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se a proporgoes, apontar algumas linhas deste trabalho. Agradego também FUNCAO ENUNCIATIVA E REFERENCIAL DO ENUNCIADO
~ < a Scarlet Marton, a Eliane Robert Moraes e a Renato Janine Ribeiro
O enunciado diz respeito a urn outro nivel, o da junpno enun-
aqui pela amigavel atmosfera reinante nn “Mesa Redonda — Filosofia"
ciativa, objeto do longo capitulo dois da terceira parte. Ttata-se, ai,
letér que ali nos reuniu. (Seria o caso de lembrar também 0 bom humor
de "interrogar" o “modo singular de existéncia" que caracteriza uma
Glade com que nos entretemos durante 0 jantaril).
"série de signos" — a série ASDEG, nacionalizando o exen-iplo, exibi-
unia da pelas maquinas de datilograiia no Brasil — como sendo enunciado.
em s IA ENUNCIADO: SUA TEORIA EM FOUCAULT
hist<' Para se considerar uma série de signos como sendo enunciado,
nao E na Arqueologia do Saber que se encontra toda uma parte é necessério, primeiramente, que ela entretenha com “outra coisa"
mod destinada ao estabelecirnento de determinada teoria do enunciado‘. uma "relagao especifica" que diga respeito a ela prépria e mio simples-
a ‘ct A tentative. aqui, é percorrer essa ‘teoria', eonforme a seqiiencia do mente a sua "causa" ou aos seus "elementos". Essa especifica relacio
950 proprio texto de Focault, salientando uma variedade de pontos, desde enunciativa se distingue de vérias outras, como a relagao que liga
de ‘ a definicao de enunoiado até o problems das telaofies entre formngfies "significante" e “signit'icado", a que vai do “nome” no "designado"
acor discursivas e nao discursivas. por ele, n que aparece entre a “frase” e o seu "sentido" ou a que se
poe entre a “proposig§o" e seu "referente”. Em razio dessas distin-
DEFINIC./KO DE ENUNCIADO goes, a relagio enunciativa nio pode ser apreendida por uma “antilise
Foul formal", por meio de uma “investigagfio semantics" ou cle uma "veri-
plic; ficagio".
Essa teoria se abre com o levantamento das dificuldades que
nio
atrapall-ram uma nova definicio de enunciado, diiiculdades ligadas A relaefio enunciativa solicita urn outro tipo de analise, pois o
bérn
it necessidade de distingui-lo das pmposipfies (consideradas do ponto "correlate" do enunciado, o algo a que ele estti ligado “nio é consti-
de vista de sua estruturacao légiea). das /rases (consideradas do ponto tuido de ‘coisas’, de ‘fatos’, de ‘re:-xlidades‘ ou de ‘seres’, mas de leis
brai de vista da sua estruturaeéo linguistics ou gramatical) e dos alvs de de possibilidade, de regras de existéncia", tanto para os “objetos que
V611 /ala (us "speech acts" dos analistas ingleses, m3nifeSlB§5eS 1inguagei- ai se encontram norneaclos, designaclos ou descritos" como para as
levc ras consideradas do ponto de vista da sua formulagéo enquanto "pro- ”relae5es que ai se encontram afirmadas ou negadas”. Assim, em
TEL" mcssa", “ordem", “decreto”, "constatagio", etc.).As dificuldades sio vez de correlato, o rnelhor é falar em “referencial do enunciado",
Hui levantadas para se concluir que os enunciados nio se confundem esse algo que "forms o lugar, a condigao, o campo cle ernergéncia,
com esses trés tipos de unidades e nem com representagées psioolégicas. a instfincia de diferenciacio de individuos e objetos, de estados de
coisa e relag;6es que 550 postas em jogo pelo préprio enunciado".
“Mais de um elemento entre outtos”, diz Foucault, o enunciado
é sobretudo "urna funcao que se exerce verticalmente em relagio a Esse dificil algo é que define, segundo Foucault, “as possibilidades
essas diversas unidades". No essencial, ele proprio nao é uma unidade, de aparecimento e de delimitacao daquilo que dé a frase 0 seu sentido
mas “uma luneao que cruza um dominio de estruturas e de unidades e dnquilo que da £1 proposieio o seu valor de verclade". E a esse
possiveis e que os faz aparecer no tempo e no espaco com conteudos "conjunto de dominios" (no qual "objetos podem aparecer" e no
concretos”. qual "relaqfies podem ser designadas") que Foucault da o nome de
“nivel enunciativo da iorrnulacio, em oposicio ao seu nivel grama-
01. FOUCAULT, M. i L'An-héalogie du savair, Gnllimard, Paris, 1969: tical e ao seu nivel légico“. Analisar esse nivel enunciativo é evidenciar
Parte III: O enunctado e 0 arqnivo, pp. 103-173. A expressio ‘learn: do as relagées entre 0 enunciado e os "espacos de diferenciagio", espaeos
e||unciud0'. referida no préprio texto que a cunlém, npurece na pl 140. nos quais 0 proprio enunciado "faz aparecer as diferen;:as"”.
(Sigla: A5).
02. FOUCAULT, M. — AS. [Easas dificnldades 550 levantadas no l.“ cap. O3, FOUCAULT, M. — AS.. pp. 116-117, 120-121; 0 termo “fllngio enun-
da purl: 111), pp. I05-115. . ciativn" as 0 titulo no 24° cap. da part: I11, pp. 116-I38.
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FUNCAO ENUNCIATIVA E SUIEITO DO ENUNCIADO E uma caracteristica da funcao enunciativa, diz Foucault, o nao
poder cla exercer-se na auséncia desse “dominio associado". Esse do-
Em segunda lugar, para que uma série de signos seja considerada minio n50 so reduz a um "sistema de axiomas", sistema pressuposto
enunciado, nao basta que ela comporte um suieitu do tipo gramatical, por proposicoes logicas, e nem a um conjunto de regras gramaticais
presente no interior de uma irase, ou que ela se ligue, exteriormente, imperando em lrases do uma lingua natural. A relacéo entre o enun-
a um “individuo real que a tenha articulado ou escrito", ou seja, eiado e 0 seu “campo adjacente" nao é também uma relacao determi-
a um "autor" ou a uma "instancia produtora". Seja quanto 5 “natu- nada entre uma frase e um “campo de objetos" ou entre uma frase
reza", ao “estatuto", 5 “funcfio" ou a “identidade", o sujeito do enun- e um ‘"sujeito"; trata-se, propriamente, de uma relacao entre o
ciado, diz Foucault, "é em tudo distinto do autor da formulagao". enunciado e suas préprias vizinhancas, seu "espaco colateral", suas
"margens", margens "povoadas por outros enunciados"; trata-se de
Para pensar um tal sujeito, é preciso pensar uma “fungfio vazia". uma relagao constitutiva, de uma ‘eoexisténcia cnunciativa" tal que
uma posiqéo variando nurna estruturagao de espaeos‘. Com palavras "néo se tem enunciado sem que ele suponha outros". E nessa coexis-
de Deleuze, esse vazio, lugar em que se agita o “problematico”, é o ténoia que so nota, como foi dito, uma “distribuicfio de iun<;5es
de urna “casa vazia de dupla-face, ao mesmo tempo palavra e objeto""‘. e de papeis".
Lugar téo “variével" que ele pode até mesmo "perseverar idéntico a
si atraves de vérias irases", como pode “modificar-se" com cada frase. Valorizando 0 campo enunciativo, tern-se agora a seguinte inver-
Mais precisan-iente, “deserever urna lormulacao enquanto enunciado", sio: em vez de se pensar suas relagoes de vizinhanca sob os moldes
do ponto de vista foucaultiano da questio do sujeito, "nfio consiste R das relagoes tipicas de frases ou de proposicées, o que so precisa
em analisar as relacoes entre um autor e aquilo que ele disse (ou notar, segundo Foucault, é que, "sobre esse fundo de coexisténcia
quis dizer ou disse sem querer) Consiste, isto sim, ern ”determinar enunciativa", é que se “destaca", para um “nivel autonorno e descri-
qual é a posicio que pode e deve ocupar todo individuo para nela tivel", justamcnte “as relacoes gran-iaticais entre frases, as relacoes
l ser o sujeito"". - logicas entre proposicées", etc.".
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Dotado de uma "constancia", a “identidadc" do ertunciado se O ENUNCIADO NAO ESTA ESCONDIDO, MAS NAO E VISIVEL
mantém "em funcao do campo de utilizapfia no qual ele se encontra
investido"; ele se “repetc em sua identidade", ele insiste como nervura A descricao almejada deve ser capaz de se mover com o se-
resistente gracas a esse tempo, isto é, aos "esquemas de utilizaeao" guinte paradoxo: "o enunciado é ao mesrno tempo nio-visivel e nio-
em que ele entra, as “regras” implicadas no seu “empiego", as “conste- escondido".
lacoes em que ele pode descmpenhar um papel”, as suas “virtualidades
Como o enunciado diz respeito s "modalidade de existéncia do
estratégicas”.
desempenl-to verbal tal como ioi ele efetuado”, nfio sendo constitutiva
For fim, o enunciado esté inserido num "regime complexo de do enunciado o fenomeno da ”polissen-iia" — fenomeno este que
instituicoes materiais", variando sua identidade coniorme variacoes "autoriza a herrnenéutica e a desooberta de um outro sentido" —,
cm curso nesse regime. descreve-lo nfio é trazer :3 baila um “nfio-dito" ou “significacoes es-
condidas" ou mesmc algo "reprimido". A analise de tipo enunciativo
For essas razoes, Foucault pode dizer que o enunciado é um é "uma analise histérica", diz Foucault, (dado que ela se interessa
"objeto especifico e paradoxal" em sua materialidadc repetivel. Como pelas coisas ditas enquanto forarn ditas), mas se distancia de “toda
todo objeto, ele pode ser “produzido, manipulado. utilizado, trans- interpretacao", pois nao vive 5 procura do que as coisas ditas escon-
formado, trocado, combinado, decomposto, recomposto e eventualmente dem; ela procura, eomo se viu, a modalidade de existencia das coisas
destruid0"4 Além disso, ele "aparece como um estatuto, entra em ditas, nao as “imagens ou os fantasmas que nelas habitam"4
redes, coloca-se cm campos de utilizacao, oierecc-se a transferencias
e modificacoes possiveis, integra-se em operaooes e estratégias onde Ditos e nao-ditos tém o “campo enunciativo" coma "fundo".
sua identidade se mantém ou se desfaz“. Embora a descricao enunciativa nan se intercsse pelos n50-ditos, ela,
entretanto, nfio deve desconsiderar o que Foucault chama de "fall-ta".
a DESCRICAO DOS ENUNCIADOS Correlativa ao campo enunciativo, a falha teria um “papel na deter-
minacao da sua préprin existéncia". Do que se trata ai7 A falha.
Delineado o conceito de funcao enunciativa, Foucault se sente
l obrigado" a enfrentar dois grupos de questoes: o primeiro se liga
ai considerada como "caracteristica dc uma regularidade enunciativa",
diz respeito, segundo Foucault, n “exclusoes, Iimites, lacunas que recor-
ao problerna do que se deve entender por descripao dos enunciados. tam o referencial" do enunciado, que "validam uma série de moda-
Vercmos o segundo mais adiante. lidades", que “cercam e tornam a fechar grupos dc coexisténcia" e
Primeiramente, e articulando em outro ponto distingoes que que também “impedem certas formas de utilizacao”. Falhas desse
vém se sedimentando, descrigao de enunciado min é “anélise légica tipo, todavia, nao se conlundem com “significacoes dissirnuladas no
de proposigoes”, nfio é “anélise gramatical de frases" e min é “anélise que se encontra iormulado"r
psicologica ou contextual de forrnulag:6es"r A descricao visada por Levando em conta esse problems, e considerando que o enunciado
Foucault deixn também de procurar uma "totalidade perdida" e néo nao é uma unidade perceptivel “ao lado" de outras, nao estando
quer “ressuscitar", ironiza ele, a “plenitude da palflvra viva, a riqueza nem "acima" ou "abaixo" delas, Foucault sugere "uma certa conversio
do verbo, a unidade profunda do Logos". Em face dos ”desempenl1os do olhar e da atitude" para que se possa "reconhecer“ o enunciado
verbais", a descricao foucaultiana pretertde, isto sim, "dissociar a com- e “consideré-lo em si mesn-to” enquanto algo “investido” nessas unida-
plexidade", “isolar termos que ai se entrecruzarn" e fixar “as diversas des, sejam elas frases e proposicoes ou “1istas", "series casuais", "qua-
regularidades a que eles obedecem""' dros", etc.. O acesso a essa “quase-invisibilidade" do enunciado se
ox. FOUCAULT, M. ~ AS, pp. 1:4-tax, gum do A. ' dé quando, no exame da linguagem, por exemplo, se suspende tantn
09. FOUCAULT, M. — AS, "8 descricin dos enunciados" é 0 titulo do 34° o ponto de vista do "signiiicado" quanto o ponto de vista do “signi-
cap. an pull: 111, pp. 139-154. ficante", para se prestar atencao as relacoes com "os dominlos de
10. FOUCAULT, M. — AS, p. 142. objetos e de sujeitos possiveis" e as "relapécs com outi-as formulacoes
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Que ha no centro desses circulos? O "tema central" é ocupado pelo macao de posicoes subjetivas"; 3) "lormacao de conceitos"; 4) '4for-
"problema do enunciado", isto é, pelo duplo “problema da desconti- maqao de escolhas estratégicas".
nuidade no discurso e da singularidade do enunciado". Partindo desse Enlre essas dimensoes e essas direcoes, o estudo deve estabelecer
centro, Foucault analisa, “na periferia", o que ele chama dc “formas linhas de correlacioc E gragas a essas linhas que Foucault pode dizer,
I de agrupamentos enigméticos". Que nota ele nessa periferia? “em sentido estrito", que uma “formacao discursiva" abarca “grupos
Ele nota —— e agora reencontramos distingoes ja sedimentadas de cnunciados". Melhor dizendo: “descreve enunciados" . 1 . "analisar
em outros niveis — que “os principios de unificacao" (e veremos ser as condicoes nas quais se exerce a luncao enunciativa, percorrer os
esta palavra demasiado pesada) estio longe de ser “gramaticais, logi- diferentes dominios que ela supfie e a maneira pela qual eles se arti-
cos ou psicologicos"; que nao incidem sobre "lrases”, “proposig6es" culam", praticar a analise enunciativa, em suma, é evidenciar o que
ou "representag:6es". Notando isso na perileria, sente-se ele obrigado “se poderé individualizar como formagao discui-siva"”". Acrescente-se,
a retornar ao problema central do enunciado, estando agora certo ainda, que ha, pelo menos, duas condicoes para que se possa lalar,
do ”haver liberado um dominio coerente de descricao" e podendo tecnicamente, em formacfio disoursiva: 1) que se consiga estabelecer,
"mostrar que as dimensoes préprias do enunciado é que estéo cm dado certo numero de enunciados, um "sistema de dispersfio" (que
jogo na marcacao das formacoes discursivas". nao se confunde com "cadeius de in/eréncia" ou com "tdbuas de dile-
renpas"); 2) que se oonsiga, em lace de "objetos, tipos de enuncia-
LINHAS DE CORRELAC/KO gao, conceitos e escolhas estratégicas", definir uma “regula1-idade".
isto é, uma "ordern, correlacfies, posicoes, luncionamentos e transfor-
Para hem clarificar o tipo de correlacao posto entre enunciado ma96es"“.
e formacao discursiva, Foucault resume o capitulo em que as dimen-
soes do enunciado lot-an-1 sondadas, lembrando que o exercicio da lun- PROPOSICCES NUCLEARES
cao enunciativa — funcfio que ja Vimos ser distinta da "aceitabilidade
gramarical" e da "correc5o logica" ~ requer: Na conclusao desse capitulo, Foucault destaca um certo niimero
a) um “referencial” (que nao é ”fato“, "estado de coisas" ou de "proposi§6es” nucleares:
ob3eto , mas "principio de dilereneiagfio"); ' 1) Primeiramente, a “anélise do enunciado" e a analise da lor-
b) um "sujeito" (que nao é “consciéneia falante" ou "autor de magio discursiva "sac estabelecidas correlativamente".
lormulaqao , mas "posicao" a ser ocupada por "individuos indile- 2) Enquanto uma “frase pertence a um texto", tendo sua "regu-
rentes"); laridade definida por leis de uma lingua", e enquanto uma "proposi-
c) um "campo associado“ (que nao e contexto real“ nu "situa- qio pertence a um conjunto dedutivo”, tendo sua regularidade defini-
cao , mas dorninio de coexisténcia para outros enunciados"); da por "leis de uma légica“, um enunciado "pertence a uma formaoio
discursiva", mas tem sua 1-egularidade definida pela prépria formagao
d) uma "materialidade (que nao é so substéncia nu suporte da
discursiva", do modo que o seu “pertencer a lormacao" e a sua "lei"
aruculagao, mas um estatuto, regras de transcricao, possibilidades de
uso ou de reutilizaofiol”. apresentam-se como sendo “uma so e mesma coisa”. Esclarecendo a
dilerenqa, diz Foucault que a formaqio discursiva nao se caracteriza
Essas dimensI5€S, por sua vez, atuam nas “din-egoes" que foram por "principios de construgao”, mas por uma "dispersao de fato", que
levantadas na Parte II da Arquealogia, onde aparece um esbogo de ela nao é uma "condicao de possibilidade" para as enunciados, 1-nas
analise das formacoes discursivas: 1) “formacao de objetos"; 2) "for-
20. FOUCAULT, M. — AS, pp. 150152.
l9, FUUCAULT, M. — As, PP‘ l49-lSO. Zl. FOUCAULT, M. — AS, p. S3, grifos do A1
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uma "lei de coexisténcia”; em lroca, os enunciados "nao séo elemen- a rigor, poueas coisas sac ditas; a interprelacao procura compensar a
tos intercambiéveis, mas conjuntos caractcrizados por sua modalidade raridade por meio de uma “multiplicacao do sentido". Desviando-se
do existéncia". dessa via, Foucault delende, como anélise de uma "forrnagiio discur-
3) Dessas colocacoes decorre uma “definicéo de discurso": dis- siva”, a procura da "lei dessu pobrcza", coin o que se podera estabe-
curso é um "conjunto de enunciados" na medida em que eles dizem cer, diz ele, o “'val0r’ dos enunciados", valor "nao definido pela ver-
respeito a uma "mesma formacao discursiva". dade" mas que se liga, isto sim, ao “lugar" do enunciado, a sua “capa-
4) Foucault reserva 0 ultimo ponto a tarela de dar maior pre- cidade de circulacao e de troca" e a sua "possibilidade de transfor-
cisio ao que chama de “prética discursiva". Nao se trata de uma “ope- macao, nao so na economia dos discursos, mas na adn-iinistracao, em
racao expressiva" (H operacao pcla qual “um individuo formula uma geral, de reeursos raros”. Sob esse enfoque, o discurso jé nao é o
ideia, um desejo ou imagem"); nao é uma "atividade racional" (do “tesouro inesgotavel" que aparece a exegese, mas algo “finito. limitado.
tipo que se verifica, por exemplo, num “sistema de inferencia"); por desejavel, 11111", isto é, um ”bem” que, pelo préprio fato da sua "exis-
ultimo, ela nao se confunde com a "competéncia de um sujeito lalante" téncia" (e nao so de suas “aplicacoes préticas"), suscita a “questao
voltado a construcao de “lrases gramaticais". Que é entao? Prdlica do poder", sendo ele “objeto de u1na luta pol1'tica"“.
discursiva “é um conjunto de rcgras anonimas, historicas, sempre de-
Paul Veyne valoriza a nocao de ruridade como sendo a ”intuig5o
terminadas no tempo e no espaco e que definem, numa dada época e inicial dc Foucault", aplicado-a na caracterizacao d1: todo urn conjun-
para uma dada area social, economica, geografica 011 lingfiistica, as tn de acontecimentos da histéria romana (acontecimentos que interes-
condicées dc exercicio da funcao enunciativa"”"‘.
sam a explicaeao da suspensao dos combates de gladiadores) como
passagem de uma a outra pnitica; pois bem, encontrar o bom nome
RARIDADE, EXTERIORIDADE E ACUMULO
para certa przirica investida numa multidao de atos empiricos, pralica
que se pode comparar a parte submersa do iceberg, é nomear "um des-
Foucault compoe mais u1n capitulo visando ”precisar" o que é ses bibelos raros e tie época", é escrever historia com a consciéncia
"exigido" e “exclu1'do" pela “analise do campo enunciativo e das for- de que "os fatos humanos sao raros", é detetar a pratica (rara) obje-
macées que o escondem". Com a selcgao ai praticada, fixam-so os tivada ou reificada por uma profusao de atos e Objetos“.
parametros que permitem Z1 anailise de uma lormacao discursiva esta-
belecer o que ele chama de "p0silividade de um discurso"”“. EXTERIORIDADE
RARIDADE
Em segundo lugar, considerando a velha e insistente oposicao en-
tre 6xt€Il0l'i(I1Zd€ e inlerioridude (oposicao que geralmente leva "a des-
Contrariamente a uma "anélise do discurso situada sob o duplo crigéo liistorica das coisas dilas" a reilerar “o terna hist6rico-transcen-
signo da totalidade e da pletma". a tarefa da analise enuneiativa é,
dental", seja pelo privilégio de uma interioridade tomada como "sub~
em primeiro lugar, “estahelecer uma lei de raridade", ou seja, um
jetividade lundadora", como "Logos" ou "teleologia da razao", etc.),
"principio de rarefacao", o principio segundo o qual ”puderam apa-
a analise enunciativa deve tematizar os enunciados cm sua “exterio-
recer unicamcnte os conjuntos significantes que foram enunciados".
ridade", mas sem dar o golpe de remete-los a uma interioridade; deve
Distinguindo alguns “aspectos” dessa tarefa, Foucault salienta que 1-estituf-los a "sua pura dispersao"; deve consideré-los em sua "des-
a “atitude exegética" (que o ato intelectual de “intcrpretar") confi- continuidade“, sem remeté-los a uma "abertura ou a uma diferenca
gura uma reacao a "pobreza enunciativa”, uma reacio ao lato de que, mais fundamental"; deve reecontra-los em sua "incidencia de aconte-
cimento". dc “acontecimentos enunciados" raros.
22. FOUCAULT, M. _ AS. pp. 152-154.
za. FOUCAULT, 1v1. _ AS. pp. 154, 164. Trnla-se do 4.“ cap. 11-. parle 111, 24. FOUCAULT, M. ~ AS, pp‘ 155-158.
pp. 155-165. 2s. VEYNE, P. ~ “Foucault. op. 211,, pp. 151, 154. 157. Grifos do A.
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Mais ainda, em vez de se pensar o enunciado a partir da oposi- mulagao e nem querer "reecontrar o que queiram dizer". Trala-se de
cao exterioridade/interioridade, desclassifica-se essa oposieio, trocan_- pensé-los nas condicoes nas quais eles se engrenam como remanes-
do-a pelo privilégio exclusivo de um Exterior, isto é, de um campo centes, como articulados a "um certo numero de suportes e técnicas
de exercicio de exterioridades remetidas a exterioridades. Pensar o materials", “segundo certos tipos de instituicao" e "com certas moda-
enunciado em sua exterioridade é pensé-lo num “campo enunciativo" lidades estatutarias". Os enunciados. diz Foucault, estao “investidos
a ser descrito, nao como “‘traducao’ de operacoes ou de processos que nas técnicas que os poem em aplicacao, nas praticas que dai clerivam,
se desenrolam alhures", mas como “dominio pratico" ao mesmo tempo nas relagoes sociais que se constituiram ou se modilicaram através
“autonomo" e "dependents", como algo ao mesmo tempo situado em deles". Seja como for, a prética do retorno é sempre possivel, mas
seu “proprio nivel" e ”articulado" a “outra coisa" que nao ele proprioc nao convém esquecer que é sobre um rendilhado de "1-emanéncia" que
Nao se trata de remeter o enunciado a um “sujeito individual", a se dao “jogos de meméria e lembranca".
uma "consciéncia coletiva" ou a uma “subjetividade transcendental"; 2) Considerar os enunciados em seu acumulado é, em scgundo
trata-se de descrever o "dominio enunciativo" como um "campo ano- lugar, trata-los "na lorma da aditividade que lhes é especifica", lstu
nimo cuja configuracao deline o lugar possivel de sujeitos falantes". quer dizer que ha dilereneiacao nos agrupamentos de enunciados, que
Para a anélise enunciativa, em suma, o "tempo do disourso nao é a ha maneiras distintas de se ”compor, de se anular, de sc excluir, de
lraducao", diz Foucault, do " tempo obscuro do pensamento". Relativa se cornplerar", etc. Foucault da um exemplo: “as matematicas moder-
ao “nivel do diz-se" (du ‘on dit'), essa anélise deve ser praticada "sem nas nao acumulam seus enunciados segundo o modelo da geometria
referéncia a um cogitu". Importa saber de "onde" se fala, pois quem de Euclides".
fala ja danca "no jogo de uma exterioridade". Em resumo, Foucault
subslitui 0 "tema do fundamento transcendental" pela "descricao das 3) Além da remanéncia e da aditividade, a analise enunciativa
relacoes de exterioridadem. considera ainda “fenomenos de 1-ecorréncia", isto é, 0 conjunto de
posicionamentos do enunciado em relagao “ao campo tie elementos
ACUMULADO antecedentes". -
Finalmente, em terceiro lugar, a analise enunciativa deve livrar-se Em resume, a analise proposta por Foucault substitui a "procura
da “imagem tao freqiiente e obstinada do retorno". Visando conexoes da origem” pela "analise do acumulado"".
eletivas, deve essa analise “procurar que modo dc existencia pode
caracterizar os enunciados, independentemcnte de sua enunciacao Em POSITIVIDADE
outras palavras, nao se trata dc apreender nos textos o "clarao do seu
nascimento", mas de estudé-los "na espessura do tempo em que eles "Positividade" é o termo que Foucault emprega para designar
subsistem, en-1 que eles sac conservados, reativados, utilizados" e even- aquilo que a anélise enunciativa estabelece ao considerar os enunciados
tualmente "esquecidos" e até "destruidos". N50 deve essa analise par- em sua ‘raridade’, em sua 'exte1'ioridade’ e em seu ‘acL'1mulo'.
tir dos enunciados e seguir as linhas do retorno, mas traté-los “na
Quando se fala em “Economia Politica", por exemplo, pensa-se
espessura do acumulado em que estao tomados e o qual, todavia, eles em iniciativas discursivas que, apesar ou por causa de suas dileren-
nao param de modificar, inquietar, perturbar e as vezes arruinar". Mas
que é considerar os enunciados no acumulado, na complicada acumu- cas, falam da "mesma coisa"_ Sao iniciativas situadas por assim dizer
lacao de que participam? no "mesmo nivel" ou que desdobram o "mesmo campo conceitual".
Rubricas como essa ou como “Hist6ria Natural" nao seriam apenas
1) Primeiramente, é considera-los na “remanéncia que lhes é pro- unilicacoes verbais de textos, mas denominacoes do certos "espacos
. .1 . Nao
pria > se trata, reitere-se,
. A
de remete-los ao passado da sua for de comunicacao”, espacos mais limitados que o de.uma ciencia
26, FOUCAULT, M. — A-Y, PIX 158-lSl, 164. 27. FOUCAULT, M. — AS, PP- 162-164. Grigos do A.
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1, -- ~-
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‘ .
Como "lei o que pode ser dito", como "sistema que rege o apa- sera prepara-se, ao mesmo tempo, para ser dilo”"‘, A nocao de ‘ar-
recimento dos enunciados enquanto aoontecimentos singulares”, 0 ar- quivo‘ participa de outro regime discursivo e nao foi certamente ela-
quivo, diz Foucault, "define um nivel particular", qual seja, o de uma borada para enquadrar-se como alternativa do inteligibilidade desse
"pratica que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como outros ‘lugar‘. Contudo, incidindo como luz cruzada, ela serve, com suas
tantos acontecimcntos regulares, como outras tantas coisas oferecidas especilicacoes, como dispasitivo de ruptura entre um nao-mais fenc-
ao tratamento e a manipulacao". Diferentemente da lingua (que "de- menologia e uma fenomenologia que, com Merleau-Ponty, ja se des~
fine o sistema de construcao das frases possiveis”) e do corpus (que viava para uma série de fraturas).
“recolhe passivamente as palavras pronunciadas"), 0 arquivo, enten-
dido como "sistema gem! da /orm1z,cfio e du trans/nrmacfio dos enun- ARQUEOLOGIA
ciados", é aquilo que "faz aparecer as regras de uma prética" na qual
os enunciados podem “ao mesmo tempo subsistir e modificar-se regu- A teoria do enunciado -— desenvolvida ao longo de toda a parte lll
larmente". da Arqueologia do Saber, e cujo resumo estamos agora findando ~
encontra seu "horizonte geral" no trabalho de elucidacao de um com-
O arquivo é envolvente. Tomados por ele, nao podemos descre- plicado arquivo que nos delimita. Para chegar a isso, mobilizando pes-
ver sua totalidade, diz Foucault, mas podemos surprcende-lo em "frag- quisas, analises e descrigoes nela impllcadas, essa teoria comporta um
mentos, regioes e niveis". Poder-se-ia abarca-lo, recuando-se no tempo? método que nao é nem "formalizador" nem “interpretativo", visto
Em vez de alimentar a atracao pelo recuo cronologico, que, por l-1ipé- que, conforms vimos, o enunciado nao se conlunde nem com proposi-
tese, facilitaria a descrigao, Foucault aponta uma outra "regiao privile- coes nem com lrases, correspondendo, isto sim, a uma inscricao ao
giada” para a “analise do arquivo", regiao “ao mesmo tempo proxima mesmo tempo nao visivel e nao escondida. (Notemos de passagem
do nos, mas diferente do nossa atualidade”; regifio que, "fora de nos, que esse tipo de inscricao, para Deleuze, é o plano iguaL1-nente visado
nos delimita", ocupada por discursos que estamos comeeando a ver pela “histéria da filosolia tal como a concebe Gueroult")"z.
como nan sendo nossos, o que nos ajuda a nos “desprender das nossas
Pois hem, essa teoria, com seu horizonte e seu encaminhamento,
continuidades”, a tlissipar “essa identidade temporal” inimiga das
é exercitada como engrenagem decisiva no funcionamento daquilo que
“rupturas da histéria", a cortar o ”fio das teleologias transcendentais". Foucault chama de arqueulogia. De um lado, e em termos genérioos,
Arranhando o limiar do arquivo que nos delimita, a conversa comeca arqueologia é o nome do coajunto de todas essas pesquisas, analises e
a mudar; nesse momento de contraste, o que pode aflorar é a “cons- descricoes. Em termos técnicos, a "arqueologia", diz ele, “descreve o
tatacao da nossa identidade pelo jogo das distincoes”; e, isto aconte- discurso como praticas especificadas no elemento do arquivo".
cendo, a conversa nao muda de verdade. A mudanca ocorre efetiva-
Para nao ficarmos apenas nessa breve (conquanto importante) re-
mente quando se estabelece que "somos diferenca, que nossa razao e
lerencia ao termo, findemos nosso resumo com a caracterizacio (ainda
a diferenga dos discursos, que nossa historia é a diferenca dos tempos, porcial, porém util) de uma das mais fortes tarefas da “analise arqueo-
que nosso eu é a diferenca das mascaras", que a “diierenoa", enfim, logica", a de “individualizar e descrever formacoes discursivas", com
"longe de ser origem esquecida e recoberta, é essa dispersao que so- o que teremos uma idéia mais precisa de como a Arqueologia concei-
mos e que fazemos"“". tua seu interesse pela pluralitlade de pratieas articuladas ao discurso“.
(Nao o faremos aqui, obviamente, mas seria interessante efetuar 31. MERLEAU-PUNTY, M. » La pram du monde (1951), lexto eslabele
a seguinte experiéncia: sondar essas especificagoes da nocao de ‘ar- cido per Claude Lefort, Gallimard, Paris, pp. l0-ll, l969.
quivo’, fazendo-as riscar a carne da seguinte frase de Merleau-Ponty: 32. DELEUZE, G. — Um nouvel archivirle, Fata Morgana, 1972 (original-
menle publicarlo em Critique, n.° Z74), p. S2, 11, 21. (Sigla: NA).
"seja mitico ou inteligivel, ha um lugar onde tudo o quc é ou que 33. FOUCAULT, M. — AS, pp, 173, 177. A sequéncia do resume que aqui
so inicia esta baseada principalrnenle na parle V do livro. a liltima:
30. I-‘OUCAULT, M. _ AS, pp. 169-11:. "a descrigao arqueolégica".
28 ' 29
ANALISE ARQUEOLOGICA
O EXEMPLO DAS CONTRADIQGES
Em vez de analisar a "estrutura interna dc uma teoria", como fa- Passemos por um exomplo caro at tradicao hegeliana: o das
zem as “descricoes epistemologicas ou ‘arquitet6nicas', a analise ar- contradicoes. Primeiramente, em vez de eonsidera-las como "apartm-
quevlogica ten-1 sempre uma articulacao "plural", diz Foucault, O "es- cias a serem superadas" ou como "principios seeretos que seria preciso
.1 resgatar”, a analise arqueologica ve nelas "objetos a serem descritos
l“d° *"q"@°1f3g1co » afirma, é efetuado "numa pluralidade de regis- por si mesmos", sem a preocupacao de "procurar de que ponto de
tros . mteressando-se por “intersticios e desvios". O "dominio" dessa
vista podem elas ser dissipadas"; em segundo lugar, em vez de ”fundar
analisc e'aquele em que as “nidades se justapoem", em que elas “se
as contradicoes na unidade semi-noturna de uma ligura global", em
separam e fixam suas arestas", em que elas se confrontam ou "de- vez de "transmuté-las num principio geral, abstrato e uniforme de
senham espacos brancos entre si". interpretacao ou de explicagao", a arqueologia. diz Foucault, “descreve
I bssa pluralidade articulatoria é estudada para que mell-1or se
os diferentes espagros de dissengtfio"; finalmente, em vez de se entregar
ao "grande jogo da contradioao" — qual seja, o de estar ela "presente
Cll”CL\l'lS"Cl‘€VB uma formacao discursiva, uma determinada positividade
sob mil faces" para em seguida ser "suprimida" e ser afinal "restituida
on entao uma regtao de urterpasitivirlade", uma "configuragao inter- no conflito maior em que ela culmina" — a arqueologia prefere
discursiva , como, por exempln, a que Foucault desenha, nas Palavms analisar "diferentes tipos de contradicao" (as "derivadas", as "extrin-
e as (fotsas, entre a H1stor1a Natural, a Analise das Riquezas e a secas" e as "intrir1seeas"), os "diferentes niveis segundo os quais se
Gramatica Geral . Nao se trata de descrever uma "totalidacle" cultural, pode marca-las" (o nivel da "inadequaeio de objetos", o da "diver-
mas de estabelecer, segundo certos critérios, um "sistema de relacoes" géncia de modalidades enunciativas", o da “ineampatib1'lidade de
que nao e o unico possivel num periodo. As analises arqueologicas conceitos" e*o da "exclusfia de opcoes teoricas"), e, por ultimo, as
1 P059!" T8191‘ flpflrecfl uma "rede interdiscursiva" que nao se super “diferentes funcoes que as contradicoes podem exercer" na “pratica
ponha a outras e mesmo a "novas interpositividades", mas que com discursiva" (o papel de "assegurar um desenvolvimento adicional do
elas "se cruze em alguns dos seus pontos". Como nao ha um numero campo enunciativo", a fungao de ”induzir uma rearganizagia do
p1-eviamente delinido de tais redes e como uma mesma lormacao campo discursive" e o "papel critico" de por em "jogo a existéncia
d1>scuvrs1va_p0de entrar simultaneamente em varies campos de rela- e a ‘aceitabilidade’ da prética discursiva"). .
goes . vanando sua fungao" e1r1 cada rede, Foucault pode dizer que Em suma, as contradieoes devem ser analisadas pela arqueologia
o -l‘|Ol‘lZ‘Olll€ ao qual se dirige a arqueologia nao é uma ciéncia, uma sem que esta veja ‘acalmado' e ‘pacificado’ seu espaco proprioz o
“espaco de dissencoes multiplas”, o espaco em que se mantém "o
l‘fl¢l0I1a1ldadc, uma mentalidade, uma cultura" mas um "emaranhado discurso em suas asperezas multiplas"“
do lnterpositividades".
FORMAQCES DISCURSIVAS E DOMTNIOS N/710-DISCURSIVOS
Eis a estratégla discursiva que poderia conectar a arqueologia a
uma. permanente perturbacao de arranjos relacionaisz trata-se de Essa posieao da arqueologia como multiplicativa, esse cultivo de
um multiplo que se articula em unidades ou formacoes diferentes,
praticar uma "analise comparativa" com o objetivo de "repartir a mas nao se acalma numa unificacao, isso tudo implica "tarefas"
divenrsidade dos discursos em figuras diferentes" e nao com o objetivo teéricas, algumas das quais Foucault alinha cuidadosamente, como,
dc reduzir a diversidade" desses discursos com o auxilio de uma por exemplo, a tarefa de "mostrar isomorfismos arqueolégicas entre
"unidade" que devesse “totaliza-los". Numa palavra: "a comparacao formacoes diferentes", a de "definir 0 modelo arqueoldgico de cada
arqueologica nao tem um efeito unificador, mas multiplicador"“ formaeao", a de mostrar que "conceitos perfeitamente diierentes"
podem ser "dotados de uma isotopiu arqueolugica”, a de "indicar
34 FOUCAULT, M. ~ AS, pp. 20$. 207-Z08. Gritos do A.
35- FOUCAULT. M» — AS. pp. 198, 200-203. Grifus do A.
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Deleuze, "represents 0 passe mais decisivo numa teoria-prética das préprio no fim do mais severo exercicio de despersonalizacio, quando
rnultiplicidadesm. st: abre as multiplicidades que 0 atravessam de lado a lado, is inten-
MULTIPLICIDADE E NOME PROPRIO sidades que 0 percorrem". Entéo, 0 “nome como apreensio instanténea
tie uma tal multiplicidnde intensive é 0 oposto da despersonalizagio
E providencial o termo numa (“dans une") presente nessa frase; operada pela histéria da filosofia, uma despersunalizagéo de amor,
ele abre uma indeterminagfiu que talvez seja conveniente entender nao de submiss5o"“. Os dois livrns que ele prépriu aponta como
como indicando um variado processo de construqio de tal teoria-pré- inaugurando, apesar de ainda serem demasiado universitérios para
tics, Providencial, pois é bom tomar aqui um cuidado Lnicial para 0 seu gosto, seu aberto acerto de contas com n histéria da filosofia
que nfio se precipitem apenas questfies pré-arqueolégicas do seguinte ; Di/erenca 2 Repetigfia (1968) e Ldgicu do Sentida (1969) — sin
tipo: quem esté na frente, Foucault ou Deleuze, como autur dessa justamente os que Foucault enaltece como "grandes entre us grandes”
teoria-pratica?
livros“, livros paradoxalmente rnerecedores de um estudo atento da
Ora, assim como a Arqueologia desloca a questéo do nutor, parte de historiadores da filosofia nio esquecidos do presente, livrcs
situando-a como derivada em relagio Z1 anélise de uma formagio
por sua vez importantes para a nociu de rnultiplicidade. Pnr outro
discursiva, também em Deleuze uma questéo similar é desviada por
forga de uma idéia dc multiplicidade. Sabemos que Deleuze, reco- lado, Guattari diz 0 que esperava de Deleuze quando resolveram
. \ trahalhar juntos e produzir o que deu no Anti-Edipo (1972) e noutros
nhecido pela sua competéncia como historiador da filosufia, com
seus ensaios sobre Espinoza, Hume, etc., informa ter aprendido tardin- escritos: esperava "0 corpo sem érgéos, as multiplicidades, a pOSsi»
mente, corn Nietzsche, algo nao incentivado pela “histéria da iilosoiia" bilidade de uma légica das multiplicidades". . 5“.
enquantu disciplina interessada em exercer, "em filosofia, uma fungio
Como fieamos? Se Deleuze afirma encontrar na Arqueologia do
repressiva evidente", a funcio de levar 0 disciplinado a n50 ousar
falar em seu préprio nome. Anoto que também a epistemologia recebeu Saber um passe decisive na producio de uma teoria-prética das
sua paulada: “é curioso", diz ele, "como a epistemologia serupre multiplicidades, se Guattari espera dc Deleuze uma légica das multi-
escondeu uma instauracao He poder, uma espécie de tecnocratismo plicidades, tudo isso aponta 0 problema da multiplicidade como sendo
universitério ou ideolégico"'“‘. Qualquer iniciativa pensante, inclusive um dos eixos de vibracfio numa certa cunfiguracéo discursiva. Se a
as mais rebeldes, podem ser disciplinadas, instrumentalizadas em jogos pergunta pela autoria ou pela originalidade é insuficiente, ccnvém
de poder e prestigio. Seré que algumas disciplinas seriam mais auxi- pensar a palavra ‘multiplicidade’ presente nesses textos pelo menos
liares desses jogos7 Como romper com isso e levar o pique intelectual como exemplo de uma interseeéo de colegées, trabalhnda por dissonan-
a desvencilhar-se do destino autoritério que cs manipuladores de cias, cada qual fazendo cursar a seu modo o palavreadn do outro,
disciplinas reservarn, por exemplo, it idéia de rigor? Deleuze jé expe» cada qual acompanhando o palavreado do outro por novus giros
rimentou viirias vias; 0 que ele diz ter aprendillo 00m Nietzsche é desviantes, como se as entrelinhas fossem vias de fuga para sinais
I "0 gosto de cada urn dizer coisas simples em seu préprin nome, de nao ainda nnotados de acordos e desacordos, tudo isto numa atmosfera
l falar por afetos, intensidades, experiéncias, experimentagées". Mas de trabalho diferenciando pnntos e n50 de associagao para instaurar
quando é que falamos em nome proprio? urn significante institucional e despético que os envolvesse numa
N50 quando n0s tomamos "por urn eu, uma pessoa ou um sujeito“. comunidade espiritual cu numa central de intrigas.
Ao contra:-io, diz ele, "um individuo adquire um verdadeiro nome
4|. DELEUZE, G. _ "Resposta de Gilles Deleuze a Michel Cressnle" (1973).
39. DELEUZE, 0. _ NA, pt 19. in Doxsizr... up. u/., pp. zis-220.
40. osreuze. 0. B GUA'lTARl, F. _ “Entrevisla 1; Deleuze = Guattari 42, FOUCAULT, M. _- Thmtmm Pllilosopricum, Mlnuii, Paris, 1910.
explicam-se. . (Quinznine Liuérnirz, I6-30/06/1972) 1» Cnpitalixmn ¢ E» 43. DELEUZE = GUA'l'I‘ARl _ “Entrevista 2: Sabre Capitalismo = Esqui-
qufzojrenin _ Dussier Anti-Edipa, ea. Assuio e Alvim, Lisboa, p. 64, 1916‘ sofrenia" (in L'Arc n.° 49, 02/01/1972). in Dossier... op. ril., P. us.
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justamente inseparével de uma "rnultiplicidade de outros enunciados", Algumas dessas novas palavras, nao presentes no primeiro texw,
o que requer uma “topologia dos enunciados" para além de uma sao retomadas no terceiro — Nota sobre Foucault no Mille Pllztelzux:
"axiomatica", de uma "tipologia das proposigxies" e de uma ‘dialética “Na Arqueologia do Saber", diz Deleuze, "Foucault distingue duas
das frases". Assiru como os enunciados, as multiplicidades sio topo- espécies de ‘multiplicidades’, de conteudo e de expressao, que nao se
légicas e também "histéricas", mas de uma l-listoricidade sem sujeito deixaln reduzir a relagiies de correspondéncia ou de causalidade, mas
suficienle por dentro, o que redunda num distanciarnento e numa que estao, isto sim, em pressuposigao recipi'oca"“5.
proximidade em relacao ao estruturalisrno. E que nem um “método Assim, as conelacfies arqueolégicasapontadas por Foucault entre
axiomético" e nem um "método estrutural" pode dar conta de um formacées distirltas, as formas especificas de articulagfio entre forma-
"pl-oblema prético essencial" como 0 da "determinacfio das rupturaa gfies diversas, entre historicidades diferentes, é todo esse tecido rela-
que limitam uma formagfio discursiva", problema que Foucault, em cional que Deleuze quer conceituar, perguntando como dizer aquilo
As Paluvras e as Caisas, snuhe conduzir con-l um "método serial"“. que estabelece a ‘pressuposicio reciproca’ entre os dois tipns de
O segundo dos textos refericlos ~— Um Novo Carlégralo, dedicado multiplicidades, entre as fnrlnas de conteudo e as formas de exptessao.
ao livro que Foucault publica em 1975, Vigiar e Punir -— comporta O PRINCIPIO DA MULTIPLICIDADE
novas referéncias s Arqueologiu do Saber. Eis, primeiramente, um
Primeirarnente, a idéia de ‘pressuposigao reciproca’, -— apesar de
breve apanhado das passagens que ai veiculam uma ulilizapfio da
estar ai funcionando entre dois termos inspirados pela lingiiistica de
idéia de multiplicidade no trabalho de redizer a teoria foucaultiana
Hjelrnslev, ‘fol-rna do oonteudo’ e ‘fnrma da expressio’ — remete a
do enunciado:
uma eoncepgéo de diagramatismo que esse imporlante lingiiista nao
"A Arqueologia desembocava", diz Deleuze, "na distingaao de teria tematizado suficientemente por ainda manter a distingao expres-
l duas espécies de multiplicidades praticas; as multiplicidades ou préti- sao/conteudo sob o modelo do significante/conteudo sob o modelo
cas discursivas como formacfies de enunciados, formas de expressio: do significante/significado“‘.
l Pois bem, quando Deleuze interroga esse estado de ‘pressuposicao
I e as multiplicidades ou préticas nao-discursivas como forrnaofies de
meios, formas de contelido". Estabelecida essa distincao, que é preciso reciproca’ entre nmltiplicidades, ele deixa, em sua leitura de Foucault,
fazer? "O essencial", prossegue Deleuze, "é colocar consiantemente pelo menos duas perguntas, que nao podemos aqu_i desenvolver, mas
em relacéo as duas formacoes heterogénelzs”, visto que, como jé vimos que merecem ser n-lantidas a vista: pergunta, primeiramente, se "ha
corn Foucault, nao se trata ai de uma relacio de “causalidade econo- alguma coisa que funcione como causa comun-l imanente" entre as
lnica”, nem de uma “relagao de palavra-coisa" ou de "significante- formagrfies heterogéneas; em seguida, pergunta "como sic assegurados,
significado" e "ainda menus de uma relaoao de silnbolizagao estrutural em cada caso precise, o agenciarnento, o ajustamento das duas formas,
entre as duas". Entre as duas multiplicidades ou formas cle contefido sua mlitua penetrac5o"._ A propésito dessas duas perguntas, ele nota
e cle expressao nao ha "seruelhanca", "cnrrespondéncia" ou "isomor- que Vigiar e Punir acrescenta um "novo progresso decisivo“ corn a
fismo". O problema de bem dizer essa relagao perdura, pois "estao "concepcao de pocler"““; os "agenciamentos de poder ou n-licro-po-
elas perpetuamente inseridas uma na outra, um segmento de uma e deres" aparecem em Vigiar 2 Punir, diz Deleuze, como "a inslfincia
urn segmento da outra, en-l estado de equilibrio instavel e de pressu- capaz de dar conta das duas formas heterogéneas imbricadas uma
posigio reciprocam. na outra". Entio é o case de se perguntar: os micro-podercs costuram
as multiplicidades, imbricando-as, ou permeiam a tecitura? Em outras
49. DELEUZE. 0. _ “ECl'1Vflln non: un nnuveau carlogtBphe", in Critique pl.» palavras, haveria algum termo para reunir eases agenciamentos que
34:, 12/1975. (sigla: NC). nao 0 termo Pocler Central ou algum outro velho oonhecido?‘“‘.
501 DELEUZE e GUATTAR1 — Mill: Platenllx, opi ciI.; N0la'36, pp. 175-176,
da linha: "sxv av. ~. c. 7 sill’ qllelques regime: dz signes". S3. DELEUZE e GUATTARI — Mille Phzleaux, op. ci|., pl 175 n. 36.
51- DE,-EUZE G- i NA, pp. ll, 17-18, 28-29, 42, 4547. 54. DELEUZE c GUATTARI — Mille Flntenux, op. ul'I., p. 116, n. 18.
52. DELEUZE, G. ~ NC, pp. 1213-lzls. 55. DELEUZE, G. — NC, p. 1ZlS.
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Sim, esse termo existe, mas nao pode funcionar como os velhos. Reencontramos, assim, consideracoes de certo modo ja vistas a
Esse termo é diagnzma abstralo ou ‘maquina abstrata’, isto é, nao proposito da nogao de arquivu, aquilo que nos delimita e que estamos
algo idealizzldo relativo a uma realidade, mas uma virtualidade relativa ou nao em vias de furar através da participagao (termo este a ser
a sua atualizacao, comportando “pura matéria" (como “multiplicidade mantido como sinal de prohlema, é claro) em um rlovo dizer/fazer.
humana qualquer”) e “pura /unplio” (como "ver sem ser visto", fun- O 1101/0 arquivista vem a ser um novo cartdgra/0 por forca de um
céo efetuada pelo Panoptieon de Benthan, por cxemplo)“. Os agen- diagramatismo que tematiza o problema de multiplicidades distintas
ciamentos reunidos (o que nao quer dizer unificados) sao “graus ou estarern em pressuposicao reciproca.
singularidades nun-l ‘diagrama‘ abstrato, que compol-ta unicamente por A esta altura, essa frase ja nao deve estar soando como incom-
slla conta matéria e funcao (multiplicidade humane qualquer a set preensivel seqiiéncia de sons. Mas seria bom finalizar, apontando
controlada)""‘. Com palavras dc Foucault, tl-anscritas por Deleuze, alguns poucos pontos a serem futuramente ampliados e tratados,
trata-se do “diagrama de um mecanismo de puller”. Diagruma, "nocio quando chegar a ocasiao de se estudar as implicacfies do que Deleuze
muito mais positiva e rica", nocao que Deleuze faz cursar com recursos chama de principio da multiplicidade.
nocionais que [he chegam desde suas transleituras de Espinoza. "0
que conta”, diz, "é a imanéncia do diagrama", pois ele, enquanto Desclassificando a tradicional oposigao entre o ulngeo-vmfiffififi
“maquirla abstrata coexiensiva au campo social", é que "cumpre o oposicao dita “inL'ltil", Deleuze privilegia, retirando-a de Riemann
papel de causa imanente comum nao-unificante", diagrama diferen- e revendo seu empl-ego por 1-lussel-l c Bergson, uma nogao dc multi-
cialmente efetuado por méquinas concretas. Como causa comum o plicidade cujo “essencial", para ele, esta na “constituicao de um subs-
diagrama “so conhece matérias e luncfies nao ainda formadas". Mais tantivo tal que ‘multiplo' deixa de ser um prcdicado oponivel a Uno
explicitamente: afirmado con-lo "eoextensivo a todo um campo social", ou atribuivel a um sujeito marczldo como un0"‘“.
o diagrama é posto como aquilo que: 1.“ "define a méquina social Reafirmando a inutilidade do Uno e do multiplo, Deleuze assinala
enquanto abstrata"; 2.“ “organiza e articula em tal momento as ma- que 0 "verdadeiro substantive, a substarlcia rnesma, é ‘multiplicidade"'.
quinas sociais concretas encal-regadas de efetua-la"; 3." "exerce até E a “multiplicidade variavel é o quanto, o como, o cada caso".
mesmo um controle seletivo sobre o conjunto das técnicas no sentido O que se tem “em toda parte", diz ainda, sao “as diferencas de multi-
estrito do termo através das maquinas sociais que as poem a funcio- plicidades, e a diferenga na multiplicidade, substituindo oposicoes
nar". Vasta rede, o diagrams é pelmeado por “relacoes de poder"“". esquematicas e grosseiras". E a prépria “ironia", por ele entendida
como "arte clialética dos problemas e das questoes", é tambem pensacla
O pensamento que postula um tal diagrama pratica um "diagra- como “arte das lnultiplicidades", o demoniaco, etc."’.
matismo”; e como o “diagl-ama é o mapa", ele pratica uma "cartogra- Essas coisas sac ditas em variados textos, mas ganham uma
/ilz". Foucault: uu-l novo cartografo. Para Deleuze, os enunciados admiravel constelacao discursiva ao longo da obra Diferenpa e Repe-
tipicos de Foucault sao "enunciados diagramaticos", pois "eles fazem tigrdo. Da retomada Cla nO§5O platonica de Idéia até as anélises de
surgir os enunciados dominantes de uma época, mas em sua relacao idéias hoje correntes (em dominios cientificos ou nao), passando por
com 0 que é feito nessa época". Todavia, para descobrir "efetiva- uma cuidadosa conceituagao da nocio de problems, por uma especial
mente" 0 diagrarna, é preciso ja estar participando de um outro discussao com o hegelianismo, etc., ha toda uma rede nocional =,
regime enunciativo" e estar as voltas com um “fazer diferente"°". nela, o funcionamento dessa nocao de multiplicidade como eficiente
aparelho dc agitagao teorica.
S6. DELEUZE e GUATTAR1 -- Mille Plnlenux, op. cil., p. 175, n. 36, Depois de funcionar inicialmente nesse vasto acerto de contas
57. DELEUZE, G. — NC, p. 1216; FOUCAULT, M. — Surveillzr. .. op, cl'1.. com a histéria da filosofia, é num dos mais recentes escritos de Deleuze
pp. 195 ss.
53. DELEUZE e GUATTARI ~ Mill: Plateoux, op .cil., p. 175, n. 36. 61. DELEUZE, G. — NA, pp. 28-Z9, 40.
59. DELEUZE, G. — NC. PP- 1217, 1219, 1211, 1226, 62. DELEUZE, G. — Di/férence :1 Répélitiorl (1968), F.U.F,, pp. 235-233,
60. DELEUZE, G. — NC, pp. 1Z17, 1223, 1226. Grlfos do A. 315, 1981.
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