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MÁRCIO BILHARINHO NAVES
"A QUARTIER LATIN teve o mérito de dar início a uma nova Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
fase, na apresentação gráfica dos livros jurídicos, quebrando a Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas
frieza das capas neutras e trocando-as por edições artísticas. Professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Seu pioneirismo impactou de tal forma o setor, que inúmeras Estadual de Campinas
Editoras seguiram seu modelo."
MARX
Cr~.NCIA E REvoLuçAo
Contato: editora@quartierlatin.art.br
www.quartierlatin.art.br Introdução, 11
INTRODUÇÃO
ções e a possibilidade de sua destruição. E foi ele tam- rar em Marx uma filosofia "como as outras", muito em-
bém que nos fez ver a complexa trama ideológica, isto é, bora não tenham sido poucos os marxistas que julgaram
o conjunto de representações imaginárias que recobrem poder, a partir das obras de juventude de Ma rx,
e obscurecem as relações reais, no interior da qual se exer- reconduzi-lo à tradição filosófica. Como lembra Étienne
ce a dominação de classe burguesa. Balibar, não há uma filosofia de Marx, embora ele tenha
trabalhado na filosofia e a sua obra tenha produzido efei-
Marx elaborou uma concepção teórica objetivamen-
tos filosóficos. A ob ra de Marx opera uma tra.Qsforma-
te comprometida com os interesses da classe operária.
~o na filosofia, porque introduz na filosofia um objeto
Ela é, rigorosamente, a expressão teórica da luta de clas-
que lhe é estranho, por ela não reconhecível, um objeto
se operária, e só pode ser compreendida a partir desse
filosófico impossível: a luta de classes. As expressões que
vínculo essencial. É por isso que ler Marx significa per-
Marx utiliza são reveladoras da necessidade de romper o
seguir essa extraordinária aventura intelectual e política,
cerco da filosofia, como condição de possibilidade para
na qual el e não cessa jamais de criticar as representações
que ele pudesse realizar as suas descobertas c;entíficas
burguesas e ,pequeno-burguesas, dentro e fora do movi-
fundamentais. " Os filósofos se limitaram a interp retar o
mento operário, que funcionam como obstáculos para o
mundo; o que importa é transformá-lo"; trata-se de "ajus-
conhecimento científico das relações sociais capitalistas.
tar contas com a nossa consciência filosófica anterior"; a
Para Marx, trata-se de conhecer as determinações do
filosofia "não tem história". Essas frases não significam
capital para que o movimento operário possa fundar uma
uma recusa do trabalho filosófico, mas sim que Marx
estratégia de luta conseqüente contra a dominação de
imroduz uma nova prática da filosofia . Sua teoria cientí-
classe burguesa, isto é, que permita aos trabalhadores
-fica só pôde ~onstrtuíàa em razão do trabalho filo-
colocarem, desde já, o objetivo do comunismo.
só fico de luta contr a as ideologias fil osóficas: o
Assim, é da resposta à questão inicialmente propos- hegelianismo, o humanismo feuerbachiano etc., que per-
ta que vai depender todo o sentido da leitura de Marx. mitiu estabelecer linhas de demarcação entre essas for-
Teremos, no entanto, de acompanhar o paciente traba- mas ideológicas e o conhecimento científico da história.
lho de elaboração conceituai a que ele se dedicou para
Marx percorreu um lo.n go e acidentado caminho
que estejamos em condições de responder a ela. Desde
até chegar às suas descobertas teóricas. Se os caminhos
já, no entanto, podemos perceber que a intervenção teó-
rica de Marx corre às margens da filosofia. da filosofia são caminhos que não levam a parte algu-
ma, teria sido Marx capaz de encontrar outros cami-
Luta de classes, comunismo ... um estranho vocabu- nhos para a filosofia?
lário para um discurso filosófico . Seria ingênuo procu-
16 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHARINHO NAVES - 17
querda hegeliana, especialmente os seus representantes mais de Hegel - Introdução. D ata dessa época também a re-
radicais, entre os quais se encontrava Marx, partiu para a dação de um manus.critc, feita pouco antes de sua che-
luta política contra o absolutismo prussiano. Marx já houve- gada à França, intitulado Crítica da filosofia de Hegel.
ra, então, abandonado os seus planos de obter uma posição na Em 1844, ele redigiu os Manuscritos econômico-filosófi-
Universidade, fechada não só a ele, mas a todos os que defen- cos, que permaneceriam inéditos até 1932. Nessa obra,
diam as reformas constitucionais liberais. aplicou ao domínio social e econômico a idéia de aliena-
ção, desenvolvida pelo filósofo alemão Ludwig Feuerbach
Foi fundado então um jornal de tendência liberal ( 1804- 1872), que pretendia reali za r um a crítica
- a Gazeta Renana - , financiado pelos círcul os bur- materialista de Hegel. Marx estava então dominado pela
gueses mais progressistas da Renânia e do qual parti- infl uência do humanismo feuerbachiano.
cipavam muitos dos jovens hegelianos de esquerda, co mo
Marx, que depois viria a se tornar o seu redator-ch efe. Esse período foi também marcado pelo seu afasta-
O conjunto dos textos que ele redigiu no período, mui- mento e ruptura com os jovens hegelianos, fortemente
tos d os quais publicados na própria Gazeta Renana, com- criticados por ele (e Engels) em .A sagrada família, de
punha um verdadeiro programa democrático-radical em 1845. Mas fo i também um período no qual ele estabele-
sua defesa da reforma do Estado prussiano, de sua trans- ceu intensos contatos com as correntes comunistas e o
formação em um Estado de direito. movim ento operário franceses.
A Gazeta Renana foi proibida pelo governo em Marx também passou a colaborar com um jornal pu-
1843, mas Marx demitira-se da redação pouco antes da blicado por imigrantes alemães democrático-radicais, o
interdição consumar-se, em virtude da condenação, fei- Vorwarts! (Avante!); isso acabou por provocar fortes pres-
ta pela burguesia liberal que financiava o jornal , à linha sões do governo prussiano junto ao governo francês para
editorial que ele lhe imprimira. que fossem tomadas medidas contra o periódico. Tais pres-
sões resultaram na expulsão de vários colaboradores do jor-
nal, inclusive de Marx, que então se transferiu para Bruxe-
ÜS ANAIS FRANCO-ALEMÃES las em 1845.
Juntos iriam elaborar, notadamente em A ideologia alemã e nessas sociedades, e, no curso dessas revoluções, os trabalha-
no Manifesto do Partido Comunista, a concepção materia- dores desenvolveram grande atividade revolucionária. Expul-
lista da história, em ruptura com as concepções filosóficas sõ da Bélgica, Marx dirige-se para Paris e a seguir retorna à
que até então sustentavam. Alemanha, onde passou a publicar um novo jornal, a Nova
Marx desenvolveu ainda intensa atividade política Gazeta Renana, ao mesmo tempo em que prosseguia em
de organização do movimento operário e de propagan- sua atividade de dirigente comunista. Com a derrota das
da comunista. Assim surgiu, em 1846, por iniciativa sua forças progressistas e o conseqüente fortalecimento da rea-
e de Engels, o Comitê de Correspondência Comunista, ção em 1848--1849, Marx, que já houvera sido expulso da
de Bruxelas. Mais à frente, ambos aceitaram integrar Alemanha e ido para Paris, é de novo expulso e transfere-se
uma antiga organização ope~ária, a Liga dos Justos, a qual, afinal para Londres.
reorganizada por influência de ambos, passou a ser
denominada Liga dos Comunistas, adotando o lema:
"Proletários de todos os países: uni-vos!" Além disso, Ü CAPITAL E A INTERNACIONAL
Marx também participou da fundação de uma organi- A Liga dos Comunistas foi dissolvida e Marx dedicou-
zação operária de imigrantes alemães na Bélgica, a Soci- se intensamente, durante longos anos, ao trabalho teórico
edade Operária Alemã, igualmente voltada para a ativi- que levaria à redação de sua principal obra, O capital. Mas
dade de propaganda. continuou a desenvolver suas atividades de dirigente co-
munista, tendo, em 1864, participado da fundação, em
No decorrer desse período, Marx (e Engels) travou
Londres, de uma organização operária, a Associação
uma acirrada luta contra as tendências pequeno-burgue-
Internacional dos Trabalhadores, a I Internacional. A par-
sas presentes no interior do movimento operário, como
tir de sua posição no Conselho Central da Internacional,
o "socialismo verdadeiro", e, especialmente, contra a in-
Marx foi um dos principais dirigentes do movimento ope-
fluência das idéias do anarquista francês Joseph Proudhon
rário e das luras de massas na Europa durante roda a exis-
(18091865), cuja crítica Marx realizou no livro Miséria
tência dessa organização.
da filosofia.
de organização social e política jamais experimentada anterior- 1841 Obtém o título de doutor em filosofia na Uni-
mente. Não obstante os limites dessa experiência e a sua curta versidade de lena. É publicado na revista
duração, ela teve urna importância histórica e política extraor- Athenaurn seu primeiro escrito, um conjunto de
dinária. Na Internacional, Marx acompanhou e auxiliou a luta poemas reunidos sob o título Cantos selvagens.
dos trabalhadores parisienses e, após a derrota dos revolucio-
1842 Colabora na Gazeta Renana, da qual assume a
nários, escreveu um trabalho no qual retificou a sua própria
direção ainda nesse ano. Escreve uma série de
concepção do Estado na transição socialista, recolhendo os
textos, alguns dos quais proibidos pela censura,
ensinamentos oriundos das próprias massas.
notadamente sobre a questão da censura, a si-
Os anos que se seguiram vão assistir, por um lado, tuação dos vinhateiros da Mosela, a lei contra o
ao prosseguimento da redação dos livros seguintes de furto de lenha e os debates na Dieta Renana.
O capital, que só serão, afinal, publicados pos-
1843 Demite-se da redação da Gazeta Renana, a qual
tumamente, e, por outro lado, ao esgo tamento, segun-
pouco depois é proibida pelo governo. Redige
do a visão·de Marx, do papel cumprido pela Internaci-
a Crítica da filosofia do direito de H egel. Casa-
onal. No dia 14 de março de 1883, após o agravamen-
se com Jenny von Westphalen e, alguns meses
to de suas condições de saúde, já de algum tempo aba-
mais tarde, os dois mudam-se para Paris.
ladas, Marx morre, em Londres.
1844 É publicado o único número da revista Anais
Franco-Alemães, de que é um do s or-
CRONOLOGIA ganizadores. Redige os Manuscritos econômi-
co -filosóficos e colabora no Vorwdrts!,
1818 Nascimento de Karl Marx, em 5 de maio, em
semanário alemão publicado em Paris. Estabe-
Tréveris.
lece amplo contato com Friedrich Engels.
1835 Início de seus estudos de direito na Universida-
1845 Expulso de Paris, instala-se em Bruxelas, para onde
de de Bonn.
também muda-se Engels, tendo início a colabora-
1836 Marx prossegue os seus estudos de direito na ção entre os dois com a publicação de A sagrada
Universidade de Berlim e depois passa ao estu- família. Escreve as Teses sobre Feuerbach.
do da filosofia. Redige poemas e outros textos
1846 Marx e Engels desenvolvem ampla atividade
literários. Freqüenta um círculo de hegelianos,
político-ideológica através de uma rede de "co-
o Clube dos Doutores.
mitês de correspondência" na Europa. Ambos
24 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO M ÁRCIO BILHARINHO N AVES • 25
redigem A ideologia alemã, trabalho que tam- 1864 Fundada a Associação Internacional dos Traba-
bém permanecerá inédito. lhadores (AIT), Marx é eleito para integrar seu
Comitê Provisório e redige para essa Associação
1847 Ocorre em Londres o Primeiro Congresso da
uma Mensagem inaugural e os seus Estatutos.
Liga dos Comunistas, mas apenas Engels pode
comparecer. Marx passa a presidir a seção da Liga 1867 Publicação do Livro 1 de O capital.
em Bruxelas e funda com Engels a Sociedade dos
1871 Eclosão da Comuna de Paris. Ampla atividade
Operários Alemães de Bruxelas. Publica A Misé-
de Marx e da AIT em favor dos revolucionários
ria da filosofia, uma crítica a Proudhon.
franceses. Publicação de A guerra civil na Fran-
1848 É publicado o Manifesto do Partido Comunis- ça. Realiza-se o Congresso da AIT em Haia.
ta, escrito em conjunto com Engels. Eclode a
1875 Redação de Crítica ao Programa de Gotha.
Revolução de 1848. Marx é expulso da Bélgica
. e retorna a Paris, seguindo depois, com Engels 1883 Marx morre em 14 de março, em Londres.
e outros exilados alemães, para Colônia, na Ale-
manha, onde passa a desenvolver intensa ativi-
dade política. É criada a Nova Gazeta Renana,
da qual Marx passa a ser o redator-chefe.
ce critérios objetivos de avaliação do que pode ou não ser a escravidão, não podem nunca ser legalizadas, "mesmo que
publicado, atribuindo essa competência a um censor que tenham existido durante muito tempo como lei".
vai exercê-Ia sob a base de um julgamento subjetivo. De A liberdade, para Marx, possui uma existência natu-
modo que a lei acaba por punir. não uma ação devidam~nte ral que independe de qualquer regulamentação positiva,
tipificada, mas a mera intenção, passível de repressão penal ela é um direito natural cuja existência perdura mesmo se
conforme o entendimento do funcionário encarregado da uma lei procura negá-la. Um Estado que reconheça a li-
censura. Ou seja, o censor pode considerar que o autor de berdade e a igualdade, que se fundamente no respeito ao
um determinado texto teve o propósito de ofender, por princípio da legalidade e na independência do judiciário,
exemplo, a Igreja católica; não havendo normas objetivas que vede a existência de jurisdições especiais, que garanta
que estabeleçam o que precisamente caracteriza a ofensa à a liberdade de consciência e a liberdade de expressão do
Igreja, o censor só pode julgar baseado em uma apreciação pensamento, enfim, um Estado de direito, é a realização
da intenção que o autor teria tido ao escrever aquele texto. desse programa de reformas políticas e jurídicas reclama-
Ora, diz Marx, uma lei sobre intenções "anula a igual- das nas intervenções jornalísticas de Marx contra aqueles
dade dos cidadãos perante a lei, não é uma lei mas um pri- que se recusam a considerar a liberdade como "um dom
[ vilégio", configurando assim uma "sanção positiva da ilega- especial da aurora universal da razão" .
lidade". Essa frase, "sanção positiva da ilegalidade", equiva-
le a dizer que uma lei pode ser ilegal. Seria issÕContraditó-
rio ? Pois bem, aqui revela-se plenamente a filiação de Marx A CRfTICA DAS ARMAS E A EMANCIPAÇÃO HUMANA
ao direito natural: uma lei, diz Marx, não obstante respei- O segundo momento do período pré-marxista de Marx
tar todos os requisitos formais para a sua validade, mesmo é dominado pela noção de alienação, provinda diretamen-
assim, pode não ser considerada como lei se não for o reco- te da filosofia de Feuerbach, e pela descoberta do proletari-
nhecimento positivo da lei natural que a antecede e da qual ado como agente da "emancipação humanà'.
ela deve ser a expressão, ou seja, a lei do Estado, a lei positi-
Para Marx, agora, não é suficiente empunhar a arma
va, deve ser o reconhecimento (legal) de uma liberdade que
preexiste a ela. Assim, como Marx afirma em "Os debates da crítica. É necessária uma força material para confrontar
e superar outra força material, de modo que a arma da crí-
sobre a liberdade de imprensa . .. ", podem existir leis que
não sejam verdadeiras, leis que não sejam leis reais. Uma lei tica deve ser substituída pela crítica das armas. Mas isso não
significa que a teoria não cumpra mais nenhum papel; ao
é verdadeira somente quando ela é a "essência positiva da
contrário, a teoria pode transformar-se em força material
liberdade". Portanto, lembra Marx, a censura, assim como
quando penetra nas massas, diz Marx em Crítica da filoso-
32 • MARX - Cl ~NCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BtLHARINHO NAVES - 33
fia do direito de Hegel - Introdução. Afirmando isso, ele sua análise da condição da classe operária como aquela do
supõe que toda transformação revolucionária exija um "fun- comun ismo reproduzem as representações ideológicas
damento material", um elemento passivo. humanistas de Feuerbach.
Pois bem, que elemento pode cumprir essa função Desenvolvendo a crítica da alienação religiosa, em
revolucionária, que classe da sociedade pode empreender a A essência do cristianismo, Feuerbach mostra que ela con-
tarefa de emancipação universal, de emancipação humana siste em uma operação na qual o homem passa a consi-
geral? Marx vai descobrir essa classe no proletariado, na clas- derar como algo exterior e acima dele aquilo que na ver-
se operária da indústria moderna, que "não pode emanci- dade é o resultado de sua própria criação. Desse modo,
par-se sem emancipar-se de todas as outras esferas da so- Deus pode aparecer como uma representação imaginá-
ciedade e, ao mesmo tempo, emancipar todas elas; que é a ria dos predicados de que o gênero humano não dispõe,
perda total do homem e que, portanto, só pode se recupe-
não tendo, portanto, nenhuma objetividade. Deus é, para
rar a si mesma através da recuperação total do homem".
Feuerbach, "uma idéia q_ue se torna ind~pendente do:__
Se o 'proletariado é o fundamento material da revolu- homens que a criam".
ção, cabe à filosofia armá-lo espiritualmente, penetrando-o
Criando esse céu fantástico, depositário das perfei-
com o pensamento. Assim, Marx pode dizer que "a cabeça
li
desta emancipação é a filosofia, seu coração o proletariado".
Pois bem, o que Marx rigorosamente faz é estender a parte de sua essência, de modo que o trabalhador se sente
análise da alienação religiosa de Feuerbach ao campo eco- infeliz e mortificado em um trabalho que não acarreta o
nômico-social (trabalho alienado) 2 • seu desenvolvimento mental e físico. Assim, ele "só se sente
em casa quando não trabalha e quando trabalha não se sen-
Assim o operário, no dizer de Marx nos Manuscri- te em casa", pois o seu trabalho lhe aparece como uma ati-
tos econômico-filosóficos, "torna-se tanto mais pobre vidade forçada, tanto que, não havendo coerção, ele "foge
quanto maior é a riqueza que ele produz", do mesmo do trabalho como de uma peste".
modo que quanto mais o homem "põe em Deus, menos
ele retém em si mesmo", todas essas fórmulas extraídas Esse trabalho não é pertencente ao próprio trabalha-
da matriz feuerbachiana: "Quanto mais rico é Deus, mais dor, mas pertence a outro, e o trabalhador mesmo, nessa
pobre torna-se o homem" . atividade, também pertence a outro. A atividade do tra-
balhador não é mais uma autoatividade, mas, justamente
porque pertence a outro, ela significa a perda do traba-
Ü TRABALHO ALIENADO lhador de si mesmo.
A alienação do trabalho consiste, portanto, em que o O trabalho alienado, por fim, aliena o homem
produto do trabalho, os objetos produzidos pelo trabalha- igualmente de seu ser genérico. O homem é um ser
dor, não lhe pertencem, aparecendo-lhe como algo estranho, genérico precisamente porque a atividade produtiva que
como um poder independente dele e que o domina. Quan- ele realiza é uma atividade consciente e livre, por meio
to mais o trabalhador produz, mais vê-se privado dos objetos da qual a natureza pode aparecer como "a sua obra e a
necessários à sua subsistência e, na medida em que menos sua realidade efetiva". Por isso, ao separar o homem do
objetos ele possui, mais ele cai sob o domínio dos produtos produto de sua atividade produtiva, o trabalho aliena-
que são criados por ele, isto é, sob o domínio do capital. do separa o homem de sua própria vida genérica. As-
sim, conseqüentemente, o homem encontra-se alienado
Mas a alienação ocorre também no interior da ativida-
do próprio homem.
de produtiva, pois o trabalho é exterior ao operário, não faz
Pois bem, se o produto do trabalho não pertence
trab::i.lhador, se ele surge frente ao trabalhador como um
ªºl
2 E nisso Marx já houvera sido precedido por Moses Hess (1812-1875), um dos
representantes da "esquerda hegeliana" e autor de um artigo, "A essência do
poder alheio, se a própria atividade do trabalhador não j
dinheiro", no qual Marx se baseou para escrever parte de A questão juda ica. lhe pertence, mas precisa ser obtida por meio da coer-
Neste texto, escrito antes dos Manuscritos, Marx concebe o Estado como a
projeção imaginária da vida comunitária, da vida verdadeiramente humana, ção, pergunta Marx, a quem pertencem esse produto ej
que os homens da sociedade civil, mergulhados no egoísmo e na procura da
satisfação de seus interesses particulares, nela não encontram. essa atividade? Ora, se o objeto e a atividade de trabalho
36 - MARX - Cl~NCIA E REVOLUÇÃO M i\RCIO BILHARINHO NAVES - 37
aparecem como estranhos ao trabalhador, como um po- as relações de produção e as forças produtivas. Só esse
der com o qual ele se defronta, evidentemente, devem ponto de partida pode permitir a Marx realizar a crítica
pertencer não ao trabalhador, mas a um homem que não da representação ideológica do "homem" e compreen-
é trabalhador, de tal sorte que esse outro homem apare- der essa categoria como uma construção da ideologia
ce ao trabalhador como um "homem alheio a ele, inimi- jurídica burguesa necessária à circulação mercantil. Mas
go, poderoso, independente dele", como o senhor do o caminho para Marx chegar a isso, como veremos, será
objeto do trabalho realizado pelo operário, e cuja ativi- ainda longo e tortuoso, e nunca completamente liberto
dade aparece como a atividade "a serviço de, sob o do- das figuras de seu "passado ideológico".
mínio, a coerção e o jugo de um outro homem".
ção, seria suficiente a mera crítica filosófica, com a conse- O limite da crítica filosófica repousa na sua incapa-
qüente destruição do mundo existente. É a essa "ilusão de cidade de ir além da esfera das representações, das idéi-
Hegel" que Marx procurará escapar, operando uma mu- as, dos conceitos. Assim, tudo se passa como se se tratasse
dança de terreno na teoria. apenas de encontrar uma outra interpretação da reali-
dade, opondo uma fraseologia a outra, sem combater o
"mundo real existente" .
NOVAS RESPOSTAS OU NOVAS QUESTÕES?
Para Marx, trata-se então de mudar de terreno. Ao in-
Os limites da ideologia crítica alemã evidenciam-se vés de oferecer respostas diversas às mesmas questões da ide-
precisamente porque ela permanece no mesmo terreno ologia filosófica - considerando, por exemplo, a religião
da filosofia, ela não abandona esse terreno, que é o da como algo negativo - , Marx recusa essas próprias ques-
filosofia hegeliana. Pois bem, Marx diz que uma crítica tões, a problemática filosófica mesma, procurando inaugurar
que não é capaz de ultrapassar esse domínio permanece- um novo campo teórico.
rá estéril, , ou melhor, reproduzirá as mesmas represen-
rações que afirma combater. "Não apenas em suas res- Marx, ao abandonar o terreno ideológico comum do
postas, mas já nas próprias q uestões, havia uma mistifica- par espírito-matéria, pode agora começar a elaborar os con-
ceitos teóricos que vão abrir para o conhecimento o domí-
ção". Essa frase de Marx é de grande importância, pois
nio antes incógnito da sociedade e da história, mesmo que
ela aponta na direção de uma ruptura epistemológica
ainda possa permanecer em grande medida inserido no
com as concepções da esquerda hegeliana (e, portanto,
com as suas próprias formulações "de juventude"). O seu campo do qual procura se livrar.
significado profundo é o de que a teoria é condicionada
pelo campo no qual está inserida, que o conjunto de pro- A MATERIALIDADE DO PROCESSO HISTÓRICO
blemas que a constitui determina as respostas que ela é
capaz de oferecer. Assim, se a problemáti ca filosófica Marx parte de uma base materialista ao estabelecer os ~
(hegeliana) é "mistificada", qualquer resposta que se der seus pressupostos, ou seja, não se trata de elaborar uma idéi
às suas questões será igualmente mistificada. É preciso, ou um con~~ito ~ra deQois procurar conformar a eles a-
realidad~.-O material de Marx são os indivíduos reais, a}
então, romper com o campo da ideologia filosófica, re-
ação que eles desenvolvem, as suas condições de vida.1 Os
cusar as suas questões, e não apenas oferecer outras res-
postas igualmente ideológicas, e nisso consiste a mudança nomens começam a se distinguir dos animais quando setor-
nam capazes de produzi;;us "meios de vida", e, assim fazen-
de terreno que Marx reclama: a passagem da "mistifica-
do, produzem a sua "própria vida material". O modo como
ção" ideológica para o conhecimento científico do real.
44 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO M ÁRCIO B ILHARINHO N AVES - 45
os homens produzem essa sua vida material é o elemento produção deve ocorrer, necessariamente, através de determi-
li decisivo da análise marxiana. nadas relações entre os produtores. Essas relações de produ-
ção, por sua vez, parecem depender do grau de desenvolvi
Marx estabelece, assim, o conceito de produção -
menta das forças produtivas.
os homens produzem os seus meios de subsistência e a
sua vida material; distingue os vários modos de produ-
ção - a produção varia de acordo com a natureza dos
fORÇAS PRODUTIVAS E PROCESSO DE ALIENAÇÃO
meios de subsistência; e fixa dois sentidos para o concei-
to de modo de produção - um sentido mais.estrito, que ~ ideologia alemã - assim como outros textos do perío-
corresponde às condições materiais de pr~, por do - é cortada por urna contradição. Marx efetivamente funda
r -
exemplo, a instância econômica da soci:dade b_urguesa, o conhecimento dos processos históricos e sociais em urna base
A história pode então aparecer como um processo de de- dução e pelas forças produtivas, Marx procura elucidar
senvolvimento das forças produtivas, de acumulação de coisas o problema da articulação entre essa "base" material e o
que, não obstante criadas pelo homem, dele são separadas, isto conjunto dos elementos nela não compreendidos, a esfe-
é, alienadas, voltando-se contra o seu próprio criador. ra das idéias e representações, a ideologia, a esfera da
política, do direito, da arte etc. Ele utiliza uma figura
arquitetô nica para representar essa relação. De acordo
MODO DE PRODUÇÃO E DOMINÂNCIA DAS FORÇAS com essa imagem, "o modo de produção", as "relações
PRODUTIVAS
materiais", a "produção capitalista" constituiriam a base
ou a estrutura sobre a qual se ergueria uma superestru-
Vejamos, então, de que modo Marx elabora, no pe-
ríodo que agora examinamos, a problemática das forças tura compreendendo todos aqueles elementos de natu-
produtivas. Essa questão, que será objeto de uma retifi- ~ reza "não-econômica". As relações econômicas - o modo
cação na obra posterior de Marx, é mesmo decisiva, pois de produção, em sentido estrito, ou seja, o conjunto das
dela dependerá não só a compreensão do processo de relações de produção e das forças produtivas - têm um
constituição do capitalismo, mas também a possibilida- I papel determinante em relação à esfera superestrutura!,
de de sua superação. a qual seria subordinada a elas.
'-.
_
...
1
mudança nas relações sociais. ência que a elas correspondem, perdem roda a aparência
de autonomia. Não têm história, nem desenvolvimento";
"Não se deve esquecer que tanto o direito como a religião
DETERMINAÇÃO MATERIAL E SUPERESTRUTURA não têm história própria". Portanto, para compreender-
mos o direito ou a religião, ou qualquer outro elemento
Uma vez estabelecido Q princípio basilar da deter-
da superestrutura, é preciso antes apreender as determi-
minação material pela pro-duçã_o, pelas relações de pro=-
' ~
48 • MARX - Ci~NCIA E R EVOLUÇÃO
M ÁRCIO BILHARINHO N AVES • 49
nações profundas da base econômica, pois são elas que de qualquer modo a realidade material. A transformação
emprestam sentido ao movimento da superestrutura. de uma idéia, de uma concepção teórica, de uma forma-
ção ideológica não depende de uma outra idéia, de uma
Porém, em A ideologia alemã, e nos outros trabalhos
desse mesmo período, a determinação da su12_erestrutura outra teoria, de uma outra ideologia, que àquelas viessem
se contrapor, mas depende da transformação das relações
pela base econômica parece ser uma determinação algo
sociais de que elas provêm.
'1reta, imediata, o que se exprime nesta passa~m
---------
reveladora: "A produção de idéias, de representações, da A ideologia vai aparecer então, para Marx, em A ideolo-
consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com gia ãfemã, como um processo no qual os homens e suas rela-
a atividade material e com o intercâmbio material dos ções surgem invertidos, como numa câmara escura, "do mes-
homens, como a linguagem da vida real. O representar, mo modo [. .. ] que a inversão dos objetos na retiná'. Assim,
o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens , apare- pode adquirir uma existência imaginária rodo um conjunto
cem aqui como emanação direta de seu comportamento de idéias e representações que parecem fundar a realidade,
material". Veremos, mais adiante, que também nesse as- quando elas são, na verdade, a "emanação" de relações sociais
pecto o pensamento marxiano sofrerá sensíveis alterações. determinadas. E se os homens podem pôr, em suas represen-
tações, "a realidade de cabeça para baixo", isso é decorrência
de seu "modo de atividade material limitado". É a isso que
A CÂMARA ESCURA
Marx se refere ao dizer que a sua concepção não desce do
Uma vez estabelecida a relação entre a base e a supe- céu à terra, mas ascende da terra ao céu, ao contrário da filo-
restrutura, é possível medir a distância entre a concepção sofia alemã. Ou seja, "não se parte daquilo que os homens
de Marx e aquela do idealismo alemão. Já havíamos ob- dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens
servado, no início deste capítulo, a censura que ele dirige pensados, imaginados e representados para, a partir daí, che-
contra as "ilusões de Hegel", opondo à filosofia especulativa gar aos homens de carne e osso", mas sim das suas condições
"as sombras da realidade". Pois bem, agora já dispomos de reais de existência. É por isso que, "mesmo as formações ne-
condições suficientes para compreender o sentido pleno bulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias
dessas considerações de Marx. Se o domínio da superes- do seu processo de vida material, empiricamente constatável
trutura é condicionado pela base econômica, se ela não e ligado a pressupostos materiais".
possui autonomia, movimento próprio, então nenhuma
É somente com o fim dessa filosofia especulativa,
iniciativa que se limite ao plano das idéias, por mais "críti-
autônoma, que podem findar as "frases ocas" sobre a cons-
cas" que estas venham a ser, pode ter .o condão de alterar
ciência e as abstrações '.'separadas da história real". E esse
50 - MARX - CIENCIA E R EVOLUÇÃO
MÁRCIO BILHARINHO NAVES - 51
do a expressão de interesses de classe determinados, e do como conseqüência das re~ões de produção, no sen-
sim como " id éias puras", provindas de pensadores tido de que a determinadas_rela~ões de produção d~~
desvinculados daqueles interesses. Ademais, a base da nantesdeve corre~onder uma certa forma política de~
dominação ideológica amplia-se sempre, isto é, as idéias domínio de classe, o Estado é compreendido, agora, como
dominantes tornam-se cada vez mais universais, em cada a for~a de domínio pela quafã classe domi~e faz preva~
época histórica. Isso verifica-se porque a classe dominante, lecer -os seus interesses comuns de classe. O caráter ru=
ao tomar o poder, deve "apresentar os seus interesses como mum desse poder cumpre dois papéis: em primeiro lugar,
sendo os interesses comuns de toda a sociedade'', o que a ele permite que o Estado possa defender os interesses do
leva necessariamente a dar às suas idéias a "forma de univer- conjunto da classe dominante, mesmo que tenha, em de-
salidade", apresentando-as como as únicas racionais e as terminadas circunstâncias, para alcançar esse objeti~
"universalmente válidas". sacrificar o interesse particular, seja de alguma fração, sej~
de algum membro da classe dominante; em segundo lu-
Pois bem, a classe que objetiva tomar o poder e tor-
nar-se dominante não apresenta, no processo revolucio-
.::;-----,...--~
·
----
os interesses
- da classe --
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dominante se-..,
jam apresentados como senc!Q_os interesses do conjunto
54 - MARX - O ~NCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHARINHO N AVES - 55
da sociedade, como uma comunidade de interesses gerais der estranho e a ele oposto, que o subjuga ao invés de ser
e, portanto, que não adquiram um caráter privado, mas, por ele dominado", de tal modo que o produto dessa ati-
ao contrário, um caráter público, isto é, o exercício do vidade dos homens "consolida-se" em um "poder objetivo
poder político pela classe dominante pode aparecer como superior" a eles e que escapa ao seu controle.
o domínio impessoal de uma pessoa jurídica, ao qual a
As forças produtivas que decorrem da divisão do trabalho
idéia mesma de dominação de classe é um impensado.
podem aparecer aos indivíduos _n~o como o resultado de sua
Essa representação ilusória de que o Estado possa encar- própria atividade, como manifestação de seu "poder", mas como
nar o interesse geral esconde, para Marx, a sua função especí- "uma força estranha situada fora deles, cuja origem e destino
fica: ao garantir a propriedade dos meios de produção, o ig;;;am, q; não podem mais dominar~ que, pelo contrário,
Estado já garante, por força desse ato mesmo, a posição de percorre agora uma série particular de fases e estágios de ,
domínio da classe que é titular dessa propriedade. Desse desenvolvimento, independentemente do querer e do agir dos,
modo, o domínio da burguesia sobre a classe operária, no homens e que, na verdade, dirige este querer e este agir".
âmbito de cada unidade produtiva, estende-se imediatameri~
O processo de alienação é, portanto, o processo da sepa-
te para o domínio da política, como o domínio do conjunto_
ração entre as forças produtivas e o homem, forças produti-
da classe burguesa sobre a classe operária. O Estado, assim,
1 vas que se "destacaram", tornando-se forças não mais desses
pode ser considerado o "resumo oficial do antagonismo na
mesmos homens, mas da propriedade privada.
sociedade civil", no sentido du;iue as contradições de clas-
se, ao adquirirem um caráter político, exigem, devido ao Pois bem, para que a alienação possa ser cancelada e o
c:;citer inconciliável desses conflitos, a existência do Esta- advento do comunismo seja possível, é necessária a ocor-
do. Este atua, portanto, no sentido de conter o antagonis- rência de uma condição prévia, absolutamente essencial: o
mo de classe dentro de limites que permitam a conservação desenvolvimento das forças produtivas. É esse desenvolvi-
da sociedade na qual domina uma determinada classe, que mento das forças produtivas em uma escala elevada que vai
permitam, portanto, conservar esta dominação de classe. produzir, ao mesmo tempo, "um mundo de riquezà' e a
massa "totalmente destituída de propriedade" como elemen-
tos contraditórios. E vai ainda produzir o "intercâmbio
ALIENAÇÃO E COMUNISMO universal dos homens", generalizando a condição proletá-
Já observamos anteriormente que Marx ainda pensa a ria para todo o mundo e dando à superação do capitalismo
sociedade burguesa sob o modelo da noção ideológica de um caráter universal. O comunismo, assim, dependeria do
alienação. A alienação, cuja causa seria a divisão do traba- desenvolvimento das forças produtivas e da existência de
lho, faz com que a "ação do homem [converta-se] num po- relações de troca generalizadas como condições prévias, sem
-
M ÁRCIO B ILHARINHO NAVES· 57
56. MARX - CIENCIA E REVOLUÇÃO
as quais o passo para além do capitalismo estaria bloqueado nação, na generalização das trocas e no direito, é submetida
"e roda a imundície anterior seria restabelecida". por Marx à crítica na segunda pane de A ideologia alemã 3 .
Ora, essa concepção do comunismo, fundada no desen- 3 Que, no entanto, foi escrita antes da primeira, cujo comentário rea lizamos
até aqui.
volvimento das forças produtivas, no "cancelamento" da alie-
l"""-
MÁRCIO BILHA RINHO N AVES - 59
58 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO
do, como Marx mostra em Miséria da filosofia, que "as for- dual, expurgando-a de todos os seus componentes
mas da economia sob as quais os homens produzem, conso- antagônicos, ele acredita encontrar uma relação
mem e fazem suas trocas são transitórias e históricas". 'igualitáriá que desejaria introduzir na sociedade.
As consciências honestas, todaviá, recusam A crítica que Marx realiza dessa representação ideoló-
essa evidência. O ponto de vista burguês s6 gica - notadamente de Proudhon - permite que se esta-
pode perceber nesse antagonismo uma rela- beleça uma linha de demarcação inamovível entre o
ção de harmonia e de justiça eterna, que im- reformismo e a ação revolucionária.
pede às pessoas afirmarem seus interesses
prejudicando outras. Para o burguês , a troca Em uma carta endereçada a Marx, em 1846, Proudhon
individual pode subsistir sem o antagonismo estabelece a relação entre a "teoria" do igualitarismo jurídi-
entre as classes - para ele trata-se de coisas co e o abandono da revolução:"[ ... ] não devemos colocar a
totalmente desvinculadas. ação revolucionária como meio de reforma social, porque
[ ... ] O sr. Bray [socialista ricardiano inglês, 1809- esse pretenso meio seria, muito simplesmente, um apelo à
1895], faz da ilusão do honesto burguês o ideal força, ao arbítrio - logo, uma contradição. Coloco assim o
que pretenderia realizar. Depurando a troca indivi- problema: reintroduzir na sociedade, por uma combinação
:r 62 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO
outra combinação econômica. Noutros termos: na econo- subvertido: se antes o lema dos "Justos" era "todos os ho-
mia política, voltar à teoria da Propriedade contra a Propri- mens são irmãos", agora, o lema da Liga dos Comunistas
edade, de modo a engendrar o que os senhores, socialistas pode traduzir o abismo que o separa do anterior: "Proletá-
alemães, chamam comunidade e que, por agora, limitar- rios de todos os países, uni-vos!"
me-ei a denominar liberdade, igualdade".
No Manifesto do Partido Comunista, ao analisar a ser satisfeitas pelo sistema manufatureiro. A introdução, no
constituição da sociedade burguesa e as contradições no seu processo produtivo, de novas formas de energia e do siste-
interior, Marx empresta o papel dominante na evolução ma de máquinas, entre os séculos XVIII e XIX, acarreta
histórica ao desenvolvimento das forças produtivas. Ao uma enorme transformação no modo de produzir, sendo a
mesmo tempo, ele apresenta a luta de classes como o motor manufatura substituída pela grande indústria. O advento
da história, princípio de intel igência do processo histórico. da grande indústria permite a expansão do comércio, em
A dominância da antiga problemática economicista é, ago- virtude de ter ela criado o mercado mundial, e esse desen-
ra, "perturbada" pela presença de um conceito - a luta de volvimento das trocas, por sua vez, favorece a expansão da
classes - que remete para a compreensão do movimento indústria. A burguesia pode aparecer, assim, como o pro-
real de constituição e reprodução da sociedade burguesa. duto dessas revoluções no modo de produção e de troca.
Mas o processo de expansão contínua do comércio e a Ao contrário do modo de produção feudal, o capitalis-
necessidade crescente de novas mercadorias já não podem mo é permanentemente atravessado por períodos de insta-
68 - MARX - CIENCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILH ARINHO NAVES - 69
bilidade e de crise, em um processo de "revolução contínua nal, em que regiões ou províncias conservavam-se inde-
da produção". As relações sociais antigas e as idéias a elas pendentes, com interesses, leis, governos e tarifas adua-
correspondentes tão logo são dissolvidas e já as relações e as neiras distintos, a burguesia pôde constituir "uma só na-
idéias que as substituem parecem envelhecidas antes mes- ção, com um só governo, uma só lei, um só interesse na-
mo de se cristalizarem: "tudo o que é sólido e estável se cional de classe, uma só barreira alfandegária".
volatiza, tudo o que é sagrado é profanado".
O capitalismo permitiu que forças produtivas "colos-
O capitalismo expande-se para rodo o mundo, su- sais'', superiores a todas aquelas dos séculos passados, des-
perando os limites nacionais, rompendo o isolamento e a pertassem do "seio do trabalho social".
estreiteza de regiões e países, destruindo as indústrias
O processo de constituição do modo de produção
locais, criando novas necessidades, produzindo para aten-
capitalista pode então ser entendido assim: de dentro da
der não a um consumo localizado e limitado, mas para
sociedade feudal são gerados os meios de produção e tro-
atender a uma demanda mundial, estabelecendo, assim,
ca da burguesia. "Em um certo grau do desenvolvimen-
"um intercâmbio universal, uma universal interdepen-
to desses meios de produção e troca", o "regime feudal
dência das nações". de propriedade" deixou de "corresponder às forças pro-
Com o desenvolvimento das forças produtivas capita- dutivas em pleno desenvolvimento", transformando-se
listas, que permite a produção de mercadorias a um baixo em um obstáculo ao incremento da produção. A remo-
preço, a burguesia derrota as nações mais "atrasadas", obri- ção desse obstáculo, isto é, a destruição do modo de pro-
gando rodas as nações a adotarem, "sob pena de morte", o dução feudal, permitiu a organização da produção e da
modo de produção capitalista, criando "um mundo à sua troca em outras bases, correspondentes ao interesse de
imagem e semelhança". classe da burguesia.
O proletariado constitui a única classe efetivamente tal forja, como resultado de suas contradições, a força política
revolucionária. As outras classes reagem contra a burgue- que vai destruí-lo. Como diz Marx, "o desenvolvimento da gran-
sia tão-somente porque são ameaçadas em sua existência de indústria socava o terreno em que a burguesia assentou o
enquanto classe pelo desenvolvimento do capitalismo. A seu regime de produção e de apropriação dos produtos. A
sua participação eventual na revolução implica o aban- burguesia produz, sobretudo, os seus próprios coveiros. Sua
dono de sua posição originária de classe e a adoção da queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis".
posição de classe do proletariado. A classe operária é a
única classe que não é ameaçada de perecer em virtude
do desenvolvimento da grande indústria, porque ela é o Ü GRITO DE GUERRA DA CIASSE OPERÁRIA
seu "resultado mais autêntico" e suas condições de vida já O processo revolucionário objetivando a conquista do
são a negação daquelas da sociedade burguesa. poder político pelo proletariado é pensado por Marx como
um processo violemo e ininterrupto. A violência, o recurso
Um traço de distinção separa a luta do proletariado
às armas, aparece para Marx como uma necessidade im-
e o seu objetivo final de todas as outras na história. Ao
passo que as classes que anteriormente tomaram o poder ,ES?Sta pela violência com a qual a burguesia exerce a sua
imediatamente submeteram "a sociedade às suas condi- dominação. Como a burguesia dispõe de forças armadas, a
ções de apropriação", a classe operária só pode exercer o luta contra ela exige que o proletariado também se arme,
poder e "apoderar-se das forças produtivas" destruindo sem o que a iniciativa revolucionária estaria comprometida.
todas as condições de existência da propriedade privada Em um texto publicado em 1850, portanto do mesmo
dos meios de produção. período do Manifesto, a Mensagem do Comitê Central à
Assim, pela primeira vez na história, a apropriação do Liga dos Comunistas, Marx descreve as condições funda-
poder não se dá no curso de um movimento dirigido por mentais da luta de classe operária, extraindo as lições das
uma minoria e para o seu exclusivo benefício. A revolução revoluções de 1848 na Europa.
do proletariado constitui-se no "movimento independente Observemos, inicialmente, que o momento no qual
da imensa maioria em proveito da imensa maioria".
Marx escreve é ainda marcado pela !xistência de relações
É o próprio capitalismo que vai criar as condições para a feudais remanescentes, o que explica o papel que a burgue-
revolução do proletariado. A contínua expansão da grande sia e a pequena burguesia jogam nos eventos revolucionários.
indústria vai produzir a concentração e unidade da classe ope- Isso, no entanto, não significa que a análise de Marx seja
rária, permitindo que ela ultrapasse o seu isolamento e supere limitada por esta conjuntura particular e historicamente
a concorrência entre os próprios trabalhadores. Assim, o capi- condicionada por ela. O que Marx opera, na verdade, é a
'
-·
~
elaboração dos conceitos que permitem pensar as condi- A revolução, assim, para a classe operária, deve se tor-
ções de possibilidade da revolução proletária. Desse modo, nar permanente, isto é, não deve se deter ante as etapas
mesmo se considerarmos que a burguesia e a pequena bur- democráticas do processo em curso, que se limitam a reali-
guesia já esgotaram todas as suas potencialidades revolucio- zar reformas mais ou menos amplas mas que conservam a
nárias, em virtude da completa extinção das relações feu- dominação do capital. Para os operários, "não se trata de
dais, ainda assim, a análise que Marx empreende conserva a reformar a propriedade privada", diz Marx, "mas de aboli-
sua validade, pois ela é realizada tendo por base o conceito la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de
de aliança de classe, e não uma determinada relação políti- abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade exis-
ca entre a burguesia, a pequena burguesia e o proletariado tente, mas de estabelecer uma nova".
em uma determinada conjuntura histórica.
L-
Isso implica, em decorrência, a recusa da parte do
Se o processo revolucionário implica determinadas proletariado em estabelecer uma unidade com os setores de-
.:!_:ianças com as classes não-popular~ - notadamente cer- mocratas que lhe tirasse toda a sua independência de classe,
tos setores da burguesia, da_pequena burguesia e da~ tornando-o um "simples apêndice da democracia burguesa
ses médias - , a condição absolutamente necessária para
oficial". O que interessa aos trabalhadores é manter uma or-_
que o proletariado atinja os seus objetivos, como diz Marx,
ganização independente e avessa à influência burguesa, ra;
é a de que este conserve a sua independência de classe. A
zão pela qual uma tal organização deve ter uma existência.....,
lura contra um inimigo comum não exige "nenhuma união
legal e também secreta, isto é, ilegal, fora do controle do~
especial". Isso significa que os trabalhadores devem aliar-
dispositivos institucionais da democracia burguesa.
se com outros setores na luta contra o mesmo inimigo,
mas, quando esses setores não-proletários tentarem con- Uma vez cumpridas essas condições, a classe operária es-
solidar a nova situação em seu benefício, a classe operária tará melhor preparada para enfrentar a reação contra si, por
deve voltar-se contra eles. Os democratas pequeno-bur- parte de seus antigos aliados, tão logo um novo governo se
gueses limitam a sua participação revolucionária à obtenção instale. Por isso ela deve manter a agitação revolucionária,
de vantagens em relação ao domínio do grande capital evitando ser reprimida pelas forças burguesas. Deve, tam-
que pesa sobre eles. Por isso querem interromper a revolu- bém, aceitar e mesmo dirigir os atos de "vingança popular"
ção "o mais rapidamente possível'', uma vez que tenham contra "indivíduos odiados ou contra edifícios públicos que
alcançado as suas metas, ao passo que ao proletariado in- o povo só possa relembrar com ódio". As suas exigências de-
1
teressa prosseguir a revolução até o seu final, até a supres- vem ser apresentadas de modo independente e ao mesmo
são do domínio burguês. tempo que as dos democratas burgueses, e a estes devem ser
1 ~ Jj ___ •
78 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHAR INHO NAVES - 79
exigidas garantias para os operários e, se necessário, estas de- ciência dos interesses de classe proletários, adotar formas de
vem ser obtidas pela força. Os operários necessitam manter organização operárias armadas e independentes da burgue-
uma postura de desconfiança em relação ao novo governo, sia, não se deixar envolver pelas ilusões democráticas, e uti-
constituindo desde logo um poder paralelo: "Ao lado dos lizar a violência armada contra a burguesia em um processo
novos governos oficiais, os operários devem constituir revolucionário cujo "grito de guerra" do proletariado deve-
imediatamente governos operários revolucionários, seja na rá ser "a revolução permanente".
forma de comitês ou de conselhos municipais, seja na forma
de clubes operários ou de comitês operários, de tal modo que Marx descreve, portanto, as condições necessárias
os governos democrático-burgueses não só percam imediata- para que a classe operária possa conduzir a sua luta con-
mente o apoio dos operários, mas também se vejam desde o tra a dominação burguesa, sem se deixar desviar do ob-
primeiro momento fiscalizados e ameaçados por autoridades jetivo da tomada do poder pelo jogo político da democra-
atrás das quais se encontre a massa inteira dos operários". cia burguesa. Observemos, sobretudo, que M arx não
considera qu ;- a demo cracia burguesa seja u m lim ite
A condição para que a classe operária possa enfrentar intransponível, ao contrário, ele funda a luta de classe
os seus antigos aliados, "cuja traição aos operários começará proletária fora do campo da legalidade democrática bur-
desde os primeiros momentos da vitória'', não se limita à
gu~sa, a luta legal co!!s~imlndo-se em_urp mo~nto_táti- _
necessária e fundamental independência e centralização das
'co do enfrentamento de classe.
organizações operárias, sob o comando de um órgão diri- ..
gente central, mas envolve também a organização armada Ao mostrar que a classe operária precisa organizar-se
( dos trabalhadores: "Dever-se-á armar, imediatamente, todo
o proletariado, com fuzis, carabinas, canhões e munições", -
na forma de um duplo poder, constituindo órgãos parale-
los à institucionalidade burguesa, Marx claramente recusa
diz Marx. Uma guarda proletária armada, militarizada - encerrar a luta proletária nos marcos da democracia, ao
"com chefes e um estado-maior" - estará sob as ordens de contrário, a sua concepção implica, necessariamente, a vio-
um conselho operário revolucionário. Do mesmo modo, nas lação da legalidade democrática, a recusa ao Estado de d i=°
empresas estatais, os operários deverão organizar-se em uni- reito. Muito embora admita que a luta também possa se
dades armadas. Em nenhum caso, sob nenhuma cir- ãesenvolver no campo da legalidade, Marx não considera
cunstância, deverá haver o desarmamento do proletariado, que os trabalhadores devam privilegiar as formas de lut
ao qual este oporá, se for necessário, a "força das armas". legais. O que seria o duplo poder senão a negação da de-
mocracia burguesa, com o proletariado criando, sem a de-
Assim, o segredo da vitória da revolução proletária pode
vida previsão legal, um aparato de poder paralelo, armado,
ser enunciado nestas exigências fundamentais: tomar cons-
e exercendo a autoridade popular em seus domínios?
80 - MARX - Ci~NCIA E REVOLUÇÃO M ARCIO BILHARINHO N AVES - 81
~(
Marx possa estabelecer, em seus princípios, uma concep-
produção nas mãos do Estado [... ] e [aumentará] o mais ra-
ção revolucionária da transição para o comunismo. Esses
pidamente possível a massa das forças produtivas".
resultados a que Marx chegará serão expostos notadamente,
Ora, para que isso possa ocorrer, é preciso operar uma como veremos no capítulo 5 e na Conclusão, em O capital
"intervenção despótica no direito de propriedade'', assim e em A guerra civil na França.
como nas relações de produção. A referência que Marx
faz à intervenção nas relações de produção indicaria uma
mudança de problemática, com a compreensão de que,
malgrado a expressão imprecisa e insuficiente ("interven-
ção"), o aspecto principal da transição é a transformação
revolucionária das relações de produção, e não a expro-
priação da propriedade privada? Quando Marx prosse-
gue enumerando as medidas que corresponderiam a essa
intervenção, vemos, no entanto, que elas se referem, no
fundamental, à estatização dos meios de produção.
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84 • MARX - CirNCIA E REVOLUÇÃO
MÁRCIO 81LHARINHO NAVES · 85
O conhecimento científico da sociedade burguesa apa- Marx procura demonstrar que na esfera da circulação
rece como uma exigência absoluta para que a classe operá- não é possível que ocorra a criação de um valor além do valor
ria possa fundar uma estratégia conseqüente para a tomada das mercadorias trocadas. O ganho que um possuidor de mer-
do poder político e para que ela possa dar início ao proces- cadorias pode ter vendendo a sua mercadoria, suponhamos,
so de superação do capitalismo. 10% acima de seu valor, é compensado e neutralizado pela
perda desses mesmos 10% quando ele, por sua vez, tornar-se
Em suas obras do período anterior, Marx já houvera
comprador. Como diz Marx: "nosso homem ganhou 1Ocomo
identificado algumas das determinações fundamentais da
vendedor para perder 10 como comprador. [ .. . ]As denomi-
dominação de classe burguesa e apontado para a direção
nações monetárias, isto é, os preços das m ercadorias, iriam
de sua ultrapassagem. Mas o conhecimento da "lógica" de
inchar, mas as suas relações de valor ficariam inalteradas [. . .]
funcionamento do capital permanecia, em larga m edida,
A formação de mais-valia e daí a transformação de dinheiro
obscuro p ara Marx. Empreendendo o es tudo da
em capital não pode ser, portanto, explicada por venderem
especificidade da exploração burguesa, Marx pôde então
os vendedores as mercadoria acima do seu valor, nem por os
retificar as suas anteriores formulações e abrir as vias para a
compradores as comprarem abaixo do seu valor".
justa condução da luta de classe operária.
Se o capital não pode, assim, originar-se, pura e sim-
ples-mente, da circulação das mercadorias, isso significa que
Ü CAPITAL COMO RELAÇÃO SOCIAL devemos inedagar sobre a sua origem e também sobre a sua
Em uma frase do capítulo IV do livro 1 de O capital, natureza: o capital é riqueza acumulada, uma soma de di-
intitulado "Transformação do dinheiro em capital", Marx nheiro, o capital é uma coisa?
diz que o "capital não pode[ ... ] originar-se da circulação e,
tampouco, pode não originar-se da circulação. Deve, ao
UM NEGRO f. UM NEGRO
mesmo tempo, originar-se e não se originar delà'.
O capital não é uma coisa .. . Marx reiteradamente re-
Como explicar esse aparente enigma? O capital não
torna a esse ponto. Os economistas, diz Marx, definem o
seria então a riqueza acumulada, o dinheiro, o trabalho
capital como meio de produção, como trabalho acumulado
acumulado que serve para uma nova produção, os meios
que se presta a uma nova produção. Mas, diz ele, em Traba-
de produção? Essa riqueza, que seria o capital, não surgi-
lho assalariado e capital: "é tão impossível passar diretamente
ria do processo de trocas mercantis? O capital não seria
do trabalho ao capital, como passar diretamente das diver-
uma coisa que, trocada por um valor superior ao seu pró-
sas raças humanas ao banqueiro, ou da natureza à máquina
prio valor, agregaria esse valor adicional, valorizando-se?
86 - MARX - CIÊNCIA E R EVOLUÇÃO MARCIO B ILHARINHO NAVES · 87
a vapor". O capital não se confunde com os meios de pro- pa histórica, particularmente desenvolvida, da produção
dução, com as condições objetivas da produção. Os meios humanà', isto é, o modo de produção capitalista. De tal sorte
de produção existem em rodas as sociedades, mas nem por que, "se bem que todo capital é trabalho objetivado que ser-
isso rodas elas conhecem o capital. "O que é um escravo ve como meio para uma nova produção, nem todo trabalho
negro? Um homem de raça negra. Tanto faz uma resposta objetivado que serve para uma nova produção é capital".
como a outra. Um negro é um negro. Em determinadas
O capital é uma relação social, uma relação de pro-
circunstâncias, se converte em escravo. Uma máquina de
dução burguesa, uma relação de produção da sociedade
fiar algodão é uma máquina de fiar algodão. Só em deter-
burguesa, acrescenta Marx, ressaltando que é precisamente
minadas circunstâncias se converte em capital. Separada do
"o caráter social determinado o que converte em capital
contexto, não é capital, tal como o ouro não é de per si
os produtos que servem para uma nova produção". Se o
dinheiro, nem o açúcar é o preço do açúcar".
~ital é uma relação social, isso significa que os meios de
Nessa passagem, Marx mostra claramente que os meios produção só se convertem em capital quando são combina-
de produção não são capital por sua natureza, que é necessá- dos com a força de trabalho assalariada, portanto só há
rio que determinadas condições ocorram para que os meios capital quando o P.E_Oprietário das condições materiais da
de produção comem-se capital. O capital não pode, assim, produção encontra dispo~ível no mer~do a força de tra-
----- -~ , -O-~~__,,
ser entendido como uma coisa que cumpre determinada fun- balho e a consome no processo de E_rodução. E justamen-
ção no processo produtivo adequadamente à sua natureza de te a relação entre essas duas classes, a burguesia e o opera-
coisa. Do mesmo modo que o ouro não se coma, por nature- riado, mediada pelos meios de trabalho, que constitui a
za, dinheiro, embora possa, sob determinadas condições, re- relação de capital ou capitalismo.
vestir-se dessa forma, assim também os meios de produção
não são, por natureza, capital. Se o capital pudesse ser assim
entendido, ele seria dotado de uma natureza eterna, ele seria SOLTO E SOLTEIRO
um elemento a-histórico, necessário para que roda e qual- Voltemos, então, ao nosso problema. O cap ital, dizía-
quer produção seja realizada, e que não só teria existido, mos, não pode se originar da esfera da circulação mercan-
portanto, em rodas as sociedades passadas, como também se- til ao mesmo tempo em que deve dela se originar. O pos-
ria ele um elemento do qual não se poderia prescindir em suidor do dinheiro - capitalista larvar, como diz Marx
qualquer outra sociedade futura. Ora, diz Marx, o que é pre- em O capital- "tem de comprar as mercadorias por seu
ciso levar em conta é a determinação formal, "as determina- valor, vendê-las por seu valor, e, mesmo assim, extrair, no
ções específicas que fazem do capital o elemento de uma eta- final do processo, mais valor do que lançou nele". Ora, se
' ~
...........-
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MARCIO BtLHARINHO NAVES - 89
88 - MARX - Cl~NCIA E R EVOLUÇÁO
igualmente a qualquer mercadoria, é determinado pelo tem- mo, se constitua. Por outro lado, a produção do capital,
po de trabalho necessário à sua produção, isto é, à sua ma- da mais-valia, não pode se dar na circulação, mas sim na
nutenção e reprodução. Isso significa que o valor da força esfera da produção, onde a força de trabalho é utilizada
de trabalho vai corresponder à soma de todos os meios ne- pelo capitalista.
cessários para garantir a subsistência do trabalhador, isto é,
A esfera da circulação pode então aparecer como "um
para repor a energia física e mental gasta no processo pro-
verdadeiro éden dos direitos naturais dos homens", no qual
dutivo, assim como a dos filhos desse trabalhador, garantin-
as determinações jurídicas da liberdade e da igualdade per-
do a reposição da força de trabalho .
mitem que essa relação de capital apareça como o resultado
de um livre acordo de vontades, celebrado entre pessoas
ESPERANDO O CURTUME livres e iguais, sob a base da troca de equivalentes.
Pois bem, já vimos que o possuidor do dinheiro encon- Mas, ao sair dessa "esfera ruidosa", os seus persona-
tra no mercado uma mercadoria especial, que tem a pecu- gens já se alteram, como Marx ressalta: "O antigo pos-
liaridade de criar um valor superior ao seu próprio valor, suidor de dinheiro marcha adiante como capitalista, se-
mas esse valor de uso da força de trabalho que é adquirida gue-o o possuidor de força de trabalho como seu traba-
no mercado só se realiza quando consumida. Ora, o consu- lhador; um, cheio de importância, sorriso satisfeito e ávi-
mo da força de trabalho só pode se dar, como o consumo do por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como al -
de qualquer mercadoria, fora da esfera da circulação. As- guém que levou a sua própria pele para o mercado e
sim, devemos, seguindo Marx, abandonar essa "ruidosa es- agora não tem nada mais a esperar, exceto o curtume".
fera" da superfície, "acessível a todos os olhos", para acom-
panhar o possuidor de dinheiro e o possuidor da força de
trabalho ao "local o·c ulto da produção". É nessa esfera da PROCESSO DE TRABALHO E PROCESSO DE VALORIZAÇÃO
produção que o consumo da força de trabalho será ao mes-
mo tempo produção de mercadorias e produção de mais-
é imediatamente também processo de valorização, não é possí-
valia, em suma, produção de capital.
vel separá-los, distingui-los. Isso significa que a produção de
Podemos entender _agora por que Marx dizia que a objetos em um determinado processo de trabalho é igualmen-
produção de capital deveria e não deveria se dar na esfe- te produção de mais-valia e, mais importante ainda, é essa produ-
ra da circulação. É na esfera da circulação que o capita- ção de mais-valia o único objetivo do capitalista.
lista "virtual" encontra a força de trabalho, sem a qual
não é possível que a relação de capital, que o capitalis-
MÁRCIO BtLH ARINHO N AVES - 93
92 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO
No entanto, para efeito de análise, vamos considerar, produção capital istas: estas não são relações entre "ho-
como Marx o faz, em O capital, separadamente os dois pro- mens", mas entre classes e entre estas e os meios de traba:
cessos, o processo de trabalho e o processo de valorização. lho. Lembremos táo-somente que, para que a relação de
capital pudesse se constituir, foi necessário que o traba-
lhador fosse desprovido dos meios de trabalho, levando-o
Ü PROCESSO DE TRABALHO a vender a sua força de trabalho.
O processo de trabalho é uma atividade que combina Assim, acompanhando Marx em O capital, podemos
um determinado número de elementos - atividade orien- definir o processo de trabalho como sendo uma atividade
tada a um fim, objeto do trabalho, meios de trabalho: na qual o trabalhador, utilizando os meios de trabalho, opera
a) uma transformação do objeto de trabalho desde o início
-aº atividade
--orientada a um fim é o trabalho que
--
produtor direto realiza para transformar uma pretendida. O seu resultado é a produção de valores de
determinada matéria em um objeto útil; uso, bens que satisfazem necessidades determinadas.
l
balho; pertence-lhe, portanto, a utilização dela durante o dia, Como vimos, para que o capitalismo se constitua, é
1 1 li 1
essas condições são necessárias para que a relação de produ- neira que um modo de produção especificamente capi-
ção capitalista possa existir, elas não são suficientes para que talista ainda não se constituiu.
um modo de produção especificamente capitalista se cons-
O capital controla apenas as fases da produção exte-
titua. Vejamos a razão disso.
riores ao processo produtivo, isto é, o capital controla os
J Quando se inicia o capitalismo, o modo de produzir, meios de produção e as etapas de comercialização do pro-
isto é, a organização técnica da produção, não se modifica duto. O operário, no entanto, não necessita do capitalis-
substancialmente. As primeiras manufaturas assemelham- ta no que respeita ao processo de fabricação do produto,
se muito ao artesanato, dele só se distinguindo pela quanti- porque ele detém o conhecimento dos métodos técnicos
dade de trabalhadores-artesãos que são reunidos em um de produção, sabe como fabricar o bem e pode auto-
!Ilesmo local pelo capitalista. Isso significa que, embora es- organizar-se para a sua produção.
ses trabalhadores já estejam submetidos a relações de produ-
A conseqüência disso é que o domínio que o capitalista
ção capitalistas - porque estão separados dos meios de
exerce sobre o trabalhador direto é limitado, detendo a clas-
produção e venderam a sua força de trabalho para o capi-
se operária uma certa capacidade de resistência à exploração
talista - , as forças produtivas não sofreram modificações
do capital. O capitalista, em razão da estreiteza da base técni-
importantes, elas permanecem, no essencial, as mesmas da
ca da produção - . ausência de uma transformação capitalis-
época feudal. Assim, os trabalhadores produzem o bem por
ta das forças produtivas - , só pode obter uma taxa mais ele-
inteiro ou, ao menos, uma parte significativa dele; o ins-
vada de mais-valia aumentando a jornada de trabalho, isto é,
trumento de trabalho é um simples prolongamento e
o tempo de trabalho excedente, não-pago, ·do trabalhador. A
potenciamento da mão do operário; a divisão do trabalho,]
utilização desse método de extração de mais-valia, a mais-va-
compreendida a divisão do trabalho manual e intelectual,
lia absoluta, encontra dois limites intransponíveis: a capaci-
não existe ou existe em grau insignificante.
dade de resistência operária, em virtude do relativo domínio
Marx vai denominar subsunção (ou subordinação) que os trabalhadores ainda exercem no processo de fabrica-
formal do trabalho ao capital essa situação na qual o tra- ção do produto, e a impossibilidade de prosseguir a extensão
balhador direto está separado dos meios de produção, da jornada de trabalho além de um certo limite.
mas a organização do processo de trabalho, do ponto de
vista técnico, permanece inalterada. Ou seja, embora o
processo de trabalho seja subordinado ao capital, as for- A SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL
ças produtivas ainda não foram transformadas, de ma- Em um segundo momento, ocorre uma transforma-
ção das forças produtivas, em particular dos instrumentos
1 00 - MARX - O~NCIA E REVOLUÇAO MÁRCIO BILHARINHO N AVES· 101
de produção. Com a introdução do sistema de máquinas A essa subsunção real do trabalho ao capital corresponde
no processo de produção, o trabalhador direto torna-se um a forma da mais-valia relativa, ou seja, o capitalista passa a ex-
simples apêndice da máquina, um mero prestador de tra- trair mais-vàlia por meio não da extensão da jornada de tra-
balho genérico, indiferenciado, desprovido de conteúdo e balho, mas da diminuição do tempo de trabalho necessário
J
que não exige qualquer habilidade específica. para a reprodução da força de trabalho. Dessa forma, a jorna-J
da de trabalho pode permanecer a mesma, mas o período de
A força de trabalho dos operários é objetivamente
trabalho não-pago e apropriado pelo capitalista aumenta.
igualada, uma vez que ela é reduzida a mera energia
dispendida em um determinado tempo. É a isso que Marx Observemos que é só a partir do momento em que essa
chama de subsunção (ou subordinação) real do trabalho subordinação real do trabalho ocorre que o domínio social
ao capital. O capitalista agora tem o poder de dispor efe- da classe burguesa torna-se pleno, ou seja, as relações de
tivamente dos meios de produção. Ao contrário do perí- produção capitalistas só se constituem plenamente na fase da
odo anterior, quando a classe operária é limitada à exe- subsunção real do trabalho no capital. É, portanto, sob a base
cução de uma tarefa elementar do ciclo produtivo, quan- dessa modificação no modo de produzir, comandada pela
do ocorre a separação entre o trabalho intelectual e o necessidade de o capitalista dominar a classe operária para
trabalho manual, a intervenção do capitalista passa a ser _dela extrair mais-valia para além dos limites vigentes, que pode
necessária também no interior do processo de produção. surgir o modo de produção especificamente capitalista.
Ou seja, o trabalhador não é mais capaz de combinar os
elementos do processo de trabalho independentemente
da direção e coordenação do capitalista. Expropriado do UMA IMENSA COLEÇÃO DE MERCADORIAS
conhecimento técnico, que foi transferido para o siste-
O processo de produção capitalista é um processo de
ma de máquinas, reduzido à condição de energia criação de valor, de "autovalorização". O capitalista, ao
lab~a i ndiferenciada, o 09erário tQ.Dla:.§~e_inteiramc:;n:.
consumir a força de trabalho no processo de trabalho, não
t e subordinado ao capitalista. visa produzir bens que satisfaçam necessidades, mas ele
Assim, a expropriação da classe operária pela bur- tem exclusivamente o propósito de extrair mais-valia. Por
guesia completa-se: a expropriação não é apenas uma ex- isso o que ele produz são mercadorias que possuem um
propriação das condições objetivas do trabalho, mas é valor de troca e são comercializadas na esfera da circula-
também a expropriação da subjetividade, das condições ção, permitindo ao capitalista "realizar o valor" dessas
intelectuais do trabalhador. mercadorias e assim obter o seu lucro.
102 - MARX - O~NCIA E REVOLUÇÃO
MÁRCIO B ILHARINHO NAVES - 103
É por isso que Marx pode começar O capital dizendo Pois bem, se o valor da m ercadoria decorre do
que na sociedade capitalista a riqueza aparece como uma quantum de trabalho socialmente necessário para a sua
"imensa coleção de mercadorias" 5• É verdade que as forma- produção, é preciso que os diferentes trabalhos concretos
ções sociais pré-capitalistas também conheceram~ercado-. gastos para produzi-la sejam "igualizados'', para que pos-
ria, mas o seu estatuto é muito diverso na sociedade burguesa. sam ter uma expressão comum de valor comparável entre
J
Marx estabelece essa diferença essencial em Contribuição à si. Isto é, é necessário que esse trabalho seja considerado
crítica da economia política e em O capital, ao mostrar que apenas como dispêndio de certa quantidade de energia
só no capitalismo a mercadoria é a "forma fundamental ele- laborativa, ou seja, como trabalho abstrato.
~ntar da riqueza" e que "a produção de mercadorias só se Ora, o trabalho só se torna realmente abstrato no âm-
torna a forma geral de produção sob a base do trabalho assala- bito do modo de organização do processo de trabalho capi-
riado". Essas passagens revelam que a única sociedade na qual talista, no qual ocorre a subsunção real do trabalho ao capi-
a produção de mercador_ias generaliza-se e na qual, portanto, tal. _Como vimos, é só nessa específica estrutura de produ-
a totalidade dos produtos adquire a forma da mercadoria é ção que o trabalhador, expropriado objetiva e su~etiva
aquela em que a força de trabalho também reveste-se da for- mente das condições de trabalho, torna-se simples dispên-
ma de mercadoria: a sociedade burguesa. Assim, a produção dio de energia laborativa indiferenciada, desprovida de
de mercadorias torna-se a forma úpica da produção, como qualquer qualidade ou habilidade. O trabalho, então, pode
acentua Marx em O capital, acrescentando que, conseqüen- ser abstraído de rodas as suas "particularidades" e represen-
temente, todo produto passa a ser produzido para a venda "e tado como forma de valor na mercadoria.
toda a riqueza produzida passa pela circulação".
Mas a existência da mercadoria decorre ainda d e que,
Não obstante, as mercadorias parecem ser dotadas de 1 no capitalis mo, as un idades produ tivas são independen-
valor por sua própria natureza, obscurecendo que o valor tes e separadas umas das outras (as fábricas de diversos
nelas contido decorre de um~ específica forma de organi- proprietários), de tal sorte que os produtos dessas un i-
zação da produção material. E assim que "determinada re- dades isoladas precisam ser trocados para que realize~
lação social entre os próprios homens [... ] assume a forma valor neles contidos.
fantasmagórica de uma relação entre coisas'', como diz Marx
explicando o que ele denomina fetichismo da mercadoria. Essa divisão social do trabalho depende igualmente da
estrutura do processo de produção capitalista, mais especi-
ficamente, da divisão técnica do trabalho no interior desse
s Marx analisa a mercadoria como produto do capital, razão pela qual o seu processo. A divisão técnica do trabalho produz uma cres-
objeto é o processo de produção capitalista. Isso significa que a análise do
valor deve estar subordinada à análise do processo de valorização. cente fragmentação e parcialização das tarefas e procedi-
J'
....
1 04 - MARX - O~NCIA E REVOLUÇÃO MÃRCIO BILHARINHO N AVES · 105
mentos na unidade produtiva, que acabam por se separar e não, é uma relação de vontade, em que se refl ete a rela-
se especializar, transformando-se em tantos outros proces-
--=
çao A •
econom1ca. ))
·~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~--'
106 - MARX - Ü~NCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHARINHO N AV ES - 107
é coagido a vender a sua força de trabalho, mas ele a Em outro texto, As lutas de classes na França de 1848 a
vende por um ato de sua livre vontade e em condições 1850, a democracia aparece estritamente vinculada com os
de plena igualdade face ao capitalista; ambos são pro- interesses da classe burguesa, não sendo atribuída à demo-
prietários que dispõem do que é seu, e o operário rece- cracia qualquer caráter de universalidade, nem sendo aven-
be, em contrapartida, um valor equivalente por sua mer- tada a possibilidade de o movimento operário "dissolver-se"
J
cadoria. Marx ode, por isso, dizer que a base real da no interior de suas instituições e no âmbito da legalidade
igualdade e da liberdade é o processo do va or e troca, que lhe é própria.
Podemos concluir, portamo, que o direito constitui o De fato, nesse trabalho , Marx mostra que a forma de
homem enquanto proprietário que leva a si mesmo - a sua Estado monárquica corresponde ao interesse de uma fra-
força de trabalho - ao mercado como objeto de troca. ção da classe dominante, ao passo que a forma de Estado
constitucional republicana (democrática) corresponde ao
Esse é o sentido profundo da liberdade e da igualdade
interesse do conjunto da classe burguesa, podendo, assim,
burguesas que a análise de Marx permite desvendar,
a totalidade das frações em que se divide a burguesia exer-
demonstrando que essas categorias operam para que o tra-
cer em comum a sua dominação de classe. Como diz Marx,
balhador seja explorado no processo de produção capitalis-
_"o interesse geral de classe da burguesia pode subordinar
ta e que, portanto, elas não permitem a realização efetiva da
_tanto a pretensão de suas frações como de todas as outras_
liberdade e da igualdade.
classes". A forma democrática republicana permite que a
dominação da burguesia apareça não como a expressão
de um poder pessoal exercido por um rei, mas, ao contrá-
A CRfTICA DA DEMOCRACIA BURGUESA
rio, como a expressão de uma "vontade geral" manifesta-
Nos capítulos precedentes, já apreendemos o cará- da em um parlamento eleito pelo sufrágio universal.
ter tático que a democracia tem para Marx. Particular-
Nesse sentido, a democracia interessa aos trabalhado-
mente na "Mensagem do Comitê Central à Liga dos Co-
res na medida exata em que propicia o enfrentamento mais
munistas", nenhuma concessão é feita ao programa de-
aberto entre as classes, favorecendo a maturação da classe
mocrático: os trabalhadores devem, diz Marx, esgotar
operária e introduzindo no interior da classe dominante um
todas as possibilidades de utilização da democracia ao
elemento de inquietação e de instabilidade.
mesmo tempo em que a ultrapassam, com o recurso di-
reto a medidas e iniciativas ilegais, com o emprego da Em um texto do mesmo período, O 18 brumário de
violência revolucionária. Luís Bonaparte, Marx analisa a possibilidade da burguesia
abandonar a forma democrática de exercício do poder e
108 - M ARX - O ~ NCIA E REVOLUÇÃO M ÁRCIO BILHARINHO N AVES - 109
abdicar de exercê-lo diretamente, para desviar de si o cen- interesse de uma classe. De fato, se na esfera do mercado os
tro da luta social, transferindo o poder para um déspota agentes da troca devem se relacionar de modo livre e em
que se apresente como acima da luta de classes e dos inte- condições de igualdade mútua, a coerção estatal em favor
resses de classe. Marx demonstra que essa transferência do de uma das partes anularia o fundamento mesmo da socie-
poder reveste-se apenas de uma aparência de eqüidistância dade mercantil-capitalista, que pressupõe a existência de
j
e independência em relação à luta de classes, constituindo sujeitos-proprietários que se relacionam voluntariamente,
uma forma de Estado - o "bonapartismo" - que prosse- sem a interferência de uma autoridade coercitiva externa.
gue em sua função de assegurar o domínio da burguesia e a
É justamente isso que se verifica quando o trabalhador
reprodução do capital.
~ ~
vende a sua força de trabalho. O contrato é celebrado en-
Todas essas considerações de Marx, embora justas tre dois sujeitos em condição de estrita reciprocidade, por
em seu princípio, são no entantoillsüficientes em razão. - um ato livre da vontade do trabalhador, sem qualquer for-
~e não estabelecerem a relação entre a forma da demo- ma de coerção estatal obrigando-o a realizar essa operação.
cracia e a forma do valor, ou seja, ao não estabelecerem a O poder do Estado pode então aparecer como estando aci-1
relação entre a democracia e a circulação mercantil- { ~· das partes contratantes, como uma autoridade pública _}
capitalista. Uma vez estabelecida essa relação, a demo-_ que apenas vela pela observância da ordem pública, isto é,
-..;;
cracia adquire um caráter particular, enquanto forma das condições de funcionamento normal do mercado6 •
política específica do Estado burguês, e, portanto, uma
L
Assim, pode-se construir uma representação do Es-
1 forma que não pode ser utilizada pela classe operária -
tado como esfera do bem comum, da vontade geral, do
a não ser de modo limitado, taticamente - no curso da
interesse gera l, separado de uma sociedade civil
1 luta contra a dominação bu q~uesa, assim como no perí-
identificada como sendo a esfera dos interesses particu-
odo da transição socialista.
lares conflituosos. Essa representação vai tornar o Esta-
l Ora, é em O capital (e nos estudos preparatórios a essal
~
do uma região insuscetível de acolher e defender in-
L obra) que Marx vai demonstrar essa tese. J teresses particulares de classe, posto que a sua natureza
pública o impossibilita de cumprir essa função. Conse-
A existência de uma esfera de circulação de mercado-
qüentemente, o acesso ao Estado está interditado a toda
rias - e, em particular, da mercadoria força de trabalho
- , que funciona sob a base da equivalência e que, portan-
to, respeita as determinações da liberdade e da igualdade, 6 Cf. Evgeni Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo, Rio de Janeiro,
Re nova r, 1989. Cf. também, para o que segue: Ph illippe Dujard in, 1946, /e
surge como a condição necessária para que se constitua uma droit mise-en-scene, Paris, Maspero/ PUG, 1976 , Michel Miai lle, L'État du
droil, Pari s, Maspe ro/PU G, 1978 e Be rnard Ede lman, La legalisation de la
forma de poder que não apareça como a representação do classe ou vriere, Paris, Christian Bourgois, 19 78.
11 0 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHARINHO N AVES - 111
representação de classe, pois,.por definição, o Estado não o seu fundamento no processo do valor de troca, que, como
ode admitir representar uma classe em particular - diz Marx na Contribuição à crítica da economia política,
porque isso seria reconhecer que o Estado não mais man- não apenas respeita a igualdade mas também a cria.
tém o seu caráter público - , sendo esse acesso franq ue-
A conseqüência política de todo esse processo con-
ado apenas aos indivíduos qualificados politicamente en-
J siste na neutralização da luta de classe operária. Quando
quanto cidadãos.
o Estado só admite a política concentrada "de direito"
É desse modo que a participação na esfera do Esta- na sua esfera de competência, toda luta gue ultrapasse os
do, a formação da "vontade geral'', pode ser construída ;;;_arcos da reivindicação profissional, e consista em uma
como uma passagem da sociedade civil para o Estado, ameaça ao processo de valorização do capital, é interdi-
ou seja, como uma passagem da determinação particu- tada e considerada ilegal. Assim, a greve ou a ocupação
lar da esfera privada para a determinação universal da de fábrica que desorganize a produção torna-se uma gre-
~ra p 1íblica ve "política", porque questiona o poder de classe da bur-:
guesia, a sua dominação sobre os trabalhadores. Ora, a
Pois bem, é o sistema de representação política da 'it
política, nós já o sabemos, é a esfera exclusiva de mani-
democracia que permite operar essa passagem. Através
festação dos cidadãos no Estado por meio das eleições;
do sufrágio universal, a condição de classe é neg~da pela _
no âmbito da sociedade civil - onde se situa a fábrica
atomização dos indivíduos enquanto cidadãos, des-
- só se admitem as manifesta ões de natureza privada,
providos de quaisquer víncu los com outros em sua
as reivindicações profissionais. Portanto, se os tra a-
irredutível subjetividade. Quando vota, o indivíduo alça-
lhadores quiserem se man ifestar politicamente, deverão
se à condição de cidadão, despojando-se de sua vontade
se despojar de sua condição de classe e participar do pro-
particular egoísta.
cesso político como cidadãos.
Essa participação dos cidadãos no Estado é um proces-
A crítica da democracia, a partir dos desenvolvimentos
so de circulação das vontades políticas, cuja existência- de-
de O capital, permite revelar a sua natureza irremediavel-
pende do surgimento de uma esfera de trocas mercantis
mente burguesa e a sua função como elemento que encerra
generalizada. A equivalência política dos sujeitos-cidadãos
a luta de classe operária nos marcos da legalidade e da
só pode ser construída sob a base da equivalência mercantil
institucionalidade burg_uesas.
que iguala os possuidores de mercadorias.
j..Ni.. (Vl~ +f '}':~ M /WwJ f, i~ M
! 'm,ori· {/uy.fa1.fui{ fv /;.'l)Cn~.9
j'J, <~r·t ~ ~·*7,k.fui ./--r:J_ faafu,~~d1c/.~. r~ ~,(l.l
O princípio da igualdade, princípio básico da demo-
r.·: til -/ <W1 I
~·~-OWJ ~ (1Yw>vvx f Ul/Yl1 ) ~
/
cracia, e em torno do qual ela se organiza, encontra, assim, .' ' ll.1 µJjlfU.;
J ~tru.rd~ jtk~~ l JtA.tf.}fY'(.'l'!M ~ 1 ~-h~ 1 fwo"'- ~·~
)• ,-hivcl-nd.{\'<IAI-/,_~ 1/!"- O•vi,;;,t, ~ ~ 1 ;,,, /
1
CetWi>k J'
/'«. l!x1~ie~ ~
114 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHARINHO NAVES - 115
Como já tínhamos observado no capítulo 3, no pe- tude da necessidade de exercer um domínio completo so-
ríodo de A ideologia alemã, Marx estabelece o princíp io bre a classe operária, para poder extrair mais-valia para
de determinação imediata entre a base econômica e a além dos limites impostos pela não-transformação da base
superestrutura, resultando disso que esta última aparece técnica da produção, e em virtude também da necessida-
como uma "emanação direta" àa's relações econômicas. de imposta pela concorrência dos demais capitalistas, a
Ele estabelece também o princípio do primado das fõf-_ burguesia opera uma revolucionariza5ão das forças pr;=
ças produtivas sobre as relações de yrod~ão, segundo o dutivas, introduzindo a máquina e o sistema de máquinas.
qual são as forças produtivas que "comandam" o desen- Essa transformação vai permitir que o capitalista domine
volvimento histórico. completamente o processo de trabalho com a expropria-
ção objetiva e subjetiva do trabalhador.
Pois bem, essas teses não encontram sustentação
uando Marx realiza a análise científica do modo de pro- Ora, essa análise de Marx modifica os termos do pro-
blema. As relações de produção surgidas antes da transfor-
continue a atravessar a trama científica que Marx tece, é mação das forças produtivas, embora já sejam relações de
justo considerar que uma retificação em sua concepção produção capitalistas - porque o trabalhador direto está
do materialismo histórico está se operando - particu- ;=parado das condições materiais do trabalho e precisa ven-
larmente em O cavital. der a sua força de trabalho para o capitalista - , são re-
lações de prod ução que não garantem o completo domínio
do capitalista sobre o trabalhador direto, portanto são rela-
A DOMINÂNCIA DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO ções de produção capitalistas "imperfeitas" ou incompletas.
Isto é, elas permitem apenas um controle formal sobre o
Como vimos, ao analisar a subsunção formal e a
processo de trabalho; são, assim, relações de produção ape-
subsunção real do trabalho ao capital, Marx demonstra
nas formalmente capitalistas. Para que as relações de pro-
que a constituição das relações de produção capitalistas
precede a constituição de forças produtivas capitalistas , dução plenamente capitalistas se constituam, permitindo o
total controle e domínio sobre a classe operária no processo
ou seja, pnme1ro surge uma relação social determinadã:'
de produção, é necessário que ocorra a transformação das
aquela que vincula o possuidor das condições materiais da
forças produtivas existentes, com o surgimento de novas for-
produção ao possuidor da força de trabalho, mas a base
material da produção, as forças produtivas, permanecem' -ças produtivas, de caráter especificamente capitalista.
as mesmas da sociedade feudal. Gradativamente, em Vir- São as relações de produção, portanto, que coman-
dam as transformações das forças produtivas, como uma
\
116 - MARX - Cl~NCIA E REVOLUÇÃO M ÁRCIO BILHARINHO N AVES - 117
exigência do processo de valorização. Mas a plena consti- ses de Marx permitem apreender que as forças produtivas
tuição das relações de produção capitalistas só ocorre quan- dependem sempre da luta de classes, que elas nunca se desen-
do essas forças produtivas novas surgem, porque são elas volvem independentemente das relações de produção.
que vão constituir a base técnico-material da expropria-
ção "subjetiva" da classe operária no processo de trabalho.
Isso significa que não há uma relação de exterioridade en- MODO DE PRODUÇÃO E DETERMINAÇÃO EM ÚLTIMA
-- --- -
. tre as relações de produção e as forças produtivas, mas _gu~ INSTÂNCIA
as forças produtivas estão dentro das relações de_produção,
Do mesmo modo, _: análise que Marx desenvol~
isto é, as relações de produção são a forma de desenvolvi-
O capital e em outras obras do período permite elaborar
mento das forças produtivas.
uma concepção do modo de produção no qual a determi-
Disso decorrem duas conseqüências de importância nação econômica pode ser pensada como uma determina-
fundamental. Em primeiro lugar, l história não aparece ção em última instância, e não como uma determinação
mais como uma sucessão linear de modos d~rodução direta e imediata da superestrutura pela base.
cujo movimento interno é dirigido pelo nível de
Algumas passagens de O capital mostram claramente
desenvolvimento das forças produtivas, mas depende da
que Marx concebe a estrutura social de modo complexo
luta de classes. Em segundo lugar, não mais subsiste a con-
e não mecânico, de tal sorte que pode afirmar que ele-
cepção de que a~ forças produtivas têm um caráter neu-
mentos não-econômicos chegam a jogar o papel domi-
tro , ficando estabelecida a sua determinação de classe.
nante na reprodução das relações sociais em determina-
· Marx desautoriza, assim, a idéia de que as forças pro- 1 dos modos de produção . É o que Marx afirma, por exem-
dutivas da sociedade comunista constituam-se no interior / plo, nesta passagem: "D eve ser claro que a Idade Média
do capitalismo, que elas possam ser as mesmas forças pro- 1 não podia viver do catolicismo nem o mundo antigo, da
dutivas do capitalismo, que, por força das contradições ine- política. A forma e o modo como eles ganhavam a vida]
rentes a esse modo de produção, vão se tornando cada vez exp lica, ao contrário, por que lá a política, aqui o catoli-
mais socializadas, cabendo à sociedade comunista tão-so- [ cismo, desempenhava o papel principal".
mente receber essas forças produtivas completamente ade-
Assim também, em uma passagem importante do capí-
quadas a ela, e as quais, libertadas das relações de proprie-
tulo sobre a "Gênese da renda fundiária capitalista", do livro
dade (capitalistas) que as entravavam, podem agora ex-
3 de O capital, Marx afirma: "Está claro, além disso, que em
pandir-se livremente. Ao concráno dessa concepção
todas as formas em que o trabalhador direto continua a ser
mecanicista e evolucionista do processo histórico, as análi-
118 - MARX - ÜENCIA E REVOLUÇÃO MÁRCIO BILHARINHO NAVES - 119
'dono' dos meios de produção e das condições de trabalho essa relação, isto é, entrega ao senhor o resultado do seu
para a produção de seus próprios meios de subsistência, a trabalho, em virtude da interferência de fatores não-eco-
relação de propriedades tem de aparecer, ao mesmo tempo, nômicos. Assim, é necessário o emprego da coerção físi-
como relação direta de dominação e servidão, e, portanto, o 5.:.. através da força militar dos senhores para que essa re-
produtor direto como alguém não livre. [... ] Sob essas con- lação social se reproduza. Além disso, a ideologia religio-
dições, o mais-trabalho só pode ser arrancado deles pelo pro- sa cristã concebe uma representação imaginária de mun-
prietário nominal da terra mediante coerção extra-econômi- do na qual se justifica, como expressão da vontade divi-
ca, qualquer que seja a forma que esta assumà'. na, a relação de exploração do servo pelo senhor.
Pois bem, o gue essas passagens nos dizem? Inicialmente, pesse modo, a reprodução das relações de produção
que elementos não-econômicos, como a política, a religião, feudais é garantida pela intervenção da instância política (a
elementos, portanto, da superestrutura, podem ser do;J: relação de força) e da instância ideológica (o catolicismo)
nantes em uma determinada sociedade. Em segundo lugar, da estrutura social. Porém, o que permite explicar a necessi-
que é o modo de produção (em sentido estrito) que permiEe dade da interferência desses elementos superestruturais para
explicar por que esses elementos podem justamente cumprir que a reprodução das relações sociais feudais possa ocorrer
essa função. Em terceiro lugar, que reside na combinação é uma combinação específica de elementos da base econômi-
entre o agente direto da produção e os meios de trabalho a ca. De fato, é a existência, na base econômica do modo de
possibilidade de se compreender a "lógica" de funcionamen- produção feudal, da não-separação entre o produtor dire-
to da estrutura social. Vejamos tudo isso mais de perto. to e os meios de produção, o que explica por que a repro-
dução das relações sociais feudais tem necessariamente de
No modo de produção feudal, a relação de produ-
~er garantida pela coerção e pela ideologia. Se o senhor feu-
ção envolve dois agentes: o senhor feudal, proprietário
dal não dispõe do controle efetivo dos meios de produç!o,
~s condiçóe; materiais da produção, e o servo, que man-
não pode haver um modo dele obter, a partir do próprio
tém a posse dessas mesmas condições. Essa relação impli-
processo de produção, o sobreproduto do servo. Ele preci-
ca que o servo trabalhe para o senhor, entregando-lhe
sa "arrancar" do produtor direto, mediante a combinação
parte da produção por ele realizada. Ora, o que leva à
da força militar e da ideologia religiosa, o produto do seu
reprodução dessa relação? Observemos, de imediato, que
trabãlho. A exploração resulta, assim, do emprego de uma
não existe nenhuma necessidade de ordem econômica
~oerção exterior ao processo de trabalho e da ideologia ca-
para o servo assim agir, já que ele está na posse das con-
tólica que a recobre e justifica.
dições materiais da produção e mantém o controle sobre
o processo de trabalho. Portanto, o servo só reproduz
120 - MARX - Cl~NCIA E R EVOLUÇÃO MARCIO BILHARI N~IO NAVES - 121
Já no modo de produção capitalista, a reprodução trato e do sujeito de direito, a compra e venda da força de
das relações de produção ocorre de forma diversa. Nessa trabalho, como o Estado, por meio do seu aparato repressi-
sociedade, como sabemos, a relação de produção envolve vo (como as forças armadas) e ideológico (como a escola).
dois agentes: de um lado, o capitalista, proprietário das
Pois bem, o que permite explicar por que a reprodu-
condições materiais da produção e, de outro lado, o ope-
ção dessas relações é assegurada, no fundamental, pela ins-
rário, possuidor apenas de sua força de trabalho . Essa re-
tância econômica, é uma combinação específica dos elemen-
lação implica a venda da força de trabalho pelo operário
tos do nível econômico.
ao capitalista, que a utiliza no processo de produção, ob-
tendo um valor além do valor da própria força de traba- Ao contrário do que ocorre no modo de produção
lho, uma mais-valia que é apropriada por ele. Ora, o que feudal, no capitalismo não há uma unidade, mas justa-
leva o operário a ceder essa parte do seu trabalho, que não mente uma separação entre o trabalhador e os meios de
é paga, ao capitalista, o gue o leva a reproduzir essa rela- produção. Separado dos meios de produção, o produtor
Ção de produção? Essa relação se reproduz por força do direto depende do capitalista para produzir, e não tem
'funcionamento do processo de produção capitalista é no qualquer possibilidade de controlar o processo e o resul-
interior do processo de produção de mercadorias que a tado de seu trabalho. Assim sendo, é suficiente que o capi-
extração da mais-valia ocorre, sem que o trabalhador te- talista exerça o seu domínio sobre o trabalhador no pro-
nha qualquer controle desse processo. A mais-valia é "en- cesso de produção para que a reprodução das relações soci-
coberta" e desaparece subsumida no princípio da troca ais capitalistas esteja fundamentalmente garantida.
de equivalentes, que preside a compra e venda da força
de trabalho. No capitalismo, não há um sobreproduto,
ara Marx como uma estrutura
mas somente uma mais-valia, ou seja, o sobreproduto não
social composta de níveis, na qual um nível, ou uma combi-
é "visível", ele só existe sob a forma do valor.
nação deles, cumpre uma função dominante, e o nível eco-
A exploração capitalista, portanto, é intrínseca ao pro- nômico cumpre sempre a função de determinação em úl-
cesso de trabalho. Sendo assim, a reprodução das relações ~stância na reprodução das relações de produção. Isso
de produção capitalistas é garantida, no fundamental, por significa que um dos níveis 011 11ma combinação deles vai
~m movimento estritamente econômico. No fundamental, assegurar que as relações de produção se reproduzam, mas
porque também interferem nesse recesso tanto o direito e é sempre o nível econômico aquele que vai determinar qual
a i eologia jurídica, g ue jogam um papel importante ao dos níveis deve cumprir tal função.
possibilitar, através da constituição das categorias do con-
122 . MARX - Cl ~NCIA E REVOLUÇÃO
A compreensão que Marx tem do problema da transição "revolucionarização" do Estado-, e só a partir delas, que
socialista - até então fortemente condicionada pelo primado se pode apreender a concepção marxiana do comunismo.
concedido às forças produtivas - não permanece a mesma
após as análises de O capital e após a experiência da Comuna
de Paris - recolhida por Marx em A guerra civil na França. A REVOLUCIONARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
O conhecimento científico do modo de produção capi- No Manifesto do Partido Comunista vimos que Marx,
talista e a experiência revolucionária dos operários franceses embora identifique a supressão da propriedade privada com
durante a Comuna de Paris vão possibilitar a Marx operar duas o socialismo, já sugere a necessidade de se operar uma dupla
retificações em sua concepção. Estas retificações são relativas à supressão: a supressão da propriedade privada e a supressão
questão da transformação das relações de produção e à ques- das relações de produção capitalistas, de modo que Marx já
tão ~a transformação do Estado na transição socialista. parece não confundir esses dois níveis, mesmo que ele conti-
nue a conceder mais relevância à supressão da propriedade.
A p rimeira dessas retificações perm ite reformular a
A análise contida em O capital permite que se com-
posição dominant'e q ue Marx ho uvera emprestado à su-
preenda que a simples transferência da propriedade para
pressão da propriedade privada para pensar o socialismo.
o Estado não transforma, ipso facto, a natureza das rela-
Essa retificação não é, no en t anto, expressamente
ções de p rodução. Tal rgnsferência, gue se opera intei-
formu lada pelo próprio Marx, mas ela é autorizada pela
ramente dentro do direito, é uma condição necessária, mas
mudan ça de problemática introd uzida p ela an álise da
não suficiente para que o modo de produção capitalist~
transição para o capitalis mo, q ue se encontra em O ca-
seja suprimido. Para que isso venha a ocorrer, é preciso
pital, e está intimamente relacionada· com o abandono
9 ue as relações de produção cap italistas - que não se con-
da tese do primado das for~as produtivas q ue analisamos
fundem com as relações de propriedade - sejam efetiva-
no capítulo precedente.
mente transformadas, o que implica um esforço para se
A segunda dessas retificações, expressamente formula- "desmontar" o p rocesso de trabalho capitalista.
da por Marx no prefácio à edição alemã de 1872 do Mani-
Pois bem, é justamente nesse passo que a análise de O
festo do Partido Comunista, permite introduzir um elemento
capital sobre a subsunção formal e a subsunção real do tra-
decisivo para que a transição possa ser teoricamente formu-
balho no capital pode se revelar como a chave para se com-
lada: a destruição do aparelho de Estado burguês.
preender o sentido da transformação socialista em Marx.
É a partir do exame dessas duas questões -a
Recordemos os termos do problema.
"revolucionarização" das relações de produção e a
126 - MAR X - Cir NCIA E R EVOLUÇÃO MÁRCIO B tLHARI NHO NAVES - 127
O primeiro momento - a subsunção formal do trabalho Se as relações de produção capitalistas repousam na cons-
no capital - é aquele no qual já estão constituídas as rela- tituição desse "núcleo duro" de existência do capital - a or-
ções de produção capitalistas - embora formãlmente - ganização do processo de trabalho sob a base técnica das for-
e, portanto, a força de trabalho operária está submetida à ças produtivas especificamente capitalistas - , o socialismo
lei de valorização. No entanto, o processo de trabalho en- ~eve necessariamente ser o período no qual essas relações de
uanto tal, isto é, do ponto de vista técnico, ainda não so-
freu nenhuma transforma - o, restando o mesmo do perío-
..
produção são destruídas. Como o processo capitalista de tra-
balho é or anizado de modo a ossibilitar a expropriação
do anterior. Isso significa que as forças pro utivas não so- objetiva e subjetiva do operário pelo capital, o socialismo eve
freram uma alteração substancial que as tornasse adequa- implicar um processo de reapropriação das condições obJetl-
das às relações de produção capitalistas, o que equivale a -vas e subjetivas da produção por parte dos trabalhadores.
dizer que as forças produtivas especificamente capitalistas
r
ainda não se constituíram. É necessário, no entanto, precisar que há uma diferen-
ça essencial entre a análise da transição para o comunismo e
Em um segundo momento, o processo de trabalho é _a análise empreendida por Marx para pensar a transição
revolucionarizado com a introdução da maquinaria, o operá- 'i f para o capitalismo. Ao contrário desta última, na transiçã~
rio perde o controle que ainda detinha do processo de fabrica- para o comunismo não é possível que se estabeleçam, p revi-
ção do produto e é transformado em simples "apêndice" da amente à transformação do processo de trabalho ca italis-
máquina, convertendo-se, assim, a força de trabalho em mero
ta, reações de produção de natureza comunista. Ou seja,
dispêndio de energia laborativa. À expropriação objetiva das no socialismo, as relações de produção permanecem capi-
condições materiais da produção vem juntar-se a expropnação
talistas por um longo período, no qual os trabalhadores lu-
subjetiva da potência mental do operário. Essas novas forças
tam para transformar essas relações, objetivando exercer o
produtivas, especificamente capitalistas, são agora plenamente
seu controle sobre o processo de produção.
adequadas às relações de produção capitalistas, de que são a
base material necessária para que a dominação de classe se exerça A única conseqüência imediata da tomada do e_oder pela
plenamente no interior do processo de trabalho. ~lasse operária é que ela passa a exercer algum controle sobre
as condições externas do processo de produção, em virtude
l
Em que essas observações, pertinentes ao processo de
~da estatização dos meios de produção e da introdução do
produção capitalista, podem se mostrar adequadas para a
análise da problemática da transição socialista em Marx?
a
planejamento econômico. Emb~a propriedaae estatal e a
-intervenção, sobretudo na esfera da circulação e da distri-
l-r~ 'f_~,c kq fMiJil:J
128 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO M ÁRCIO BILHARINHO N AVES - 129
buição, imponham algum condicionamento (externo) à atua- quada para possibilitar que se supere a separação entre os
ção da lei da valorização, elas não podem de modo algum meios de produção e os trabalhadores diretos.
modificar a organização capitalista do processo de trabalho.
Assim, a transição para o comunismo é, imediatamente, um.pro-
cesso de reapropriação real das condições da produção, sem o RELAÇÃO JURfDICA E APROPRIAÇÃO REAL
que as relações de produção comunistas não se constituirão. Temos, agora, os elementos para perceber que a transi-
A possibilidade de uma transformação revolucionária ção para o comunismo, em Marx, não pode se limitar a
das relações de rodução capitalistas reside necessariamen- uma operação jurídica de transferência da titularidade dos
te no "ataque" à organização ca italista do processo e tra- meios de produção. Como já observamos, a mera estatização
balho, pois é justamente o modo como o processo e era a- - os meios de produção não é suficiente para extinguir o
~ organiza sob as relações de produção capitalistas o processo de produção capitalista.
que permite o prosseguimento do processo de valorização. N a ausência de uma revolucionarização das relações
Recordemos que a existência do modo de produção es- de produção capitalistas, sem que tenham se constit uído
pecificamente capitalista depende da constituição de uma forças produtivas comunistas, uma nova burguesia pode
"base técnica'', que são as forças produtivas novas, de nature- surgir em virtude da permanência do processo de valori-
za capitalista, que surgem por exigência do processo de valo- zação durante o período de transição . A luta pela trans-
rização do capital, isto é, sob o "comando" das relações de formação revolucionária da sociedade burguesa, cujo as-
produção. Essas novas forças produtivas - basicamente o p ecto principal é a apropriação pelos trabalhadores das
sistema de máquinas - vão assim possibilitar a plena domi- condições materiais da produção, deve ser dirigida ~
~
nação e exploração dos trabalhadores pelo capital. Ora, o tra c!2is aspectos fundamentais da organização capitalis-
socialismo, enquanto etapa de transição, deve implicar, en- ta do processo de trabalho: a divisão entre o trabalho
"\.
tão, a substituição dessa base técnica do capital, das forças manual e o intelectual e a divisão entre as tarefas de di-
produtivas do capital, por novas forças produtivas, de cará-
ter comunista, permitindo que a classe operária possa apro- -reção e execução.
A divisão entre as tarefas de execução e as tarefas de operária não pode apenas tomar posse da máquina de Estado
direção reproduz a perda da capacidade do trabalhador de já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios fins"'. Marx
pôr em funcionamento o processo de trabalho e de dispor introduz então um elemento absolutamente decisivo para se
do produto de seu trabalho. Aos agentes do capital fica re- pensar a transição socialista: a necessidade de destruição do
servada a direção do processo de produção, ao passo que os Estado burguês e a sua substituição por um outro Estado, de
operários devem se limitar a executar as ordens daqueles. natureza completamente diversa.
Portanto, é justamente ao "atacar" esses dois elementos fun-
Qual o significado dessa retificação? Por que ela de-.]
damentais para a dominação burguesa que a classe operá-
sempenha um papel tão importante? O que, afinal, Marx
ria pode iniciar o processo de constituição de novas rela-
[ aprendeu com os operários revolucionários de Paris?
ções de produção e forças produtivas comunistas.
Ü SEGREDO DA COMUNA
A REVOLUCIONARIZAÇÃO DO ESTADO
. O que os trabalhadores franceses demonstraram na revo-
O outro aspecto decisivo para compreender-se o pro-
lução foi que o Estado burguês, tal como ele é "recebido" pelos
blema da transição em Marx é aquele referente às trans-
trabalhadores após a tomada do poder, não é adequado para
formações operadas no Estado após a tomada do poder
servir aos propósitos da revolução. Ou seja, o Estado burguês é1
pela classe operária. No Manifesto do Partido Comunis-
estruturado para funcionar e~clusivamente no interesse da classe
ta, Marx não faz menção à necessidade de ocorrer essa
dominante burguesa e, permanecendo sem sofrer qualguer
transformação. Nesse texto, ele limita~se a constatar que / ii-iodificação, ele vai continuar reproduzindo, em última ins-
a conquista do poder pelo proletariado possibilitará a este 1
1 rância, as formas sociais da sociedade capitalista. Esse Estad~
o exercício de sua dominação de classe, mas nada diz so-
vai se transformar, assim, em um obstáculo à transformação
bre uma questão decisiva: a de se saber se o Estado bur-
das relações sociais capitalistas, um obstáculo à apropriação das
guês herdado pelos trabalhadores pode servir para a or-
condições materiais da produção e do poder político pelas
ganização de uma outra forma de sociedade.
massas. É a isso que se refere Marx ao dizer, em A guerra civil
É o episódio da Comuna de Paris que propicia a Marx os na França, que o instrumento político da sujeição do proletari-
elementos de resposta para esse silêncio teórico e político. Reco- ado, isto é, o Estado burguês, não pode ser utilizado como
lhendo os "ensinamentos" dos operários revolucionários france- instrumento político de sua emancipação.
ses, ele pode então expressamente enunciar uma retificação no
Se, então, para Marx, o Estado burguês deve ser destruído,
Manifesto, ao dizer, no prefácio à edição alemã de 1872 dessa
o que, precisamente, deve ser objeto dessa destruição e, ade-
obra, que "a Comuna demonstrou especialmente 'que a classe
132 - MARX - CiCNCIA f R EVOLUÇilO
Analisando as medidas tomadas pela Comuna, Marx Ü CONTROLE DO ESTADO PELAS MASSAS
observa que o primeiro decreto por ela expedido visou su-
primir o exército permanente, substituindo-o pelo "povo Outra medida decisiva tomada pelos operários fran-
armado". Do mesmo modo, a polícia perde a sua função ceses foi a concentração dos poderes executivo e legislativo
política, convertendo-se em um instrumento da Comuna em um único órgão - a Comuna-, convertida em uma
- a ponto de Marx também considerá-Ia "suprimida". Es- corporação de trabalho. Assim, superava-se a separação
sas iniciativas atingem o cerne do Estado burguês, o seu dos poderes, típica do Estado burguês, que implica a pos-
aspe~o principal, o aparelho repressivo: sibilidade de expressão dos interesses das distintas classes e
frações de classe dominantes.
É o aparelho repressivo do Estado burguês que garante os
interesses da classe dominante, não apenas face a uma insurrei- A Comuna era composta de conselheiros eleitos, respon-
ção armada, isto é, em um caso Ümite de confronto direto de sáveis e substituíveis a qualquer momento. Os funcionários do
classe, mas a força armada da burguesia intervém mesmo nos conjunto da administração, inclusive a magistratura, também
conflitos oriundos de reivindicações meramente econômicas. estavam sujeitos a esses mesmos princípios, possibilitando o con-
Esse aparato de violência de classe dirigido contra os tra- trole de suas atividades pelas massas. Todos recebendo, ade-
.balhadores constitui-se no obstáculo
. mais difícil a ser vencido. mais, salários de operários. O alcance dessas medidas é de ex-
Mesmo após a revolução, se o aparelho militar-policial man-
tém-se como um corpo especial, separado das massas, ele se con-
- -
máquina do Estado pela classe operária e impedir o estabeleci-
--
traordinária importância. Elas visam possibilitar o controle da
vene em um obstáculo para a transformação social, impedindo ment~ de distinções entre os trabalhadores e os agentes políti-
que a classe operária possa apropriar-se diretamente do poder cos, apontando, tendencialmente, para a superação da separa-
,í .
político e iniciar a revo!ucionarização das relações de produção. ção entre as massas e o poder po1
propriamente, Estado", como diz Lenin, comentando A gu.erra cariado. Não nos enganemos quanto aos termos: ele enten-
civil na França em seu trabalho O Estado e a revolução. de que todo Estado é uma ditadura, na medida em que ele
é a forma política de dominação de uma classe. Assim, um
A quebra, a amputação, a supressão, a destruição, o cará-
Estado pode ser "democrático", isto é, ele pode admitir um
ter supérfluo do Estado, todas essas e~ressões de Marx tradu-
certo grau de liberdades públicas, o parlamento e o sufrá-
zem a necessidade de, desde já, desde o início do processo de
gio universal, e nem por isso deixar de ser uma ditadura,
transição, a classe operária apropriar-se das funções essenciais
arque o poder político continua a ser exercido pela classe
clOEstado, .,a!ravés de um aparato que, de certo modo, já não _t
dominante. Ao contrário da ditadura burguesa - que é~
mais um Estado, de um Estado que traz em si os elementos de
ditadura de uma minoria, em favor dessa minoria-, a dita-
sua Própria--;ttinção, isto é, de um Estado cujo centro já foi
dura do proletariado é uma ditadura exercida pela maio-
deslocado para as massas, que já deu início ao processo de sua
ria, pelos trabalhadores, contra a antiga classe dominante-:
destruição enquanto Estado, ç_nquanto instância política se-
parada e acima das massas. Esse é o segredo da Comuna, como O conceito de ditadura do .proletariado ocupa um lugar
diz Marx: "Eis o seu verdadeiro segredo: A Comuna era, central na concepção marxiana da transição. Já em 1852, em
essencialmente, um governo da classe operária, fruto da lura uma carta a Joseph Weidemeyer, referindo-se ao que sua teoria
da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma polí- havia trazido de novo, Marx dizia ter demonstrado que "a luta
tica afinal descoberta para levar a cabo a emancipação eco- de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado"
nômica do trabalho". Forma política constituída com o objeti- e que "essa ditadura ela própria não é mais que a transição para
vo de emancipar os trabalhadores, ou seja, Marx relaciona a a supressão de todas as classes e para uma sociedade sem classes".
destruição das relações de produção capitalistas com a destrui-
Dois ensinamentos fundamentais podem ser extraí-
ção do Estado burguês, de cal sorte que, sem a criação de um
dos dessa passagem. Em primeiro lugar, quando Marx afir-
Estado que já não é mais um Estado em sentido próprio, a
ma que a luta de classes leva à ditadura do proletariado,
revolucionarização das relações de produção capitalistas e a
ele não apenas está dizendo que o antagonismo irreconciliá-
constituição de novas forças produtivas não seriam possíveis.
vel de classes deve acarretar a dominação "despótica" da
classe operária, como uma conseqüência desse antagonis-
mo, mas, do que ele diz, pode-se inferir sobretudo uma
DITADURA DO PROLETARIADO E TRANSIÇÃO AO
outra tese, absolutamente decisiva, a de que a luta de clas-
COMUNISMO
ses prossegue após a tomada do poder pelo proletariado,
O Estado que a classe operária constitui após a tomada e é por isso que uma ditadura é necessária, porque, senão,
do poder é, para Marx, uma ditadura, a ditadura do prole- em caso contrário, se o momento do triunfo revolucionário
136 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO
MÁRCIO BILHARINHO N AVES · 137
da classe operária acarretasse o fim da luta de classes, a se no povo em armas, na superação das formas burguesas de
ditadura dessa classe se tornaria desnecessária e ociosa. É representação política e no desmantelamento do aparelho re-
por isso que Marx afirma a seguir que a ditadura do pro- pressivo. Essa "forma política enfim encontrada" para possibi-
letariado confunde-se com a própria transição para a so- litar a "emancipação econômica do trabalho" é a forma po-
ciedade comunista (para a sociedade sem classes). Portan- lítica específica para s;iue possa ocorrer o processo de
to, a luta de classes prossegue durante a transição para o transformação revolucionária das relações sociais no decorrer
comunismo, e a ditadura do proletariado prolonga-se até do período de transição. Essa forma não se define do ponto de
que essa transição se complete. vista jurídico, não é um modelo institucionalizado, com as suas
regras e a sua legalidade estabilizando e fixando as relações so:
Também na Crítica do Programa de Gotha, ele se refere
ciais, mas define-se, como diz Étienne Balibar, "por sua pró-
à ditadura do proletariado como uma fase de transição: "En-
pria capacidade de autotransformação", isto é, pela contradi-
tre a sociedade capitalista e a sociedade comunista se põe o
ção que a atravessa na medida em que ela é um Estado que ao
período de transformação revolucionária da primeira na se-
mesmo tempo deve ser um não-Estado, um Estado "organizador
gunda. Ao qual corre$ponde um período de transição políti-
de seu próprio desaparecimento".
ca na qual o Estado só pode ser a ditadura revolucionária do
proletariado". A ditadura do proletariado deve então ser en-
tendida como um período longo, que acompanha a trans- A LIBERDADE COMUNISTA
formação das relações de produção e das forças produtivas,
sem as quais, como vimos, não é possível organizar a socieda- O período de transição - que se dá sob a ditadura do
de comunista. Marx não deixa dúvida quanto a esse ponto, proletariado - é o que Marx vai denominar fase inferior
ao dizer expressamente, em seu trabalho "Anotações acerca da sociedade comunista, ou seja, o socialismo. Ele caracteri-
de Estatismo e Anarquia de Bakunin", que a dominação de za-se, fundamentalmente, por ser uma sociedade que "não
classe, isto é, a ditadura do proletariado, deve se estender até se desenvolveu sobre sua própria base", uma sociedade nas-
que "se destrua a base econômica sobre a qual descansa a cida da sociedade capitalista e que, portanto, "sob todos os
existência de classe". aspectos", conserva o sinal da velha sociedade burguesa.
Uma vez percorrida essa etapa, a sociedade comunista po- A análise que Marx faz do capital é uma crítica da
derá se constituir, fundada em relações de produção associa- pretensão burguesa de transformá-lo em uma coisa natu-
das, isto é, fundadas no trabalho livre e na cooperação entre os ral e eterna. Ao dizerem que o capital são os meios de pro-
_indivíduos, libertos das formas de exploração da força de tra- dução, os ideólogos da classe dominante fazem do capital
balho. A supressão das classes sociais, do Estado e do direito - uma condição necessária de toda a produção, já que todo
em conseqüência da instauração dessas novas relações de pro- processo de trabalho exige a utilização de meios de pro-
dução e do advento de novas forças produtivas - vai então dução. Expulsando a determinação histórica do capital,
tornar possível o surgimento de uma forma de liberdade ja- este passa a ser dotado de uma natureza eterna.
mais conhecida, urna liberdade efetiva, e não apenas formal,
Do mesmo modo, a burguesia apresenta as suas re-
jurídica. A sociedade comunista, ao assegurar o controle de
lações sociais como sendo a expressão da razão e, portan-
sua própria organização social, oferece enormes possibilidades
to, como "positivas" em si mesmas. Ora, se o capitalismo
de desenvolvimento, em todos os domínios. Uma perspectiva
é racional e é um valor absoluto, é absurdo pretender
como essa não é fruto de uma projeção intelectual nem muito
extingui-lo: assim, ainda aqui a eternidade das relações
menos um voto pie'doso; ela pode ser aberta a partir - e só a
de produção capitalistas é reafirmada. Contra essa pretensa
partir - do desvendamento feito por Marx da "lógica" de
eternidade das relações sociais capitalistas, Marx demonstrou
funcionamento do capital, permitindo à classe trabalhadora
o seu caráter contraditório e transitório, a sua especificidade
formular a estratégia de ataque e "desmontagem" das relações
social e histórica, e a possibilidade de sua destruição e substi-
sociais burguesas. É por isso que Marx, ao recusar o desenho
tuição por novas relações sociais.
fantástico de um mundo novo, ao deixar apenas o registro vago
do comunismo, paradoxalmente abre para nós, para os que o Pois bem, essa demonstração de Marx permite que
quiserem verdadeiramente ler, o princípio de seu entendimento percebamos alguns aspectos fundamentais de seu método
e a possibilidade de seu devir. dialético. A dialética, diz Marx, é um "incômodo" e um
"horror" para a burguesia, exatamente porque ela não per-
mite apenas a compreensão da estrutura social capitalista
COMUNISMO E DIALÉTICA
mas também o "entendimento de sua desaparição inevitá-
Toda a imensa crítica do modo de produção capitalista vel" . Isso porque a dialética, ao apreender as formas sociais
que Marx realizou teve por objetivo fornecer à classe operá- em seu movimento contraditório, também apreende o seu
ria o conhecimento objetivo de suas condições de existência caráter transitório, não se deixando "impressionar por nada".
e os meios para suprimi-las. Portanto, o método de Marx só Por essas razões, a dialética em Marx é "crítica e revolucio-
pode ser compreendido a partir da negação do capitalismo, nária". A dialética em Marx, portanto, é o estudo das
ou seja, a dialética, em Marx, é inseparável do comunismo. contradições da sociedade burguesa, da luta de classes que
140 - MARX - CIÊNCIA E REVOLUÇÃO
MÁRCIO 81LHARINHO N AVES - 141
a corta de modo irreconciliável. É o estudo, também, con- em que ela é idêntica a si mesma, é também o seu contrário, e
seqüentemente, das condições de possibilidade da resolução é isso que torna necessária a passagem de uma determinação a
dessas contradições, do processo revolucionário que os tra- outra: a contradição é o motor do movimento das coisas. As-
balhadores conduzem em direção ao comunismo. A análise sim, o momento mesmo em que uma coisa se afirma enquanto
empreendida por Marx ao "dissolver" as formas aparentes tal já é o momento em que se desenvolve o elemento de
das relações sociais capitalistas, as sucessivas camadas ide- negatividade nela contido: é o momento da negação. Final-
ológicas que as recobrem, permitiu revelar o seu núcleo mente, esses dois momentos são dissolvidos um no outro em
fundamental estruturante: a luta de classes. um terceiro, momento que os contém e os supera (negação da
negação). Essa superação significa a supressão da independência
Ao colocar a luta de classes no centro de sua análise,]
recíproca que os momentos anteriores contêm, a conservação
Marx abre a via para uma compreensão materialista da con-
G
radição e para a sua resolução efetiva.
destruiçãoª. Ela implica a extinção do que é negado e a suai~ ções mercantis continuarem a reproduzir-se, não será pos-
substituição por algo novo, que não existe no elemento ne- sível a ultrapassagem do capitalismo. Essa ultrapassagem
gado e, portanto, não pode ser conservado ou recuperado. exige a "quebra" das formas sociais que permitem a valori-
zação do capital. Nenhuma conservação, nenhuma conci-
A dialética idealista acaba por "esterilizar" a negação,
liação aqui é possível.
anulando os seus efeitos ao recuperar o que foi negado. Ela
constitui-se, desse modo, como lembra Bettelheim, em uma A categoria da "negação da negação", ao contrário, não
falsa negação, na medida em que, nesse processo de nega- permite pensar a transformação revolucionária do capitalismo,
ção da negação, é a própria negação que é negada. A rigor, ela não é capaz de "suportar" o conceito de luta de classes.
na dialética especulativa, não há propriamente luta, mas Assim, essa concepção da dialética pode funcionar como um
tão-somente uma divisão da unidade originária em do~- elemento de conservação do existente, isto é, das relações soci-
opostos simétricos, à espera do momento de sua reconcilia-
--- ais burguesas, como a "garantià' metafisica de sua eternidade.
ção em uma síntese superior, ao easso que a dialética m~
A presença da dialética especulativa hegeliana em
xista exclui a concil~o, el~ é fundada _!lo antag~rnismo ir-
Marx, e especialmente em O capital, é o índice mais ex-
reconciliável de seus o~sto~m l~ -
pressivo dos obstáculos que ele teve de enfrentar para rom-
Se retomarmos as análises de Marx em O capital, vere- per com a formidável presença da ideologia burguesa no
mos que, na passagem do feudalismo para o capitalismo, as interior mesmo de sua elaboração teórica. Mesmo que os
relações de produção e as forças produtivas feudais são com- resultados desse rompJmento tenham . sido desiguais, e
pletamente substituídas por novas relações de produção e muitas dificuldades remanesçam, há um núcleo duro de
forças produtivas, nunca conhecidas na história. O modo seu pensamento, o momento de elaboração conceituai mais
de produção capitalista não conserva as relações sociais e as rigoroso qu~Le pode alcançar, que permit~ estabele~
instituições feudais, mesmo transformadas; ele as destrói. j. um~ linha de demarcaçã_? com a dialéti ~especulativa.
Do mesmo modo, a sociedade comunista deverá implicar a Sem isso, sem essa condição essencial, Marx não teria po-
destruição das formas de exploração do trabalho e da for- dido jamais constituir uma ciência revolucionária.
ma-Estado burguesa: se o processo de valorização prosse-
guir, o Estado mantiver-se como um aparelho separado e
acima das massas, voltado para a sua dominação, e as rela-
~~,,, r"' 1\8• +.J..,_ ,.,_r,.111...of;o-,. <t-k, "'/"'""~?
8 Cf. Charles Bettelheim, "Uma carta sobre '0 marxismo de Mao"', em Cadernos
D. Quixote, n. 42, 1971; e Mao Tsé-tung, "Talk on questions of phi losophy",
em Mao T.çe-tung unrehearsed, Londres, Penguin, 1974.
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146 - MARX - Ci ~ NCIA E R EVOLUÇÃO MÃRCIO B ILHARINHO NAVES -147
Agora que fizemos o percurso da obra de Marx, volte- representações funcionavam, a seu modo, para a repro-
mos à questão inicial, que deixamos suspensa pela dúvida dução das relações de produção capitalistas, que são rela-
suscitada por nós: com o fim do "comunismo", Marx seria ções de exploração e de dominação de classe. Por isso, como
uma página virada da história? lembra Althusser, a teoria de Marx foi, desde a sua funda-
ção, obj eto de um duro combate das classes dominantes,
O pensamento de Marx não poderia estar comprometi-
porque ela possibilita aos trabalhadores a compreensão dos
do ou mesmo ter sido afetado pelo fim do "comunismo" por
mecanismos de sua exploração e lhes dá os meios para lu-
duas razões básicas: primeiro, porque as revoluções do século
tar contra ela; a teoria de Marx é indissociável da luta da
XX jamais ultrapassaram os marcos do capitalismo. Nessas so-
classe operária pelo comunismo.
ciedades "socialistas", continuaram a se reproduzir as relações
de produção capitalistas e o domínio político nunca foi exerci- Marx conseguiu romper com as concepções ideoló-
do efetivamente pelos trabalhadores. Como vimos em nossa gicas, com as filosofias da história, que até então ocupa-
exposição, para Marx a transição não é uma mera operação vam o lugar da ciência da história, devido ao seu desloca-
jurídica de transferência da propriedade privada para o Esta- mento para posições de classe proletárias. Esse rompimen-
do, que conservaria as relações de produção e as forças produti- to é definitivo porque é inaugurado um campo concei-
vas capitalistas e permitiria o surgimento e consolidação de uma tuai incompatível com as ideologias da história e capaz de
nova burguesia de Estado. Marx pensa a transição como um produzir o conhecimento das formações sociais.
rocesso de transformação revolucionária das relações de pro-
Ora, o pensamento de Marx continua a produzir o
dução, permitindo aos trabalhadores a apropriação real das
conhecimento das formas de domínio e de exploração dos
condições da produção, assim como exercer plenamente o
trabalhadores na sociedade burguesa, é ele que nos per-
domínio político. Em segundo lugar, porque são justamente as
mite compreender que a debilidade e desarticulação do
análises de Marx que permitem compreender a natureza des-
movimento operário é um efeito da luta de classe burgue-
sas sor:iedades "socialistas" e, assim, dissolver a formidável tra-
sa. A análise de Marx permite ver, sob a aparência de uma
ma ideológica que encobre o problema do comunismo.
racionalidade técnica, o processo de reestruturação pro-
A intervenção teórica de Marx teve a conseq üência dutiva do capital esconder a necessidade da classe domi-
irreversível de produzir o conhecimento científico da his- nante de recompor as condições da acumulação, isto é, a
tória. Rompendo com as representações ideológicas de na- necessidade de quebrar as resistências dos trabalhadores à
~a moral, religiosa ou jurídica que obstaculizavam a extração de mais-valia.
compreensão do processo histórico, Marx soube identifi- Ao situarmos o pensamento de Marx no interior da
car na lura de classes o princípio de sua inteligência. Essas luta de classes, podemos compreender que o seu "esqueci-
148 - MARX - OgNCIA E REVOLUÇÃO MÃRCIO B ILHARINHO NAVES - 149
Marx não anunciou um mundo novo. Não foi o pro- PRINCIPAIS OBRAS DE MARX
feta iluminado da redenção da humanidade. Marx apenas MARX, Karl. A diferença entre afilosofia da natureza de Demócrito
demonstrou que o capitalismo não é eterno. É essa pequena e a de Epicuro (1841).
demonstração dialética que mantém aberta, ainda hoje, a _ __ . "Observações de um cidadão renano sobre as recentes ins-
possibilidade do comunismo. truções acerca da censura na Prússia" (1842).
_ _ _ . "Os debates sobre a Liberdade de imprensa e sobre a publi-
cação das discussões na Dieta" (1842).
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