroso de Afrodite, contribuem para a discussão sobre a afetividade entre
homem e mulher no casamento (BUNDRICK, 2000; CALAME, 1996, p. 132).
O objeto deste artigo é a série iconográfica referente aos festejos do casamento,
procurando verificar como são abordados – ou ignorados – os sentimentos
femininos projetados sobre a vida conjugal. A iconografia dos ritos matrimoniais
evidencia uma acentuada diferença de tratamento dos sentimentos e da psicologia
entre as gerações de pintores de figuras negras, do século VI a.C., e de pintores de
figuras vermelhas, de meados do século V em diante. Essa mudança talvez nos
indique um deslocamento do lugar da mulher (ou ao menos de sua represen-
tação) na sociedade, apontando para transformações sociais no nível da cotidianidade.
De certo modo, insinua-se, na iconografia das últimas décadas do século V a.C.,
dos pintores do estilo Clássico, uma descoberta da intimidade e da psicologia
feminina face à instituição do casamento e sentimentos relacionados. Essa
percepção contrapõe-se à visão hegemônica na historiografia moderna, de que o
casamento na sociedade grega seria destituído de sentimentos amorosos na relação
marital, sentimentos que seriam praticados somente nas relações de concubinato,
prostituição e homoerotismo, cabendo ao casamento somente o sentido de
perpetuação da propriedade privada e de definição do estatuto da cidadania.

Algumas considerações sobre a representação iconográfica da mulher


ateniense

Condição social: mulheres ricas e mulheres pobres


Em primeiro lugar, tanto as cenas nupciais como as cenas de gineceu retratam mulheres
atenienses de classe elevada (BUNDRICK, 2000, p. 1 e 17). A iconografia, quando
representou a mulher livre, sempre privilegiou a mulher de elite, seja nas cenas
religiosas, nas quais as mulheres têm participação bastante ativa, sobretudo nas
representações das festividades das Leneias, seja nas cenas de intimidade. As fontes
literárias evidenciam enorme diferença entre uma mulher cidadã pobre ou rica.
Enquanto o espaço ideal da mulher ateniense abastada era o recato do lar, saindo
apenas para buscar água nas fontes e poços (Figura 1), cultuar os mortos (Figura
2) ou participar dos rituais religiosos, a mulher ateniense de baixa extração social

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precisava colaborar economicamente, trabalhando fora. Assim, os mercados estavam


cheios de vendedoras de perfumes, de óleo e de quinquilharias (MOSSÉ, 1989,
p. 59)118. As mulheres de famílias campesinas humildes também deviam cooperar,
fazendo a coleta dos frutos. Alguns pintores de vasos de figuras negras registraram
essas cenas, como o vaso de Míconos com uma mulher vendendo óleo e lécito
(frasco cerâmico para óleos ou perfumes) (Figura 3)119, e outro com mulheres fazendo
coleta de frutos, ambos datados do final do século VI a.C. Então, as mulheres
cidadãs retratadas em sua intimidade doméstica pertencem à elite econômica.

Figura 1 – Mulheres buscando água na fonte

Hídria. Figuras Negras. Toledo, Toledo Museum of Art, 1961.23.


520-10 a.C. (Beazley Archive nº 351088). Desenho: C. Dukelski.

Figura 2 – Mulheres cultuam o morto junto à tumba

Lécito de fundo branco. Atenas, Museu Nacional, 1950.


Em torno de 420. (CVA Atenas 1 III J d, pr. 11.1-3.
CERQUEIRA, 2001, cat. 505). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

118. Cf. Pélica. Figuras vermelhas. Pintor de Pã. Madri, Museu Arqueologico. Bib.: OLMOS, 1986, p. 139-40.
119. Lécito. Figuras negras. Rio de Janeiro, Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, s/inv. Em torno de 480. Bib.: SARIAN, 1987, p. 80, fig. 6.

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Figura 3 – Mulher vendendo óleo na ágora

Ânfora. Figura negras. Pintor de Eucharides. Museu Arqueológico de Míconos.


Final do século VI a.C. Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Em nosso texto, o uso do termo mulher cidadã refere-se a uma questão social básica:
ser filha ou esposa de cidadão ateniense. O termo cidadã (polîtis), tardio na democracia
grega, surgiu, com um sentido muito limitado, no começo do século IV a.C., em
Aristóteles, Demóstenes e autores da comédia nova. A verdadeira qualidade da
cidadania – as funções políticas de participação nas assembleias, tribunais e ordens
militares – era prerrogativa exclusiva do sexo masculino (MOSSÉ, 1989, p. 51;
CALAME, 1996, p. 123; FLORENZANO, 1996, p. 41). Porém, apesar de sua exclusão
da esfera política, a mulher cidadã estava incluída na comunidade que se autogeria
nas assembleias, pois a ela cabiam funções cívicas no âmbito religioso, consideradas
vitais para o bem-estar da pólis (BRULÉ, 1987; CALAME, 1996, p. 141 e 193). Em
vista disso, os termos mulher cidadã e mulher ateniense servem para diferenciá-la das
mulheres pertencentes a outras categorias, como as hetairas.

Cronologia da representação da mulher cidadã na iconografia da cerâmica ática


Desde o século VI a.C., a mulher é representada em suas incumbências religiosas,
atuando como sacerdotisa, kanēphóros (portadora da bandeja com oferendas),
peplophóros (menina que leva o vestido, denominado péplos, como oferenda à deusa
Atena), musicista, corista ou em dança de estado de transe120. Do mesmo modo, aparecia
em cenas funerárias de velório e cortejo, sobretudo como carpideira (Figura 4), e
em cenas nupciais, como noiva, nymphēútria (acompanhante da noiva) ou parente
de um dos noivos, participando de um cortejo (Figura 5) ou de danças nupciais121.

120. Cf.: Cratera com colunas. Figuras vermelhas. Grupo de Polygnotos (ARV2 1052/25). Ferrara, Museo Nazionale, 2897 (T 128).
Ca. 440. (CVA Ferrara 1, pr. 11.1-4.). Descrição: Ritual a Cibele e Dioniso. Mulheres em transe.
121. Cf. Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor de Syriskos (ARV2 261/19). Míconos, Museu, inv. 971. Datação: 500-490. (DUGAS,
1852, p. 9-11, nº 9, pr. 5-7). Descrição: Dança nupcial. Duas rodas em círculo em movimento oposto, com um personagem
tocando kithára. Segundo Dugas, moça, segundo Beazley, Apolo. A visualização direta da peça permitiu dar razão a Beazley,
segundo nossa interpretação, pelo fato do musicista ser a única personagem a não adornar a orelha com brinco.

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Figura 4 – Exposição do morto: lamento das carpideiras levando as mãos aos cabelos

Lutróforos. Figuras vermelhas. Copenhague, M. Nacional, 9195. Ca. 450


(CVA Copenhague 8, pr. 340.a-e, 341.1). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Figura 5 – Cortejo de núpcias: mulheres levando presentes

Cratera. Figuras negras. Sem atribuição. Tóquio, Museu da Cultura do Mediterrâneo Antigo, 3. Datação: 530-20
(CVA Japão 2, pr. 40.1-2. CERQUEIRA, 2001, cat. 292). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

No século VI a.C. vigia certa interdição sobre a representação do espaço feminino


do lar – por convenção social ou desinteresse dos pintores. A partir do segundo
quartel do século V a.C., aumenta o interesse pelo mundo da mulher cidadã. A partir
de aproximadamente 480-70 a.C., inicia a série denominada Lenäenvasen, retratando
mulheres dedicadas à festividade dionisíaca das Leneias (Figura 6) (FRICKENHAUS,
1917)122. Na década seguinte, surgem os primeiros vasos com cenas de gineceu
(Figura 7). Enquanto as temáticas masculinas sofriam redução relativa – conside-
rando o total da produção dos vasos decorados áticos –, a série iconográfica
representando o gineceu tem sensível expansão (BUNDRICK, 2000, p. 17; BAZANT,
1990, p. 93-112).

122. Para outras interpretações, cf. DURAND; FRONTISI-DUCROUX, 1982, p. 81-108.

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Figura 6 – Mulher preparando o vinho para a festa dionisíaca das Leneias

´ Figuras vermelhas. Pintor de Brygos (ARV2 377/115). Bruxelas, Musées Royaux, R 263. Ca. 480
Kylix.
(CVA Bruxelas 1,III I c, pr. 1.4). Desenho: F.V. Cerqueira.

Figura 7 – Entrega de presentes: Eros e mulher com harpa

Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1126/6). Nova York, Metropolitan Museum,
16.73. Ca. 430-20 (BUNDRICK, 2000, cat. 75, fig. 9). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Ao longo da descrição da documentação iconográfica, precisamos ter em mente a


seguinte questão: por que aumentou o interesse pela imagem da mulher ateniense
a partir de meados do século V a.C.? Veremos que esse aumento quantitativo
acompanha uma mudança qualitativa, a renovação da abordagem do feminino.

A sequência do cerimonial do casamento

Fontes literárias e iconográficas: testemunhos da diversidade e mudanças


de enfoque
As fontes escritas revelam muito dos festejos de casamento, permitindo reconstituir
suas etapas, apesar de várias lacunas sobre seu desenvolvimento e sequência.
Porém, o historiador, para compreender o conjunto dos rituais do Período Clássico,
utiliza-se precipuamente de textos da época imperial, sobretudo lexicógrafos
romanos e autores de escólios bizantinos. Uma rara exceção é o drama “Alceste”,
de Eurípides. Nesse sentido, a iconografia dos vasos áticos do século VI ao IV a.C.
constitui fonte de incontestável valor.

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Eurípides retrata a condução da noiva à casa do noivo, evento descrito já por


Homero, em “Escudo de Aquiles” (Ilíada, XVIII, 490 e ss.), e Hesíodo (Escudo de Héracles,
270 e ss.). A abordagem é distinta: Homero e Hesíodo privilegiam a atmosfera
festiva do cortejo pelas ruas, observado por espectadores às portas de suas casas;
Eurípides, no século V a.C., interessa-se mais pela ligação privada do casal.
Percebe-se uma mudança de valores no tocante ao amor matrimonial. A mudança
de abordagem remete-nos a uma nova percepção da intimidade, sobretudo a
intimidade feminina.

O ato contratual de noivado: engýesis e ékdosis


As festividades iniciam com o ato jurídico da engýesis e ékdosis, respectivamente,
compromisso de noivado e transferência legal da noiva, efetivados sem formalidades
cerimoniais. O contrato oral entre duas casas, entre duas famílias, realiza-se diante
de testemunhas na casa do pai da noiva. O noivo e o pai ou tutor da noiva são os
protagonistas. Ela é somente o objeto contratual, passado ao domínio de seu novo
kýrios (senhor) mediante um dote presenteado ao noivo. É um engajamento privado,
que transcorre no espaço doméstico, sem registro civil – sem interferência de
qualquer autoridade cívica ou religiosa. Em um primeiro momento, é a instituição
familiar que legitima o casamento, não a cidade, nem a religião. O reconhecimento
civil e as ingerências religiosas ocorrem posteriormente. A finalidade do casamento
era ter descendentes legítimos para herdar os bens paternos; ao mesmo tempo,
legitimava a cidadania dos filhos dessa união. Era um dos fundamentos da vida
econômica e política, ligado estreitamente ao regime de propriedade e herança,
bem como à garantia dos direitos políticos (MOSSÉ, 1989, p. 51-52, 57-58;
REINSBERG, 1993).
Em vista da passividade com que a moça se tornava objeto de uma negociação
com finalidades vitais para a vida econômica e política, muitos historiadores
excluíram do casamento grego os laços amorosos e a satisfação sexual. Nesse
aspecto, Claude Calame abre uma nova perspectiva, buscando compreender os
afetos e desejos que aproximavam a noiva e o noivo, simbolizados pelas figuras de
Afrodite e Eros, tão frequentemente associados pelos pintores de vaso à união
matrimonial (CALAME, 1996, p. 129-134). Opõe-se à visão predominante, segundo
a qual a combinação entre casamento e desejo seria tida como imprópria e
escandalosa, visão defendida pela abordagem feminista de Eva Keuls (1985, p. 41).

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As festividades e o reconhecimento público


Algum tempo depois da engýesis, iniciam-se então os três dias de festejos, com
confirmação ritual e efetivação legal, tornando o casamento conhecido diante do
público, auspicioso face às divindades do amor e ao matrimônio, e sancionado
perante a lei e a comunidade cívica. Essas festividades envolviam preparos e
celebrações privadas, no espaço doméstico e na rua, bem como atos de cunho
religioso e político.

Oferendas pré-nupciais e ritual de purificação


Iniciava-se com as oferendas pré-nupciais, incluindo brinquedos e cachos da noiva,
que se despedia da infância. Heródoto atesta o costume deliano de as meninas
deixarem um cacho de cabelos junto ao templo de Artemis (Heródoto, IV. 34).
Após as oferendas pré-nupciais, seguiam-se os ritos de purificação, que represen-
tavam o início propriamente das festividades – trata-se da loutrophoría, retratada em
vasos cultuais como o lutróforo e o lebete nupcial. Tucídides fala que “ainda hoje se
usa a água dessa fonte [Kallirrhóe], segundo o antigo costume pré-nupcial” (Tucídides,
II.15.). Ocorria em uma noite invernal do mês de Gamelion, entre janeiro e fevereiro.
Consistia no transporte da água do banho purificatório da noiva, da fonte até a
sua casa.

O banquete nupcial e a retirada do véu da noiva


No dia seguinte às oferendas, à loutrophoría e ao banho da noiva, ocorria a festa
propriamente: um banquete, herdeiro do banquete homérico. Nos tempos homéricos,
a refeição, na casa do noivo, era a principal parte da festa, sacramentando o ingresso
da noiva no seu novo lar e tornando público o enlace matrimonial. No Período
Clássico, a refeição – mais propriamente um deîpnon, festa para comer, do que um
sympósion, para beber –, marcava o início da mudança da noiva da casa de seu pai
para a do noivo. Comia-se antes de conduzir a noiva à sua futura casa, como relata
Aristófanes (Aristófanes, Paz, 1190 e ss.). Serviam-se coelhos, pombos e bolo,
animados por aulētrídes (flautistas), moças do círculo familiar. Participavam somente
mulheres cidadãs. Mantinha-se a separação dos sexos: destinavam-se seis mesas para
os homens e, separado, quatro para as mulheres (Ateneu, XIV. 644e). Entre as
mulheres estava a noiva, ainda coberta com véu, aparecendo apenas parte dos
olhos. O noivo era acompanhado por um menino, o paîs amphithalés.

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O ponto culminante do banquete era a anakalyptēría, ato de retirada do véu da noiva,


quando ela recebia presentes e podia ser vista pelo noivo. A retirada do véu
antecedia a condução da noiva à sua futura casa, levada pela nymphēútria.

O cortejo nupcial rumo à casa do noivo: a nymphagōgía e a transferência da noiva


No cortejo nupcial participam portadoras de tocha, aulētaí e mulheres, algumas
levando presentes. Carola Reinsberg entende que o principal propósito do cortejo
– alegre e sonoro – era tornar conhecido o casamento, apresentando a noiva à pólis.
Dramatizava-se e efetivava-se perante a comunidade a ékdosis, transferência legal
da noiva. Esse contrato jurídico, selado anteriormente entre o noivo e o pai da noiva,
tornava-se finalmente público e legal ante os olhos da comunidade (REINSBERG,
1993, p. 59-60). A nymphagōgía (condução da noiva), sendo a parte mais significativa
de todo o cerimonial, desfrutou de elevada popularidade entre os pintores de vaso
da segunda metade do século VI a.C. O traslado poderia ser a pé ou sobre um carro.
Sobre o carro, vemos o noivo conduzindo o cavalo e a mulher à sua esquerda, com
o rosto exposto e às vezes segurando um stéphanos (coroa de folhas).

Os rituais efetuados após a chegada da noiva na casa do noivo


Os rituais que ocorriam na casa do noivo são menos conhecidos. A introdução do
casal na casa do pai do noivo envolvia um ritual diante do altar doméstico com lume
aceso. O par devia ser conduzido ao thálamos (quarto) pela nymphēútria. Alguns vasos
do século IV a.C. representam amigas e parentes da noiva juntos no quarto do casal.
Quando o casal se encontra sobre o leito, o noivo faz uma oferenda a Afrodite, corpo-
rificação do ato de amor, queimando um incenso em um thymiatērion (incensário).
Na manhã do terceiro dia, ocorre a epaulía123. Amigos e parentes trazem presentes,
denominados epaulía, segundo Hesychios. Em cenas de gineceu, vemos moças
levando caixas e cofres como presentes (Figuras 7 e 13).

Conclusão do cerimonial de casamento: procedimentos religiosos e jurídico-políticos


No último dia, as festividades de casamento se concluem com procedimentos
religiosos e jurídico-políticos. São feitas oferendas a divindades ligadas ao amor e
ao casamento (Afrodite, Hera e ninfas do casamento) e a divindades locais e deuses
lares. Em Atenas, fazem-se oferendas à ninfa do casamento no seu santuário, junto

123. Remete-nos ao verbo epaulízesthai (pernoitar fora)

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às escarpas da Acrópole124 (CALAME, 1996, p. 145; FLORENZANO, 1996, p. 47).Em


paralelo às oferendas, o cerimonial é encerrado pela regulamentação jurídica: o
casal é registrado na lista das fratrias (distritos em que eram inscritos os cidadãos).
Perante testemunhas, o casal é reconhecido entre os cidadãos nascidos de pai e
mãe atenienses, garantindo-se os direitos legais do casal, bem como os direitos de
cidadania dos filhos. Encerram-se assim as festividades de casamento. A transição
da noiva da condição passageira de nýmphē (moça, noiva) para a situação definitiva
de gynē (mulher, esposa) se concretiza somente após o nascimento do primeiro filho,
revelando a finalidade reprodutora da mulher (CALAME, 1996, p. 141-5).

A iconografia do casamento e a descoberta dos sentimentos íntimos


femininos

A serialização das evidências iconográficas


A partir de um estudo sistemático dos registros iconográficos de casamento nos
vasos áticos, selecionamos evidências respeitantes à representação do feminino de
modo a poder fazer inferências sobre os sentimentos envolvidos na instituciona-
lização econômica, jurídica, social e política do casamento. Constata-se que a temática
não constitui um conjunto coeso na tradição gráfica ateniense: compõe-se de séries
relativamente independentes, com desenvolvimentos temporais distintos, acarretando
diferenciados problemas teóricos de interpretação.
Como ocorre com todos os fenômenos cotidianos retratados pelos pintores de vasos
áticos, averiguamos que eles se interessaram em registrar somente alguns momentos
do ritual – e, mais que isso, que a representação do sentimento íntimo feminino foi
objeto de interesse somente em algumas situações, em um período demarcado.
A sequência cronológica indica que, entre os séculos VI e IV a.C., diferentes gerações
focaram momentos distintos das festividades, abordando-os de forma variada. Por
vezes, inclusive, tratam os mesmos momentos de formas diversas, quase divergentes,
indicando eventuais mudanças nas práticas e imaginário social. Respeitando a
provável sequência de ritos, analisamos o material iconográfico com potencial para
se pensar a representação do feminino, na seguinte ordem: loutrophoría, cortejo com
quadriga, nymphagōgía a pé e chegada à casa do noivo.

124. Nesse sítio, na porção meridional da Acrópole, acima do santuário de Dioniso, foram encontrados inúmeros vasos, sobretudo
lutróforos, lébētes gamikoí (lebetes nupciais) e figurinhas de terracota.

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O ritual de purificação: representação da passagem de menina a noiva


Por cerca de meio século, entre 480-70 e 430-20 a.C., alguns pintores se interes-
saram em registrar a loutrophoría, esse cortejo noturno para buscar a água do banho
de purificação junto à fonte Kallirrhóe. Essas cenas foram pintadas sobre o vaso cujo
nome o identifica com esse ritual, o lutróforo. Retratam um grupo de moças e
mulheres, amigas ou aparentadas da noiva, responsáveis por trazer o lutróforo com
a água lustral. Em um passo ao mesmo tempo ritualístico e festivo, o cortejo
avançava liderado por um garoto soprando aulós125, identificado como o paîs
amphithalēs, o menino que “floresce entre seu pai e sua mãe”, consoante a
explicação etimológica dos autores antigos. Não era uma figura secundária: era um
dos protagonistas, junto com os noivos, as mães e pais desses e a nymphēútria (a
acompanhante da noiva no ritual). O paîs amphithalēs representava ao longo do ritual
a função reprodutiva, auspiciando magicamente o nascimento de um filho para o
futuro casal. Devia ser o filho de um casal muito próximo da família da noiva, um
primo ou até mesmo irmão.
O lutróforo do Pintor do Banho, conservado no Museu Nacional de Atenas (Figura
8), traz alguns elementos para começarmos a abordar a representação iconográfica
da noiva. Nele vemos, à frente do cortejo, uma mulher com duas tochas, que alumia
o caminho da procissão noturna. Seguem-na duas crianças, o paîs (menino), com a
cabeça coroada com um stéphanos, soprando aulós, e a menina, responsável por
trazer o lutróforo. Um pequeno Eros alado voa na direção do vaso, evocando talvez,
conforme Kaufmann-Samaras (1996, p. 434, fig. 128, p. 440, nota 37), o amor que,
após o banho de purificação, desabrochará no corpo de menina moça, transfor-
mando-a em uma noiva. Atrás da menina com o vaso, vem a moça que devemos
identificar como a noiva: sua expressão tímida e introspectiva, seu olhar cabisbaixo
e ansioso quanto a seu futuro de esposa, caracterizam a imagem da noiva, que
titubeia entre os brinquedos da infância e o leito nupcial. Suspensa no campo, uma
guirlanda anuncia as festividades do casamento. Duas mulheres seguem a noiva,
uma delas com uma tocha (ZEVI, 1938, p. 353-4, fig. 5; REINSBERG, 1993, p. 51-2,
fig. 7; REEDER, 1995, p. 161-3).

125. Instrumento de sopro, composto por dois tubos, de osso, madeira ou metal, denominado por vezes flauta dupla, apesar de se
assemelhar mais ao oboé pelo uso da palheta dupla.

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Figura 8 – Loutrophoría: cortejo noturno para buscar água para o banho purificatório

Lutróforo. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1127/18) Atenas, Museu Nacional, 1453. Em torno de 430
a.C. (ZEVI, 1938, p. 353-4, fig. 5. CERQUEIRA, 2001, cat. 282). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Na representação da moça que se tornará noiva a partir do banho purificatório,


percebe-se a vontade do pintor de dar expressão aos sentimentos femininos e de
diagnosticar um estado psicológico introspectivo, de timidez e ansiedade diante da
grande reviravolta pela qual sua vida passará em poucos dias.

Representação da noiva no cortejo nupcial: a mudança de paradigma entre as


narrativas do século VI (figuras negras) e do século V a.C. (figuras vermelhas)
Entre os séculos VI e V a.C., verificamos uma mudança radical nos parâmetros para
representar o cortejo nupcial, que era a forma mais visível da transição existencial
pela qual passava a mulher: em poucos dias, transitava por três estágios sociais –
menina, noiva (nýmphē) e mulher (gynē). No século VI a.C., a pintura de figuras
negras narra um cortejo suntuoso, com quadriga, sem atenção especial à figura da
noiva, com interesse na representação de um espetáculo público, de modo a dar a
conhecer o novo casal. Predominam nessa ótica o reconhecimento social e os
sentimentos comunitários. A partir de meados do século V a.C., os pintores de
figuras vermelhas, principalmente os do estilo Clássico, desviam seu foco, passando
a interessar-se pela figura da noiva. Deixam transparecer, por meio de gestos,
posturas e vestes, uma visão da psicologia feminina diante do casamento, o qual
jogava uma imensa carga de cobranças sociais sobre as mulheres – mulheres-
-meninas, mulheres-moças, mulheres-esposas.
As cenas de cortejo com quadriga despertaram grande interesse entre os pintores
do século VI a.C., dando sequência à tradição inaugurada por Sóphilos e Kleitias
(SARIAN, 1999, p. 72-3, fig. 1-3; 1990). Nessa extensa série iconográfica, a música
aparece como um dos elementos principais, talvez como alusão ao tom festivo
espetacular: por via de regra, um citaredo, que se confunde com a figura de Apolo,

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destaca-se entre os personagens que escoltam a quadriga (Figura 9), representado


ao lado do casal de noivos levados pelo carro.

Figura 9 – Cortejo nupcial, com citaredo, liderado por um menino

Ânfora. Figuras negras. Exekias (Para 59/3). Nova York, Metropolitan Museum of Art, 17.230.14a-b.
Datação: 540-30 a.C. (CVA Metropolitan Museum of Art 4 (EUA 16) pr. 16-19.
CERQUEIRA, 2001, cat. 291). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Apesar de ser a cena da esfera nupcial mais representada, alguns autores rejeitam
sua validade para elucidar o ritual de casamento. Argumentam que reproduziriam
um modelo mítico, o cortejo nupcial de Tétis e Peleu. Coloca-se aqui uma questão
teórica central: como se posicionar entre uma interpretação humana ou mitológica?
Responder a essa questão importa para a legitimidade epistemológica do uso desse
registro para pensar os sentidos imanentes à representação da mulher na iconografia
do casamento na antiga Atenas.
Reflitamos um pouco. Muitas dessas cenas retratam episódios mitológicos conhe-
cidos pela tradição literária, como os casamentos entre heróis (Alceste e Admeto),
entre mortais e imortais (Peleu e Tétis), ou entre imortais (Poseidon e Anfitrite).
Reconhecemos uma narrativa mitológica de duas formas: por meio de inscrições
(Figura 10) ou de atributos, como o atum na mão do noivo, na ânfora de Berlim,
onde identificamos o casal Poseidon e Anfitrite (Figura 11). São exemplos de
referência efetiva a uma narrativa literária de fundo mitológico. Porém, a forma
de narrar iconograficamente o mito referencia-se em costumes nupciais atenienses.

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Figura 10 – Cortejo de Tétis e Peleu, Apolo citaredo e divindades olímpicas

Hídria. Figuras negras. Maneira do Pintor de Lisyppides (ABV 260/30). Florença, Museo Archeologico, 3790.
Datação: 520 a.C. (CVA Florença 5, III H, pr. 26.1-2; 28.1-2). Desenho: P. Faber.

Figura 11 – Cortejo de Poseidon e Anfitrite, escoltado por mulher tocando kithára

Ânfora de colo. Figuras negras. Grupo de Leagros. Berlim, Antikesammlung, F 1896. Final do século VI a.C.
(CVA Berlim 5, pr. 36. CERQUEIRA, 2001, cat. 286). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Por outro lado, em uma parcela desses vasos, representando cortejo nupcial, podemos
afirmar que o pintor registrou um episódio humano, de modo que as representações
deviam guardar relação com os rituais praticados. Quatro critérios nos apontam
essa identificação: o primeiro, as inscrições, é bastante seguro126; nos outros três:
a) atributos domésticos, b) comparação com a cena da outra face do vaso, e c)
função dos personagens (Figura 5), a interpretação sugere com muita probabilidade
que o pintor representou cenas nupciais inspiradas diretamente no cotidiano.
Mesmo nos vasos de abordagem humana, não devemos imaginar uma imitação
ilusionista da vida diária. Essas pinturas não são um documentário fotográfico, mas
uma representação que evoca uma experiência real. A referência a essa experiência
real não exclui, porém, idealizações do cotidiano feitas por meio de símbolos
evocativos de uma realidade mítica ou imaginária – essas idealizações, portanto,
não correspondem imediata e denotativamente a uma situação cotidiana. Poderia

126. Hídria. Figuras negras. Pintor de Lysíppides. Grupo de Londres B 339. “Potter probably Andokides” (ABV 264/1, abaixo). Londres,
Museu Britânico, B 339. Datação: 530-20. Descrição: Os noivos são identificados por inscrição como Lysíppides e Rodon.

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ser o caso, conforme a análise de Lissarrague (1993, p. 211-2), dos carros com
cavalos nas cenas de cortejo nupcial representadas pelos pintores da segunda
metade do século VI a.C. Nessa época, o uso desses carros limitava-se, conforme
esse autor, às corridas realizadas em festivais, não devendo participar de celebrações
diárias como festejos nupciais e atos fúnebres. A representação do carro, do mesmo
modo que a de um músico apolíneo, enalteceria a cena humana sustentando-a
sobre um paradigma mítico: o carro com cavalos ou o deus citaredo.
Na grande maioria dos vasos, porém, não temos condições de traduzir a intenção
do pintor: registrar uma cena diária ou representar uma narrativa mítica (Figuras
14 e 16a)? Esse é um dos pontos nos quais percebemos a mudança de modelos de
interpretação iconológica. Em grande parte das publicações mais antigas e até
mesmo em muitas atuais, como catálogos de museus ou exposições, os autores
tendem a identificar essas cenas – que se multiplicam a perder de vista pelas
coleções espalhadas mundo afora – com modelos mitológicos. Nas descrições mais
correntes, lemos “casamento de Tétis e Peleu” ou de alguma outra divindade.
Rejeitamos a necessidade de descrever estes personagens como figuras mitológicas,
em vez de simples figuras humanas, mortais. André Chevitarese denomina esse
modelo interpretativo como associação valorativa, pela qual se busca a identificação
de uma cena comum com uma grande tradição literária influenciada por temas
lendários ou míticos; este modelo implica negar que o pintor simplesmente retratava
uma cena cotidiana. Este modelo empobrece o potencial historiográfico e arqueo-
lógico das narrativas iconográficas, pois as refuta como registro da vida diária.
Chevitarese (2001) propõe que busquemos outro modelo de análise: a possibilidade,
quando o pintor não indica claramente o mito, de se tratar de referência a cenas
do dia a dia.
Compartilhamos a perspectiva desse autor: na ausência de atributos divinos, parece
mais acertado evitar um paralelo mitológico, optando por uma abordagem humana,
mesmo que idealizada, do matrimônio. Ora, até mesmo nas cenas mitológicas
encontramos referências da realidade concreta e não simples ilustrações de
tradições literárias. Por esse motivo, a perspectiva teórica de Chevitarese deve ser
combinada com a proposta de Ingrid Krauskopf, para quem muitos desses vasos
misturam elementos humanos e divinos, com o intuito de valorizar o momento
retratado, transpondo o casamento de uma esfera humana para uma esfera mais
elevada, a esfera mítica (KRAUSKOPF, 1977, p. 27-28). Os elementos mitológicos
inseridos em uma cena humana equivaleriam às citações míticas frequentes nos
cantos nupciais, registradas pela tradição literária. Nesses casos, quando o pintor

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fundia tipos humanos e tipos mitológicos, o mito estava a serviço da imagem, e


não o contrário, pois os pintores de vaso costumavam manipular os mitos e as
tradições literárias, não se preocupando em se manterem fiéis às versões dos poetas
(MORET, 1978, p. 80; SABETAI, 1997, p. 320 e 330), Desse modo, a presença de
elementos divinos não impõe por si só uma interpretação mitológica; sua presença
em um contexto predominantemente humano era uma forma de valorizar o vaso,
aumentando o interesse por ele.127 Assim, os elementos mitológicos não invalidam
uma interpretação histórica e cotidiana dessa iconografia, fornecendo referências
sobre práticas da vida diária.
Uma posição à primeira vista distinta da nossa é defendida atualmente por Viktoria
Sabetai: para ela, a) as cenas nupciais e de gineceu “não se refere[m] diretamente
a qualquer realidade objetivamente existente” e b) os pintores selecionariam ele-
mentos e etapas como referências visuais do conceito do casamento (SABETAI,
1997, p. 330-331).128 Concordamos em um ponto: o enorme potencial conotativo
dos componentes da iconografia do gineceu e do casamento, gerando um material
rico, do ponto de vista simbólico, para analisar o papel conferido à mulher no
casamento, bem como seus sentimentos. Todavia, entendemos que as imagens, ao
mesmo tempo em que agem conotativamente, têm também seu valor denotativo,
uma vez que a maioria de seus componentes (objetos, personagens e ações) se
inspira em experiências da vida real, mesmo que o pintor os confira um tratamento
metafórico, justapositivo e sinóptico. Não devemos buscar em vasos isolados descrições
de sequências narrativas coerentes e contínuas da vida real, pois o pintor não produz
um documentário para os historiadores e arqueólogos do futuro. É por meio de um
estudo sistemático, baseado ao mesmo tempo em uma interface com a documentação
textual, que podemos elencar referências à experiência cotidiana do casamento.
Aceitando esses pressupostos, o que nos ensina essa série iconográfica do cortejo
nupcial com quadriga? Em nosso estudo, analisamos apenas alguns casos,
escolhendo-os não pela sua expressão quantitativa, mas pelo seu valor elucidativo
dos sentimentos íntimos femininos frente às expectativas amorosas do casamento.

127. Já no século XIX, Cecil Smith (1893, p. 115) chamava a atenção para o “costume de acrescentar nomes mitológicos às figuras,
com o objetivo de aumentar o interesse pelo seu desenho”.
128. De acordo com a autora, as imagens não transcrevem eventos nupciais reais, pois a intenção do pintor seria “uma criação
simultânea e emblemática usando todos os elementos iconográficos que conotem a ideia do casamento”. Para tanto, o pintor
não reproduzia a sequência narrativa dos fatos reais, mas “criava cenas incorporando simultaneamente todos os elementos
que conotavam o casamento”, de modo que os incidentes individuais contidos nas imagens referiam-se ao casamento
como um todo.

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Na maioria das cenas mitológicas, identificadas por inscrições ou atributos, o músico


que escolta o cortejo é Apolo kitharōidós (Figura 12). A tradição literária ilustra sua
atuação, eventualmente acompanhado por musas, cantando e tocando kithára129 em
encontros e festas divinos. A presença de Apolo com sua kithára é completamente
previsível: conforme os versos de Píndaro (Nemésias, V, 23-5), Apolo canta o
hyménaios, passando o plêktron130 de ouro sobre sua phórminx131 de sete vozes.

Figura 12 – Cortejo nupcial de Tétis e Peleu

Cratera. Figuras vermelhas. Pintor de Peleu (ARV2 1038/1). Ferrara, Museo Nazionale, 2893 (T. 617). Em torno
de 430 a.C. (CVA Ferrara 1 [Itália 37] pr. 22.1-2. Cerqueira, 2001, cat. 285); Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Às vezes, no entanto, os pintores gostavam de surpreender: em uma cena indubi-


tavelmente mitológica, na qual o noivo Poseidon traz um de seus atributos, um
atum, não vemos Apolo tocando kithára, mas sim uma figura feminina. Essa figura
alude à possibilidade de mulheres tocarem instrumentos durante o cortejo
(Figura 11 e 16a), bem como em outros momentos da cerimônia, como as danças
nupciais132. São exemplos da intensa participação feminina nesses festejos, que
transcorrem na esfera familiar, sinalizando o papel desempenhado pelas mulheres,
dentro do casamento, na rotina familiar.
Em uma ânfora parisiense muito especial para nosso interesse, carregada de forte
conotação realista – percepção reforçada pela presença do paîs amphithalés diante

129. Instrumento de cordas, com caixa de ressonância com base plana, associado a Apolo. Era o instrumento de construção mais
complexa. Instrumento vinculado à música de concerto, ao profissionalismo musical e às procissões suntuosas.
130. Apetrecho musical usado para friccionar as cordas da lýra e a kithára, equivalente em sua função à atual palheta dos violonistas.
131. Denominação, de origem homérica, muito usada pelos poetas, de instrumento de cordas.
132. Cf. Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor de Syriskos (ARV2 261/19). Míconos, Museu, inv. 971. Datação: 500-490. (DUGAS,
1852, p. 9-11, nº 9, pr. 5-7). Descrição: Dança nupcial. Duas rodas em círculo em movimento oposto, com um personagem
tocando kithára. Segundo Dugas, moça, segundo Beazley, Apolo. A visualização direta da peça permitiu dar razão a Beazley,
segundo nossa interpretação, pelo fato do musicista ser a única personagem a não adornar a orelha com brinco.

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da quadriga –, a mulher que escolta o carro com um instrumento de cordas toca


um bárbitos133, em vez da kithára, mais previsível nesta série iconográfica134. Isso nos
parece absolutamente coerente com a popularidade desse instrumento nas cenas
de mulheres no gineceu, produzidas décadas mais tarde (Figura 13).

Figura 13 – Mulheres no gineceu: a noiva/esposa (?) toca bárbitos

Hídria. Figuras vermelhas. Pintor de Peleus (ARV2 1040/19). Atenas, Museu Nacional, 17918. Em torno de 440 a.C.
(MAAS, SNYDER, 1989, p. 121, col. 2, fig. 18 [cap. 5]. Cerqueira, 2001, cat. 315.1). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

A representação iconográfica da noiva no cortejo com quadriga revela que sua


figura é quase nula, indiferenciada. Seu único distintivo é o manto ou lenço que
cobre a cabeça, com o rosto a descoberto (Figuras 14, cf. 10 e 12). Sobressai o
conjunto dos componentes que constituíam, aos olhos da cidade, a cerimônia. Além
do casal de noivos, vemos: a nymphēútria (acompanhante da noiva); o músico,
associado a Apolo citaredo; o paîs amphitalēs (Figura 9), menino que remete à ideia
de fecundidade; o proēgētēs, que conduz o cortejo pelas ruas até a casa do noivo,
associado à figura de Hermes (Figura 16a); e a mãe do noivo aguardando o casal
(Figuras 10135), eventualmente associada à figura da deusa Héstia, significando a
efetividade da ékdosis, a transferência legal e espiritual da noiva à casa e pátrio
poder do pai do noivo. Enfim, os pintores de figuras negras interessam-se mais pelo
conjunto da significação social do casamento, como instituição asseguradora da
preservação da propriedade, da ordem patriarcal e da preservação da hegemonia
jurídica da categoria cidadã. Não nutrem interesse pelas individualidades; não há
foco algum na psicologia da noiva ou de qualquer outro personagem feminino.

133. Instrumento de cordas (7), semelhante à lýra, com braços longos e som mais grave, com caixa de ressonância em forma de
tartaruga. Com origem na Ásia Menor, sua introdução em Atenas é atribuída ao poeta Anacreonte e associado também à
poetisa Safo.
134. Cf. Ânfora. Figuras negras. Sem atribuição. Paris, Louvre, F 207 (Campana 183). Em torno de 520 a.C. (CVA Louvre 3 [França 4]
III H e, pr. 22.1 e 4. CERQUEIRA, 2001, cat. 293). Descrição: Cortejo nupcial, liderado pelo pais amphithales.
135. No sistema iconográfico de cortejo a pé, vemos a figura da mãe nas Figuras 16b e 17.

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Figura 14 – À direita, detalhe: lenço cobre cabeça da noiva;


cortejo nupcial mítico (Tétis e Peleu) ou humano

Hídria. Figuras negras. Pintor de Príamo. (ABV 333/25) Oxford, Ashmolean Museum, 1965.108. Em torno de 510 a.C.
(CVA Oxford 3 [Grã-Bretanha 14] pr. 37.7-8; pr. 39.3-4. CERQUEIRA, 2001, cat. 289). Desenho: P. Faber.

Diferentemente dos pintores de figuras negras, os pintores de figuras vermelhas


interessaram-se pela nymphagōgía a pé. As cenas de cortejo nupcial com quadriga
tornaram-se menos comuns no século V a.C. Essa mudança de perspectiva
acompanha uma mudança dos sentimentos envolvidos no casamento. O gosto dos
pintores do século VI a.C. pelo cortejo festivo traduzia o mesmo sentimento da
tradição épica, presente no “Escudo de Aquiles” (Homero, Ilíada, XVIII. 490sq) e
“Escudo de Héracles” (Hesíodo, Escudo, 272-80). No drama “Alceste”, de Eurípides,
o interesse está focado mais nos sentimentos privados do que no sentimento
público. Tudo indica que o casamento passa a ser tratado pelos pintores por uma
ótica mais psicológica.
A preferência pelas cenas de condução da noiva pela mão reflete essa mudança,
como observamos em um lutróforo do Pintor do Banho (Figura 15): o noivo segura
a noiva pela mão com ternura, descaracterizando o gesto de violência do modelo
importado do esquema iconográfico do rapto; a noiva, cabisbaixa, mantém a timidez
e insegurança da menina moça, vacilante quanto a seu futuro de mulher; a nymphēútria
segura o braço da nubente, forçando-a a prosseguir seu destino (KAUFMANN-
SAMARAS, 1996, p. 445; REINSBERG, 1993, p. 58-59). Entre o noivo, que a puxa
pela mão, e a nymphēútria, por trás, que a empurra, fica conotada a relutância, a
insegurança da noiva perante seu destino, diante do abandono do mundo de
menina. Contudo, o pintor soube representar a construção de uma confiança entre
os noivos: o jogo de olhares entre eles é bastante expressivo, traduzindo os
sentimentos que se projetam entre ambos. Esse vaso traz outro componente novo,
ausente da iconografia de figuras negras: a presença de Eros, tocando aulós, entre
os noivos, simbolizando as promessas amorosas do relacionamento que se inicia.
Esse pequeno Eros substitui o músico citaredo responsável pela execução do

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hyménaios no cortejo. Para Zevi, essa substituição corresponde à tendência de


afastamento do realismo, que se acentua a partir do terceiro quartel do século V
a.C. (ZEVI, 1938, p. 361-363).

Figura 15 – Noivo conduzindo noiva pela mão, em presença de Eros (atenção à troca de olhares)

Lutróforo. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1127/14; Para 453). Atenas, Museu Nacional,
214895 (1174). Datação: 430-20 a.C. (KAUFMANN-SAMARAS, 1996, p. 445, fig. 138;
CERQUEIRA, 2001, cat. 295). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

A noiva tem a cabeça parcialmente coberta por um lenço, o que traz, perante o
público, um resguardo de dignidade inerente à condição de virgem. Zevi vê na
solenidade e gravidade da expressão dos partícipes do cortejo uma atitude
conveniente a uma iniciação mística, modo como o matrimônio era visto pelos
gregos. Não identifica uma linguagem iconográfica atenta à individualidade e
sentimentos (ZEVI, 1938, p. 362-363).
Em alguns casos, o pintor apresenta, de forma justaposta, o ritual que devia
anteceder a partida dos noivos, ao final do banquete: a retirada do véu. Com
conotação religiosa, tratava-se de um momento crucial para os sentimentos da
noiva, que passava a ser vista não mais como uma menina, uma párthēnos (virgem),
mas como uma nýmphē, preparada para assumir sua futura função de gynē, de mãe
e esposa. O ritual foi assunto de uma píxide de meados do século IV a.C, em que
um jovem Eros se encarrega de retirar o véu da noiva136.

136. Cf. Píxide. Figuras vermelhas. Sem atribuição. Berlim, Staatliche Museen, Antikesammlung, 3373. Em torno de 360 a.C.
(REINSBERG, 1993, p. 58-59, fig. 14a-c; CERQUEIRA, 2001, cat. 296). Descrição: Preparativos e festejos nupciais. Ritual de
anakalyptēría, observável no detalhe de Eros retirando o véu da noiva.

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Alguns pintores registraram o momento final do traslado da noiva: a chegada do casal.


Para efetivar religiosamente sua transferência ao novo domínio, a noiva cumpria
procedimentos ritualísticos junto ao altar doméstico (Figura 18), sendo depois
recepcionada pela mãe de seu esposo em sua nova casa (Figuras 16b, 17 e 18).
Uma kýlix de Berlim (Figura 16a-b) apresenta de forma complementar as narrativas
míticas e cotidianas, ao mesmo tempo em que representa os dois modelos – ou
dois momentos – da nymphagōgía. De um lado, o cortejo nupcial de Anfitrite, com
quadriga (Figura 16a). De outro, a chegada ao futuro lar: o noivo traz pela mão a
noiva, seguida pela nymphēútria ou mãe da noiva, com uma tocha (Figura 16b). A
estrutura com coluna dórica, arquitrave e porta, sugere a casa. Entre a coluna e
a porta, a mãe do noivo, com duas tochas portadoras de significação lustral e
apotropaica, recepciona o casal. A cabeça da noiva continua coberta pelo manto,
trajar distintivo de sua posição transitória.

Figura 16a-b – Face A: final de cortejo nupcial (identificação mitológica: Tétis e Peleu?),
mulher tocando kithára / Face B: chegada dos noivos (identificação humana?),
mãe do noivo e jovem com lyra ´

´ Figuras vermelhas. Pintor de Anfitrite (ARV2 831/20). Berlim, Staatliche Museen, F 2530.
Kylix.
Final da primeira metade do século V a.C. (CVA Berlim 3 [Alemanha 22] pr. 101.1-4; SARIAN, 1990,
n. 45 [face B]. CERQUEIRA, 2001, cat. 294) Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Na frente da casa, um garoto, com coroa de louros, toca lýra137. Diferentemente do


músico que acompanha o cortejo, que em geral toca kithára e usa vestimentas
sofisticadas (Figura 11 e 12), esse jovem, provável parente próximo, veste um
simples manto, assim como os outros que tocam aulós no ritual de loutrophoría (Figura
8) ou na recepção de chegada do novo casal (Figura 17).
A sequência condução da noiva – chegada à casa do noivo repete-se em um lutróforo
de Copenhague (Figura 17). Vemos a chegada ao novo lar, cujo espaço arquitetônico
está indicado por uma coluna dórica com arquitrave. Com a atitude titubeante da

137. Instrumento de cordas, com caixa de ressonância em forma de carapaça de tartaruga, dois braços e um jugo de madeira, ao
qual se fixavam as cordas, em número usual de sete. Associado a Apolo, aos meninos e à vida escolar.

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menina que abandona seus brinquedos para assumir a vida de esposa, a noiva vem
cabisbaixa, introspectiva, como se temesse seu futuro. Respirando o modelo do
rapto da noiva, segue contrariada, a nymphēútria empurrando-a, por detrás, com as
mãos na cabeça e nas costas, enquanto o noivo a puxa pela mão.

Figura 17 – Recepção da noiva na casa dos pais do noivo

Lutróforos. Figuras vermelhas. Maneira do Pintor de Sabouroff (ARV2 841/75). Copenhague, Museu
Nacional, 9080. Pouco anterior à metade do século V a.C. (CVA Copenhague 8 [Dinamarca 8]
pr. 341.2a-c; pr. 342.1a-b; CERQUEIRA, 2001, cat. 298). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

À direita do noivo, encontra-se a coluna, que sustenta uma estrutura retangular,


delimitando o espaço da residência: fitas ornamentam o ambiente, registrando a
ocasião especial. No interior, dois personagens: uma mulher de pé, com duas tochas,
seguramente a mãe do noivo; e um jovem, confortavelmente sentado sobre um
klismós (cadeira de espaldar alto), tocando aulós. Esse lutróforo de Copenhague
reproduz a cena da kýlix supracitada do Pintor de Anfitrite: a chegada dos nubentes,
recepcionados pela mãe do noivo, a noiva mantendo a cabeça coberta com lenço.
Em uma píxide de Londres (Figura 18), encontramos o elemento religioso. Na
chegada à sua nova casa, a noiva pratica uma deferência ao altar-lareira antes de
ser levada ao quarto. Os sacrifícios praticados diante do altar-lareira da família do
noivo marcam sua transição espiritual do domínio de seus antepassados paternos
aos antepassados paternos de seu noivo, ou seja, seu traslado ao poder marital.
Figura 18 – Chegada: destacam-se a Héstia e o altar-lareira da casa do noivo

Píxide. Fundo branco policromado. Sem atribuição. Londres, Museu Britânico, D 11. Datação: 460-
50 a.C. (SARIAN, 1999, p. 78, fig. 10; CERQUEIRA, 2001, cat. 297). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

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Reproduzindo o esquema iconográfico do rapto, o pintor concebeu um sistema de


representação da agōgē a noiva da casa de seu pai à dos pais do noivo. A noiva –
vestindo quíton plissado, envolvida em um manto vermelho que cobre todo o corpo,
inclusive um lenço branco que protege parcialmente a cabeça – prossegue, levada
rumo à sua nova vida, submissa ao noivo, que a carrega pela mão. Participam ainda
um menino tocando aulós, e, à frente, a mãe da noiva, com duas tochas acesas.
Contrastando com a agitação e ansiedade desses quatro personagens envolvidos
na cerimônia, temos, à direita da mãe, uma única figura tranquila, uma figura central,
apoiada sobre um cetro de ouro, que Sarian identifica como a deusa do altar-lareira,
Héstia, “em toda sua majestade, segurando o cetro na mão esquerda e uma fruta
na direita”, um figo (SARIAN, 1999, p. 78, fig. 10). Conforme Zevi, figos, tâmaras e
nozes eram atirados na noiva, durante o katakhýsmata, ritual de iniciação da noiva
diante do altar-lareira, que consistia em um sacrifício expiatório à divindade
doméstica (ZEVI, 1938, p. 361). Entre Héstia e a mãe está o altar com lume aceso,
sobre cuja superfície escorrem manchas deixadas pelo sacrifício realizado.
No canto esquerdo da cena, vemos uma figura feminina estacionária, que não
acompanha o cortejo, parecendo abandonada pelo casal de noivos. Trata-se,
conforme Zevi, da Héstia pátria da esposa, deusa do altar-lareira da casa do seu
pai. A casa paterna da noiva está simbolizada pela Héstia da esquerda; o futuro lar
do casal pela da direita. Como bem analisa Zevi, “com uma mesma síntese, o artista
reuniu em uma figura as recordações de menina da noiva, e, em outra, aquilo que
lhe reserva o futuro” (REINSBERG, 1993, p. 62, fig. 18a-c).
A píxide era um recipiente doméstico feminino para guardar pequenos pertences.
A presença dessa temática, em um objeto por excelência feminino, deve reforçar a
significação existencial do desfecho do ritual: a transferência da noiva ao poder da
casa paterna do noivo. A posição cabisbaixa indica uma atitude desejada de submissão,
mas ao mesmo tempo remete à posição tímida, insegura, diante da rápida transição
entre o passado de menina e o futuro de mãe e esposa.

Continuidades e rupturas na representação do casamento: componentes místico-


-religiosos e psicológicos
O conjunto da série iconográfica do traslado da noiva guarda continuidades e
rupturas. As cenas de figuras negras, de cortejo nupcial com quadriga, e de figuras
vermelhas, de nymphagōgía a pé, bem como de outras etapas (anakalyptēría, rituais
diante do altar doméstico e chegada à casa), guardam quase sempre algo em
comum na representação da noiva: a cabeça coberta por um lenço.

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Por outro lado, temos muitas mudanças. Uma delas é a introdução da figura de
Eros, em substituição à do paîs amphithalés, que, conforme Zevi, corresponde à
tendência de menos realismo e mais idealização, aguçada na iconografia a partir
do terceiro quartel do século V a.C. Calame, porém, vê outro sentido: a presença
de Eros corresponderia a uma promessa de reciprocidade afetiva no casamento
(ZEVI, 1938, p. 362-363). Não vemos incompatibilidade entre essas duas pers-
pectivas: o olhar atento para o ritual e o místico, da análise de Zevi, não anula a
perspectiva aberta por Calame, de perceber expectativas de sentimentos amorosos
femininos que nos levam a detectar na pintura do final do século V a.C. certa
atenção pela psicologia feminina.
O componente místico e religioso das cenas de nymphagōgía a pé, destacado por
Zevi, era reforçado pela simbiose entre o humano e o divino. Essa simbiose pode
ser constatada, por exemplo, em aspectos referentes ao culto dos antepassados
que a noiva devia prestar diante do altar da família de seu noivo, antes de ingressar
em seu novo lar. Assim, o pintor deixa transparecer as crenças e convenções
religiosas envolvidas no ato cerimonial de aceitação da noiva à sua nova casa. Esses
componentes religiosos são apresentados ou pela presença de um altar ou da
divindade Héstia, deusa identificada com o altar-lareira. A divindade pode ser
representada de forma inconfundível, com seus atributos, como o cetro (Figura 18),
e diante do altar, ou de forma simbiótica, confundindo-se com uma figura humana.
É o que ocorre na kýlix do Pintor de Anfitrite (Figura 16b), na qual a figura feminina
recepcionando os nubentes na porta da casa exerce a função da mãe do noivo; no
entanto, o pintor colocou em suas mãos duas tochas, atributo iconográfico que leva
Sarian a identificar a figura de Héstia dadófora (SARIAN, 1999, p. 72-3, fig. 1-3;
1990, n. 45). A assimilação da mãe do noivo à Héstia porta-tochas faz sentido na
função atribuída a essa divindade nos atos religiosos do matrimônio, seguindo uma
longa tradição gráfica que remonta às pinturas de Sóphilos e Kleitias, dos anos 80
e 70 do século VI a.C.

Reflexões: sentimentos femininos contraditórios suscitados pelo


casamento – expectativa de reciprocidade amorosa e insegurança face
à vida conjugal
Ao lançarmos sobre a iconografia do casamento a pergunta sobre a percepção dos
sentimentos íntimos femininos, vinculados às expectativas amorosas diante da vida
matrimonial, propomos enxergar algo que a historiografia consagrada refuta: a
existência de sentimentos afetivos recíprocos entre marido e mulher.

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A leitura das evidências escritas e arqueológicas tem confirmado a interpretação


de que a mulher é um ser absolutamente passivo, oprimido e secundário nas relações
de gênero e idade implicadas na vida cotidiana familiar e marital. Claude Calame,
contudo, encontra evidências poéticas de que os laços amorosos poderiam atingir
expectativas de reciprocidade. Porém, encontramos indicativos de que a menina viveria
momentos de intensa insegurança face à sua futura vida conjugal, titubeante entre
as alegrias e brincadeiras da infância e as responsabilidades de esposa e mãe. Dentro
do formato institucional grego, a aproximação entre noivo e noiva não resultaria
de um namoro, mas de um jogo de interesses acertado entre os patriarcas das duas
casas, das duas famílias, que, por meio da engýesis, definiam o futuro da menina.
Contudo, a iconografia e a literatura nos apontam uma mudança na representação
do casamento e sentimentos amorosos. A pintura vascular ática de figuras negras
do século VI a.C., sobretudo na série iconográfica do cortejo nupcial com quadriga,
não traduz sentimentos individuais, preocupando-se, outrossim, com o reconheci-
mento social do novo casal. Trata-se de uma série iconográfica amplamente
disseminada, na segunda metade do século VI a.C., influenciada por modelos
míticos, que traduz a persistência da emulação aristocrática em meio à ascensão
do espírito coletivo da pólis, que pouco a pouco avançava sobre a ordem tradicional.
Interessava, por meio de atributos emblemáticos, legitimar a instituição matrimonial.
Na segunda metade do século V a.C., os pintores de figuras vermelhas criam novas
narrativas visuais sobre o casamento. Pouco atraídos pelo cortejo nupcial, optam
por outras etapas dos festejos: a loutrophoría; a agōgē (condução) da noiva a pé,
puxada pela mão do noivo; a chegada à sua futura casa, recepcionada pela sogra;
o altar familiar; ou as danças nupciais na casa do pai do noivo. No entanto, é preciso
ressaltar que esses pintores, mais do que enriquecer o repertório iconográfico,
incluindo outros tipos de cena e assuntos, introduzem um novo olhar na represen-
tação do casamento: agora, podemos perscrutar um universo de individualidades,
antes invisível; podemos perceber, no jogo de olhares, gestos e posições, o anúncio
de uma psicologia antes escondida, a psicologia feminina.
Podemos vasculhar essa representação da intimidade por dois caminhos, que
desvendam duas ordens de sentimentos íntimos femininos diante do casamento:
de um lado, a incerteza e a dúvida diante do desconhecido; de outro, uma atmosfera
reveladora de expectativas de reciprocidade amorosa na vida conjugal.
A ideia proposta por Calame de que possa haver sentimentos recíprocos no casa-
mento grego exige de nós repensarmos o que entendemos pelo relacionamento

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entre os gêneros feminino e masculino na Grécia, sobretudo no interior da categoria


dos cidadãos, baluarte da moral vigente e hegemônica.
O ideal de reciprocidade matrimonial pode ser encontrado em um texto que registra
os votos de felicidade aos noivos:
Jovem esposo, as doces Graças te acompanhem: a amável
Harmonia queira honrar tuas núpcias. Cara esposa,conhece
uma grande felicidade ininterrupta: tu encontraste um
marido de qualidade, sim, de qualidade. Que Deus vos
conceda agora de viverdes no bom entendimento e de
terdes muitos filhos, e filhos de vossos filhos, e de alcan-
çardes a extrema velhice (Papiro da Biblioteca John Rylands,
nº 1829 Pack2 = XXV, p. 85 Heitsch).

Um dos elementos novos nas cenas vinculadas ao casamento é a presença de Eros.


Nas cenas de gineceu, registrando os preparativos nupciais e a epaulía (comemo-
ração de entrega de presentes à noiva, após a noite de núpcias), os pintores
retratam a noiva em um contexto recorrente de atributos: a) com algum instrumento
musical (o aulós, a lýra, o bárbitos, a phórminx e o trígōnon); b) em presença da figura
de um Eros alado, em tamanho reduzido ou natural, levando um stéphanos (coroa
de folhas) ou um instrumento musical; e c) em meio a mulheres com objetos domés-
ticos comuns (espelhos, tecidos e cálatos, usados para enrolar os novelos) ou
presentes especiais (cofres, caixas). A ligação de Eros e da música com o contexto
das cerimônias nupciais está evidenciada no fato de que nos mais antigos exemplares
em que encontramos essa alegoria do amor no gineceu, Eros aparece acompa-
nhando a performance de instrumentos musicais ou mesmo levando instrumentos
(GREIFENHAGEN, 1957, figs. 8-12, 18, 20, 22). Segundo Erika Kunze-Götte, essa asso-
ciação entre Eros e a música como alusivos ao casamento deve-se ao tratamento
mais psicológico e intimista que os pintores da segunda metade do século conferem
aos sentimentos, pois a música evoca a dimensão interior (KUNZE-GÖTTE, 1957, p. 47).
Eros é o personagem divino mais frequentemente associado ao casamento. Para
Bundrick (2000, p. 51), incorpora a ideia de casamento. Segundo Kunze-Götte, seria
o deus da festa do casamento. Para ela (1957, p. 59), Eros seria responsável por
fazer a música sair do serviço das musas, transferindo-a para o serviço do amor.
Para Calame (1996, p. 134-6), a figura de Eros institui uma relação de confiança
recíproca, mostrando que cabiam nas relações amorosas envolvidas no casamento
os laços de philía e que era possível combinar o desejo sexual e o compromisso formal
da união matrimonial, diferente da visão do casamento como total aniquilamento

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sexual e afetivo da noiva, defendido, por exemplo, por Eva Keuls (1985, p. 41).
O aspecto mais ousado nestas novas narrativas é a visibilidade conferida ao convívio
entre os diferentes sexos em ambiente doméstico. A iconografia do século VI a.C.
já apontava a possibilidade de moças da família dos noivos atuarem como musi-
cistas nos cortejos. Na iconografia do século V a.C., em vários momentos das
comemorações nupciais vemos o entrosamento, no ambiente familiar, por ventura
da prática musical, entre indivíduos de ambos os sexos da categoria dos cidadãos,
algo via de regra evitado na vida social ateniense. Meninos, tocando aulós ou lýra,
participam, junto com meninas e rapazes, moças e mulheres, de momentos distintos
dos festejos nupciais, como a loutrophoría, a nymphagōgía e a recepção da noiva. Os
membros jovens da família, independente do gênero, colaboraram com os festejos.
Da mesma forma, mulheres bem-nascidas, jovens ou adultas, noivas, amigas ou
esposas, tocam instrumentos musicais em distintos momentos da festa: na anakalyptēría
e na nymphagōgía, o aulós; nos cortejos com quadriga, a kithára ou bárbitos; nas
danças nupciais, a lýra; na epaulía, o trígōnon (harpa triangular).
Existe um detalhe instigante em algumas cenas no gineceu: a presença de rapazes
nesse recinto doméstico que resguarda a honradez das mulheres bem-nascidas
(Figura 19). Timidamente colocados em segundo plano, não têm a atitude da visita
ao prostíbulo. Nunca trazem uma bolsa de dinheiro, não tomam a iniciativa do
assédio ou abordagem: como coadjuvantes e não como protagonistas, na espreita,
apoiam-se sobre um cajado, atrás do espaldar de uma cadeira.
Figura 19 – Competição de dança em armas no gineceu;
detalhe da cena: rapaz no ambiente feminino

Hídria. Figuras vermelhas. Grupo de Polygnotos (ARV2 1060/144). Florença, Museo Archeologico,
4014. Datação: 440-30 a.C. (CVA Florença 2 [Itália 13] III I c, pr. 57.4; 59.1-6.
CERQUEIRA, 2001, cat. 338). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

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Figura 20 – Rapaz apoia mão no ombro da moça, que toca aulós no gineceu, diante de Eros com lyra

Hídria. Figuras vermelhas. Pintor de Duomo. (ARV2 1119/29) Londres, Museu Britânico, E 191. Em torno de 440
a.C. (CVA Museu Britânico 6 [Grã-Bretanha 8] III I c, pr. 86.2. CERQUEIRA, 2001, cat. 326).
Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Sobre uma hídria londrina (Figura 20), vemos um rapaz. Recatadamente, posiciona-
se atrás da cadeira, sobre a qual está sentada a moça, que toca aulós. Coloca sua
´
mão sobre o ombro dela, permitindo-se um toque físico alusivo à dimensão erótica
do amor que se estabelecerá entre os noivos, enquanto Eros, reforçando o
simbolismo de expectativas amorosas, com uma lýra na mão, aproxima-se da aulētrís,
provavelmente a noiva.
Sobre uma enócoa ateniense do último quartel do século V a.C. (Figura 21), a
abordagem idealizadora do amor entre os noivos é tratada de forma mais evidente:
a moça está sentada tocando bárbitos, enquanto um jovem com uma lança conversa
com um pequeno Eros alado, posicionado entre ele e a moça.

Figura 21 – Moça toca bárbitos, diante de Eros abraçado a jovem com lança

Enócoa. Figuras vermelhas. Sem atribuição. Atenas, Museu Nacional, 1263. Datação: 420-10 a.C.
(MAAS; SNYDER. 1989, p. 118; CERQUEIRA, 2001, cat. 329). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

A lança lembra a efebia (ritual de passagem masculino voltado à formação militar


do jovem cidadão) e a condição de hoplita (soldado), fato marcante nos primeiros
anos de casamento das moças, tão frequentemente representadas com dignidade

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nas cenas de despedida de guerreiro. Sobretudo nesses anos sombrios que se


seguem ao fracasso da paz de Nícias (firmada com Esparta em 421 a.C.), época
em que foi produzida essa enócoa, a Guerra do Peloponeso devia tornar mais
marcante a associação do noivo à lança, que simbolizaria aí a angústia e as saudades
da noiva pelo seu esposo ausente por motivos de guerra. A presença do jovem,
a noiva representada como musicista, a intermediação de Eros – todos esses
elementos são coerentes, dentro da iconografia ática de finais do século V a.C.,
com a tendência a idealizar a realidade. Tendência que, no caso dessas cenas com
conteúdo nupcial, acompanha uma mudança do sentimento e da abordagem do
casamento: por um lado, aumenta a consideração pelos sentimentos femininos; por
outro, as relações são apresentadas de um ponto de vista mais intimista, insinuando
uma realidade psicológica ausente da iconografia até o advento do estilo Clássico.
Essa realidade psicológica é apreendida pelos poetas, por meio de narrativas visuais
muito originais e criativas. Um dos vasos mais interessantes é uma píxide do Pintor
do Banho (Figura 22), conservada em Würzburg, que, em uma cena de gineceu,
retrata uma mulher tocando trígōnon, durante os preparativos para o casamento.
A participação cênica dos Erotes representados é bastante instigante, pela sua
simbologia: um pequeno Eros se aproxima da noiva. Outros dois Erotes lutam,
observados por duas figuras femininas.

Figura 22 – À esquerda: noiva e Eros / À direita, detalhe: dois Erotes lutando;


narrativa sinóptica de preparativos nupciais

Píxide. Figuras vermelhas. Pintor do Banho (ARV2 1133/196). Würzburg, Martin von Wagner Museum, 541
(H 4455). Em torno de 420 a. C. (CVA Würzburg 2 [Alemanha 46] pr. 33.4; 34.1-5; 35.1-8.
CERQUEIRA, 2001, cat. 333). Desenho: F. Vergara Cerqueira.

Ao longo da circunferência da píxide, o pintor descreve uma narrativa bastante rica,


dividida em dois grupos. No primeiro, está representada a noiva sentada sobre a
cama, ajeitando o seu cabelo. À sua esquerda, vemos um pequeno Eros voando em
sua direção, levando na mão estendida um stéphanos. A cama está flanqueada por

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duas mulheres: a da esquerda vestindo um péplos, a da direita trazendo um lutróforo.


O gesto de ajeitar o cabelo, o vestido e o lutróforo, assim como a coroa festiva
trazida por Eros, são todos indicativos de que a moça se prepara para o casamento.
No centro do segundo grupo, vemos um par de Erotes lutando, o da direita ataca,
o da esquerda se defende. A luta está sendo observada por duas figuras femininas,
uma de cada lado: a da esquerda está de pé, com um cetro – a parte superior do
corpo está perdida; a da direita está sentada sobre um klismós, seu cajado está
encostado no espaldar. São identificadas como deusas, portadoras de cetro. À direita
delas, duas mulheres: a primeira de pé, junto a um banco; a segunda, sentada, tocando
trígōnon. Uma coroa de folhas, no campo, e um cesto de lã, no chão, separam as duas
cenas (BUNDRICK, 2000, cat. 76, fig. 34).
Trata-se de um vaso em que o mítico e o humano se avizinham: com frequência
interpretou-se a mulher junto ao leito da noiva (à esquerda) realizando um estranho
gesto, como Afrodite, identificando-se o gesto como um signo de epifania. Os ele-
mentos humanos, como as mulheres trazendo presentes e a musicista tocando
trígōnon, não especificam necessariamente os preparativos de um casamento humano,
haja vista os elementos serem os mesmos dos divinos. Seria possível que se
tratasse do casamento de Helena? Sem inscrições, essa interpretação não passa
de conjectura. Ora, humano ou divino, os elementos iconográficos são os mesmos.
Qual seria o significado da luta entre os dois Erotes, observados pelas duas figuras
femininas com cetro? Erika Simon, observando que o Eros da esquerda é mais fraco
e o da direita mais forte, propõe que o da esquerda, na defesa, mais fraco, evocaria
o passado de menina; o da direita, por sua vez, no ataque, mais forte, evocaria o
futuro inelutável da passagem para a vida adulta, à qual ela é introduzida pelo
casamento. A noiva sentada próxima ao Eros mais forte traja roupas de uma mulher
casada, enquanto a outra, próxima do mais fraco, veste-se como menina. Assim, a
luta entre os Erotes simboliza o conflito entre os sentimentos de menina e mulher,
já presentes nos poemas de Safo, datados do final do século VI a.C. (SIMON, 1972,
p. 20-26, pr. 6.1-3).

Conclusão: a descoberta da psicologia feminina pela poesia imagética


dos pintores áticos
A presença do jovem no gineceu constrói, iconograficamente, em linguagem
idealizada, a expectativa de reciprocidade, que é uma resposta estabilizadora ao
drama psicológico da insegurança da moça, titubeante entre o passado de menina

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e o futuro de esposa-mãe. Desse modo, os pintores de vaso de figuras vermelhas


da segunda metade do século V a.C., ao desvendarem sentimentos íntimos da
psique feminina diante do casamento, interpretam-na como um drama paradoxal:
de um lado, o temor e a insegurança; de outro, a expectativa de amor recíproco e
sincero, a confiança, olho no olho, de que o jovem noivo será o philós (amigo) seguro
e afetuoso da sua vida futura de esposa e mãe.
Que razões os levaram a essa mudança de abordagem? A tendência a abordagens
idealizadas? A maior importância da mulher no cenário ateniense interno, durante
a Guerra do Peloponeso, dado o afastamento e a morte de boa parte da população
masculina em idade de adulto jovem? A maior participação das mulheres entre o
público consumidor de vasos, em decorrência dessa inversão demográfica? Uma
simples tendência poética acompanhada pelos pintores verificável, por exemplo,
em tragediógrafos como Eurípides, conferindo um papel mais relevante às mulheres
em suas narrativas? A crise da pólis ateniense decorrente da guerra, que se
traduziria em abordagens iconográficas mais individualizantes?
Bem, é possível que essas hipóteses procedam, pois correspondem a fatores
relevantes na conjuntura da segunda metade do século V a.C. No entanto, nenhum
destes fatores dá conta de explicar algo inerente à própria linguagem artística: a
sensibilidade dos pintores para adentrarem a alma feminina, auscultando seus mais
íntimos sentimentos. E é isso que nos interessa neste estudo: a descoberta da
psicologia feminina pelos pintores áticos, mostrando-nos um mundo não indiferente
às mulheres, por meio de imagens portadoras de intensa força poética. Portanto,
uma poesia visual que interpreta, metaforicamente, a alma e os sentimentos
amorosos da mulher.

Abreviações:
ARV2 = BEAZLEY, J. D. Attic Red-figured Vase-Painters, v. 1 e 2. 2.ed. Oxford: Clarendon
Press, 1963.
CVA = Corpus Vasorum Antiquorum. Union Académique Internationale.
LIMC = Lexicon Iconographicum Mithologiae Classicae. Union Académique
Internationale, Bruxelas; Conseil Internationale de la Philosophie et des Sciences
Humaines, Paris; Association Internationale d’Études du Sud-est Européen, Bucarest;
UNESCO, Paris. Genebra: Artemis Verlag, 8 volumes, 1981-1995.
ABV = BEAZLEY, J. D. Attic Black-figure Vase-Painters. Oxford: Clarendon Press, 1956.

115
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Add2 = BEAZLEY, J. D. Addenda: additional references to ABV, ARV2 & Paralipomena


(Thomas H. Carpenter): Beazley Archiv. The British Academy. Oxford: Oxford
University Press, 1989. (incorpora Add1).
Para = BEAZLEY, J. D. Paralipomena: additions to attic black-figure vase-painters and
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Capítulo VI

Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos, dos gregos aos modernos:
desnaturalizando noções, diversificando a homo/heterossexualidade138,139

Fazendo este exercício de desconstrução das coisas que estão naturalizadas, eu


gosto de contar uma história que é engraçada, assim, para nós gaúchos, pois no
Rio Grande do Sul tem esta cultura pampiana em que o cavalo é um referencial
simbólico fortíssimo e toda a cultura do gaúcho entrelaça-se ao vocabulário
relacionado ao cavalo. E o cavalo é um símbolo de virilidade. Daí essa construção
cultural que vincula o gaúcho-macho e o cavalo: conhecer cavalo, andar a cavalo,
é tudo prerrogativa da figura do homem pampiano.
Pois bem, no pensamento científico grego antigo, no que concerne a medicina,
havia um determinado raciocínio, que explicarei depois, sobre o que se entendia
por saúde. O médico Hipócrates de Cós buscava explicações científicas, dentro dos
padrões científicos da época, para os comportamentos e doenças. Um problema

138. Artigo publicado originalmente na Métis, Revista de História e Cultura da Universidade de Caxias do Sul, vol. 10, n. 20, p. 53-
78, 2011, sob o título “Sobre efeminação e virilidade, a Grécia vista do pampa”. Texto elaborado a partir da palestra
apresentada na I Jornada Homoerotismo e Diversidade, realizada em novembro de 2011, no Instituto de Ciências Humanas
da UFPel. Na adaptação da palestra, procurou-se manter a cadência discursiva de uma apresentação oral.
139. Agradecimentos: sou grato aos meus alunos Gabriela Rosselli, pela gravação da palestra, e Fabiano Pretto Neiss, pela paciente
degravação do texto. Agradeço, ainda, ao colega Renato Pinto, pela leitura do texto, e, principalmente, pelo ambiente fértil e
bem-humorado de trocas intelectuais sobre homoerotismo e diversidade, no mundo antigo e contemporâneo. Porém, os
argumentos expostos neste artigo são de responsabilidade do livre pensar deste autor.

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que ele procura entender é o que justificava que entre os citas houvesse uma
ocorrência tão acentuada de travestis, os chamados anarieus (HIPÓCRATES, Ares,
águas e lugares, XXII.1-13; cf. HERÓDOTO, Histórias, I.105.4 e IV.67.4).
Os citas eram povos que habitavam as zonas fronteiriças ao mundo grego que
equivaleriam ao que é hoje o sul da Rússia, a Ucrânia, a Geórgia, ou seja, a região
que está ao norte do Mar Negro. Aquela é uma região de imensas pradarias que,
na Antiguidade, além de ser uma grande produtora de trigo, era grande criadora
de cavalo, de onde se importavam cavalos para a Grécia, Roma e outras regiões.
Há aí, do ponto de vista identitário, uma questão contrastante, pois exatamente
não era a Grécia a região produtora de cavalos. Então, na representação dos gregos,
os citas eram grandes cavaleiros. Tal como os gaúchos, a imagem que se tinha deles
era que cavalgavam pelas pradarias o tempo inteiro (HIPÓCRATES, Ares, XVIII.4);
enfim, que dominavam a arte do cavalo.
Partindo dessa representação, Hipócrates encontra a explicação de por que era
tão comum o travestismo entre os citas. O motivo era que a saúde, segundo a
medicina de Hipócrates, era o resultado do equilíbrio dos humores (FRIAS, 2005, p.
40-68). Esses humores eram o quente e o frio, o seco e o úmido... Dentro dessa
lógica do equilíbrio, o corpo feminino encontra o equilíbrio entre frio e o úmido; já
o corpo masculino, entre o seco e o quente. Por exemplo, recomendava-se no discurso
médico da época que o homem fosse parcimonioso na prática sexual, que ele
evitasse o excesso. Não por uma questão moralista, mas sim por uma questão
médica, pois se achava que se o homem praticasse sexo em demasia, ficaria
efeminado, já que ele perderia o calor. Então, o homem teria de se cuidar, pois,
pensava-se, a mulher teria uma voracidade por consumir esse calor do homem,
visto que ela seria fria.
Na mesma linha, o que Hipócrates pensa é que essa coisa do homem ficar sacole-
jando em cima do cavalo geraria uma bagunça nos humores, de sorte que não faz
bem para a saúde sacolejar muito. Então, essa bagunça gera uma inversão no
equilíbrio, fazendo com que predomine no homem cita o princípio do frio e do úmido
(HIPÓCRATES, Ares, XX). Como o homem cita, de tanto sacolejar no cavalo, fica
úmido e frio, ele acaba assumindo um papel feminino (HIPÓCRATES, Ares, XVII-
XXII; FRIAS, 2005, p. 67).
Vejam bem: não é uma condenação moral que pesa, mas apenas uma caracte-
rização científica da medicina da época, em oposição à medicina mais sagrada, que

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daria outras explicações para essa efeminação (cf. HERÓDOTO, I.105.4 e IV.67.4).
Ele aponta existirem outras explicações, no contexto da medicina tradicional, com
as quais ele não concorda, explicações ligadas à ordem divina. Não concorda, por
entender que o travestismo cita decorre de um fenômeno natural (HIPÓCRATES,
Ares, XXII.3).
O motivo pelo qual eu trago esse exemplo é sua potencialidade de estranhamento.
Vejam: o que para o gaúcho é índice de virilidade, o cavalgar, a intimidade com o
cavalo, para Hipócrates, dentro do discurso científico do século V a.C., transforma-
-se em índice de efeminação. Para piorar, a alimentação dos citas se baseia na carne
assada, e são conhecidos por usarem calças largas (HIPÓCRATES, Ares, XVIII.4 e
XXII.13), vistas pelo médico grego como uma das causas da falta de virilidade – e
as calças largas, as bombachas, aqui entre nós paradoxalmente compõem o kit
macheza do gaúcho. Qualquer semelhança, nesse caso, é mera coincidência!
Contudo, bem, isso nos ajuda a pensar, em um primeiro momento, nessas ligações
simbólicas que, apesar de contingentes, acabam sendo naturalizadas pela cultura
– ou pela ideologia. Precisamos perceber essas armadilhas da naturalização, e a
partir daí colocar em prática o exercício de estranhamento, que a história crono-
logicamente distante nos propicia. Por isso eu, mesmo não tendo preconceito com
a história recente, penso que a história presentista nos priva dessa oportunidade
de irmos ao encontro do radicalmente diferente, e que nos obriga a fazer esse
exercício de quebra das coisas que temos entre nós como naturalizadas.
A história de períodos mais recuados e de locais mais distantes nos impõe esse
exercício antropológico de desconstruir essas coisas naturalizadas. Nessa linha, o
que eu tenho observado, no estudo da Antiguidade, é que o tema da sexualidade
em geral, e do homoerotismo em específico, propicia enormes estranhamentos.
A homossexualidade não tem constituído, para mim, até o momento, um tema
central de estudo. Contudo, propus algumas interfaces entre os temas da homos-
sexualidade, da educação, da sedução e da violência em alguns textos publicados,
pois chego ao homoerotismo indiretamente, por meio dos meus estudos sobre
iconografia e música da Grécia Antiga, que são temas nos quais tenho me apro-
fundado (CERQUEIRA, 2011a; 2011b). Eu acabo, volta e meia, me encontrando
com isso, com esse estranhamento, e, diante do que vejo, fico suspeitando: suspeito
dos modelos de interpretação da “homossexualidade” grega em que tudo parece
muito regrado, muito normatizado. E aí eu falo, brincando, com o Renato Pinto e
outros que se interessam pelo tema, que a gente precisa escrever uma espécie de

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“Relatório Kinsey” da homossexualidade grega, do homoerotismo do Mediterrâneo


Antigo140.
Eu não sei, mas creio que muitos de vocês sejam mais novos. Talvez não saibam o
que foi o “Relatório Kinsey”, feito por um biólogo norte-americano que o produziu
cientificamente, do final da década de 1940 até meados da década de 1950. Alfred
Charles Kinsey (1894-1956), entomologista e zoólogo norte-americano, criou o
Instituto de Pesquisa sobre o Sexo, na Universidade de Indiana (IU), em 1947, hoje
denominado Instituto Kinsey para Pesquisa sobre Sexo, Gênero e Reprodução141.
Os resultados de longos anos de pesquisa, que revelaram a enorme diversidade da
sexualidade humana, foram publicados no “Relatório Kinsey”, que exerceu grande
influência sobre os valores sociais e culturais dos Estados Unidos nos anos 1960,
contribuindo para a chamada “revolução sexual”.
O primeiro volume de seu relatório, “Sexual Behavior in the Human Male”, foi
publicado em 1948, trazendo dados arrasadores para o puritanismo moral do pós-
-guerra: segundo os estudos de Kinsey, 62% das mulheres e 92% dos homens
praticavam masturbação, e, mais estarrecedor, 13% das mulheres e 37% dos
homens já haviam alcançado o orgasmo em uma relação homossexual142. Sua
história foi relembrada em 2004 no filme “Kinsey” (traduzido no Brasil como
“Vamos falar de sexo”), em que Liam Neeson interpretou o sexólogo.
O que eu começo a enxergar, cada vez mais, é que há na Antiguidade Grega muitos
comportamentos eróticos e sexuais que se situam muito além do que o discurso
normativo coloca. O próprio Foucault (1985; 1990) cai nessa armadilha normativa

140. Alfred Kinsey derrubou por completo o esquema binário excludente (heterossexual vs. homossexual) em que se baseou a
sexualidade científico-cristã ocidental desde meados do século XIX, propondo a Escala Kinsey, que indica uma graduação de
oito alternativas de comportamento sexual: heterossexual exclusivo, heterossexual ocasionalmente homossexual, heterossexual
mais do que ocasionalmente homossexual, igualmente heterossexual e homossexual (bissexual); homossexual mais do que
ocasionalmente heterossexual; homossexual ocasionalmente heterossexual; homossexual exclusivo; e indiferente sexualmente.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Kinsey (extraído em 02/03/2012).
141. Biólogo e psicólogo, concluiu seu doutorado em 1919, em Harvard, estudando a diversidade biológica de uma espécie de
vespa. Ingressou na Universidade de Indiana como professor de entomologia. Ao constatar a diversidade de comportamento
sexual nos animais, percebendo que nenhuma vespa era igual à outra, pressupôs essa diversidade como inerente aos animais,
e que, portanto, precisava ser estudada entre os humanos. É aí que cria a disciplina de Sexologia e, a partir de 1935, recebe
recursos da Fundação Rockefeller para financiar sua pesquisa sobre a sexualidade humana. Foi um estudo sem precedentes,
dado o enorme número de pessoas envolvidas. Sobre o “Relatório Kinsey”, ler, recentemente: SENA, Tito. Os relatórios Kinsey,
Masters & Johnson, Hite: as sexualidades estatísticas em uma perspectiva das ciências humanas. Tese de Doutorado. Florianópolis:
UFSC, 2007. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alfred_Kinsey (extraído em 02/03/2012).
142. Um dos resultados práticos foi que, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade da lista de
distúrbios mentais, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1986, excluiu-a da lista de doenças. Para uma análise dos
dados de Kinsey sobre a homossexualidade, ver: BUFFIÈRE, 1980, p. 13-15.

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quando, na “História da sexualidade”143, categoriza o homoerotismo grego dentro


daquele modelo do “passivo e ativo”, absolutamente normativo e conformado a
uma suposta ideologia política que se impunha sobre a sexualidade antiga, definida
pelo establishment da pólis grega e da civitas romana (FEITOSA, 2005, p. 48-50).
Ora, se a gente tem hoje essa ideologia heteronormativa, que podemos muito bem
caracterizar, construída no Ocidente, no século XIX, a gente tinha na Antiguidade,
por outro lado, uma outra sexualidade, que não era heteronomativa. Porém, mesmo
não sendo heteronormativa, existiu também na Antiguidade uma ideologia, uma
normativa sexual: é uma ideologia que define três comportamentos sexuais
recomendados e aceitos para o homem. Segundo essa sexualidade, oficial na
pólis, ele podia ao mesmo tempo estar casado com uma mulher e gastar dinheiro
com prostitutas; a grande arte da sedução ele praticava conquistando meninos
(MAZEL, 1988).
E, do ponto de vista grego, não tem problema algum que o mesmo homem faça as
três coisas, mesmo que prevaleça a conceituação da virilidade como virtude cidadã
e que se sobreponha o primado do casamento heterossexual como pilar político e
econômico da sociedade políade. A prática desta tríplice sexualidade é voluntária,
se o homem quiser, ele faz; caso contrário, não faz. Há uma boa dose de liberdade
reconhecida entre os pares. Nada parecido com a exigência excludente moderna –
da ideologia sexual moderna – que separa, por meio de um muro aparentemente
intransponível, os heterossexuais e os homossexuais144.
Contudo, pensar, como muitos autores acharam, que o erotismo grego, a
sexualidade grega, se reduz a essas três formas aceitas pela ideologia sexual oficial
é tornar o normativo um fato, é enganar-se, e pensar aquilo que a norma quer que
seja a realidade – é tomar o deontológico pelo ontológico, o que deveria ser, pelo
que era. É uma confusão epistemológica: significa assumir um discurso antigo, de
como as coisas deveriam ser, como um discurso de como as coisas de fato são ou

143. O primeiro volume da coleção, dedicado à “Vontade de saber”, foi lançado na França em 1976 e traduzido no Brasil em
1979 pela Edições Graal, que foi responsável pela tradução dos volumes seguintes, dedicados ao “Cuidado de si” e ao “Uso
dos prazeres”, que foram publicados por Foucault em 1984, pouco antes de seu falecimento.
144. Conforme Collin Spencer (1998, p. 52-3): “A bissexualidade equilibrada, na qual o cidadão casado se apaixonava por um
garoto e frequentava cortesãs ou uma amante, representava o comportamento normal. [...] A aceitação da bissexualidade
como resposta natural era tão fortemente enraizada na consciência grega quanto a ideia de heterossexualidade exclusiva o
é em nossa sociedade. Trata-se, certamente, de sociedades onde a sexualidade do cidadão é mais construída do que fixada
biologicamente” (“La bisexualité équilibrée, dans laquelles le citoyen marié s’entichait d’un garçon et fréquentait des courtisanes ou une
maîtresse, représentait le comportement normal. [...] La acceptation de la bisexualité comme réponse naturelle était aussi fortement enracinée
dans la conscience grecque que l’idée d’hétérosexualité exclusive l’est dans notre société. Il s’agit, bien sûr, de sociétés où la sexualité du
citoyen est construite plus que fixée biologiquement.”).

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foram. Precisamos, outrossim, perguntar o quanto as pessoas se permitem


viver coisas que estão além daquilo que a norma, que a ideologia sexual, impõe
como regra.
Quando eu falo em fazer um “Relatório Kinsey” do homoerotismo do Mediterrâneo
Antigo, falo um pouco de fazer uma cartografia dessas variações de práticas e de
percepções do amor e do sexo. E falo também em começar a perceber que isso
pode ser estudado pela iconografia, que possui um amplo potencial para significar
expressões da sexualidade que estão além do normativo, práticas e sentimentos
que muitas vezes não encontram expressão nos textos. Assim como hoje nós temos
as “barbies”, os “ursinhos”, as “drags”, enfim, todas essas categorizações, que
vão sendo criadas e vão mudando, a gente percebe o mesmo nas fontes antigas.
Isso mostra, na verdade, o dégradé de percepções e de práticas de comportamentos
sexuais extremamente variados. E a própria existência dessa variação mostra uma
série de comportamentos homoeróticos que vão muito além daquilo que era
apregoado pelo modelo da pederastia, que a gente costuma pensar que era a forma
aceita pela ideologia oficial da sexualidade na pólis grega (DOVER, 1994). E digo
que devemos colocar sob suspeição a pederastia como único modelo aceito, que
se baseava na relação etária assimétrica entre amante/ativo/adulto e amado/
passivo/jovem. Por que eu digo isso? Por que devemos desconfiar de todo esse
modelo da tríplice sexualidade masculina? Eu digo isso porque nós nos baseamos,
para pressupor que houvesse essa ideologia predominante da sexualidade, em
fontes escritas de caráter normativo. A historiografia da sexualidade tomou essas
fontes escritas, como Platão, com forte caráter normativo, como representantes do
pensamento hegemônico da época. Eu tenho sérias dúvidas quanto a isso; mas
tudo bem, para nosso exercício de estranhamento, por ora vamos pensar desse
modo, aceitando o modelo da tríplice sexualidade, incluindo a pederastia como
forma socialmente aceita de homoerotismo.
Eu diria com tranquilidade que, apesar de várias coisas serem condenadas entre os
gregos, elas eram praticadas por muita gente e toleradas de forma significativa145.
Há 30 anos, Paul Veyne publicou um artigo sobre a homossexualidade na Roma

145. Na mesma direção, Collin Spencer (1998, p. 52) afirma que: “A sexualidade ateniense é bem mais complexa e contraditória
do que parece à primeira vista. De fato, mesmo que a norma social seja sem sombra de dúvida a bissexualidade, esta noção
era cercada por muitas qualificações. Muitos comportamentos não se conformavam à norma, mas apesar de tudo eram bem
aceitos” (“La sexualité athénienne est bien plus complexe et contradictoire qu’il n’y paraît au premier abord. En effet, bien que la norme
sociale soit sans aucun doute la bisexualité, cette notion était entourée de nombreux qualificatifs. Bien des comportements ne se conformaient
pas à la norme, mais étaient malgré tout bien acceptées.”).

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Antiga, publicado no Brasil em uma coletânea denominada “Sexualidades ocidentais”,


organizada por Philippe Áries e André Béjin, lançada pela Brasiliense em 1985 –
três anos após a primeira edição francesa –, que, do meu ponto de vista, pode ser
retomado no debate atual (VEYNE, 1985, p. 39-49). Essa coletânea – naquele
contexto intelectual e cultural, pouco tempo após vir a público a tradução brasileira
da “História da sexualidade”, de Foucault, um ano após sua morte, e enquanto nosso
país vivia o ambiente da redemocratização – teve bastante repercussão no cenário
acadêmico nacional, apesar da reação conservadora que encontrou entre o setor
da intelectualidade dita orgânica e identificada ainda com um pensamento marxista
ortodoxo de esquerda, que em nosso país ainda não havia processado a inflexão
teórica pós-moderna.
Na metade da década de 1980, a história da sexualidade teve um boom entre nós,
e depois entrou em baixa, e talvez o estigma da Aids tenha contribuído para o
aviltamento deste tema. Exemplo desse momento é a coletânea “História da
sexualidade no Brasil”, organizada por Ronaldo Vainfas e publicada em 1986, onde
encontramos, por exemplo, um texto do Luiz Mott em que são narradas as façanhas,
perseguições e condenações de um negro africano que teria sido o primeiro travesti
em solo brasileiro, cuja existência nos é revelada pelos autos da Inquisição (MOTT,
1986, p. 19-40). Agora, no presente, a história da sexualidade ressurge com toda
força, em razão do significado que adquiriu para o mundo atual a afirmação e
compreensão da diversidade humana: a aceitação da livre expressão do afeto e o
direito à felicidade são, agora, vistos como a forma extrema de busca da dignidade
humana, o que reveste a luta pelo reconhecimento dos direitos civis, afetivos e
sexuais de um caráter especial, e revigora o interesse pelos estudos das sexualidades
e da diversidade.
Pois bem, esse texto de Paul Veyne (1985, p. 39-49) mencionado acima é muito
interessante, mesmo que possamos criticá-lo sob vários aspectos, à luz do que
conhecemos hoje sobre a sexualidade antiga face os significativos avanços dos
últimos anos, que se deram graças ao desbravamento da perspectiva queer,
antinormativa. Admito que gosto muito do esquema teórico que Veyne confeccionou
para pensar a sexualidade, a partir do estudo particular do mundo romano. Ele criou
um modelo quadrangular de análise das possibilidades de vivência e visões da
sexualidade. Ele aponta, assim, que a história da sexualidade tem de ser pensada
dentro de quatro situações possíveis. A primeira é aquilo que está de acordo com
o que a época aceita, isto é, aquilo que pode ser feito e que a sociedade não julgará
negativamente, pois obedece ao padrão aceito. A segunda situação é a seguinte:

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aquilo que não é aceito, que está um pouco em desacordo com a norma hege-
mônica, mas sabe-se que as pessoas praticam “dentro de quatro paredes”, na
intimidade, é aceito que as pessoas o façam, desde que não seja levado a público;
é aquela dose de liberdade que é assegurada às custas do funcionamento dos
mecanismos de hipocrisia social, que se vive no segredo e entre os grupos fechados
de cumplicidade. Eu acredito que o momento que vivemos hoje, de clamor pelo
direito à visibilidade das vivências homoafetivas e homoeróticas, passa muito por aí:
passa por se entender que essa segunda situação deva ser convertida na primeira,
ou seja, não basta a tolerância com a homossexualidade praticada de forma discreta,
poupando a opinião pública do conhecimento de práticas sexuais heterodoxas, pois
impõe-se que a homoafetividade possa ser vivida em igualdade de direito, portanto,
em consonância com o que é socialmente aceito para ser vivenciado em público.
A terceira categoria hipotetizada por Veyne corresponde a um comportamento que
é condenado moralmente. A pessoa vai ser discriminada caso ela for vista na rua
fazendo aquilo, ou caso se comente que ela pratica às escondidas. Contudo, de um
jeito ou de outro, esta pessoa vai seguir levando sua vida. Ela vai ser estigmatizada
e vai sofrer certos preconceitos no seu dia a dia que vão fazê-la mais infeliz, talvez
até possa sofrer atos de violência pelos mais intransigentes, apesar de que não
tenhamos registros de agressões propriamente homofóbicas na Antiguidade. Temos
apenas relatos de pequenos furtos, como o manto de Sófocles roubado quando ele
se divertia com um garoto próximo às muralhas do Cerâmico, ou brigas que
envolviam disputas amorosas, como as encrencas que envolviam Timarco. Essa
pessoa, mesmo que estigmatizada, não vai ser condenada à forca ou à fogueira. A
sociedade como um todo precisa dela, para, por meio do preconceito, da chacota,
da agressão, afirmar que seu comportamento é condenável, e, dessa forma, afirmar
a heterodoxia sexual – no caso moderno, a heteronormatividade. Esse seria o caso
dos efeminados na Grécia Antiga, como o ator Agaton, personagem que conhecemos
do “Banquete”, de Platão, onde é homenageado como ator premiado, mas que
conhecemos também por meio da chacota que dele faz Aristófanes (Tesmoforiazusas,
137-9; 151-2), ridicularizando-o como um quase travesti, que veste trajes próprios
a mulheres, com tecidos transparentes, afeita a barba, e se movimenta de forma
delicada.
Por fim, o quarto comportamento é aquele categorizado como monstruoso e é
completamente inaceitável, totalmente incompatível para o convívio social, visto
como excrescência. Veyne diz que é monstruoso, dentro da análise que faz da
sociedade romana, o homossexualismo feminino.

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Não tenho dúvida de que quando li o texto, ainda graduando em História, achava
que era assim mesmo: que as interpretações trazidas por Veyne para explicar a
homossexualidade romana eram pertinentes. Porém, de lá pra cá, eu acho que o
esquema teórico construído pelo autor nesse texto é mais interessante do que as
análises que ele faz com ele. Acredito que muito mudou nestes últimos 30 anos
para podermos interpretar e colocar em relação o que as fontes escritas, as fontes
materiais e as fontes iconográficas nos trazem. A dicotomia entre passivo e ativo,
como correlata do sistema de dominação do cidadão romano e da dicotomia entre
livre e escravo, parece-nos hoje um sistema mecanicista por demais normativo e
que não dá conta da heterogeneidade dos desejos146. No entanto, eu acho que
segue muito interessante o modelo quadrangular para pensar sexualidade proposto
por Veyne, sem que precisemos segui-lo à risca. Há algo de paradoxal no texto, pois
ele se mantém fiel ao modelo passivo e ativo, usado também por seu amigo Michel
Foucault, mas ao mesmo tempo a criação desse modelo quadrangular enceta outros
elementos, que levam à ruptura do dualismo entre passivo e ativo. O modelo de
Veyne cria de certo modo um clima favorável à percepção queer das realidades
sexuais antigas e mesmo modernas. Ele já colocava que existe, em matéria de
sexualidade, uma variação muito grande entre, de um lado, o que a sociedade diz
que é para se fazer, e, de outro, o que realmente as pessoas fazem. E nos permite
ainda antever a percepção de que há um dégradé multi e microtonal em relação a
esse faz/não faz, pode/não pode, sabem/não sabem. Ele permite antever uma
instabilidade comportamental, apesar de postular a vigência de regras falocráticas
resultantes do sistema político que, como pensa Foucault, ordena o corpo. Nesse
sistema quadrangular, anuncia-se que há um jogo algo imprevisível de ajustes e
desajustes entre o que é permitido ou proibido pela política, pela lei, pela cultura, entre
práticas incluídas e excluídas, anunciadas ou escondidas, toleradas ou execradas.
No meio de tudo isso, o que acaba interessando mais hoje, de meu ponto de vista,
é pensar como se coloca a questão da tolerância nas diferentes sociedades, ontem

146. Para uma crítica recente ao modelo normativo usado por Foucault e Veyne, ver Feitosa (2005, p. 49-50): “Quando Foucault e
Veyne defendem o ideal aristocrático do autodomínio e do controle social, necessariamente têm que distanciar o amor, a
paixão e a volúpia de seu perfil a fim de sustentarem o argumento que apresentam. Dessa maneira, o desatino das emoções
era mais ajustado aos não aristocráticos e às mulheres, ou seja, àqueles que não tinham em suas mãos o seu controle pessoal
e social. É certo que Foucault salienta a construção discursiva do papel sexual aristocrático masculino como uma imposição
de poder, mas apresenta-a de maneira exclusiva, como se não houvesse diferentes concepções em diálogo ou em confronto
com ela. Outras fontes, além da literatura aristocrática utilizada por Foucault, podem auxiliar na composição de variados
discursos. Afinal, não é possível aceitar a imagem de uma ‘inferioridade natural’ e de ‘indolência e lassidão’ destinadas às
mulheres e aos demais ‘homens’ que não pertenciam à elite. E, ainda, essa posição de apresentar um único padrão do que
seria o discurso do ‘homem aristocrático’ em uma sociedade diversa como a romana, é muito complicada” (grifos da autora).

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e hoje. Como é que as sociedades toleram, no cotidiano, aquilo que é alvo de


preconceito? Interessa, então, mais do que diagnosticar os valores e preconceitos,
medir os graus de tolerância. Falar em tolerância em face de algo que não sofre
preconceito esvazia a questão de relevância. Por quê? Porque, nesse caso, a questão
relevante deixaria de ser a diferença dentro da sociedade. Quero compreender como
as sociedades lidam com aquilo que é diferente, que é um diferente moralmente
negativado. Essa se tornou uma pergunta que passei a levar comigo quando observo
a questão da virilidade e da efeminação, no presente e no passado.
De acordo com a ideologia dos cidadãos na Grécia Antiga, a efeminação vai contra
o princípio do cidadão-soldado. Porém, o homoerotismo, em si, não vai contra o
princípio do cidadão-soldado, já que não há nada que vincule, aos olhos dos antigos
gregos, o homem seguir uma conduta homoerótica e ele ser efeminado. Muito pelo
contrário, aquela forma de homoerotismo, a chamada pederastia, entendida como
o amor do homem mais velho pelo rapaz mais novo, fazia parte da construção social
da masculinidade. Na sociedade ocidental atual, o termo ficou pesado. Para tanto,
contribuiu a apropriação coloquial no idioma francês, no qual a palavra pédé
(corruptela de pédéraste) assume um caráter de xingamento, como ofender alguém
esbravejando “seu veado”, “barrão”, “putão”. Há uma enorme distância entre o
tom agressivo e de esculacho que os termos pederastia e pederasta assumem no
vocabulário neolatino atual, quase uma acusação de sociopatia e ao mesmo tempo
um convite ao papel de bobo da corte, e o sentido erótico, pedagógico e filosófico
da pederastia grega, como a conhecemos, idealizada, nos diálogos platônicos.
Na própria Grécia Antiga, pensavam que esse comportamento era de origem
tradicional, oriundo da Creta arcaica. Criaram um discurso de feitio antropológico
para justificar essa origem: em Creta seria uma prática educativa, pela qual os
rapazes tinham contato com os homens mais velhos, para se prepararem para serem
adultos e cidadãos (BUFFIÈRE, 1980, p. 49-64; SERGENT, 1986, p. 52-73). Isso se
mantém, na pólis organizada dos períodos Clássico, Helenístico e Greco-romano,
como uma tradição que acabam classificando, nos quadros da ideologia da época,
como um comportamento fino, aristocrático, de estirpe cretense arcaica.
Vejam bem: é colocado exatamente como um aprendizado da masculinidade,
assim como o homoerotismo nos versos da poetisa Safo é um aprendizado da
feminilidade. Por meio daquele suporte e treino afetivo que as meninas encontravam
na escola da poetisa lesbiana, a jovem estava sendo preparada para exercer o amor
na forma de ser esposa (MAZEL, 1988, p. 141-42).

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A amizade, o afeto, a força do amor entre um homem adulto e um jovem, esses


sentimentos homoeróticos pederásticos foram apropriados pela democracia e pelo
regime políade em geral, de forma ideológica: vê-se no uso da memória pública
dos amantes Aristógiton e Harmódio, consagrados pela posteridade, ao longo de
todo mundo antigo, como os “tiranicidas”, que simbolizavam assim o desejo de
justiça contra o arbítrio dos déspotas.
Dois heróis da democracia, Harmódio e Aristógiton, dois cidadãos atenienses, o
primeiro em verdade ainda um efebo, o segundo um adulto de setor médio, um
cidadão ativo, um hoplita. A sua representação, nos relatos de Tucídides (I.20;
VI.54-59) e Aristóteles (XVIII.1-5), está profundamente vinculada à esfera masculina
do poder, no período em que Atenas era governada pelos filhos do falecido tirano
Pisístrato, os chamados Pisistrátidas (Hípias, o mais velho, e Hiparco, o mais jovem).
A memória política que se construiu deles, na democracia ateniense e, mais tarde,
no conjunto do Mediterrâneo antigo greco-romano, está associada à derrubada
dos tiranos atenienses e ao triunfo da democracia.
Os fatos não são muito claros, mas tentemos aqui ensaiar uma narrativa desses
acontecimentos. Um dos pisistrátidas, Hiparco – segundo Aristóteles, teria sido
Tessálio, o irmão menor, filho de uma segunda esposa – apaixona-se pelo jovem
Harmódio, que se encontra na plena beleza de sua juventude. O rapaz rejeita esse
amor, permanecendo fiel ao seu amigo e amante, Aristógiton, ao qual comunica o
assédio que sofrera. Diante disso, Aristógiton começa a arquitetar um plano pela
libertar os atenienses da tirania.
Ocorre que Hiparco faz uma segunda investida, e novamente recebe um não de
Harmódio. Diante da negativa, aquele que está no poder resolve fazer uso dessa
condição para vingar-se da rejeição. O jovem tirano, incumbido da organização das
Grandes Panateneias, indica a irmã de Harmódio para a função de portadora de
cesto (kanēphóros), uma função bastante prestigiosa, que somente moças virgens
de famílias as mais distintas poderiam desempenhar. Posteriormente, porém, ele
escorraça a moça, dizendo que seu nome nunca havia sido cogitado, e insinuando
que seu irmão seria um efeminado.
Harmódio fica consternado diante da humilhação de sua irmã e, por conseguinte,
de sua família, e pela insinuação de sua falta de masculinidade. Os dois amantes
decidem-se pela vingança, um movido pela honra familiar que havia sido maculada,
e o outro, pelo ciúme. Não entrarei nos detalhes da história que se segue, mas vê-se
logo que “o babado é forte”. Amotinados, pretendiam matar os dois tiranos. Porém,

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como Hípias toma conhecimento da rebelião, e como estava seguro estava na


acrópole com a presença de sua guarda pessoal, os amantes direcionam sua sede
de vingança a Hiparco, que estava mais desprotegido, em meio à multidão,
conduzindo a procissão panantenaica rumo à acrópole. Resultado: matam Hiparco;
Harmódio é morto no próprio local; Aristógiton foge, inicialmente, mas é detido
pelas forças de Hípias que, prendendo-o, submetem-no a torturas, para fazer
delações, e, finalmente, matam-no. Hípias mantém-se por mais quatro anos no
poder, endurecendo o regime, e sendo finalmente derrubado pelos lacedemônios
aliados aos Alcmeônidas que se encontravam exilados em Delfos (TUCÍDIDES, I.20;
VI.54-59; ARISTÓTELES, A Constituição de Atenas, XVIII.1-5).
Por isso tudo, mesmo que não tenham de fato causado, de forma direta, a queda
da tirania, eram conhecidos como os “tiranicidas” e tidos como os grandes heróis
da democracia, a tal ponto que até o século IV a.C. seus descendentes gozaram de
vários privilégios em Atenas (MOSSÉ, 1982, p. 20).
Sabe-se que pertencem à categoria social dos cidadãos, com a diferença de idade
adequada a um casal de erastēs e eroménos. O mais jovem provavelmente está na
fase da efebia – idade em que realiza os treinamentos militares preparatórios para
ser enquadrado ao contingente de cidadãos-soldados –, o mais velho é já um
cidadão-soldado adulto, no pleno exercício das funções sociais cobradas de um
homem livre cidadão. Sabe-se também que Harmódio é de família aristocrática, do
contrário sua irmã não poderia ser cogitada para o cargo sagrado de portadora do
cesto de oferendas a ser ofertado a Atena em sua festa quadrienal. Sabe-se, ainda,
que organizam um motim contra os dois tiranos, tanto Hípias quanto Hiparco, que
governavam a cidade, arregimentando para tal amigos de Aristógiton, todos eles
já cidadãos-soldados. Ou seja, seu relacionamento homoerótico tem reconheci-
mento e legitimidade perante os iguais, perante o universo viril militar e cidadão.
Não se trata então de um amor do qual se devam envergonhar, ou que devam esconder.
É prenhe de significação, para entender o lugar que ocupava o homossexualismo
na Grécia Antiga, que isso tudo, esse “babado”, essa confusão resultante de senti-
mentos pessoais homoeróticos (desejo, paixão, cantada, fidelidade, ciúme, assédio,
ódio, vingança), tenha uma repercussão de tal envergadura sobre a política. Não
só sobre a política daquele momento, do século VI a.C., mas sobre toda a subse-
quente constituição da identidade da democracia ateniense e da pólis grega.
A memória seguramente embola e mitifica os fatos, como já constataram Tucídides
e Aristóteles. Interessa-nos, pois, exatamente, o fato de um casal homossexual

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pederástico ser alçado ao patamar de símbolo da democracia e do enfrentamento


à tirania – portanto, são-lhes associados valores os mais dignos, impregnados das
virtudes da virilidade e das virtudes vinculadas à esfera do poder, tida como
essencialmente masculina. Isso mostra a legitimidade dessa forma de relacio-
namento homoerótico no status quo políade.
Então, esse homoerotismo grego não tem nada em si que o defina como uma negação,
como a antípoda da suposta normalidade heterossexual. Nada obsta que qualquer
um deles, seja o amante ou o amado dentro do paradigma da relação assimétrica
entre o mais velho e o mais novo, venha a assumir, posteriormente ou naquele
mesmo momento, em outro relacionamento, a condição heterossexual147. Afinal, de
acordo com o argumento ideológico da origem cretense do homoerotismo
pederástico, ele é um preparo para a virilidade exigida do cidadão-soldado, perpas-
sado por um sentido iniciático. Então, é por isso que, inclusive, não se aceita, nessa
ideologia sexual, que o relacionamento prossiga depois que o rapaz tenha barba
(SERGENT, 1986, p. 110-12), pois aí já feriria a assimetria geracional, uma vez que
ele seria visto como um homem adulto, o que iria na contramão dos preceitos de
virilidade que norteavam a ideologia da sexualidade do mundo dos cidadãos.
Isso nos levaria a pensar, então, o seguinte: não existiam homens efeminados?
Havia impossibilidade de um relacionamento homoerótico entre dois cidadãos
adultos? E essas perguntas, em meus tempos de graduando, nas minhas primeiras
leituras sobre a sexualidade antiga, eu achava que já estavam absolutamente
respondidas. De fato, creio que esse comportamento tido como padrão provavel-
mente correspondia a algo existente, mas não excludente com relação a outras
possibilidades eróticas.
Na prática, por mais que tenha sido idealizado, o modelo pederástico se alastrou
como alternativa homoerótica aceita perante a opinião pública: o homem mais
velho, figura da sabedoria e experiência, e o rapaz (o efebo), figura da beleza, vitali-
dade e juventude. Isso existia, mas e nas bordas desse sistema, o que acontecia?

147. Collin Spencer (1998, p. 53) reporta alguns exemplos dessa fluidez com que o homem grego transitava entre relacionamentos
homossexuais e heterossexuais: “O poeta Meleagro escreve sobre como as mulheres acendem-lhe o fogo, mas como os
meninos seguram as rédeas do desejo. ‘Onde ir, pergunta-se ele, a um garoto ou a sua mãe?’. Teócrito, poeta pastoral, fala
de uma mulher que, rejeitada por seu amante, se pergunta se ele se deita com uma mulher ou com um homem. Xenofonte,
mencionando a liberação de prisioneiros de guerra, evoca os soldados tentados a guardar em segredo um belo rapaz ou uma
mulher bonita” (“Le poète Méléagre écrit comment les femmes alument en lui le feu, mais comment les garçons tiennent les rênes du
désir. ‘Où aller, demande-t-il, vers le garçon ou vers sa mère?’. Théocrite, poète pastoral, parle d’une femme qui, rejetée par son amant, de
demande s’il couche auprès d’une femme ou d’un homme. Xénophon, mentionant la libération de prisionniers de guerre, évoque les soldats
tentés de garder en cachette un beau garçon ou une jolie femme.”).

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Por aí não se explora muito. A “pegação” nos muros do Cerâmico, onde ocorrem
as aventuras de Sófocles com um michê que lhe rouba seu manto, bem, histórias
dessa ordem não costumam despertar muito a atenção dos estudiosos. A aceitação
social de um efeminado, quase travesti, como o ator Ágaton – afinal é o
homenageado do banquete relatado por Platão, do qual participam indivíduos
respeitáveis na Atenas da época – não costuma ser objeto de reflexão; por outro
lado, o deboche de Aristófanes com relação a ele costuma ser lembrado como prova
da rejeição social à efeminação, própria do sistema hegemônico da virilidade que
emanava do cidadão-soldado, e dele se exigia (“Vespas”, “Tesmoforiazusas”).
Para mim, não me parece suficientemente clara a forma como é vista a efeminação
pelos gregos. Buscamos entendê-la com base nos paradigmas heteronormativos
modernos, em que se pressupõe a dicotomia, na sexualidade masculina, entre a
macheza heterossexual e a efeminação homossexual? Ficam algumas perguntas:
como é tratada a questão da efeminação em uma sociedade da virilidade que não
é uma sociedade heteronormativa, como é o caso da Grécia Antiga? Basta responder
que é rejeitada? Não será mais complexo, mais cheio de meandros? Como é tratado
o amor entre dois homens adultos ou adultos jovens, que se instauraria contra esse
modelo de pederastia que foi elevado à condição de paradigma da homossexua-
lidade antiga? Como é visto se dois jovens continuarem, em idade adulta, a manter
um relacionamento homoerótico?
Pois bem, existem ressonâncias, seja na mitologia ou na tradição dos fatos históricos,
de relacionamentos entre homens que não se enquadravam no modelo vigente na
historiografia hegemônica sobre a homossexualidade grega – e tenho lá minhas
dúvidas se podemos considerá-lo um modelo de fato vigente na Grécia Antiga!
O exemplo mais conhecido é o de Aquiles e Pátroclo, pois, primeiramente, a
diferença de idade entre os dois heróis é muito reduzida. Pátroclo, primo distante
de Aquiles, é acolhido na Tessália por Peleu, pai de Aquiles, em razão de seu exílio.
São educados juntos na música, na arte militar e até mesmo na medicina. Esta-
beleceram-se laços fortíssimos de amizade entre os primos. Combateram juntos em
várias frentes.
Usando a armadura de Aquiles, Pátroclo enfrenta os troianos, massacrando
inúmeros guerreiros. No entanto, ao final, confundido com Aquiles, pela arma-
dura e pela bravura, é morto por Heitor. A vingança de sua morte torna-se uma
obstinação para Aquiles, que a coloca acima dos interesses de guerra dos aqueus.
Indo a Troia, desafia o filho de Príamo para um duelo, que resulta na morte do

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herdeiro do trono troiano. Aquiles promove, em homenagem à memória de seu


primo, os grandes jogos fúnebres, que funcionam como paradigma mítico da
instituição grega dos agōnes (competições atléticas, e, mais tarde, musicais e dramá-
ticas). Todos os chefes gregos participaram dessa homenagem. Ali fez erigir um
túmulo para o depósito das cinzas de Pátroclo. Mais tarde, após a morte de Aquiles,
suas cinzas foram reunidas àquelas de seu amado, selando a união para a eternidade.
Pátroclo é um pouco mais velho que Aquiles, mas pouco, não o suficiente para
configurar a assimetria etária recomendada entre erastēs (adulto) e eroménos (jovem).
Primeiro desvio: o amor prossegue, sendo eles já guerreiros, portanto, adultos.
Segundo desvio: todo o comportamento de Aquiles em relação a Pátroclo carac-
teriza-o como se fosse ele o amante, apesar de ser o mais jovem.
A continuidade do relacionamento homoerótico vida afora se oporia à forma aceita
de amor entre dois homens. Esperava-se que permanecessem laços de amizade,
mas sem a intimidade permitida quando o amado ainda era um efebo imberbe, que
simbolicamente se poria no lugar feminino na relação. Porém, há vários registros
de um bom número de casos que não se sujeitaram a essa norma, o que entraria
em contradição com o que a interpretação moderna coloca, de que deveriam
abandonar a relação após ingressarem na idade adulta. Um notável exemplo de
desvio a esse padrão pode ser encontrado na tradição que nos mostra Alexandre,
o Grande e seus amores masculinos, Kleitos, Heféstion e, mais tarde, o transgênero
Bágoas. O universo homoerótico de Alexandre, mais ou menos destacado ao longo
de mais de dois milênios de memórias recriadas de sua vida, seduziu muito o escritor
alemão Klaus Mann, filho de Thomas Mann, que publicou, em 1929, a biografia
“Alexander: Roman der Utopie”, em grande parte inspirado no relato antigo de
Pseudo-Calístenes, autor do “Romance de Alexandre”, trazendo ao mesmo tempo
as marcas do ambiente cultural e mental da Alemanha do período entre guerras.
Oscilando entre um romance histórico e a confissão pessoal, Klaus Mann deu
bastante ênfase a esses relacionamentos, que lhe serviram para caracterizar a
personalidade de Alexandre, apresentando uma “visão sublimada da homossexua-
lidade” (MOSSÉ, 2004, p. 209-210).
E, assim, inspirado em fontes antigas, Mann retrata a continuidade do relaciona-
mento amoroso de Alexandre com seus companheiros de infância, Kleitos e Heféstion.
Retrata Alexandre passeando, abraçado a Heféstion, despertando ironia e ciúme
em Kleitos. A morte de Kleitos, na visão de Mann, resultaria da raiva incontida de
Alexandre, que reage de forma desmedida ao momentâneo desprezo e críticas
emitidas por Kleitos. Após isso, precisa “contentar-se com o amor passivo do fraco
Heféstion, em cujos braços se refugia, depois de chorar durante três dias aquele

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que amou em vão”. Seguindo na mesma linha, que em uma visão heterossexual
da história pode ser considerada muito exagerada, porque desabonadora de herói
notabilizado por seus feitos militares, apresenta um Alexandre que titubeia no
interesse sexual por Roxana, evocando a lembrança de Kleitos: “Infelizmente, aquele
a quem eu teria abraçado com a maior das vontades, é aquele que matei...”
(MOSSÉ, 2004, p. 210-11).
Heféstion era seu amigo desde a infância. Além de acompanhá-lo na campanha da
Ásia, recebeu importantes comandos e títulos administrativos. Em 324 a.C., morre
subitamente, deixando Alexandre desolado. Da mesma forma como Aquiles proce-
dera com relação à memória de Pátroclo, Alexandre “lhe concedeu funerais grandio-
sos e o elevou à posição de herói, instituindo festas em sua honra” (MOSSÉ, 2004,
p. 226). Fato análogo se repete quando o imperador Adriano, após a morte por
afogamento no Nilo, em 130 d.C., de seu favorito Antínoos da Bitínia, divinizou-o,
espalhando o seu culto, bustos e retratos pelas cidades do Império.
Após a perda de Heféstion, é com o eunuco Bágoas, variante antiga do que hoje
chamamos transgênero, que o Alexandre de Klaus Mann vai reconfortar seus
sentimentos homossexuais. Com liberdade ficcional, Mann transforma-o de eunuco
em hermafrodita. Claude Mossé pensa que a ênfase na homossexualidade de
Alexandre seja uma escolha do autor (MOSSÉ, 2004, p. 212). De certo modo, penso,
é um argumento vazio, pois o desinteresse pelos amores homoeróticos de Alexandre,
comum em outras biografias, deveria ser visto nessa lógica também como uma
escolha de autoria, de autoria heterossexual. Contudo, não é isso que nos interessa
aqui, afinal, Mann tem todo o direito de contar a vida de Alexandre dando valor a
uma forma afetiva com a qual se identifica. Para nossa reflexão, queria destacar o
seguinte: independentemente dos pormenores dos relacionamentos afetivos
mantidos por Alexandre com Kleitos, Heféstion e Bágoas, podemos destacar alguns
aspectos que evidenciam a não sujeição desses afetos à norma homoerótica
pederástica tida como oficialmente aceita e recomendada. Primeiro, Alexandre
pertence à mesma faixa etária de Kleitos e Heféstion, não configurando a assimetria
geracional. Segundo, o relacionamento erótico é mantido após ingressarem na idade
adulta, sem que isso configure qualquer prejuízo à virilidade e vida militar desses
personagens. Por fim, Alexandre mantém com o eunuco Bágoas um relacionamento
homossexual que não se conforma ao modelo pederástico.
Como vimos, temos, na tradição literária e iconográfica, relatos e modelos de
relacionamentos homoeróticos que não se enquadram no padrão esperado da
relação homoerótica baseada na assimetria geracional e na clara oposição passivo-

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-ativo. Esse modelo é visto por autores como Veyne e Foucault como correlato
das estruturas de poder das cidades-Estado antigas, no que se refere ao valor da
virilidade, bem como à projeção, sobre as categorias de gênero e idade, da hege-
monia social e política do homem livre, cidadão e soldado. É a estrutura de dominação
invadindo o corpo e disciplinando as relações sexuais, sejam elas heterossexuais
ou homossexuais.
Ora, ao trazer esses exemplos, eu me pergunto: será que era assim mesmo? Será
que essa coisa de identificar nas fontes um discurso normativo, uma ideologia
sexual, não foi um conforto da ideologia sexual do século XIX e XX? Não foi um
conforto, a serviço de resolver um dilema?
Vejam bem, comecemos pelo dilema: como é possível que a Grécia, propalada como
o berço da civilização ocidental, seja caracterizada por um comportamento
completamente contrário ao paradigma que a civilização ocidental vitoriana assume
com relação a gênero e sexualidade? Esse paradigma, como vimos, estabelece a
dualidade entre heterossexualidade e homossexualidade, em que a primeira é
definida como polo positivo, e a segunda, como negativo – mais ainda, estabelece
a excludência intrínseca entre os universos abarcados pela heterossexualidade e a
homossexualidade. Esse paradigma oitocentista consegue se consolidar de tal forma
que, graças à convergência entre ciência e religião, razão e fé, estabelece-se como
princípio natural e universal, com base no qual toda a experiência humana deveria
ser entendida, julgada e disciplinada.
Então, esse dilema é um problema que precisou ser resolvido pelos historiadores,
filólogos e arqueólogos do século XIX e início do XX. Qual foi a solução: afirmar
que os gregos não eram propriamente homossexuais, mas tinham uma forma
atenuada de amor assimétrico entre indivíduos do mesmo sexo, que não previa
relação carnal, o chamado “amor platônico” – e que os gregos, portanto, não
aceitavam a homossexualidade definida como relação amorosa simétrica entre dois
homens. Resolvido o dilema! Criada a armadilha!
Prestem atenção: afirmar que na Grécia Antiga havia uma forma corrente de amor
homoerótico, porém baseado na assimetria geracional, com fins pedagógicos e
iniciáticos, amor que deveria ser convertido em apenas amizade após o ingresso
do amado na idade adulta é uma forma de neutralizar o potencial desestabilizador
que a homossexualidade grega apresentava para a sustentação do mito fundacional
do Ocidente. A identidade de Ocidente, em construção, escolhia a Grécia racional
como “berço da civilização”, e, portanto, não poderia essa mesma Grécia cometer

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o pecado ou desvio do comportamento, considerado não natural, da homosse-


xualidade. É uma interpretação moderna que domestica, disciplina os antigos
gregos. Sim, resolve o dilema, mas por que é uma armadilha?
A historiografia da sexualidade, desde o século XIX e ao longo do século XX, em
grande parte reforça o modelo – que poderíamos chamar “homonormativo” – do
homoerotismo pederástico como a forma “real” do homossexualismo grego.
Mesmo pensadores que têm surpreendente contribuição à renovação dos paradig-
mas epistemológicos das ciências humanas na segunda metade do século XX, como
Michel Foucault e Paul Veyne, caem nessa armadilha, e operam a serviço do reforço
dessa tese da vigência da ideologia (homo)sexual antiga baseada no modelo da
pederastia.
Os próprios “uranistas” do século XIX, como eram então chamados os homossexuais,
são pegos por essa armadilha: dentro da mentalidade daquela época, são reféns
desse discurso, que acaba enxergando o dito “amor grego” como única forma de
homoerotismo da Grécia Antiga, dentro dessa lógica do amor do mais velho pelo
mais novo. De certo modo, nesse “amor grego”, encontraram refúgio.
Voltemos então à questão da efeminação, já que o constructo binário dicotômico
efeminação e virilidade (bichice e macheza), naturalizado pelos discursos heteronor-
mativos, uma vez “desnaturalizado” e visto como uma construção histórica propor-
ciona-nos reflexões bastante ricas sobre a sexualidade em termos de visibilidade
de diversidades afetivas e sexuais.
Em princípio, afirma-se que a efeminação era algo condenado aos homens livres
adultos na Antiguidade. Sobre isso, queria dizer que há todo um dégradé, assim
como hoje, em que uma escala microtonal categoriza níveis diversos de macheza
ou bichice – não falo aqui das categorias sexológicas de Alfred Kinsey, compre-
endidas como uma escala biológica de comportamento, mas das percepções
significadas por meio do vocabulário: as gays, as “barbies”, os “ursos”, as “operadas”,
os “bofes”, os michês, as “afetadas”, e por aí vai (ou, as “sapatas”, as “machorras”,
as “caminhoneiras” etc.). Para aqueles que compartilham desse dinâmico vocabu-
lário, que rapidamente se reformula, estão presentes medidores comportamentais
que situam essas pessoas como mais próximas de uma atitude efeminada ou de
uma atitude “masculina” – o termo aqui confundido com “macho”, “viril”.
Primeiro, eu percebo que, desde o Egito Antigo, como mostra o exemplo do casal
de manicuros do Antigo Império, por mais que a sociedade possa construir e impor
um discurso heteronormativo hegemônico, essa mesma sociedade permite espaços

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de fuga, de escape, em que os desvios a essa norma são permitidos. Dos manicuros
do Egito Antigo aos cabeleireiros de hoje, parece-me que há algo quase estrutural,
em termos de longa duração, que define que profissões tais como cabeleireiros,
manicures, maquiadores, estilistas e artistas são espaços no mundo do trabalho
reservados aos homossexuais – homossexuais com atitude afetada estereotipada!
–, espaços em que certa efeminação é sempre tolerada e, por vezes, até presumida.
É como se ali fosse criado um nicho em que é permitido que um homem ou uma
mulher tenham uma conduta que fira a regra geral que determina a virilidade
(macheza) ao homem, e a feminilidade (delicadeza) à mulher.
Peguemos novamente o caso dos cabeleireiros de hoje e dos manicuros do Egito
Antigo. A longuíssima duração poderia fazer pensar que exista algo natural que
vincule cortar cabelo ou cuidar de unhas a ofícios para efeminados, quando
exercidos por homens. Tanto isso não é verdade que, hoje, existem muitos meninos,
heterossexuais ou no mínimo sem postura efeminada, que fazem sucesso entre a
“garotada” como cabeleireiros, sem se associarem esteticamente à efeminação ou
à homossexualidade.
Pois bem, voltando para a Grécia, vejamos o caso dos atores. Eles representam
papéis femininos com máscaras, isto é, são homens que fazem os papéis femininos.
Isso, por si só, não os vincularia a uma postura social cotidiana efeminada, apesar
do desconforto que a performance de papéis femininos causaria perante o imaginário
da virilidade. Isso nos remete a outra questão: Como se colocaria, simbolicamente,
a profissão de ator – ou até mesmo de músico – face o valor da virilidade?
Ora, o banquete que ambienta o diálogo de Platão ocorre em uma festa realizada
em homenagem a Agaton, que é um ator premiado no concurso trágico das
Dionisíacas. O mesmo que é alvo dos maiores deboches de Aristófanes em razão
de sua efeminação. No entanto, pessoas de setores respeitáveis da sociedade
ateniense se fazem presentes nessa festa. É prestigioso estar ali. E, a crer no
Aristófanes – e o que ele fala não parece algo muito estranho para um ator ou
artista grego, até por que as vestimentas que conhecemos dos músicos lembram
aquelas atribuídas a Agaton pelo comediógrafo – Agaton é completamente
“bichinha”, completamente efeminado. No entanto, não há qualquer problema
nisso, visto que ele é ator. Modernamente, outros profissionais, mesmo reconhecidos
por sua efeminação, como estilistas, cantores ou bailarinos, usufruem de fama e
são frequentados, assim como os prestigiados atenienses foram à festa de Agaton,
pois, mesmo havendo o preconceito heteronormativo predominante, há um

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escalonamento de pequenas coisas que são permitidas na contramão do interdito.


Isso nos leva de novo ao sinuoso esquema proposto por Veyne (1985) do pode/não
pode, mostra/esconde, proíbe/permite.
Essa permissividade com relação a certos personagens sociais, que podem levar
sua vida como efeminados em uma sociedade que impõe a virilidade, na verdade
não é uma quebra de ideologia predominante. É um ingrediente possível dentro de
uma sociedade heteronormativa.
Ora, vejam: o ator grego, assim como o cabeleireiro moderno, mesmo que seja
vítima de preconceito, ao mesmo tempo não pode ser rechaçado por ele, pois está
atuando dentro do rótulo. Aristófanes, em mais de uma comédia, escolhe Agaton
para debochar, sendo que é possível que, em uma de suas peças, o próprio Agaton
tenha atuado. Não haveria problema nisso, afinal, debochar é intrínseco à comédia
e faz parte da cultura popular da pólis. Debochar, ao caçoar dos estereótipos
efeminados, serve para afirmar o preconceito e a norma por meio do próprio
deboche. Aristófanes debocha ao máximo de Agaton. Imagina: não bastando fazer
a barba, o que para os costumes gregos da época já é um sinal de efeminação,
veste roupas transparentes, usa sákkos, mítra e kekrýphalos (diferentes lenços ou
turbantes femininos para resguardar a cabeça), coloca brincos, usa maquiagem,
gesticula e caminha com afetação (ARISTÓFANES. Tesmoforiazusas, 137-9; 151-2;
CERQUEIRA, 2001, p. 204-205; SNYDER, 1974, p. 246).
Vejam: existem graus diferentes de possíveis preconceitos, mas os preconceitos são
instáveis. São um jogo: jogam o tempo inteiro o jogo do pode/não pode, do permite/
condena, do libera/reprime, do aceita/repreende, do admira/escarnece.
Outro exemplo que eu abordo desse jogo instável das opiniões é o citaredo.
O músico é um dos poucos personagens que, na iconografia, vemos receber,
combinado, um tratamento prestigioso e uma caracterização discrepante do modelo
da virilidade: com frequência, vemos, pelo porte físico, que se trata da representação
de um homem adulto, porém com a barba afeitada, e usando um tipo de vestimenta
muito requintada que, de resto, seria própria a tipos efeminados, como o khitōn
pregueado com kólpos (plissado bufante). Sabemos que, na Antiguidade, os músicos,
e sobretudo os citaredos, tornam-se pessoas muito famosas, verdadeiras celebri-
dades. Circulam por várias cidades e regiões do mundo grego, fazem fortuna e, por
onde passam, conquistam a admiração do público. Porém, ao mesmo tempo, são
alvo de gozação, por parte de alguns, devido à sua efeminação.

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Ora, a esse ponto, cabe que nos remetamos à dimensão linguística, em que a
palavra kitharōidós, em certo linguajar popular, devia significar algo como “bichinha”.
Usava-se então, por vezes, com sentido pejorativo, carregando a insinuação de
passividade sexual148.
Ora, sobre o músico recaía a suspeita de fraqueza e efeminação. Um músico
profissional era visto como alguém inapto à vida cívica e relapso na condução de
assuntos particulares. Ele compartilhava, pensava-se, da covardia feminina. Esses
são os argumentos utilizados pelo Zeus de Eurípides para desqualificar o lirista
Anfião – suspeita de feminilidade, incompetência militar e déficit de coragem e
virilidade:
A natureza deu-te um coração robusto, mas tu exibes uma
aparência que imita a de uma mulher [...] Tomes um escudo
e não saberás o que fazer com ele, nem serás capaz de
defender outros através de estratégias corajosas e viris
(Eurípides, Antíope, fr. 185).

A dedicação à profissão de músico podia suscitar, na imaginação de muitos, a


suposição de um comportamento sexual passivo. Essa suspeita era digna da maior
repreensão, cabendo inclusive sanções jurídicas por parte da comunidade. Isso é,
inclusive, o que Ésquines sugere aos juízes em seu discurso de acusação a Timarco.
Em seu libelo, o orador, ao referir-se a cantores (kitharōidós) e tocadores de cítaras
(kitharistaí), dá a entender que se trata de adolescentes que assumem postura
homossexual passiva. Afinal, acompanham o cidadão Mísgolas, que sabidamente
gostava de relacionar-se sexualmente com meninos. Cabe destacar que Ésquines,
como podemos ver, não recrimina Mísgolas, pois manter relações homossexuais
assumindo o papel ativo em nada feria a virilidade e as prerrogativas de ser cidadão:
Existe, atenienses, um tal Mísgolas, filho de Naucrates, do
demo de Colitos, homem dos melhores que existe e que não
tem detratores, mas que está loucamente entregue a esses
costumes e que vive rodeado de cantores e tocadores de
cítaras (ÉSQUINES, Contra Timarco, 41).

Devemos dar algum desconto e compreender que o azedume de Ésquines tem a


ver com o contexto do texto acusatório, em que detratar a imagem do acusado é
uma estratégia válida para influenciar o júri popular. O objetivo da argumentação

148. Sobre a vinculação simbólica entre o citaredo, a efeminação e a homossexualidade passiva, ver: CERQUEIRA, 1997, p. 126-129.

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do logógraphos (advogado) é, então, estabelecer a equivalência entre os “cantores


e tocadores de cítaras” e Timarco como parceiros de Mísgolas, a fim de caracterizar
o réu como homossexual passivo. Mísgolas, por ser ativo, pode ser descrito como
“homem dos melhores que existe”; por outro lado, Timarco, bem como os anônimos
“cantores e tocadores de cítaras”, por sua conduta sexual passiva – servil, que
atende ao prazer alheio – jamais seriam merecedores desse predicado.
Essa associação entre o músico e o homossexual passivo era tão arraigada que
deixou marcas na linguagem, como se pode averiguar na polissemia dos vocábulos
kitharōidós, khitaristēs e kítharos. As palavras kitharōidós e khitaristēs – utilizadas por
Ésquines na passagem supracitada – significavam, respectivamente, na linguagem
denotativa, cantores para o acompanhamento com cítara e tocadores de cítara. Por
outro lado, o termo kítharos era empregado para se referir a um menino. Os três
termos, porém, podiam assumir sentidos conotativos. Assim, kitharōidós e khitaristēs
conotavam, em um primeiro momento, “menino”, “jovem”, partilhando da signifi-
cação denotada em kítharos. Esse hábito linguístico foi incorporado provavelmente
devido ao fato de os garotos circularem pelas ruas de Atenas levando seus instru-
mentos, tendo em vista frequentarem diariamente o professor de música.
Esses três significantes, porém, podiam conotar ainda outro significado. Tanto em
Ésquines como em alguns comediógrafos os termos aparecem com outro sentido
– e é possível que esse se tenha tornado popular na gíria da época. Na linguagem
estereotipada das comédias áticas, prenhes de convenções moralistas, utilizavam-se
os termos kitharōidós e khitaristēs para referir-se a jovens efeminados, estando
subentendida sua posição sexual passiva. Como explica Dover (1994, p. 107):
a comédia ática de um modo geral pressupõe que um
homem que tenha características corporais femininas (por
exemplo, raros pelos no rosto), ou que se comporte de
maneiras consideradas femininas pela sociedade ateniense
(por exemplo, usando roupas graciosas), também busca
desempenhar o papel feminino em suas relações sexuais
com outros homens, e é procurado por eles com esse objetivo.

Ora, é possível que a delicadeza inerente à execução de um instrumento singelo


como a lira ou refinado como a cítara sugerisse, em decorrência de seu toque de
efeminação, a imagem do citarista como homossexual passivo. No entanto, é
provável que alguns aspectos cotidianos influenciassem esse hábito linguístico de
fazer referência a homossexuais passivos chamando-os de citaristas ou cantores.
Assim, podemos acreditar que muitos moços imberbes com as características

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masculinas pouco definidas – e que ainda não haviam completado 18 anos, nem
o período de treinamentos militares da efebia, não sendo ainda legalmente cidadãos
– submetiam-se servilmente ao prazer de adultos, assumindo o papel passivo. Ora,
muitos desses púberes, em função dos costumes do sistema educacional ateniense,
podiam ser identificados como cantores ou citaristas.
A língua tratou de cristalizar essa confusão semântica entre menino, homossexual
passivo e citarista ou cantor. Dispomos de vários exemplos. Em um fragmento de
uma comédia de Aléxis, o filho pede à mãe que não o ameace com Mísgolas, pois
ele não é um kitharōidós (ALEXIS, fr.3). Parece que o menino queria dizer que ele
não era uma “bichinha”. Em outro fragmento, do filósofo cínico Antístenes, não
fica claro se os termos empregados significam “guri” ou “fresco”: “Mas aqui temos
um mocinho (kítharos)”. É bastante possível, acredito, que a língua ferina de
Antístenes quisesse dizer: “Ora, vejam, uma ‘bichinha’”. Na sequência, comenta:
“Se ele [Mísgolas] o vir, não conseguirá ficar sem agarrá-lo. As pessoas não
percebem o quanto ele é louco por kitharōidoí” (ANTÍSTENES, fr. 26, 12-18). E agora,
o que significa essa acepção do vocábulo: Mísgolas é louco por citaredos, por
meninos pubescentes ou por “mariquinhas”? No caso, a polissemia serve à ironia
literária. Por conseguinte, nesse ambiente cultural, tão logo se falasse de um citarista
ou citaredo, imediatamente podia vir à mente a suspeita de que se tratasse de um
homossexual passivo, o que seria absolutamente inaceitável para um cidadão
adulto, apesar de tolerado para um ator ou músico.
Kitharōidós fica consagrado como um termo pejorativo, que é usado para diminuir
moralmente. Ao menos é o que vemos na acidez de alguns comediógrafos e no
azedume dos logográphoi. Essa linguagem exclui, mas ao mesmo tempo inclui, uma
vez que linguisticamente se situa no dégradé de condutas recriminadas, mas
toleradas. E, diferentemente dos comediógrafos e advogados, os pintores de vaso
souberam traduzir esta tolerância moral ao expressarem o grande prestígio de que
esses músicos desfrutavam, mesmo sendo reconhecidamente efeminados na
aparência, o que se traduzia também pela falta de perfil atlético, alguns deles até
bastante barrigudos.
Quando eu falo, assim brincando, em fazer um “Relatório Kinsey” do homoerotismo
grego, eu na verdade estou falando de uma coisa muito complicada, ao menos se
partirmos do padrão dicotômico “hetero e homo” estabelecido no século XIX.
Complicada, pois, diferentemente dessa dicotomia, havia na Grécia Antiga uma
“trissexualidade” – ou um tríplice erótica – no parâmetro da ideologia oficial e, ao

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mesmo tempo, uma “multissexualidade” praticada com variações ao longo da vida.


No cenário dessa multissexualidade, às vezes denominada ambissexualidade, as
próprias pessoas se referem a ter preferências diferentes em momentos diferentes
da vida, como nos cantam os poetas. A gente vê dois caras conversando, por meio
de um poema, coisas assim: um fala, “ontem eu gostava mais de meninos, hoje gosto
mais de meninas”, enquanto o outro comenta, “pois é, antes eu gostava mais de
meninas, hoje eu gosto mais de meninos”; e os dois seguem conversando, sem que
haja qualquer barreira separando o homem que ama moças e o homem que ama
rapazes. Na cultura grega, não existia essa barreira criada pela cultura ocidental,
esse desconforto que impede que um homem heterossexual converse com
tranquilidade sobre o assunto, ou que converse com um indivíduo visivelmente
homossexual, pois somente fazê-lo já o coloca sob suspeita. O raciocínio hetero-
normativo é: se ele conversa tranquilamente sobre o assunto ou se conversa com
um gay, não é tão “hétero” assim, pois, se o fosse, não falaria com tranquilidade.
O que eu quis trazer aqui foram alguns pequenos exemplos que, como se diz,
“causam coceira”. São potencialmente discrepantes com relação aos modelos
interpretativos. Fatos anedóticos, tidos como sem relevância para a interpretação
histórica. Em isolado, esses casos significam pouco, pouco contribuem até mesmo
para problematizar a compreensão que construímos da sexualidade grega. Contudo,
vistos sistematicamente, podem nos ajudar a nuançar e relativizar essa dualidade
quase estrutural na cultura sexual, a antinomia entre efeminação e virilidade.
Diria que esses aspectos, presentes nas fontes, muitas vezes nas mesmas fontes
que serviram para a construção dos grandes modelos explicativos, foram tratados
de forma periférica. Afinal, por que dar importância ao Bágoas? Simplório eunuco
que distraía Alexandre em um momento em que, segundo as tantas biografias
moralistas, vivia sob tormenta psíquica, decadente e perturbado. Ao historiador,
deveriam interessar as estratégias militares, as conquistas, o sistema administrativo,
a expansão cultural e comercial do mundo grego, o legado territorial, a helenização
do Oriente... Que importava o “babado”? Que importância teria o que Alexandre
sentisse ou deixasse de sentir por Kleitos ou Heféstion? O ciúme de Aristógiton ou
o desejo incontrolado de Hiparco? O ódio e tristeza de Aquiles pela morte do
amado? A “pegação” nos muros do Cerâmico, as aventuras de Sófocles? Os transgê-
neros citas? São todos fatos rebaixados à categoria de anedotas, excluídos do
esforço hermenêutico de compreensão da Grécia Antiga.
Ora, nesse conjunto de historinhas, eu começo a ouvir ecos distantes de uma
multiplicidade de percepções, denominações e práticas de homoerotismo viven-

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ciadas entre os gregos. Isso evidencia uma realidade que não se conforma de todo
ao modelo que a gente aprende na maioria dos livros que tratam da sexualidade,
pois até os anos 2000 ainda predominava uma visão normativa da homossexuali-
dade grega, apesar de alguns estudiosos já terem apresentado sensibilidade para
perceber a heterogeneidade (BUFFIÈRE, 1980; SPENCER, 1998). O próprio Foucault
é um exemplo. Para nós, seu pensamento é referência em termos de filosofia e
teoria social, quando desconstrói a noção essencialista de indivíduo, de unicidade
do indivíduo, e apresenta o sujeito não como “indiviso”, mas como “diviso”, porque
constituído ao ser dividido, atravessado por múltiplos discursos: isso quer dizer
que leva ao rompimento com a ideia de essência do indivíduo. Essa quebra de
paradigmas nos levaria, como consequência, em uma perspectiva pós-moderna,
ao paradigma da diversidade, que norteia o pensamento social contemporâneo.
Ora, quando Foucault entra no campo da homossexualidade grega, ele opta pelo
modelo normativo, caindo na armadilha.
Então, foi isso que eu quis trazer para vocês, muito obrigado.

Bibliografia
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doença. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005. (Coleção História e Saúde. Clássicos
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simbologias, influências e continuidades; cultura e poder. São Luís: Universidade
Estadual do Maranhão/FAPEMA, 2011b. p. 269-290.

143
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CERQUEIRA, F.V. Os instrumentos musicais na vida diária da Atenas Tardo-arcaica e Clássica


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DOVER, Kenneth James. A homossexualidade na Grécia Antiga. São Paulo: Nova
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144
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145
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Profa. dra. Renata Garraffoni


Universidade Federal do Paraná (UFPR)
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Capítulo VII

Pensando conceitos para estudar a história de Roma

Nos últimos anos, tenho estudado aquilo que chamamos de usos do passado que,
em linhas gerais, busca entender qual é a importância do mundo antigo e de suas
leituras na modernidade149. No entanto, essa preocupação é mais antiga e começou
ainda durante o meu doutorado, em 2000, e o produto dessas reflexões pode ser
visto nos capítulos 1 e 2 da tese desenvolvida (GARRAFONI, 2005). Gostaria de
retomar aqui, de maneira resumida, alguns desses aspectos, pois os considero
importantes para a compreensão dessa primeira aula. Logo, gostaria de, antes de
me centrar no mundo romano, convidar a todos para olharmos um pouco o território
italiano do final do século XVIII e início do XIX. No entanto, podemos nos
questionar: por quê? A razão dessa reflexão se justifica na medida em que é nessa
época que começa a surgir uma preocupação que está ligada com as primeiras
ideias do que é patrimônio cultural, de como se seleciona e preserva o passado
romano, tema muito caro aos estudiosos da atualidade150.
Nesse período mencionado (final do século XVIII e início do XIX), com as campanhas
napoleônicas sobre a Península Itálica, o papado inicia um processo de luta pela
tutela e preservação do patrimônio histórico contra os saques e espoliações que

149. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/usosdopassado/>.


150. A reflexão que segue é resumida para esta ocasião, o original foi publicado em Garraffoni (2005, p. 29-36).

149
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vinha sofrendo. A responsabilidade de preservar os antigos monumentos romanos


da ação do tempo e do vandalismo dos homens passa a ser discutido, pela primeira
vez, como um empenho cívico e coletivo. Nesse contexto de intensas transformações
culturais, uma carta, escrita em meados do século XVI, ocupa um lugar de destaque
entre os intelectuais ligados ao papa Pio VII151.
Permeada por inúmeras polêmicas, a carta em questão era, na verdade, um texto
endereçado ao papa Leão X e, posteriormente, atribuído a Rafael de Urbino. Embora
Rafael tenha sido consagrado como um dos maiores pintores do Renascimento, a
“Lettera a Leone X” apresenta preocupações pouco conhecidas até então: seu
desejo de estudar a arquitetura e os planos que estava elaborando para a preservação
e restauração da Roma do tempo dos césares. Redigida junto com o amigo
Baldassar de Castiglione, a carta mescla momentos de literatura humanística com
descrições técnico-científicas que tinham em mente para a reconstrução da urbs.
Escrita dentro de um contexto em que fervilhavam novas percepções plásticas na
pintura que culminaram com transformações nas técnicas empregadas e no papel
social do artista, a carta indica a sensibilidade de Rafael, intrínseca à sua produção
como um todo, em conhecer a fundo os pressupostos artísticos e arquitetônicos
antigos e de recriá-los dentro do gosto de seus contemporâneos. Pensar cientifi-
camente uma representação em desenho arquitetônico da Antiga Roma a partir
das ruínas remanescentes e em conjunto com as técnicas antigas e os métodos
modernos criados por ele e seus colaboradores indica uma postura sistemática de
trabalho na qual Rafael não estudava o monumento isolado, mas sim em seu
próprio contexto, revelando uma percepção do mundo antigo como heterogêneo e
diversificado, algo inédito até então.
Se, por um lado, a carta pode ser lida como um projeto de restauro, em longo prazo,
do primeiro artista encarregado de cuidar das ruínas antigas, por outro, ela pode,
também, ser interpretada como um plano para recuperar a memória de Roma.
Sua restauração estaria, portanto, incluída em um projeto mais amplo de Leão X
de restabelecer os tempos de glória de Roma e do cristianismo. Este segundo
aspecto não passou despercebido pelos intelectuais do início do século XIX: em um
momento de invasões francesas, construir uma unidade política italiana era funda-
mental e, por isso, recuperar as ideias de Rafael a partir dos pressupostos teóricos
de sua carta tornou-se uma ferramenta importante na construção de uma identidade

151. Para detalhes sobre o momento histórico em que a carta a Leão X fora recuperada, propostas de traduções dos manuscritos
e todas as polêmicas ao seu redor, cf. Teodoro (1994).

150
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nacional. Em outras palavras, em um momento em que se faz necessário estabelecer


uma política nacional, pensar a preservação do patrimônio histórico é um ponto
fundamental. A recuperação dessa carta, quase três séculos depois de sua escrita,
valorizando Rafael enquanto arquiteto e seus métodos de trabalho152 – além de
sua consciência histórica, sua capacidade crítica, seu conhecimento da documen-
tação sobre o mundo antigo e da importância de sua conservação – viria ao encontro
das novas necessidades da moderna nação italiana que nascia.
Por que pensar essa carta de Rafael e a sua retomada em outro contexto histórico,
ou seja, por que pensar a relação entre os romanos e os diferentes períodos
históricos posteriores? Para responder a essa questão é preciso ter em mente
que o passado romano é lido de diferentes maneiras ao longo da história, e sua
interpretação está vinculada com os interesses do presente daquele que escreve.
Se, nas palavras de Rafael e Castiglione, percebemos uma tentativa de recuperar e
reconstruir traços da antiga Roma para que perdurasse sua glória e, consequen-
temente, de Leão X por apoiar o projeto, os intelectuais italianos do século XIX
reinterpretaram-na redefinindo o papel desempenhado pela antiga urbs para
construir uma ideia de identidade política nacional moderna.
Embora a relação aqui seja direta, pois Roma se situa geograficamente na Península
Itálica, recuperar a história de Roma e sua cultura na definição de identidades
nacionais não foi exclusividade italiana. Como o Império romano cobriu extensas
áreas, não era difícil encontrar resquícios de sua época áurea nas mais distintas
regiões do continente europeu. Assim, em uma época de unificação política e
criação de identidades nacionais, somadas à expansão e neocolonialismo, abriu-se
um espaço para que os intelectuais voltassem sua atenção para o estudo do
passado e, nesse contexto, Roma foi revisitada e teve um papel fundamental na
criação do conceito de cultura ocidental.
Nesse processo de retorno à Antiguidade, a história e a arqueologia desempenham
uma atuação decisiva. Ao se profissionalizarem, essas disciplinas passaram a ter o
status da neutralidade da ciência153, ideia muito corrente naquele momento e,
consequentemente, se tornaram mais um instrumento para a construção das novas
identidades que se formavam154. Em um período de intensos investimentos cientí-

152. Sobre a relação entre arqueologia e Rafael cf., por exemplo, Burns (1984, p. 381-404) e Nesselrath (1984, p. 405-408).
153. Sobre essa questão, cf., por exemplo, White (1994, p. 39-63).
154. Sobre a relação da arqueologia com o nacionalismo veja, por exemplo: Díaz-Andreu (1999, p. 161-180) e Díaz-Andreu (2001,
p. 3-20).

151
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ficos, os esforços dos classicistas se multiplicaram, e a coleta de dados, seja referente


à cultura material ou aos episódios que estavam presentes nos escritos remanes-
centes, culminou com o desenvolvimento de variados métodos para a elaboração
de interpretações objetivas do passado. Grandes estudos sobre a sociedade
romana se definiram e se constituíram a partir do olhar positivista desses eruditos;
a narração do fato ocupou um lugar central na atividade dos historiadores, assim
como a descrição dos artefatos encontrados nos sítios consistiu no principal trabalho
dos arqueólogos clássicos.
Embora predominassem as pesquisas no campo da história política romana, com
ênfase no encadeamento dos grandes acontecimentos, diversos aspectos da vida
cotidiana antiga também foram catalogados e classificados. É a partir do trabalho
desses estudiosos que se constituíram conceitos e ferramentas interpretativas que,
ainda hoje, ecoam em textos de especialistas ou entre os meios de comunicação
de massa. A ideia de uma Roma Imperial irradiadora de cultura e luz sobre o mundo
bárbaro que conquistara, de um Estado forte e centralizado a partir do princeps e
berço do cristianismo é muito frequente nesse período155, vindo a ser questionada
somente em meados da década de 1950, talvez devido às profundas feridas abertas
pelas duas grandes Guerras Mundiais.
Ressaltar, aqui, algumas ideias que fervilhavam no século XIX tem um significado
especial: acreditando que o historiador interpreta o passado a partir do contexto
em que vive e constrói seu discurso considerando suas escolhas, discutir fragmentos
dos momentos nos quais conceitos e teorias foram cunhados é imprescindível. Isso,
para que possamos perceber como as diferentes interpretações acerca de nosso
objeto de estudo se formaram e foram sendo relidas, ressignificadas, deslocadas
ou até mesmo “esquecidas” pelos historiadores que se seguiram (BLOCH, 1965;
DIAS, 1998; FOUCAULT, 1997, 1996; JENKINS, 2003; JOYCE, 1998).
Diante desse quadro particular, ressalto que discutir as interpretações da historio-
grafia em seu contexto de produção é imprescindível para estruturar os caminhos
que pretendemos seguir para estudar a história de Roma. Uma questão prática e
metodológica é, portanto, central em minhas preocupações: como tratar desses
diferentes temas com os quais nos deparamos ao longo da pesquisa? Posso resumir
aqui duas possibilidades para responder a essa questão. A primeira delas seria
apresentar os estudos acerca da história de Roma por ordem cronológica enfatizando

155. Cf, por exemplo, os trabalhos Richard Hingley, que caminham nessa direção de crítica ao conceito (HINGLEY, 1996, p. 35-48,
2000, 2002, 2010).

152
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suas rupturas e continuidades políticas; a segunda seria problematizar os temas


em questão e procurar ressaltar como foram construídos e reelaborados pelos
classicistas. Acabei, ao longo desses anos, optando pelo segundo percurso, traba-
lhando com temas como as lutas de gladiadores e as camadas populares por meios
dos grafites e as lápides funerárias.
Ao escolher organizar as reflexões a partir dos temas, busco estruturar minhas
considerações de maneira a destacar os contextos históricos em que foram criados
e suas posteriores interpretações, o que significa diversas idas e vindas a diferentes
momentos históricos e expressa, inclusive, uma postura teórica preocupada com
um constante “[...] repensar em como construímos o passado como história”
(MUNSLOW, 2000, p. 189)156. Em outras palavras, essa perspectiva se insere em
um contexto mais amplo no qual historiadores procuram produzir interpretações
mais dinâmicas que sensibilizem homens e mulheres de que os elementos de nosso
presente são fundamentais no processo de seleção e escrita da memória.
Intrínseca a essa postura está, também, outra questão de fundo: se em cada época
desenham-se distintas imagens da sociedade romana, qual, então, estaríamos
construindo? Ou, mais especificamente, qual é a relação com o passado romano
que estamos delineando? Talvez a escolha do objeto, os gladiadores e seu cotidiano,
já forneça algumas pistas. Trazer os gladiadores para as arenas mais uma vez, em
pleno século XXI, significa não só refletir sobre o dia a dia de homens e mulheres
das camadas populares romanas, mas também dialogar com a historiografia bus-
cando, sempre, caminhos alternativos que evitem conceitos aprisionadores e permitam
expressar a pluralidade desses sujeitos muitas vezes silenciados ou “esquecidos”
pelos modelos normativos de cultura.

Bibliografia
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156. Tradução de minha autoria. No original em inglês lê-se: “Rather, we are being forced by our present conditions of existence to rethink
how we construct the-past-as-history”.

153
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DÍAZ-ANDREU, M. Nacionalismo y arqueologia: del viejo al nuevo mundo. In:


FUNARI, P. P. A. et al. (Orgs.). Anais da I Reunião Internacional de Teoria Arqueológica
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154
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Capítulo VIII

O exército romano: diferentes maneiras de pensar sobre Roma e seus


exércitos

A reflexão que vou apresentar a seguir visa a aprofundar os conceitos vistos em


aula e, para isso, me baseio em um texto de minha autoria recentemente publicado
pela editora Annablume, no livro “História militar do mundo antigo”, volume 2
(FUNARI; CARVALHO; CARLAN; SILVA, 2012, p. 151-76). O que apresento a seguir
é uma adaptação dos principais argumentos para que todos possam refletir sobre
as formas de se escrever sobre o passado, tema da aula anterior, explorando um
caso específico, o exército romano.
Inicio destacando que a relação dos romanos com o universo bélico e militar sempre
esteve presente em diferentes momentos de sua história. Para tanto, basta nos
lembrarmos da lenda mais conhecida que deu origem à cidade de Roma: Rômulo
e Remo, filhos de Marte, deus da guerra, e de Reia Sílvia. Funari (2001) destaca
que, independentemente da veracidade dos acontecimentos narrados, cultivar
uma relação próxima com o deus da guerra foi fundamental para a constituição da
identidade romana e de seu domínio sobre outros povos, pois ao manterem as
histórias de suas origens junto aos deuses, legitimariam seu poder político diante
dos vastos territórios conquistados ao longo dos séculos.
A lenda de Rômulo e Remo seria, então, um exemplo bastante expressivo de como
a guerra e, consequentemente, a moral militar estava entrelaçada a diversos

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aspectos do cotidiano romano. Desde o princípio de sua história, os romanos


entraram em diferentes conflitos e, aos poucos, construíram um exército profissio-
nalizado para manter o domínio nos variados territórios conquistados, expandindo-
se primeiramente em direção ao sul da Península Itálica para, posteriormente,
conquistarem terras mais distantes. Nesse contexto, o exército romano foi se
consolidando a partir dos diferentes confrontos bélicos e, pouco a pouco, os líderes
militares e os soldados passaram a ter um papel importante na constituição da
sociedade romana.
Quando estudamos o período imperial, esse contexto militar não pode ser ignorado.
Na época de Augusto, já encontramos uma sociedade altamente militarizada,
na qual o exército desempenha papéis fundamentais na política, economia e na
constituição de vida das pessoas de diferentes camadas sociais e origem étnica.
Como ressaltou Paul Petit (1989), a força bélica dos romanos se concentrou nas
conquistas terrenas, e seu exército acabou por superar outros tipos de armadas
antigas. Além disso, suas táticas militares de combate e as estratégias de manutenção
das conquistas, como a construção de estradas e de acampamentos fortificados,
marcaram sua administração ao longo de vários séculos.
Essa capacidade de conquistar e manter domínios em lugares tão distantes
geograficamente e diferentes culturalmente chamou a atenção de muitos líderes
militares ao longo da história. Roma tornou-se modelo para Carlos Magno ao
compor o Sacro Império Romano, encantou Napoleão, que estudou as etapas das
Guerras Púnicas, assim como foi manipulada por Hitler e Mussolini de acordo com
seus propósitos políticos no começo do século XX (GARRAFFONI, 2006). Em
diferentes momentos históricos Roma foi revisitada e suas guerras e estratégias de
manutenção do Império reinterpretadas de acordo com os interesses políticos
vigentes (GOLDSWORTHY, 2002). Da mesma maneira que há um grande interesse
dos militares e políticos modernos nessas estratégias e táticas, a historiografia
desenvolvida a partir do século XIX também dedicou muita atenção aos estudos
das conquistas e do exército romano, fundando um dos mais abrangentes campos
de estudos da história romana: a história militar.
Dentro desse vasto universo de produções acerca do tema é necessário fazer alguns
recortes e situar a reflexão que gostaria de propor. Minha intenção aqui é chamar
a atenção sobre as diferentes maneiras possíveis de se construir modelos interpre-
tativos no campo historiográfico e indicar as principais renovações que o campo
de estudo vem sofrendo a partir das críticas pós-coloniais. Nesse sentido, a reflexão

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tem um foco específico, o Império romano, mas procurarei indicar a base da


argumentação dos modelos interpretativos mais tradicionais fundados na visão
imperialista do século XIX e construídos, principalmente, a partir dos textos, e discutir
a importância da arqueologia para uma flexibilização dos modelos atuais.
Antes de iniciar a análise do mundo romano, gostaria de retomar algo que já
comentei na primeira aula sobre Roma, fundamental para entender as considerações
que se seguem. Parto de uma percepção de história específica na qual o historiador
não está isento de seu tempo histórico, ou seja, o estudioso sempre olha para o
passado a partir de seu momento presente. Essa postura implica considerar que a
escrita da história não é neutra, mas que está fundamentada em um campo de
reflexão e atravessada pelo momento em que o estudioso vive. Como afirmaram
recentemente Funari e Silva (2008), quando o historiador considera que produz o
passado a partir das escolhas de fontes e de metodologias de análise, isso implica
afirmar que o estudo dos modelos teóricos é imprescindível para fundamentar tais
escolhas e construir uma interpretação. Nesse sentido, ao compartilhar com essa
postura de Funari e Silva, acredito que haja diferentes maneiras de se escrever a
história e, ao fazermos isso, assumimos um papel de intermediação entre passado
e presente baseado em filiações teóricas. Logo, aquele que escreve sobre o passado
não está isolado, mas está imerso em seus valores e visões de mundo, pautado em
modelos interpretativos que se constituem a partir dos fundamentos epistemoló-
gicos da disciplina.
A grande maioria dos estudos acerca do exército romano parte dos textos, pois
eles expressam muitos aspectos dos valores militares. Vejamos alguns exemplos:
enquanto Ovídio traça paralelos com as conquistas amorosas, comparando a
virilidade do soldado que conquista territórios e mulheres, Petrônio ou Apuleio
satirizam a linguagem amorosa e os aspectos da vida dos soldados. Por outro lado,
Tito Lívio e Políbio narram as Guerras Púnicas, Salústio relembra a Guerra de Jugurta,
Júlio César imortaliza as guerras na Gália, e Tácito e Suetônio destacam a força do
exército romano, só para destacar algumas narrativas latinas. Cada autor, em sua
época e com suas características literárias próprias, compõe uma intricada gama
de textos na qual conquista amorosa, virtude, virilidade, poder e força são constan-
temente evocados e delineiam os contornos de uma visão de mundo masculina e
vencedora.
A grande quantidade de relatos militares entre os autores latinos não escapou aos
olhares dos estudiosos do século XIX que, ao estabelecerem os rumos da moderna

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historiografia, tornaram o estudo das guerras e, consequentemente, a história militar,


a essência da história do mundo antigo (HÖLSCHER, 2003). Seguramente essa
escolha não foi aleatória, pois, se considerarmos que nessa época se desenvolve
uma política imperialista, na qual os europeus conquistaram parte do Oriente e da
África, o estudo dos métodos militares e de governo dos romanos ocupou um lugar
de destaque. Partindo da ideia segundo a qual generais e políticos da modernidade
poderiam aprender a manter seus domínios conhecendo a história de seus supostos
antepassados, renomados estudiosos do século XIX selecionaram e analisaram
textos romanos; autores antigos foram criticados e julgados por aqueles que
buscavam a verdadeira história de Roma. Essa busca por uma essência, por uma
verdade inquestionável, definiu os cânones para o estudo das guerras antigas,
pois selecionou os textos que deveriam ser considerados imparciais para que os
modernos pudessem conhecer as estratégias políticas e militares romanas, compre-
ender e explicar como esse povo havia dominado praticamente todo o mundo
conhecido até então.
O tema das guerras e das conquistas militares seguiu interessando os estudiosos
pelo século XX, e ainda hoje há muitos pesquisadores do mundo romano que se
dedicam a compreender a vida militar antiga. Embora o interesse seja latente entre
os especialistas, as abordagens são muito distintas das desenvolvidas pelos
estudiosos do século XIX. Acredito que uma das diferenças mais marcantes consiste
no fato de que os especialistas vão além do estudo do domínio exercido pelos
romanos aos outros povos que conquistaram, mas interpretam as guerras romanas
também como fenômeno social e cultural, capaz de moldar visões de mundo.
Nesse sentido, as críticas aos modelos interpretativos e o desenvolvimento das
teorias sociais ao longo do século XX, que mencionei há pouco e também enfatizei
bastante na primeira aula, trouxeram à tona uma série de questões alargando os
horizontes a serem explorados. Assim, se no século XIX, época do auge do imperia-
lismo europeu, foi fundamental pensar em políticas de domínio ou nas estratégias
militares que os romanos desenvolviam para conquistar e manter seus territórios,
hoje em dia, após os eventos do 11 de Setembro e das inúmeras experiências de
violência com o terrorismo em diferentes partes do mundo, muitos têm questionado
as noções de violência e passam a pensar, por exemplo, como os romanos lidavam
com as perdas, buscando interpretações mais balanceadas do Império, mostrando
suas múltiplas facetas, não somente como domínio absoluto, mas expondo a
exploração dos nativos e escravidão derivada desse tipo de governo (HINGLEY,
2005).

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Por outro lado, os estudiosos do grupo do CEIPAC da Universidade de Barcelona


(UB), liderados por José Remesal, têm se dedicado a estudar a importância do
exército e da estrutura militar organizada por Augusto para a manutenção do
comércio e distribuição do azeite em diferentes partes do Império romano (REMESAL,
2008; MARIMON, 2004; PONS, 2004; FUNARI, 2002; CARRERAS; OLESTE, 2008).
As pesquisas desenvolvidas pelo CEIPAC e seus membros, espalhados por diferentes
universidades, com base na cultura material, ou seja, as ânforas, olearias e seus
selos, têm indicando que a arqueologia é uma ferramenta fundamental para se
pensar outras maneiras de se aproximar do exército romano em períodos no qual
não estão em campos de batalha.
Os exemplos dos estudos acerca da questão da violência ou da relação entre
economia e exército revelam uma faceta importante do desenvolvimento dos novos
modelos interpretativos acerca da história militar romana desenvolvida nas últimas
décadas: o interesse pela cultura material. Funari (2002) chama atenção para o fato
de que, no início dos anos de 1980, Alföldy já afirmava ser impossível estudar o
mundo antigo sem arqueologia. Esse crescente interesse pela cultura material tem
proporcionado aos estudiosos novas leituras acerca das questões militares. Nesse
novo contexto, os relevos de mármore, as lápides funerárias, lamparinas, ânforas,
escavação de acampamentos militares, pinturas de parede e suas inscrições tornam-
-se fontes primárias importantes, pois permitem enfoques que não se restrinjam à
narrativa das grandes batalhas ou à comemoração das vitórias marcadas por
autores da elite romana, mas que enfatizem as imagens que a guerra produziu, as
reações e os sentimentos daqueles que vivenciaram tal experiência de diferentes
pontos de vista, as estratégias de abastecimento e integração econômica, a religio-
sidade, a disseminação da língua latina, entre muitos outros aspectos que não eram
abordados até então.
Nesse sentido, é possível refletir sobre como o exército influenciou as concepções
de vida e morte dos latinos e dos povos conquistados, as mudanças alimentares e
linguísticas, e provocou uma diversidade de situações e reacomodações ao longo
do período do Principado. Ou seja, a arqueologia tem ajudado os especialistas a
expandir as possibilidades de estudo da história militar romana, que não mais se
circunscreve ao domínio absoluto de Roma sobre os demais povos. As armas, a
logística, as táticas e os planos antes considerados técnicas deslocadas para
o exercício do poder absoluto de Roma, passam a ser entendidos como parte
integrante do Império, com conflitos e acomodações inerentes aos locais onde os
acampamentos militares foram estabelecidos após a conquista dos territórios. O

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estudo da cultura material torna-se, portanto, uma ferramenta importante para


compreender as particularidades de cada situação ao permitir a possibilidade do
estudo de caso.
Por fim, vale ressaltar que, diferentemente do que encontramos nos textos eruditos
escritos por romanos, membros da elite que viviam nas proximidades de Roma,
marcados com visões e interesses próprios de seus períodos e condições políticas,
os artefatos arqueológicos encontrados possibilitam análises a partir do prisma da
diversidade. Essa diversidade nos desafia a buscar novos modelos de interpretação;
nos instiga a pensar sobre a relação da língua e da cultura não somente pelo viés
da dominação, mas também da comunicação; nos proporciona uma miríade de
sujeitos que, até então, estavam excluídos do universo militar. Refletir sobre as
particularidades das relações étnicas, sociais, de gênero e econômicas abre a possi-
bilidade de focarmos uma multiplicidade de aspectos do cotidiano e construirmos
outras interpretações acerca da presença militar nas fronteiras romanas, pensando
a vida dos moradores das áreas mais distantes do centro do Império a partir de
seus sentimentos, conflitos e contradições.

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161
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Prof. dr. Pedro Paulo Funari


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
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Capítulo IX

Arqueologia clássica: os inícios

A arqueologia clássica tem suas origens mais remotas na busca, por parte dos
colecionadores e antiquários do Renascimento, de estátuas e outras belezas antigas
que serviriam de inspiração para os modernos. Esses antiquários buscavam os
vestígios de gregos, egípcios e, principalmente, dos romanos, tanto por estarem
mais disponíveis, como por representarem o poder imperial. O Império turco-
-otomano não permitia o acesso às antigas terras gregas e egípcias, enquanto os
restos romanos eram abundantes em toda a Europa. Os ingleses interessaram-se
pelos romanos na antiga província da Britânia (43-410 d.C.), pois consideravam
sua missão conquistadora na Irlanda e na América do Norte semelhante à dos
romanos frente aos antigos bretões. Durante esse período, objetos romanos
completavam a educação dos meninos das elites europeias, que estudavam latim
e sabiam de cor passagens de Cícero (103-43 a.C.) e Virgílio (70-19 a.C.), para que
pudessem servir às monarquias absolutistas dos séculos XVII e XVIII.
O século XVIII, já sob influência do Iluminismo, viria a testemunhar o surgimento
do que ficou conhecido como grand tour, uma viagem de descoberta que poderia
durar meses ou mesmo anos, como um rito de passagem para jovens da elite dos
principados alemães, da França, Inglaterra e de outros centros distantes do Mediter-
râneo. Esse passeio centrava-se nas escavações arqueológicas, se assim pudermos
chamar, de Roma, em primeiro lugar, mas também de Pompeia e Herculano e dos

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sítios etruscos, no norte da Península Itálica. Era, portanto, uma viagem entre a
Toscana e a Campânia, tendo como principal atração as antiguidades romanas.
O resultado foi o surgimento dos primeiros desenterramentos sistemáticos, precur-
sores do que viriam a ser as escavações arqueológicas. Buscava-se desenterrar as
grandes estruturas arquitetônicas, como casas, templos e palácios, e retirar objetos
íntegros de valor estético elevado, como estátuas e pinturas parietais. O desenter-
ramento sistemático de Pompeia iniciou-se em 1748 e permitiu que a segunda
metade do século XVIII, sob o influxo de entusiastas como Johan Joachim
Winckelmann (1717-1768), testemunhasse a passagem de antiquários para
arqueólogos ou historiadores da arte romana.
As escavações das cidades sepultadas pelo Vesúvio em 79 d.C. iniciaram um novo
surto de classicismo, que levaria ao movimento neo-clássico a partir da publicação,
em 1857, do primeiro volume de um total de sete – “Le antichità di Ercolano
esposte” (“As antiguidades de Herculano expostas, 1757-1792”). Após a leitura
de Winckelmann, o poeta J. W. Goethe (1749-1832) decidiu-se por visitar a Campânia,
a partir de 1787, tendo sido um dos primeiros a propor que as cinzas e poeira do
vulcão teriam pairado sobre Pompeia antes de descer e sepultar a cidade. Os objetos
eram levados de Herculano e Pompeia para o Museu de Nápoles em verdadeira
procissão, sob os auspícios e inspeção dos reis de Nápoles e das duas Sicílias.
Esses princípios da arqueologia romana foram muito caracterizados pelo fascínio
pelas estruturas arquitetônicas, como atestam as atuações pioneiras do arquiteto
suíço Karl Jakob Weber (1712-1764) na escavação da Villa dos Papiros, em Her-
culano, e dos prédios de Júlia Félix em Pompeia. Incluíam-se requintes até hoje
raros e muito valorizados, como as representações axonométricas ou tridimensionais.
A arqueologia clássica surgia, assim, como pioneira, e pode ser considerada, por
isso, como a primeira arqueologia, se a definirmos como a disciplina voltada ao
estudo sistemático dos objetos, ainda em pleno século XVIII, muito antes, portanto,
da arqueologia pré-histórica. Ela surgia como parte da filologia e da história da
arte, e como arqueologia romana. A Península Itálica concentrou a atenção dos
estudiosos das artes e objetos romanos, tendo contribuído para isso a invasão de
Roma por Napoleão, em 1809. Desde a Revolução Francesa de 1789, o mundo
romano foi tomado como fonte de inspiração. Napoleão lia as obras do general e
ditador romano Júlio César (100-44 a.C.); o imperador romano Augusto (63 a.C.-
14 d.C.) serviu de modelo para o bonapartismo; o código napoleônico de 1810
moldava-se nos códigos de direito romano. Tudo isso contribuía para que, tudo que
fosse romano, de moedas a inscrições, passasse ao centro das atenções.

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A cidade de Roma ganhou uma Comissão para o Embelezamento da Cidade,


com substanciais verbas destinadas aos sítios arqueológicos. A exportação de
antiguidades foi proibida, foram instituídas regras para as escavações e para a
manutenção dos monumentos. Escavações em Pompeia foram patrocinadas e, em
1816, foi recriada, em novas bases, a Academia Romana de Arqueologia, sob a
direção do escultor Antonio Canova (1757-1822). Nas décadas seguintes, a atenção
das potências para a arqueologia romana levaria à criação do Instituto de
Correspondência Arqueológica (nomeado Instituto Arqueológico Alemão em Roma,
a partir de 1871, quando foi criada a Alemanha), em 1829; da Escola Francesa de
Roma, em 1875; da Academia Americana, em 1894; e da Escola Britânica, em 1901,
aliando arqueologia, história da arte e humanidades, em geral.
A arqueologia romana foi muito influenciada, em seu desenvolvimento rápido no
século XIX, pela industrialização e pela modernização técnica. A difusão da estrada
de ferro permitiu que as comunicações terrestres se abreviassem e que o transporte
de mercadorias fosse multiplicado em todo o antigo território europeu do Império
romano. Muitas construções romanas foram escavadas, durantes muitas décadas,
devido às obras ferroviárias. A industrialização levou, ainda, à modernização urbana
em geral, com obras que também conduziram à descoberta de vestígios romanos,
que eram restaurados no local ou levados aos museus, que se difundiam também
nesse período como instituições públicas. A cidade de Roma testemunhou uma
verdadeira febre de escavações e de demolições de construções medievais e
modernas que haviam sido construídas em cima dos antigos edifícios de época
antiga. Assim, os muros originais de Roma, conhecidos como de Sérvio, foram
escavados em diversas partes, como no Esquilino, o Fórum foi liberado de diversas
construções, as estradas foram exploradas pelos arqueólogos, assim como as
redondezas da cidade.
Os arqueólogos estavam interessados em grandes edifícios e em inscrições.
O pioneiro Rodolfon Lanciani (1845-1929) conta um episódio representativo do
espírito prevalecente à época:
As escavações do Fórum, começadas dia 6 de fevereiro de
1882, duraram 58 dias. A terra que cobria a Via Sacra e
monumentos vizinhos, entre as igrejas de S. Lorenzo in
Miranda e Santa Maria Liberatrice desapareceu; 284 mil pés
cúbicos de lixo foram retirados; 19 mil pés quadrados de
solo antigo foram descobertos; no dia 21 abril, aniversário
da fundação de Roma, a população teve a possibilidade –
pela primeira vez desde a queda do Império – de andar por

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toda a Via Sacra, desde sua origem no Coliseu até seu


término no Capitólio. Este feliz evento foi celebrado com a
presença de suas Majestades, com uma multidão no Fórum
(10 de Junho de 1882).

A cidade de Roma foi, por décadas, caracterizada por escavações desse tipo e pela
demolição de construções medievais e modernas, com reconstruções também, em
diversos casos, criando o que viria a ser a moderna Roma Antiga que se pode visitar.
Como fica claro no relato de Lanciani, o desenterramento não estava interessado
nos vestígios encontrados no que era denominado de lixo, pois apenas grandes
objetos de arte portentosos eram considerados relevantes, como fica claro em outro
testemunho do mesmo escavador: “Na minha longa experiência de escavações em
Roma, apenas duas vezes descobri estátuas em seus antigos lugares, em seus
pedestais originais” (9 de junho de 1883).
A busca por inscrições era a outra grande febre que caracterizava a arqueologia
romana em toda a Europa. A Academia de Ciências de Berlim iniciou os trâmites
para a publicação de todas as inscrições latinas em 1847, e o estudioso Theodor
Mommsen (1817-1903) capitaneou a publicação dos volumes. a partir de 1853.
Até o dia de hoje já foram publicadas mais de 180 mil epígrafes. As inscrições
monumentais, que já eram coletadas desde o Renascimento, continuaram a merecer
atenção especial, como no caso de uma inscrição proveniente do templo de Ísis
em Pompeia:

N. Popidius N. F. Celsinus
Aedem isidis terraemotu
Collapsam a fundamentis P. S. restituit.
Hunc decuriones ob liberalitatem
Cum esset annor. sexs.
Ordini suo grati adlegerunt.

(CIL X 846 = ILS 6367 = AE 2000, 297)

Numério Popídio Celsino, filho de Numério, fez reconstruir


às suas expensas, inteiramente, o templo de Ísis, que um
terremoto havia derrubado. Os decuriões incluíram-no, de
graça, na ordem dos decuriões por sua liberalidade, ainda
que tivesse apenas seis anos de idade.

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O terremoto ocorreu em 63 d.C., e o templo de Ísis reconstruído preservou-se como


nenhum outro, com muitas esculturas e instrumentos de culto, que foram levados
ao Museu de Nápoles.
A iniciativa de se publicarem as inscrições latinas, contudo, representou uma signifi-
cativa ampliação da abrangência de objetos estudados pela nascente arqueologia
romana. A publicação e estudo de inscrições em objetos comuns, de uso quotidiano
e sem qualquer preocupação estética, como tijolos, telhas e ânforas, levou à inclusão,
no âmbito arqueológico, de uma quantidade imensa de artefatos que só podiam
ser analisados como parte de uma série. Os romanos utilizavam o barro para
fabricar, em grandes olarias, em um esquema de massa e em produção padronizada,
tijolos e telhas, que serviam para a construção e de ânforas usadas para transporte,
a longa distância, de produtos como vinho, azeite e temperos alimentares (salações).
Como as manufaturas produziam tais artefatos em série, eles recebiam inscrições
relacionadas à produção e ao comércio, e Mommsen logo percebeu a necessidade
de um estudo específico para as inscrições nesses objetos e encarregou alguns
de seus discípulos a cuidarem disso.

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Prof. dr. Sílvio Marino


Universidade de São Paulo (USP)
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Capítulo X

Questões introdutórias

A questão do método, da metodologia a seguir para alcançar resultados desejados,


não é uma questão moderna; o nome mesmo nos diz da origem grega desse
conceito. O termo método é composto por duas palavras: meta (com, através) e hodos
(estrada, rua) e indica o caminho que o saber, uma ciência o uma técnica tem que
seguir para chegar a resultados “corretos”.
Uma metodologia, podemos dizer, pertence a uma única ciência, ou seja, determinada
metodologia deve referir-se exclusivamente a uma ciência. Isso significa que não
estamos falando dos estudos clássicos como de uma “ciência”, o que me parece
bastante desafiante, porque, diferentemente das ciências definidas exatas, a
pesquisa sobre o passado não acaba em uma série de dados numéricos quantifi-
cados, mas chega a resultados que podem ser avaliados qualitativamente. Dizemos
isso de dados que já têm um sentido por si mesmos, um significado e um horizonte
de sentido que permitem uma visão mais ou menos geral do que se está estudando.
O que quero dizer com isso? Quero dizer que estamos lidando com interpretações,
ou, para dizer melhor, conforme Umberto Eco, estamos lidando com interpretações
de interpretações. Se o filósofo x escreve um tratado sobre y – desde que tenhamos
o texto –, ou o historiador z escreve sobre o fato p, isso significa que está dando
uma própria interpretação de um fato (natural ou social) que observou e analisou.
Já o trabalho do classicista, que lida com a filologia, a filosofia, a história, o pensa-

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mento político e científico, é interpretação do texto do autor x, ou seja, é essen-


cialmente uma interpretação de uma interpretação. A interpretação de segundo
grau (do classicista) se torna, então, uma perspectiva acerca de uma perspectiva de
pesquisa (aquela do autor x). No entanto, a interpretação que fazemos depende do
texto ou de nós? Não quero dar uma resposta a esse aspecto, que nos levaria muito
longe, sendo essa a questão decisiva da hermenêutica textual. Com essa pergunta
quero simplesmente destacar que as interpretações das interpretações – o que
dizemos sobre o pensador x –, embora recortem um âmbito muito pequeno do
mundo antigo, de qualquer maneira estão já inseridas em um campo de sentido
preciso, que depende da pergunta que nós fazemos ao texto e da perspectiva pela
qual queremos ver o passado. Certamente, nem todas as interpretações podem ser
corretas, e por isso é preciso utilizar uma metodologia que possa indicar os passos
a tomar para que não se caia na tentação de especular ad libitum sobre as doutrinas
dos pensadores da Antiguidade – prática muito usual entre os pensadores contem-
porâneos que remetem aos antigos.
No entanto, pode-se perguntar: há uma única metodologia para o estudo da
Antiguidade? A unidade do método é uma certeza? Parece-me mesmo que não.
E me parece que não porque a unidade do método teria que pressupor a unidade
do objeto, e então teríamos de nos perguntar antes: os estudos clássicos são um
sujeito unitário ou não?

Definição do objeto histórico


O que são os estudos clássicos? Eles representam disciplinas também muito distantes
entre si; pensemos na história do pensamento político clássico, na especulação
filosófica, na correção de um texto ou na arqueologia. Nesse âmbito tão grande
não se pode traçar um perfil, e ainda por cima em poucas páginas, de uma meto-
dologia que possa ser adequada a todos os âmbitos. Gostaria de lembrar que cada
disciplina tem suas próprias metodologias e próprios procedimentos, que não
podem ser comparados aos das outras disciplinas. O que se pode oferecer é um
sentido geral para a reflexão sobre os antigos. O que eu gostaria fazer aqui é dar
alguns conselhos para quem estuda o mundo antigo, para explicitar conceitos que
precisamos ter em conta.
Em primeiro lugar, para começar uma pesquisa em qualquer campo, temos que
definir o nosso “objeto de pesquisa”, ou seja, o “objeto histórico” com o qual
entraremos em contato. Definir no sentido latino de “traçar confins” – ou, como
querem os gregos, horizesthai-diorizesthai –, delimitar o campo que queremos

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“cultivar”. Para fazer isso teremos que entender o quê e quem tencionamos estudar,
qual aspecto do pensamento de um autor queremos destacar e porque nos parece
necessário nos envolvermos em uma pesquisa.
A primeira coisa que é preciso estabelecer é o problema que desejamos resolver, e
em seguida circunscrevê-lo e identificar as questões que estão em jogo. Para fazer
isso é preciso explorar a bibliografia referente ao objeto de pesquisa.
Claramente a categoria estudos clássicos poderia ser entendida como abarcadora de
todas as conceituações antigas. Contudo, podemos verdadeiramente compreender
sob uma única categoria as produções intelectuais ou artísticas antigas da China,
da Índia, da Babilônia? Talvez sejaexagero pretender tudo isso, embora possa ser
interessante, sem dúvida, e embora haja importantes pesquisadores que se ocupam
ao mesmo tempo e comparando entre si aspectos da Grécia e das culturas orientais
(Geoffrey Lloyd é o exemplo mais famoso hoje em dia). Precisamos, todavia, sempre
ter claros os pontos de contato e de alteridade entre as diversas civilizações, e não
somente, por exemplo, entre a grega e a chinesa, mas também entre civilizações
muito mais próximas, tal como a grega e a romana.
É preciso compreender onde, entre uma cultura e outra, haveria um continuum, e
onde não. Isso é um discurso, para o nosso campo de estudos, que pode, por exemplo,
interessar a antropologia histórica, âmbito por muitos invocado, mas poucas vezes
desenvolvido verdadeiramente.
Por outro lado, como se faz para criar um objeto de pesquisa? Claramente o ponto
de partida é o texto, qualquer tipo de texto, seja ele tratado, diálogo, poema, carta,
testemunho sobre um autor, imagem pictórica, estátua etc. Cada um desses tipos
de texto terá uma metodologia diferente de pesquisa, sendo diferente do tipo de
texto em que o pensamento do nosso autor x se expressa.
Como primeira coisa, o texto! No entanto, os estudos clássicos são feitos a partir
de duas línguas, o grego e o latim, que é preciso conhecer para começar uma pesquisa.
Assim, a segunda coisa importante a se ter em conta é a língua. Porém a língua,
especialmente a grega, não foi sempre a mesma ao longo de sua vida; os signi-
ficados das palavras podem mudar, pode haver termos que em um âmbito significam
uma coisa e, em outro, outra. Precisamos estar cientes de que a língua grega escrita
teve uma vida muito mais longa do que a das nossas línguas “vulgares”, uma vida
que vai do século VIII a.C., mais ou menos, até os desdobramentos bizantinos: uma
vida de mais de dois mil anos! Claramente temos todos os instrumentos para não

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nos perdermos nesse mare magnum, mas desses instrumentos vou falar
brevemente na segunda aula. O que queria fazer era indicar, imediatamente,
quanta atenção temos que prestar quando entrarmos em contato com um texto
distante de nós mais do que dois mil anos.

Clássico e antigo
Falamos de definir e de definições. Precisamos, por isso, ser um pouco mais precisos
nesse assunto.
Demos, en passant, uma definição do termo metodologia por meio de uma imagem
que coloquei, a da estrada, do caminho por um lugar que afinal leva ao destino,
um caminho que tem etapas. Gostaria de falar brevemente do conceito de antigo,
introduzindo-o com uma anedota.
Certa vez, quando era doutorando e estudava em Paris, me aconteceu de sair com
os meus amigos e outros pesquisadores que nunca havia encontrado antes. Na Rue
de Rivoli, perto do Hôtel de Ville, converso com uma doutoranda que estudava
paleografia. Em certo momento, ela me pergunta o que eu estudava, e claramente
lhe digo que estudava filosofia antiga. A essa altura, ela me pergunta à queima-
roupa: “Mas ‘antiga’, quanto?”. Fiquei um pouco confuso por uma pergunta tão
ingênua, de modo que pensei que ela queria tirar sarro de mim. Seja como for,
também a ingenuidade da pergunta me empurrou a dar uma resposta e, para
não parecer soberbo, lhe disse laconicamente: “Estudo Platão”. Porém, a pergunta
poderia se especificar neste sentido: “Quão ‘antigo’ é Platão?”. Felizmente ela
não a fez!
Isso me impele, agora, ao problema de propor uma resposta: o quão antiga é a
filosofia antiga? Podemos dizer que antigo pode significar também velho, e nesse
sentido não há dúvida de que a filosofia antiga seja uma coisa muito velha.
Entretanto, antigo leva consigo também outros significados, como clássico e funda-
mento, e talvez a resposta esteja nesses dois conceitos. Comecemos pelo segundo.
Antigo, no sentido de fundamento, pode dar significado a tudo o que veio depois, na
história da cultura, e apoia o próprio ser sobre o que a Antiguidade já disse. Nesse
sentido, as discussões dos filósofos, dos historiadores, dos cientistas suces-
sivos são construções na base das quais há toda a especulação antiga. Não pode-
ríamos entender, em resumo, o aristotelismo e o antiaristotelismo da época moderna
sem Aristóteles, ou a teoria copernicana, ou ainda o hipocratismo na medicina, que
chega até o século XIX, sem conhecer os autores antigos.

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Entretanto, o conceito de antigo como clássico indica também uma outra pers-
pectiva, que age mais por dentro das coisas e no nosso modo de entender a cultura.
Considerar o antigo como clássico significa que o pensamento que gregos e
romanos expressaram funciona como um paradigma, um código genético que
a literatura, a filosofia e a política têm por dentro de si, como uma espécie de
impostação que, também no mudar das doutrinas e das correntes de pensamento,
nunca desaparece. A esse ponto se põe a pergunta acerca do conceito de clássico e
do uso que desse conceito os modernos, nós mesmos, fazem, porque podemos ter
muitos usos de clássico também irreduzíveis uns aos outros. Para ficar no século XX,
pensemos na escultura da Rússia soviética, em que a estatuária se inspirava em
cânones gregos para propor um novo modelo de homem. Ou pensemos no
classicismo dos anos 1920 e 1930 da Alemanha nazista, em que o modelo grego
era considerado uma chave nacional-socialista para operar uma regeneração, uma
palingénesis do povo alemão – pensemos no fato de que os nazistas, em sua
propaganda, se referiam muitas vezes à “República” de Platão para se propor como
os guardiões do novo Estado regenerado. Pensemos também no fascismo na Itália,
que não foi um movimento só político, mas interessou pelos mais importantes
aspectos da cultura, como a arquitetura; pensemos, enfim, no pós-moderno e nas
colunas dóricas dos locais dos anos 1980!
Claramente o “clássico” serviu para justificar conceituações da arte, especulações
filosóficas e também visões da vida e da política. Nesse sentido, a categoria de
clássico atravessa toda uma cultura e um tempo e, se pensamos na nossa época
“democrática”, não podemos não notar o quanto a propaganda da democracia
“exportada” se refere ao exemplo grego! Somente após a devida reflexão é possível
descobrir que a democracia dos antigos não era mesmo o que quereriam mostrar
os sustentadores da “democracia em todos os países”. É preciso, portanto, prestar
muita atenção quando a categoria de clássico está sendo utilizada sem uma reflexão
adequada sobre as conceituações antigas, porque poderíamos perceber que
os “clássicos” dos quais estamos falando na verdade são “muito modernos”. O
trabalho do classicista é também o de refletir sobre as interpretações modernas
acerca do mundo antigo.
O clássico se torna, assim, uma macrocategoria capaz de incluir coisas que não
podem ser próprias do mundo clássico. Nesse sentido, clássico indica uma coisa que
é um ponto firme, uma perspectiva privilegiada com que observar a cultura em suas
mais diversas manifestações. Aqui, todavia, vamos além dos limites da nossa
matéria, porque clássico indica uma coisa que é um ponto de referência, não importa

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o quão “velho” seja. Italo Calvino, em “Perché leggere i classici”, nos diz que o
clássico é um texto que nunca deixa de nos falar, que nos indica sempre perspectivas
novas; clássico é um texto em que notamos, cada vez que o lemos, coisas que antes
nunca achamos. Um clássico pode ser, e com certeza é, o “Dom Quixote”, mesmo
não tendo sido escrito por um grego ou um latino.
Temos que tentar mediar essa linda sugestão com o dado da história, e dizer que
antigo tem uma data de nascimento e uma de morte.
Podemos dizer que o mundo clássico nasce na Grécia e nas colônias da Ásia Menor
e da Magna Grécia por volta do século VIII a.C. e termina com a data símbolo do
529 d.C., ano do encerramento da Escola de Atenas pelo imperador Justiniano, ou
seja, com o que se chama de época tardo-antiga, em que o pensamento pagão
(grego e romano) se confronta cada vez mais com o pensamento cristão – pensemos
em Agostinho, por exemplo. Nesse sentido, antigo deve ser entendido como Período
Antigo, que vem antes da Idade Média. No entanto, essas são distinções temporais
que interessam também à história propriamente dita, e indicar uma data se torna
bastante arbitrário, porque, falando de literatura ou de filosofia, temas, estilos e
métodos de pesquisa que podemos chamar de antigos se encontram deste lado e
além desta data. Como conselho a todos, digo para ler um bom manual de história
antiga para compreender um pouco melhor o que acontece na história desse
período, porque a pesquisa sobre o pensamento antigo não pode abster-se da
história geral em que esses pensadores, poetas e artistas viveram, nem das suas
condições materiais.
Para os especialistas de uma disciplina, talvez o problema principal seja o de fazer
dialogar o próprio âmbito específico com os outros que se ocupam do mesmo
período histórico. Por exemplo: a filosofia antiga foi, talvez mais do que outros
campos da Antiguidade, a que mais sofreu de leituras modernas que alteraram sua
fisionomia. Também porque falar de filosofia antiga significa remontar às origens
mesmas da filosofia. A pergunta sobre a origem da filosofia teria que ser: “O que
era a filosofia antiga para os antigos?”157. Há uma posição, proposta por vários
estudiosos, pela qual a filosofia começa com Sócrates, por ser ele o “primeiro” a
fazer da ética um âmbito próprio de pesquisa. Contudo, para sermos fiéis ao
princípio da aderência textual, encontramos a primeira ocorrência do termo filosofia,
com o sentido de especulação peri physeos, ou seja, a pesquisa sobre a natureza! O

157. Cf. CASERTANO, 2007.

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texto é um dos tratados mais importantes do ponto de vista científico do “Corpus


Hippocraticum: Antiga Medicina” (fim do século V a.C.), que no capítulo XX associa
a filosofia à pesquisa peri physeos (sobre a natureza). Sócrates, que não quis
pesquisar sobre as realidades físicas – conferir a segunda navegação do “Fédon”
–, por isso não era um filósofo? Ou temos que dizer que não existe a filosofia, mas
que, também em seu começo, como na época moderna e contemporânea, havia
sistemas de pensamentos diferentes que foram chamados de filosofia? Talvez essa
última resposta seja a mais correta, porque capaz de abranger um campo mais
vasto de pensadores que, seja como for, foram chamados de “filósofos”.
Esses “sistemas de pensamento” diferentes podem ser conduzidos sob uma única
metodologia? Acho que não; acho que, em vez disso, cada um pode ter coisas a
dizer para cada setor disciplinar e acho que temos de nos esforçar para compreender
o que pode e o que não pode ser utilizado, tomando de tudo o que a tradição antiga
foi guardando para dar um quadro o mais completo possível. O que significa isso?
Significa um terceiro ponto, se quisermos dar conselhos para uma metodologia da
pesquisa em estudos clássicos, a interdisciplinaridade. Esse terceiro ponto me parece
muito fecundo e capaz de envolver os primeiros dois: a aderência ao texto e a
atenção para a língua.
Quando lemos um texto, qualquer texto, temos que levar em conta que foi escrito
em um determinado tempo e em um determinado lugar, e que, por isso, para
entender sua riqueza, temos também que considerar o contexto em que foi escrito
e quais eram os outros sistemas de pensamento, as outras disciplinas com as quais
o texto compartilha o horizonte histórico. Fazer dialogar o texto que é objeto de
estudo com os outros aspectos da cultura na qual ele foi produzido significa abrir o
texto ao próprio contexto. E isso é tanto mais importante na medida em que os
autores clássicos, como os modernos e contemporâneos, nutrem-se das pesquisas
e das descobertas de outros âmbitos de saber. Por exemplo, é quando pensamos
no valor da geometria e da medicina para Platão, ou na atenção que Aristóteles e
seus alunos prestam ao estudo dos animais e das plantas.
É preciso, portanto, levar em conta a discussão científica, moral e artística, e colocar
um determinado texto em um campo o mais preciso possível. E isso de modo
que o texto em objeto não pareça ter surgido do nada, como um anjo caído do céu
portador de quem sabe quais verdades absolutas. O saber, se é verdadeiramente
saber, e por isso controlável e falsificável, é sempre humano, produzido pelos
homens; com eles compartilha a sorte, ou seja, o horizonte histórico em que nasce,

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cresce e morre. Porém, esse terceiro ponto, a interdisciplinaridade, nos leva – por
assim dizer – a um último ponto que precisa da nossa atenção, a saber, o da
historicidade do saber.
Procurando oferecer uma metodologia para quem quer estudar a filosofia antiga,
a questão da historicidade é de grande importância. O que significa dizer que um
saber é histórico? Como todas as produções humanas, também o saber tem
características determinadas pelo espaço e pelo tempo em que nasce. Dessas
características temos que estar cientes.
Quem estuda o mundo clássico necessita prestar muita atenção ao interpretar os
antigos, para não tentar analisar suas doutrinas com instrumentos que eles não
possuíam e, portanto, para não operar anacronismos nos dois sentidos da história:
nem levar categorias modernas ao antigo, nem projetar categorias antigas no
moderno.
Para recapitular, gostaria simplesmente de lembrar os pontos que coloquei para
conceber uma metodologia da pesquisa em estudos clássicos:
a) aderência ao texto;
b) conhecimento da língua e consciência da evolução histórica da língua em que
um texto está escrito;
c) interdisciplinaridade;
d) consciência da historicidade dos textos e dos autores que nós estudamos.
Com esses poucos pontos não quero ser exaustivo; quis somente dar, nos limites
deste pequeno texto, algumas indicações que me pareceram fundamentais.

Bibliografia
CASERTANO, Giovanni. La nascita della filosofia vista dai Greci. Con in Appendice: Può
ancora Talete essere considerato il “primo filosofo”? Pistoia: Petite Plaisance, 2007.

182
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Capítulo XI

Problemas de interpretação dos textos antigos

Para esta segunda aula, eu gostaria de mostrar alguns problemas inerentes à


interpretação de textos da filosofia e da história da ciência antigas e depois indicar-
-lhes alguns instrumentos úteis para a pesquisa.

1. Tipos de textos
Uma vez que a metodologia no estudo da Antiguidade, como disse antes na primeira
aula, não pode ser única, pois tem de se adaptar de maneira inteligente aos vários
objetos de estudo, gostaria de indicar brevemente dois tipos de textos que podemos
encontrar, mesmo porque não se podem resolver problemas sem que existam
problemas concretos a resolver. Isso pode ser útil também para quem não estuda
propriamente a filosofia e a ciência antigas.
Quando abrimos um texto filosófico da Antiguidade, temos que prestar atenção
não somente ao que está escrito, às afirmações feitas, mas também ao tipo de texto
em que essas afirmações estão propostas.
Quereria dar dois exemplos somente, não podendo claramente tratar de todos os
tipos de texto que podemos encontrar nas nossas pesquisas. Trarei, por isso, como
exemplo, os fragmentos dos pré-socráticos e os diálogos de Platão, para dar também
algumas informações técnicas acerca de como realizar as citações.

183
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1.1. Os fragmentos dos pré-socráticos


As obras dos filósofos, desde osprimeiros até Platão, chegaram até nós somente
em fragmentos. Esse elemento põe, já por si, fortes problemas para a compreensão
dos autores. No entanto, em primeiro lugar, ofereçamos algumas coordenadas
bibliográficas.
Os fragmentos desses filósofos – pré-socráticos ou pré-platônicos – estão recolhidos
na obra fundamental à qual todos os estudiosos se referem, ou seja, na coleção
dos fragmentos e dos testemunhos de Diels, após corrigida e revisada por Kranz,
com o título “Die Fragmente der Vorsokratiker”. A cada autor está dedicado um
capítulo com numeração árabica crescente (1, 2, 3 etc.). No interior de cada capítulo,
podemos encontrar três seções – porém, não é necessário que cada capítulo tenha
três seções – marcadas com as letras latinas A, B e C, que indicam o tipo de texto
que estamos lendo. No interior dessas seções marcadas por letras latinas, para cada
trecho há uma numeração crescente marcada com numeriais arábicos (1, 2, 3 etc.),
que permite especificar uma citação.
A letra A indica que o trecho que estamos lendo é um “testemunho”, ou seja, não
um texto autêntico do autor, mas o que de um autor – do autor ao qual é dedicado
o capítulo – outro autor sucessivo escreveu sobre sua vida e sua doutrina filosófica.
A letra B indica que o texto que estamos lendo é um “fragmento autêntico” de
uma obra do autor ao qual o capítulo é dedicado. Estamos, por isso, em frente do
que escreveu o próprio filósofo que estamos estudando.
A letra C indica que o trecho é uma “imitação”, isto é, um texto que um outro autor
refaz ou atribui ao pensamento do autor ao qual o capítulo está dedicado. O caso
mais famoso, talvez, de imitação de um autor pré-socrático, é o mito de Protágoras
no homônimo diálogo platônico, em que Platão faz pronunciar ao sofista Protágoras
o mito do nascimento dos homens e de como Prometeu foi punido por ter roubado
a arte técnica aos deuses para dá-la aos homens.
Nas citações desses filósofos temos antes a indicação do texto do qual estamos
citando, ou seja, a obra de Diels-Kranz, abreviada em DK. Depois encontramos o
número do capítulo em numerais arábicos: 1, 2, 3 etc. Em seguida, vê-se uma das
letras latinas que indica o tipo de texto que estamos lendo (testemunho, fragmento
ou imitação); logo após essas letras encontramos o número do trecho em numerais
arábicos: 1, 2, 3 etc. Desse modo, podemos especificar o texto que queremos
encontrar.

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Um tipo de texto como os fragmentos impõe problemas enormes para a recons-


trução do pensamento de um autor; às vezes os problemas são insuperáveis, porque
as perguntas que nós nos colocamos não encontram respostas adequadas. Nesse
sentido, o trabalho dos filólogos é precioso, porque eles restituem e ordenam os
fragmentos que os historiadores da filosofia antiga utilizam para trabalhar.
A atenção que temos de ter, o lembrete crítico que precisamos ter em conta, é o
fato de que a reconstrução dos fragmentos, bem como a ordem dada a eles, é feita
a posteriori por filólogos, e por isso precisamos sempre tomar a reconstrução com o
benefício da dúvida.

1.2. O diálogo (corpus platonicum)


O problema da perda dos textos chega até Platão, e com ele temos o problema
contrário; ou seja, nos chegaram não somente todos os textos desse autor, mas
também alguns textos a mais, obras não de Platão, mas provavelmente de alunos
ou de sua escola.
Primeiramente, vamos ver como são citados os textos platônicos. A numeração das
páginas que encontramos, ao lado dos nomes dos diálogos, e da qual se citam os
lugares, foi dada por Henricus Stephanus, nome latinizado de Henri Estienne. A sua
edição dos diálogos de Platão de 1578 é utilizada pela comunidade científica no
mundo todo.
Nesse caso, o problema da forma em que o texto está escrito determina também
problemas sobre o conteúdo. Os diálogos podem ser de três gêneros: narração,
ação, e narração/ação.
Nos diálogos não encontramos nunca Platão como personagem que fala direta-
mente, e ele é mencionado só duas vezes em todo o corpus. Encontramos, na
verdade, Sócrates como personagem principal em quase todos os diálogos. Isso
constituiu um grande problema para duas vertentes de estudo: a de Platão e a de
Sócrates. Para complicar o quadro, há o fato de que muitos dos diálogos – alguns
dizem mesmo que todos – são aporéticos, ou seja, não chegam a uma conclusão
positiva da questão proposta no início da discussão.
Podemos perguntar-nos qual valor de testemunho poderiam ter os diálogos pla-
tônicos para a reconstrução do Sócrates histórico. Temos para Sócrates outros
testemunhos por parte de seus próprios contemporâneos: Aristófanes e Xenofonte
estão entre os mais importantes, e esses testemunhos não nos dão uma imagem
única de Sócrates. Cada autor que escreveu sobre Sócrates escreveu aquilo que

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queria mostrar dele. Precisamos sempre, nesses casos, compreender a intenção com
que um autor escreve sobre outro autor; e o caso de um Sócrates é um dos mais
representativos porque está posta em discussão a imagem mesma da filosofia.
Da outra vertente, aquela dos estudos platônicos, o problema do que quer dizer
Platão e de quem fala por Platão já foi posto na Antiguidade.
Ao iniciar um estudo sobre um autor como Platão, são postos alguns problemas
metodológicos que podem ser resumidos pela pergunta: onde procurar a filosofia
de Platão? Responder a tal pergunta significa querer obter uma chave de acesso
para conseguir decifrar o pensamento. É óbvio que lá onde se procura a filosofia
platônica é onde também se a encontra. A instância metodológica se impõe,
portanto, à atenção de quem começa uma análise dos diálogos.
O problema é, como dissemos, gerado pela natureza mesma da obra platônica; são
diálogos em que se alternam vários personagens que expõem doutrinas próprias
ou alheias. A resposta à pergunta sobre onde se pode encontrar a filosofia platônica,
pensou-se, é encontrada se nos textos identificarmos quem fala no lugar de Platão.
Galeno julgava que apenas Sócrates fosse o porta-voz de Platão, enquanto que
Diógenes Laércio o individuava naquele que conduz o diálogo158, ou seja, naquele
que tem o papel mais importante na troca dialógica.
Um trabalho desse tipo destina-se a encontrar graves incongruências, não somente
de conteúdo, mas também metodológicas: um exemplo, sobre todos, é a concepção
da alma que encontramos no “Ménon”, no “Fédon”, na “República” e no “Timeu”.
Nos vários diálogos há várias imagens da alma, que é tratada de diversos modos.
Podemos, portanto, dizer que Platão se contradiz em sua obra? Ou, talvez, não seria
melhor pensar que é o tipo de texto, a forma literária que produz voluntariamente
problemas que o leitor tem que se colocar e tentar resolver? O problema do
conteúdo da obra de Platão transforma-se no problema da forma com a que o
pensamento de Platão se expressou.
Um modo para resolver o problema das contradições internas à obra platônica foi
o de prestar atenção ao diálogo em si, julgando que Platão, sendo o autor, está
presente em todos os diálogos e em todos os personagens que se alternam nas
discussões. Esta vertente interpretativa é definida abordagem dialógica159. Ainda que

158. Na maioria dos casos Sócrates, mas em outros diálogos, como o “Parmênides”, o “Sofista”, o “Político” e o “Timeu”, o papel
seria respeitivamente de Parmênides, do Estrangeiro e de Timeu.
159. Cf. VEGETTI, 2003, p. 77 e ss.

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se possa encontrar alguns núcleos comuns de temas tratados no interior do corpus


platonicum, essa perspectiva considera cada diálogo como uma unidade em si,
porque cada um tem fins diferentes, que determinam também os diferentes
resultados das discussões também quando os argumentos tratados são os mesmos.
Compreender o fim do diálogo, analisando a estrutura e a metodologia utilizada
para discutir as questões, significa se colocar em uma estrada que leva a
compreender não só qual seria a intenção de Platão, mas também a intenção do
texto – como quer Umberto Eco. O conceito de intentio textus é útil para falar de dois
objetivos da metodologia: o primeiro é a procura do sentido que o texto tem,
independentemente do autor que o escreve; o segundo é evitar o erro da petitio
principii, da petição de princípio, erro que se gera por ler o texto a partir de uma
ideia já elaborada do autor que estamos para ler.
Abordemos, primeiramente, a intentio textus, a intenção do texto. O texto se apresenta
como um mundo mais ou menos semanticamente ordenado, que pode gerar muitos
sentidos, e do qual podemos mais ou menos oferecer muitas interpretações.
Cada texto pode funcionar desse modo, porque as leituras que podemos fazer são
várias e dependem de muitos fatores. Contudo, quando da abertura de um texto –
quer seja um escrito, uma imagem, um trecho musical – às várias interpretações,
precisamos levar um conta que, embora possa haver várias interpretações com
igual direito de existência, não é verdade que todas as interpretações sejam
corretas. Para ser correta uma interpretação, é preciso respeitar os pontos que acima
mencionei.
A intenção do texto é a intenção que o texto mostra ter, o fim que podemos achar
pelo que está escrito, além de outras considerações sobre o momento histórico,
sobre a figura do autor etc. É, em resumo, aquilo que o texto, considerado como
sistema semântico, nos quer dizer, e que enfim nos comunica.
Nesse sentido, é importante distinguir a intentio textus da intentio auctoris (intenção
do autor). Esta última, uma vez que o texto está escrito – ou seja, pensado e
publicado – é independente da intenção do texto e não podemos interpretar o texto
a partir do que sabemos por outras fontes sobre o autor. Esse aspecto é muito
importante para que não se caia na petitio principii, isto é, no erro que consiste em
explicar x a partir de premissas que já determinam x. A petitio principii, no nosso caso
particular, é um razoamento circular em que as premissas provêm das consequências
e vice-versa. O que quero dizer? Se pensamos que um autor pensa x e procuramos
a intenção que o autor tinha ao escrever o texto y, então encontraremos sempre e

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só x na obra y, deixando de considerar outras interpretações possíveis e corretas.


O caso de Platão é ótimo também para mostrar esse aspecto. No nazismo, a
“República” foi lida como um texto que já afirmava a eugenética e o Estado ético.
Se fizermos ao texto da “República” esta pergunta, ou seja, se procurarmos
elementos para afirmarmos que esse texto é precursor da eugenética e do Estado
ético, nossa pergunta já é a resposta que encontramos no texto. Porém, evidenciar
somente alguns aspectos que podem ser lidos em uma determinada perspectiva
não significa que Platão tenha sido um nazista ante litteram. E não o podemos
afirmar porque toda a “República” – ou seja, o texto inteiro, a intentio textus –
propõe coisas diversas do que os nazistas propuseram.
Outro problema relativo à petição de princípio e ao razoamento circular é dado ao
se considerar o autor como pertencente a um determinado período histórico com
o qual tem que compartilhar por força determinadas concepções ou visões do mundo,
as que em alemão se dizem Weltanschauungen. A Weltanschauung aplicada ao estudo
dos autores antigos funciona como uma jaula da qual nenhum filósofo pode fugir;
desse modo Platão, para Hegel, encarnava o espírito do povo grego e representava não
tanto o autor dos diálogos, mas uma fase do desenvolvimento do espírito absoluto.
De todas essas generalizações nascem os mitos historiográficos, isto é, determinadas
visões de um período da filosofia que influenciam, além do que dizem “verdadei-
ramente” os textos, as nossas interpretações acerca desses autores.

2. Interpretar citações
Como dissemos antes, o diálogo platônico traz consigo muitas dificuldades,
diferentes dos outros tipos de texto por meio dos quais a tradição filosófica se
expressou. Tenhamos em conta que também outros autores escreveram diálogos,
como Sêneca, mas nesses outros autores o diálogo com um amigo é mais um
pretexto para tratar com calma o que se quer tratar. O diálogo platônico mantém
sua característica de ser um diálogo “verdadeiro”, marcado por batalhas e situações
contingentes. A essa dificuldade se adiciona outra, a de ter que interpretar as
citações de outros autores que Platão faz ao longo dos diálogos. Esse problema
liga-se à questão da petição de princípio e do razoamento circular, e gostaria de
mostrar um caso particular, mas famoso, que encontramos no corpus platonicum,
no “Fedro”, porque interessa tanto a problemáticas filosóficas, quanto filológicas.
No “Fedro” (270), Sócrates trata da alma e da dialética, e diz que é preciso conhecer
a natureza das almas às quais se fala, porque determinados discursos são

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apropriados a determinados tipos de alma, e outros discursos não, e afirma que,


para conhecer a alma de maneira adequada, é preciso conhecer a “natureza do
todo” (tes tou holouphyseos). Para exemplificar, Sócrates faz a analogia entre dialética
e medicina, dizendo que esse é o método de Hipócrates, citando-o explicitamente.
Claramente, aqui, o termo holon (tudo, inteiro) pode indicar duas coisas: a) o sujeito
como inteiro e considerado no interior do sistema de relações que ele tem com a
realidade externa com que interage; e b) o cosmo inteiro. A partir dessa passagem
foram escritos muitos artigos, cujo objetivo era compreender qual tratado
hipocrático Platão estava citando. Dependendo da escolha da interpretação do
termo holon, podem se oferecer duas leituras diferentes. Uma leitura defende a
interpretação pela qual Hipócrates se colocaria do lado da medicina dietética e
antifilosófica – “Antiga medicina”, onde se critica a filosofia, isto é, a physiologia
jônica –, aceitando desse modo o significado a. Uma outra leitura defende a
interpretação pela qual o termo holon indicaria o cosmo e, portanto, refere a
Hipócrates um pensamento cosmológico, aceitando o significado b do termo holon.
Esse problema envolve os estudos hipocráticos; o que os estudiosos da medicina
quiseram fazer foi resolver a questão hipocrática (a atribuição a Hipócrates de
alguns tratados) a partir da menção de Hipócrates no “Fedro” – operação que
Jacques Jouanna julga impossível.
O punctum dolens, o núcleo problemático da questão, é que não temos no “Fedro”
fortes razões filológicas para atribuir a Hipócrates alguns tratados em vez de outros.
O motivo dessa impossibilidade reside em diversas ordens de razões. A primeira é
que não podemos filologicamente individuar nos tratados algumas passagens que
possam ser reconduzidas diretamente à passagem do “Fedro”. A segunda está no
fato de que Platão altera as doutrinas que cita para seus próprios fins. Isso significa
que, se não tivermos uma “verdadeira” citação, podemos pensar também que, ao
citar Hipócrates e seu método, Platão tenha “dobrado” termos e conceitos para
introduzi-los no discurso entre Fedro e Sócrates.
A imagem de Hipócrates que podemos ter a partir do “Fedro” é, portanto, dupla,
e a escolha entre as duas imagens – um Hipócrates que recusa a cosmologia e um
Hipócrates ligado à especulação jônica – se dá não por evidências textuais, mas
por uma pré-compreensão da figura de Hipócrates que se projeta no “Fedro”.
O que podemos dizer é que, faltando fortes razões filológicas, não podemos
confiar somente em razões doutrinais para afirmar a autenticidade de um escrito
de um autor.

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Neste trabalho de controle filológico nos ajudam várias ferramentas. Claramente


os dicionários, dentre os quais o “Liddell-Scott” (em inglês) é o melhor. Não faz
muito que saiu outro dicionário grego-italiano muito bom também pela praticidade
da consulta: o “GI” de Montanari.
Uma ferramenta muito importante é o “Thesaurus Linguae Graecae” (TLG) em
formado digital, com o qual o estudioso pode individuar, entre as várias operações,
no interior de um corpus, determinados termos ou proposições, de modo a controlar
todas as ocorrências de um termo.
Gostaria de vos deixar, porém, com uma recomendação dupla. Primeiramente, no
TLG se encontram edições críticas velhas, muito frequentemente superadas por
outras mais recentes e melhores; por isso, é preciso sempre controlar nas novas
edições críticas de referência a correção do texto grego. A segunda recomendação
é que as obras têm de ser lidas inteiramente para a compreensão do discurso que
um autor está conduzindo, e não podemos nos limitar somente a pequenos trechos
que poderiam gerar erros de interpretação por causa da parcialidade de nossa
leitura.
O que disse acho que tem que ser tomado cum grano salis, com um pouco de
inteligência, sem fazer disso uma profissão de fé e sem que essas indicações nos
fechem os olhos frente aos textos e ao trabalho vivo e não in vitro.
Claramente, esse é um trabalho longo: precisamos de muitas experiências e de
encontrar problemas concretos que surgem dos textos, tentando resolvê-los a cada
vez; é também preciso acumular conhecimentos dos textos antigos para termos
com eles uma maior familiaridade... mas sabemos também, como disse Hipócrates,
que “a arte é longa, a vida é breve”.

Bibliografia
ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
VEGETTI, Mario. Quindici lezioni su Platone. Torino: Einaudi, 2003.

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