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CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO
PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas
EDITORA CRV
Curitiba - Brasil
2015
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Revisão: João Maurício Adeodato
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C781
ISBN 978-85-444-0522-2
17/07/2015 17/07/2015
2015
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela:
Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418
www.editoracrv.com.br
E-mail: sac@editoracrv.com.br
Epígrafe
FREITAS, Lorena
TORRES, Lourenço
A FILOSOFIA COMO
AUTOCONSCIÊNCIA DE UM POVO
O título deste prefácio, que vem de um texto de Miguel Reale (1910-2006), foi
uma das fontes de inspiração deste livro e do grupo de pesquisa do qual resulta. No
prefácio que escreveu para meu livro Filosofia do Direito em 1996, o mestre paulis-
ta já enfatiza a necessidade de que os brasileiros não devem fazer filosofia “como se
estivessem em Paris ou Frankfurt...” E, com efeito, em toda sua vida procurou estu-
dar e resgatar o pensamento nacional: escreveu diversos livros e trabalhos a respeito
e descobriu e publicou os Cadernos do Padre Diogo Feijó, além de ter incentivado
uma geração de pensadores e historiadores brasileiros, como Gláucio Veiga, Nelson
Saldanha, Antonio Paim e Luiz Washington Vita. Pouco antes de falecer comentou
comigo: “Se não lermos nossos antepassados intelectuais quem nos vai ler?”
Isso não significa aderir a uma suposta “filosofia da libertação”, cultivada por
diversos colegas brasileiros e das Américas do Sul e Central, sobretudo porque o
Brasil faz parte da periferia da cultura europeia (Grécia, Roma e Europa propria-
mente dita), fala uma língua europeia e todos os autores aqui estudados se inserem
no contexto dessa chamada “cultura ocidental”. É lamentável que as influências
indígenas e africanas tenham sido reduzidas ou aniquiladas na história do pensa-
mento brasileiro, mas os relatos filosóficos e jurídicos que chegaram até nós não as
incluem, mesmo que elas estejam vivas no sangue e na aparência física do nosso
povo e em diversas formas de sua manifestação cultural.
O capítulo inicial, a que remeto a leitora ou leitor, fornece as ideias diretoras
da obra, das quais não cabe falar aqui. Mas o problema todo do livro é justamen-
te a tentativa de responder se podemos falar de um pensamento jurídico nacional
propriamente dito ou se apenas observamos perifericamente o debate europeu, hoje
também norte-americano, canadense, australiano. Sim, porque só se pode falar co-
erentemente em um debate quando as partes se leem umas as outras; não basta a
grande produção brasileira sobre Habermas se ele próprio e seus discípulos euro-
peus dela não tomam conhecimento.
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1 FERREIRA, Maria de Fátima. Quem é e como se vê o estudante da Faculdade de Direito do Recife. Revista da Ordem
dos Advogados do Brasil – Seccional de Pernambuco, Ano XXXIV, no XXIV. Recife: OAB/PE, 1990, p. 105-126.
FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. A Escola do Recife e o problema da originalidade de um pensamento
jurídico periférico. In: ADEODATO, João Maurício (org.). Dogmática jurídica e direito subdesenvolvido – uma pesquisa
pioneira sobre peculiaridades do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 19-48.
2 ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito – uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à
ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 1ª. ed. 1996; 5ª. ed. 2013, último capítulo.
3 Repetindo: ADEODATO, João Maurício. A legitimação pelo procedimento juridicamente organizado — notas à teoria de
Niklas Luhmann. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru, vol. XVI. Caruaru: FDC, 1985, p. 65-92, sobretudo nas p.
85-86, sugerindo que o direito subdesenvolvido não se adaptaria àquele tipo de teoria e que a ineficácia das normas jurídicas
estatais não deve ser reduzida a mera disfunção, mas desempenha papel importante no direito brasileiro. Depois a tese é
mais discutida em ADEODATO, João Maurício. Sobre um direito subdesenvolvido. Revista da Ordem dos Advogados do
Brasil, vol. XXI. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989, p. 71-88. No exterior, a crítica à universalização da teoria sistêmica de
Luhmann começou em ADEODATO, João Maurício. Brasilien. Vorstudien zu einer emanzipatorischen Legitimationstheorie
für unterentwickelte Länder. Rechtstheorie, 22. Band, Heft 1. Berlin: Duncker und Humblot, 1991, p. 108-128.
4 ADEODATO, João Maurício (org.). Dogmática jurídica e direito subdesenvolvido – Uma pesquisa pioneira sobre
peculiaridades do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 19
O quarto projeto (2000-2008) levado a efeito pelo grupo partiu de uma base
sociológica do direito, sem dúvida, ainda que de forma menos imediata. Diferen-
temente do livro anterior, o enfoque passa ao caráter retórico da argumentação,
concentrado em diversos campos do direito positivado e tal como funciona em um
país que é complexo em seus problemas, mas não consegue importar e implementar
as soluções de modernidade central. A retórica tem assim, aqui, um viés pragmático,
pelo qual o funcionamento dos institutos e argumentos jurídicos é avaliado à luz
de seus efeitos. Ela serve para analisar o funcionamento do direito dogmático em
um país subdesenvolvido como o Brasil. Aqui o grupo já se encontra inteiramente
consolidado, assim como sua projeção internacional5.
A quinta fase do grupo de pesquisa (2009-2012) cuidou especificamente da
obra retórica de Aristóteles e da possibilidade de sua aplicação ao direito. Essa obra
não inclui apenas a Retórica, mas também a Poética e a Tópica, assim como os
Argumentos Sofísticos e até os Primeiros Analíticos. Com este trabalho as bases
retóricas ganharam a solidez desejada6.
O sexto projeto, atualmente em andamento, constitui, no fundo, o objetivo
final de todas as fases anteriores. Este livro traz os primeiros resultados desses estu-
dos e a próxima publicação já está em preparação. O já mencionado capítulo inicial
deste livro mostra como o grupo procura aplicar a perspectiva da retórica analítica
– inaugurada por Aristóteles – à história das ideias jurídicas no Brasil.
Resumindo a trajetória do grupo de pesquisa: primeiro, o estudo sobre quem
é e como se vê o estudante da Faculdade de Direito do Recife, como a primeira
pesquisa empírica; depois, a crítica à ontologia, procurando fixar os pressupostos
epistemológicos que passariam a nortear as atividades do Grupo; em uma terceira
fase, sobre as peculiaridades do direito periférico, subdesenvolvido, lançou mão da
teoria sistêmica dentro de um positivismo sociológico, não estatalista7. A quarta eta-
pa aplicou a retórica como perspectiva formal, instrumento de análise de institutos
dogmáticos, como o orçamento participativo ou a concessão de fiança. E a quinta
etapa estudou especificamente as bases retóricas na Antiguidade clássica, sobretudo
– mas não somente – a Retórica de Aristóteles e sua aplicabilidade ao direito.
Ao longo de tantos anos, além do grande número, outros motivos houve para
que nem todos os participantes pudessem estar presentes neste e nos demais livros
organizados por mim. Um critério foi o temático, pois alguns trabalhos não guarda-
vam tanta pertinência com os objetivos centrais do projeto; alguns dos possíveis au-
tores, por outro lado, já tinham publicado os resultados de suas pesquisas em outros
veículos; mais alguns os tinham utilizado em projetos de mestrado ou doutorado,
não fazendo sentido reproduzi-los aqui; e outros simplesmente não chegaram a um
nível de qualidade adequado.
5 ADEODATO, João Maurício (org.). O direito dogmático periférico e sua retórica – consolidação de um grupo de
pesquisa em filosofia e teoria do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
6 ADEODATO, João Maurício (org.). A retórica de Aristóteles e o direito – bases clássicas para um grupo de pesquisa
em retórica jurídica. Curitiba: CAPES / CRV / FDV, 2015.
7 Daí o comentário, metonímico, para não dizer exagerado, sobre a “orientação sistêmica” da Faculdade de Direito do
Recife por parte de ARGÜELLO, Katie. Niklas Luhmann e o direito: elementos para uma crítica à teoria sistêmica, Revista
de Direito Alternativo, n. 4. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 157, e de WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao
pensamento jurídico crítico, 2. ed. São Paulo: Acadêmica, 1995, p. 98, dentre outros.
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8 As aspas se devem à crítica que o presente texto faz ao uso corrente da expressão “metodologia”, propondo a tripartição
entre método, metodologia e metódica, conforme pretende-se esclarecer aqui.
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A visão da filosofia como retórica vai levar a uma perspectiva mais modesta
por parte do Grupo de Pesquisa, no que concerne à abordagem da história das ideias
jurídicas no Brasil que pretende. Essa perspectiva, analítica, vai tentar afastar pre-
conceitos estabelecidos, por exemplo, o de que a retórica é apenas um enfeite da
linguagem ou que sua função é tão somente estratégica para persuasão e até engodo
dos menos avisados. A retórica tem também essas importantes funções, certamente,
cujo conhecimento no mínimo ajuda a imunizar contra seus efeitos eventualmente
danosos, mas vai muito além disso. A análise retórica serve não apenas à filosofia do
direito e à história das ideias, mas também ao estudo das ciências físicas, biológicas
etc., pois todas consistem de acordos linguísticos.
O marco teórico aqui é assim a retórica, tomada em um sentido próprio e es-
pecífico, tripartido em retóricas material (método), estratégica (metodologia) e ana-
lítica (metódica), o que será agora resumidamente explicado (ADEODATO, 2009;
ADEODATO, 2014).
Talvez o mais difícil de fazer entender, do ponto de vista filosófico, seja o
primeiro sentido, o da retórica material, ou existencial. Significa considerar que
tudo aquilo que se chama de “realidade” consiste em um fenômeno linguístico, cuja
apreensão é também “retórica”. Isso não quer dizer somente que o conhecimento
do mundo é intermediado pelo aparato cognoscitivo do ser humano, como sugeriu
Kant, ou mesmo intermediado pela linguagem. Significa dizer que a própria reali-
dade é retórica, pois toda percepção se dá pela linguagem, a convicção radical de
que não há percepção nem apreensão fora da linguagem, muito menos “objetos”. A
retórica material compõe a relação do ser humano com o meio ambiente, é o conjun-
to de relatos sobre o mundo que constitui a própria existência humana. Esta pressu-
posição filosófica é “radical”, no sentido mesmo de “raiz”. Se há alguma “realidade
ôntica” por trás da linguagem não há qualquer sentido em falar sobre isso, pois o ser
humano é linguisticamente fechado em si mesmo, em um universo de signos, sem
acesso a qualquer “coisa” para além da própria linguagem.
Isso não implica que a realidade seja subjetiva, pelo menos no sentido de uma
dependência de cada maneira pela qual cada indivíduo a percebe. O maior ou menor
grau de “realidade” de um relato vai exatamente depender dos outros seres huma-
nos, da possibilidade de controles públicos da linguagem. Nesse sentido podem
existir demônios, buracos negros, quarks, ego e superego. Só que essas regras de
controle da retórica material, conforme mencionado acima, são condicionadas, cir-
cunstanciais e tanto mais mutáveis e ambíguas quanto mais complexo e diferencia-
do seja o meio social.
A linguagem intrasubjetiva, o diálogo consigo mesmo que caracteriza o pen-
samento, na precisa definição de Hannah Arendt (1978, p. 187), consiste em um
“dois-em-um” do pensamento, ou seja, só porque o ser humano é dotado de consci-
ência (consciousness, self-awareness, saber que ele é só ele e é distinto dos demais)
e da capacidade de imaginar “outro eu” com quem dialogar é que o pensar se torna
possível. E, como o descobriu Sócrates, apenas diante de uma harmonia entre os
dois “eus” pode-se falar propriamente em pensamento (“conhece-te a ti mesmo”).
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Conclui-se aqui, o que Hannah Arendt não faz, que o próprio pensamento é retórico,
composto de relatos que o sujeito faz a si mesmo, relatos que o sujeito se diz, se
comunica. Só assim o ser humano vive no mundo.
Essa dimensão material corresponde aqui ao método, literal e etimologica-
mente ao caminho (όδóς, odos) que as pessoas tomam, sua conduta “real”, no sen-
tido de que constitui a realidade, os relatos que compõem os “fatos” da vida, os
discursos retoricamente regulados, ou seja, ações e reações linguísticas a estímulos
também linguísticos. Retórica material é um conceito que busca abranger esse con-
junto de escolhas de ação dos seres humanos, seus métodos, os relatos da linguagem
escolhidos a cada momento em detrimento de outros relatos possíveis.
A segunda dimensão retórica, a prática, ou estratégica, é reflexiva no sentido
de que tem a retórica material como alvo, compõe-se do conjunto de estratégias que
visam interferir sobre aqueles métodos e modificá-los, influir sobre eles para ter
sucesso em determinada direção escolhida. Por isso é pragmática e teleológica, toda
retórica estratégica quer se transformar em retórica existencial, quer se “realizar”.
Ela corresponde ao nível da metodologia, já que observa como funciona a retórica
material e a partir daí constrói doutrinas, teorias (logias) que buscam mudar, trans-
formar, conformar os métodos do primeiro nível retórico. A metodologia transforma
esses métodos em “objetos”, faz com que determinadas concepções sobre o am-
biente circundante apareçam como “o mundo”, relatos privilegiados, vencedores no
sentido de obterem mais crença e adesão. A eficácia linguística é seu critério, fruto
da observação de quais métodos funcionam e de quais não funcionam na práxis.
Essas metodologias podem ser ensinadas, delas fazem parte a tópica, a teoria
da argumentação, as figuras de linguagem e de estilo e, no direito, as doutrinas
dogmáticas. Elas tratam justamente de quais topoi aparecem mais frequentemente
em um discurso, que métodos são empregados para esse ou aquele efeito, como os
lugares-comuns retóricos são construídos e trabalhados, que táticas, palavras, ges-
tos melhor produzem os efeitos desejados.
A retórica analítica é a que mais se aproxima do que tradicionalmente se tem
chamado a postura “científica”, na medida em que procura descrever, abstraindo-se
de atitudes valorativas, como funcionam a retórica material e a retórica estratégica,
tanto tipificando-as isoladamente, quanto estudando-as em suas inter-relações. Ca-
racteriza-se pela atitude descritiva e pela correspondente tentativa de neutralidade,
por isso nunca é normativa, ao contrário dos outros dois níveis.
Ver a retórica analítica como uma metódica ajuda a sustentar a tese de que a
retórica vai além de seus aspectos metodológicos e assim combate duas reduções
tradicionais: de um lado, aquela apontada pelos adversários da retórica, para os
quais ela serve para enfeitar a linguagem, seduzir e enganar os incautos; do outro
lado, aquela defendida pela corrente dominante entre os próprios retóricos, no senti-
do de que a retórica se dirige exclusivamente à persuasão. Em suma, ambas as teses
reduzem metonimicamente a retórica a seu nível estratégico (a suas metodologias),
muito importante, sem dúvida, mas jamais único.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 29
Isso porque a retórica metódica tem exatamente como objeto imediato essas
estratégias, dentre as quais se sobressaem de uma parte o engodo, de outra, a persu-
asão, ressaltadas pelos reducionismos mencionados. Claro que, como essas estraté-
gias dirigem-se à retórica material, esta também é analisada pela retórica metódica.
Trata-se assim de uma meta-meta-linguagem, ou meta-linguagem de segundo nível.
Trata-se também de uma teoria, mas não apenas sobre os métodos efetivamente
aplicados, como o faz a retórica metodológica, mas sim sobre o funcionamento das
metodologias sobre os métodos.
A retórica como metódica para estudo das ideias jurídicas no Brasil sugere,
assim, que a abordagem retórica pode dar outra contribuição além de seu nível es-
tratégico e ornamental, ou seja, além de sua ajuda para o sucesso da comunicação.
A atitude metódica da retórica pode propiciar mais conhecimento das relações hu-
manas, eventualmente servir de critério para testar o acordo com as regras do jogo,
por exemplo (a lei e outras fontes de normas jurídicas, no caso do direito), além de
fornecer apoio à aceitação de decisões.
Esse prisma de observação considera infundadas as concepções etiológica e
escatológica da história, que a veem, respectivamente, como causal e progressiva,
previsível e finalística, entendendo que o presente é melhor do que o passado e que o
futuro tende a ser melhor. Isso parece ser uma consequência da perspectiva cartesia-
na e das vitórias da ciência moderna no domínio da natureza na modernidade. Para a
retórica, a história é composta de relatos exemplares do passado (no sentido clássico
de “contar uma história”), os quais devem servir de exemplo para o futuro, pois as
pessoas tendem a acreditar que o passado se repete. Sua ligação com a “realidade”
é relativa, mas claro que um relato que os ouvintes creem haver de fato ocorrido
funciona melhor, como já advertira Aristóteles (1990, 1394a, 5, p. 641).
A visão histórica da retórica é assim relativa e imprevisível, precisa confor-
mar-se com o fato de que não se pode compreender ou prever qualquer evento que
“tenha” história, pois a história é humana e o que é humano não pode ser causalmen-
te (etiológica ou escatologicamente) observado. A seguir observa-se como a retórica
analítica pode ser aplicada a essa história das ideias.
Entende-se aqui que a historiografia filosófica não se deve ater apenas à bi-
bliografia ou à biografia dos pensadores escolhidos. Daí a diferença entre a história
das ideias e a história da filosofia tradicional, pois aquela procura enfocar as ideias
onde quer que apareçam e não apenas na filosofia, ou seja, podem ser oriundas
de literatos, políticos, jornalistas. O projeto do Grupo de Pesquisa procura abordar
ideias que influíram no pensamento jurídico brasileiro de onde quer que venham,
embora seu enfoque, conforme explicitado acima, seja filosófico, no sentido de uma
filosofia retórica do direito.
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romano e ao inglês, sendo a tradição legalista bem mais tardia. O praxismo colonial
era de fundo consuetudinário, jurisprudencial e relativista, e até hoje tem sua influ-
ência sobre a mentalidade jurídica brasileira, na qual o legalismo exegético jamais
se firmou completamente. A discussão em torno do uso alternativo do direito, nos
anos 1990, e o atual debate sobre o ativismo judicial deitam raízes nessa tradição.
As ordenações portuguesas trouxeram ao Brasil as influências escolásticas e
praxistas desenvolvidas em centros de cultura jurídica dentre os quais o mais impor-
tante foi Coimbra. Essas ordenações eram pragmaticamente elaboradas e não podem
ser chamadas de códigos pela ausência de unidade sistematizada e da mentalidade
iluminista. Os juristas portugueses das ordenações não cultuavam o racionalismo
francês do Código Civil e da Escola da Exegese, os primeiros positivistas, tendo
esse movimento chegado ao Brasil bem depois (REALE, 1977; REALE, 1994b).
Os estudantes de direito recebiam em Portugal uma educação baseada em his-
tória e latim, depois algumas disciplinas vinculadas à retórica clássica e, só da me-
tade para o fim do curso, direito canônico e alguma coisa do direito civil português.
Esse contexto precisa ser estudado para entender a importância retórica das ideias
sobre o mundo real e é aí que se juntam os dois campos de estudo visados pelo
Grupo de Pesquisa.
Ao lado da preocupação histórica, partindo da convicção de que toda mudan-
ça social significativa se faz por meio de ideias, procura-se aqui uma história das
ideias, simultaneamente com a história dos eventos concretos, que são únicos e
irrepetíveis. Para isso é necessário definir, além da concepção de história, o que se
deve entender por ideias (TOBIAS, 1987, p. 1-20).
Os próprios historiadores debatem acirradamente o objeto de seu estudo, seu
caráter científico e sua inserção ou não no corpo das modernas ciências sociais, com
alguma semelhança com o que acontece com a área do direito, sobretudo “por sua
relativa indiferença a questões metodológicas” (BOYCE, 2005, p. 448). Ainda que
a história seja praticamente tão antiga como a escrita, é só no final do século XVIII
que ela aparece como disciplina específica nas universidades.
Com Nietzsche vem a reação contra a causalidade na compreensão da histó-
ria e contra a suposição de que a ela poderia ser delimitada por leis específicas, já
que os processos históricos não podem ser definidos, pois “Todos os conceitos nos
quais se compõe semioticamente um processo inteiro escapam à definição; definí-
vel é somente aquilo que não tem história.” (NIETZSCHE, 1988) Diante de tantas
“causas”, uma causalidade histórica será necessariamente reducionista. A etiologia
vincula “uma” causa a “um” efeito, sob uma visão determinista na qual o risco da
desproporcionalidade salta aos olhos. Essa perspectiva é vã na história, posto que
relações supostamente causais não podem ser isoladas. Fatos relevantes (causais)
para determinados efeitos empiricamente observáveis estarão envolvidos por esco-
lhas do historiador. Daí todas as saudáveis tentativas de “revisionismo”, que fazem
a história e a história das ideias tão fascinantes.
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O debate fica então concentrado na pergunta sobre se são possíveis “leis gerais
explanatórias” e se descobri-las ou criá-las é a função do conhecimento histórico,
tendo em vista as abordagens deterministas e causais das ciências sociais em geral.
Para a perspectiva aqui assumida, o trabalho do historiador guarda “estreita seme-
lhança com as atividades de um magistrado que investiga, ou de um detetive legal”,
os quais pretendem compreender e explicar motivações para determinadas ações
humanas (BOYCE, 2005, p. 453), com todo rigor possível, mas de forma indutiva
e pragmática, ou seja, retórica. Nesse mister é preciso cuidado para não cair em
falácias muito comuns quando se procura fazer história, as quais não são específicas
do trabalho histórico.
Os advogados experientes são familiarizados com a falácia das falsas dicoto-
mias, para algumas das quais o Grupo de Pesquisa de retórica jurídica da Faculdade
de Direito do Recife já tem mostrado atenção em trabalhos anteriores (ADEODA-
TO, 1999). O interlocutor cairá nessa falácia quando permitir que o seu parceiro no
discurso o coloque em situações tais como “ou é assim ou é assado”, positivista ou
jusnaturalista, esquerda ou direita, teórico ou prático e assim por diante. Essas estraté-
gias empregadas pelo autor escolhido em seu ambiente precisam ser desveladas pelo
pesquisador. A estratégia do confronto de posições antagônicas também deve ser de-
tectada pelo pesquisador, pois um mesmo ambiente histórico terá, quase que necessa-
riamente, fundamentos discursivos comuns. Ver as opiniões dos partidos em conflito
na época estudada como se o pesquisador fosse um parceiro do momento, isto é, to-
mando partido contra ou a favor, pressupondo que algum dos antagonismos colocados
é verdadeiro em detrimento do outro, prejudica o distanciamento que a perspectiva
retórica da história exatamente quer trazer. O passado não deve ser visto como causa
do presente, mas tampouco o presente deve servir de critério para observar o passado.
No difícil equilíbrio tenta mover-se a metódica retórica sobre a história das ideias.
Daí a questão: são as ideias dos indivíduos que impulsionam (“fazem”) a his-
tória ou é a história que determina as ideias? Trata-se da pessoa certa nas condi-
ções certas ou é a pessoa que faz o ambiente e as condições? Há muitos anos esse
problema foi tratado em termos de uma interpretação genética versus uma in-
terpretação histórica, tomando por base uma obra de Victor Goldschmidt (1963)
(ADEODATO, 1989a, p. 189).
A questão é de que maneira se deve ler um pensador. Há dois modos para
penetrar-lhe o pensamento, compreendê-lo e avaliá-lo: o que Goldschmidt chamou
método filosófico propriamente dito e o método genético ou histórico. Sem discutir
as denominações escolhidas, veja-se em que consistem as duas perspectivas.
O método filosófico, tradicional, subtrai seu objeto ao tempo e o observa se-
gundo a validade intrínseca das proposições apresentadas, tendo determinada visão
de “verdade” como critério; o método genético, mais recente, procura compreender
a teoria do autor estudado a partir das condicionantes históricas que o influenciaram.
Essa perspectiva genética examina as contradições do pensamento, dissolvendo-as
no fluxo dos fatos históricos, em lugar de compará-las a um parâmetro objetivo
anteriormente estabelecido.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 33
9 Com a tese de que o direito subdesenvolvido não se adaptaria a teorias como a de Luhmann e que a ineficácia das
normas jurídicas estatais não deve ser reduzida a mera disfunção, mas desempenha papel importante no direito brasileiro
e periférico em geral.
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10 O conceito do autor, porém, limita-se a argumentos persuasivos, na esteira da redução feita por Aristóteles em sua Retórica.
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Quem poderia ir contra frases como “uma efetiva distribuição de justiça”, ou “uma
posição ponderada, responsável e sem fanatismos”. Isso não quer dizer nada, mas
o orador atrai simpatia para o que vai defender em termos de conteúdo opinativo,
como, por exemplo, a eficiência do processo eletivo para administradores da univer-
sidade pública (o que já é mais preciso e de acordo mais difícil). Além de qualificar
positivamente o próprio discurso, desqualifica quem eventualmente dele discordar.
A mesma estratégia se observa quando o orador atribui a seus adversários expres-
sões semelhantemente vagas, mas que trazem conotações negativas, tais como “or-
todoxo”, “ideológico”, “fanático” e assim por diante.
A estratégia de falar por sujeito indefinido ou indefinível articula afirma-
ções que atraem apoio para si mesmo como representante autorizado de um grupo,
estratégia comum e surpreendentemente eficaz, dado seu caráter absurdo. Assim
diz-se que “o povo quer”, “a universidade não aceita” ou “os trabalhadores sabem
disso”, ainda que seja óbvio a qualquer observador mais atento que nenhum orador
detém essa autoridade hermenêutica.
11 Refere-se inventio (criar a plausibilidade do argumento), dispositio (organizar as informações), elocutio (adequar o
pensamento a sua formas de expressão), memoria (capacidade de reter a informação) e pronuntiatio (contenção, postura
da voz, sobriedade, elegância no falar ou escrever). Também a exordium, narratio, argumentatio e conclusio ou peroratio,
cujo detalhamento também foge aos objetivos deste artigo (ADEODATO, 2009).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 39
REFERÊNCIAS
_____ (1977). Cem anos de ciência do direito no Brasil. In: REALE, Miguel. Ho-
rizontes do direito e da história, 2ª ed. revista e aumentada. São Paulo: Saraiva,
p. 171-196.
SCHMIDINGER, Heinrich (Hrsg.) (2002). Wege zur Toleranz – Geschichte einer
europäischen Idee in Quellen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean (1999). Imposturas intelectuais – o abuso da
ciência pelos filósofos pós-modernos, trad. Max Altman. Rio de Janeiro e São Pau-
lo: Record.
STRECK, Lenio (2009). Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias
discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito, 3ª ed.
(revista, ampliada e com posfácio). Rio de Janeiro: Lumen Juris.
TOBIAS, José Antonio (1987). História das ideias no Brasil. São Paulo: EPU.
WEBER, Max (1985). Wirtschaft und Gesellschaft – Grundriss der verstehenden
Soziologie. Johannes Winckelmann (Hrsg). Tübingen: J.C.B. Mohr/ Paul Siebeck.
A OBRA DE SÍLVIO ROMERO
NO DESENVOLVIMENTO DA
NAÇÃO COMO PARADIGMA:
da dicotomia entre o positivismo e a
metafísica à adoção do evolucionismo
spenceriano na transição republicana
Resumo: Este capítulo tem como objetivo analisar a filosofia de Sílvio Rome-
ro. Por meio do estudo das ideias que influenciaram o autor será possível ter
uma visão mais transparente de seu pensamento, cuidando, principalmente,
da época da proclamação da República para estudar o positivismo comteano
em Sílvio Romero. Essa análise dos textos de Romero será realizada à luz das
vias retóricas de persuasão: ethos, pathos e logos. Observa-se Sílvio Romero
como precursor da modernização do direito no Brasil, por meio de seu “cien-
tificismo” que influenciou o Código Civil de 1916. O racismo, a sociologia
e o culturalismo são temas que permeiam o trabalho, buscando, de forma
interdisciplinar, mostrar que Sílvio Romero não se limitou a resenhar autores
europeus e sua ambição de conhecer o ambiente cultural nacional terminou
por influenciar toda geração que se seguiu, podendo-se destacar autores como
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade.
Palavras-chave: Sociologia brasileira. Positivismo no Brasil. Culturalis-
mo. Nacionalismo.
Abstract: This chapter aims to analyze the philosophy of Sílvio Romero. The
study of the ideas that have influenced the author will permit a more transparent
view of his thought, mainly concerning the proclamation of the Brazilian
Republic and the role of the positivism of Auguste Comte. This analysis of
Romero’s texts will be based on the rhetorical means of persuasion: ethos,
pathos and logos. Sílvio Romero is taken as a precursor of the modernization
of law in Brazil through his scientific way of thinking, which influenced the
Civil Code of 1916. Racism, sociology and culturalism are important themes
here, taking an interdisciplinary approach to show that Sílvio Romero did not
conceal himself to reviewing European authors and that his ambition to know
the national cultural environment ended up influencing the new generations,
among whose authors one can point out Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda and Mário de Andrade.
Keywords: Brazilian sociology. Positivism in Brazil. Culturalism. Nationalism.
Sumário: Introdução: a proposta de uma análise retórica em Sílvio Romero, o
caráter de ensaio e a estrutura de abordagem. 1. O contexto histórico-cultural
de Sílvio Romero para formação de suas concepções e ideais. 2. A Proclamação
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12 Divisão sugerida por BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito, trad. João Maurício Adeodato. Revista Brasileira
de Filosofia, São Paulo, IBF, Vol XXXIX, fascículo 163, jul.-set., 1991, p. 175-184. A retórica “prática” de Ballweg é aqui
chamada “estratégica” por sugestão de Adeodato (2012, passim).
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13 Charles Darwin acreditava nas transformações das espécies, indo de encontro à teoria da imutabilidade dos seres. Na luta
pela sobrevivência no mundo animal, assim como no processo de adaptação ao ambiente ocorriam alterações orgânicas
nos seres vivos que eram transmitidas aos seus descendentes, possibilitando melhores condições de sobrevivência para
aquela espécie.
14 Esta doutrina não se aplica unicamente aos seres vivos, mas a tudo, aos seres humanos, às instituições, às sociedades,
em discordância com a teoria biológica, que abrange apenas os seres vivos. O evolucionismo tem como característica a
definição de evolução como sinônimo de progresso, diversamente da teoria de Darwin, que a compreendia nos enfoques
de regresso e progresso.
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análises retóricas 49
Sílvio Romero afirmou que a filosofia tem tido e continuará a ter uma dupla
função, sendo uma composição das ciências particulares e uma inquirição sobre
aquilo que nunca formou uma ciência particular, isto é, a origem e a natureza intrín-
seca do universo. Num e noutro sentido, todos os sistemas filosóficos se reduzem
a quatro correntes principais: o monismo, o dualismo, o positivismo e o criticismo
naturalístico evolutivo (ROMERO, 1943. p. 301). Percebe-se, assim, incorporação
dos ideais de sua época, nos finais do século XIX, cujo marco no Brasil foi a Pro-
clamação da República.
Foi neste contexto que floresceu Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Ro-
mero, crítico, ensaísta, folclorista, polemista, sociólogo, pensador, professor e his-
toriador da literatura brasileira, que nasceu em Lagarto, Sergipe, em 21 de abril de
1851, e faleceu no Rio de Janeiro, em 18 de julho de 1914. Filho do comerciante
português André Ramos Romero e de sua esposa Joaquina Vasconcelos da Silveira,
iniciou os estudos primários em sua cidade natal. Em 1868 entrou para a Faculdade
de Direito do Recife, quando Tobias Barreto cursava o 4º período do curso. Ao con-
trário de Tobias, não permaneceu no Recife, mas mudou-se para o Rio de Janeiro,
devido, principalmente, às antipatias conquistadas pelo seu temperamento.
Sobre sua personalidade Lilia Schwarcz afirmou que Sílvio Romero era um
agitador. Autodidata, utilizou com entusiasmo as mais recentes discussões sobre
ciência e filosofia para lidar de forma direta com os problemas nacionais. Na reali-
dade, o aparente universalismo cultural só o interessava enquanto ajudava a pensar
em um compromisso com as questões locais, sobretudo em novas aspirações de uma
nacionalidade, no que foi um precursor (SCHWARCZ, 1993, p. 153).
Engajado na Escola do Recife por influência de Tobias Barreto, foi, a princí-
pio, positivista, mas seu espírito crítico e polemista o levaria a se afastar das ideias
de Comte para se aproximar da filosofia evolucionista de Herbert Spencer, na busca
de métodos objetivos de análise crítica e apreciação do texto literário. O evolucio-
nismo passou a ser mais importante do que o positivismo em seu pensamento.
No segundo ano do curso de Direito começou sua atuação jornalística na im-
prensa pernambucana, quando publicou a monografia A poesia contemporânea e a
sua intuição naturalista. Desde então, continuou a publicar textos no Recife, em
periódicos como “A Crença”, que ele próprio dirigia juntamente com Celso de Ma-
galhães, o “Americano”, o “Correio de Pernambuco”, o “Diário de Pernambuco”, o
“Movimento”, o “Jornal do Recife”, o “República” e o “Liberal”. Assim como To-
bias Barreto, Sílvio Romero era parlamentarista, sistema que defendia com grande
vigor em seus discursos.
Logo que se formou, exerceu a promotoria em Estância. Atraído pela política,
elegeu-se deputado à Assembleia provincial de Sergipe, em 1874, mas renunciou
logo depois. Regressou ao Recife para tentar fazer-se professor de Filosofia no Co-
légio das Artes; o concurso realizou-se no ano seguinte e ele foi classificado em pri-
meiro lugar, mas a Congregação resolveu anular o concurso. A seguir, defendeu tese
para conquistar o grau de doutor, concurso no qual enfrentou a banca examinadora
e a Congregação da Faculdade de Direito do Recife, afirmando que “a metafísica
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Le Play utilizou esse método quando estudou a situação dos operários na Eu-
ropa. O método consiste no estudo indutivo de determinados indivíduos, condições,
profissões, instituições, comunidades ou grupos, para obter generalizações. Tal in-
vestigação deve examinar o tema escolhido pela análise de todos os fatores que o in-
fluenciaram, pois parte da ideia de que qualquer caso que se estude em profundidade
pode ser representativo de muitos ou até de todos os casos semelhantes.
Em 1878 publicou o A filosofia no Brasil, primeiro livro sobre a história das ideias
filosóficas na cultura nacional. Foi divulgador do pensamento filosófico de Tobias
Barreto15, principal figura da Escola do Recife. Defensor do liberalismo, criticou a
tese da ditadura positivista, e, na crítica e historiografia literária, destacou-se por seu
conhecimento dos autores e textos. Filiando-se à estética realista, também escreveu a
primeira história da literatura brasileira sob a perspectiva de uma obra de arte, ou seja,
procurando retratar, psicologicamente, uma sociedade. Foi um dos responsáveis pela
valorização das tradições populares, recolhidas nas obras sobre o folclore.
15 Romero era amigo próximo e admirador de Tobias, além de seu maior divulgador. Com a doença de Barreto, ele tenta
levantar recursos para o tratamento do amigo e auxílio à família.
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análises retóricas 51
A denominação “Escola do Recife” foi utilizada pela primeira vez por Sílvio
Romero, com a famosa expressão “surto de ideias novas” e um contexto polêmico
e irreverente, desprezando o conhecimento de pessoas contrárias a suas ideias. E aí
se vê a influência de Immanuel Kant: em filosofia geral o agnosticismo17, aceito e
desenvolvido por Herbert Spencer, inspirado na Crítica da Razão Pura, é a postura
predominante; em estética, o princípio adotado pelo darwinismo e por toda escola
evolucionista, é o de ser o belo um livre jogo de nossa imaginação e de nosso en-
tendimento, ponto de vista aprendido da Crítica do Juízo; e em moral, o postulado
de ser ela independente de nossas concepções metafísicas e religiosas, tomado da
Crítica da Razão Prática (ROMERO, 1953. p. 302).
A diferença capital entre o positivismo de Comte e o criticismo de Kant, acei-
ta por meio de Spencer, é que, em primeiro lugar, considera a metafísica fútil ou
perniciosa, e, em segundo, considera-a incompatível com a ciência, porém legítima
como manifestação de tendências inerentes à natureza humana (ROMERO, 1953.
p. 304). Sílvio concorda com Pedro Lessa, que afirma ser a metafísica “um conjunto
de especulações sobre os seres e os fenômenos que não podemos conhecer cientifi-
camente” (REALE, 1962, p. 122).
16 Foi em 1891 que circulou pela primeira vez a Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, caracterizada pela
ênfase nos problemas políticos e sociais nacionais. Com irregularidade esporádica, é publicada até hoje.
17 É a posição metodológica pela qual somente se aceita como verdadeira uma proposição que tenha evidência lógica
mínima. É, também, uma atitude que considera fútil a metafísica. Além de ser uma doutrina que informa a existência de
uma ordem de realidade incognoscível.
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O auxílio das ciências, acredita Sílvio Romero, fecundará novas ideias e abrirá
novas vias à compreensão do problema do homem na nacionalidade. É por intermé-
dio do método cultural sociológico, desenvolvido a partir de Le Play, que o estudo
dos problemas sociais encontra sua plenitude.
Realizadas essas observações acerca do meio e situações que circundaram Síl-
vio Romero, seus aspectos biográficos e contextuais, cabe agora uma análise de seus
discursos e pretensões a partir dos três níveis da retórica referidos acima.
No Brasil as doutrinas novas, que têm para todos os grandes fenômenos hu-
manos, Arte, Religião, Política, Moral, Filosofia, Ciência, uma resposta e uma
solução adequada, não se organizaram exteriormente, como o Positivismo.
Causas diversas, oriundas umas da índole mesma dessas doutrinas, matéria
de ensino, têm trazido semelhante resultado. Daí o ascendente do atrasado
positivismo, com seus anacronismos, suas ditaduras, seu patriciado, seu
grand-prêtre, seu grand-être, seu grand-fétiche, seu grand-milieu e outras
galhardias do gênero (ROMERO, 1969, p. 293).
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análises retóricas 53
Quem não viveu nesse tempo não conhece por ter sentido diretamente em si
as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante
não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista,
católica e eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições
monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição
servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprie-
tários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, engano-
sos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha
adormecido à sombra do manto do príncipe ilustre que havia acabado com o
caudilhismo nas províncias e na América do Sul e preparado a engrenagem
da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história
em um grande país. De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de
longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou, e o sofisma do império
apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava a mostrar a todas
as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de
nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravi-
dão; e então a questão dos cativos se agita e logo após é seguida da questão
religiosa; tudo se põe em discussão: o aparelho sofístico das eleições, o sis-
tema de arroxo [sic] das instituições policiais e da magistratura e inúmeros
problemas econômicos; o partido liberal, expelido do poder, comove-se de-
susadamente e lança aos quatro ventos um programa de extrema democracia,
quase um verdadeiro socialismo; o partido republicano se organiza e inicia
uma propaganda tenaz que nada faria parar. Na política é um mundo inteiro
que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travamento da peleja foi ain-
da mais formidável, porque o atraso era horroroso (ROMERO, 2005, p. 285).
Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o povo não sabe ler;
de ter palácios de Monroe, quando a mor parte da gente mora em estalagens
e cortiços e as casas de pensão proliferam, e de ter avenidas à beira-mar e
teatros monumentais, que vão ficar fechados, quando não temos fartas fon-
tes de renda, quando a miséria é geral e quase todas as cidades e todas as
vilas do Brasil são verdadeiras taperas; de ter cá a reunião do Congresso Pan-
-Americano, para dar-lhe, como ilustração, as trucidações de Mato Grosso e
o assassinato de deputados e senadores, em pleno dia, nos desregramentos de
uma política feroz!...
Não estamos no caso de contrair empréstimos loucamente avultados e ruinosos
para os aplicar em obras suntuárias, quando os serviços mais simples estão
por organizar por todo o país; quando temos enorme deficit, não falo do orça-
mentário, o deficit da União, dos Estados, das Municipalidades, falo do deficit
do povo, aquele que os economistas chamam deficit de substâncias, porque,
possuindo o país talvez mais fértil do mundo, precisamos de comprar fora a
mor parte das cousas indispensáveis à vida... e assaz considerável parte da po-
pulação desceu até à degradação do jogo do bicho... (ROMERO, 2005, p. 306).
que o fundamento biológico não é único, pois existem as influências transmitidas pela
educação, pela seleção artificial da cultura (ROMERO, 2002, p. 255-256).
A identidade nacional é, assim, resultado da mestiçagem. Daí os estudos sobre
as expressões artísticas populares, como a poesia popular e o folclore; era preciso
conhecer as características que provêm do mestiço, para conhecer o próprio país.
Na primeira fase de seu desenvolvimento histórico, para Sílvio Romero, o pas-
sado brasileiro era o encontro das três raças que habitaram o Brasil colonial, o bran-
co, o índio e o negro, com preponderância do elemento português nesta formação. O
presente ainda se caracterizada pela falta de um povo formado, o que se refletia no
sistema político imperial, cujo Poder Moderador constituía um entrave ao progresso
do país, pois se confundia com poder pessoal e ficção metafísica. O futuro referia-
-se a um país que já havia passado pelo processo de branqueamento populacional,
portanto, um país que ampliou o sistema representativo e possibilitou a participação
de todos. Dessa perspectiva, Romero via-se como um agente essencial no processo
histórico, como um interventor dentro da sociedade (MARTINS, 2008, p. 127).
quanto a matéria da sociologia, o que não impediu que o espírito humano instaurasse
sobre cada um deles uma ciência especial, que se divide em numerosas ramificações,
esquadrinhando a realidade por todas as faces e investigando milhares de problemas.
2. Pelo que toca ao segundo motivo alegado, a sociolatria e a adoração da ciência pe-
los positivistas comteanos, é possível replicar que nem todos partilham da concepção
de sectários como Clotilde de Vaux, seu Sacro Colégio, seu Grande Sacerdote, sua
Trindade de Grande Ser, Grande Meio e Grande Feitiço. 3. Depois, não é verdade que
o conhecimento de um objeto exclua, ipso facto, o respeito, a admiração, o espanto
até, por esse objeto. A ciência já ia adiantada em diversas direções e o homem era
ainda um politeísta, que divinizava aspectos vários da Natureza.
Mais uma vez o auditório alvo do discurso de Sílvio Romero são os círculos
letrados, homens de Estado e todos aqueles que pudessem ter alguma influência na
esfera pública. Isto é perceptível no próprio enfoque do texto.
Romero ressalta que o debate sobre o caráter científico da sociologia assenta-se
num paralogismo: a falta de definição do termo ciência, ou as diferentes definições
desse termo de cada lado dos arguentes. Depois de apresentar as diversas acepções
de ciência, Sílvio conclui que o método da sociologia é o mesmo de todas as ciências
(ROMERO, 1969, p. 553).
A obra de Sílvio Romero é contraditória e foi criticada por muitos. Porém, essa
extraordinária e perturbadora heterodoxia também se mostrou extremamente fecun-
da, pois, ao mesmo tempo em que defendia o cientificismo e a sociologia, sua obra
repousa sobre fundamentos românticos. Ao observar o povo e vê-lo como mestiço,
ele se impôs restrições às oposições da mestiçagem, que para ele simbolizavam a
singularidade histórica do Brasil. Romero defendia esta brasilidade como algo úni-
co, que distinguia este país dos demais.
Sílvio Romero também foi lido e citado por Mário de Andrade. Assim como
Casa-Grande e Senzala, Macunaíma é um pilar na construção do que seria o Brasil
moderno. Os três nexos principais são semelhantes àqueles percebidos em Gilberto
Freyre. O primeiro, de uma perspectiva antropológica, é falar de um Brasil mestiço,
herdeiro das três raças. O segundo é ter sido Romero um dos primeiros brasileiros
da elite intelectual a defender e realizar estudos sobre cultura popular, o que Mário
de Andrade viria a fazer mais tarde de modo mais profundo. Finalmente, ambos os
autores enxergaram nesse popular a própria nacionalidade, unidos por uma sensi-
bilidade nacionalista: assim como Sílvio Romero, Mário de Andrade relacionou o
popular à nacionalidade.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 69
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Rui Barbosa NO ADVENTO
DA REPÚBLICA –
retórica em defesa dos ideais federalistas
1947, Tomo I, p. XXIII), como figura bem presente em seus caminhos. Não por
acaso, Rui também se tornará político (igualmente deputado provincial e, depois,
deputado geral), jornalista, orador renomado e, sobretudo, democrata liberal que
luta por maior autonomia nas províncias.
Consequentemente, João José Barbosa é a primeira influência na formação do
pensamento ruiano. Ele marca indelevelmente a tomada de futuras posições éticas
de seu filho e a personalidade deste, uma vez que, por meio de suas conversas e de
sua autoridade de pai, cria junto ao autor um padrão de comunicação baseado no
respeito e na admiração, que irá produzir a realidade que este passa a conhecer e a
ter como verdade. Dessa maneira, é isto que faz sentido para Rui Barbosa: a crença
na monarquia como possível forma de governo, desde que ela seja do tipo parlamen-
tar e haja submissão plena à Constituição e à liberdade dos cidadãos. Entretanto, ao
mesmo tempo, Rui não se apega às formas de governo, importando-se, sim, com a
garantia das liberdades e direitos individuais, no mais típico estilo constitucionalista
inglês, com o qual teve contato também sob as orientações paternas.
Em março de 1866, Rui Barbosa matricula-se na Faculdade de Direito do Re-
cife, morando inicialmente no mosteiro de São Bento, Olinda, e depois, no Recife,
na pensão do irlandês Guilherme Martim Purcell (FUNDAÇÃO CASA DE Rui
Barbosa, 1999, p. 27). Ainda calouro, ele participa da Associação Acadêmica
Abolicionista, fundada por Castro Alves, amigo de infância desde os tempos de
estudo no Ginásio Baiano, renomado colégio particular de sua província natal. Ape-
sar da curta estada em Recife, Rui é grandemente influenciado nesse período. Isso
porque, ele entra em contato com os ideais da luta contra a manutenção da mão
de obra escrava no País, a qual será uma de suas pautas nos artigos publicados no
Diário de Notícias. Destarte, a produção de relatos acerca da inadmissibilidade do
trabalho escravo transforma a necessidade de emancipação do elemento servil numa
convicção pessoal para Rui. É, pois, mais uma das escolhas éticas que permearão
toda sua produção intelectual.
Em novembro de 1867, após ser aprovado com uma nota regular em seu se-
gundo ano de faculdade, Rui fica desgostoso e pede transferência para a Faculdade
de Direito de São Paulo (FUNDAÇÃO CASA DE Rui Barbosa, 1999, p. 29).
Em 1868, começa a cursar o terceiro ano e ingressa no Ateneu Paulistano, institui-
ção acadêmica, presidida por Joaquim Nabuco (e, mais tarde, por ele próprio), de
incentivo à arte e também interessada em questões políticas. Ademais, Rui foi eleito
redator-chefe da Imprensa Acadêmica, jornal político-literário da Faculdade de São
Paulo, além de escrever artigos para os jornais A Independência e O Ipiranga. Em
1869, ele passa a frequentar as reuniões do Clube Radical, agremiação de orienta-
ção liberal, e propõe a criação do jornal Radical Paulistano, cujo redator será ele
mesmo, no qual publicará seu primeiro artigo abolicionista. Em 1870, por motivos
de doença, o autor recebe antecipadamente o grau de Bacharel em Direito pela Fa-
culdade de São Paulo e retorna à Bahia para tratar-se.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 79
Diante desse panorama social do final do Brasil imperial, fica fácil perceber,
ainda no nível material da retórica, o encontro dos dois planos existenciais mencio-
nados acima: o de Rui Barbosa na construção de todas as suas “pré-compreensões”
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 81
18 Expressão que caracteriza o estilo único de parlamentarismo instaurado no Brasil, qual seja: um sistema parlamentar,
mas, ao mesmo tempo, governado de forma unitária e determinada pelo poder moderador (HOLANDA, 1972, p. 10-13).
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material) de que tais requisitos seriam impossíveis de se atingir por serem demasia-
damente inacessíveis à política nacional é suavizada pela negação do “demais” em
“não será de mais”. Dessa forma, além de aproximar-se do público ao mostrar que
a via solucionadora seria difícil, mas factível, o autor exalta sutilmente seu caráter,
na medida em que ele estaria disposto a trilhar tais caminhos. Por outro lado, o uso
de metáforas como “abrir válvula à verdade”, “soerguer o pêso dêsse véu” permite
ainda ao autor parecer concretizar conceitos abstratos, criando na mente do público
uma imagem palpável e, por isso, mais facilmente assimilada e memorizada.
Concomitantemente à franca associação entre o jornalismo ruiano e a avalia-
ção minuciosa e livre dos acontecimentos políticos do Brasil, o autor utilizou ainda
essa estratégia atrativa de outras duas formas indiretas. Julga-se serem indiretas
essas formas de aproveitamento do argumento, porque o objetivo primordial de
Rui Barbosa não era mostrar a essência do seu trabalho jornalístico, na tentativa
de criar um vínculo estável com o público. Ele objetivou primeiramente mostrar a
importância de uma imprensa engajada e ética para o desenvolvimento de uma Na-
ção livre. Explorando a ideia do dever geral de informar que caberia aos jornalistas
mesmo diante de ameaças e perseguições políticas, Rui Barbosa criou uma metoní-
mia, na qual o seu jornal Diário de Notícias, espécie de um gênero abrangente, era
tomado como se fosse o todo “imprensa de qualidade”. Consequentemente, o autor
vincula sutilmente o seu jornal à imagem de um jornalismo com credibilidade, que
contribuía para o enriquecimento do debate político nacional e, consequentemente,
também para a democracia e para o desenvolvimento do País. Mais do que isso, no
inconsciente dos leitores, o Diário de Notícias tornava-se o único modelo de “boa
imprensa”, uma vez que era a espécie tornada gênero. A funcionalidade dessa estra-
tégia caracteriza-se, pois, na possibilidade de ressaltar o aspecto da coisa (do jornal,
neste caso) que interessa ao autor (REBOUL, 2004, p. 121-122). Foi essa conden-
sação da “coisa geral”, em seu aspecto positivo associado à “coisa específica”, que
gerou uma estreita relação de confiança com os leitores, reforçada em vários artigos.
Aumentava-se, então, a receptibilidade das teses difundidas no Diário diante do
apreço despertado no público. Ao tratar, por exemplo, em diversos artigos sobre
a importância da garantia do direito de reunião, que era cerceado pelo governo, o
autor assim se manifesta:
Eis aí por que não levantaremos mão do assunto, por mais que se abespinhe o
govêrno. Acreditamos que o jornalista tem responsabilidades, das quais se deve
desempenhar ao menos por amor de sua consciência, que as questões de princí-
pio primam a tudo, e que a nação, que se não quiser mostrar talhada para arrasta
a opressão coroada, há-se reagir, antes que os almocreves do paço lhe acabem
de ajustar a canga, os canzis e a brocha (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 81);
Quando tomamos voluntariamente aos ombros a cruz da imprensa, fizemos
voto religioso de não titubear ante receios de risco, porque, a nosso ver, essa
é a origem íntima de todos os vícios da nossa sociedade e da nossa política
(BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 130).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 85
Por outro lado, ao rebater críticas sobre sua atuação à frente do Diário de No-
tícias, Rui Barbosa novamente aplicou indiretamente a mencionada estratégia. Cen-
surado por não possuir uniformidade de pensamento, uma vez que, apesar de monar-
quista, criticava acidamente o Império e propunha várias reformas que implicariam
uma redução do poder monárquico, o autor era acusado de defender apenas suas con-
veniências pessoais. Diante disso, ao apresentar-se como um jornalista diferenciado,
tentava “provar” sua “pura” vinculação aos princípios advogados em seus artigos.
Defendendo-se de tal sorte de acusações formuladas pelo jornal Gazeta de Notícias,
assim escreveu Rui no artigo intitulado Nossos Ídolos, de 7 de abril de 1989:
Prestando êste serviço, cumprindo êste dever, bem néscio seria o Diário de
Notícias, se pensasse em bem merecer da instituição, que êle adverte. Bus-
cando abrir os olhos ao trono, não é a êste, mas à nação, que nos devotamos,
não por vermos na monarquia uma forma superior à república, ou supormos
o Brasil inadaptável a esta, mas porque as transições não se operam sem aba-
lo, e para a liberdade a evolução nos pareceria mais salutar que a revolução
(BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 74).
Nesses três trechos percebe-se o uso de certas figuras de linguagem ser deter-
minante para conferir força especial ao argumento apresentado. No primeiro exceto
utiliza-se um polissíndeto, figura de sintaxe na qual o conectivo coordenativo é
repetido por diversas vezes numa cadeia de palavras ou de orações (AZEREDO,
2008, p. 492). O conectivo “quanto mais” é, assim, mencionado por três vezes,
criando-se uma repetição, a qual confere destaque a determinados termos. Esses
termos da sequência são, não por acaso, os adjetivos desabonadores da conduta
administrativa da Coroa, os quais por meio dessa ferramenta estilística ficam mais
facilmente gravados na memória do leitor. Além disso, é fornecido à mensagem um
sentido suplementar de dinamismo e de esforço, como se a monarquia brasileira
esmerasse-se em ser tortuosa. No mais, as ironias empregadas, presentes em termos
como “piedade”, “augustos lábios”, “ao menos, salvem”, “despi-lo no meio da rua”,
atingem o objetivo de evidenciar a situação deplorável do Imperador, a qual era
ridiculamente mal encoberta pelos seus conselheiros. Essa figura de linguagem, por
possuir ares de humor, “desarma” o público quando da recepção do argumento, pro-
duzindo uma aceitação mais fácil. Explora-se, então, principalmente ao elemento
pathos, uma vez que se tenta controlar os sentimentos da plateia para se conduzir
suas opiniões. No presente caso, forma-se uma imagem decrépita e ridicularizada
do Império, evidenciando-se seu anacronismo.
Sendo indivíduo que inspirava em seu povo piedade e condescendência, e não
respeito, não era mais dom Pedro II capaz de centralizar o poder. Consequente-
mente, ele foi responsabilizado como “causa originária” das tragédias administrati-
vas que se sucediam no País. Assim, quer falasse dos problemas de abastecimento
d’água no Rio de Janeiro, quer criticasse o deslocamento de tropas militares para o
interior do País, quer relatasse as mazelas causadas pela peste e pela falta de sane-
amento da capital do Império, quer apontasse a corrupção dos gabinetes e da corte,
quer destacasse o descumprimento da lei por parte da família real, concluía o autor
88
que esses problemas tinham como única origem a falha do monarca, que era incapaz
de reconhecer a própria incapacidade física. Joguete nas mãos dos ministros e do
chefe do gabinete, a majestade era anulada, o que permitia a esses políticos realiza-
rem livremente operações ilícitas, potencializando-se a corrupção no governo:
Hoje, porém, o chefe de Estado não tem, senão por intervalos, o sentimento
de sua posição. Governa-o a camarilha; governa-o, acima da camarilha,
a princesa imperial; governa-o, ainda, acima desta, o príncipe consorte
(BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 330);
Bastava a posição oficial, que ocupa no exército brasileiro o marechal conde
D’Eu, para evidenciar que o govêrno constitucional, entre nós, é a mais gros-
seira mentira, que a família reinante entende a monarquia segundo as manhas
do regímen colonial (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 213);
Agora, porém, a influência ilegítima da dinastia deixou de ser uma: é
múltipla, é trina. À ação do imperador, quase extinta, revelada unicamente
nos intervalos de luz crepuscular, em que a vida intelectual e o interesse
político lhe despertam adormentados, vieram sobrepor-se a intervenção
imperativa da herdeira presuntiva e as pretensões imperatórias do príncipe
consorte (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 208).
Sob uma perspectiva analítica, a ironia presente nesse trecho moldava na so-
ciedade um sentimento de desprezo, repugnância e deboche para com o Império.
Usando-se do sarcasmo ínsito a essa figura, o autor associa ao grito de guerra da
Guarda Negra, “à rainha!”, as imagens de falta de compaixão, ódio e violência.
Revela-se, então, a funcionalidade da ferramenta estilística, posto que o ridículo
ressalta a incompatibilidade entre os dois termos aproximados (REBOUL, 2004,
p. 132-133), entre, subliminarmente, a conduta cruel estimulada pelo monarca e o
teórico dever deste de proteção do seu povo. Evidencia-se mais uma vez então a in-
competência administrativa, a falta de probidade e o descaso para com a população.
Demonstrada a inexistência de qualquer dever moral de fidelidade dos negros
para com a Coroa e as consequências maléficas da luta fratricida, propõe-se a união
da sociedade. Rui Barbosa demonstra que a Coroa era o inimigo comum a ambas as
raças, não devendo mais haver o ódio entre elas. O legado de violência e desrespeito
chegara ao fim com a abolição. Brancos e negros tinham que se unir, não devendo
estes passaram de perseguidos a perseguidores. Assim:
Por toda a parte onde germinou a ideias da instituição batizada com êste nome
por Lafayette, a experiência não tardou em lhe mostrar a feição romanesca,
impolítica, suspeita ora à ordem do Estado, ora às garantias do povo. O seu
descrédito é irremediável, em todos os países que a ensaiaram (BARBOSA,
1947, Tomo V, p. 117);
Máquina militar contra a liberdade de eleição, máquina administrativa contra
o civilismo do exército: tal se figura hoje a guarda nacional aos que acabam
de desenterrá-la. Eis as segundas tenções desse plano, cuja inépcia boas de-
cepções reserva à fútil esperteza dos seus autores. O exército fraternizou com
o povo na agitação vitoriosa contra o cativeiro dos negros. Teme-se agora a
perpetuação dos laços dessa aliança na propaganda pela liberdade dos bran-
cos (BARBOSA, 1947, Tomo V, p. 136);
Ora, as graduações de postos, na guarda nacional, entre nós, outra coisa não são
que uma subnobreza fácil e barata, um sistema de dignidades honoríficas, posto
ao alcance de todas as condições, de todas as profissões, de todas as fortunas.
[...] A guarda nacional adaptando-se a todas as classes e penetrando onde não
pode chegar o preço relativamente dispendioso da nossa aristocracia, vulgariza
esse tributo sobre a vaidade, explorando-a, porém, a benefício dos interesses
ministeriais. Os resultados dessa sedução liberalizada a todos os graus da escala
social são incalculáveis; [...] (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 88).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 93
Aquêle que se atrever ao arrôjo de ter uma opinião, de aspirar para a sua pátria
uma reforma, de encarnar os seus sentimentos políticos num candidato oposi-
cionista, pagará em tresdôbro a aventura nefasta. [...]. Abaixe-se, e estará se-
guro. Avilte-se, e será recompensado. Prostitua-se, e medrará. É um regímen,
em que o valor oficial dos homens cresce na razão inversa do seu valor moral
(BARBOSA, 1947, Tomo IV, p. 233).
Nesse primeiro trecho citado é possível perceber outro silogismo retórico (en-
timema), que irá forjar o conteúdo do debate. Como típico silogismo incompleto
(ADEODATO, 2006, p. 293-315), esse argumento é desprovido de sua primeira
premissa, qual seja, “o agir com cordura é prova da tendência disciplinar de uma
classe”. Por meio dessa omissão e da apresentação inicial da conclusão, Rui Barbosa
reforça a ideia de que o exército era instituição nobre e honrada, vítima das diversas
injustiças de um governo arbitrário. A consideração da premissa como autoexplica-
tiva estimula, portanto, o imaginário dos leitores, especialmente dos militares, que,
indignados, percebiam a “real necessidade” de se rebelarem. Omitindo-se a senten-
ça desnecessária para a compreensão da mensagem, o sentido não é prejudicado,
mas, ao contrário, favorecido. Isso porque essa esfera de silêncio não é percebida
pelo auditório (o conteúdo “evidente” é tido também por eles como prescindível) e
é muito funcional, uma vez que elimina o inconveniente de tornar explícitas todas
as construções linguísticas (SOBOTA, 1996, p. 251-273). Tal inconveniente carac-
teriza-se no fato de tornar o texto mais extenso e, portanto, mais monótono. Além
disso, a explicitação da primeira premissa evidenciaria a fragilidade do argumento,
posto que a cordura não é necessariamente a “prova”, pelo menos não a única, de
um comportamento obediente, disciplinado.
Desarticulado o apoio dos militares à monarquia, Rui Barbosa conseguiu aba-
lar o último pilar de sustentação da Coroa e, além disso, estabelecer uma força
armada para a revolução federalista. Estava, portanto, encerrada a estratégia deses-
truturante. Acabadas as crenças na importância do poder central, na necessidade
de fidelidade dos libertos para com o trono e na naturalidade das arbitrariedades
cometidas contra os militares, faltava somente prescrever a solução para a carência
nacional de legalidade, legitimidade e liberdade.
Tudo tem sido resistência; e de tal resistência, pela reação das aspirações
comprimidas, nasceu a abolição, nasceu a preamar republicana, a revolução
que cresce para nós. Como falar em moderação, em prudência gradativa, se
a urgência, pelo contrário, está em acelerar, em abrir de par em par as janelas
ao ar livre, em franquear o mais amplo escoadoiro às águas acumuladas na
represa? (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 223);
O preceito que subordina a adoção das reformas à preexistência de costumes,
que só elas poderiam criar, foi sempre, desde que o mundo é mundo, a cavi-
lação com que todos os retrógrados se opuseram a tôda as conquistas do pro-
gresso governativo. A prevalecer essa velha e capciosa coarctada, as nações
seriam a mais lenta espécie de tardígrados. Não teríamos saído, sequer, do
regímen colonial; porque nêle não adquiríramos as disposições morais, que
formam os povos para o govêrno representativo. [...] Desenganemo-nos de
que não há outro meio de praticar bem as instituições livres, senão adestrar-se
nelas, praticando-as mal (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 191);
As revelações sucessivas dos partidos atirados à oposição pelo arbítrio impe-
rial, a absorção progressiva da autoridade ministerial no elemento pessoal do
poder moderador, a ingerência inconstitucional da coroa em tôdas as esferas
da vida governativa, a corrupção exercida pelo trono sobre o caráter dos es-
tadistas, a tenacidade singular das alianças, a ação contínua dos déficits, que
enfraquecem a confiança popular na capacidade reparadora das instituições,
operavam, havia longo tempo, um trabalho de demolição revolucionária nos
sentimentos populares. [...] Considerar, porém, desnaturada, inquinada, poluí-
da a opinião republicana, só porque recebeu no seio as águas desse confluente
útil, é risível. Não descobrindo outra mácula que irrogar a essa agitação, seus
inimigos o que fazem, é confessar a própria impotência e a seriedade daquele
movimento. Pois há partido algum nesse mundo, haveria aí alguma ideias na
mais pura região das ideias, que, em sacrifício a frases como essas, recusasse
alianças ativas, deliberadas e tenazes? [...] Por terem possuído escravos, os fa-
zendeiros não ficaram sendo réus. Seu êrro já não pode existir, nem sequer na
memória dos abolicionistas (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 136, 139 e 141).
Essa descentralização produziria uma cascata de poder, que fluiria do poder central
da união, para os poderes descentralizados das províncias. É o modelo federalista
centrífugo, por meio do qual as competências da União são claramente fixadas na
constituição e os Estados membros seriam dotados de competência material rema-
nescente (BARBOSA, 1947, Tomo VIII, p. 193-198). Quanto à descentralização:
Objeções congruentes contra ela, não as vemos senão entre os inimigos da des-
centralização administrativa; porque a federação é a mais ampla fórmula desta.
[...] A centralização política é tão essencial nas repúblicas, quanto nas monar-
quias; e precisamente por não contrariá-la, é que a forma federativa se acomoda
indiferentemente a umas e a outras. Erra parlamente o pressuposto, com que en-
tre nós se tem argumentado, de que centralização política e regímen federal são
têrmos incompossíveis. Tal antinomia não existe. Pelo contrário: tão adaptáveis
são entre si essas duas ideias, que a mais perfeita de todas as federações antigas
e modernas, a mais sólida, a mais livre e a mais forte, os Estados Unidos, é, ao
mesmo tempo, o tipo de centralização política levada ao seu mais alto grau de
intensidade (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 178).
competência residual, o que significa que poderiam agir livremente, desde que não
se imiscuíssem no plexo de atribuições da União. Aos municípios, apesar de não
terem sido eles tratados como entes federativos, foi teoricamente garantida plena
autonomia administrativa no que dissesse respeito aos assuntos locais, conforme
previsão do artigo 68. Assim como o poder Executivo, os poderes Legislativo e
Judiciário foram divididos em duas esferas de competência, sendo o Supremo
Tribunal Federal, o órgão neutro responsável pelo julgamento de quaisquer disputas
entre a Federação e os Estados-membros. Por fim, a nova Constituição também
garantiu textualmente a igualdade de todos os brasileiros perante a lei e uma série
de outros direitos individuais típicos do liberalismo.
Dessa maneira, percebe-se que Rui Barbosa saiu vitorioso em sua empreitada
federalista, liberal e democrática. O autor conseguiu, pois, positivar suas convicções
pessoais não somente por ter participado da constituinte, mas também, e principal-
mente, por ter atuado publicamente durante longo período em defesa dos direitos
civis, dos ideais liberalistas e, especialmente a partir de 1880, do federalismo (FUN-
DAÇÃO CASA DE Rui Barbosa, 1999, p. 41-84). Os artigos publicados no Di-
ário de Notícias coroam seu agir estratégico, reunindo as principais críticas contra
as insuficiências do modelo político-administrativo então vigente e aglutinando a
luta federalista e antimonárquica. Rui Barbosa marca, portanto, a queda do império.
Saliente-se, porém, que aqui não se ignora o fato de o autor estar temporalmente
localizado em momento propício da história do Brasil. Conforme destacado na
literatura especializada (DOLHNIKOFF, 2005, p. 81-154 e passim), o País já
experimentava um contato com o federalismo desde 1831. A abdicação de dom
Pedro I configurava momento favorável para uma revisão do projeto político, dando-
se continuidade ao processo de construção do Estado nacional. As elites provinciais
de então, por estarem desconectadas da elite política responsável pela tomada de
decisões no Brasil, desejavam instituir mudanças na estrutura de governo, que lhes
permitissem uma maior participação no processo decisório. Essa alteração se deu
justamente pela implementação de reformas “federalizantes”. De fato, o grupo liberal,
que saiu vitorioso em 1831, conseguiu positivar certa autonomia para as províncias,
as quais passavam a ter Poder Legislativo próprio, liberdade para gestão de obras
públicas e para criação de empregos provinciais, autonomia tributária e força policial
própria (DOLHNIKOFF, 2005, p. 155-221). Eram as reformas do Ato Adicional
de 1834. Fortalecidas, por meio desse “avanço federalista”, as elites provinciais se
aproximaram do jogo político nacional, tornando-se mais influentes e mais capazes de
impor seus interesses. É exatamente essa ampliação de poderes que, ao final do século
XIX, contribuirá como apoio político fortalecedor da luta federalista.
Esse processo político do começo do século XIX, entretanto, não retira a ori-
ginalidade da campanha federalista ruiana. Primeiramente porque, dentro de uma
perspectiva filosófica retórica (ADEODATO, 2005, p. 213-240; ADEODATO,
2006, p. 277-291; ADEODATO, 2009, p. 15-45, 73-94), a construção da realidade
em que se vive se dá por meio da convenção entre os seres humanos que interagem
socialmente. Desprovidos de aparato cognitivo que os permita descrever o mundo
104
como ele é, os homens criam retoricamente o seu mundo. Entretanto, esse processo
criativo, que inclui também as modificações da “realidade” como no caso de Rui
Barbosa, não é independente da existência do outro, dos processos criativos dos de-
mais sujeitos. Há uma objetividade convencional. Dessa maneira, Rui Barbosa não
seria capaz de alterar a retórica material do Brasil do século XIX se não houvesse
um grupo organizado que também compartilhassem de suas ideias. Sem esse “eco
social”, ele não seria considerado inovador ou político sábio, mas sim louco, já que
sua percepção dos “fatos” destoaria da objetividade, representada pelas percepções
de todo o restante da sociedade.
Por outro lado, sob uma perspectiva histórica, o “avanço federalista” da dé-
cada de 30 do século XIX, implantou um federalismo incipiente, sem bases dou-
trinárias sólidas, voltado mais para o atendimento de necessidades práticas que se
faziam imediatas. De fato, concomitantemente às demandas das elites provinciais
por poder e por autonomia econômica, o Brasil passava por um processo de for-
mação do Estado independente, o que impregnava a linguagem comum da crença
na importância da unidade administrativa entre as províncias como forma de evi-
tar a fragmentação política. Dessa maneira, expressando-se de maneira acanhada e
sem qualquer base teórica federalista que se adaptasse às necessidades nacionais, o
legislador não determinou precisamente a separação de competências ente as pro-
víncias e o governo central, apesar do ensaio realizado nos artigos 10º e 11 do Ato
Adicional (BRASIL, 1834).
Foi justamente a dúvida acerca das competências que gerou a necessidade
de uma interpretação do Ato Adicional, como maneira de impedir a usurpação de
atribuições. Essa necessidade se manifestou inicialmente em 1840, dando origem
à Lei de Interpretação do Ato Adicional (Lei nº 105/1840), a qual tratou especial-
mente de questões relativas ao Poder Judiciário (BRASIL, 1840, arts. 1º - 8º). Em
1861 tentou-se reinterpretar a reforma constitucional de 1834, mas o projeto de lei
não foi adiante (DOLHNIKOFF, 2005, p. 233). O centro da polêmica girava em
torno de questões como a responsabilidade pelo pagamento de aposentadorias, o
recrutamento forçado da força policial e os impostos de exportação e de importação
(DOLHNIKOFF, 2005, p. 223-242). Era preciso, ainda, um amadurecimento teóri-
co do projeto federalista para que se definisse onde começavam e onde terminavam
as atribuições de cada governo.
Além dessas questões, a experiência federal de 1834 enfrentou outros
problemas estruturais. Na seara fiscal, as províncias passaram, diante da autonomia
tributária adquirida, a arcar sozinhas com seus gastos administrativos. Sendo,
porém, as receitas provinciais, diante da inadequada divisão de competência
tributária, inferiores às despesas, elas precisavam apelar para o governo central,
que possuía um sistema para suprir verbas, desde que necessidade de cobertura do
déficit fosse justificada pelos governos provinciais (HOLANDA, 2010, p. 169-175).
Ora, as províncias tornavam-se, apesar da legalmente consagrada independência,
financeiramente dependentes do governo central, o que enfraquecia bastante sua
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 105
19 Especificamente com relação à questão tributária, parte da doutrina discorda desse ponto de vista. Defende-se que a
autonomia tributária das províncias foi sim efetiva e representativa, capaz de fortalecer o sistema federal proposto pelo
Ato Adicional e de promover o desenvolvimento de algumas províncias (as mais ricas) (DOLHNIKOFF, 2005, p. 155-221).
106
Por fim, o autor sempre defendeu uma estrutura de governo que fosse atrelada
à defesa dos direitos civis, de típico viés liberalista. Admirador dos sistemas
democráticos inglês e norte-americano, Rui Barbosa tentava inserir a democracia
no Brasil, destacando os debates, como forma de esclarecimento e informação do
povo, e o respeito à Constituição e às garantias individuais como pressupostos de
modernização as nação. Esse projeto político não repudiava obviamente as elites,
tendo-as em verdade percebido como aliadas para concretização das reformas,
mas também não ignorava a importância do fortalecimento da sociedade, da
conscientização política do povo e, sobretudo, da ativa participação deste, que
conferia legitimidade ao governo. Essa consciência democrática foi mais pragmática
e fervorosamente defendida por Rui Barbosa quando da Campanha Civilista, mas
esteve sempre presente em seus escritos. Ora, a experiência descentralizadora
vivenciada no Brasil no início do século XIX não tinha nenhum compromisso
com a democratização nacional nem tampouco com uma reforma social, que
inserisse o Brasil no nível europeu de modernidade. Objetivava-se tão somente
garantir às elites provinciais participação política nas decisões do governo central e
independência administrativa para desenvolverem-se de maneira mais adequada às
suas necessidades (DOLHNIKOFF, 2005, p. 23-34). Consequentemente, também
fica clara nesse sentido a vanguarda política do federalismo de Rui Barbosa, que,
apesar de favorecido pelo curso da história nacional, foi capaz de criar elementos
novos que o diferenciavam de outras propostas descentralizadoras. Daí a importância
e a originalidade em território nacional da teoria ruiana.
Como arte que se ocupa com as palavras e com a persuasão (PLATON, 2004,
p. 16-17, 450 “b” e “c”), a retórica é guiada pelos critérios agonísticos da eficácia
e da funcionalidade, de modo que, ao buscar o êxito, o orador precisa propria-
mente inventar seus temas e conceitos, forjar sua argumentação, criando o conte-
údo de sua mensagem de forma atrativa, convincente e inovadora (EMANUELE;
PLEBE, 1992, p. 1-34). É o nível retórico estratégico que se relaciona da melhor
maneira com a agonística ínsita à retórica. Essa necessidade de criar uma estraté-
gia, de desenvolver uma metodologia para vencer o debate foi logo percebida por
Rui Barbosa, o que o tornou capaz de conferir visibilidade social a sua retórica
material. Essa visibilidade transformou-se em crença, a qual permitiu ao controle
público da linguagem, feito pela sociedade, filtrar a teoria federalista ruiana do
ambiente da retórica material, alçando-a à posição de linguagem de comando, isto
é, ao ao ambiente da retórica estratégica. Esse processo de filtragem se deu princi-
palmente por meio da astúcia do autor, que soube dissimular as estratégias de seu
discurso, transformando opiniões pessoais e meras “regularidades” (SOBOTA,
1996, p. 251-273) em regras, em “verdades”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 107
Conclui-se, então, que Rui Barbosa foi capaz de expressar-se de modo inde-
pendente e individual, variando livremente o federalismo norte-americano eleito
como modelo, mas não transformado em fonte de pura repetição acrítica. É justa-
mente essa livre interpretação do federalismo estadunidense que confere origina-
lidade ao federalismo ruiano. Rui Barbosa torna-se, portanto, marco fundamental
na história das ideias jurídico-políticas do Brasil, demonstrando que pensadores
brasileiros também foram capazes de criar e inovar sobre bases teóricas já fundadas.
110
REFERÊNCIAS
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar qual a função do direito à
tolerância numa sociedade multicultural. Para tanto, buscou identificar, por
meio da filosofia retórica realista, a correlação entre a perspectiva ontológica
e os ideais de individualismo e uniformização, consolidados pelo capitalismo
contemporâneo, no intuito de notar a importância do multiculturalismo para
consolidação de um espaço de respeito e de coexistência na conjuntura da
diversidade ética e étnica. Pondera a relação entre o direito e a moral e a
tolerância e o reconhecimento.
Palavras-chave: Multiculturalismo. Direito à tolerância. Filosofia retórica.
Capitalismo e globalização. Política de reconhecimento.
Abstract: This paper has as a goal to analyze which is the function of the
right to tolerance in a multicultural society. For so, it seeks to identify,
through the realistic rhetorical philosophy, the correlation between the
ontological perspective and the ideals of individualism and standardization,
consolidated by contemporary capitalism, in order to notice the importance
of multiculturalism for the construction of an environment of respect and
coexistence in the conjuncture of ethic and ethnic diversity. It ponders the
relation between law and moral and tolerance and acknowledgement.
Keywords: Multiculturalism. Right to tolerance. Rhetorical philosophy.
Capitalism and globalization. Acknowledgement politics.
Sumário: Introdução: a consolidação de um panorama multiculturalista
a partir da desconstrução de um ideário ético consolidado pela perspectiva
ontológica. 1. Bases filosóficas da perspectiva retórica no direito. 2. A
dicotomia ontológica do estado moderno capitalista como forma de dominação
e homogeneização com exclusão dos diferentes. 3. A universalização de certos
conteúdos éticos como instrumento ideológico para legitimação de quaisquer
escolhas éticas. 4. O multiculturalismo como estratégia de preservação das
diversas formas de manifestação cultural e respeito para com o outro. 5.
Considerações finais: o direito à tolerância e o respeito para com o outro
como forma de preservação do multiculturalismo e efetivação de um estado
democrático de direito pluralista. Referências.
114
As culturas são relativas; não há cultura, nem elemento dela, que tenha caráter
absoluto, que seja, em si e por si, a perfeição. Será certa e boa para a socie-
dade que a vivencia e à medida que nela se realiza e em que a exprime. [...]
As culturas são variantes, alternativas, distintos modos como o verbo “ser
homem” é conjugado na sincronia do espaço e na diacronia da história. Como
a forma verbal do indicativo não é mais certa ou errada que a do subjuntivo,
nem o nominativo mais correto que o acusativo: tudo depende da construção
da frase. O mesmo ocorre com as culturas e com seus elementos. Essa aproxi-
mação entre culturas e linguagem não é da ordem da metáfora; seria, antes, da
ordem da metonímia, pois estão em relação de todo e parte. Não são apenas as
palavras que são signos, mas, como Mauss tinha genialmente antecipado, é a
totalidade dos elementos culturais que pertencem à esfera do signo e que deve
ser estudada por uma semiótica. (MENESES, 2000, p. 249)
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 115
O diálogo não deve ser tomado como veneno, mas como antídoto para pro-
porcionar um bem-estar aos homens. Por isso dialética e retórica não se con-
fundem, ou ao menos não devem se confundir. Dialética está em consonância
estreita a se integrar à ideia do Bem, enquanto que a retórica, ao contrário,
não tem compromisso com a ideia de justiça, de bem ou outros valores que
são necessários para a formação do bom cidadão, e, quem a pratica de forma
abusiva “ainda não se elevou ao verdadeiro conhecimento”.
O que torna um homem “sofista” não é a sua faculdade, mas seu propósito
moral. Entretanto, na retórica, o termo “retórico” pode descrever ou o saber
da arte do orador ou seu propósito moral. Na dialética é diferente. Um homem
é “sofista” porque tem determinado tipo de propósito moral; com relação ao
“dialético”, não é o seu propósito moral, mas sua faculdade. (ARISTÓTE-
LES, 2007, p. 22 e 23)
Cumpre ainda destacar que, para a perspectiva retórica, o homem é visto como
um ser “pobre ou carente”, enquanto para a ontologia é identificado como “rico ou
pleno” (ADEODATO, 2007, p. 309), portanto,
O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: [...] a
industrialização que cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, ace-
lerando o próprio ritmo de vida;o rápido e muitas vezes catastrófico cres-
cimento urbano; os sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu
desenvolvimento; [...] enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e ins-
tituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em per-
manente expansão. (BERMAN, 1986, p. 16)
20 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 5. Ao definir alienação,
afirma: “no sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade
se tornam (ou permanecem) alheios, estranho, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à
atividade ela mesma), e/ou à natureza na qual vivem, e/ou a outros seres humanos, e também a si mesmos”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 121
Diante desse contexto, o tão almejado avanço das nações sempre foi confron-
tado com protótipos europeus e a ideologia capitalista pautada na lógica etnocên-
trica e uniformizadora era a grande responsável por, inicialmente, negar a cultura
originária de determinado povo, desumanizar através do trabalho e, por fim, unifor-
mizar as diferenças, conforme melhor explanado no tópico seguinte.
122
[...] o Estado Moderno, surgiu na Europa com a Idade Média, sobre as ruínas
do feudalismo.
Teve por base o desenvolvimento da economia mercantil e a libertação das
sociedades civis do domínio temporal da igreja e assentou na concentração
do poder nas mãos do príncipe e no despertar da consciência nacional, que
permitiu encontrar um fundamento e um fim despersonalizados para o poder.
(CAETANO, 1996, p. 122)
21 Op. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2009.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 123
existe una conexión conceptualmente necesaria entre derecho y moral y [...] hay
razones normativas que hablan en favor de una inclusión de elementos Morales
en el concepto de derecho que, en parte, refuerzan la conexión conceptualmente
necesaria y, en parte, van más allá de ella; dicho brevemente: existen conexiones
conceptual y normativamente necesarias entre derecho y moral.
De igual modo afirma Kelsen que o Direito e a Moral não se diferenciam com
base na produção ou aplicação de suas normas, pois ambas “são criadas pelo costu-
me ou por meio de uma elaboração consciente [...]. Nesse sentido a Moral é, como
o Direito, positiva” (KELSEN, 2006, p. 70).
O que diferencia o Direito da Moral, conclui Kelsen, seria o modo como as
normas prescrevem ou coíbem determinada conduta humana, já que enquanto o
Direito se efetiva por meio de uma ordem de coerção, a Moral não se concretiza por
meio de sanção. Nesse sentido:
Ainda quanto à relação entre o Direito e a Moral, Kelsen observa que “na
medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o
Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito” (2006, P. 67). Portanto,
conclui-se que ao separar o direito da moral o autor possibilita que o direito possa
ser ou não justo, de modo que tanto os direitos fundamentais positivados quanto o
direito nazista sejam considerados direito.
Isso, pois, na perspectiva kelseniana, não há uma única moral válida, razão
pela qual não se pode falar em um ideário de Justiça absoluta.
Nesse diapasão, Kelsen afirma que uma coisa é um determinado ordenamento
jurídico, outra é a valoração a ele atribuída por meio de determinada concepção mo-
ral. De tal constatação é possível observar que não há um juízo de valor absoluto e
que a validade de um ordenamento jurídico independe da sua correspondência com
qualquer preceito Moral, a ver:
126
Todavia, importante destacar que o positivismo não nega que o direito tenha
conteúdo moral, mas sim que o direito tenha um conteúdo moral prévio, a que sem-
pre estaria subordinado. A propósito, acerca da teoria positivista:
o direito tem sempre um conteúdo moral, sim, só que esse conteúdo moral
não se impõe por si mesmo, não é previamente determinado. Existem sem-
pre várias concepções morais em conflito e, nesse confronto ético, algumas
vencem e outras são derrotadas. As vencedoras são as que se positivam ju-
ridicamente e pretendem se impor coercitivamente sobre todas as demais.
(ADEODATO, 2012, p. 395-396)
[...] não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma
Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós cons-
tituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos
nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a
possibilidade de valores opostos.
não existe um sujeito único ou universal, nem tampouco uma ética universal,
pois o conceito de humanidade é fundamentado na identificação de situa-
ções singulares, em uma pluralidade de formas de vida singular e de valores
produzida e acumulada objetivamente ao longo da História, assim, há tantos
sujeitos quantas verdades existirem. (LEISTER, 2013, p. 5)
128
[...] nem o liberalismo, nem o comunitarismo, este num sentido mais restri-
to, conseguiram fornecer uma resposta adequada para o entendimento da di-
mensão do indivíduo, enquanto sujeito de direitos e deveres sociais, marcado
por um senso de pertença ao grupo de que faz parte, mas que transforma e
constrói sua identidade dialogicamente, num dinamismo inigualável, incapaz
de ser reduzido a simples senhor autônomo, livre e igual ou integralmente
submisso à vontade comum de seu grupo, comunidade ou sociedade. (TAVA-
RES, 2005, p. 89-90)
Frente a tanto, para melhor entendermos a teoria multiculturalista e situar sua ori-
gem, faz-se relevante retomar alguns aspectos básicos do liberalismo e do comunitarismo.
O liberalismo, na sua concepção mais branda, tendo como exemplo a teoria de
John Rawls, reconhece a existência de indivíduos ou comunidades, como conjunto
semi-homogêneos, com acepções aproximadas e diferençadas a aspirações de bem
comum que, contudo, se resguardam no âmbito da vida privada e por conta disso,
desde que pautados nos parâmetros da razoabilidade, devem ser protegidos, tendo
em vista que no âmbito público há o consenso da preservação de uma sociedade
democrática (TAVARES, 2005, p. 91).
Por outro lado, o comunitarismo se ateve à crítica à identidade, sustentando que
a sociedade moderna, hodiernamente, pela sua lógica abstrata e homogeneizante, se
afastou das tradições e valores comuns que, para serem recuperados, pressupõem
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 129
os padrões “do que é justo” devem estar fundados na forma de vida e tradi-
ções dos grupos em particular, e de que uma efetiva crítica ou análise social
deverá repousar e refletir sobre os hábitos e tradições da vivência de um povo,
em tempos e lugares específicos. Pois quem abstrai o contexto particular, para
universalizar o procedimento, está fadado à incoerência filosófica e à irrele-
vância política. (TAVARES, 2005, p. 92)
Portanto, enquanto Rawls pretende uma razão universal, por meio da qual o
nível do justo está acima do bom, pois é o nível dos valores universais, os comu-
nitaristas argumentam que tal perspectiva ignora os valores que existem e variam
de comunidade para comunidade, afirmando que não é possível pensar uma teoria
da justiça deixando de lado valores comunitários, pois os conflitos não podem ser
resolvidos da mesma forma em todos os lugares.
A principal colocação do comunitarismo é que princípios universais não podem
orientar instituições políticas, devendo-se analisar os valores comuns de determinada
comunidade. Ou seja, enquanto o liberalismo prega uma “individualidade liberada de
qualquer marco social e cultural de pertença, assim como a igualdade básica entre os
homens [...] com a possibilidade de estabelecer um marco comum de convivência”
(TAVARES, 2005, p. 93), os comunitaristas defendem que o bem comum deve ser o
parâmetro a partir do qual as preferências individuais devem ser avaliadas. Em outras
palavras, para eles o bem comum precede os critérios de justiça.
Em face do exposto, percebe-se que o comunitarismo teceu suas bases em tor-
no de uma concepção de sociedade como “grupo concreto, unido por fortes vínculos
de integração e solidariedade, opondo-se a uma postura de desarticulação social e
atomização, característica da Modernidade” (TAVARES, 2005, p. 94). A comunida-
de é sempre tida como um todo homogêneo, sem se debruçar na pluralidade de fato
que permeia as comunidades reais.
Nesse sentido, cumpre transcrever o questionamento crítico de Julio Seoane
Pinilla (1997, p. 380) acerca da concepção comunitarista, a ver:
Com isso, apesar da teoria comunitária tentar romper com o ideário universa-
lizante do liberalismo, pautado em fundamentos morais e ensaios políticos do oci-
dente, ela ignora que há valores que não são comuns a todos mas que, ainda assim,
merecem ser tutelados.
Daí a importância da tolerância como postura ética para lidar com os conflitos
e do direito dogmaticamente organizado como garantia dessa tolerância, na
medida em que diferencia-se das morais e religiões, esvazia-se de conteú-
do ético prévio e neutraliza os demais sistemas de orientação normativos.
Por isso a tolerância não pode ser um fim em si mesmo e precisa observar
ceticamente as convicções éticas da certeza, mutuamente excludentes. Ela
é um meio para o respeito ao outro, serve aos chamados direitos humanos.
Não necessariamente aos direitos subjetivos construídos pela modernidade
ocidental, de “novas ordens mundiais”, norte-americanas ou não, mas, sobre-
tudo, a direitos no sentido da liberdade de autodeterminação do indivíduo e
da ordem social.
[...] ser negro é recodificado por ser Preto, e isto exige, entre outras coisas,
a recusa em assimilar normas de discurso e de comportamento brancas. E se
alguém numa sociedade racista é Preto, então terá de lidar constantemente
com assaltos à sua dignidade. Nesse contexto, insistir no direito de viver uma
vida digna não será suficiente. Nem sequer será suficiente exigir ser tratado
com igual dignidade apesar de se ser Preto, pois isso irá exigir uma concessão
de que ser Preto conta naturalmente ou até certo ponto contra a nossa digni-
dade. E então acabaremos por pedir para sermos respeitados enquanto negros.
(APPIAH, 1994, p. 177)
Outro ponto a ser ressaltado diz respeito aos limites da intransigência frente
aos intolerantes: até onde deve-se permitir a repressão da intolerância? Ou melhor,
até onde é possível a intervenção naquilo que desaprovamos moralmente?
A posição adotada é a de que a intolerância e a intervenção justificam-se na
medida necessária para permitir uma vida plural democrática, ou seja, a intolerância
deve ser reprimida quando obstaculiza o multiculturalismo.
Marcello Ciotola (2007, p. 438), ao tratar do paradoxo da tolerância22, explica que
“entender que há coisas intoleráveis não significa dar uma prova de intolerância”: acatar
uma tolerância universal “deixaria livres as mãos do que querem suprimi-la. A tolerância
só vale, pois, em certos limites, que são os de sua própria salvaguarda e da preservação
de suas condições de possibilidade” (COMTE-SPONVILLE, 1995, p. 176).
Ao estabelecer os limites da tolerância, Ciotola (2007, p. 439) defende que
o primeiro limite à tolerância consiste em não aceitar aquilo que põe em perigo
a própria tolerância. O segundo limite consiste em não permitir um exercício
das liberdades que seja prejudicial aos outros, e mesmo um defensor extremado
da liberdade individual como John Stuart Mill reconhece esse limite, o que
significa dizer que existe uma fronteira intransponível, que é aquela a partir
da qual o gozo da nossa liberdade representa um dano para os outros. Além da
preservação das condições de seu próprio exercício e da exclusão do dano cau-
sado aos outros, uma terceira justificação dos limites da tolerância refere-se à
necessidade de preservar determinadas condições de existência social comum.
22 O referido autor trata do paradoxo da tolerância como a forma de “explicar que pode ser moralmente válido permitir coisas
que são consideradas moralmente nefastas” (2007, p. 438), não adotamos exatamente tal concepção tendo em vista
que o ponto de partida do presente trabalho é justamente o relativismo moral, não sendo, portanto, aceitável falar em
concepções “moralmente nefastas”, já que cada grupo tem uma concepção moral que deve ser respeitada, justificando-
se a intervenção apenas na medida em que isso dificulta ou impede a convivência plural.
136
REFERÊNCIAS
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Fundação Calouste Gulbenkian.
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da Faculdade de Direito/UCS. Caxias do Sul, v. 17, n. 1, jan./jun. 2007.
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educação: em defesa da diversidade cultural. Revista Diversa, n.1. p. 31-66, jan./
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SOUZA, Jessé (2000). A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema
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cimento. Lisboa: Instituto Piaget.
UNESCO (1997). Declaração de princípios sobre a tolerância, trad. Universida-
de de São Paulo. São Paulo: USP, 1997.
PONTES DE MIRANDA:
a opacidade, o escamoteamento e
a retórica da ressignificação
André Lucas Fernandes
A busca por uma esfera do método leva diretamente a uma viagem ao “espaço-
-tempo passado”. A metáfora alude à Mecânica Quântica, apreciada por Pontes de
Miranda e relacionada, por meio da relatividade, às construções teóricas do jurista
alagoano no seu livro Sistema de Ciência Positiva do Direito. O espaço-tempo pas-
sado é a metáfora que leva em conta a quarta dimensão do tempo e permite retornar,
de forma breve e episódica, ao período de vida do mestre do direito brasileiro e ao
espaço-tempo e sua conjuntura, que circundou sua existência – a noção é de troca,
coerência, mas não de simetria entre esses espaços. A palavra “conjuntura” implica
– como se poderia esperar de sua etimologia, coniungere, associar – um sentido de
conexão entre fenômenos diversos, mas simultâneos” (BURKE, 1997, p. 129).
142
23 O testemunho é do próprio Pontes de Miranda: “Para quem, há mais de sessenta anos, se dedicou à história e prática
do habeas-corpus e há quase meio século, em 1932, lançou livros sobre os direitos humanos, três volumes publicados
(Novos Direito do Homem, Direito à assistência, Direito à Educação) e dois volumes queimados por ordem de alguém do
Governo (Direito à Assistência e Direito ao Ideal) é grande sofrimento, no fim da vida, em vez de ver respeitar-se o que tal
pessoa sustentou antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assistir a um decênio de retorno a mais de cinco
séculos da nossa herança jurídica, política e moral” MIRANDA (1978).
144
A Cadeira de que hoje tomo posse teve como patrono Castro Alves, nascido na
Bahia, foi ocupada por Euclides da Cunha e por Afrânio Peixoto, outro baiano,
e por um mineiro, Afonso Pena Júnior, e de novo pelo baiano Hermes Lima.
Hoje, aqui está um alagoano. Honra-me esta Cadeira por ter escrito, antes da
Declaração dos Direitos Humanos, livros sobre os Direitos do Homem, dos
quais dois foram, como já mencionei, queimados, e a obra Democracia, Liber-
dade e Igualdade, assuntos que já marcaram a Cadeira 7. (MIRANDA, 2012).
Os marcos temporais desse trabalho são os anos de 1911 e de 1979 que corres-
pondem, respectivamente, ao ano de graduação na Faculdade de Direito do Recife
e ano de morte de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Funcionam então como
pontas de uma linha temporal, delimitando o campo de observação a ser explorado.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 145
Destarte, não seria estranha uma crítica acerca do grande espaço temporal que
poderia comprometer seriamente o trabalho do observador, deixando escapar dados
fundamentais. A crítica procede. Estaria correta, se esse fosse um ponto cego dessa
pesquisa, contudo não o é24. Aos propósitos aqui esboçados, a delimitação grosseira
desse “feixe temporal” é interessante, a pesquisa não é especificamente sobre his-
tória do Brasil, sequer uma biografia exaustiva do autor-objeto; a pesquisa é uma
busca pelas ideias produzidas por Pontes de Miranda. É exatamente por buscarmos
as ideias, com especial foco em duas obras – quais sejam: Sistema de ciência po-
sitiva do direito e O problema fundamental do conhecimento – que um marco tão
arbitrário é possível. Não importa contar em pormenores a historia oficial brasileira,
nem mesmo os dados da vida do autor, mas sim a relação do espaço-tempo passado
e da atuação de Pontes de Miranda sobre esse espaço, utilizando suas ideias.
A partida, então, é do período conhecido como “Primeira República”. Desde
o início é notável, no jurista alagoano, uma capacidade absurda de trabalho que vai
se confirmar com o lançamento de obras e mais obras até o fim de sua vida. Nada
de surreal, ou místico, para alguém de base e erudição sólidas, formada desde mais
tenra idade, como registrou Pinto Ferreira (1980): “Tanto o avô, como o pai tinham
uma natural predileção cientifica pelas ciências exatas, especialmente a matemá-
tica, e dai os pendores lógicos e precisos do seu pensamento”. Além dele, Marcos
Bernardes de Mello (2008): “A seu avô, o menino Chico, de inteligência invulgar,
deveu uma rigorosa e bela formação intelectual voltada para a Lógica, a Matemáti-
ca, a Física e os idiomas estrangeiros (já aos 7 anos lia correntemente em português
e francês) e a religião”.
A República Velha foi um dos períodos da história brasileira em que a imi-
gração atingiu níveis altíssimos. O historiador Boris Fausto coloca o ano de 1914
como ano-marco que finalizou um fluxo imigratório iniciado em 1887 – “O Brasil
foi um dos países receptores dos milhões de europeus e asiáticos que vieram para
as Américas em busca de oportunidade de trabalho e ascensão social” (FAUSTO,
2002, p. 275). É nesse contexto que a ação do jovem advogado Pontes de Miran-
da, morando já no Rio de Janeiro, se insere, sempre preocupado com a formação
de uma ciência do direito sólida, nivelada com as ciências exatas tão caras à sua
formação. Além, uma prática do direito voltada ao apreço pela legalidade, pela
constitucionalidade, pelo humanismo e pela democracia.
É de 1916 o livro “História e Prática do Habeas-Corpus”, relançado recente-
mente pela Bookseller no Brasil. Considerado pelo próprio Pontes um de seus livros
mais importantes, foi um dos livros condenados na Ditadura Vargas e, posterior-
mente, relembrado por Pontes em sua luta pela reativação do instituto jurídico que
dá nome ao livro durante a Ditadura Militar iniciada em 1964.
24 Nas palavras de Burke (2008, p. 8): “De acordo com esse ponto de vista, o historiador cultural abarca artes do passado
que outros historiadores não conseguem alcançar. A ênfase em ‘culturas’ inteiras oferece uma saída para a atual
fragmentação da disciplina em especialistas de história da população, diplomacia, mulheres, ideias, negócios, guerra e
assim por diante”.
146
25 “Embora a economia brasileira saísse dos anos de guerra com inflação alta, ela demonstrou ser notavelmente elástica
na década de 1920. [...] Esses preços elevados possibilitaram ao Brasil aumentar suas importações em 150% entre 1922
e 1929, período no qual a indústria brasileira foi capaz de duplicar suas importações de bens de capital (o elemento
essencial para a industrialização subsequente).” (SKIDMORE, 1998. p. 141).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 147
Falar em “duas obras” faz parecer uma redução empobrecedora, mas a im-
pressão é equivocada. Aqui entra um ensinamento do próprio Pontes na obra que
consolidou sua visão epistemológica, qual seja, o reconhecimento da influência do
observador na produção do conhecimento e na construção do mundo26, abandonan-
do uma “ingenuidade” de ciência “asséptica”.
Isso dito com o intuito de clarificar que mesmo as obras escolhidas não serão
analisadas radiograficamente em seus conteúdos, pois o objetivo é mostrar um lado
de Pontes de Miranda que não foi, até hoje, apreciado com a devida atenção pelos
historiadores dos conceitos e juristas. A provocação está em afirmar que Pontes
de Miranda fazia uso propositado da retórica estratégica e comandava as palavras
buscando a construção de mundo melhor. A opção de Pontes não foi por descobrir
a “verdade imutável e inescapável das coisas”, mas por propor modelos operativos
tanto para uma ciência do direito, como para uma teoria do conhecimento. E mesmo
quando fala em “ciência do ser”, o “ser”, aprisionado no plano da existência, não é
aquele de uma ontologia clássica estéril.
O problema fundamental do conhecimento é uma obra inédita no contexto
brasileiro de 1934. Representa uma continuidade do trabalho de Pontes de Mi-
randa que começou, em 1922, a fundar uma ciência social no Brasil, reforçando
ao mesmo tempo todo o panorama das ciências brasileiras. O esforço tem início
26 “Permita-se-nos uma originalidade, não querida, mas aceita, diante de fatos sobre que meditamos: a consciência é
ciência. Tal afirmação surpreende. Nem podia deixar de surpreender. Em verdade, consciência é ciência; já é ciência.
[...] Que é ciência? É observação de alguns fatos, eliminando-se, quanto possível, o que o observador introduz na
observação.” MIRANDA (1999, p. 122, destaque nosso).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 149
O que é certo é que o instinto já nos aparece feito, fixado, rígido. Ligado a
interesses graves da espécie, nunca é fútil – sempre útil, preciso, por bem
dizer sonambúlico, quanto ao seu objetivo. [...] o instinto dá [...] ele é solução
a problemas que foram postos outrora e alhures (MIRANDA, 1999, p. 31).
27 Quando à relação se chama relação “sujeito-objeto”, já o termo conhecente se considerou a si mesmo, já olhou
o organismo que ele é, já levou em conta os dois prefixos que revelam a relatividade do conhecimento sensível. (O
Idealismo pretenderá que ao primeiro termo se subordine o segundo, e sem reciprocidade; o Realismo, que o segundo se
imponha ao primeiro). (MIRANDA, 1999, p. 35)
150
28 “Dubito, ergo cogito, ergo sum” é a famosa conclusão de René Descartes em seu Discurso do Método. A estrutura é uma
tradução latina posterior do francês “je pense, donc je suis”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 151
[...] não há diferença tão marcada quanto se pretende; será que o descobri-
mento de um algorito, de uma relação física, de uma relação biológica, é
de todo interior, se o descobrir, é ato e o ato supõe a relação sujeito-objeto?
(MIRANDA, 1999, p. 123).
Depois de apreendido o jeto, ele está livre para ser reconstruído, remontado
em novos jetos, em novas gramaturas de jeto, sem necessidade de nova extração,
sem se reportar a objeto individual, material.
A operação de extração, que se dá após a percepção, não é um elevar-se, não
é metafísica, mas permanece no mesmo plano, realizando sucessivos afinamentos e
extensões. É assim que se trabalha com o jeto. Pontes adota a noção de que somos
seres deficientes, compreende o problema da apreensão do conhecimento e como
a linguagem é ferramenta. “Tudo faz crer que somos incapazes de criar o a priori.
Por mais longe que possamos ir, as nossas raízes nos prendem à experiência.”
(MIRANDA, 1999, p. 174). Assume, pois uma atitude de submissão, ou sacrifício
do sujeito, para apreender o objeto.
Quanto mais primitiva uma linguagem, maior a sua concreção, sua relação
direta de coisa-nome. Vocabulários imensos, jetos diminutos. São jetos espessos,
mais próximos da concreção, pouquíssimos jetos finos, abstratos. Extraído e afina-
do o jeto ganha na sua indeformabilidade e no seu caráter verificável e comunicá-
vel: são as proposições verdadeiras que o uso no tempo substantivou, as metáforas
de Nietzsche (1999, p. 51) que foram petrificadas pelo tempo, mas que ainda são
metáforas. O absoluto está, na visão de Pontes de Miranda, fora do espaço de co-
nhecimento, apenas podemos lidar com a operação jetiva extrativa-situadora: dos
jetos mais espessos para os mais finos, e vice-versa. Os próprios jetos se unem na
composição dos objetos, é essa “comunicabilidade jetiva” que permite com que
associemos, raciocinemos.
Nesse sentido, Pontes constrói uma gradação relacionando as ciências e as res-
pectivas gramaturas de seus jetos, mas garantindo a autonomia de seu conteúdo – a
mesma noção é levada ao senso comum, de gramatura muito espessa. “A divisão de
ciências em empíricas e formais é, portanto, já de dentro das ciências, e não gnosio-
lógica.” (MIRANDA, 1999, p. 218)
A ciência indica, não age com imperativos. A existencialidade com que traba-
lha a ciência é não ôntica, mas não nega a ontologia. A lição de Pontes de Miranda
é clara, sua intenção também. Surpreende, por isso, que ele ainda seja considerado
“ontológico” no sentido clássico do termo. Quando o empírico ganha status de ab-
soluto, novamente a proposição verdadeira substantivada, é sinal indicativo, não
definitivo, de que encontramos o jeto; se falha a empiria é sinal de que o jeto, que
parecia ser adequado aos diversos casos, não o é. Necessária à busca de novo jeto
mais amplo, mais fino e elevado, por isso abstrato, por isso tratado como universal.
Tratado, sim, não sendo.
Os jetos mais finos, mais maleáveis, abstratos, manejáveis se relacionam mais
harmonicamente com as implicações lógico-formais do experiencial no mundo. Os
jetos mais espessos, de maior gramatura, não permitem perfeita correspondência
lógica; impossibilitam, por exemplo, a construção de axiomas. Quanto mais fino
o jeto, portanto, maior a capacidade de dedução de uma ciência. Já no processo
indutivo, a extração se dá normalmente após a construção teórica de uma lei após
exaustivo confronto com a realidade: só então é encontrado o jeto.
É possível compreender, então, que sub- e ob- que carregam impurezas, tam-
bém demarcam posições na observação. É o não eu e o eu, o objeto e o observador/
sujeito. A operação jetiva desnuda que gnosiologicamente isso não importa, pois se
trata, no fundo, de uma relação jeto-jeto impura.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 155
1950; e, além, o jurista alagoano constantemente pontua o uso dos conceitos de ou-
tras ciências, seja a Física, seja a Biologia ou Psicologia, com as devidas ressalvas
e a necessidade de se compreender a ciência como um modelo – que ele crê mais
seguro – de explicação da realidade.
A adaptação social faz referencia à capacidade do individuo e da sociedade
de corrigir defeitos da relação homem-sociedade. O tempo social, por seu turno,
deve ser compreendido próximo ao “tempo quântico”: plural, peculiar ao contexto
dos sistemas, localizado e relativo. Refere-se a um tempo de cada grupo social.
“Esse tempo geral difere do de outros círculos e, assim confirma a descontinuidade,
e nos dá o uno de cada sistema, o que reforça a noção de continuidade.” (MIRAN-
DA, 2005, T. 1, p. 222)
Por fim, o círculo social, é o conceito que pretende representar a necessária
transcendência que se dá a partir da interação entre duas pessoas se construindo,
sistemática e complexamente, até o todo social. O círculo social cria um novo sis-
tema que se relaciona com todos os outros círculos sociais. Família, clã, Estado,
homoafetivos, católicos, são exemplos de círculos sociais rastreáveis a partir da
teoria ponteana.
Para Pontes o fenômeno social é complexo e a complexidade está intimamente
relacionada ao relativismo de se considerar as diversas facetas do fenômeno social
e do observador desses fenômenos. É nesse sentido que Pontes pensa a imagem de
um hiperespaço (n-dimensional > 3 dimensões) para representar funções capazes
de incorporar todos os elementos da vida social.
Pontes segue, mas excede a orientação do positivismo comtiano. Por isso preten-
de uma sucessão, sem eliminação de três momentos (MIRANDA, 2005, T.2, p. 169):
“1. Sentimento: intuição; empiria jurídica.
2. Ideia: dedução; racionalismo.
3. Investigação científica: indução; ciência”.
A interposição de estágios, na obra ponteana, está intimamente ligada a uma
conclusão comum aos “cientistas do direito”, especialmente da linha cética, de que
a sucessão de estágios – o exemplo clássico é a linha que vai do jus naturalismo ao
positivismo jurídico – não elimina os anteriores. No mesmo sentido em Garra, Mão
e Dedo (2002, p. 58), Pontes de Miranda constrói uma metáfora que associa estágios
da evolução humana à garra, à mão e ao dedo. Se o homem moderno é o dedo, ele
não perdeu seu estágio de mão e garra que se encontram “adormecidos”, “sobrepu-
jados” em potência pelo dedo que indica. Novamente a recorrente ideia no autor de
que a superação logística do conhecimento não elimina, não oblitera a concepção
anterior, ainda válida, mas, se equivocada, rastreável a construção do equivoco a
partir de uma visão mais geral; se limitada, parte de um todo mais completo.
A opinião ponteana é de que falta à ciência do Direito os dados que são encon-
trados a partir de aplicação do método científico. Em 1922, Pontes de Miranda com-
batia com singular destaque o mero debate de ideias. A fé na ciência aparece, até
mesmo, na possibilidade de revelação, descobrimento, experimentação no processo
de interpretação da lei. Sempre dentro dos pressupostos científicos, sempre falíveis.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 159
Os pontos 2.1 e 2.2 foram exclusivamente fichas de leituras com algum co-
mentário. Como abordado na introdução, o método é a atuação do autor estudado
sobre o seu tempo, e os pontos anteriores apresentam resumos das ideias ponteanas
em obras específicas. Mas a associação com a ideia de retórica estratégica exige um
comparativo, um diálogo que é sustentado a partir da doxografia, ou seja, da opinião
de outros autores sobre o autor estudado aqui.
O problema que uma pesquisa sobre Pontes de Miranda demonstra é que o juris-
ta alagoano, por diversos motivos, oblitera sua oposição a partir de adesão da grande
maioria dos outros autores. Outro fator marcante é que Pontes de Miranda nunca tra-
vou grandes embates: se recebeu ou se fez críticas, o movimento não foi recíproco.
Quantas não são as colocações irônicas que permeiam suas obras? A acidez
ponteana é reconhecida por seus seguidores e adversários. Seria possível, provavel-
mente, compor embates se o objeto desse estudo fosse a dogmática ponteana, não
sua filosofia. A conclusão que desenvolveremos dará conta de demonstrar que sua
filosofia sofreu de forma ainda mais violenta o efeito da opacidade.
Em 1923, na coluna “Da outra América”, Gilberto Freyre se correspondia com
o Diário de Pernambuco, estando nos Estados Unidos da América. No artigo do dia
16 de setembro de 1923, Freyre (1979, p. 308), dedicou suas palavras para opinar
acerca da obra ponteana que adjetivou por “luxuosa”, no sentido de ser algo além
do que o leitor médio brasileiro era capaz de compreender e por entender que de
nada adiantava a criação escrita, sem leitores. Freyre classifica o público leitor das
obras ponteanas:
160
Mas foi feliz o Sr. Pontes de Miranda. Espantosamente feliz. Conseguiu criar
para as ideias puras, em pleno país de bananeiras, um público relativamente nu-
meroso, ainda que nem sempre discriminador, antes demasiado plástico e pas-
sivo. [...] Ele conseguiu o milagre de criar um público para o que escreve: tem
diante de si a rara oportunidade de fazer obra integral (FREYRE, 1979, p. 308).
17. Leitores
Feliz o autor que encontra três leitores sábios. - Os bons livros são aqueles
em que se nos depara um pouco para todos, ao passo que o livro forte é o em
que cada um se encontra a si mesmo. Espiritualmente, cinco mil leitores para
nós outros nada valem. É grave prejuízo para o escritor que cerca de cinco mil
medíocres se encontrem nele.
“gênio”, combatida nesse trabalho. Que Pontes de Miranda foi um dos maiores
juristas do século XX, não se pode negar, os dados objetivos testemunham a favor
do autor alagoano, mas o efeito gerado pela adesão às ideias ponteanas, e além, pelo
respeito à figura de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, criaram o que neste
trabalho vem sendo chamado fenômeno da opacidade.
O pathos – ou a capacidade de cativar o auditório – ponteano é complexo.
Pontes de Miranda possuía um estilo sempre rebuscado, neologista, prolixo que em
parte afastou os leitores de seus trabalhos, ou gerou maiores e mais danosos mal en-
tendidos. Se o autor alagoano buscou, toda a vida, por uma erudição científica, um
discurso de precisão e refino, não foi esse o contexto gerado pela educação jurídica
brasileira que ele presenciou com o passar do tempo. Pontes de Miranda foi cons-
tante crítico da proliferação das escolas de direito no país, ao que chamou “bacha-
relismo”. Por outro lado, a construção do texto do jurista alagoano cativou, e segue
cativando, seguidores como Djacir Menezes, Pinto Ferreira, Marcos Bernardes de
Mello, para ficar com esses exemplos.
A última prova artística da Ars Rhetorica é o logos – o apelo lógico, a capa-
cidade do orador/escritor de alcançar o senso de lógica de seu auditório. O logos
ponteano é tão complexo quanto seu pathos. Sendo “homem da ciência”, Pontes de
Miranda caminhava com alguma facilidade pelos mais diversos espaços do saber
científico. Disso dois problemas: o primeiro, que atacar a lógica do texto ponteano
exige de quem ataca conhecimento vasto, ou a união de uma equipe multidiscipli-
nar para dissecar a enorme quantidade de publicações; segundo, as leituras da obra
ponteana são, na visão aqui defendida, equivocadas. A leitura errada dos marcos
teóricos propostos pelo jurista alagoano causou confusão quanto à correta interpre-
tação do que ele disse. A conclusão do presente trabalho intenta uma aproximação
pessoal do que queria Pontes de Miranda, fazendo uma releitura que, somada a tudo
que já foi mostrado aqui, apresente uma proposta mais coerente que será chamada
cientificismo espiritualista.
The doctrine that universals or general ideas are mere names without any
corresponding reality, and that only particular objects exist; properties, numbers,
and sets are thought of as merely features of the way of considering the things
that exist. Important in medieval scholastic thought, nominalism is associated
particularly with William of Occam29 (OXFORD DICTIONARIES, 2012).
29 Em tradução livre: “A doutrina de que universais ou ideias gerais são meros nomes sem nenhuma correspondência com
a realidade, e que apenas objetos particulares existem; propriedades, números, e conjuntos são vistos como recursos
na forma de considerar aquilo que existe. Importante no pensamento escolástico medieval, o nominalismo é associado
particularmente com Guilherme de Occam”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 163
A ciência não supõe ontologia, – o que ela supõe é que se alcance, em certos
pontos, o ser, e que as construções sejam verdadeiras, isto é, apresentem
pressupostos suficientes de funcionalidade em relação ao pensamento
mesmo e em relação ao ser (MIRANDA, 1999, p. 267, grifo nosso).
REFERÊNCIAS
Lorena Freitas
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar retoricamente as ideias jurídi-
cas de Gilberto Freyre. Acerca da retórica, esta tem sido trabalhada por duas
vertentes: a) focando a fronética (Ottmar Ballweg) em razão de a referência
central ser Gilberto Freyre como sujeito retórico, e então: b) apropriando-se
do discurso freyreano para observar as figuras de linguagem que indicam o
gênero deliberativo.
Palavras-chave: Gilberto Freyre. Retórica. Ideias jurídicas.
Abstract: This paper aims to analyse rhetorically the legal ideas by Gilberto
Freyre. Concerning the rhetoric, this has been worked from two ways:
a) focusing the fronetic (Ottmar Ballweg), because the main reference is
Gilberto Freyre as rhetoric subject, and then: b) observing his speech in order
to highlight the linguistic figures that indicate a deliberative genre.
Keywords: Gilberto Freyre. Rethoric. Legal ideas.
Sumário: Introdução: A proposta de uma análise retórica em Gilberto Freyre:
o caráter de ensaio e estrutura de abordagem. 1. Acerca dos níveis retóricos:
aproveitando as intuições de Ballweg. 1.1. A apresentação sucinta dos níveis
retóricos em Ballweg: a cada leitura um novo detalhe; 1.2. Duas possibilida-
des congruentes de identificar os níveis retóricos numa análise. 1.2.1. A partir
da proposta da retórica realista em Adeodato: método, metodologia e metódi-
ca. 1.2.2. A partir da fronética, holística e semiótica. 2. O contexto histórico-
-cultural em que Gilberto Freyre é criado para uma compreensão da retórica
material. 3. A falta de uma perspectiva sociológica na formação dos “doutores
bacharéis acadêmicos”: a crítica ao bacharelismo como filtro da linguagem
comum (elementos de uma retórica estratégica). 4. Questões para uma des-
construção da conferência Sociologia, Ecologia e Direito. 4.1. O discurso
freyreano como gênero deliberativo e epidíctico e a característica do tempo
presente na censura aos bacharéis em direito. 4.2. Passos para a desconstrução
de um discurso como exercício de uma retórica analítica: acerca dos tipos de
argumentos e figuras mais recorrentes. 5. Considerações finais: originalidade
e continuidade nas ideias de Gilberto Freyre. Referências.
170
a) trabalhar com um autor que não é jurista, visto o projeto centrar-se nas
ideias jurídicas no Brasil;
b) quanto à retórica, ter uma bibliografia abrangente (aspecto positivo), con-
tudo exígua quanto aos níveis da retórica e ao desenvolvimento de uma aná-
lise retórica;
c) por ser parte de um projeto maior de estudo do GP, cujas pesquisas e dis-
cussões estão em andamento e ainda em produção, esta monografia inaugura
nossa tentativa de uma análise retórica.
30 Textos como os de Sobota e Adeodato foram os pontos de partida para a construção de uma forma de analisar
retoricamente um texto; naquele chamou-nos a atenção o estilo de desconstrução e análise de argumentos e neste a
estrutura em tópicos separando pressupostos e problemas. Ver SOBOTA (1996) e ADEODATO (2005).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 171
Assim, temos um autor que, apesar de não ser jurista, critica o fenômeno jurí-
dico na figura de seus operadores, ironicamente denominados “Senhores Acadêmi-
cos”, dentre outros epítetos.
Nossa proposta é realizar uma análise retórica da crítica que Gilberto Freyre
faz à cultura do bacharelismo no Brasil. Sua apreciação se estende aos cursos jurí-
dicos no tocante à formação acadêmica dos bacharéis em direito, ressaltando a ne-
cessidade de aproximação das ciências jurídicas com a sociologia e a antropologia,
por também trabalhar com dados concretos, empíricos, da realidade sociojurídica.
Este foco no direito vai ser sua preocupação explícita nas conferências que fez
nas Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo em 1934 e 1935, respectivamen-
te, datando também deste período o Curso de Sociologia Moderna que ministrou na
Faculdade de Direito do Recife. Portanto, é em conferências e como professor, que
vai centrar sua discussão no jurídico (FONSECA, 2001, p. 83 e 94).
Especificamente a transcrição desta conferencia no Recife é nosso objeto de
análise, visto que a de São Paulo dela pouco difere. Contudo, nosso estudo não se
restringirá a esse texto, pois outras obras vão na mesma direção: assim, ressaltamos
que, num primeiro momento, Gilberto Freyre apenas atenta para a cultura bachare-
lesca de forma mais genérica no contexto histórico de meados do século XIX, pers-
pectiva de que são exemplos Sobrados e mucambos (FREYRE, 1991) e Vida social
no Brasil em meados do século XIX (FREYRE, 1977). Naquele temos os elementos
argumentativos da análise freyreana ao tratar da ascensão do bacharel e do mulato.
A segunda obra, cronologicamente anterior à primeira citada, foi sua dissertação de
mestrado em ciências sociais, jurídicas e políticas, defendida em 1922 na Universi-
dade de Columbia.
Ainda em sede de introdução, passamos a detalhar as cinco problemáticas que
elencamos supra e como o presente trabalho se estrutura.
Pela alínea “a” nos remetemos a uma tentativa de operacionalmente concen-
trar a análise retórica em três formas de abordagem: método, metodologia e metó-
dica, que correspondem aos três níveis da retórica: material, estratégica e analítica
respectivamente.
Assim o ensaio inicia discutindo estes níveis retóricos a partir do texto de
Ballweg (alínea “b”) e cotejando com a proposta de Adeodato de identificar tais ní-
veis pensando a retórica como método, logo intentando uma metódica para análise
e discussão das ideias jurídicas.
Em seguida, também a partir da exegese do texto de Ballweg, que esquematiza
a retórica analítica, destacamos a fronética no campo externo e assim afastamos a
discussão – seja no plano interno seja no externo – dos meandros da holística e da
semiótica. Tal escolha se assenta no centro objetivo de onde partem as possibilida-
des de análise retórica, ou seja, a fronética tem no centro o sujeito. Pensar na relação
sujeito – sujeito é o primeiro desdobramento da fronética, no campo da agôntica;
a relação sujeito – objeto compõe a ergôntica; e a relação sujeito – signo forma a
fitanêutica, na linguagem de Ballweg.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 173
Fronética
Sujeito (S) Sujeito (S) = agôntica
Objeto (O) = ergôntica
Signo (Z) = fitanêutica
Holística
Objeto (O) Sujeito (S) = axiotática
Objeto (O) = ontotática
Signo (Z) = teleotática
Semiótica
Signo (Z) Sujeito (S) = pragmática
Objeto (O) = semântica
Signo (Z) = sintática
a efetividade de esferas sociais como direito, poder, amor, dinheiro etc., inerente à
própria condição humana como dado da interação que a fala proporciona no sentido
da sociabilidade.
Para além de considerar a fala um minus ou um plus na natureza humana
(BLUMENBERG, 1999, p. 115 e 125; ADEODATO, 2005, p. 240-242), esta sea-
ra retórica acontece ainda sem reflexão, mas nem por isso sem saber “aonde quer
chegar”, comunicar algo implica o emissor pretender passar alguma mensagem ao
receptor, e “naturalmente” ele aprende meios de como transmiti-la. Tem por objeto
a própria comunicação.
Se caricaturarmos a figura de um Don Juan para tentar compreender os âmbi-
tos material e estratégico da retórica temos que ainda criança ele já saberia de que
conversas as mulheres gostam, porém enquanto adulto é que reflete sobre a maneira
de melhor conduzir ou desenvolver esses diálogos. Assim a retórica material, sim-
bolicamente, pode ser entendida como este momento infantil no exemplo; já como
adulto, a retórica material em que Don Juan se encontrava inserido transforma-se
em retórica estratégica.
Assim, o segundo nível, retórica estratégica ou prática, como o próprio ter-
mo já acena, tem uma característica reflexiva em cima da retórica material, i.e., é
o primeiro grau de reflexão, tem a retórica material como objeto. Temos então um
vocabulário filtrado da linguagem comum (BALLWEG, 1991, p. 177), filtrado por
ser estrategicamente trabalhado na direção prática a que o discurso visa.
Uma ênfase feita por Ballweg é quanto seu caráter teórico ou doutrinário. So-
bre isto ponderamos no seguinte sentido:
Numa leitura anterior, apesar de vislumbrar tais níveis como muito próximos
e de tal forma imbricados que dificulta separá-los, o que só vale a pena como pre-
ocupação didática, formulamos a seguinte pergunta como ponto de partida para
construir uma hipótese teórica: podemos “separar” retórica material e a retórica
estratégica a partir da inconsciência e consciência quanto à função persuasiva ou
fins do discurso?
Daí, a retórica material estaria mais no nível de inconsciência do orador em
sua preocupação de convencer, ao passo que a retórica estratégica ficaria mais no
plano da consciência. Passamos a trabalhar neste sentido, mas logo afastamos a
hipótese, dadas as zonas cinzentas entre os níveis e o fato de ser a categoria “cons-
ciência” um conceito muito ambíguo na história da filosofia.
Um fator que contribuiu para tal confusão inicial foi nossa interpretação acen-
tuada da tônica que se dá à ideia de teorização e doutrina em cima da observação da
retórica material. O fato é que tanto a retórica estratégica quanto a analítica têm a
retórica material por objeto. A diferença é que a primeira, como o nome diz, procura
construir estratégias para obter sucesso no âmbito da realidade material, ela está
permanentemente interessada em estabelecer o discurso dominante que vai se impor
aos demais participantes do discurso e constituir o mundo real. Ela é uma doutrina
ou teoria em um sentido de que reflete sobre como obter esse relato vencedor, ou
seja, a teoria está no “estudo” que o orador faz de meios para efetividade do que
quer comunicar, como escolha de palavras, de exemplos, de entonação etc.; isso
tudo representa um primeiro grau reflexivo, a ideia de filtro trazida por Ballweg.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 175
A metódica é uma visão de teoria ligada à prática, i.e., aos efeitos que aquela
teoria (retórica estratégica) tem sobre a realidade (retórica material), o que poderia
ser expresso na seguinte questão: Em que medida a teoria influiu na prática? Centra-
-se na observação do que ocorre entre os dois níveis anteriores e, nesse sentido, é
uma teoria sobre as metodologias e os métodos, daí uma “metódica”.
A tentativa de identificar esses efeitos é o próprio estudo ou análise que se
pretende das ideias do autor; assim, a retórica analítica tentada aqui constitui uma
metódica, pois estuda a metodologia pragmática de como Gilberto Freyre desen-
volve seu discurso. Vê-se então a retórica estratégica (metodologia) e a material
(método) como objetos da retórica analítica (metódica).
Esboçando o projeto de abordagem de Adeodato, temos:
1. material método
2. estratégica metodologia
3. analítica metódica
Nossa hipótese de trabalho foi desenvolvida a partir do estudo dos três âmbitos
de que Ballweg (1991, p. 182) se utiliza para esquematizar a retórica analítica.
Daí pretende verificar os três níveis retóricos a partir dos três campos de rela-
cionamento para a construção de um sistema linguístico social, a saber, fronética,
holística e semiótica. Assim, o estudo da retórica material seria concretizado pela
fronética, na qual temos o orador como ponto de partida; no caso, estudar a biografia
de Gilberto Freyre e o contexto em que é criado o ambiente para o qual escreve, a
tarefa de identificar a retórica material; a retórica estratégica estaria ligada à holísti-
ca porque esta se concentra no objeto, que seria o discurso em si, o objeto filtrado da
linguagem comum, o que demonstra seu objetivo prático ou estratégico; a semiótica
é concretamente a fonte da retórica analítica, pois tem o centro de gravidade no
signo, as expressões simbólicas da linguagem humana.
Logo teríamos:
Fronética
{
Agôntica (S –S)
Ergôntica (S – O)
Fitanêutica (S – Z)
material
estratégica
analítica
método
metodologia
metódica
Apesar de não ter como objetivo dissertar sobre aspectos biográficos e contex-
tuais, impera aqui fazer algumas considerações a respeito, principalmente porque
não deixa de ser uma hipótese viável supor que Gilberto Freyre é também fruto
desta cultura bacharelesca que critica.
Gilberto Freyre nasceu no Recife em 15 de março de 1900, numa família tradi-
cional de Pernambuco, de senhores de engenhos de açúcar, filho de um professor ca-
tedrático de Economia Política na Faculdade de Direito do Recife, livre-pensador, e
de uma mãe católica e conservadora. Sua infância se situa historicamente na última
fase da transição do patriarcalismo aristocrático para a época moderna no Nordeste
do Brasil.
Faz seus primeiros estudos com professores particulares e aos sete anos é ma-
triculado no Colégio Americano Gilreath, referência educacional na época, onde
aprendeu as principais línguas modernas e o latim, tendo dado sua primeira confe-
rência na Paraíba, ainda adolescente, sobre “Spencer e o problema da educação no
Brasil” em 1916 (MENESES, 1991, p. 10 s; AMADO, 1962; ANDRADE, 1995;
CHACON, 1993; MATOS, 1988; PEREIRA, 1986; VILA NOVA, 1995).
Após ter concluído o curso de Licenciatura em Letras, em 1917, foi para a
Universidade de Baylor, onde concluiu o bacharelado; depois, em Nova Iorque,
concluiu o Mestrado em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade
de Columbia, em 1922, com uma dissertação intitulada Social life in Brazil in the
middle of the 19th century. Correspondente do Diário de Pernambuco durante a sua
estadia nos Estados Unidos mostrou-se sempre muito crítico do American Way of
Life. Na Universidade de Colúmbia teve como mestres Franz Boas e John Dewey
(MENESES, 1991, p. 24-26).
Depois foi à Europa aprimorar seus estudos, proferiu palestras e fez amiza-
des, retornando ao Recife em 1924. Em 1945 foi escolhido para a Assembleia que
se transformou em Constituinte, sendo depois eleito para a primeira legislatura do
regime democrático saído da Constituição de 1946.
Para citar uma crítica mais atual e na mesma direção, o historiador José An-
tonio Tobias diz que “o Brasil desde os jesuítas é encharcado por ideias retóricas e
literatos sintetizados pelo mito do padre e depois (séc. XIX) pelo mito do doutor”
(TOBIAS, 1987, p. 128). O mesmo autor, sob o título Universidade como meio de
ascensão social, informa que o critério para fazer curso superior será exclusivamen-
te em função das consequências do proveito econômico e prestígio social que deles
possa retirar o universitário (TOBIAS, 1987, p. 172).
O principal aspecto colocado por Gilberto Freyre é a falta de uma perspectiva
sociológica (VILA NOVA, 1995, p. 57), de percepção das peculiaridades da cultura
brasileira, na formação dos Doutores Bacharéis Acadêmicos ou Senhores Acadê-
micos, como ele mesmo os designava já na sua dissertação de mestrado (FREYRE,
1977, p. 93; FREYRE, 1981, p. 573).
Aqui desenhamos o percurso de desenvolvimento dessas ideias em torno da
formação dos bacharéis. Nossa hipótese é que tais questões são inicialmente abor-
dadas na dissertação de mestrado, que data de 1922, apesar de essa temática não ser
foco exclusivo de mais nenhum trabalho seu, exceto as suas conferências de 1934 e
1935. Mas o tema aparece novamente em 1933, em Casa Grande & Senzala, sendo
complementado e já com maior ênfase em Sobrados e Mucambos (1936), no qual
um capítulo inteiro aborda a questão da ascensão social do bacharel e do mulato.
Antes, porém, de lançar Sobrados e Mucambos, nos dois anos anteriores, te-
mos duas conferências em 1934 na Faculdade de Direito do Recife: a primeira inti-
tulada O estudo das ciências sociais nas universidades americanas e a segunda, que
representa a aula inaugural de um Curso de Sociologia Moderna, intitulada Socio-
logia, ecologia e direito. Em 1935, também como um “laboratório de ideias” para
amadurecimento da crítica ao bacharelismo, profere a conferência Menos doutrina,
mais análise na Faculdade de Direito de São Paulo (FREYRE, 2001, p. 83 e 94).
Apesar de nossos comentários terem como objeto a segunda conferência na
Faculdade de Direito de Recife, da qual há transcrição completa, os outros tex-
tos também são referenciais teóricos para compreender os problemas que Gilberto
Freyre coloca, os quais podem ser resumidos assim: (a) como a cultura bachare-
lesca despreza uma relação de vizinhança científica, nas palavras do autor, o que
hoje chamaríamos de ausência de interdisciplinaridade; (b) a falta de informação ou
orientação sociológica ou antropológica para percepção mais completa da realidade
social pelo jurista (FREYRE, 2001, p. 77-79).
Contudo alguns questões prévias podem ser interligadas à colocação desses
problemas, principalmente por ressaltarem o tom crítico à cultura do bacharelismo,
que seriam:
180
(i) Direito, medicina e engenharia são cursos para inserção social dos morado-
res dos sobrados, como ressalta o autor:
O jovem que fosse a flor da família, como inteligência, era escolhido, quase
sempre [...] para a Academia de Direito, servindo esta para a formação não
só jurídica, de advogados e de magistrados, como política, preparando jovens
para o Parlamento, para os ministérios para a administração pública e para a
diplomacia do Império (FREYRE, 1977, p. 93).
Somos vítimas de uma rotina que não se deixa vencer com duas razões: a
de que estudos superiores sérios só existem, no mundo, os de Direito, os de
Medicina e os de Engenharia. Tudo o mais seria sobremesa. Doce. Alfenim
(FREYRE, 1981, p. 78).
Com essas pesquisas, algumas das quais em torno de assuntos, para alguns
sociólogos megalomaníacos, miúdos e humildes [1] – os sociólogos da casa,
por exemplo [2] – a Sociologia corre o perigo de perder parte considerável
de sua grandiosidade de ciência imperial [3]. Mas seu desenvolvimento cien-
tífico ganha em solidez e em segurança [4]. Daí não me terem magoado os
comentários desdenhosos com que o programa do curso de Sociologia que
hoje se inaugura na Faculdade de Direito de Recife, foi acolhido por alguns
mestres desta antiga e ilustre Escola [5], um dos quais diante de tópicos como
Sociologia da Rua, Sociologia da Casa, Sociologia da Fábrica, perguntou,
com o melhor de seus sorrisos irônicos, porque não Sociologia do W.C. Seu
desdém atinge toda uma corrente sociológica moderna que opõe às sínteses
grandiosas, mas sem fundamentações regionais que as justifiquem, concreta
e solidamente, os estudos ou as análises do regional, do particular, do con-
creto. Do ecologicamente social e mais que social [6].
31 “Freyre thought that the analysis of such cultural complexities go beyond the standards of the pure methodological and
epistemological apparatus of the conventional scientific and social theories. Rather, in oder to study a phenomenon like
the Brazilian culture, it would be necessary to contrast the scientific laws resulting from theories and models of modern
sciences with the incertitudes which come out of the complex cultural realities”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 185
Por fim, talvez, a característica primeira que identifica seu pensamento é tam-
bém uma antecipação da etnometodologia: para além da história do patriarcalismo
no Brasil, e outros grandes temas, estudou hábitos culinários do Nordeste, o uso
de xales, a vestimenta que caracterizava a ascensão do bacharel, como o fraque, os
sapatos ingleses etc. É na enumeração, na ênfase, enfim, nos detalhes que a argu-
mentação se desenvolve, explorando diversas figuras de palavras e de pensamento,
para assim fundamentar e confeccionar toda uma crítica à cultura bacharelesca.
186
REFERÊNCIAS
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MATOS, Potiguar (1988). Gilberto Freyre: presença definitiva. Recife: Fundação
Gilberto Freyre.
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<http://www.peirce.org/writings/p119.html>. Acesso em 17/5/2005.
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nuostro tiempo y princípios de oratoria. Madrid: Trotta.
VILA NOVA, Sebastião (1995). Sociologias & pós-sociologia em Gilberto
Freyre: Algumas fontes e afinidades teóricas e metodológicas do seu pensamen-
to. Recife: Massangana.
RETÓRICA E IDENTIDADE NACIONAL
NA ESCOLA DO RECIFE
e as cidades estariam na condição de serem filiais das fazendas, o que deveria ser
contestado pelo povo, pondo-se fora da tutela e impedindo que os poderosos dispu-
sessem desta forma da cidade.
A situação observada com pesar por Tobias Barreto refere-se à discrepância
entre a organização do Estado em termos de governo e administração e o desagre-
gamento do povo “amorpho e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a com-
munhão da língua, dos máos costumes e do servilismo” (BARRETO, 1939, p. 288).
“Os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes,
que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho, mas logo que amanheça,
cada um tomará o seu caminho, quasi sem probabilidade de outra vez se encontra-
rem” (BARRETO, 1939, p. 287). O que revolta Tobias é este “modo de viver à
parte, de sentir e pensar à parte” (BARRETO, 1939, p. 289). A consequência seria
a impassibilidade e a indiferença a respeito dos tormentos humanos, vistos sempre
como alheios, até o momento em que calhasse de serem sentidos pessoalmente num
sentido mais estreito.
A falta de cultura, vista como estigma carregado pelo brasileiro, segundo To-
bias, era o que impedia de “ter paixões elevadas” e esses costumes que seriam aque-
les sensíveis e inexoráveis pela tirania e pela injustiça. Estes, conforme apontara
St. Just, impediriam que houvesse formação de opinião pública entre nós e que as
correntes políticas e de pensamento circulassem na vida pública nacional (LIMA,
1939. p. 268).
Tobias insurge-se contra esses costumes ou hábitos sociais gerados pela escra-
vidão, criticando em voz alta, como se ignorasse os obstáculos postos pelos hábitos
sociais à sua atitude. Falava como se pressupusesse haver público que pudesse ouvi-
-lo, assim como editava jornais em língua alemã, na tarefa de inserir, em debates
mais altos, terras dominadas pela “bitola limitada” da “assucarocracia”.
Refletindo sobre essa situação contrastante entre sua ação e o entorno social, que
não lhe poderia proporcionar acolhida, Tobias afirma haver “algo de trágico” em sua
vida, que não lhe permitia efetivar reformas na sociedade em que vivia, ao mesmo
tempo em que não poderia ser levado passivamente por seus condicionamentos.
He, pois, claro que os homens reconhecem um direito anterior a toda lei ar-
bitraria, dado só pela razão; e um principio universal e immutável, por onde
se pode discernir o justo do injusto. O objecto do direito da natureza, ou da
sciencia philosophica do direito, he indagar qual seja este principio ou con-
ceito supremo do direito, para dahi deduzir principios geraes, que sejão appli-
caveis aos direitos e deveres jurídicos dos homens em suas diversas relações.
Segundo este conceito do direito pelo qual se podem discernir as acções jus-
tas das injustas, he fácil de formular o principio primário do direito natural
da maneira seguinte: São justas todas as acções, que não repugnão ao estado
social de entes igualmente livres; e são injustas, ou lesões de direito, todas as
acções oppostas.
[...]
194
Podemos pois, enunciar o principio supremo dos deveres jurídicos por esta
formula: Omitte todas as acções, que offenderião a justa liberdade dos outros.
Este princípio se pode também reduzir aos seguintes: não trates os outros
como simples meios para os teus fins arbitrários – Omitte todas as acções,
que tornarião impossível a sociedade – deixa a cada um o que he seu – não
perturbes os direitos dos outros – não leses a ninguém.
O direito distingue-se da moral; e esta distincção he fundada no mesmo fim
particular a cada uma destas sciencias. O direito não tem outro fim, senão
conciliar a liberdade exterior dos homens, em razão da sua coexistência no
estado social, e por conseguinte ordena só o que he justo. Porém a moral se
propõe um fim mis nobre, e mais sublime, porque aconselha o bem, exige a
boa intenção do agente, pois para ser elle justo perfeitamente não basta dar o
seu a cujo he, mas deve fazel-o com boa intenção.
[...]
O direito he a sciencia dos direitos, e a política a dos meios convenientes e
ao exercício e à conservação dos mesmos direitos. Àquelle tem por objecto
a justiça; e a política occupa-se de diversos meios concernentes à felicidade,
O primeiro funda-se em principios puramente racionaes, e a politica na ex-
periência. Aquelle prescreve leis geralmente obrigatorias, necessárias, e que
não admittem excepção alguma; e a política ordena os seus meios, segundo
as circumstancias variáveis do tempo, do lugar e das pessoas. ... fiat justitia,
pereat mundus.
[...]
Mas a principal distincção entre os direitos he a que os divide em direitos
innatos, também denominados immediatos, originários e absolutos; e
direitos adquiridos, ou mediatos, derivados e hypotheticos. Aquelles resultão
immediatamente da natureza do homem, e são a condição para se poderem
adquirir outros; e o homem os póde fazer valer em todas as cricumstancias, e
a respeito de qualquer, sem que lhe seja necessário provar que os possue, Os
outros, pelo contrario, não resultão immediatamente da natureza do homem,
mas de um acto seu; são adquiridos pela actividade do homem. (1) o direito
primigenio chama-se também formal ou ideal, porque nasce immediatamente
de uma for- mas da razão, e so da noção essencial de um ente racional e
livre, abstrahindo de todo o objecto determinado, a que se applique; e porque
exprime simplesmente a forma, a condição, e o fundamento de todo o direito,
que se póde conceber, Chamão-se direitos materiais (e também reaes) os
derivados do primigenio, porque estes se referem a certos objectos, como
materia da sua applicação, nos quaes se manifesta o justo uso da nossa
liberdade. (ALBUQUERQUE, 1983, P. 5-23).
Neste cenário em que a razão será tratada como principio uno, vale, antes
de tudo, ressaltar as implicações republicanas e renovadoras da organização social
advindas da própria incorporação do positivismo comtista como doutrina num dos
ciclos da Escola do Recife.
Observe-se que o próprio clima democrático que vem acompanhado do de-
senvolvimento da retórica se vislumbra de forma marcante na faculdade do Recife
de então.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 195
Não valera a pena cultivar tal ciência, desde que fosse peremptoriamente de-
cidido que não lhe compete ir além dos velhos domínios conhecidos, que só
lhe é dado caminhar de dia, no pleno dia da observação empírica, nunca po-
rém entrar pela noite, por mais clara que ela se mostre, a noite das conjeturas,
dos altos pressentimentos, dos rasgos divinatórios e quaisquer que sejam as
chanças de tudo isso ser alguma vez confirmado (BARRETO, 1966, p. 160).
Também a própria opção pela publicação de seus estudos sob o título de Estu-
dos Alemães será justificada da seguinte forma:
Se atentarmos para o estilo dos textos filosóficos produzidos por Tobias Bar-
reto, torna-se verificável o descompasso com o tipo de produção narrativa que visa
reduzir o raciocínio a alternativas de verdade e falsidade.
O discurso enxuto, caracterizado pela brevidade, que identifica a braquiologia
denominada pelos antigos, e da qual já era adepto, em tese ao menos, Platão, deverá
caracterizar a narrativa cientificista; mas não parece ser utilizado pela Escola do
Recife, se observarmos as técnicas retóricas presentes nos textos.
A despeito da possibilidade de se vislumbrarem repercussões de ordem histó-
rica em nosso estudo, temos que a história das ideias postas em discussão pela Esco-
la do Recife pela obra de Tobias Barreto, bem como suas relações com a conjuntura
sociopolítica de então, se nos mostram interessantes na medida em que permitem
vislumbrar a caracterização da retórica na produção filosófica.
Por ocasião do concurso para a Faculdade de Direito em 1882, Tobias Barreto
irá apresentar as ideias de Rudolf von Jhering, de quem esposava a interpretação do
direito como fenômeno histórico de criação cultural da humanidade.
Adicionava à concepção de Jhering, para quem o direito seria o conjunto das
condições de vida da humanidade coativamente asseguradas pelo poder público, a
qualidade evolucional ou de desenvolvimento destas condições, ao mesmo tempo
em que dispensava a referência ao poder público (JHERING, 2000, p. 299-319).
Deste modo, fazia incluir suas filiações filosóficas evolucionistas à concepção
do jurista alemão, o que garantiria a originalidade e independência do fundador da
Escola do Recife, como confirma Clóvis Beviláqua (MERCADANTE, 1972, p. 173).
Interessante observar, mais uma vez aqui, a ausência da importação acrítica do
modelo estrangeiro. Mais vale, ainda, observar que o cotejo da filosofia de Jhering
com a obra de Tobias se nos mostra especialmente rico em termos de comparações
relacionadas à identificação de elementos retóricos relativos às figuras de linguagem.
Conforme afirma Adeodato, em artigo no qual analisa a dimensão retórica na
obra de Jhering, teria cabido a Tobias Barreto, bem como a Clóvis Beviláqua, en-
xergar o relativismo jurídico no lado heurístico de Jhering. Acresce, ainda ter sido
Tobias responsável por uma visão mais própria e criativa da obra de Jhering, a des-
peito de ter sido privilegiada na literatura jurídica o lado sistemático, generalizador
e dogmático da obra do jusfilósofo alemão (ADEODATO, 1995, p. 29).
Também em Gláucio Veiga, que entre nós se preocupou notadamente com
a história das ideias da Faculdade de Direito do Recife, encontramos referências
comparativas dos dois filósofos. A comparação se estabelece não só em relação às
ideias comungadas pelo “nosso Tobias” e por Jhering, como também, em relação
à fragmentação dos trabalhos, ao amor ao paradoxo, à utilização da eloquência das
frases de impacto, da sátira, da galhofa, como virtudes de um temperamento san-
guíneo e colérico, dentre outras características que nos são profícuas em revelar
a possibilidade de analisar os textos e seu estilo à luz das técnicas persuasivas da
retórica (VEIGA, 1995, p. 64).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 201
Conforme lembra Adeodato (2010, p. 62), ao mesmo passo em que atenta para
as armadilhas do formalismo radical no julgamento da atitude retórica que a reduza
ao exame das figuras de estilo e de sua classificação, temos que:
A tentativa estoica que propõe imunidade em relação as paixões faz com que
no plano da linguagem, haja necessidade de separação entre figuras de pensamento
e figuras de linguagem. As ideias são entendidas como apartáveis de sua expressão
linguística e dos tropos, das figuras de linguagem. Pressupõe-se uma oposição entre
sentido reto e sentido figurado (GARAVELLI, 2000, p. 157).
A atitude, flagrantemente ontológica, compagina-se com a desconfiança de
Aristóteles com respeito aos argumentos que fazem confundir coisas com nomes.
Já na abertura das “Refutações Sofísticas”, afirma que apesar de aparecerem como
argumentos, na verdade, seriam apenas falácias já que os nomes possuem vários
significados (ARISTOTLE, 1952, p.227).
O estudo que privilegie o estilo, no entanto, pode ser abordado com signifi-
cados menos associados a uma classificação estéril e mais próximos de descober-
tas frutíferas.
O estudo do estilo pode ser entendido não como prescrição, mas antes como
preocupação a respeito da medida em que o estilo influencia o ouvinte de forma a
afetar-lhe a sensibilidade, podendo assegurar a adesão tranquila.
Obviamente, a relação entre estilo e seus efeitos não poderia ser entendida
como relação historicamente estanque, considerando-se que a repetição e banaliza-
ção desgastam o efeito de encantamento á exemplo do que ocorre com a metáfora
na conhecida observação de Nietzsche (SLOTERDIJK, 2002, p. 78-79).
Conforme já reconhece Hegel, o estilo não poderia, por conta de sua nor-
matividade, ser confundido com a beleza da obra de arte, sendo-lhe, no entanto, a
posteriori (HEGEL, 2001, p. 291). Contudo, o próprio estilo pode se pôr a serviço
da sugestão, permanecendo implícito e sendo principio de descoberta capaz de for-
necer chave iconográfica. Esta chave permaneceria indefinível e poderia ser propos-
ta como hermenêutica de modo a limitar a objetivação radical do objeto, forma de
fazer desaparecer a antinomia entre a obra de arte e a história dos estilos desde que
o estilo seja tomado no sentido de criação histórica e não no sentido matemático de
um conjunto de formas categoriais formais nem no sentido psicológico de uma certa
maneira de ver ou ainda de resposta à percepção.
202
Ainda quanto ao estilo de Tobias Barreto, vale ressaltar a reação contra a for-
malização da linguagem. Esta característica que já não se atribui ao romantismo,
mas ao modernismo é bem acentuada como inovação, apesar de a educação sempre
ter se baseado na manutenção do português reinol.
Exemplo da separação entre as línguas, com o rebaixamento da popular origi-
nária das senzalas, promoviam os padres mestres dentre os quais exemplifica Gil-
berto Freyre a figura do Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama que se zangava
e reagia com beliscões à pronuncia de “oxentes” ou “mi deixe” pois o modelo de
português correto era o do reino (FREYRE, 2006, p. 417).
Afirma, ainda Freyre que embora o esforço dos jesuítas no sentido de fazer
perdurar o português reinol no Brasil tenha fracassado, subsistiria uma disparidade
entre a língua falada e a escrita no Brasil a ponte da “...escrita recusando-se, com
escrúpulos de donzelona, ao mais leve contato com a falada; com a do povo; com a
de uso corrente” (FREYRE, 2006, p. 415).
Tobias Barreto, promove, pois, em seus escritos o enfraquecimento desse dis-
tanciamento, antecipando atitude modernista de modo a empregar os termos e ex-
pressões populares, bem como denuciar o exagerado apego às questões gramaticais.
Para tal, criticará constantemente a atitude daqueles para os quais aplica a alcunha
de canis gramaticus (BARRETO, 1901, p. 201-203), por serem empenhados em
filigranas gramaticais e destituídos de considerações mais relevantes.
204
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Brasileira: uma reavaliação. São Paulo, USP.
206
Introdução
32 Discurso intitulado como a Questão Social e Política no Brasil, proferido no teatro lírico do Rio de Janeiro, no dia 20
de março de 1919. A versão utilizada para a presente pesquisa foi aquela publicada pelo Senado Federal em 1999
(BARBOSA, 1999).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 209
33 Far-se-á uma breve exposição da teoria do Dr. João Maurício Adeodato (2009), tendo como fundamento o texto As retóricas
na história das ideias jurídicas no Brasil – originalidade e continuidade como questões de um pensamento periférico.
34 João Maurício Adeodato (2008, p. 55-82) explica a divisão presente na retórica, na qual a tópica trata da teoria da
argumentação, enquanto a teoria das figuras preocupa-se com a forma do texto e seus ornamentos linguísticos.
210
Já no ano de 1865, ingressou nos estudos jurídicos em Recife, onde não ficou
por muito tempo, diagnosticado com congestão cerebral, tendo obtido aprovação
medíocre em uma das matérias da faculdade, o que feriu o orgulho tanto do pai
quanto dele. Não demorou para que João Barbosa concluísse que “não tinham sido
propícios os ares do Recife” (VIANA FILHO, 1965, p. 21) para o filho e o transfe-
risse para a Faculdade de Direito de São Paulo, onde terminou o curso.
Nesse período em São Paulo, esteve em contato com outros bacharéis do porte
de Fagundes Varela, Álvares Azevedo e Gonçalves Dias. Esse ambiente permitiu uma
forte influência literária e crítica, de forma que “não apenas faziam peças literárias
de conteúdo político, mas, sobretudo, só concebiam a atividade política munida do
arsenal das belas-letras, da eloquência e da oratória” (GONÇALVES, 2000, p. 17).
Concluído o curso jurídico no ano de 1870, Rui, desde cedo ao lado dos libe-
rais, tendo como leituras autores como Tocqueville, logo se viu lançado no mundo
político, sobretudo devido à dissolução da Câmara pelo Imperador, que levou à
perda do cargo de seu pai. Segundo Viana Filho (1965, p. 24), após esse episódio “o
lutador acordava”. Esse foi o momento no qual Rui levantou-se para a vida política.
Ainda no período monárquico, defendeu causas como a separação entre Estado
e Igreja, a secularização do ensino, as eleições diretas, a abolição da escravidão e
o federalismo, ideias que expressou, sobremaneira, por meio de sua atividade no
Diário da Bahia (VIANA FILHO, 1965, p. 87). Dessas, atuou de forma intensa
em prol da mudança do sistema eleitoral instituído pela Carta de 1824. Desejava,
junto com o Partido Liberal, uma reforma eleitoral que substituísse o voto indireto
(cidadãos votantes formavam um colégio de eleitores, que por sua vez escolhia
os parlamentares) por meios diretos de eleição de representantes. Apesar disso,
ainda defendia o voto censitário, de modo que essa reforma tratava-se mais de uma
ampliação da participação dos já votantes que uma universalização dos direitos
políticos (GONÇALVES, 2000, p. 28).
Por essa razão, percebe-se que Rui, no regime monárquico, adotou uma pos-
tura um tanto mais liberal que democrata. A preocupação de Rui Barbosa, naque-
le momento, era predominantemente com a defesa das liberdades fundamentais
(GONÇALVES, 2000, p. 28). Assim sendo, em 1877, um ano após casar-se com
Maria Augusta, a tomada do poder pelos liberais teve com resultado a eleição de
Rui Barbosa como deputado provincial da Bahia, sem sequer precisar “pedir votos”
(VIANA FILHO, 1965, p. 91).
Cabe ressaltar, no entanto, entendimento contrário apontado por Alfredo Buzaid
(1966, p. 214), para quem Rui Barbosa já apresentava, na campanha abolicionista em
1884, ideais sociais. Segundo o autor, a defesa de Rui Barbosa na luta pela aprova-
ção de projeto legislativo que garantisse salário mínimo aos libertos já demonstrava
sua preocupação com os direitos sociais. Continua Buzaid: “A sua [de Rui Barbosa]
contribuição na campanha abolicionista não foi, portanto, lírica e romântica senão
objetiva e realista, com visão clara do problema social” (BUZAID, 1966, p. 214).
212
Severino Vieira, seu colega de senado (de Rui) escreve a Luiz Viana, gover-
nador da Bahia: 'O Rui a golpes de erudição e abusando de sua autoridade,
prestigiada, alias, pelo país inteiro, perante juízes que nada estudam e pouco
raciocinam, tem causado ultimamente os maiores embaraços à administração
do Prudente' (VIANA FILHO, p. 270).
Isto posto, a que fica reduzido o talento sophistico de Rui Barbosa? Ao hyper-
trophismo da lógica, como já vimos que o era da palavra. Homens do pró e
do contra têm havido em todos os tempos e a espécie continua a propagar-
-se. Retoricos chamavam-nos os Romanos e o período alexandrino encheu o
mundo dos productos da escola. A compleição entretanto, nesses indivíduos
é tudo. [...] Não faço injustiça de considerar o orador baiano, um rethorico ou
um sophista desta espécie propriamente dita. [...] Se eu não fosse inimigo da
escola lombroziana, acharia no capítulo de Max Nordau, sobre o egotismo,
um optimo lugar para acommodal-o. Essas classificações patológicas exa-
geradas, porém, não calham nos moldes de meu espírito. Rui Barbosa é um
perfeito responsável e nos tempos da inquizição elle não escaparia das mãos
de Torquemados. Os gregos não o deixariam quieto; e, quando menos fosse,
condemnal-o-iam ao ostracismo.
35 A Constituição de 1891 apresentava um núcleo de princípios que buscava resguardar as liberdades individuais. Dessa
forma, apresentava apenas direitos de primeira dimensão dentre os elencados no trecho da “Declaração de Direitos”. Esse
posicionamento voltado para proteção da pessoa individual é bem retratado pelo art. 72 da referida Carta Política, que diz:
“Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes
à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º - Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. § 2º - Todos são iguais perante a lei” (BRASIL, 1896).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 213
Não somente pela grande estima pessoal que tenho por vós, mas, sobretudo,
pelo futuro do Brasil, desejo de todo o coração a vossa eleição. Na evolução so-
cial do Brasil vossa presidência seria a personificação dum período de progres-
so civil e a realização dum programa econômico e moral digno de aprovação
por qualquer um que, como eu, amo vosso país e vaticine-lhe o mais fecundo
desenvolvimento (VIANA FILHO, 1965, p. 335).
Aponta-se, ainda, que a campanha civilista pode ser vista para além da disputa
do civilismo contra o militarismo. Segundo Bruno (1995, p. 38-39), a indicação do
Marechal Hermes da Fonseca “nada tinha de militar”. Buscava, na verdade, afastar
o risco de uma campanha baseada na massa votante, como proposta por Rui Bar-
bosa, e manter a força das oligarquias paulista e mineira. Desse modo, a campanha
presidencial de Rui também pode ser vista como uma “primeira manifestação das
classes liberais, dos republicanos históricos remanescentes”, dos idealistas contra
a política tipo São Paulo-Minas, em que o povo não era ouvido e nem o candidato
precisava ir às ruas” (BRUNO, 1995, p. 38).
Rui Barbosa perdeu a eleição, mas não desistiu de alcançar o cargo mais alto
do governo, que novamente disputou em 1919, contra Epitácio Pessoa.
Vale ressaltar que, antes disso, na 1ª Grande Guerra, defendeu que “os tribunais,
a opinião pública, a consciência não são neutras entre lei e crime” (VIANA FILHO,
1965, p. 358), contestando a posição de neutralidade inicialmente assumida pelo Bra-
sil no conflito, lutando para que nos aliássemos aos já Aliados contra o Eixo.
Rui já estava consagrado ao concorrer na campanha eleitoral contra Epitácio.
O pensador baiano comemorou o seu jubileu literário em 1918, pelo qual “a nação
inteira, representada pelo que havia de mais expressivo, o governo, o parlamento, os
tribunais, as academias literárias, associaram-se às homenagens tributadas ao após-
tolo” (VIANA FILHO, 1965, p. 367), fato que repercutiu, inclusive, em organismos
de imprensa estrangeiros. Um deles, o La Nación, de Buenos Aires, destacando a
importância de Rui, assim escreveu:
Rui Barbosa assiste à sua própria glorificação nacional. Não foi nunca pri-
meiro ministro, nem governador de província, nem Presidente da República.
Contudo, é a mais alta representação intelectual e moral do Brasil neste mo-
mento (VIANA FILHO, 1965, p. 367).
214
A candidatura de Rui Barbosa, em 1919, teria tudo para dar certo. Ele era, à
época, uma opção quase que natural, indivíduo que gozava de grande popularidade
e reconhecimento social. O apóstolo era, além de tudo, um sobrevivente no sentido
de estar vivo, tendo em conta que, contemporâneos seus, políticos como Campos
Sales, Rodrigues Alves, Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, entre outros, já ha-
viam falecido, enquanto Arthur Bernardes, Washington Luís e Getúlio Vargas ainda
eram muito novos. Assim, sobraria Rui Barbosa, como um bom candidato a uma
espécie de mandato tampão, que era o que buscavam as oligarquias nacionais, sem
representar grandes mudanças (FAORO, 2012, p. 680).
No entanto, Rui buscava mais do que um mandato tampão. Queria a refor-
ma constitucional que permitisse a intervenção do Estado nas relações trabalhis-
tas, como forma de proteger essa nova classe que crescia, ideal que “afugentava
os poderosos, que não desejavam saber do risco das modificações constitucionais”
(VIANA FILHO, 1965, p. 371). A própria incolumidade constitucional “vinha sen-
do ciosamente guardada pelas forças políticas que, desde a república, empolgaram o
poder” (FAORO, 2012, p. 683). Por isso, Rui, ao chegar com as ideias de reforma à
Constituição, passou a ser visto como um risco ao regime vigente à época, haja vista
que, para a elite do período, a busca por uma reforma constitucional poderia levar a
caminhos imprevisíveis, um risco que não estava disposta a correr.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 215
(VIANA FILHO, 1965, p. 374). Já a defender o outro lado, das livres convenções e
do Estado não interventor, estava Epitácio Pessoa. É sob este tema, a questão social,
portanto, que se desenvolve grande parte do debate de campanha em 1919.
Rui, inclusive, industrialista que era, ainda buscou aproximar os interesses do
operariado aos interesses dos industriais, alegando que é do interesse do próprio
industrial o ajuste com o operário e que capital e trabalho não eram entidades estra-
nhas. Pelo contrário, sustentou em campanha que um dependia do outro e, por isso,
deveriam trabalhar juntos (FAORO, 2012, p. 687).
Não obstante os esforços de Rui, seria da Paraíba o novo presidente. O resulta-
do demonstrou que, mais do que discursos e boas intenções, à época, o mais impor-
tante era ter à disposição a máquina política: o poder do campo era muito difícil de
ser vencido. E Epitácio foi eleito pelos grandes estados e pela oligarquia (FAORO,
2012, p. 691).
Mas a derrota não foi por completo. As urnas mostraram que Rui Barbosa,
embora considerado por alguns demagogo, sendo subversivo,
Pois bem, “às vezes luta-se para perder” (VIANA FILHO, 1965. p. 373). Mes-
mo assim, a partir daí “estava selada e consagrada a separação entre as camadas
médias e governo, este agora, não mais do que uma oligarquia que fala entre si,
sem repercussão popular” (FAORO, 2012, p. 689). Entre os governantes e a nação
já estavam enfraquecidas as relações de reciprocidade. Embora perdida a batalha, o
recado estava dado e a própria sociedade já não seria mais a mesma.
oligarquias cafeeiras que, misturadas ao leite mineiro, dividiram entre São Paulo e
Minas Gerais o comando da nação. Ora um, ora outro, o comando permaneceria nas
mãos de um ciclo fechado, que decidia os rumos da nação.
Era o presidente quem indicava seu sucessor, as eleições que eram vencidas no
“bico de pena” (FAORO, 2012, p. 641), uma máquina eleitoral que levava ao poder
aquele que a controlava. Houve esvaziamento da oposição. Era isso que se via com
a república, um povo bestializado (CARVALHO, 1987, p. 9), completamente exclu-
ído da tomada de decisões, que a tudo assistia sem nada compreender.
Rui mostrou-se indignado com essa situação. Via o coronelismo, o agrarismo e
o federalismo exacerbado como um atraso, como um forte obstáculo às suas ideias,
tanto econômicas, de implementar no Brasil um sistema que permitisse o incentivo
às indústrias, quanto políticas, de realizar a modificação constitucional.
A política do encilhamento havia sido uma primeira tentativa de Rui, enquanto
Ministro da Fazenda, de mudar o quadro econômico brasileiro, buscando uma base
industrial para a República que se formava, mas obteve resultados opostos. O au-
mento da emissão de papel moeda fez com que a indústria fosse incentivada, mas
por outro lado garantiu crédito e dinheiro fáceis à cafeicultura paulista. Como apon-
ta Faoro (2001, p. 586) “as emissões aceleram o plantio cafeeiro, graças ao crédito
abundante, dobrando a exportação, o período de 1891-1900”.
Como jurista, certamente não agradava a Rui a noção de um “juiz nosso”, de um
juiz que respondesse não à lei, mas sim ao coronel, ou de um delegado de polícia que
nada mais era do que um dos “funcionários” do coronel. Pensar que os direitos civis
dependiam da vontade de um coronel é como negar a importância ou relevância de
uma Constituição, ou de qualquer outra lei. Essa própria dependência dos trabalha-
dores rurais para com os coronéis deve ter sido um fator de influência para que Rui
buscasse uma legislação que, regulando as relações trabalhistas, viesse a proteger os
trabalhadores urbanos, sabendo que, assim como os trabalhadores rurais, os urbanos,
se deixados às livres convenções, ficariam por completo na dependência do industrial.
Os caminhos que a República assumiu, legitimada pela Constituição liberal,
escrita pelo próprio Rui, não o agradavam nem um pouco. Dessa maneira, era preci-
so reformar tanto a Constituição quanto o modo de se fazer política. Essa seria a sua
nova bandeira. Não havia meios de implementá-la senão disputando a presidência
do país e pondo essas questões em pauta.
Esse período brasileiro é marcado por um dos mais fortes êxodos rurais da
história nacional. Duas massas populacionais são responsáveis pelo inchamento das
cidades. Primeiro, os negros libertos que, principalmente nos estados do Rio e da
Bahia, formaram os chamados “núcleos africanos”, as atuais favelas (RIBEIRO,
1999, p. 194). Da mesma forma, o monopólio da terra e a monocultura levaram os
camponeses, muitos dos quais imigrantes que substituíram a mão de obra escrava,
a se deslocar para as cidades. Assim, a implementação dos princípios democráticos
junto com a República consagrou a figura do cidadão enquanto classe pobre e atra-
sada (MARINS, 1998, p. 133).
A formação do operariado propriamente dito, no entanto, teve presença mas-
siva de imigrantes na composição do movimento operário, que, oriundos tanto di-
retamente da Europa para as indústrias, como advindos do êxodo rural, auxiliaram
na formação de uma rápida conscientização dessa nova classe de trabalhadores. O
Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo indicou que 92% dos operários
industriais no estado no ano de 1900 eram estrangeiros (FAUSTO, 2006, p. 150).
Havia, ainda, um quadro de baixíssima salubridade nas fábricas paulistas. Bo-
ris Fausto (2006, p. 155-156) também comenta que mais da metade dos operários
industriais tinham menos de 18 anos. Outro dado surpreendente para os dias atuais
é que 32% dos operários de uma das fábricas do famoso grupo industrial Matarazzo
eram menores de 16 anos, que trabalhavam 13 horas por dia.
Esse quadro retrata a miséria dos trabalhadores do período e não passou des-
percebido por Rui. Durante o discurso presidencial, ele utilizou-se de dramaticidade
para demonstrar o modo precário de vida dos trabalhadores e justificar a luta pela
aquisição de direitos dessa classe, marginalizada socialmente.
Nesse contexto, surgiram correntes de pensamentos que guiaram o movimen-
to operário na busca por transformações sociais: o anarquismo, os reformistas, os
socialistas e os mediadores. Conhecê-las importa entender quais ideias pairavam so-
bre a classe operária e com quais posicionamentos Rui Barbosa houve de dialogar.
O anarquismo brasileiro se configurou em sua forma anarcossindicalista, que
enxergava o sindicado como peça basilar na construção de uma nova sociedade.
Para tanto, defendia o fim do Estado e considerava o embate direto, como as greves,
a base de sua ação política. Esse setor do movimento operário rejeitava o processo
democrático e o eleitoral e possuía uma forte tendência internacionalista. Com pre-
sença massiva de imigrantes, também foi a corrente de pensamento que mais cati-
vou a classe operária em sentido estrito, porém não sendo tão aceito, por exemplo,
pelas classes médias (FAUSTO, 2006, p. 162).
Importante ressaltar a percepção de Boris Fausto (2006, p. 166) acerca do tipo
de discurso do movimento anarcossindicalista. Essa corrente de pensamento não
utilizava o discurso marxista, que se vinculava naquela época ao Estado Social, em
especial o alemão.
Das três correntes essa será aquela que Rui Barbosa terá menos empatia. O
caráter violento e o descaso com o processo eleitoral são contrários ao pensamento
de Rui Barbosa, que incondicionalmente defendeu o Estado de Direito e o uso do
processo legislativo. Como se verá, Rui tentou se distinguir dessa corrente radical.
220
36 Adeodato (2008) faz eco as palavras de Aristóteles quando diz que ethos, pathos e logos são expressões “utilizadas na
Retórica de Aristóteles como meios de persuasão na comunicação e compõem a autorrepresentação dos oradores: ‘A
primeira espécie depende do caráter pessoal do orador; a segunda, de provocar no auditório certo estado de espírito; a
terceira, da prova, ou aparente prova, fornecida pelas palavras do discurso propriamente dito’”.
222
Rui inicia o discurso fazendo alusão ao personagem Jeca Tatu, da obra Urupês,
de Monteiro Lobato (2010). Utiliza-se da figura do Jeca Tatu como arquétipo para
“aquele tipo de raça que, ‘entre as formadoras da nossa nacionalidade’, se perpetua, ‘a
vegetar de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso’” (BARBOSA,
1999, p. 367).
Rui Barbosa mescla a técnica da repetição e da exemplificação para sustentar
sua tese de que o setor social, representado pelo arquétipo do Jeca, o qual – apesar
dos grandes eventos históricos acontecidos desde a independência do Brasil –, não
havia alterado sua condição e permanecia “de cócoras” (BARBOSA, 1999, p. 367).
A alusão ao texto e ao universo simbólico da personagem da obra de Monteiro
é uma estratégia continua de Rui Barbosa. Para exemplificar:
Para Jeca Tatu, “o ato mais importante da sua vida é votar no Governo”. “Vota.
Não sabe em quem, mas vota”. “Jeca por dentro rivaliza com Jeca por fora. O
mobiliário cerebral vale o do casebre”. Não tem o sentimento da pátria, nem,
sequer, a noção do país. De “guerra, defesa nacional ou governo”, tudo quanto
sabe se reduz ao pavor do recrutamento. Mas, para todas as doenças, dispõe de
meizinhas prodigiosas como as ideias dos nossos estadistas. Não há bronquite
que resista ao cuspir do doente na boca do peixe, solto, em seguida, água abaixo.
Para brotoeja, cozimento de beiço de pote. Dor de peito? “O porrete é jasmim-
-de-cachorro”. Parto difícil? Engula a cachopa três caroços de feijão mouro e
“vista pelo avesso a camisa do marido” (BARBOSA, 1999, p. 368).
Ao sustentar que a classe dirigente brasileira enxerga seus cidadãos como se-
res inferiores, sem condições de racionalidade e muito menos de possibilidade de
participação autônoma no processo político, Rui Barbosa tenta chamar atenção dos
ouvintes por meio de elogio aos cidadãos, afirmando que os brasileiros, em verdade,
não seriam como o Jeca Tatu. É nesse sentido que ele vai afirmar que os cidadãos
são uma das majestades as quais devem se subordinar a classe política.
Rui (1999, p. 368) continua seu discurso dizendo: “Às majestades da força
nunca me inclinei. Mas sirvo às do direito. Sirvo ao merecimento. Sirvo à razão.
Sirvo à lei. Sirvo à minha pátria. São essas as que eu reconheço neste mundo, e é
uma delas a com que em vós me encontro neste momento”.
Assim, Rui apresenta quais as “majestades” a que ele se sujeita. Inicia se posi-
cionando contrário à ação violenta. Talvez já seja um adendo para rejeitar as formas
de mudança por meio da força. Nesse contexto, ele resume suas “majestades” em
direito, merecimento, razão, lei e pátria. Pode-se inferir o apreço do orador à lei e
à pátria, e ao merecimento, que demonstra seu caráter liberal. Essa afirmação de
Rui, contudo, possui um tom de conservadorismo, principalmente se se considerar
o ambiente anarcossindicalista que predominou entre as correntes políticas do mo-
vimento operário. Possivelmente esse seja um instrumento retórico para objetivar
suas ideias, como se elas não fossem seus interesses, mas sim de todos. Com isso
ele se põe na posição de mero subserviente do legítimo interesse da pátria brasileira.
Vale ressaltar que Rui também se utiliza da figura do dialogismo37, comunican-
do-se diretamente com os ouvintes, sugerindo serem eles também uma das majes-
tades a quem ele se curva. Elogia-os também chamando-os de “barreira do poder”,
“reservatório da vida” (BARBOSA, 1999, p. 372).
O dialogismo é também utilizado em outros fragmentos do discurso. Por exemplo:
operários brasileiros, que viestes hoje a mim, que me honrais com o desejo
de me ouvir, que me estais dando a vossa atenção, a importância do elemento
que representais cresce a olhos vistos, dia a dia, mas não principalmente por
irdes crescendo em numerosidade, não por engrossardes em vulto, não por
aumentardes em materialidade, bruta; sim por vos elevais em inteligência,
sim porque melhorais em moralidade; sim porque vos desenvolveis no sen-
timento de vos mesmos, do vosso valor no meio dos outros fatores sociais,
das vossas necessidades na cultura desse valor. (BARBOSA, 1999, p. 372).
37 Figura de linguagem que se utiliza de instrumentos como perguntas e vocativos para chamar a atenção do leitor e simular
conversa com ele. Esse ornamento linguístico será melhor trabalhado no decorrer do texto.
224
Que conta darão a Deus esses governos, senhores, de tudo o que ambiciona-
ram, poderosos para tudo o que quiseram, livres em tudo o de que cogitaram,
– que contas darão a Deus da sorte dessas gerações, que a revolução de 13 de
maio deixou esparsas, abandonadas à grosseria originária, em que a criara e
abrutara o cativeiro? (BARBOSA, 1999, p. 375).
Por conseguinte, sustenta que a causa operária traz “um corpo de reivindicações
à dignidade humana do trabalhador e à ordem humana da sociedade” (BARBOSA,
1999, p. 379). Todo esse esforço retórico de Rui parece caminhar em dois sentidos.
Primeiro, na criação do ethos que o legitimasse como defensor da causa operária; e
segundo, na busca de se prevenir e rebater as críticas quanto à contrariedade de seus
posicionamentos, anteriormente liberal e agora social. Com a analogia da relação
social vivida entre os antigos cativos e os operários de sua época, encontra-se o
fundamento de Rui para explicar sua mudança de pensamento político e o ideal de
justiça na defesa das classes necessitárias.
O trecho demonstra como Rui entende a sociedade. Para ele, não é mais
possível enxergar o indivíduo sozinho, separado da coletividade. Assim, a sociedade
não seria apenas um conjunto de indivíduos, mas haveria uma coesão a interligar
esses indivíduos. Importante notar, também, como Rui entende que, a partir da
noção de sociedade como grupo orgânico, encontra-se uma aproximação entre
direito e moral, já que desta associação “o egoísmo” cede “à solidariedade humana”
(BARBOSA, 1999, p. 380). Constata e defende, então, a necessidade da extensão
dos direitos sociais.
38 “consiste na expressão franca de um pensamento, que choca o público e que mal dispõe o orador contra o seu próprio
partido. Ela faz-se acompanhar, no mais das vezes, por uma formula, em que se pede desculpa” (LAUSBERG, 2004. p. 257).
39 “nela o orador pode dirigir-se aos seus adversários, a pessoas ausentes (seres supraterrenos ou pessoas de uma
vivência fantasiosa, ou mesmo a coisas” (LAUSBERG, 2004, p. 259).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 227
• Não sei bem, senhores, se, no tracejar deste quadro, teve o autor só em
mente debuxar o piraquara do Paraíba e a degenerescência inata da sua
raça. Mas a impressão do leitor é que, neste símbolo de preguiça e fata-
lismo, de sonolência e imprevisão, de esterilidade e de tristeza, de sub-
serviência e hebetamento, o gênio do artista, refletindo alguma cousa do
seu meio, nos pincelou, consciente, ou inconscientemente, a síntese da
concepção, que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram
(BARBOSA, 1999, p. 368-369).
• Mas, senhores, se é isso que eles vêm, será isto, realmente, o que somos?
(BARBOSA, 1999, p. 370).
• O Brasil não é isso. É isto. O Brasil, senhores, sois vós (BARBOSA,
1999, p. 371).
• Operários brasileiros, que viestes hoje a mim, que me honrais com o
desejo de me ouvir, que me estais dando vossa atenção, a importância
do elemento que representais crescem a olhos vistos, dia a dia [...]
(BARBOSA, 1999, p. 371).
• Risum teneatis, amici? Senhores meus, não arrebentais de riso ao espe-
táculo desses santos, desses altares e desses levitas? Ou entrais também
na pilhéria, começando a sentir, como eu, pruridos reverenciais para com
essas ortodoxias, essas religiosidades, esses pontífices do catecismo con-
servador (BARBOSA, 1999, p. 383).
40 “consiste na imitação de um diálogo do orador com o seu adversário ou com o público. Neste processo, o orador repete,
interrogando, uma pergunta ou uma afirmação, por si próprio forjadas, como se elas proviessem do adversário. Depois
disto acrescenta-lhes uma resposta antitética” (LAUSBERG, 2004. p. 255).
228
Mas Rui não para aí. Outra figura de linguagem muito utilizada por ele é a iro-
nia41. Durante o discurso, o orador utiliza-se de expressões, perguntas e termos com
o objetivo de ridicularizar seus adversários políticos e as críticas que lhe são feitas.
Exemplos desse recurso no texto de Rui Barbosa que podemos destacar são:
41 “é a utilização do vocabulário que o partido contrário emprega para os fins partidários, com firme convicção de que o
público reconhecerá a incredibilidade desse vocabulário [...] as palavras irônicas são compreendidas num sentido que é
contrário ao seu sentido próprio [...] O sinal geral da ironia é o contexto” (LAUSBERG, 2004, p. 163).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 229
42 Désiré-Joseph Mercier foi cardial e educador belga que liderou um movimento de retorno à escolástica tomista no século
XIX. Poucas referências acadêmicas existem sobre o cardeal. No entanto, a Encyclopædia Britannica alude que “foi
ordenado sacerdote em 1874 e fundou em 1894 o Instituto Superior de Filosofia de Lovaina [na Bélgica]. […] O instituto se
tornou um grande centro de Tomismo, publicando o Revue Néoscolastique e desenvolvendo filosofias contemporâneas”
(ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, on-line).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 231
Perdidas as eleições, Rui, que tinha conseguido grande atenção no meio social,
diria “A nação entendeu: o que me basta” (FAORO, 2012, p. 689). Ao que parece, os
efeitos dessa campanha de Rui se fariam sentir com o passar do tempo, a começar
pelo grande vácuo que se criou entre a sociedade urbana, na qual o apóstolo obteve
grande aceitação, e o governo, que ainda privilegiava o campo e por ele era susten-
tado. Era como se estivesse quebrado o vínculo de solidariedade entre a nação e seus
dirigentes, que se tornaria mais tortuosa a partir de então (FAORO, 2012, p. 689).
A luta pelos direitos sociais tomara um novo rumo. Antes, limitava-se quase que
exclusivamente a setores dos trabalhadores e de alguns intelectuais pouco conhecidos.
Mas agora, com a adesão de Rui Barbosa, a Águia de Haia, um dos intelectuais, já à
época, de maior renome no país, a questão dos direitos sociais tomaria uma outra di-
mensão, um outro patamar de relevância social na República Velha, se dividindo entre
antes e depois da campanha de 1919, onde figurou como principal debate.
É certo que os trabalhadores já lutavam por direitos sociais antes disso, como
bem nos demonstra a greve geral de 1917 (CARVALHO, 2004, p. 63). No entanto,
o que se quer mostrar é que no momento em que esse tema sai de uma luta exclusiva
de trabalhadores para ser discutido em plena campanha presidencial, como o princi-
pal assunto, tendo como defensor um dos intelectuais mais reconhecidos do país, a
questão assume um novo patamar.
Por isso mesmo não demoraria muito para que as coisas começassem a mudar.
Já em 1923, quatro anos após a disputa, seria criado o Conselho Nacional do Trabalho,
um fundo de aposentadoria e pensão para os ferroviários, considerada, “a primeira lei
eficaz de assistência social” (CARVALHO, 2004, p. 63). Em 1926 foi regulamentado
o direito de férias e o instituto da previdência para funcionários da União.
O forte debate sobre essas questões no discurso de Rui, ao que parece, surtiu
efeito e modificou a retórica material quanto ao trato dos direitos dos trabalhadores,
cujas leis recém-editadas tinham ligação direta com as ideias da Águia de Haia, e
logo influenciaram as legislações getulistas, quando se instituiu, de vez, uma ampla
regulação legal das relações trabalhistas.
232
Rui não inventou os direitos sociais, não seriam eles fruto da genialidade do
apóstolo. Muito pelo contrário, estes já eram discutidos amplamente no exterior, e a
Constituição do México de 1917 já os tinha adotado. Em países como a Inglaterra,
onde a revolução industrial já havia atingido sua segunda fase, também já se discutiam
direitos sociais há tempo, e Rui, atento aos acontecimentos estrangeiros, sobretudo
europeus, já tinha conhecimento das mudanças que se operavam no ramo industrial.
Mas, embora Rui Barbosa não os tenha inventado, ele foi o patrono desses
direitos em terras brasileiras. Patrono não no sentido de o primeiro a falar deles
no Brasil, mas sim de um patrocinador indispensável, um mecenas, sem o qual os
direitos sociais teriam demorado ainda mais para serem reconhecidos e se consoli-
darem no país. Inserir esse tema como assunto principal num discurso de candidato
a Presidente da República, por certo, contribuiu para isso.
Veja o que diz, por exemplo, Amauri Mascaro Nascimento (2011, p. 421), em
livro de direito do trabalho:
Essa fala muito se aproxima daquilo que Rui Barbosa disse em sua cam-
panha presidencial:
O operário não tem meios de constranger, nos seus ajustes, o patrão à cláusula
do seguro. Como nos mais dos outros capítulos, em que o interesse do traba-
lho aparenta colidir com o interesse do capital, a dúvida, aqui, só se resolve,
seriamente, com a substituição do princípio contratual pela tutela legislativa
(BARBOSA, 1999, p. 393).
o exercício de tal liberdade, levado a extremos, mostrou que esse modelo, em vez de
libertar, cada vez mais escravizava a parte social ou economicamente mais fraca: a
pretensa isonomia das partes enfraquecia-se cada vez mais ante o poderio econômico.
Foi percebendo essa realidade que se criou o hoje chamado dirigismo con-
tratual, que consiste na proibição ou imposição de certos conteúdos nos contratos
(BIERWAGEN, 2007, p. 46), que nada mais é do que a “substituição do princípio
contratual pela tutela legislativa” (BARBOSA, 1999, p. 393), que Rui já reclamava
em prol dos trabalhadores.
Por isso que o pensamento de Rui é indissociável das ideias jurídicas da atualida-
de, do viés que o direito tomou nos dias atuais. Suas teses ainda são defendidas e estão
presentes nos manuais de direito da atualidade, ainda que pouca justiça se faça a Rui
Barbosa como sendo o precursor desses direitos sociais no Brasil.
Mesmo que não tenha usado a expressão dirigismo contratual, o que seria isso
senão a defesa de uma tutela legislativa para os trabalhadores? Ou mesmo, o que seria
a parte mais desvalida, reconhecida por Rui (1999, p. 399), senão aqueles que hoje cha-
mamos de hipossuficientes?
Indo ainda mais longe, como poderíamos adotar hoje, no Brasil, o dirigismo
234
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AS TESES DO JOVEM PONTES DE
MIRANDA SOBRE OS DIREITOS DO
HOMEM COMO VARIANTES
DO SOCIALISMO JURÍDICO
peração do paradigma liberal; interage num contexto marcado pelo acirramento das
contradições sociais propiciado pela inserção do Brasil no processo de acumulação
de riqueza do capitalismo como exportador de capital.
Em cima das bases referidas, entende que os direitos humanos devem ser ma-
terializados pela universalização do direito ao trabalho, pelo direito à assistência,
pelo direito à saúde, pelo direito à subsistência e pelo direito à educação, com o ob-
jetivo de amenizar as tensões sociais. A estratégia que Pontes de Miranda segue para
conciliar a sua teoria dos direitos humanos com a contradição principal da economia
de mercado é a proposição de uma ordem jurídica constitucional promovedora de
direitos fundamentais, mas a partir da radicalização das constantes socializações
jurídicas, pela qual o homem, indivíduo-social, progride moralmente a partir de
círculos mais elevados. Defende o homem concreto, histórico e real e o socialismo
como produto desse homem.
O artigo sustenta a hipótese de que a tese ponteana não se trata de uma variante
do socialismo científico de Marx e Lênin, mas pode ser tomada, comparativamente,
como do socialismo jurídico de Anton Menger (1841-1906), jurista austríaco, de-
fensor de que a radicalização dos institutos jurídicos seria suficiente para produzir
transformações na sociedade capitalista e a sua transição ao socialismo. Para cor-
roborar a tese do artigo, a estratégia discursiva de Pontes de Miranda metaforiza
uma teoria socialista a partir da figura do Estado, mas como ente acima das classes
sociais, como núcleo gestor da economia e da sociedade e regulador dos conflitos
e das contradições sociais. Sua tese advoga um constitucionalismo democrático e
reformador, promovedor e aprofundador de garantias fundamentais gerais à base
da conciliação entre as classes sociais. A “Constituição socialista” ponteana é uma
metáfora que se funda, sobretudo, em vínculos externos ao direito e em fatores con-
cretizadores de poder. Como o grau desses vínculos e fatores de poder é medido pela
existência e pelo choque de diferentes classes sociais, a Constituição aparece como
um meio fundamental para a efetividade do equilíbrio social e fator de prevenção da
violência política e revolucionária.
Ao considerar as questões acima, o ensaio coloca o seguinte problema: as
posições sobre os direitos humanos de Pontes de Miranda têm relação com as teses
de Anton Menger? Caso afirmativo, em que medida elas podem ser consideradas
variantes do socialismo jurídico?
Certa vez dissemos que as fornalhas e os capinzais onde se metem café, mi-
lho, algodão, livros e carnes, são os círios acesos pelo individualismo capita-
lista, antes de morrer. Infelizmente o suicida excêntrico não se satisfaz com
isso: da queima de gêneros e de objetos maquino faturados passará, segundo
sabe fazer, à queima de homens, nas praças públicas e nas trincheiras.
Até aqui se recorria à legislação social (objeto de mofa, por parte dos socia-
listas, e com razão). Agora, com a praxe do direito ao trabalho, do direito à
subsistência, da escola única, do direito à assistência, e a consagração parcial
em Constituições (o que mostra a evolução do direito constitucional e, ao
mesmo tempo, da teoria do Estado), o aspecto da questão mudou. Não se trata
de medidas de reforma social hipócritas; trata-se de direitos concretos, que
valem como outra Magna Carta e justificarão reivindicações decisivas, além
do mérito de obrigarem a levarem-se em conta, nos orçamentos, a alimenta-
ção, a casa, a roupa, a medicina, a educação e a diversão de todos (PONTES
DE MIRANDA, 1933c, p. 33).
Na citação acima, embora o jurista utilize uma metáfora, o certo é que ele
vai fazer também uma analogia. Reduz a definição de reforma à concretização de
direitos fundamentais, tenta provar que esses direitos permitem ampliar a esfera da
cidadania das classes subalternas. O seu objetivo é anular tudo o que a relação de
produção capitalista exclui e reforçar a sua própria tese de que os novos direitos
ampliam a democracia e restringem os arbítrios dos governantes.
Essas importantes considerações sobre a analogia, são fundamentais para a
compreensão da questão metafórica em Pontes de Miranda na discussão sobre os
novos direitos do homem, pois, conforme já dito, a metáfora condensa a analogia,
misturando “o que se quer provar” e “o que serve para provar”, torna perceptível
termos muito diferentes, que não se vinculam no dia a dia. Por isso mesmo, a me-
táfora é mais persuasiva que a analogia, pois além de ser redutora, ela transforma
comparação em identidade, anula as próprias diferenças entre os termos, dentro, é
claro, do contexto do discurso. A metáfora vai utilizar outras expressões antes de
introduzir os termos, tais como “é” e “tem”, sempre com afirmações definitivas
(REBOUL, 2000, p. 188).
Entretanto, muitas expressões normais podem ser empregadas metaforica-
mente, é suficiente que ela possa assim ser percebida, inclusive com o emprego
da analogia. Essa percepção é dada pelo contexto em que a expressão é utilizada.
Aqui, a metáfora desempenha todas as funções da analogia, reforça-a, pois quando
a primeira é condensada se integra na linguagem (PERELMAN; OLBRECHTS-
-TYTECA, 2005, p. 463, 465).
Ao mostrar a viabilidade de se efetivar a ampliação da esfera da cidadania, tal
como fez o jurista austríaco, Pontes de Miranda emprega os seguintes argumentos:
O determinismo econômico simplista (Marx, Plekhanov, Kautsky) não conse-
guiu dominar os espíritos do século XX. Mas foi-lhes fecundo. Chamou aten-
ção para o importante papel da estrutura econômica e para o caráter que ela
imprime às sociedades e às almas. Só o seu exclusivismo é que foi censurado.
Não são somente as condições econômicas que enformam a moral, a política,
o direito, a religião e a arte. Contra tal simplismo ergue-se outro, – o do tra-
balhista Ramsay Macdonald: o homem é determinando e determina-se, pois
‘é possível dizer que nos deram o fio a trama da vida, mas podemos modificar
o modelo que nos deram a tecer’. Este, evidentemente, se liga a outras fontes
filosóficas (PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 97-98).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 247
Hoje nós sabemos um pouco mais do que isso, sabemos que a interdepen-
dência dá conta das propriedades físicas de cada um dos processos sociais
de adaptação e que os coeficientes variam em ciclo social assaz expressivo
(PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 99).
não emprega qualquer metáfora, mas aquelas baseadas em imagens claras, propor-
cionais ao contexto do discurso, ligando de forma arrojada termos estranhos, de
forma a ampliar o efeito persuasivo do seu discurso, o que as linhas citadas acima
constituem um exemplo.
O movimento comunista é visto a partir do princípio de evolução pacífica e
gradual do capitalismo ao socialismo e da extinção das formas estatais, o que se
harmoniza também com as teses de Anton Menger. Essa “evolução pacífica” força
Pontes de Miranda (1933a, p. 71-72, 80-81, 88) a ver o Estado como um ente neutro
e de garantia das liberdades e a serviço do pluralismo político. A visão ponteana
parece querer garantir a individualidade contra o poder político (PONTES DE MI-
RANDA, 1933a, p. 92, 103).
Ao substituir a defesa da ruptura pela da transição (PONTES DE MIRANDA,
1933a, p. 85), Pontes de Miranda coloca em segundo plano o papel das forças produti-
vas sobre a catalização das demais relações sociais e, ao mesmo tempo, atribui função
principal e definitiva à estrutura jurídica. Essa visão leva o jurista a se preocupar com
a segurança jurídica, o que só é possível se a teoria geral do direito separar a ciência
do direito do direito existente (PONTES DE MIRANDA, 1947, p. 110).
A tese ponteana é a de que não se podem suprimir as formas capitalistas de
produção antes da realização do socialismo integral. Daí a proposta da transição
gradual e pacífica rumo a um ideal socialista (PONTES DE MIRANDA, 1932,
p. 87), o que leva a assunção da luta social no campo do Direito de um projeto
reformador do capitalismo que tenha por meta reinvindicações de igualdade ma-
terial, isso passa pela universalização do direito ao trabalho, pela realização da
assistência, pelo asseguramento do direito ao ideal, à subsistência e à educação
(PONTES DE MIRANDA, 1932, p. 95-96). Aqui, o uso das metáforas, alterando
e distorcendo significados, cumpria grande papel persuasivo no discurso, pois
permitia conduzir melhor a população na consecução dos objetivos postos pelo
Estado na transição socialista rumo ao comunismo.
Essas teses estão em consonância com o socialismo jurídico. A posição pon-
teana resulta em que o mundo do trabalho deve não só exprimir seus interesses no
ordenamento jurídico, mas também aceitar a seara das instituições jurídicas e de-
mocráticas como única realidade possível à construção e uma sociedade alternativa
ao capitalismo.
REFERÊNCIAS
uma “atitude retórica” é anterior a esta denominação, porque como foi dito anterior-
mente, a retórica nasce com a linguagem e a linguagem nasce com o ser humano.
Como adverte Olivier Reboul (2004, p. 01), “é inconcebível que os homens não
tenham utilizado a linguagem para persuadir”, ou seja, é impossível que os homens
não sejam vistos como “seres retóricos”.
É interessante pensar que quando os homens do Paleolítico, cerca de 15.000-
10.000 a.C., faziam desenhos nas paredes das cavernas, não faziam outra coisa se-
não tentar “convencer” a realidade ou um ser divino a lhes beneficiarem, ou seja,
não faziam outra coisa senão tentar persuadir a natureza, tentar submeter uma força
que lhes era contrária.
[...] todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qual-
quer. Era nesse sentido que Platão falava de arte e, por isso, não estabeleceu
distinção entre arte e ciência. Arte, para Platão, é a arte do raciocínio (Fed. 90
b), como a própria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética (Fedro,
266 d). Arte é a poesia [...]. Aristóteles restringiu notavelmente o conceito de
arte. [...]. Somente o possível que é objeto de produção é objeto da arte. [...]
a arte se define como o hábito, acompanhado pela razão, de produzir alguma
coisa (Et. nic., VI, 3-4). [...]. São arte a retórica e a poética, mas não é arte a
analítica (lógica) cujo objeto é necessário (ABBAGNANO, 2007, p. 92-93).
Não é fácil definir se a ideia dos poemas homéricos, segundo a qual o oceano
é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales, que considera a
água o princípio original do mundo; seja como for, é evidente que a represen-
tação do mar inesgotável colaborou para a sua expressão. [...] Parafraseando o
dito de Kant, poderíamos dizer que a intuição mítica, sem o elemento forma-
dor do Logos, ainda é ‘cega’ e que a conceituação lógica, sem o núcleo vivo
da ‘intuição mítica’ originária, permanece ‘vazia’.
Sendo assim, entende-se que a retórica não é simplesmente mais uma ferra-
menta colocada à disposição do direito, da filosofia ou de qualquer outra disciplina
que dela se utilize, mas a retórica representa um instrumento de investigação, um
espaço para o exercício da dúvida, assim como a filosofia, ou seja, a retórica é uma
forma de ser da filosofia43, uma vez que a retórica fornece subsídios analíticos para
que o próprio discurso filosófico seja investigado.
Observe-se, no entanto, que as conclusões aqui esboçadas servem simples-
mente como uma indicação, uma sinalização de perspectivas privilegiadas por este
texto, uma vez que discutir pormenorizadamente a relação “retórica x filosofia” é
um objetivo que foge às pretensões almejadas, até mesmo porque, como adverte
Manuel Alexandre Júnior (2005, p. 26): “Esse foi, aliás, o grande conflito travado na
Antiguidade: o conflito de competência entre filósofos e retóricos”. E Jaeger (2003,
p. 1060) complementa:
Não é possível pintar em todas as suas fases este debate (o pleito da filosofia e
da retórica, cada uma das quais pretendendo ser a melhor forma de educação),
tanto mais que abundam neles as repetições e às vezes os seus representantes
não têm, como personalidades, grande interesse em si mesmos.
Por sua vez, retomando a citação que deu origem a esta primeira discussão,
é oportuno lembrar que para Aristóteles a retórica e a poética são “artes” ou repre-
sentam uma tekchné. Diante disto, será possível perceber regras ou habilidades ne-
cessárias que aproximem a “arte retórica” da “arte poética”? Ou será que a pergunta
mais adequada seria: em que ponto elas se distanciam?
Segundo Manuel Alexandre Júnior (2005, p. 33),
43 Em seu texto Retórica como metódica para estudo do direito, João Maurício Adeodato (2009, p. 15-6) se ocupa da relação
entre retórica e filosofia, partindo da concepção da “retórica como uma espécie de filosofia”.
258
44 “Inventado é o nome que ninguém usa, mas que o próprio poeta forjou” (1999, p. 135)
45 “Como, à veloz passagem dos anos, os bosques mudam de folhas, que as antigas vão caindo, assim perece a geração
velha de palavras e, tal como a juventude, florejam, viçosas, as nascediças. Somos um haver da morte, nós e o que é
nosso.” (HORÁCIO, 1999, p. 57)
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 259
Ocorre que, neste caso, o fato de não ser uma descrição absolutamente “estéril”
do real não significa que a poesia (ou a ficção) é algo “oposto” ao real; muito pelo con-
trário, uma vez que “poesia é imitação”, ela está impregnada pelo real, é uma espécie
de “mergulho” no real. Pensar a poesia ou a ficção como algo “oposto ao real” é rati-
ficar a ressalva platônica relativa aos poetas; é pensar a poesia ou a ficção como uma
espécie de “afastamento”, de distanciamento. No entanto, o que ocorre é exatamente
o oposto: ao recriarem a realidade, os poetas não se afastam dela; aproximam-se, pro-
movendo um valioso mecanismo de interpretação das ações humanas.
Ora, que a retórica possui preocupações literárias é uma conclusão relativa-
mente simples de se construir, mas e quanto aos “fins poéticos”? A retórica, como
forma de elaboração do discurso, é também uma recriação ou uma imitação do real,
uma vez que tal “imitação” não é algo “oposto ao real”?
Paul Ricoeur (2005, p. 23-4) destaca que à tríade “retórica – prova – persua-
são”, Aristóteles opõe a tríade “poiesis – mimesis – catharsis”, ou seja, os “fins po-
éticos” são diversos dos “fins persuasivos” porque os primeiros almejam à catarse
(mecanismo pelo qual os espectadores poderiam purgar-se dos sentimentos de “terror
e piedade”, através das sensações experimentadas na tragédia), enquanto os “fins per-
suasivos”, como o nome sugere, buscam o convencimento; não pretendem apresentar
o indivíduo aos seus próprios sentimentos ou a si mesmo (como faz a tragédia e seus
fins catárticos), mas pretendem apresentar o homem ao outro homem, fornecendo-lhe
ferramentas que facilitem o diálogo ou que tornem a comunicação mais eficiente.
É esta predisposição ao diálogo que faz com que a retórica – como forma de
elaboração do discurso – seja um instrumento colocado a serviço da ação, da polí-
tica: ela é uma forma de construção do discurso que pressupõe a presença do outro,
afinal a persuasão não é necessária se não houver resistência e é exatamente esta
resistência que torna necessário o conhecimento das razões do outro, com o objetivo
de tornar adequado o discurso daquele que visa convencer. É preciso antecipar-se
às razões do outro e esta antecipação fortalece e elabora os argumentos daquele que
pretende persuadir.
Por outro lado, a poética não é feita para a resistência. A teoria da literatura
criou um conceito bastante elucidativo para referir-se a esta situação: é o conceito
de “pacto ficcional”. O espectador ou o leitor compromete-se a aceitar – sem maior
resistência – a realidade recriada pelo autor. O autor não precisa convencer o espec-
tador ou o leitor que a obra de ficção é ou não é real; é ou não é verdadeira, pois o
espectador ou o leitor sabe ou está disposto a crer que aquele espetáculo ou aquele
romance são recriações do real e que não pretendem ostentar a qualidade daquilo
que é real ou verdadeiro. Este é um pressuposto do universo poético. Quando o
autor pretende ou se propõe a convencer que aquilo que criou é algo “real” ou “ver-
dadeiro”, o espaço poético é transposto e surge o espaço retórico.
É por esta razão que tanto Aristóteles, quanto Horácio ressaltam em suas Po-
éticas o valor da verossimilhança, pois as obras de “ficção” não devem promover
uma discussão (ou qualquer espécie de resistência ou constrangimento) entre o au-
tor e o espectador ou o leitor, uma vez que tais obras devem favorecer à catarse e
260
Como a “vida real” não comporta um “pacto ficcional”, o retor precisa distin-
guir-se de um “autor de ficção” e faz isto impondo-se através da lógica de seus argu-
mentos. O retor, ao contrário do “autor”, não conta com a cumplicidade do auditório
e precisa provar que as ideias que expõe são verdadeiras ou, ao menos, razoáveis.
Isto é o inverossímil que precisa tornar-se verossímil: convencer o auditório de que
a “ficção” criada pelo retor é real. É por esta razão que nas tríades citadas anterior-
mente, relativas às oposições entre a retórica e a poética aristotélicas, Ricouer opõe
“prova à mimesis”, porque enquanto o autor pretende que o espectador veja através
de (ou com) seus olhos (do autor), destacando o aspecto mimético da criação; o
retor pretende que o ouvinte pense através de (ou com) seu raciocínio (do retor),
destacando o aspecto lógico da criação.
Sendo assim, é possível concluir que a retórica (como forma de elaboração do
discurso) é, sim, uma espécie de recriação do real ou de “ficção”, na medida em que
qualquer tentativa de “enformar” o real ou de construir um discurso é uma forma
(ou “fôrma”) de recriar o real. A diferença fundamental entre a poética e a retórica
(ou dos “fins poéticos” e dos “fins persuasivos”) é a maneira como o outro se apre-
senta ao autor ou ao retor: como um cúmplice ou como um adversário.
Desta maneira, não é de se estranhar que o direito tenha se mostrado um terreno
tão fértil para a retórica. Assim como outras formas de interpretação do real, o direito
pode ser compreendido como uma forma de ficção que precisa ser exposta como “re-
alidade”. É certo que o direito possui referências reais, “fatos” cuja realidade pode ser
demonstrada, no entanto a interpretação destes fatos é construída pela compreensão
dos indivíduos que se ocupam do direito, ou seja, é construída na “mente” dos juristas,
legisladores e advogados e são, portanto, uma espécie de ficção.
Mas de que espécie de ficção é o direito? Em primeiro lugar, e como já foi de-
monstrado, o direito é uma espécie de ficção que se integra ao espaço retórico e não,
ao espaço poético, porque ele pretende convencer o auditório de que as ideias que
constrói são “verdadeiras” ou “reais”. Sobre isto, observa Bourdieu (2007, p. 244-5):
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 261
Não é por acaso que no prólogo do livro de Beviláqua o direito esteja disputando
“tinta e papel” com a literatura e o jornalismo. Isto ocorre porque o “homem do direi-
to” ou o “homem de leis” não estava completamente entregue ou restrito ao espaço
de sua atividade específica. Muitas vezes, antes de ser um “homem do direito”– ou
mesmo sendo um “homem de leis” – o estudioso ou o pensador do Século XIX que
se dedicava à atividade jurídica era um “homem de letras” e este entrelaçamento de
ocupações trouxe desdobramentos à retórica jurídica no Brasil do Séc. XIX.
A expressão “Homem de Letras” será, inicialmente, orientada pelo ponto de
vista do autor inglês Thomas Carlyle. Em sua obra On Heroes, hero-worship and
the heroic in history (1840-41), Carlyle enaltece (transformando-o mesmo em “he-
rói”) a função daquele que se conhece, contemporaneamente, como “intelectual”46.
46 “Para T. W. Heyck, esse é o termo mais aproximado de que dispomos, no século XIX, para a categoria significativamente ausente
de ‘intelectual’, que, em sentido moderno, só passaria a ser de uso corrente na década de 1870.” (EAGLETON, 1991, p. 37). E
ainda: “Na França e na Inglaterra, o próprio termo ‘intelectual’ só se firmou nos anos 1870” (ALONSO, 2002, p. 30).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 263
Para Carlyle (1924, p.138), “o herói como o homem de letras” era um fenôme-
no singular dos “novos tempos”:
Hero-Gods, Prophets, Poets, Priests are forms of heroism that belongs to the old
ages, make their appearance in the remotest times; some of them have ceased to
be possible long since, and cannot any more show themselves in this world. The
hero as Men of Letters, again, of which class we are to speak to-day, is altogether
a product of these new ages; and so long as the wondrous art of writing, or ready-
writing which we can call printing, subsists, he may be expected to continue, as
one of the main forms of Heroism for all future ages.47
47 “Deuses-Heróis, Profetas, Poetas, Religiosos são formas de Heroísmo que pertencem à Antiguidade, destacando-se no
passado; alguns deles perderam a viabilidade desde então e não podem mais se mostrar neste mundo. O herói como
homem de letras, categoria a que nos referimos a partir de agora, é um produto dos novos tempos e enquanto a arte da
escrita e a imprensa existirem, ele vai continuar, como uma das principais formas de heroísmo para o futuro” (CARLYLE,
[1841], 1924, p.138) (Tradução livre).
264
Carlyle tinha razão sobre o poder de influência da imprensa, mas não havia
como isolá-la dos “tempos modernos”, ou seja, não havia como pensar em imprensa
sem “maculá-la” com a produção, posto que a imprensa e a produção estavam (e
continuam) visceralmente ligadas. Esta é a razão de Eagleton (1991, p. 37) referir-se
ao “homem de letras” como “[...] uma categoria que reunia, não sem constrangi-
mento, o sábio e o crítico de aluguel”.
A função do homem de letras encontrava-se, portanto, na metade do caminho
entre “o sábio e o crítico de aluguel”. A informação começava a se multiplicar rapi-
damente e cabia ao “sábio” reconhecer aquelas “novas ideias”, digeri-las e divulgá-
-las a um público leitor interessado, mas não especializado. Desta maneira, cabia ao
“crítico de aluguel” adaptar aquela mensagem, tornando-a acessível e “pronta para
o consumo”. É importante destacar que este processo de divulgação de informações
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 265
A multiplicação dos prelos tentava atender a uma demanda por divulgação de in-
formações e de opiniões. A “coincidência” entre a “novidade” que aportava no país – a
chegada da família real portuguesa – e a possibilidade de dar voz ao que se pensava
das circunstâncias decorrentes daquele fato, fez recair sobre a recém-criada imprensa
uma sobrecarga de atribuições: além da típica função informativa (modesta pretensão
da Gazeta do Rio de Janeiro), a imprensa revestia-se da intenção de instruir e de de-
268
Na fase anterior, essa não era a regra: Cipriano Barata, Soares, Borges da
Fonseca não eram homens de letras, a rigor, mas tão somente jornalistas. Mais
ainda os panfletos e os pasquineiros. Não havia, então, nos jornais, espaço
para as letras. Estas ficavam relegadas às revistas e jornais especializados,
apenas literários, e de vida efêmera quase sempre. Assim, a imprensa política
era uma, a imprensa literária era outra. Quando a primeira declina, com a
consolidação do predomínio do latifúndio, começam a fundir-se.
Não é por acaso que o mesmo Antonio Candido (2000, p. 226) adverte para o
fato de que a espécie de literatura que se destaca neste período (até a década de 40
do Séc. XIX) é uma literatura veiculada por “gêneros públicos”, ou seja, “a oratória,
o jornalismo e o ensaio político-social”. Era como se o exercício do “fazer literário”
precisasse se mostrar atuante diante dos novos papéis reservados aos escritores. É
interessante notar que, ao contrário do entendimento de Sodré (2011, p. 276), esta
perspectiva de análise sugere uma fusão entre o domínio jornalístico da primeira
fase do periodismo nacional e o domínio literário relacionado às primeiras quatro
décadas dos Oitocentos.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 271
Ponto cêntrico da realidade e passagem para o universo [...], o Eu, assim con-
figurado, assegurou um primado ontológico à interioridade, à vida interior,
que foi sinônimo de profundeza, espiritualidade, elevação e liberdade, [...].
O Eu transcende a Natureza física – o exterior mecânico disperso dos fenô-
menos – mas para encontrar-se, dada a essência absoluta que o Romantismo
germânico da primeira fase lhe atribuiu, ao nível orgânico das coisas, com o
entendimento interno da Natureza viva e animada (NUNES, 2002, p. 58).
[...] o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se ‘dar conselhos’
parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mes-
mos nem aos outros. [...] O conselho tecido na substância viva da existência
tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria
– o lado épico da verdade – está em extinção.
274
Mas de que maneira esta relativa ausência ou esta diminuição de ênfase nas
explicações poderiam ser úteis ou adequadas ao desenvolvimento de textos teóricos,
como os textos privilegiado pela escrita jurídica? Ou seja, de que maneira se justifi-
ca o elogio ao papel do narrador no domínio jurídico? Exatamente pelo lado oposto
desta constatação, ou seja, a diminuição de ênfase nas explicações é compensada
pelo privilégio da experiência e pelas possibilidades decorrentes do exercício da
dúvida e das contradições.
O narrador não está tão preocupado em fornecer respostas corretas; esta não
é a sua função. O narrador preocupa-se em contar uma história; a sua história. E o
narrador preocupa-se em interagir com o leitor, criando oportunidades para que a
sua experiência passe a fazer parte da vida daquele que o lê. Esta perspectiva é uma
contribuição fundamental dos “homens de letras” do Séc. XIX: o registro para os
seus contemporâneos e para as gerações futuras da sua experiência com o direito,
da sua maneira peculiar de vivenciá-lo e de compreendê-lo, demonstrando que o
direito é um objeto, essencialmente, histórico. Se aqueles autores e pensadores esti-
vessem concentrados no objetivo de elaborar respostas corretas, unidas em torno de
“verdades”, é possível que suas ideias não promovessem discussões e indagações ao
longo do tempo; elas estariam, simplesmente, ultrapassadas.
Promovendo a relação entre texto e contexto (“contando sua história”), a re-
tórica dos “homens de letras” do Sec. XIX permitiram que o objeto jurídico fosse
renovado e atualizado aos olhos de sucessivos leitores; não por intermédio de con-
ceitos – que podem se tornar ultrapassados –, mas através da experiência – que
representa, perenemente, um elemento de identificação com o leitor.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 275
REFERÊNCIAS
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promisso. São Paulo: Olho d’Água.
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TERCOM; Porto Alegre: EDIPUCRS.
O DIREITO DE RESISTÊNCIA E A
DICOTOMIA RETÓRICA DAS FORMAS
DE GOVERNO EM CIPRIANO BARATA:
a influência original do periódico Sentinela
da Liberdade para a legitimação jurídica
das revoluções liberais do Século xix
e derrocada do Império brasileiro
Francisco Arthur de Siqueira Muniz
No fundo o que foi possível outrora não poderia se reproduzir uma segunda
vez, a menos que os pitagóricos tivessem razão em acreditar que uma mes-
ma constelação dos corpos celestes produzisse até nos mínimos detalhes os
mesmos acontecimentos na terra, de modo que, quando as estrelas ocuparem
a mesma posição uma com relação às outras, um estoico se uniria a um epi-
curista, César seria assassinado e, de novo, em outras condições, Colombo
descobriria a América. Se a terra recomeçasse cada vez seu espetáculo após o
final do quinto ato, se fosse certo que o mesmo encadeamento de motivos, o
mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe fosse apresentada em intervalos
determinados, somente então o homem poderoso poderia reivindicar a histó-
ria monumental, em toda a sua veracidade icônica, exigindo cada ato segundo
sua particularidade exatamente descrita. Isso provavelmente não será o caso
antes que os astrônomos se tornem astrólogos. Até lá a história monumental
não poderá usar essa plena veracidade, sempre haverá de recriminar o que
é desigual, haverá de generalizar para tornar equivalente, sempre haverá de
enfraquecer a diferença dos móveis e dos motivos, para apresentar os acon-
tecimentos à custa dos efeitos e das causas, sob seu aspecto monumental, ou
seja, como monumentos dignos de ser imitados. [...] Portanto, quando a con-
sideração monumental do passado domina as outras maneiras de considerar
as coisas, quero dizer as maneiras antiquadas e críticas, o próprio passado
padece com isso. Períodos inteiros são esquecidos, são desprezados, são dei-
xados de escoar como uma grande onda cinzenta da qual só emergem alguns
fatos semelhantes a ilhotas enfeitadas.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 281
revolucionários), presta assistência aos presos e luta pela anistia (MOREL, 1986,
p. 30-31). Em 1821, após o Movimento Constitucionalista do Porto, que na Bahia
teve Cipriano Barata como um dos lideres, é eleito deputado nas Cortes de Lisboa,
que fariam a Constituição do Reino Unido. Após se envolver, e conseguir sobre-
viver, à conjuração baiana e à revolução pernambucana de 1817, movimentos de
cunho republicanismo e separatistas, “Barata optava, neste momento, pela redefi-
nição de direitos e liberdades no interior da monarquia luso-brasileira” (MOREL,
2008, p. 19).
Após um ano de intensa atividade parlamentar nas Cortes de Lisboa, rompe
com a constituinte, que adquiriu nítido caráter recolonizador e, em 6 de outubro de
1822, foge com mais seis deputados brasileiros para Londres (Padre Diogo Fei-
jó, Antonio Carlos Andrada, Nicolau Vergueiro, Costa Aguiar, Agostinho Gomes e
Lino Coutinho), de onde retorna ao Brasil, fixando residência na Rua Nova, centro
do Recife (MOREL, 1986, p. 38-39). Em 12 de outubro daquele mesmo ano, acla-
mava-se o Imperador a inaugura-se o Primeiro Reinado do Brasil.
Em 1823, cria o jornal “Sentinela da Liberdade”. As ideias liberais de Barata
incomodam as elites dominantes ao ponto de José Bonifácio determinar providên-
cias para a expulsão do ex-deputado do Recife. Em razão das notícias da iminente
expulsão de Cipriano da atual capital pernambucana, a Bahia o elege deputado à
Assembleia Constituinte, apesar de não residir naquela localidade desde o seu re-
gresso da Europa (GARCIA, 1997, p. 82). Recusa-se, entretanto, a tomar posse,
sob o argumento do caráter despótico e pouco aberto às discussões livres naquele
ambiente cercado por baionetas do imperador (MOREL, 2001, p. 178). Em novem-
bro do mesmo ano, é preso em sua residência no Recife e levado para a Fortaleza
do Brum, de onde é transferido um mês depois para a Fortaleza de Santa Cruz, no
Rio de Janeiro. No intermédio de sua transferência a Assembleia Constituinte fora
dissolvida pelo imperador.
A partir de então, Cipriano Barata enfrenta um cativeiro que perdura quase
todo o primeiro Reinado, grande parte isolado e impossibilitado de publicar seu
jornal. À época da promulgação da Constituição, em março de 1824, Barata conti-
nuava preso de forma ilegal e sem acusação formal. No mês de julho é proclamada a
Confederação do Equador, revolução de que pode ser considerado um dos prepara-
dores doutrinários e práticos. Pouco depois da eclosão do movimento, é condenado
à prisão perpétua (MOREL, 2008, p. 20).
Com a crise do Primeiro Reinado, Cipriano teve provida uma revisão proces-
sual e foi solto em setembro de 1830, quando retorna à Bahia e torna-se partícipe da
oposição ao imperador e ao projeto político-jurídico-social que se implantava no país.
Em janeiro de 1831 retoma seu jornal, até ser novamente preso três meses depois e
enviado ao Rio de Janeiro, acusado de “haitianismo”. Peregrina por inúmeras prisões,
de onde editava esporadicamente seu jornal e, septuagenário, é condenado a dez anos
de prisão com trabalhos forçados. Em 1833, é transferido à Bahia e, mesmo preso, re-
cebe votação para Senador pela Paraíba (MOREL, 2008, p. 21). Consegue a liberdade
em 1834 e vai morar novamente no Recife, onde retoma o seu periódico e é votado
novamente para Senador pela Paraíba, para Regente (o eleito é o padre Feijó a quem
faz oposição) e para o Senado por Minas Gerais (MOREL, 2008, p. 22).
286
Quisera eu poupar-me de falar coisas que tocam nas excelentíssimas pessoas dos
Membros do Nosso Governo Provisório, mas agora é impossível que fale; e não
há remédio se não contentar a muita gente de bem; e até ao meu Irmão e Amigo
Povo, que tanto sofre em toda parte por falta de Defensor (BARATA, 1823b).
Pernambucanos, quem não sustenta os seus Direitos, quem não tem leis nem
justiça é vil escravo, não tem pátria! Vigilância, Pernambuco! Vigilância! Ó
Sansão do Brasil! Os Filisteus estão sobre ti! Não durmas, acorda, acorda,
alerta! Alerta! (BARATA, 1823h).
Frei Caneca beberia desta fonte e, meses depois, usaria os mesmos argumen-
tos em seu parecer, que foi acatado pelas câmaras municipais de recife e Olinda,
quando recusaram-se a aceitar a Constituição imperial nos moldes formulados e
apresentados, dando origem à Confederação do Equador.
O fechamento da Assembleia Constituinte por D. Pedro e a outorga da Cons-
tituição de 1824 – que hipertrofiou os poderes do Imperador – revelou um país que
se travestia de um constitucionalismo liberal e fomentou as inúmeras revoluções
liberais do Século XIX, todas lastreadas no direito natural subjetivo de resistência,
superior ao ordenamento posto, que preconizava Cipriano Barata. A retórica mate-
rial imposta pela força do Imperador enquadra-se na concepção de Lourival Vila-
nova, para quem a revolução como um direito subjetivo só tem cabimento quando
um órgão aos outros se sobrepõe, concentra todas as funções e onde o povo não seja
partícipe da formação da vontade estatal, quando “só lhe resta desinvestir os titu-
lares das magistraturas supremas através da violência” (VILANOVA, 1984, p. 45).
Anos depois, na segunda fase de seu jornal, Cipriano trata de suas “hipóteses”
de argumentação mediante o recurso à figura de linguagem da ironia:
Acerca das verdadeiras intenções que se extraem dos seus escritos, Cipriano,
mais uma vez, é irônico:
Não briguemos pelo nome. Embora não se declare que o nosso Governo fica
Confederativo, seja o Governo bem frouxo em benefício das Províncias; seja
o sistema livre, segundo as Bases que havemos jurado seja a Constituição
Representativa bem liberal como a de Portugal, segundo se contratou, e já eu
estou calado (BARATA, 1823h).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 295
Em outros números ainda na primeira fase, Cipriano defende que o poder não
pode ser hereditário, devendo ser a nobreza transitória e personalíssima, o Impera-
dor limitado ao cargo de chefe do Poder Executivo, submetido às ordens provenien-
tes da Assembleia e limitado seu poder enquanto o povo assim o desejar.
Uma vez que criticar abertamente a forma de governo monárquica era proi-
bido, assim como defender o ideário republicano abertamente, Cipriano Barata
utilizava-se de um recurso estilístico frequentemente utilizado nos textos de caráter
doutrinário dos séculos XVIII e XIX: a suposta “aparição” de um “espírito” ou de
um sonho portador de determinado discurso, que, se o autor assumisse ser próprio
dele, poderia ser levado a julgamento por crime de imprensa.
Mesmo as ideias acerca do direito de resistência ainda hoje podem ser obser-
vadas na doutrina (Vide, nesse sentido, as inúmeras citações a Barata em MOTA,
1979, passim) e na jurisprudência do Brasil, ainda que com diferentes objetivos e
pressupostos. O Superior Tribunal de Justiça concedeu ordem de Habeas Corpus
a líder do MST exatamente com base neste fundamento jurídico, que, apesar de
não se encontrar expressamente previsto na nossa Constituição, sempre permeou
o pensamento jurídico brasileiro desde os tempos de Cipriano Barata. No indigi-
tado acórdão (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 1996, p. 10491), o Minis-
tro Ademar Maciel lançou os seguintes questionamentos acerca das invasões de
terras pelo MST:
REFERÊNCIAS
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the feelings. University of Chicago Press, Classical Philology, Vol. 33, n° 4. Di-
sponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0009-837X(193810)33%3A4%3C390
%3AAACOTO%3E2.0.CO%3B2-1>. Acesso em 10 jan. 2007.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1996). 1ª Turma. Habeas Corpus 4399/
SP, Relator: Ministro William Patterson., Brasília, 12.03.1996, DJ de 08/04/1996.
Disponível a partir de: <www.stj.jus.br>. Acesso em 10 mai. 2010.
UNIÃO EUROPEIA (2010). Declaração de Bolonha. Disponível em <http://euro-
pa.eu/legislation_summaries/education_training_youth/lifelong_learning/c11088_
pt.htm> Acesso em: 04 ago. 2010.
VILANOVA, Lourival (1984). Teoria Jurídica da Revolução (anotações à margem
de Kelsen). Revista de Direito Público. São Paulo: RT, jan./mar. 1984, p. 33-58.
AS ESTRATÉGIAS RETÓRICAS
DE BERTHA LUTZ PARA A
CONQUISTA DO DIREITO DE VOTO
DAS MULHERES NO BRASIL
Resumo: Este artigo tem por objetivo verificar em que medida as estratégias
retóricas de Bertha Lutz contribuíram para a cidadania política das mulheres
no Brasil. A tese é que a sociedade brasileira, tradicionalmente conservadora
e patriarcal, sofre os embates da agenda política do movimento sufragista
feminino no Brasil, o que provoca fissuras nos papéis sociais entre homens
e mulheres e alterações na ocupação privilegiada do espaço político pelos
homens motivando a sua ocupação também pelas mulheres.
Palavras-chave: Espaço público. Espaço privado. Cidadania política.
Abstract: This article aims to determine to what extent the Bertha Lutz rhetorical
strategies contributed to the political citizenship of women in Brazil. The
traditionally conservative and patriarchal Brazilian society suffers the hardships
of the female suffrage movement political agenda in Brazil that causes cracks
in the social roles of men and women and changes in the prime occupation of
political space by men motivating their occupation also by women.
Keywords: Public space. Private space. Political citizenship.
Sumário: Introdução: o estado da arte no que diz respeito à cidadania política
feminina. 1. A retórica material e o contexto do período após a Primeira Guer-
ra Mundial. 2. A retórica estratégica e os argumentos pelo voto feminino. 3. A
retórica analítica: a contribuição de Bertha Lutz para a conquista do direito de
voto das mulheres brasileiras. Referências.
48 Art. 233. O homem é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família; II. A administração
dos bens comuns e particulares da mulher [...]; III. O direito de fixar e mudar o domicílio da família: IV. O direito de
autorizar a profissão da mulher e sua residência fora do tecto conjugal [...]; V. Prover à manutenção da família
49 Art. 6º São incapazes, relativamente a certos atos (Art. 147, n. 1) ou à maneira de os exercer: I [...]; II. As mulheres
casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal; [...]
310
50 Art. 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.
§ 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas
a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
312
1918, sendo contratada como tradutora no Instituto Oswaldo Cruz, onde auxilia seu
pai e, em 1919, é classificada em primeiro lugar em concurso para o cargo de Secre-
tária no Museu Nacional (SOIHET, 2006, p. 133). No período em que Bertha Lutz
esteve estudando na Europa teve oportunidade de conhecer o movimento feminista
na Inglaterra, antes da guerra, bem como na França, quando se radicou, conhecendo
naquele país Jerônima Mesquita, selando uma “[...] união de esforços no Brasil com
vistas a fazer qualquer coisa pelas mulheres” (SOIHET, 2006, 17).
O regresso de Bertha Lutz transformou radicalmente a trajetória do movimen-
to sufragista feminino no Brasil. Bertha Lutz tinha plena consciência que, naquele
contexto social, cultural e jurídico, a possibilidade de sucesso de sua empreitada
pelo direito de voto das mulheres no Brasil seria nula. Era preciso convencer os
políticos conservadores e a sociedade resistente a mudanças radicais que o fato da
mulher obter o direito de voto não representaria, em nenhuma hipótese, subversão
dos valores sociais, comprometendo os laços familiares. Muito ao contrário, a posi-
ção de moderação, de caminhar ao lado do homem, para o progresso da nação foram
estratégias retóricas utilizadas para persuadi-los.
A carta que Bertha Lutz escreve para a Revista da Semana, em 28 de dezem-
bro de 1918, traça as estratégias retóricas que norteiam a sua conduta na conquista
do direito de voto das mulheres. Assim, em primeiro lugar, critica o tratamento da
mulher em público como sendo penoso, embora nos meios cultivados e para com a
mulher de sua família ou de suas relações haver mais respeito, é apenas superficial,
não conseguindo ocultar “[...] a tolerância e a indulgência, como se se tratasse de
uma criança mimada” (LUTZ, 2006, p. 174). Bertha Lutz censura abertamente aos
homens pelo tratamento dispensado às mulheres sob o pretexto de respeitabilidade
aprisionam-nas em perpétuo estado de infantilização. Bertha Lutz aponta o atraso
do Brasil em relação à França, apesar dos esforços do progresso, reputando a maior
parte da responsabilidade aos homens “[...] em cujas mãos a legislação, a política,
todas as instituições repousam” (LUTZ, 2006, p. 174). Entretanto, nem as mulheres
são poupadas de sua crítica, por entender que as mulheres também têm sua parcela
de responsabilidade nessa situação (LUTZ, 2006, p. 174).
Bertha Lutz (2006, p. 175) compartilha a sua experiência na Europa durante a
guerra, na Inglaterra e na França atestando o esforço das mulheres como sendo he-
roico, pois, assumiram os lugares dos soldados, na maior simplicidade, realizando
os mais pesados trabalhos dos ausentes. Aponta, por sua vez, que essas tarefas, até
então, eram “[...] ignoradas ou julgadas impossíveis para a mulher, ela trouxe uma
inteligência viva e uma energia indomável” (LUTZ, 2006, p. 175). Como consequ-
ência, “[...] todos os argumentos sociais e políticos não puderam fazer, esse exemplo
heroico de abnegação e força de vontade o conseguiu. Hoje, colhem elas os frutos
de sua dedicação” (LUTZ, 2006, p. 175).
As mulheres brasileiras, apesar de não convocadas a dar as mesmas provas,
na percepção de Lutz (2006, p. 175), são dignas de ocupar a mesma posição, res-
tando, contudo, descobrir qual é este caminho. Para tanto, Bertha Lutz conclama as
mulheres para não se resignarem a serem “[...] as únicas subalternas num mundo ao
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 313
qual a liberdade sorri” (LUTZ, 2006, p. 175). As mulheres devem se tornar dignas
da posição que ambicionam, provando o seu valor de seu merecimento, embora
Bertha Lutz tenha discernimento para perceber que “[...] muito, em quase tudo no
estado atual, depende do homem. Mas uma das maiores forças de emancipação e de
progresso está em nosso poder: a educação da mulher e do homem” (LUTZ, 2006,
p. 175). Eis a chave do sucesso da empreitada de Bertha Lutz, a educação da mulher
possibilitando que ela “[...] seja intelectualmente igual e para que sua vontade se
discipline” (LUTZ, 2006, p. 175). Em contrapartida, através da educação o homem
se habitue “[...] a pensar que a mulher não é um brinquedo para o distrair; para que
olhando a sua esposa, suas irmãs, e lembrando-se de sua mãe, compreenda e se
compenetre da dignidade da mulher” (LUTZ, 2006, p. 175).
De fato, Bertha Lutz reivindica o direito da mulher de ser tratada como ser humano
e não a sua reificação e incapacidade para pensar. Bertha Lutz (2006, p. 176) alinhava o
caminho para o sucesso desse desafio no sentido de dar visibilidade à equivalência entre
homens e mulheres a partir do esforço individual e coletivo. Fica evidente a lucidez de
Bertha Lutz de que a conquista do direito de voto das mulheres não poderia ser obtida
a partir de vozes isoladas, era preciso unir as energias e conjugar os esforços de forma
coletiva, através da fundação de uma liga de mulheres brasileiras. Para tanto, funda em
1919 a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher que, em 1922 vem a ser substituída
pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a FBPF.
Todavia, Bertha Lutz sinalizava, desde o início, que a sua proposta não se
identificava com as “sufragetes” britânicas e americanas, vinculadas ao ativismo
violento e combativo, na medida em que propõe não “[...] uma associação de “su-
fragetes” para quebrarem as vidraças da Avenida, mas uma sociedade de brasilei-
ras que compreendesse que a mulher não deve viver parasitariamente do seu sexo,
aproveitando os instintos animais do homem” (LUTZ, 2006, p. 176). Evidencia
Lutz a conciliação entre a atividade política com seus papéis sociais familiares,
demonstrando como a mulher pode ser útil, instruindo-se e instruindo a seus filhos,
tornando-se capaz “[...] de cumprir deveres políticos que o futuro não pode deixar
de repartir com ela” (LUTZ, 2006, p. 176).
Contudo, desvela-se a diretriz de Bertha Lutz em sentido diametralmente
oposto à dicotomia intangível das esferas entre homens e mulheres na proporção
em que valoriza “[...] o exercício do trabalho extradoméstico, mesmo para as mu-
lheres casadas, independentemente da condição do marido” (SOIHET, 2006, p. 30).
Assim, Bertha Lutz recomenda a independência da mulher por meio do trabalho,
ao invés “[...] do eterno sustento da mulher no casamento [que] corresponderia a
uma espécie de comércio sexual” (SOIHET, 2006, p. 30). Mas os argumentos mais
contundentes de Bertha Lutz de que essa atividade política feminina possibilitaria
que elas “[...] deixariam de ocupar sua posição social tão humilhante para elas como
nefasta para os homens, e deixariam de ser um dos pesados elos que atam o nosso
país do passado, para se tornarem instrumentos precisos ao progresso do Brasil”
(LUTZ, 2006, p. 176). Esta será a tônica constante dos argumentos retóricos de
Bertha Lutz no sentido de que todo o empenho feito pelo homem e pela mulher
314
51 Código Civil de 1916 – “Art. 6 São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1) ou à maneira de o exercer [...]
I [...]; II – as mulheres casadas enquanto subsistir a sociedade conjugal”. A plena capacidade jurídica da mulher casada
somente foi atingida com a lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, com o Estatuto da mulher casada.
52 Art. 82. O sufrágio e universal e direto; o voto, obrigatório e secreto.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 315
53 Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, artigo 2º - É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo,
alistado na fórma deste Código.
54 Art. 117 - São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de dezoito anos, que se alistarem na forma da lei.
Parágrafo único - Não podem alistar-se eleitores: a) os analfabetos;
55 Art. 109 - O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função
pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar.
56 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 – Art. 108 – [...]
Parágrafo único - Não se podem alistar eleitores:
a) os que não saibam ler e escrever;
b) [...];
c) [...];
d) [...];
316
As críticas feitas por Besse (1999) e Hahner (2003) a Bertha Lutz devem ser
mitigadas porque ambas, apesar de renomadas pesquisadoras brazilianistas, não
deixaram de enxergar a realidade brasileira a partir do olhar de uma estrangeira,
tendo como pano de fundo a realidade dos Estados Unidos, qual seja, o movimento
sufragista feminino estadunidense. Contudo, o contexto do movimento sufragista
feminino no Brasil era bem diferente daquele pertencente àquelas brazilianistas por-
que o Brasil era absolutamente patrimonialista, patriarcal e o lugar da mulher, com
certeza, não era ocupar o espaço público “naturalmente” pertencente aos homens.
Por essa razão, reconhece-se o mérito de Bertha Lutz de, ao invés de desafiar e con-
frontar os homens políticos e a própria sociedade conservadora articulou estratégias
eficientes para a conquista do direito do sufrágio feminino no Brasil.
Bertha Lutz ponderava que a cidadania política das mulheres deveria ser obtida
a partir do reconhecimento de que a mulher é sujeito de direitos políticos, ou seja, de
sujeito de ação política a partir do direito de votar e de ser votado. No entanto, isto
não se aperfeiçoava sem que as mulheres tivessem acesso à educação, bem como
autonomia financeira pelo trabalho feminino. No contexto atual, as propostas de
Bertha Lutz correspondem à teoria de Nancy Fraser (2002; FRASER; HONNETH,
2003) quanto à sua política do reconhecimento, da redistribuição e da representação
política (FRASER, 2013). Contudo, a história do direito de voto das mulheres é
repleta de preconceitos e resistências na proporção em que a política tradicionalmente
era considerada como reduto privilegiado masculino e não se cogitava sobre a absurda
(!) hipótese de transgressão dessa regra moral, considerando que o sufrágio universal
e a igualdade de voto só foram conquistados nas décadas de 1910 e 1920.
Um aspecto a ser considerado quanto à pessoa de Berta Lutz: ela não se casou
e nem teve filhos, pode-se dedicar integralmente à sua carreira profissional e à car-
reira política, naquele contexto social e cultural onde o casamento ainda tinha tra-
dicionalmente importância, como também, o de ter filhos. Vários fatores exógenos
favoreceram a aprovação do direito de voto das mulheres, embora as mulheres, ainda
não estivessem suficientemente maduras para a compreensão e da dimensão da impor-
tância do voto, mas, de fato, há o oportunismo de Getúlio Vargas que, como o pai da
sociedade brasileira, concede, mas, mantendo o controle, assim, a filha fica feliz por-
que recebeu o direito de votar, mas, quem de fato manda é o pai, neste caso, o Estado.
Embora a conquista do voto feminino no Brasil não possa ser considerada
como um movimento exclusivamente da classe média, a proximidade das sufra-
gistas brasileiras com a elite política contribuiu, sensivelmente, para a conquista
do direito de voto das mulheres no Brasil muito tempo antes do que a maioria dos
países da América Latina.
Quais as estratégias alinhavadas para superar as barreiras de uma sociedade
tradicionalmente machista para permitir o avanço e a conquista do sufrágio femi-
nino? Com certeza o argumento de que o sufrágio feminino não tinha em mente
desapropriar o lugar do homem na política, apenas de caminhar ao lado dele. Este
argumento, de fato, contribuiu para que o direito de voto das mulheres sobrevivesse
a tantas resistências e pudesse, enfim, ser aprovado.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 319
No entanto, fica evidente que este argumento cristalizado nas mentes de ho-
mens e mulheres, traz, em seu bojo, consequências de difícil gerenciamento na me-
dida em que a participação feminina no jogo político ainda é muito tímida exata-
mente porque na mentalidade das mulheres a política é assunto dos homens. Esta
agorafobia política construída culturalmente é de difícil reversão. Como as mulhe-
res não tiveram muitas oportunidades de exercício da cidadania política ainda não
tem o traquejo suficiente para entender as regras do jogo político montada em um
gabarito masculino e para homens.
A conquista do direito de voto das mulheres decorreu do esforço mobilizado
de mulheres educadas da classe alta e média que, no entanto, não se identificava
com a maioria da população feminina. Em outras palavras, pouco efeito fez na vida
das mulheres pobres, sem acesso à educação básica. Esta maioria feminina pobre e
iletrada não se sentia reconhecida como igual àquelas sufragistas.
Bertha Lutz, de fato, contribuiu para a cidadania política das mulheres porque
soube articular nas diversas forças internas para a aprovação do direito ao voto das
mulheres por sua postura apaziguadora em não acirrar as oposições ao movimento
sufragista e por conviver com as relações de poder sem desafiá-lo ou contestá-lo
argumentando que o direito de voto das mulheres não ameaçava a família.
Críticos ao feminismo, como Antonio Austregésilo Lima, na mesma propor-
ção em que o aplaudia neutralizava seu significado, outros, por sua vez, implanta-
vam diversas estratégias antifeministas, sendo a mais eficaz, por certo, a “ridiculari-
zação e vulgarização do feminismo” (BESSE, 1999, p. 214). Nesta esteira, o aporte
teórico de Hannah Arendt (2003), guardadas as devidas proporções, contribui para
a compreensão da estratégia utilizada de banalização do feminismo.
A retórica de Bertha Lutz para a articulação do movimento sufragista femini-
no brasileiro procurou não ser comparado ao movimento sufragista americano ou
mesmo inglês, que se destacavam por seus atos mais incisivos e agressivos, ao pon-
derar que o feminismo brasileiro triunfará, mas que “seu triunfo não será devido às
militantes que procuram alcançá-lo pela violência, será antes a recompensa das que
se tornaram esforçadas pioneiras nas artes e nas ciências” (LÔBO, 2010, p. 108).
Por sua vez, Lúcia Avelar57 (2001, p. 29) esquadrinha a sub-representação po-
lítica das mulheres e julga que essa sub-representação social feminina deriva do
baixo status ocupacional. O Brasil, para restaurar essa sub-representação política
feminina, desenvolve um sistema de quotas lastreada na lei nº 9.504, de 30 de se-
tembro de 1997 (BRASIL 1997), que, em seu parágrafo 3º do seu artigo 10, com
a redação dada pela lei nº 12.304, de 29 de setembro de 2009 (BRASIL, 2009),
preceitua que cada partido ou coligação reserve o mínimo 30% (trinta por cento) e o
máximo de 70% (setenta por cento) do número de vagas para candidaturas de cada
sexo. Empenha-se alcançar a maior participação das mulheres na representação po-
lítica para inserir “elementos de mudança na qualidade do exercício da política”
(AVELAR, 2001, p. 23).
57 A autora aborda minuciosamente em sua obra Mulheres na elite política brasileira, a participação política da mulher, as
razões da baixa participação feminina da elite política e lições para o acesso ao poder.
320
A partir dos dados das eleições de 2012 publicados pelo Tribunal Superior
Eleitoral - TSE, constata-se o universo de 140.625.562 eleitores, sendo 67.365.003
homens e 73.260.559 mulheres que corresponde, respectivamente, a 47,861% e
52,048% do total de eleitores. Esses dados demonstram o expressivo contingente de
mulheres que exercem o direito de voto.
Contudo, as últimas eleições para prefeitos e vereadores, no entanto, revelam
um cenário muito emblemático porque, do total de 5.515 prefeitos eleitos, 4.858
são homens e 657 são mulheres, ou seja, menos de 12% dos prefeitos eleitos são
mulheres. No mesmo sentido, dos 57.402 vereadores eleitos, 49.748 são homens e
7.654 são mulheres, o que corresponde à menos de 14% da sua totalidade. A des-
peito dos dados sobre o grau de instrução dos eleitores brasileiros coletados pelo
TSE demonstrarem níveis de instrução das mulheres significativamente superior
aos homens, embora considerando o universo de analfabetos de 7.699.313, sendo
47,086% (3.630.053) homens e 52,784% (4.069.260) mulheres, é baixa a participa-
ção das mulheres no espaço público.
Entretanto, a mera variação do cenário da sub-representação política das mu-
lheres, com a eleição de mais mulheres, não se harmoniza com o propósito a ser
atingido, a da representação substantiva, com a apuração de mulheres com discer-
nimento da discriminação feminina, que, por essa razão, não desfrutam da mesma
igualdade em relação aos homens. Por conta disso, é imprescindível a seleção de
mulheres feministas que estejam comprometidas politicamente na elaboração de
identidades políticas femininas para orientar a ação política.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 321
REFERÊNCIAS
Não é difícil perceber que a retórica não se enquadra, portanto, como uma filo-
sofia, se se entender por filosofia a busca da verdade. Mas, uma vez que não se toma
a verdade como norte da investigação filosófica, pode-se tomar a retórica como uma
espécie de filosofia, posição esta adotada pelo Grupo de Pesquisa.
As dominantes ontologias, epistemologicamente, partem do pressuposto de
que a linguagem é simplesmente uma ponte, um meio para se chegar à descoberta
da verdade e através dela coagir todos os seres humanos a aceitá-la. Ou seja, por trás
da linguagem existe uma verdade. Axiologicamente, a verdade reflete-se no justo e
correto (ADEODATO, 2009a, p. 17). Aqui o ser humano é tido como a espécie que
se jacta de dominar a natureza.
Já para os retóricos, a linguagem é o máximo de acordo possível, o qual, sendo
circunstancial, momentâneo e temporário, constitui nossa realidade tendo em vista
que a relação humana com a realidade é indireta, complexa, seletiva e metafórica
(ADEODATO, 2009c, p. 250). Ou seja, torna evidente o caráter autorreferente da
linguagem, a qual tira seu fundamento em si mesma, e está sujeita às regras publi-
camente controláveis. Daí a lucidez da afirmativa de que “A linguagem é retórica
porque deseja comunicar somente uma doxa (opinião), não uma episteme (conhe-
cimento)” (BALLWEG, 1991 p. 176). Isso porque os “fatos” são frutos dos relatos
acerca dos eventos. Nesse sentido a máxima: a história é escrita pelos vencedores.
Isso mostra como é mais modesta a postura heurística do mundo, que despreza o
apego a verdades válidas universalmente, ao invés da holística, que pretende uma
generalização dos fenômenos (ADEODATO, 2009c, p. 249).
Outro importante traço da postura retórica é ela ser norteada pelo ceticismo
pirrônico. Tal filosofia tem como fundamento a abstenção de juízos definitivos uma
vez que reconhece a acatalepsia e a isostenia o que leva à afasia e consequentemen-
te a uma ataraxia. O primeiro conceito significa que o ser humano carece de conhe-
cimento seguro em relação à essencial “natureza dos objetos”, o segundo significa
que os dois lados de uma questão têm igual força, o terceiro significa o silêncio
prudente diante das coisas, e o quarto é a imperturbabilidade, não no sentido de in-
diferença em relação ao mundo, mas sim de independência. Axiologicamente, o ce-
ticismo assume uma postura de tolerância e tenta manter-se longe de dogmatismos.
O ceticismo costuma receber a crítica de que seus argumentos são autorre-
futáveis, pois se nenhum tipo de conhecimento é possível, muito menos o é o seu
próprio. Porém o objetivo da investigação cética é procurar induzir o sujeito cog-
noscente a suspender juízos definitivos, não quaisquer juízos, o que leva a uma
visão de mundo e a um estado de espírito que os céticos consideram agradável
(ADEODATO, 2009b, p. 392).
Adeodato traz como fundamentos da retórica historicismo e humanismo, além
do próprio ceticismo. Historicismo na medida em que toma por base os relatos que,
por seu caráter circunstancial, variam com o tempo, incapacitando a sua objetiva-
ção, ao mesmo tempo em que se afasta de uma visão escatológica e etiológica, ou
causal. Por isso o historicismo da retórica é sisífico. Humanismo na medida em que
fornece o conteúdo material para a retórica, admitindo que o conhecimento ético só
é possível dentro da linguagem e do seu relativismo inerente.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 327
Deus, rege as relações sociais. Keila Grinberg afirma que o propósito de Gonzaga
com esta obra era manter o funcionamento da sociedade baseado em Deus e no po-
der divino do monarca (GONZAGA, 2004, p. XI).
A terceira vertente do jusnaturalismo é denominada jusnaturalismo moderno.
Ao procurar se desligar da noção de fé e dos desígnios divinos, afirma que a lei
natural tem origem apenas na razão humana. Tem como principais representantes
Samuel Pufendorf e Hugo Grotius.
Em Portugal, é a partir da reforma do ensino jurídico, promovida pelo Mar-
quês de Pombal, que as ideias iluministas começam a ser introduzidas. A mudança
se deu, sobretudo, pela reforma das fontes do direito português por meio da Lei da
boa razão (1769) e a posterior instauração da cadeira de direito natural (1772). Não
mais seriam consultados, com a mesma primazia, os glosadores, também chamados
de ‘bartolistas’, nem mesmo seria utilizado o Direito Canônico. A partir da reforma
do ensino jurídico passa a ganhar importância o direito pátrio português, posto ago-
ra como fonte principal.
O Direito Romano só poderia ser utilizado se estivesse de acordo com a ‘boa
razão’, sobre o que, em última instância, quem decidia era o Rei, o que também se
aplicava aos costumes. Já quanto ao direito canônico, este passou a ser proibido,
inclusive como fonte subsidiária, uma vez que fora apontado como “erro manifes-
to”. Dessa forma o Rei conseguiu, amparado pelas ideias iluministas, centralizar o
poder, colocando em segundo plano o direito Romano e o Canônico.
Agora, com a lei da boa razão, o que se despachava para o Brasil não era
apenas escolástica, burocracia cultural, ou escolástica estatal: eram também novas
usanças e novas possibilidades, embora ainda remotas (SALDANHA, 2001, p. 58).
A reforma das mentes deveu-se também à atenção com que Pombal acompanha-
va o que se passava no resto da Europa. Trocava cartas com o jansenita Gabriel Du-
parc de Bellegarde, no clima reformista de Utrecht, ou fazia traduzir uma obra como a
do alemão Justinus Febronius, Do Estado da Igreja e do Poder Legítimo do Pontífice
Romano (Lisboa, 1770, 2 vols.). O Febronismo defendia a superioridade do Estado
sobre a Igreja, embora defendesse a permanência da religião (MOTA, 2006, p. 66).
Dos documentos portugueses oficiais da época, as Deduções Cronológicas e
Analíticas e o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra (1771) já ressal-
tam a urgência de reformas nas fontes jurídicas e uma solução para a questão dos
jesuítas. Nas Deduções os jesuítas são acusados de conspirações, intrigas e revoltas
para tentar subordinar o Estado à Companhia de Jesus (MACHADO, 1968, p. 36).
O Compêndio Histórico, influenciado por Verney a partir da sua obra Verdadeiro
método de estudar, conclui por imputar aos jesuítas a responsabilidade sobre a situ-
ação de decadência da universidade de Coimbra, e também declara o índex romano
como um atentado à inteligência portuguesa, além de dizer que os jesuítas são os
‘inimigos da verdadeira cultura’.
Quanto aos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, redigidos em
1772, eles fizeram referência direta à necessidade de lecionar as obras de Grotius e
Pufendorf na Universidade, instituíram a cadeira de direito natural e, pela primeira
vez, aconselhavam também a confecção de um compêndio pelos professores.
330
Aqui vamos examinar a Carta para mostrar os elementos retóricos dos quais
fez uso Gonzaga. Para a análise do discurso é preciso, inicialmente, identificar alguns
elementos retóricos, quais sejam: quem? Quando? Contra o quê? Por quê? Como?
A Carta sobre a usura foi escrita por Tomás Antônio Gonzaga, quando ocu-
pava o cargo de Ouvidor, em 1783. Escrita contra aqueles que condenavam a usura
(os escolásticos) e contra a doutrina do jusnaturalismo teológico, pois se baseia em
um direito natural racionalista, tem como objetivo mostrar que a prática da usura
não é proibida, mas sim legítima. O autor da Carta se manifesta em primeira pessoa
(“vejo o que me pedis ora pergunto; creio que não”) (GONZAGA, 1957, p.155); e
por meio de esparsas citações em latim, o que é um meio de demonstrar erudição
e ganhar credibilidade para com seus leitores, ou seja, ressaltar o ethos do orador.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 331
A primeira prova é toda de autoridade, que de nada serve [a]; a segunda care-
ce de outra que a confirme [b]. Para nós vermos que a usura não é usurpação
ilícita de coisa alheia para que se possa compreender na lei do furto, basta
somente repararmos no quanto difere uma da outra coisa. O furto é um fato
violento, como que tiro coisa alheia contra vontade de seu dono [c]; a usura é
um contrato pelo qual entrego o meu dinheiro a outro debaixo da lei, que ele
voluntariamente recebe, de me restituir outra quantia de igual valor com cer-
to lucro [d]. Onde se descobrem tão diversas circunstâncias não pode haver
identidade alguma [e] (GONZAGA, 1957, p. 156-157).
Tal dissociação é reforçada por [e] que funciona como uma conclusão, breve
argumentação, que produz o que é necessário que se deduza a partir das coisas ditas
ou feitas anteriormente (CÍCERO, 2005, p. 261).
Quanto ao segundo argumento teológico a respeito da repugnância:
Eu não nego que o uso da coisa mutuada fica próprio da pessoa a quem se em-
presta; nego [a] que as usuras se exijam em razão do uso que se acha radicado
na pessoa do acipiente (GONZAGA, 1957, p. 157).
Na dissociação temos:
E o par é: gratuito/ prêmio. Em [c] temos uma litote, figura que consiste em
substituir um significado por outro menos forte. Gonzaga preferiu “prêmio” ao in-
vés de taxa, ou mesmo dinheiro.
A confusão de significados que há em relação à usura reside, então e sobretu-
do, na pseudotautologia que havia entre mútuo e usura. Ambos são diferentes,
mas foram tidos como sinônimos ao longo do tempo devido ao uso corrente. Antes
de Gonzaga: mútuo = rigoroso mútuo = usuras (o primeiro igual ao segundo devido
ao conceito, e igual ao terceiro por uso das partes). Com Gonzaga: mútuo e rigoroso
mútuo ≠ usuras.
A natureza não quer que o acipiente se ame mais do que quer que se ame o
mutuante [a]. Eis aqui pois a natural igualdade [b] do contrato das usuras. O
acipiente fica desobrigado de entregar a quantidade de que é devedor, ainda
que lha peçam, aumentando o patrimônio com os lucros dela. O mutuante fica
recebendo um certo prêmio equivalente ao direito de que cede, aos lucros de
que se priva e aos danos a que se expõe [c]; assim fica igual a convenção, não
recaindo todo o dano sobre quem empresta nem todo o cômodo sobre quem
recebe (GONZAGA, 1957, p. 160).
Temos visto quanto é necessário para reconhecermos que as usuras não re-
pugnam, antes se conformam com a natureza racional [a]. Agora vamos
examinar se repugnam ao direito divino, com que os teólogos há tantos
séculos deliram [b].
336
Em [a] temos uma transição, ornamento que mostra brevemente o que foi dito
e anuncia, com igual brevidade, o que se seguirá. A função desse ornamento está em
relembrar o que foi dito e preparar para o que se segue (CÍCERO, 2005, p. 253). Tal
ornamento aparece constantemente na Carta do Ouvidor, o que mostra a sua preo-
cupação em manter a memória do leitor sempre atenta. Também aqui, se destaca o
lado do logos do discurso.
Em [b] temos uma ironia, um argumento pelo riso, que procura levar a posi-
ção do adversário ao ridículo. Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito,
sem justificação, com uma opinião aceita (PERELMAN, 1996, p. 233). A ironia
desempenha função no pathos do discurso, uma vez que, estimulando as emoções,
pretende deixar o auditório num estado de espírito tal que passe a ver os teólogos
com maus olhos. É também um argumento ad hominem, pois ataca a pessoa do
adversário e não seu argumento.
É certo que [a] Deus proibiu as usuras no Testamento velho; mas também é
certo que só as proibiu aos israelitas [b], e isto como seu rei e legislador civil,
não porque as julgasse reprovadas por direito da Natureza, mas sim porque
não as achou conveniente com os interesse políticos [c] da sociedade que
fazia (GONZAGA, 1957, p. 162).
Em [a] temos uma expressão que vai expor um acordo prévio entre os interlo-
cutores, o qual revela uma presunção aplicável para um auditório católico do século
XVIII: presume-se que todos leram a Bíblia.
Em [b] temos um dissociação:
Nem Deus foi o único legislador civil que proibiu entre os nacionais a prática
das usuras [a]. Os romanos tiveram a mesma proibição por força da lei Genú-
cia [b] (GONZAGA, 1957, p. 164).
Se o levar usuras ao pobre é maior delito, e por isso recomenda Deus que não
se levem principalmente a este, também o furtar ao pobre há-de ser mais grave
culpa [a]. Pergunto agora: por que razão proibindo Deus os furtos tantas vezes,
nunca se lembrou de recomendar que se não fizessem principalmente ao pobre,
e proibindo só três vezes as usuras, em todas elas sempre cogitou dos pobres
e não das mais pessoas? [b] Deus quando proíbe alguma coisa, por ser de sua
natureza torpe, nunca se cansa a mostrar a maior torpeza que este ato recebe da
diversidade das pessoas com que ele se pratica [c]. Proíbe o juramento falso e
a mentira e não recomenda que nos abstenhamos mais destas culpas nos juízos.
Proíbe o furto e não o afeia, sendo feito ao pobre. Proíbe o homicídio e não
mostra a sua gravidade no pai, no imperante ou no senhor [d].
Temos visto que as usuras não são proibidas absolutamente pelos textos do
Testamento Velho, mas sim quando são extorquidas aos irmãos necessitados.
Daqui se seguem várias conclusões: primeira que elas não são vedadas por
direito da Natureza; segunda, que são umas leis civis próprias do povo judai-
co; terceira, que elas não obrigavam nem aos outros povos que existiram no
tempo daquela sociedade; quarta, que estas mesmas leis se acham extintas
pela lei do Evangelho. Passemos ao exame do Testamento Novo.
As usuras têm duas acepções: uma lata, outra stricta. No sentido lato, com-
preendem todo o lucro que se tira de qualquer empréstimo, além da sorte; no
stricto, compreendem unicamente o lucro que se tira do rigoroso mútuo. A
usura lata não repugna ao Direito Natural, é um contrato inonimado, como
temos visto; e por isso não tem torpeza alguma. A usura stricta tem torpeza,
porque, assentado sobre o rigoroso mútuo, se destroe a natureza deste contra-
to, que deve ser gratuito (GONZAGA, 1957, p. 172).
Quanto aos Concílios, afirma que as usuras são proibidas por “infinitos con-
cílios” (amplificação por hipérbole) e cita alguns exemplos (GONZAGA, 1957,
p. 178). Argumenta:
A análise feita sobre a Carta, juntamente com o problema, encarado por Gonzaga,
sobre o sentido do signo “usura”, permite refletir sobre o atual debate dos significantes
e significados e seus efeitos no direito dogmático, notadamente em relação à norma ju-
rídica. Inicialmente, constata-se um problema jusfilosófico que vai fundamentar toda a
discussão: a linguagem humana descreve as coisas como são ou a relação da linguagem
com as coisas é fruto de convenção arbitrária formadas pelos homens?
Nossa tentativa de resposta parte do pressuposto da dicotomia antropológica
proposta por Arnold Gehlen, segundo a qual o ser humano pode ser visto como um
ser pleno (rico) ou um ser carente (pobre) quanto as suas relações com o meio.
Francisco Arthur de Siqueira Muniz sintetiza bem os termos:
Não parece proceder, portanto, a tese de que o ser humano seria pleno, visto o
caráter ambíguo, seletivo e metafórico da comunicação, pois a relação do homem
com o meio circundante e com os outros seres é intermediada pela linguagem, ou
seja, a linguagem é a única realidade com que podemos lidar. A relação dos signos
com as coisas, portanto, é atribuída pelos homens de forma arbitrária, de modo
que o significado de um significante modifica-se a depender do que se entenda por
aquele termo em determinado momento, ou seja, é o relato vencedor temporário.
A intenção dessa discussão jusfilosófica é mostrar que há uma dissociação entre o
significante (expressão linguística) e o significado.
Isso se reflete na dogmática jurídica na medida em que os textos da lei (signifi-
cantes), previamente fixados, não constituem a norma jurídica (significado), ou seja,
a norma jurídica não é previamente dada, mas sim construída no caso concreto após
um processo de interpretação. O texto da lei funciona como um ponto de partida, um
dado de entrada. A concretização normativa se dá no caso coreto.
Por isto a crítica feita pela retórica de que a decisão jurídica não se dá de for-
ma dedutiva/subsuntiva (silogística), como pregava a Escola da Exegese francesa.
Dito de outra forma, a norma geral seria a premissa maior, o caso concreto seria a
premissa menor e a decisão a conclusão do silogismo, em que só existiria uma única
decisão correta. A decisão jurídica, na linha do realismo jurídico, se dá de forma
indutiva e casuística em que a própria norma jurídica é produzida no caso concreto
e o texto geral da lei funciona apenas como um dado de entrada.
Segundo o realismo jurídico, toda norma jurídica é individual, pois só o apli-
cador do direito cria a norma jurídica. O legislador não cria norma jurídica, cria
apenas dados de entrada válidos (ADEODATO, 2009a, p. 162), ou seja, a norma
geral não é previamente dada, apenas o seu texto. Com isso, a decisão não decorre
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 343
da norma geral, visto que o julgador primeiro decide e depois procura no sistema
jurídico algum fundamento textual para sua decisão fazendo parecer que trabalhou
dedutivamente. Em síntese: o texto e a realidade estão em constante inter-relação e
essa inter-relação, seja mais seja menos eventualmente discrepante, é que vai cons-
tituir a norma jurídica (ADEODATO, 2009, p. 146).
Entretanto, assumir publicamente essa perspectiva retórica da dogmática é
disfuncional, visto que colocariam em risco as expectativas de segurança jurídica.
A crença de que as decisões são de forma silogística/dedutiva atua, portanto, como
um elemento funcional para a dogmática se legitimar evidenciando, mais uma vez,
o caráter retórico da dogmática jurídica.
O caráter retórico da dogmática também é constatado de outras perspectivas.
Note-se que no direito dogmaticamente organizado, as expressões e os princípios
com ambiguidade, vagueza e porosidade são úteis e funcionais, pois quanto mais
imprecisos os termos, mais flexíveis os textos e com isso mais aptos a neutralizarem
os conflitos nas sociedades cada vez mais complexas. Tais imprecisões linguísticas
são fundamentais para a funcionalidade do processo que leva à decisão concreta.
Por tudo o que foi dito, concluímos pela constatação de como a análise retóri-
ca, em seus três níveis (material, estratégica e analítica), dos textos jurídicos pode
contribuir para uma releitura da dogmática, na tentativa de melhor compreender o
funcionamento do direito em meio à crescente complexidade das sociedades.
Antes de tudo, Tomás Antônio Gonzaga merece atenção especial, pois iniciou
a tradição jusnaturalista no Brasil, a qual teve como defensores, principalmente,
Pedro Autran, João Silveira de Souza, Soriano de Souza, Estácio de Sá e João Teo-
doro Xavier de Mattos (MACHADO NETO, 1969, p. 15-42). A sociedade colonial
brasileira não propiciava, por certo, um dos ambientes culturais mais estimulantes,
o que se refletiu nas obras da maioria dos jusfilósofos brasileiros. Com Gonzaga não
foi diferente.
A intelectualidade brasileira estava ainda em formação, apresentava sinais de
imaturidade e tais elementos não podem ser desprezados na análise da originalidade
da obra do Ouvidor Gonzaga. Machado Neto, sobre o tema, afirma:
para dar uma capa moderna ao seu estudo, cita Grotius e Pufendorf, sempre para
criticá-los. Cita-os mais como argumento de autoridade, pois seu Tratado é ampla-
mente tido como uma obra tomista.
Conforme Oliveiros S. Ferreira, o qual redigiu a introdução da obra de Louri-
val Machado, “Gonzaga, apoiando-se nos comentaristas menores do Direito Natural
e simulando uma concordância formal com os nomes aceitos na Coimbra pomba-
liana, dá um passo atrás na teoria do Direito Natural” (MACHADO, 1968, p. 13).
Daí já se percebe a intimidade e habilidade de Gonzaga para defender suas posições,
haja vista a formação retórica que recebeu quando jovem.
No mais, note-se que, embora o Tratado e o pombalismo compartilhassem ob-
jetivos comuns, como manter o poder absoluto do rei, os meios escolhidos são bem
diversos. Diante das mudanças promovidas por Pombal em Portugal, com base em
uma nova ideia (o jusnaturalismo racionalista), parece temerário Gonzaga pretender
obter êxito na aprovação da docência da cadeira de direito natural defendendo o
jusnaturalismo teológico, combatido por Pombal.
Feita essa digressão ao Tratado, voltemos à Carta. Como visto, a Carta não
foi redigida para fins acadêmicos, mas pelo contrário, resultou da práxis de um Gon-
zaga Ouvidor, mais experiente e pragmático. Por isso mesmo percebemos poucas
citações a autores de renome e o uso direto apenas das teses.
A influência do pombalismo na Carta é visível, pois Gonzaga finalmente in-
corporou o jusnaturalismo racionalista como fundamento para a sua argumentação.
Entendemos que a adoção, por Gonzaga, dessa forma de jusnaturalismo não se deu
apenas pela influência de Pombal. As circunstâncias concretas desempenharam,
também, papel significativo para tal posicionamento. Vejamos: defender a usura
a partir de uma doutrina que não fosse a oficial a essas alturas (ou seja, após o
malogro do Tratado, em que se utilizou de uma doutrina ultrapassada), parecia in-
sistir em um erro evitável. O direito natural desempenhava papel político de grande
importância na formulação do despotismo iluminista de Portugal e, caso Gonzaga
advogasse uma tese contrária, afetaria sua situação perante a Coroa, haja vista que,
ao redigir a Carta, Gonzaga ocupava um cargo oficial (o de Ouvidor) e, por isso,
esperava-se, naturalmente, um alinhamento doutrinário.
Registre-se que adotar a doutrina dominante e oficial não significa necessa-
riamente ausência de originalidade, pois é possível que o autor faça uma releitura,
proponha modificações, melhoramentos e faça algumas críticas, sem sair do âmbito
da doutrina inicialmente seguida. Entretanto, com Gonzaga não foi assim que acon-
teceu, é nossa tese aqui.
Tomando por base o escrito da Carta sobre a usura, não é possível afirmar que
há uma filosofia do direito brasileira ainda. Gonzaga não se defronta com a proble-
mática dos fundamentos doutrinários referente à teoria jusnaturalista racionalista,
seja criticando-a, seja propondo alterações. Não existe uma reflexão sobre a ideia
vinda do exterior, mas sim apenas o uso e aplicação direta, para fins de fundamento
de sua posição, no debate sobre a possibilidade ou não da usura.
346
REFERÊNCIAS
Assim, firma-se o entendimento de que a retórica não deve ser resumida à arte
estratégica capaz de influir na conduta alheia, a qualquer custo, de qualquer modo. A
persuasão retórica não está relacionada apenas à sua capacidade de despertar emo-
ções nos ouvintes (pathos), mas também à argumentação (logos) e à ética (ethos).
Essa “ética”, como um dos aspectos fundamentais da retórica, etimologica-
mente traduz-se, ao mesmo tempo, no caráter humano tal como se apresenta no
meio social (linguagem-objeto) e no estudo desse caráter (meta-linguagem). Tal
estudo, por sua vez, possui uma dupla função: descrever os fins e os meios que
norteiam a conduta humana e prescrever como eles devem ser manipulados numa
dada situação concreta.
A partir desses sentidos da palavra ética, tem-se a tripartição da retórica
nos níveis material, prático e analítico (ADEODATO, 2009a, p. 32), conforme
abaixo esquematizado:
ÉTICA
{
Meta-Linguagem
(estudo do caráter
humano) { Retórica Analítica
(descrição)
Retórica Prática
{
(prescrição)
Linguagem-Objeto
(caráter humano tal como Retórica Material
se apresenta socialmente) (ação)
A retórica prática estará ligada, por sua vez, à metodologia, a uma primeira re-
flexão sobre o método. A partir do ambiente e fatos descritos, serão analisadas, aqui,
as ideias, propriamente ditas, de Beviláqua, apresentando-as como um produto (uma
reflexão) de seu meio que surgiram estrategicamente para nele influir – otimizá-lo.
Dentre as suas diversas concepções inovadoras ao seu tempo, optou-se aqui
pelo estudo das defesas elaboradas por Beviláqua ao seu projeto e do debate travado
entre ele e Rui Barbosa, o seu crítico mais ferrenho. Nesse debate, Beviláqua, ao
distinguir valorativamente a forma e o conteúdo das expressões jurídicas adotadas
por seu projeto, defende a supremacia deste frente àquela, considerando uma incoe-
rência injustificável preterir o conteúdo pela forma (BEVILÁQUA, 1906, p. XI). E
a essa distinção será aplicada a retórica prática.
Por fim, por meio da retórica analítica e da metódica a ela vinculada, a análise
será realizada com um objetivo inovador. Aqui, não serão suficientes meras descri-
ções de relatos, nem se buscará nortear – prescrever – condutas. O que será feito
é um estudo que, apartado de preferências axiológicas, tem por escopo elucidar as
ideias de Beviláqua – elaboradas a partir de uma reflexão sobre seu ambiente – de
forma desconstrutivista, e analisar a influência exercida, hoje, por tais ideias den-
tro da perspectiva jurídica nacional. Em outras palavras, buscar-se-á uma reflexão
sobre a metodologia – que, por sua vez, representa uma reflexão sobre o método –
afim de (re)utilizá-la de modo eficaz na atualidade.
Nesse sentido, a partir do debate forma/conteúdo levantado por Beviláqua na
defesa de seu projeto de código civil, tentar-se-á (re)aplicá-lo à discussão contem-
porânea entre significante e significado da norma jurídica e à aporia existente entre
aqueles que creem numa “essência” do texto jurídico capaz de se autodeterminar
num dado caso concreto e aquelas correntes mais céticas que, aliadas à ideia de que
“o laço que une o significante ao significado é arbitrário” (SAUSSURE, 1995, p. 80-
81), defendem a tese de que toda norma jurídica é individual, “criada pela autorida-
de que a aplica, no momento em que a aplica, mediante a prática da interpretação”.
Diante dos objetivos anteriormente traçados, será agora realizada uma análise
sobre o ambiente histórico-cultural que contribuiu para a postura filosófica e dog-
mática de Beviláqua, transmitidas não só ao Código Civil de 1916, mas que também
influíram na originalidade das diversas ideias desse jusfilósofo. Ressalta-se, desde
já, que este ambiente não deve ser compreendido como um dado, mas sim como um
produto do sistema linguístico autorreferente (ADEODATO, 2005, p. 242) elabora-
do ao longo do tempo. Pois, como já defendido por Ballweg, “toda a linguagem é
retórica porque deseja comunicar somente uma doxa (opinião), não uma episteme
(conhecimento)” (BALLWEG, 1991, p. 176).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 353
Poderá dizer: a nação, por seus órgãos legítimos, manifestando o desejo inten-
so de adquirir um aparelho jurídico mais em harmonia com o estado social.
[...] já cumpri, na medida das minhas faculdades, o dever de justificar e de-
fender a obra de interesse nacional que me fora confiada. (BEVILÁQUA,
1906, p. IX-XII).
Outra estratégia empregada por Beviláqua pode ser chamada de tomar o pos-
sível por certo. O autor, na defesa da necessidade de uma codificação nacional,
expôs possíveis vantagens trazidas por ela como se fossem acontecimentos futuros
inevitáveis. Ele afirmava que, por meio dessa codificação, haveria “um cerceamento
do arbítrio dos depositários”, “segurança dos interesses”, e que elas ainda “prove-
riam, por longo tempo, as necessidades sociais” (BEVILÁQUA, 1906, p. 13-21).
Esta “pré-visão” – ação de “profetizar” fatos futuros – é, sem dúvidas, uma
excelente estratégia persuasiva. Pois, dada a impossibilidade de se possuir fatica-
mente tal “antevisão”, ela serve como meio de convencimento, aos destinatários do
discurso, de que a ideia defendida – no caso, a adoção do projeto como codificação
brasileira – é “a mais adequada” por trazer “as melhores consequências”.
A estratégia de adotar argumentos vagos também é facilmente encontrada no
discurso de Beviláqua. Esse tipo de artifício é utilizado como meio estratégico geralmente
perante o auditório inculto e pode ainda ser comparado com o velho estratagema,
apontado por Schopenhauer, do “discurso incompreensível” (SCHOPENHAUER,
1997, p. 178-179). Exemplos desse tipo de falácia, em Beviláqua, são:
• Eu sou uma insignificância, que não sei manejar a língua de que me sirvo.
• A minha personalidade literária é de si apagada e sem valia.
• [...] foi cumprido o meu dever. ‘Outros fariam ou farão melhor, eu fiz o
que pude’. (BEVILÁQUA, 1906, p. 451, 453 e 468)
Não obstante isso, enquanto o método dedutivista próprio das correntes lega-
listas é apofântico, o dos normativistas é dialético, dependente, portanto, de uma
análise “científica” prévia entre o fato e o texto legal. Diferentemente dos legalis-
tas, como já ressaltado, o normativismo kelseniano defende a obrigatoriedade da
interpretação do texto normativo, em todo e qualquer caso concreto, pelos órgãos
julgadores. Dessa forma, percebe-se que, muito embora já haja uma diferenciação
entre a norma individual e a norma geral, o normativismo, ao contrário do realismo,
ainda não distingui a norma de seu texto, o significado de seu significante.
Em última análise, como bem sintetiza Norberto Bobbio, o que diferencia as
correntes positivistas, acima mencionadas, parece, de fato, ser o modo diverso de
individualizar a fonte do direito (BOBBIO, 2006, p. 143). Enquanto as correntes
legalistas e normativistas defendem como principal fonte do direito a regra genérica
previamente posta, o realismo acredita que toda decisão é fruto da intersubjetivida-
de do julgador, sendo toda norma jurídica, portanto, individualmente criada diante
do caso concreto.
Ao analisar tais correntes jurídicas – o legalismo, o normativismo e o realismo
– e o que cada uma delas entende por norma jurídica, pode-se constatar um retorno
à velha discussão, já oportunamente analisada e tratada estrategicamente por Bevi-
láqua, entre a forma e o conteúdo da linguagem.
O legalismo e, de certa forma, o normativismo não conseguem diferenciar a
norma jurídica de sua expressão linguística – de seu significante –, que pode repre-
sentar simbolicamente aquela por meio de leis, jurisprudências, decretos etc. Já o
realismo vem propor uma distinção entre a forma (o significante) e o conteúdo (o
significado) da norma jurídica, na qual a forma seria apenas uma ferramenta de jus-
tificação (legitimação) da norma.
Mas, será que dentro da “praxe decisionista” essa distinção valorativa entre a
forma e conteúdo da norma jurídica, tão acentuada pelas escolas realistas, mostra-se,
de fato aconselhável? Será que essa diferenciação – em outros tempos já defendida
por Beviláqua, não em relação à norma, mas, sim, à linguagem em geral – pode ser
adotada “com segurança” pelos “operadores do direito”? É o que se analisará adiante.
Em verdade a Constituição nada diz; ela diz o que esta Corte, seu último
intérprete, diz que ela diz. E assim é porque as normas resultam da interpre-
tação e o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de
interpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das disposições (textos,
enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilida-
des de interpretação, um conjunto de normas potenciais.
REFERÊNCIAS
Este capítulo tem por objeto de investigação a história da retórica, e esta, asso-
ciada ao estudo do Direito. O objetivo é entender como e por que a retórica foi uma
estratégia de dominação das elites de poder ao longo da História. Com esse objetivo,
outras questões relevantes serão abordadas, como: qual a formação dos bacharéis
brasileiros em relação à retórica e a outras matérias jurídicas; quais os conteúdos
disciplinares de fundo filosófico nas primeiras escolas jurídicas brasileiras, em par-
ticular, a Faculdade de Direito do Recife; quais os primeiros tomos adquiridos pelas
bibliotecas sobre o assunto; e, que circunstâncias influenciaram o espaço político ou
372
cultural daquele período. Muitas são as respostas a essas perguntas, mas algumas
respostas, como se perceberá ao longo deste estudo, ao menos, fornecerão alguns
dados interessantes.
Interpretar a vida intelectual de um país como o Brasil é tarefa complexa, prin-
cipalmente quando a formação intelectual é resultado de um processo de dominação
colonial de longa duração. Essa mazela não foi uma particularidade brasileira, pois
o Brasil não está isolado. O que é particular e, até certo ponto, une o Brasil a outros
países ibero-americanos, são pelo menos duas características. A primeira, a diferen-
ça desse grupo ibero-americano dos outros países gerados pela expansão europeia;
ou seja, o Brasil foi alvo de uma propagação controlada pelo Estado metropolitano
colonizador. Nisso se destacou o domínio do sistema educacional, exercido, ora
pelo Estado, ora pela Igreja; a exemplo das ex-colônias espanholas cuja educação
superior tinha mais divulgação, porém, também sob um rigoroso controle de currí-
culos, compêndios, ideias e métodos didáticos. O caso português foi mais acentu-
ado. Em seus domínios até as universidades e escolas superiores foram proibidas.
Os nascidos na colônia só encontravam tal educação na metrópole europeia. A se-
gunda característica é que os países colonizados pela península Ibérica se tornaram
diferentes do “mundo” anglo-saxão no campo das ideias, dos valores, das visões de
mundo, e naquilo que mais interessa a este estudo, o campo da linguagem, os estilos
de pensar, os modos de discurso e as práticas retóricas.
O estudo da retórica teve grande peso na vida lusitana e brasileira. Remonta
à tradição escolástica portuguesa que se destacou na Universidade de Coimbra por
onde passaram muitos membros da sua elite política e intelectual na primeira meta-
de do século XIX. A retórica foi ensinada pelos jesuítas no período que foi chamado
de a segunda escolástica portuguesa. Depois, durante a reforma pombalina, a retó-
rica não foi extinta, mas o teor de seu ensino foi modificado para “dignificar-lhe” o
conteúdo e ampliar seu alcance. Ela deveria permear a vida de todos e não só fazer
parte da vida de políticos, clérigos e advogados, pensavam.
Portanto, ao longo da História portuguesa a retórica foi apresentada e ensi-
nada de formas variadas. Com a finalidade de servir na admissão às Universidades
de Coimbra e Évora, seu estudo e aprovação foi exigência obrigatória entre outras
disciplinas. Assim, foram criadas escolas preparatórias, na metrópole e na colônia
brasileira, estabelecendo um vínculo estreito com o estudo do Direito. Pode ser dito
que, qualquer pessoa em Portugal e no Brasil que tivesse estudado acima da alfa-
betização elementar, no início do século XIX, teria alguma formação em retórica.
Isso nos leva a constatar que o estudo da retórica fez parte da formação intelectual e
jurídica nos domínios portugueses e que as influências que se iniciaram em Portugal
tiveram reflexos também no Brasil. Mas, quais foram essas influências, quais foram
os grupos que fizeram essa influência predominar, e, por que o ensino (aí incluído
o estudo da retórica) foi tão importante na formação e estabelecimento da cultura
jurídica nacional até o final daquele século?
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 373
A religião modelou fortemente o ensino lusitano e com ela também veio todo o
peso do estudo da (sua) retórica. Mesmo antes da reforma de Pombal, Portugal, in-
ternamente, manteve uma união teológico-política com o cristianismo como forma
de refutação das crenças mouras cujo território havia sido reconquistado. Quando
se iniciou a expansão ultramarina lusitana do século XVI, esta se manteve associada
também à expansão da “fé”. Porém, o século seguinte foi marcado por um acirra-
mento da escolástica e da mística religiosa, apesar da cientificidade e do progresso
tecnológico ter se difundido e multiplicado durante a expansão colonial que, para-
doxalmente, também conduzia os jesuítas e suas recomendações.
Por causa das intervenções da Reforma protestante e sua atitude científica na
Europa, a censura e o controle do ensino acirrou-se nos locais onde o catolicismo
“imperava”, incluindo Portugal e seus domínios. Uma estratégica censura literária
impediuUma estratégica censura literária impediu os portugueses de terem acesso a
qualquer obra que contrariasse o credo ideologicamente dominante.
O principal centro cultural de Portugal ficava em Coimbra. Ali estavam au-
tonomamente, tanto o Real Colégio das Artes e Humanidades que, como escola
preparatória, tinha o objetivo de preparar os futuros estudantes universitários das
artes liberais, como a Universidade de Coimbra. Era no Colégio das Artes onde se
faziam os “estudos menores”, o que incluía a retórica. Quem desejasse ingressar
nos cursos universitários passaria necessariamente por ele e teria que estudar retó-
rica. Em 1561 passou a ser obrigatória uma certidão do Colégio para a matrícula
nas faculdades da Universidade de Coimbra. A partir de 1639 o controle do ensino
tornou-se ainda mais rígido quando seus diretores deixaram de apresentar apenas
recomendações e introduziram a Ratio Studiorum. Dirigidas pelos jesuítas, essas
instituições de ensino irradiavam seu poder na esfera educacional e na pedagogia
das outras escolas, incluídas aí as Universidades. O ambiente que se vivia com a
implantação da Inquisição, as atividade do Santo Ofício e a adoção das medidas do
Concílio de Trento, isolou a ação do Colégio das Artes que passou a ter dificuldades
em manter a continuidade de projetos culturais mais avançados.
Sob a direção dos Jesuítas, até 1772, a Universidade de Coimbra subdividia o
ensino jurídico em duas faculdades, a de Leis e a de Cânones, que se concentravam,
respectivamente, nos estudos de Direito Romano (Corpus Iuris civilis) e no Direito
Canônico (Corpus Iuris canonici), época em que as reflexões filosóficas sobre o Di-
reito não estavam a cargo de jurisconsultos, mas de teólogos. O que leva a concluir
que, a religião sempre se atrelava às questões da esfera temporal. Foi a época áurea
do jusnaturalismo escolástico, que subordinou, nas Universidades, a Ética e o Di-
reito à Teologia (SILVA, 2009, p. 81). A partir de 1772, com a reforma pombalina,
passaram a vigorar os Novos Estatutos. Em 1836 foi criado o curso de Direito em
Portugal, deixando de existir a divisão entre Leis e Cânones.
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Em São Paulo, no ano de 1776, os frades franciscanos criaram uma escola agre-
gada ao seu convento. Por causa do ensino da teologia, da moral, da retórica e do
latim, houve a vinda de um número significativo de estudantes. Anos depois, ali surgiu
a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (CHACON, 2008, p. 169-170).
Porém, devido à vontade de estudar, outros cursos foram criados no Brasil.
Em Minas Gerais, o poeta e também advogado, Manuel Inácio da Silva Alvarenga,
foi professor régio de uma aula de retórica e poética, que fundou solenemente em
1782. Anos depois, também sob seus auspícios, restaurou, em 1786, com a denomi-
nação agora de “Sociedade Literária”, a sociedade científica.
No ano de 1800 também foi inaugurado em Olinda, Pernambuco, um desses
cursos pelo bispo de Olinda, Azeredo Coutinho, o Seminário de Olinda que:
[...] tinha uma estrutura escolar propriamente dita, em que as matérias apre-
sentavam uma sequência lógica, os cursos tinham uma duração determinada
e os estudantes eram reunidos em classe e trabalhavam de acordo com um
plano de ensino previamente estabelecido (PILETTI, 1996, p. 37).
Outra conclusão a que chegamos é que, tanto a luta dos franciscanos e jesuítas
pelo monopólio do ensino (e não só do ensino da retórica) era uma estratégia de po-
der, assim como o apoio governamental que recebiam, e estava vinculado vinculado
às diretrizes de ensino que ditavam como meio de dominação. A cada período, quem
detinha o poder, suprimia seu antecessor e todo o seu complexo de ações apregoando
um discurso renovador. Vimos que a “renovação” se dava mais na substituição de
pessoas e instituições que do conteúdo informado no discurso. Isso também é retó-
rico: se proclama que o conteúdo da filosofia e da retórica (aqui observados como
objeto) vai mudar, mas, de fato, esse discurso apenas justifica a retirada, às vezes nada
pacífica, de pessoas e instituições, do poder. Tanto na Europa como no Brasil, isso
ocorreu repetidamente, e alcançou a adesão de grandes massas populares. Ou seja, in-
dependentemente de quem estivesse no poder, Igreja ou Estado, ao divulgar diretrizes
educacionais “renovadoras” ou “modernizadoras”, tal discurso alcançou adesão tanto
de populações de letrados como de indoutos. Retoricamente, não importa aqui se a
adesão está apoiada por alguma ética ou moral, se é “certo” ou “errado”. Nem mesmo
a “coerência” das argumentações é avaliada. Se for incoerente que se inibisse vee-
mentemente qualquer pensamento que se afastasse da filosofia aristotélica por meio
de uma censura ostensiva e, ao mesmo tempo, essa mesma filosofia pudesse ser tão
profunda em libertar os pensamentos de poucas amarras formais do estilo da língua e
do ornamento, não cabe à retórica (esta metódica) julgar. Ela apenas revela, pois nada
melhor para reconhecer os indícios da passagem da retórica que a própria retórica.
Nessa busca pelo poder, ou pela manutenção nele, o Estado nunca esteve só.
Afora seus benefícios e vantagens, a religião esteve muito ligada ao poder político
e, em determinados momentos, por ele foi instrumentalizada para controlar as “mas-
sas”. Vimos que isso ocorreu naquele período, e não tem sido diferentes ao longo de
outras épocas, mesmo as mais recentes. “Religião”, “defesa de direitos”, “defesa de
grupos minoritários” e “compensações sociais”, sem que pesem os benefícios para
uns poucos, enquanto discursos, são mantos poderosos que cobrem motivos escusos
e são manipulados estrategicamente pelos interesses do poder. Talvez o estudo da
retórica, como o de outras disciplinas, entrou no currículo dessa estratégia de forma
aleatória. Contudo, como sempre esteve conectada ao poder, sua manipulação é
mais que provável.
Mesmo a produção literária a respeito da retórica e para seu ensino foi uma es-
tratégia de imposição, sobre conteúdos rivais. Por que o estudo da retórica e da filo-
sofia não foi ministrado nas primeiras escolas jurídicas como disciplina curricular e
apenas nas escolas preparatórias? É possível identificar outra estratégia descentrali-
zadora. Talvez assim fosse mais fácil de controlar seu conteúdo, ou, distrair os estu-
dantes mais jovens e inexperientes. Os relatos históricos tem mostrado que, tanto a
retórica foi ensinada em cursos preparatórios, tendo seu conteúdo controlado, como
a filosofia era ensinada nos centros religiosos, mosteiros e seminários, onde seu
conteúdo também era enclausurado, e, a cultura jurídica se concentrava no estudo
de uma evanescente legislação posta. Contudo, isso é algo que certamente mudou
com o passar dos anos. Não necessariamente para libertar o espírito do estudioso
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REFERÊNCIAS
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VERNEY, Luís Antônio (1949-1953). O verdadeiro método de estudar para ser
útil à República e à Igreja: proporcionado ao estilo e necessidade de Portugal.
Valença: Antonio Balle, 1746. In: VERNEY, Luís Antônio. Edição organizada por
Antonio Salgado Junior. Lisboa: Sá da Costa.
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 100
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12 X 19 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)