Sei sulla pagina 1di 389

João Maurício Adeodato

(organizador)

CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO
PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas

João Maurício Adeodato


Camila Colares Soares de Andrade Amorim
Laila Iafah Goes Barreto
Maria Eduarda Corteletti Pereira Cardoso
André Lucas Fernandes
Lorena Freitas
Graziela Bacchi Hora
Anselmo Laghi Laranja
Fernando Joaquim Ferreira Maia
Helena Maria Ramos de Mendonça
Francisco Arthur de Siqueira Muniz
Yumi Maria Helena Miyamoto
Eduardo Constantino das Neves
Patrícia Camilo Caetano Silva
Lourenço Torres

EDITORA CRV
Curitiba - Brasil
2015
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Revisão: João Maurício Adeodato

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C781

Continuidade e originalidade no pensamento jurídico brasileiro: análises retóri-


cas / organização João Maurício Adeodato. - 1. ed. - Curitiba, PR: CRV, 2015. 
           388 p.               

           ISBN 978-85-444-0522-2

           1. Direito - Brasil. 2. Federalismo - Brasil. 3. Sociologia - Brasil.


I. Adeodato, João Maurício.

15-24742 CDD: 321.02


  CDU: 321.015

17/07/2015    17/07/2015    

2015
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela:
Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418
www.editoracrv.com.br
E-mail: sac@editoracrv.com.br
Epígrafe

[...] Voltando, agora, a falar-te do seu método de vida, e da excelência


dos meios de instrução, devo dizer-te que naquela cidade as ciências são
aprendidas com tanta facilidade que as crianças ficam sabendo num ano o
que entre nós se adquire ordinariamente após dez ou quinze anos de estudo.
[...] Antes de virem a ser doutores, não lhes é concedido repouso algum.
Campanella, Tomás: A cidade do sol, trad. Álvaro Ribeiro.
Lisboa: Guimarães Editores, 1996, p. 32-33.
Para Camila Colares Soares de Andrade Amorim
(09.02.1987 – 18.10.2012). In memoriam.
Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia
do Estado de Pernambuco (FACEPE), à Fundação Coordenadoria de
Apoio ao Pessoal de Nível Superior (CAPES), à Fundação Alexander
von Humboldt (AvH), à Faculdade de Direito do Recife (CCJ-UFPE)
e à Faculdade de Direito de Vitória (FDV) por terem auxiliado no
desenvolvimento das pesquisas que resultaram neste livro.
ÍNDICE

Prefácio: A FILOSOFIA COMO AUTOCONSCIÊNCIA DE UM POVO.......17


João Maurício Adeodato

As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil:


originalidade e continuidade como questões de um
pensamento periférico.....................................................................................23
João Maurício Adeodato

A obra de Sílvio Romero no desenvolvimento da nação


como paradigma: da dicotomia entre o positivismo e a metafísica à
adoção do evolucionismo spenceriano na transição republicana...................45
Camila Colares Soares de Andrade Amorim

Rui Barbosa no advento da República – retórica em defesa


dos ideais federalistas.....................................................................................73
Laila Iafah Goes Barreto

Pressupostos retóricos do direito à tolerância


no estado multicultural................................................................... 113
Maria Eduarda Corteletti Pereira Cardoso

Pontes de Miranda: a opacidade, o escamoteamento e a


retórica da ressignificação ............................................................................139
André Lucas Fernandes

A crítica de Gilberto Freyre ao bacharelismo:


ensaio para uma análise retórica..................................................................169
Lorena Freitas

Retórica e identidade nacional na Escola do Recife.............189


Graziela Bacchi Hora

A social democracia de Rui Barbosa e a defesa


da positivação de direitos sociais na campanha
presidencial de 1919.............................................................................207
Anselmo Laghi Laranja

As teses do jovem Pontes de Miranda sobre os direitos


do homem como variantes do socialismo jurídico.................237
Fernando Joaquim Ferreira Maia
O conceito de homem de letras e a retórica jurídica
no Brasil do século XIX......................................................................253
Helena Maria Ramos de Mendonça

O direito de resistência e a dicotomia retórica


das formas de governo em Cipriano Barata:
a influência original do periódico Sentinela da Liberdade
para a legitimação jurídica das revoluções liberais do
Século XIX e derrocada do Império brasileiro...............................................277
Francisco Arthur de Siqueira Muniz

As estratégias retóricas de Bertha Lutz para a


conquista do direito de voto das mulheres no Brasil.........307
Yumi Maria Helena Miyamoto

Análise da usura a partir da função legitimadora


da retórica na carta do ouvidor Gonzaga:
uma investigação da originalidade na aurora
do pensamento jusfilosófico brasileiro..........................................................323
Eduardo Constantino das Neves

A retórica de forma e conteúdo a partir do discurso


de Clóvis Beviláqua em defesa de seu projeto de
código civil..............................................................................................349
Patrícia Camilo Caetano Silva

A retórica da história do estudo da retórica para


o direito português e brasileiro..................................................371
Lourenço Torres
AUTORES

ADEODATO, João Maurício

Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Faculdade de


Direito de Vitória (FDV), Livre-Docente da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP) e Pes­quisador 1-A do CNPq, Pós-Doutorado nas Universidades
de Mainz e Frei­burg-im-Breisgau e Professor Visitante nas Universidades de Hei-
delberg, Salzburg e Hagen
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/8269423647045727

AMORIM, Camila Colares Soares de Andrade (In memoriam)

Ex-monitora da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito e Bolsista de


iniciação científica do CNPq, Bacharela e Mestra em Direito pela Faculdade de
Direito do Recife (UFPE)

BARRETO, Laila Iafah Goes

Ex-bolsista de iniciação científica do CNPq, Bacharela e Mestra em Direito


pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE)
Currículo completo em
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4274271H7

CARDOSO, Maria Eduarda Corteletti Pereira

Ex-bolsista de iniciação científica e Bacharela em Direito pela Faculdade de


Direito de Vitória
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/3231604581620870

FERNANDES, André Lucas

Ex-bolsista de iniciação científica da FACEPE, Membro-fundador do grupo de


extensão Direito em Foco (UFPE) e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito
do Recife (UFPE)
Currículo completo em
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4405370H3
14

FREITAS, Lorena

Professora Adjunta III do Centro de Ciências Jurídicas e Coordenadora do


Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (Mestrado e Doutorado) da Uni-
versidade Federal da Paraíba (UFPB) e Líder do grupo de pesquisa: Realismo Jurí-
dico, apoiado pelo CNPq
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/0744266978828665

HORA, Graziela Bacchi

Professora da Faculdade Damas da Instrução Cristã do Recife, Mestra e Dou-


tora pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Pós-Doutorada na Universidade
de Greifswald, Alemanha, e Procuradora da Assembleia Legislativa de Pernambuco
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/4348222436812247

LARANJA, Anselmo Laghi

Mestre em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal


do Espírito Santo (UFES), Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela
Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e Juiz de Direito do Estado do Espírito Santo
Currículo completo em
http://lattes.cnpq.br/3308273209288238

MAIA, Fernando Joaquim Ferreira

Professor Adjunto da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Es-


pecialista, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e Advogado
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/8339138648737936

MENDONÇA, Helena Maria Ramos de

Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP),


Mestra em Teoria da Literatura pela UFPE e Doutora em Direito pela Faculdade de
Direito do Recife (UFPE)
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/7639453018299778

MUNIZ, Francisco Arthur de Siqueira

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Professor Subs-


tituto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Coordenador do Núcleo de Teoria
Geral do Direito e Filosofia do Direito da Escola Superior da Advocacia da OAB-PE
e Ex-Coordenador da Graduação em Direito da Faculdade Joaquim Nabuco
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/4674957712662231
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 15

MIYAMOTO, Yumi Maria Helena

Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de São Paulo (USP), Mestre


e doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de
Vitória (FDV), Professora da Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e Advogada
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/6666582064624856 

NEVES, Eduardo Constantino das

Ex-monitor da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito, Ex-bolsista de


iniciação científica do CNPQ, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do
Recife (UFPE), Pós Graduando pela PUC/SP em Direito Tributário e Procurador do
Município de São Paulo
Currículo completo em
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4428662T3

SILVA, Patrícia Camilo Caetano

Ex-bolsista de iniciação científica do CNPq e Bacharela em Direito pela Fa-


culdade de Direito do Recife (UFPE) e Servidora Pública Estadual
Currículo completo em
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4411517Z8

TORRES, Lourenço

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Especialista


em Direito Processual e advogado
Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/7901606887149048
Prefácio

A FILOSOFIA COMO
AUTOCONSCIÊNCIA DE UM POVO

João Maurício Adeodato

Sumário: 1. O pensamento jurídico brasileiro. 2. Trajetória do grupo de pes-


quisa. 3. Sobre o conteúdo deste livro.

1. O pensamento jurídico brasileiro

O título deste prefácio, que vem de um texto de Miguel Reale (1910-2006), foi
uma das fontes de inspiração deste livro e do grupo de pesquisa do qual resulta. No
prefácio que escreveu para meu livro Filosofia do Direito em 1996, o mestre paulis-
ta já enfatiza a necessidade de que os brasileiros não devem fazer filosofia “como se
estivessem em Paris ou Frankfurt...” E, com efeito, em toda sua vida procurou estu-
dar e resgatar o pensamento nacional: escreveu diversos livros e trabalhos a respeito
e descobriu e publicou os Cadernos do Padre Diogo Feijó, além de ter incentivado
uma geração de pensadores e historiadores brasileiros, como Gláucio Veiga, Nelson
Saldanha, Antonio Paim e Luiz Washington Vita. Pouco antes de falecer comentou
comigo: “Se não lermos nossos antepassados intelectuais quem nos vai ler?”
Isso não significa aderir a uma suposta “filosofia da libertação”, cultivada por
diversos colegas brasileiros e das Américas do Sul e Central, sobretudo porque o
Brasil faz parte da periferia da cultura europeia (Grécia, Roma e Europa propria-
mente dita), fala uma língua europeia e todos os autores aqui estudados se inserem
no contexto dessa chamada “cultura ocidental”. É lamentável que as influências
indígenas e africanas tenham sido reduzidas ou aniquiladas na história do pensa-
mento brasileiro, mas os relatos filosóficos e jurídicos que chegaram até nós não as
incluem, mesmo que elas estejam vivas no sangue e na aparência física do nosso
povo e em diversas formas de sua manifestação cultural.
O capítulo inicial, a que remeto a leitora ou leitor, fornece as ideias diretoras
da obra, das quais não cabe falar aqui. Mas o problema todo do livro é justamen-
te a tentativa de responder se podemos falar de um pensamento jurídico nacional
propriamente dito ou se apenas observamos perifericamente o debate europeu, hoje
também norte-americano, canadense, australiano. Sim, porque só se pode falar co-
erentemente em um debate quando as partes se leem umas as outras; não basta a
grande produção brasileira sobre Habermas se ele próprio e seus discípulos euro-
peus dela não tomam conhecimento.
18

2. Trajetória do gupo de pesquisa

O grupo de pesquisa de filosofia e teoria geral do direito, na época a área era


ampla assim, fundado em 1984 sob minha orientação, é o mais antigo e ininterrupto
em andamento no Brasil. Foi criado com uma bolsa de pesquisador-mestre junto ao
CNPq, o que era possível na época, e teve agregada, em 1987, uma bolsa de inicia-
ção científica, a primeira implantada na Faculdade de Direito do Recife.
O primeiro projeto (1984-1988) aplicou técnicas empíricas de pesquisa ao alu-
nado da Faculdade de Direito do Recife, em torno de problemas ligados ao ensino
jurídico e aos próprios procedimentos de pesquisa do direito, tentando formar um
perfil do campo de trabalho e do capital humano no qual o grupo de pesquisa recru-
taria seus membros e viria a atuar. Devido ao pequeno número de alunos engajados
no projeto, o trabalho resultou em uma única publicação na Revista da Ordem dos
Advogados do Brasil – Pernambuco, o que era de toda forma inusitado, em um
tempo em que alunos não publicavam1.
O segundo projeto (1990-1994) dizia respeito a origens e desenvolvimento do
pensamento ontológico na filosofia do direito, inclusive no Brasil, e seus reflexos na
dogmática jurídica, o que significava enfrentar as questões de “verdade” em socie-
dades menos desenvolvidas. A ontologia de Nicolai Hartmann e a sugestão de Hans
Blumenberg, que separa a antropologia ontológica de uma concepção retórica do
ser humano como “carente”2, forneceram o ambiente desse trabalho, que serviu para
definitivamente estabelecer o viés não ontológico do grupo de pesquisa.
A terceira fase (1995-1999), inspirada no enfoque da teoria dos sistemas, par-
tiu da percepção de que, se um direito positivo periférico como o brasileiro não se
legitima pelo procedimento dogmaticamente organizado, tal como descrito por Ni-
klas Luhmann e discípulos, é preciso detectar por meio de que procedimentos o faz3.
Tentou-se assim estudar o caráter específico do direito positivo brasileiro, longe da
autopoiese, do monopólio da jurisdição e dos procedimentos estatais de solução
de conflitos. Essas duas etapas do grupo de pesquisa constam do livro Dogmática
jurídica e direito subdesenvolvido4, sem contar os trabalhos publicados individual-
mente por cada membro, nos níveis de iniciação científica, mestrado e doutorado.

1 FERREIRA, Maria de Fátima. Quem é e como se vê o estudante da Faculdade de Direito do Recife. Revista da Ordem
dos Advogados do Brasil – Seccional de Pernambuco, Ano XXXIV, no XXIV. Recife: OAB/PE, 1990, p. 105-126.
FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira. A Escola do Recife e o problema da originalidade de um pensamento
jurídico periférico. In: ADEODATO, João Maurício (org.). Dogmática jurídica e direito subdesenvolvido – uma pesquisa
pioneira sobre peculiaridades do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 19-48.
2 ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito – uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à
ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 1ª. ed. 1996; 5ª. ed. 2013, último capítulo.
3 Repetindo: ADEODATO, João Maurício. A legitimação pelo procedimento juridicamente organizado — notas à teoria de
Niklas Luhmann. Revista da Faculdade de Direito de Caruaru, vol. XVI. Caruaru: FDC, 1985, p. 65-92, sobretudo nas p.
85-86, sugerindo que o direito subdesenvolvido não se adaptaria àquele tipo de teoria e que a ineficácia das normas jurídicas
estatais não deve ser reduzida a mera disfunção, mas desempenha papel importante no direito brasileiro. Depois a tese é
mais discutida em ADEODATO, João Maurício. Sobre um direito subdesenvolvido. Revista da Ordem dos Advogados do
Brasil, vol. XXI. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989, p. 71-88. No exterior, a crítica à universalização da teoria sistêmica de
Luhmann começou em ADEODATO, João Maurício. Brasilien. Vorstudien zu einer emanzipatorischen Legitimationstheorie
für unterentwickelte Länder. Rechtstheorie, 22. Band, Heft 1. Berlin: Duncker und Humblot, 1991, p. 108-128.
4 ADEODATO, João Maurício (org.). Dogmática jurídica e direito subdesenvolvido – Uma pesquisa pioneira sobre
peculiaridades do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 19

O quarto projeto (2000-2008) levado a efeito pelo grupo partiu de uma base
sociológica do direito, sem dúvida, ainda que de forma menos imediata. Diferen-
temente do livro anterior, o enfoque passa ao caráter retórico da argumentação,
concentrado em diversos campos do direito positivado e tal como funciona em um
país que é complexo em seus problemas, mas não consegue importar e implementar
as soluções de modernidade central. A retórica tem assim, aqui, um viés pragmático,
pelo qual o funcionamento dos institutos e argumentos jurídicos é avaliado à luz
de seus efeitos. Ela serve para analisar o funcionamento do direito dogmático em
um país subdesenvolvido como o Brasil. Aqui o grupo já se encontra inteiramente
consolidado, assim como sua projeção internacional5.
A quinta fase do grupo de pesquisa (2009-2012) cuidou especificamente da
obra retórica de Aristóteles e da possibilidade de sua aplicação ao direito. Essa obra
não inclui apenas a Retórica, mas também a Poética e a Tópica, assim como os
Argumentos Sofísticos e até os Primeiros Analíticos. Com este trabalho as bases
retóricas ganharam a solidez desejada6.
O sexto projeto, atualmente em andamento, constitui, no fundo, o objetivo
final de todas as fases anteriores. Este livro traz os primeiros resultados desses estu-
dos e a próxima publicação já está em preparação. O já mencionado capítulo inicial
deste livro mostra como o grupo procura aplicar a perspectiva da retórica analítica
– inaugurada por Aristóteles – à história das ideias jurídicas no Brasil.
Resumindo a trajetória do grupo de pesquisa: primeiro, o estudo sobre quem
é e como se vê o estudante da Faculdade de Direito do Recife, como a primeira
pesquisa empírica; depois, a crítica à ontologia, procurando fixar os pressupostos
epistemológicos que passariam a nortear as atividades do Grupo; em uma terceira
fase, sobre as peculiaridades do direito periférico, subdesenvolvido, lançou mão da
teoria sistêmica dentro de um positivismo sociológico, não estatalista7. A quarta eta-
pa aplicou a retórica como perspectiva formal, instrumento de análise de institutos
dogmáticos, como o orçamento participativo ou a concessão de fiança. E a quinta
etapa estudou especificamente as bases retóricas na Antiguidade clássica, sobretudo
– mas não somente – a Retórica de Aristóteles e sua aplicabilidade ao direito.
Ao longo de tantos anos, além do grande número, outros motivos houve para
que nem todos os participantes pudessem estar presentes neste e nos demais livros
organizados por mim. Um critério foi o temático, pois alguns trabalhos não guarda-
vam tanta pertinência com os objetivos centrais do projeto; alguns dos possíveis au-
tores, por outro lado, já tinham publicado os resultados de suas pesquisas em outros
veículos; mais alguns os tinham utilizado em projetos de mestrado ou doutorado,
não fazendo sentido reproduzi-los aqui; e outros simplesmente não chegaram a um
nível de qualidade adequado.

5 ADEODATO, João Maurício (org.). O direito dogmático periférico e sua retórica – consolidação de um grupo de
pesquisa em filosofia e teoria do direito. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
6 ADEODATO, João Maurício (org.). A retórica de Aristóteles e o direito – bases clássicas para um grupo de pesquisa
em retórica jurídica. Curitiba: CAPES / CRV / FDV, 2015.
7 Daí o comentário, metonímico, para não dizer exagerado, sobre a “orientação sistêmica” da Faculdade de Direito do
Recife por parte de ARGÜELLO, Katie. Niklas Luhmann e o direito: elementos para uma crítica à teoria sistêmica, Revista
de Direito Alternativo, n. 4. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 157, e de WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao
pensamento jurídico crítico, 2. ed. São Paulo: Acadêmica, 1995, p. 98, dentre outros.
20

3. Sobre o conteúdo deste livro

Após o capítulo que esclarece as bases metodológicas que unificam a grupo


de pesquisa em torno de uma visão realista da retórica, começam os estudos que
resultam da aplicação dessa metodologia à história das ideias brasileiras. Como os
membros do grupo ficaram inteiramente livres para escolher seus autores e temas,
preferi colocá-los pela ordem alfabética do último sobrenome, em vez dos critérios
autoral ou temático.
O primeiro estudo tem como objetivo analisar a filosofia de Sílvio Romero.
Por meio do estudo das ideias que influenciaram esse autor, procura uma perspecti-
va contextualizada de seu pensamento, cuidando, principalmente, da época da pro-
clamação da República e do debate com o positivismo comteano. A análise dos
textos de Romero é feita à luz das vias retóricas de persuasão: ethos, pathos e logos.
Defende a tese de que Sílvio Romero foi precursor da modernização do direito no
Brasil e, por meio de seu “cientificismo”, influenciou o Código Civil de 1916. O ra-
cismo, a sociologia e o culturalismo são temas que permeiam o trabalho, buscando,
de forma interdisciplinar, mostrar que Sílvio Romero não se limitou a resenhar auto-
res europeus e sua ambição de conhecer o ambiente cultural nacional terminou por
influenciar toda geração que se seguiu, podendo-se destacar autores como Gilberto
Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade.
Depois o objeto é o federalismo de Rui Barbosa, desenvolvido quando da que-
da do Império brasileiro, procurando analisar como foi inserido o discurso federa-
lista no Brasil. A obra de Rui Barbosa é tomada como principal fonte de argumentos
no debate e questiona-se a originalidade de sua teoria. A metodologia utilizada foi a
Retórica analítica, que se baseia na tripartição da retórica nos níveis material, estra-
tégico e analítico. Conclui que o autor foi capaz de, por meio da adaptação retórica
do paradigma, desprender-se do discurso federalista norte-americano e tornar-se,
pois, original.
O próximo capítulo tem por objetivo analisar qual a função do direito à to-
lerância numa sociedade multicultural. Para tanto, busca identificar, por meio da
filosofia retórica realista, a correlação entre a perspectiva ontológica e os ideais de
individualismo e uniformização, consolidados pelo capitalismo contemporâneo, no
intuito de notar a importância do multiculturalismo para consolidação de um espaço
de respeito e de coexistência na conjuntura da diversidade ética e étnica. Daí a rela-
ção entre o direito e a moral e a tolerância e o reconhecimento.
O quinto capítulo alerta para os mecanismos retóricos de produção de um mo-
delo de história das ideias jurídicas no Brasil. A tentativa é de uma análise retórica
que aponte para uma revisão histórica da obra de Francisco Cavalcanti Pontes de
Miranda. No caso deste autor, o trabalho critica, principalmente, o escamoteamento
causado por uma análise descontextualizada e laudatória de sua obra. Advoga a ne-
cessidade de revisão do seu papel para o direito pátrio, como da sua classificação, na
história das ideias, como um pensador ontológico ou nominalista crítico.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 21

A seguir, o foco é analisar retoricamente as ideias jurídicas de Gilberto Freyre.


A análise retórica é trabalhada por duas vertentes: a) focando a fronética (Ottmar
Ballweg) em razão de a referência central ser Gilberto Freyre como sujeito retórico,
e então: b) apropriando-se do discurso freyreano para observar as figuras de lingua-
gem que indicam o gênero deliberativo.
O próximo capítulo busca fornecer uma noção da identidade nacional durante
a formação do movimento intelectual chamado Escola do Recife. A aproximação
dá-se a partir duma análise da construção retórica das ideias, estilo de exposição e
escolha de temáticas com menção a alguns marcos históricos correspondentes ao
período. Como objetivo, deve-se contribuir para a compreensão de uma identidade
nacional ocupada em conquistar autonomia e diferenciar-se de modelos importados
pelo Brasil enquanto colônia. A utilização de uma retórica combativa, ainda que
enraizada em conteúdos europeus, passa a adotar uma liberdade de expressão e as-
sociação peculiares e flexíveis, acarretando uma baixa tendência à sistematização e
à estagnação no movimento intelectual.
O capítulo oitavo analisa o discurso de Rui Barbosa na campanha presidencial
de 1919, no qual enfatizou a necessidade de uma reforma constitucional para a po-
sitivação dos direitos sociais. Para tanto, dividiu-se o trabalho em três segmentos: 1)
exame do contexto em que Rui vivia; 2) análise dos instrumentos de teoria da argu-
mentação e de figuras de linguagem utilizadas para o convencimento do eleitorado;
3) e aferição dos impactos sociais causados pelo discurso eleitoral, assim como sua
originalidade e influência no pensamento atual.
A seguir o objetivo é analisar criticamente os direitos do homem defendidos
por Pontes de Miranda em suas primeiras obras e em comparação com o socialismo
jurídico de Anton Menger. A metodologia empregada se vale da retórica, em seus
níveis material, estratégico e analítico, para situar o ambiente em que esse jurista
estava inserido e decompor as suas teses jurídicas e as suas estratégias discursivas
reformadoras da ordem capitalista. O artigo sustenta a hipótese de que a tese ponte-
ana se aproxima do socialismo jurídico de Anton Menger.
O objetivo do próximo capítulo é compreender as relações existentes entre
Retórica, Filosofia e Poética, aplicando estas interseções à análise do conceito e das
ações do Homem de Letras no discurso jurídico do Brasil do Século XIX. A tese é
que a atividade desses agentes históricos, associada à aproximação com a imprensa
e com a literatura, promoveu uma peculiar contribuição à cultura jurídica nacional
daquele período.
No décimo primeiro capítulo busca-se evidenciar a existência de originalidade
e continuidade na formação do pensamento jurídico brasileiro, mediante a análise
das retóricas das ideias jurídicas difundidas por Cipriano Barata no contexto his-
tórico do início do Século XIX. Focam-se aspectos de sua obra, do ponto de vista
filosófico e jurídico, em especial, a sua argumentação acerca do direito natural de re-
sistência e da dicotomia retórica das formas de governo. Pretende-se caracterizar o
desenvolvimento da nação brasileira e suas instituições como não apenas decorren-
tes da reprodução do pensamento estrangeiro, mas sim marcado por arroubos de ori-
ginalidade, cujos frutos ainda hoje são percebidos no nosso ordenamento jurídico.
22

O próximo estudo quer verificar em que medida as estratégias retóricas de Ber-


tha Lutz contribuíram para a cidadania política das mulheres no Brasil. A tese é que
sociedade brasileira, tradicionalmente conservadora e patriarcal, sofre os embates da
agenda política do movimento sufragista feminino no Brasil, o que provoca fissuras
nos papéis sociais entre homens e mulheres e alterações na ocupação privilegiada do
espaço político pelos homens, motivando a sua ocupação também pelas mulheres.
Em seguida o projeto é estudar o pensamento jusfilosófico de Tomás Antônio
Gonzaga em sua obra Carta sobre a usura, a partir da perspectiva retórica proposta
por Ottmar Ballweg. Analisa o momento histórico vivido por Gonzaga, bem como
suas estratégias argumentativas, de forma a saber se houve originalidade no seu
pensamento. Aqui também se defende que a postura retórica é a mais adequada para
compreender o funcionamento do mundo jurídico.
Depois, na procura de originalidade e continuidade na formação do pensamen-
to jurídico brasileiro, o capítulo foca as ideias e argumentos de Clóvis Beviláqua,
desenvolvidos em defesa de seu projeto de código civil. O código vigorou de 1916
a 2002. A observação de tais ideias e argumentos é dividida em três estágios, cada
um deles norteado pela retórica em seus níveis material, estratégico e analítico.
Inicialmente, destaca-se o ambiente histórico do autor. Em seguida, enfatizam-se as
próprias estratégias argumentativas deste. Por fim, analisa-se a possível reutilização
dessas estratégias no cenário jurídico atual.
O décimo quinto e último capítulo descreve a importância do estudo da retóri-
ca ao longo da formação intelectual luso-brasileira até o século XIX. Com o objeti-
vo de observar eventos diretamente ligados à história do ensino jurídico brasileiro,
pesquisa as raízes da retórica como fundamento do direito. Conclui que vários fatos
históricos podem ser interpretados como estratégias políticas de dominação vestidas
de um discurso de emancipação e legitimidade.
A esperança da equipe é que esses estudos, que já contribuíram para a for-
mação intelectual individual de suas autoras e seus autores, possam auxiliar de
alguma maneira na compreensão e educação deste grande país, em cuja história,
até hoje marcada por incompetência e falta de ética, procuram a luz que deve
guiar-lhe o futuro.
AS RETÓRICAS NA HISTÓRIA DAS
IDEIAS JURÍDICAS NO BRASIL –
originalidade e continuidade como
questões de um pensamento periférico

João Maurício Adeodato

Resumo: Este capítulo procura resumir as bases metodológicas que unificam


o grupo de pesquisa sobre a história das ideias jurídicas no Brasil.
Palavras-chave: Retórica e metodologia. Análise retórica. Originalidade e
continuidade do pensamento brasileiro. Pesquisa qualitativa. Método, meto-
dologia e metódica.
Abstract: This chapter tries to expose the methodological basis which unify
the research group on the history of juridical ideas in Brazil.
Keywords: Rhetoric and methodology. Rhetorical analysis. Originality and
continuity of Brazilian thought as problems. Qualitative research. Method,
methodology and methodic.
Sumário: Introdução: estado da arte do Grupo de Pesquisa em retórica jurí-
dica da Faculdade de Direito do Recife. 1. A perspectiva retórica como me-
tódica: marco teórico. 2. A história das ideias jurídicas no Brasil: objeto. 3.
As questões de originalidade e continuidade no contexto da cultura jurídica
brasileira: problematização. 4. Bases da análise retórica como pesquisa qua-
litativa. 5. Uniformização do método de estudo: separando metodologia de
metódica. Referências.

Introdução: estado da arte do grupo de


pesquisa em retórica jurídica da faculdade de direito do recife

Este texto e este livro procuram situar e retratar os primeiros resultados de um


novo projeto de um Grupo de Pesquisa que, com o apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/MCT – da Coordenadoria de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior – CAPES/MEC – e da Fundação de
Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE, concentra-se
sobre um âmbito (mais do que um tema) que tem sido negligenciado pelos juristas
brasileiros, que a ele tanto devem: seu passado. Pretende-se, nesse sentido, mostrar
o planejamento e o desenvolvimento atual das atividades desse Grupo de Pesquisa
em Retórica Jurídica e História das Ideias, cujo projeto específico se expressa pelo
título deste capítulo.
24

Necessário, contudo, recortar mais um pouco um objeto de pesquisa como


“o passado”, ainda mais que o interesse pela história, pela história das ideias, tem
marcado, ao longo do tempo, a atenção de muitos pesquisadores brasileiros, país no
qual a influência dos juristas tem sido notória. Curiosamente, esse interesse não tem
sido cultivado nas próprias faculdades de direito brasileiras.
Mas alguns juristas isolados têm chamado atenção para a importância de es-
tudos da história das ideias no Brasil, nos quais tem destaque a figura de Tobias
Barreto, como um dos fundadores da cultura brasileira, “tanto na filosofia quanto no
direito” (REALE, 2000, p. V). Só que o tema “Escola do Recife” tem ocupado mais
espaço na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – quiçá em outras –
do que no Recife, chamando os paulistas e cariocas atenção para o papel relevante
que a cultura alemã desempenhou nesse processo, ajudando na liberação, tanto da
influência tomista do espiritualismo católico português, quanto daquela oriunda do
positivismo francês, fazendo do Recife um dos berços da cultura jurídica nacional
(LOSANO, 2000a, p. 7, 15, 32 e passim).
Mesmo que a complexa evolução política da Alemanha, desde o século XIX,
tenha escolhido caminhos nacionalistas, que desembocam no nacional-socialismo
nazista, no estudo de sua relação com a cultura da América do Sul chamam atenção
o caráter internacionalista e o interesse alemão por outras culturas, sobretudo a do
Brasil, país aonde foi forte a imigração germânica e onde se difundiu sua língua
(LOSANO, 2000b). Essa postura, com suas idas e vindas e interregnos nacionalis-
tas, corresponde mais ao posicionamento internacionalizante da Alemanha no mun-
do de hoje, o que traz novo interesse ao estudo atual das ideias jurídicas no Brasil.
Para além das culturas musical e desportiva, pelas quais os europeus bem-in-
tencionados veem o Brasil, a história do país tem ideias a oferecer, inclusive ideias
no campo do direito. Tal foi a hipótese diretora do Grupo de Pesquisa, a ser testada,
evidentemente. Suposição que partiu do interesse de alunos e professores pelos es-
critos de Jhering, assim como pela obra de seus primeiros interlocutores brasileiros,
digam-se Tobias Barreto, Silvio Romero e Clóvis Beviláqua, todos professores da
Faculdade de Direito do Recife. A ideia é antiga no Grupo de Pesquisa: em novem-
bro de 1992 foi realizado na Faculdade de Direito do Recife um congresso nacional
em homenagem aos 100 anos do falecimento de Rudolf von Jhering (ADEODATO,
1996; LOSANO, 1996).
Na análise desse vasto campo da história das ideias, foi necessário construir
uma delimitação metodológica. Primeiro, então, uma descrição do ambiente his-
tórico, uma parte que fica mais próxima da historiografia tradicional, descritiva de
“fatos”, o que para o Grupo de Pesquisa são os métodos da retórica material, como
será esclarecido a seguir. Depois, no nível da retórica estratégica, procura-se estu-
dar a argumentação da autora ou autor escolhido e como, por meio de suas ideias,
tentou influir nos métodos e fatos descritos no primeiro nível. Finalmente, a retó-
rica metódica vai proceder a análise dos níveis anteriores e mostrar a contribuição
original do Grupo de Pesquisa.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 25

1. A perspectiva retórica como metódica: o marco teórico

O questionamento dos métodos e das metodologias é um problema da teoria do


conhecimento. O que fazem professores e alunos em uma universidade de um país
(subdesenvolvido) como o Brasil? Responder a essa curiosidade é um dos objetivos
deste primeiro capítulo. Um problema de conhecimento é um problema filosófico.
Não se pretende aqui entrar numa ampla discussão sobre esses termos (gnoseologia,
gnosiologia, epistemologia), mas apenas oferecer uma visão própria do que eles sig-
nificam dentro de um Grupo de Pesquisa consolidado nas Faculdades de Direito do
Recife e de Vitória, um Grupo de Retórica Jurídica, retórica entendida como uma ati-
tude filosófica diante do conhecimento e da ética. O que significa esse marco teórico?
A inserção da retórica na filosofia vai depender do que se entende por filo-
sofia, evidentemente. Começa-se aqui, assim, por uma bipartição sugerida por Hans
Blumenberg (1986) para separar as duas vertentes da filosofia ocidental. Esta já é uma
escolha de método, pois claro que é uma grosseria reunir todos os pensadores em duas
grandes direções apenas, mas é esta a única forma de se estudar. São os tipos ideais
sugeridos por Max Weber (1985, p. 122), dos quais, acredita-se aqui, o universo con-
ceitual não escapa. Depois, muito depois, e se o destino ajudar, os poucos alunos, nos
quais a semente da filosofia germinar, escolherão seus campos específicos.
Nesses termos, se a filosofia procura a verdade, e a retórica não vê sentido
nesse conceito, evidentemente a retórica está fora da filosofia. Um de meus antigos
mestres, Ottmar Ballweg, por exemplo, separa retórica e filosofia, segundo esse
critério, e exclui da filosofia correntes tradicionalmente consideradas “filosóficas”,
tais como ceticismo, agnosticismo, voluntarismo, nominalismo, positivismo, prag-
matismo e niilismo (BALLWEG, 1982).
Mas justamente a existência dessas várias correntes, oriundas da sofística, na
mais antiga tradição da filosofia ocidental, demonstra que nem toda a filosofia se
reduz às concepções dominantes de busca da “verdade”, absoluta ou não. Nesse
sentido, a tradição, aqui chamada de retórica, opõe-se a essa tradição principal, aqui
chamada ontológica. A perspectiva “metodológica”8 do Grupo de Pesquisa parte
dessa concepção de retórica como uma espécie de filosofia.
Mesmo antes da sofística, nos primórdios da filosofia, esse dualismo já marcou
a cultura ocidental no confronto entre Parmênides e Heráclito.
Para Parmênides o movimento é uma ilusão, assim como toda mudança. A
certeza do conhecimento já está no ser humano, na mesma linha que vai ser seguida
pela doutrina das ideias eternas de Platão e que vai desembocar no racionalismo
de Descartes e, até hoje, no que diz respeito à filosofia do direito, no pensamento
de autores que acreditam que regras corretas e previamente fixadas – “racionais” –
vão conduzir a decisões corretas nos casos concretos (ALEXY, 1983; DWORKIN,
1994; STRECK, 2009).

8 As aspas se devem à crítica que o presente texto faz ao uso corrente da expressão “metodologia”, propondo a tripartição
entre método, metodologia e metódica, conforme pretende-se esclarecer aqui.
26

Para Heráclito, por outro lado, o conhecimento deve se concentrar na mudança


e é a permanência que constitui uma ilusão, pois ninguém pode tomar banho nas
águas do mesmo rio e “tudo passa, nada permanece” (πάντα ῥεῖ οὔδεν μένει – pánta
rheĩ oúden ménei – na síntese tardia de seu pensamento), a linha que vai desembo-
car no empirismo de Locke, no ceticismo de Hume e, nos dias atuais, no Grupo de
Pesquisa sobre Retórica Jurídica da Faculdade de Direito do Recife.
Tem-se assim duas antropologias para explicar essa relação entre o ser huma-
no e a “verdade” (GEHLEN, 1978; BLUMENBERG, 1986). Uma corrente, aqui
chamada ontológica, considera o ser humano como um ente “rico” ou pleno, sua
linguagem é apenas um meio para alcançar, literalmente des-cobrir, descrever os
objetos do mundo, objetos que existem independentemente dela. Isso significa di-
zer que a razão e o aparato cognoscente do ser humano, desde que devidamente
empregados, são capazes de chegar a assertivas sobre o ambiente, as quais todo ser
humano é “racionalmente” obrigado a aceitar, são “verdadeiras”. Essas ideias de ra-
cionalidade e verdade, trasladadas para o campo da ética, implicam a possibilidade
de distinguir racionalmente o justo do injusto.
Os filósofos retóricos, do outro lado, consideram que o ser humano é “pobre”
ou carente e daí a linguagem constitui seu único ambiente, isto é, que não há fatores
externos a servir de critério para uma verdade “objetiva”, pois todo objeto é forma-
do pela própria linguagem e todo conhecimento consiste de acordos linguísticos
intersubjetivos de maior ou menor permanência no tempo, mas todos circunstan-
ciais, temporários, autorreferentes e assim passíveis de constantes rompimentos.
Claro que esses dois extremos são tipos ideais, como dito, pois só a necessidade
de agrupá-los conceitualmente justifica semelhante generalização e todo fenômeno
real será percebido de forma mais ou menos ontológica ou retórica, com mais ou
menos plenitude ou carência gnoseológica.
Também deve ficar claro que as ontologias têm prevalecido nas concepções
filosóficas do Ocidente, posto que contam com apoios poderosos, tanto da parte dos
monoteísmos, vitoriosos no campo da religião (SCHMIDINGER, 2002), quanto da
parte da ciência dominante, inimigas de quaisquer ceticismos (SOKAL; BRICMONT,
1999). Tanto a religião como a ciência, apesar de contrárias em outros aspectos,
não querem prescindir do conceito de verdade, cuja determinação “científica” –
o que quase sempre significa “causal” – e seus sucessos no domínio da natureza
circundante, têm emprestado grande prestígio à ciência moderna. Um segundo
motivo aqui sugerido para o sucesso das ontologias pode jazer naquela necessidade
atávica do ser humano por segurança: verdade na teoria do conhecimento, justiça
na esfera ética, a dúvida é incômoda. Sem esquecer, em terceiro lugar, que a defesa
da verdade é ela própria estratégia retórica para apoiar argumentos, consciente ou
não, por parte do orador; quando o jurista, por exemplo, aponta uma verdade na
relação entre a lei e determinado caso, passa a se apresentar como “cientista” (ou
até sacerdote) e não como defensor de interesses, dogmas, doutrinas (BALLWEG,
1982, p. 38-39).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 27

A visão da filosofia como retórica vai levar a uma perspectiva mais modesta
por parte do Grupo de Pesquisa, no que concerne à abordagem da história das ideias
jurídicas no Brasil que pretende. Essa perspectiva, analítica, vai tentar afastar pre-
conceitos estabelecidos, por exemplo, o de que a retórica é apenas um enfeite da
linguagem ou que sua função é tão somente estratégica para persuasão e até engodo
dos menos avisados. A retórica tem também essas importantes funções, certamente,
cujo conhecimento no mínimo ajuda a imunizar contra seus efeitos eventualmente
danosos, mas vai muito além disso. A análise retórica serve não apenas à filosofia do
direito e à história das ideias, mas também ao estudo das ciências físicas, biológicas
etc., pois todas consistem de acordos linguísticos.
O marco teórico aqui é assim a retórica, tomada em um sentido próprio e es-
pecífico, tripartido em retóricas material (método), estratégica (metodologia) e ana-
lítica (metódica), o que será agora resumidamente explicado (ADEODATO, 2009;
ADEODATO, 2014).
Talvez o mais difícil de fazer entender, do ponto de vista filosófico, seja o
primeiro sentido, o da retórica material, ou existencial. Significa considerar que
tudo aquilo que se chama de “realidade” consiste em um fenômeno linguístico, cuja
apreensão é também “retórica”. Isso não quer dizer somente que o conhecimento
do mundo é intermediado pelo aparato cognoscitivo do ser humano, como sugeriu
Kant, ou mesmo intermediado pela linguagem. Significa dizer que a própria reali-
dade é retórica, pois toda percepção se dá pela linguagem, a convicção radical de
que não há percepção nem apreensão fora da linguagem, muito menos “objetos”. A
retórica material compõe a relação do ser humano com o meio ambiente, é o conjun-
to de relatos sobre o mundo que constitui a própria existência humana. Esta pressu-
posição filosófica é “radical”, no sentido mesmo de “raiz”. Se há alguma “realidade
ôntica” por trás da linguagem não há qualquer sentido em falar sobre isso, pois o ser
humano é linguisticamente fechado em si mesmo, em um universo de signos, sem
acesso a qualquer “coisa” para além da própria linguagem.
Isso não implica que a realidade seja subjetiva, pelo menos no sentido de uma
dependência de cada maneira pela qual cada indivíduo a percebe. O maior ou menor
grau de “realidade” de um relato vai exatamente depender dos outros seres huma-
nos, da possibilidade de controles públicos da linguagem. Nesse sentido podem
existir demônios, buracos negros, quarks, ego e superego. Só que essas regras de
controle da retórica material, conforme mencionado acima, são condicionadas, cir-
cunstanciais e tanto mais mutáveis e ambíguas quanto mais complexo e diferencia-
do seja o meio social.
A linguagem intrasubjetiva, o diálogo consigo mesmo que caracteriza o pen-
samento, na precisa definição de Hannah Arendt (1978, p. 187), consiste em um
“dois-em-um” do pensamento, ou seja, só porque o ser humano é dotado de consci-
ência (consciousness, self-awareness, saber que ele é só ele e é distinto dos demais)
e da capacidade de imaginar “outro eu” com quem dialogar é que o pensar se torna
possível. E, como o descobriu Sócrates, apenas diante de uma harmonia entre os
dois “eus” pode-se falar propriamente em pensamento (“conhece-te a ti mesmo”).
28

Conclui-se aqui, o que Hannah Arendt não faz, que o próprio pensamento é retórico,
composto de relatos que o sujeito faz a si mesmo, relatos que o sujeito se diz, se
comunica. Só assim o ser humano vive no mundo.
Essa dimensão material corresponde aqui ao método, literal e etimologica-
mente ao caminho (όδóς, odos) que as pessoas tomam, sua conduta “real”, no sen-
tido de que constitui a realidade, os relatos que compõem os “fatos” da vida, os
discursos retoricamente regulados, ou seja, ações e reações linguísticas a estímulos
também linguísticos. Retórica material é um conceito que busca abranger esse con-
junto de escolhas de ação dos seres humanos, seus métodos, os relatos da linguagem
escolhidos a cada momento em detrimento de outros relatos possíveis.
A segunda dimensão retórica, a prática, ou estratégica, é reflexiva no sentido
de que tem a retórica material como alvo, compõe-se do conjunto de estratégias que
visam interferir sobre aqueles métodos e modificá-los, influir sobre eles para ter
sucesso em determinada direção escolhida. Por isso é pragmática e teleológica, toda
retórica estratégica quer se transformar em retórica existencial, quer se “realizar”.
Ela corresponde ao nível da metodologia, já que observa como funciona a retórica
material e a partir daí constrói doutrinas, teorias (logias) que buscam mudar, trans-
formar, conformar os métodos do primeiro nível retórico. A metodologia transforma
esses métodos em “objetos”, faz com que determinadas concepções sobre o am-
biente circundante apareçam como “o mundo”, relatos privilegiados, vencedores no
sentido de obterem mais crença e adesão. A eficácia linguística é seu critério, fruto
da observação de quais métodos funcionam e de quais não funcionam na práxis.
Essas metodologias podem ser ensinadas, delas fazem parte a tópica, a teoria
da argumentação, as figuras de linguagem e de estilo e, no direito, as doutrinas
dogmáticas. Elas tratam justamente de quais topoi aparecem mais frequentemente
em um discurso, que métodos são empregados para esse ou aquele efeito, como os
lugares-comuns retóricos são construídos e trabalhados, que táticas, palavras, ges-
tos melhor produzem os efeitos desejados.
A retórica analítica é a que mais se aproxima do que tradicionalmente se tem
chamado a postura “científica”, na medida em que procura descrever, abstraindo-se
de atitudes valorativas, como funcionam a retórica material e a retórica estratégica,
tanto tipificando-as isoladamente, quanto estudando-as em suas inter-relações. Ca-
racteriza-se pela atitude descritiva e pela correspondente tentativa de neutralidade,
por isso nunca é normativa, ao contrário dos outros dois níveis.
Ver a retórica analítica como uma metódica ajuda a sustentar a tese de que a
retórica vai além de seus aspectos metodológicos e assim combate duas reduções
tradicionais: de um lado, aquela apontada pelos adversários da retórica, para os
quais ela serve para enfeitar a linguagem, seduzir e enganar os incautos; do outro
lado, aquela defendida pela corrente dominante entre os próprios retóricos, no senti-
do de que a retórica se dirige exclusivamente à persuasão. Em suma, ambas as teses
reduzem metonimicamente a retórica a seu nível estratégico (a suas metodologias),
muito importante, sem dúvida, mas jamais único.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 29

Isso porque a retórica metódica tem exatamente como objeto imediato essas
estratégias, dentre as quais se sobressaem de uma parte o engodo, de outra, a persu-
asão, ressaltadas pelos reducionismos mencionados. Claro que, como essas estraté-
gias dirigem-se à retórica material, esta também é analisada pela retórica metódica.
Trata-se assim de uma meta-meta-linguagem, ou meta-linguagem de segundo nível.
Trata-se também de uma teoria, mas não apenas sobre os métodos efetivamente
aplicados, como o faz a retórica metodológica, mas sim sobre o funcionamento das
metodologias sobre os métodos.
A retórica como metódica para estudo das ideias jurídicas no Brasil sugere,
assim, que a abordagem retórica pode dar outra contribuição além de seu nível es-
tratégico e ornamental, ou seja, além de sua ajuda para o sucesso da comunicação.
A atitude metódica da retórica pode propiciar mais conhecimento das relações hu-
manas, eventualmente servir de critério para testar o acordo com as regras do jogo,
por exemplo (a lei e outras fontes de normas jurídicas, no caso do direito), além de
fornecer apoio à aceitação de decisões.
Esse prisma de observação considera infundadas as concepções etiológica e
escatológica da história, que a veem, respectivamente, como causal e progressiva,
previsível e finalística, entendendo que o presente é melhor do que o passado e que o
futuro tende a ser melhor. Isso parece ser uma consequência da perspectiva cartesia-
na e das vitórias da ciência moderna no domínio da natureza na modernidade. Para a
retórica, a história é composta de relatos exemplares do passado (no sentido clássico
de “contar uma história”), os quais devem servir de exemplo para o futuro, pois as
pessoas tendem a acreditar que o passado se repete. Sua ligação com a “realidade”
é relativa, mas claro que um relato que os ouvintes creem haver de fato ocorrido
funciona melhor, como já advertira Aristóteles (1990, 1394a, 5, p. 641).
A visão histórica da retórica é assim relativa e imprevisível, precisa confor-
mar-se com o fato de que não se pode compreender ou prever qualquer evento que
“tenha” história, pois a história é humana e o que é humano não pode ser causalmen-
te (etiológica ou escatologicamente) observado. A seguir observa-se como a retórica
analítica pode ser aplicada a essa história das ideias.

2. A história das ideias jurídicas no Brasil: objeto

Entende-se aqui que a historiografia filosófica não se deve ater apenas à bi-
bliografia ou à biografia dos pensadores escolhidos. Daí a diferença entre a história
das ideias e a história da filosofia tradicional, pois aquela procura enfocar as ideias
onde quer que apareçam e não apenas na filosofia, ou seja, podem ser oriundas
de literatos, políticos, jornalistas. O projeto do Grupo de Pesquisa procura abordar
ideias que influíram no pensamento jurídico brasileiro de onde quer que venham,
embora seu enfoque, conforme explicitado acima, seja filosófico, no sentido de uma
filosofia retórica do direito.
30

Tendo o fenômeno jurídico como pano de fundo, são examinados os funda-


mentos da experiência jurídica brasileira, para investigar, em primeiro lugar, se há
mesmo algo assim como uma filosofia brasileira, o que aqui se chama o problema da
continuidade; em segundo lugar, investiga-se a questão de uma eventual originali-
dade dessas ideias, para além da mera repetição ou comentários dos ensinamentos
estrangeiros. Isso porque, embora se reconheça a cultura nacional em muitas outras
áreas, como música e dança, as ideias jurídicas não desfrutam da mesma sorte.
Por sua própria formação eclética e sua vinculação aos problemas nacionais
mais imediatos, os juristas brasileiros já parecem ter recepcionado as ideias estran-
geiras com seu toque de originalidade, pelo menos a partir do século XIX. De toda
maneira, a cultura brasileira é parte integrante do Ocidente, constitui uma das pe-
riferias dessa cultura greco-romano-europeia que se convencionou chamar a cultu-
ra ocidental. Apesar das outras culturas influentes no Brasil, como a indígena e a
africana, fala-se aqui uma língua europeia, latina, oriunda de Roma – este um sinal
evidente – e não é à toa que o poeta descreveu a língua portuguesa como “a última
flor do Lácio, inculta e bela”.
A filosofia é a autoconsciência de um povo, como dizia Reale (1994a), e a his-
tória das ideias é uma forma de compreender sua identidade que deve ser reconhecida
por todas as ciências sociais, inclusive o direito, claro. Pode ser que os argumentos
de Joaquim Nabuco contra o instituto da escravidão, as perorações de Frei Caneca
pela República ou as digressões de Tobias Barreto sobre a capacidade dos menores e
das pessoas com problemas mentais não constituam mais questões sobre as quais os
filósofos contemporâneos devam discutir. Mas todas elas foram, em seu tempo, e tam-
bém por meio do esforço desses pensadores, importantes na quebra de paradigmas, na
formação de uma consciência nacional (CERQUEIRA, 2002, p. 101 s.; CHACON,
2008) e na ampliação dos horizontes da filosofia e da teoria geral do direito, cujas
originalidade e continuidade estão sendo estudadas pelo Grupo.
O jurista português Delfim Santos fala de uma temática aristotélica na cultura
portuguesa, devida à inclinação dos portugueses por uma lógica tomista, embasa-
da em Aristóteles e mais afastada da metafísica propriamente dita. Durante todo o
período colonial, apenas as ideias vindas de Portugal chegavam ao Brasil, pois as
outras influências estrangeiras eram sempre filtradas pela cultura lusa. Ao contrário
do colonizador espanhol, que se preocupou desde logo em fundar universidades em
suas colônias, o português só instalou centros de cultura quando da vinda de D. João
VI ao Brasil, já no começo do século XIX. Até então, a difusão do saber era restrita
aos seminários religiosos, não havia uma cultura leiga como aquela que passara a
existir na Europa da baixa Idade Média.
Nesse caminho pode-se detectar a escolástica como a primeira fonte das ideias
jurídicas no Brasil. A segunda foi o praxismo, influenciado pela escola bolonhesa
dos glosadores e pelas próprias necessidades práticas da Colônia, o que se mostra no
dito ipsis factibus dictantibus necessitate exigente, ou seja, “à medida que os fatos
ditavam e as necessidades exigiam”. Este significativo peso da praxis assemelha
o jurista português (e os primeiros profissionais do direito brasileiros) ao jurista
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 31

romano e ao inglês, sendo a tradição legalista bem mais tardia. O praxismo colonial
era de fundo consuetudinário, jurisprudencial e relativista, e até hoje tem sua influ-
ência sobre a mentalidade jurídica brasileira, na qual o legalismo exegético jamais
se firmou completamente. A discussão em torno do uso alternativo do direito, nos
anos 1990, e o atual debate sobre o ativismo judicial deitam raízes nessa tradição.
As ordenações portuguesas trouxeram ao Brasil as influências escolásticas e
praxistas desenvolvidas em centros de cultura jurídica dentre os quais o mais impor-
tante foi Coimbra. Essas ordenações eram pragmaticamente elaboradas e não podem
ser chamadas de códigos pela ausência de unidade sistematizada e da mentalidade
iluminista. Os juristas portugueses das ordenações não cultuavam o racionalismo
francês do Código Civil e da Escola da Exegese, os primeiros positivistas, tendo
esse movimento chegado ao Brasil bem depois (REALE, 1977; REALE, 1994b).
Os estudantes de direito recebiam em Portugal uma educação baseada em his-
tória e latim, depois algumas disciplinas vinculadas à retórica clássica e, só da me-
tade para o fim do curso, direito canônico e alguma coisa do direito civil português.
Esse contexto precisa ser estudado para entender a importância retórica das ideias
sobre o mundo real e é aí que se juntam os dois campos de estudo visados pelo
Grupo de Pesquisa.
Ao lado da preocupação histórica, partindo da convicção de que toda mudan-
ça social significativa se faz por meio de ideias, procura-se aqui uma história das
ideias, simultaneamente com a história dos eventos concretos, que são únicos e
irrepetíveis. Para isso é necessário definir, além da concepção de história, o que se
deve entender por ideias (TOBIAS, 1987, p. 1-20).
Os próprios historiadores debatem acirradamente o objeto de seu estudo, seu
caráter científico e sua inserção ou não no corpo das modernas ciências sociais, com
alguma semelhança com o que acontece com a área do direito, sobretudo “por sua
relativa indiferença a questões metodológicas” (BOYCE, 2005, p. 448). Ainda que
a história seja praticamente tão antiga como a escrita, é só no final do século XVIII
que ela aparece como disciplina específica nas universidades.
Com Nietzsche vem a reação contra a causalidade na compreensão da histó-
ria e contra a suposição de que a ela poderia ser delimitada por leis específicas, já
que os processos históricos não podem ser definidos, pois “Todos os conceitos nos
quais se compõe semioticamente um processo inteiro escapam à definição; definí-
vel é somente aquilo que não tem história.” (NIETZSCHE, 1988) Diante de tantas
“causas”, uma causalidade histórica será necessariamente reducionista. A etiologia
vincula “uma” causa a “um” efeito, sob uma visão determinista na qual o risco da
desproporcionalidade salta aos olhos. Essa perspectiva é vã na história, posto que
relações supostamente causais não podem ser isoladas. Fatos relevantes (causais)
para determinados efeitos empiricamente observáveis estarão envolvidos por esco-
lhas do historiador. Daí todas as saudáveis tentativas de “revisionismo”, que fazem
a história e a história das ideias tão fascinantes.
32

O debate fica então concentrado na pergunta sobre se são possíveis “leis gerais
explanatórias” e se descobri-las ou criá-las é a função do conhecimento histórico,
tendo em vista as abordagens deterministas e causais das ciências sociais em geral.
Para a perspectiva aqui assumida, o trabalho do historiador guarda “estreita seme-
lhança com as atividades de um magistrado que investiga, ou de um detetive legal”,
os quais pretendem compreender e explicar motivações para determinadas ações
humanas (BOYCE, 2005, p. 453), com todo rigor possível, mas de forma indutiva
e pragmática, ou seja, retórica. Nesse mister é preciso cuidado para não cair em
falácias muito comuns quando se procura fazer história, as quais não são específicas
do trabalho histórico.
Os advogados experientes são familiarizados com a falácia das falsas dicoto-
mias, para algumas das quais o Grupo de Pesquisa de retórica jurídica da Faculdade
de Direito do Recife já tem mostrado atenção em trabalhos anteriores (ADEODA-
TO, 1999). O interlocutor cairá nessa falácia quando permitir que o seu parceiro no
discurso o coloque em situações tais como “ou é assim ou é assado”, positivista ou
jusnaturalista, esquerda ou direita, teórico ou prático e assim por diante. Essas estraté-
gias empregadas pelo autor escolhido em seu ambiente precisam ser desveladas pelo
pesquisador. A estratégia do confronto de posições antagônicas também deve ser de-
tectada pelo pesquisador, pois um mesmo ambiente histórico terá, quase que necessa-
riamente, fundamentos discursivos comuns. Ver as opiniões dos partidos em conflito
na época estudada como se o pesquisador fosse um parceiro do momento, isto é, to-
mando partido contra ou a favor, pressupondo que algum dos antagonismos colocados
é verdadeiro em detrimento do outro, prejudica o distanciamento que a perspectiva
retórica da história exatamente quer trazer. O passado não deve ser visto como causa
do presente, mas tampouco o presente deve servir de critério para observar o passado.
No difícil equilíbrio tenta mover-se a metódica retórica sobre a história das ideias.
Daí a questão: são as ideias dos indivíduos que impulsionam (“fazem”) a his-
tória ou é a história que determina as ideias? Trata-se da pessoa certa nas condi-
ções certas ou é a pessoa que faz o ambiente e as condições? Há muitos anos esse
problema foi tratado em termos de uma interpretação genética versus uma in-
terpretação histórica, tomando por base uma obra de Victor Goldschmidt (1963)
(ADEODATO, 1989a, p. 189).
A questão é de que maneira se deve ler um pensador. Há dois modos para
penetrar-lhe o pensamento, compreendê-lo e avaliá-lo: o que Goldschmidt chamou
método filosófico propriamente dito e o método genético ou histórico. Sem discutir
as denominações escolhidas, veja-se em que consistem as duas perspectivas.
O método filosófico, tradicional, subtrai seu objeto ao tempo e o observa se-
gundo a validade intrínseca das proposições apresentadas, tendo determinada visão
de “verdade” como critério; o método genético, mais recente, procura compreender
a teoria do autor estudado a partir das condicionantes históricas que o influenciaram.
Essa perspectiva genética examina as contradições do pensamento, dissolvendo-as
no fluxo dos fatos históricos, em lugar de compará-las a um parâmetro objetivo
anteriormente estabelecido.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 33

O método filosófico é dogmático na medida em que parte de uma perigosa no-


ção de “correção” ou “adequação” a um parâmetro “verdadeiro”, além de correr o
risco de penetrar no pensamento do autor e não saber a hora de sair para assumir uma
postura crítica ou, pelo lado contrário, manter um distanciamento crítico tal a ponto
de impedir a compreensão. O método genético-histórico arrisca-se a passar por cima
das peculiaridades e originalidade do pensamento sob exame, em seu afã pelas causas
e fatos infraestruturais: ele “[...] repousa frequentemente sobre pressupostos que, di-
ferentemente do que acontece na interpretação dogmática, não enfrentam a doutrina
estudada para medir-se com ela, mas se estabelecem, de certo modo, por sobre ela e
servem, ao contrário, para medi-la” (GOLDSCHMIDT, 1963, p. 139-147).
A metódica retórico-analítica aqui tomada assemelha-se mais a esse segundo
tipo, pois não crê em parâmetros de verdade. Mas vai tentar superar seus riscos.

3. As questões de originalidade e continuidade no


contexto da cultura brasileira: problematização

A colocação desse problema no Grupo de Pesquisa é antiga e remonta ao


ano de 1985. Trata-se de um problema de que se têm ocupado diversos autores,
tanto em países periféricos como nos centros desenvolvidos (ADEODATO, 1985,
p. 85-86; ADEODATO, 1989b; ADEODATO, 1991; ARGYRIADIS, 1987, p. 161;
FERREIRA, Maria de Fátima, 1990; FERREIRA, Maria Augusta (2008))9.
A verificação de que o direito chamado ocidental, construído sobre as bases da
história da Europa, passa por um longo processo de separação em relação a outras
ordens normativas vigentes na sociedade, foi um dos pontos preparatórios discuti-
dos ao longo dos anos neste Grupo de Pesquisa, com auxílio da teoria dos sistemas,
de conceitos como diferenciação funcional e dessa distinção já estabelecida entre
periferia e centro. Os países periféricos como o Brasil sofrem reflexos dessa evolu-
ção histórica e das ideias a elas conectadas.
Como funciona e até que ponto ocorre essa separação, isso já foi estudado nos
projetos anteriores do Grupo. Assumiu-se assim que, em sociedades mais primiti-
vas, as hoje diferentes ordens éticas incidiriam indiferenciadamente sobre a conduta
social, confundindo direito, moral, religião, boas relações e fazendo difícil, quando
não inútil, uma separação entre o pecado e o ilícito, entre o ilícito e o crime, entre
o dolo e a culpa, entre o direito natural e o positivo, por exemplo, e que o centro da
cultura ocidental vem desenvolvendo esse processo de diferenciação autopoiética
até hoje. Ainda assim, mesmo nesse contexto hoje global, vai-se procurar demons-
trar que a filosofia do direito brasileira fez-se valer de categorias próprias na análise
dessa evolução.

9 Com a tese de que o direito subdesenvolvido não se adaptaria a teorias como a de Luhmann e que a ineficácia das
normas jurídicas estatais não deve ser reduzida a mera disfunção, mas desempenha papel importante no direito brasileiro
e periférico em geral.
34

Concluiu-se que esse processo não ocorre homogeneamente nas sociedades


periféricas do capitalismo ocidental, tal como a brasileira, na qual há uma evolu-
ção diferente, também extremamente complexa e com procedimentos próprios. O
projeto atual mostra que foram tentadas soluções ao longo dos séculos no Brasil e
busca preencher lacunas no que concerne ao estudo do desenvolvimento do direito
no país, detectando indícios de que haveria alguma originalidade no pensamento
jurídico e filosófico brasileiro, posto que se dirigiam a problemas específicos de
determinado ambiente.
Partindo do princípio de que toda mudança social significativa se faz por meio
de “ideias”, procura-se aqui uma descrição na qual as ideias acompanhem o fluxo
de eventos concretos no qual se inserem. A visão retórica exposta acima assume que
as ideias são influenciadas por esses eventos do ambiente histórico (retórica mate-
rial), mas também voltam a ele para modificá-lo (retórica estratégica). Isso é crucial
e coloca a diferença básica entre o presente projeto e a tipologia de Goldschmidt.
A originalidade de determinada linguagem cultural encontra resistência naqui-
lo que se pode chamar de universalidade da cultura, pois originalidade e universa-
lidade opõem-se. Uma linguagem é original no sentido de que sua criação foi mini-
mamente (ou quiçá nada) influenciada por outros ambientes. Porém, exatamente por
conta dessa oposição, estando a linguagem estreitamente vinculada a um ambiente
específico – pois muita originalidade implica independência de outras culturas –
torna-se incompreensível para quem não pertence àquele meio. Daí pouca univer-
salidade. Na música, por exemplo, a linguagem original do blues, como no caso de
Robert Johnson ou Muddy Waters (que mesmo assim já são autores mais universais
que seus predecessores), precisou ser ampliada por universalizações menos fiéis às
origens, como no caso de Eric Clapton ou Robert Cray. O mesmo ocorreu em Per-
nambuco com relação a artistas populares como o Mestre Salustiano (mais original)
e seguidores como Antônio Nóbrega e Chico Science (mais universais e susceptí-
veis a influências externas).
Na história das ideias ocorre exatamente o mesmo. Todavia, diferentemente
da música, a discussão filosófica já parte, por definição, do universal. Isso dificulta
o trabalho do Grupo de Pesquisa, pois se torna ainda mais difícil detectar em que
medida os problemas especificamente locais (originalidade) são tratados em sinto-
nia com o desenvolvimento das ideias na cultura central ocidental, isto é, europeia
e norte-americana (universalidade).
Essa questão se torna mais sensível ainda em um contexto cultural periférico
como o brasileiro. Trata-se do dilema entre concentrar-se no próprio contexto (origi-
nalidade) e a dificuldade de penetrar na cultura central, da qual a periferia não deixa
de fazer parte (universalidade). Do ponto de vista do centro unificador, é óbvio que
o ensimesmar-se cultural da periferia, ao lado da dificuldade para compreender suas
peculiaridades históricas, relativamente distanciadas do contexto geral, dificulta
mais ainda a interação, pois a cultura central tem outros objetos de atenção, os quais
prevalecem sobre a realidade periférica. Claro que há as ilhas de interesse, as quais,
muitas vezes, até permitem acesso melhor ao pesquisador do que em sua própria
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 35

terra natal, a infraestrutura de instituições como o Instituto Max Planck ou as biblio-


tecas das universidades. Do ponto de vista da periferia, a atitude de recolhimento
resulta de uma mistura de autodefesa e a mesma ignorância dos pesquisadores cen-
trais, só que em sentido contrário.
O pensador, o escritor, o artista, enfim, o autor em geral é bombardeado por
informações oriundas de uma cultura que, de certa maneira é a mesma sua e, de
outro lado, oprime sua cultura local, a qual procura responder a problemas para os
quais o arsenal da cultura central mostra-se incompetente. Isso porque, na socieda-
de globalizada hodierna, os vetores são unilaterais, do centro para a periferia, cujo
retrato contorce-se entre o desinteresse, a imagem distorcida sobre as peculiaridades
periféricas e o exotismo.
Esse processo curioso ocorre também entre diferentes culturas do centro desen-
volvido: na Alemanha de hoje, as crianças cantam em inglês nos parques, os jovens
falam “sorry” e “bye bye” em seus “Handies” e professores disputam sobre quem fala
melhor inglês, num seminário com 30 alemães e um palestrante mediano oriundo dos
Estados Unidos, o qual, obviamente, só fala inglês. O exemplo é mais adequado por
tratar da área de direito, da qual provém boa parte da fama erudita dos alemães. E,
mais ainda, porque a Alemanha não poderia ser considerada uma periferia, sobretudo
em relação a um país relativamente jovem e monoglota como os EUA.
O problema central, porém, é se essas peculiaridades são suficientes para que
se fale em uma “realidade brasileira”. A partir daí, se há uma história das ideias no
sentido de uma filosofia brasileira. E, no caso aqui, uma filosofia do direito brasileira.
A questão da continuidade é um segundo problema. Mesmo que tenha havido
arroubos de originalidade em diversas épocas, guindadas por revoluções que preci-
savam de ideias, em que proporção isso teria originado um ideário brasileiro? Esses
momentos são claros na obra de pensadores e revolucionários contumazes como
Cipriano Barata, Frei Caneca ou o “Cousin Fusco” Antônio Pedro de Figueiredo
(MONTENEGRO, 1978; QUINTAS, 1977, p. 10 e 103). Mais elaborados ainda
aparecem na obra de intelectuais como o já mencionado Tobias Barreto, Silvio Ro-
mero e tantos outros em torno da Faculdade de Direito do Recife. Mas a continuida-
de precisa decorrer de uma originalidade contínua, persistente, cuja pesquisa deve
ser feita cuidadosamente.
A empreitada é muito grande para um ou dois professores, daí a necessidade
do Grupo de Pesquisa.

4. Bases da análise retórica como pesquisa qualitativa

Apesar de não darem o devido valor ao estudo analítico de textos, as ciências


sociais estão mais avançadas metodologicamente do que a ciência dos juristas, com
procedimentos e avaliações mais definidos. A maioria das pesquisas sobre o am-
biente social se baseia na entrevista, um método estabelecido de forma relativamen-
te homogênea e que aponta para bons resultados no que concerne ao conhecimento
e acúmulo de dados. Uma vez que a história das ideias é um objeto de estudo que
36

obviamente não está disponível para metodologias presenciais, os diversos métodos


de entrevista são aqui deixados de lado e, nesse sentido, distancia-se o Grupo de
Pesquisa dessa linha metodológica dominante nas ciências sociais. Analisar retori-
camente os textos escolhidos passa a ser assim um caminho adequado.
A análise de conteúdo é um dos tipos de análise de texto. Daí a importância
de observar os textos produzidos em determinado contexto para compreender a épo-
ca a que se referem e os personagens que os escreveram. O direito faz parte desse
contexto que constituiu aquela época que se pretende estudar e daí a suposição,
por parte do Grupo, de que essa técnica permite uma inferência do texto para seu
contexto social.
Há dificuldades, mesmo tratando com alunos privilegiados, pois é impressio-
nante como juristas e faculdades de direito estão hoje apartados de uma metodolo-
gia tão eficaz para estudo do direito, para defesa de posições em juízo, elaboração
de pareceres, em suma: para o trabalho jurídico com textos e sua hermenêutica, isto
é, tanto para uma teoria como para uma prática eficazes. Não é demais lembrar que
filósofos e juristas, como qualquer pessoa – ainda que se pretendam observadores
mais privilegiados –, utilizam-se da linguagem para representar e constituir o mun-
do, como conhecimento e como autoconhecimento.
Há problemas básicos a serem considerados na escolha dos textos e o primeiro
deles é justamente o da amostragem, ou seja, a quantidade e a qualidade de textos a
serem estudados como representativos daquela época e daquele autor; por exemplo,
o autor pode ter escrito uma quantidade de textos impossível de ser tratada no tempo
da pesquisa ou ter exposto ideias dispersas em folhetos perdidos ou de difícil acesso.
Um segundo problema diz respeito à relação entre os conceitos e critérios de análise
escolhidos pelo pesquisador e o período histórico a que eles se aplicam, ou seja: se
os conceitos e critérios são amplos demais – ampliar é a tendência para poder atin-
gir unidade e coerência – ficam vagos; se são excessivamente específicos tendem a
valer apenas para uma determinada situação ou período e sua importância histórica é
reduzida. Por exemplo: o combate ao império português pode se revelar tema amplo
demais, enquanto que o incêndio de Olinda pode ser específico demais para ter a
significância, esperada no início da pesquisa, no contexto da Guerra de Pernambuco
do século XVIII. Em terceiro lugar, o pesquisador ou pesquisadora precisa meditar
sobre em que medida os autores e textos escolhidos efetivamente refletem o ambiente
da época, a retórica material mais objetiva possível, cuidando também para que a
paixão do autor não ultrapasse medidas razoáveis; as cartas de Frei Caneca para suas
protegidas, por exemplo, podem não ter o mesmo significado que suas publicações
panfletárias, no sentido de entender os motivos de sua execução.
Analisando os textos busca-se seu significado, seu conteúdo. Na fixação dos
próprios problemas de análise, na detecção dos problemas e das teses abordados
pelo autor escolhido, assim como na construção da própria tese, o membro do Gru-
po de Pesquisa precisa realçar unidades retóricas presentes no discurso, as quais se
denominam argumentos. O discurso textual é um todo sistemático que pode ser
decomposto (isto é, analisado) em várias unidades, tais como letras, palavras e
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 37

fonemas, do mesmo modo como o discurso musical e o pictórico reúnem unidades


específicas. Para a história das ideias, contudo, o mais importante é conseguir isolar
os argumentos, este é o seu conteúdo.
O argumento consiste em uma série de afirmações e negações sobre determi-
nado tema – aí incluída a esfera do silêncio, com as opiniões supostas e as posições
subentendidas – e visa fazer a audiência aderir a isso que é dito. Um componente
essencial do argumento, além de sua estrutura formal, seu contexto histórico, a au-
toridade do orador etc., é sua fundamentação, ou seja, como o nome diz, as bases em
que ele se assenta, a justificativa das proposições das quais o orador quer persuadir
a audiência. O pesquisador deve tentar isolar essas fundamentações em forma de
silogismos ou entimemas de modo a dissecá-los para a análise (ADEODATO, 2013;
ADEODATO, 2012), tendo como participantes o orador e o ouvinte ou audiência.
Nessa relação comunicativa, um orador (ou “ator”) é aquele que emite uma opinião
fundamentada, isto é, argumentos (LIAKOPOULOS, 2005) 10.
A análise do discurso procura detectar – pode-se até dizer desmascarar – es-
tratégias falaciosas empregadas pelo autor escolhido. Para isso deve sintetizar suas
afirmações e seus argumentos, tentando ver se apresentam fundamentações explíci-
tas ou se pressupõem “verdades” ocultas na esfera do silêncio. A mero título exem-
plificativo, listem-se aqui algumas delas, das mais óbvias, o que não deve impedir,
mas sim encorajar o pesquisador do Grupo a encontrar seus próprios critérios para
detecção de falácias.
A estratégia do argumento factual apresenta “fatos” como evidências e não
como “meros” argumentos de tese (opinativos), ainda que essa distinção não resista
à análise retórica. Um exemplo de argumento de tese é “a sociedade funcionará
mais eficientemente se a riqueza for mais equitativamente dividida”. Um exemplo
de argumento factual é “aqueles que detêm 90% da riqueza compõem 30% da po-
pulação”, afirmação supostamente mais digna de crédito porque exposta como um
fato independente do discurso. Mas, como dito, a retórica metódica não vê distinção
essencial entre esses dois tipos de argumentos, ambos necessitando da crença para
confirmação. O nível da retórica material também inclui os argumentos “fáticos”,
maneiras diversas de ver “materialmente” a “realidade”, em um discurso suposta-
mente descritivo.
Pela estratégia da negativa, muitas vezes o autor diz logo o que não pretende,
visando proteger-se contra eventuais críticas naquele sentido, pois sabe que seu dis-
curso vai sugerir aquilo mesmo que ele diz que não procede. Por exemplo, defende a
aplicação literal da lei, mas começa por se eximir da pecha de positivista exegético,
ou defende a existência um costume contra legem depois de afirmar que abomina o
sociologismo jurídico.
A estratégia da vagueza é outro recurso poderoso perante os incautos. Claro
que quanto mais preciso o discurso, menos acordo ele atrairá. A contrario sensu,
quanto menos diga efetivamente, mais acordo. Quando esses termos vagos trazem
uma conotação positiva no âmbito da retórica estratégica, mais eficazes ainda.

10 O conceito do autor, porém, limita-se a argumentos persuasivos, na esteira da redução feita por Aristóteles em sua Retórica.
38

Quem poderia ir contra frases como “uma efetiva distribuição de justiça”, ou “uma
posição ponderada, responsável e sem fanatismos”. Isso não quer dizer nada, mas
o orador atrai simpatia para o que vai defender em termos de conteúdo opinativo,
como, por exemplo, a eficiência do processo eletivo para administradores da univer-
sidade pública (o que já é mais preciso e de acordo mais difícil). Além de qualificar
positivamente o próprio discurso, desqualifica quem eventualmente dele discordar.
A mesma estratégia se observa quando o orador atribui a seus adversários expres-
sões semelhantemente vagas, mas que trazem conotações negativas, tais como “or-
todoxo”, “ideológico”, “fanático” e assim por diante.
A estratégia de falar por sujeito indefinido ou indefinível articula afirma-
ções que atraem apoio para si mesmo como representante autorizado de um grupo,
estratégia comum e surpreendentemente eficaz, dado seu caráter absurdo. Assim
diz-se que “o povo quer”, “a universidade não aceita” ou “os trabalhadores sabem
disso”, ainda que seja óbvio a qualquer observador mais atento que nenhum orador
detém essa autoridade hermenêutica.

5. Uniformização do método de estudo:


separando metodologia de metódica

Na tentativa de concretizar os pressupostos teóricos do Grupo, vai-se agora


expor exemplificativamente como funciona a pesquisa, à luz da perspectiva retórica
e de dois trinômios: de um lado, tema / problema / tese; de outro, a divisão da retó-
rica em método, metodologia e metódica.
O tema diz respeito ao autor, ao contexto histórico e à formulação das per-
guntas iniciais, fazendo sempre uma leitura cética dos textos de primeiro e segundo
níveis (autor ou autora e doxografia), o que traz o distanciamento possível e desejá-
vel. Aí é preciso separar opiniões explícitas de pretensos fatos na argumentação do
autor, para isso identificando os trechos que empregam uma retórica forense, delibe-
rativa ou epidítica, aplicando a classificação da Retórica de Aristóteles, e também as
partes do discurso, nos termos da divisão de Cícero e Quintiliano e da retórica clás-
sica em geral11. Depois é necessário o problema, ou seja, pelo menos dois caminhos
antagônicos para chegar às teses. O problema é composto de hipo-teses, ou seja,
teses fracas (porque alheias); no caso, as teses do autor estudado, assim como as de
seus eventuais adversários, as afirmações apresentadas como resultado da argumen-
tação, a serem submetidas a discussão. Em terceiro lugar, a tese propriamente dita
(porque própria) a respeito do que foi estudado e problematizado. Isso reúne o nível
da retórica estratégica, que envolve o autor escolhido em seu contexto histórico, e o
nível da retórica analítica, no qual se coloca a pesquisadora ou o pesquisador.

11 Refere-se inventio (criar a plausibilidade do argumento), dispositio (organizar as informações), elocutio (adequar o
pensamento a sua formas de expressão), memoria (capacidade de reter a informação) e pronuntiatio (contenção, postura
da voz, sobriedade, elegância no falar ou escrever). Também a exordium, narratio, argumentatio e conclusio ou peroratio,
cujo detalhamento também foge aos objetivos deste artigo (ADEODATO, 2009).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 39

A retórica analítica não adota os critérios científicos das ciências sociais em


geral, os quais enfatizam uniformidade e consistência, além de quantificação, no
levantamento dos dados. Ela é mais flexível e reconhece expressamente a inter-
ferência do pesquisador sobre seu objeto. A retórica não reivindica afirmações de
validade universal, como as ciências, pois seu discurso é relativo não apenas ao
orador, mas, sobretudo, ao auditório. E também ao ambiente. Se a adequação das
teses está condicionada pelo espaço, pelo tempo e pelos sujeitos envolvidos, não
é de estranhar que a retórica dê mais atenção ao particular e casuístico do que às
afirmações de caráter geral.
Atitudes normativas, que buscam otimizar o campo de estudo, dizendo, por
exemplo, como o direito deve ser, são vistas com desconfiança. Mas mesmo a pos-
tura descritiva, mais adequada ao pesquisador, é tida como meramente tentativa, já
que, em última análise, qualquer descrição é mesmo uma prescrição, na medida em
que visa obter alguma conduta do auditório, alguma reação desejada pelo orador,
em suma, visa sugerir-lhe algo: no mínimo, que aceite as prescrições do autor.
De início, visando chegar a seu tema, cada membro do GRP escolhe um au-
tor, dentro de um universo previamente determinado. Mas não é indispensável que
seja um autor da lista sugerida pelo orientador, ainda que essa delimitação facilite
o trabalho, sobretudo para os alunos de iniciação científica. Evidentemente a liber-
dade de mestrandos e doutorandos é maior. A escolha pode também incidir sobre
uma época ou um evento, sem que essas opções sejam mutuamente excludentes.
Por exemplo, o édito de Pombal expulsando os Jesuítas do Brasil, para estudar a
filosofia de um pensador da época, como Tomás Antonio Gonzaga, ou a Revolução
de 1824 em Pernambuco, para estudar Frei Caneca.
Depois é preciso construir a problematização, para o que há basicamente três
caminhos, pensando especificamente na história das ideias:
1. O problema existe previamente. O autor escolhido e seus contemporâneos,
notadamente adversários, já discordam, têm posições diferentes quanto a algum as-
pecto do tema escolhido (nível da retórica material), e o membro do GRP concorda
com alguma delas (no nível da retórica estratégica). As hipóteses contrárias devem
ser expostas com cuidado e clareza. A tese própria vai consistir na escolha de um
dos caminhos e em fundamentá-lo com suas próprias palavras, com a preocupação
de acrescentar algo de original à posição preexistente, com a qual o pesquisador ou
pesquisadora está de acordo.
2. O problema existe previamente. O autor escolhido e seus contemporâneos
discordam (nível da retórica material), mas o membro do GRP não concorda com
nenhuma delas (no nível da retórica estratégica). A tese própria vai dizer que todas
as hipóteses (ou teses “frágeis”, alheias, hipossuficientes) estão equivocadas e vai
propor uma via própria, diferente de todas. Enfatiza-se a própria originalidade com
uma nova tese. Claro que aqui também devem ser expostas com cuidado e clareza
as hipóteses preexistentes.
40

3. O problema não existe previamente: ou a doxografia disponível concorda a


respeito do problema escolhido ou não há qualquer tratamento anterior da proble-
matização selecionada. Estando todos de acordo, o problema escolhido só faz sen-
tido se o pesquisador do Grupo discordar da interpretação supostamente unificada;
se ninguém falou do tema, a pesquisa vai ser pioneira. Fora desses caminhos não há
problematização, pois esta consiste em expor a tese dominante que se vai combater
e os argumentos próprios que visam solucionar melhor o problema. Aqui a origina-
lidade do pesquisador não se dá apenas no nível da própria tese, mas desde antes,
no nível da problematização.
Segue-se a fase de fazer o levantamento das fontes de pesquisa. Primeiro, a
bibliografia primária, anotar e se possível localizar e ter consigo (dadas as grandes
dificuldades de pesquisa no Brasil) todas as obras do autor escolhido, ou, pelo me-
nos, as obras pertinentes (caso a produção do autor seja demasiadamente extensa
ou de difícil acesso). Segundo, fazer o mesmo com a bibliografia doxográfica, as
obras de outros autores que se dediquem a comentar o autor ou temática escolhidos.
Terceiro, levantar a bibliografia referente ao período histórico em que o autor ou a
temática se situam, ou seja, referente a seu ambiente social, político e jurídico, sem-
pre que essa abrangência for possível e mesmo que essas obras descritivas do am-
biente não se refiram ao autor. Quarto, pesquisar as fontes documentais, sempre que
couber, o que inclui jornais, legislação, jurisprudência, enfim, todos os documentos
pertinentes que não sejam notadamente doutrinários, isso é, opinativos; essas fontes
documentais devem ser particularmente enfatizadas.
Quanto aos níveis retóricos, a abordagem do Grupo de Pesquisa pode ser as-
sim resumida.
Nível do método: descrição do contexto histórico (retórica material), median-
te a análise das fontes bibliográficas e documentais da época. Aí também cuidar dos
relatos históricos e da bibliografia de autores da época em relação ao autor escolhi-
do, cujos argumentos fazem parte do ambiente histórico. Uma parte desse primeiro
nível deve, dessarte, ser dedicada à biografia do autor. Dentro das temáticas cuida-
das por esse autor, decidir qual aquela que quer estudar e buscar esgotá-la o mais
possível. Em seguida, nomear ideias e subdividi-las, o que significa colocar um
título geral e elaborar um sumário provisórios, cujas diretrizes devem ser dirigidas
a fornecer ao leitor o máximo de informações possível. As orientações específicas
para isso não cabe aqui detalhar.
Nível da metodologia: nova tentativa de descrição, só que agora da argumentação
do autor escolhido e de suas tentativas para influenciar o ambiente histórico (retórica
estratégica), mediante a análise da bibliografia primária, isto é, os escritos de sua
própria lavra. Definir os conceitos pelo autor ou autora utilizados, procurando extrair
as ideias centrais ali colocadas e observar a que serviram, em sua interação com o
contexto dos métodos (do primeiro nível retórico). Nessa etapa devem-se resumir,
sempre com as próprias palavras, os seguintes três aspectos principais: primeiro o
contexto histórico, acontecimentos e controvérsias da época, o ambiente do autor;
depois, sua biografia, como conduziu sua vida e sua obra diante desse ambiente;
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 41

finalmente, um apanhado geral de sua produção bibliográfica, um panorama dos temas


sobre os quais se debruçou, claro que concentrando-se sobre o tema que o membro do
Grupo escolheu dentre aqueles trabalhados pelo autor. Delimitar esse tema de maneira
a mais precisa e específica possível é daí uma decorrência óbvia. Para isso, listar todos
os problemas, controvérsias e antagonismos que o tema suscitou em seu tempo. Tal
problematização deve ser feita novamente em três níveis: os problemas sobre os quais
o autor se debruçou, aqueles levantados pelos seus doxógrafos e os que o próprio
membro do Grupo achar por bem colocar. O nível metodológico, atenção, é sempre
vinculado ao momento histórico no qual as ideias foram produzidas: analisá-las com
os olhos de hoje – e de ontem – é problema da retórica metódica.
Nível da metódica: análise das fontes primárias e das fontes doxográficas,
concentrando-se sobre como autores que vieram depois dos níveis anteriores e o
próprio pesquisador tentaram compreender os dois níveis anteriores. Isso inclui os
relatos descritivos dos participantes da época, as tentativas de influir sobre o mo-
mento por parte da doutrina de então e o que as gerações posteriores tiveram a dizer
sobre esses dois caminhos de abordagem, o que, para esses autores que não viveram
o momento, foi retórica metódica. Isso implica a tentativa de investigar conexões
entre a época estudada e o momento histórico atual, no qual vive e analisa o membro
do Grupo. É a posição privilegiada daquele que, em tempo posterior, avalia a pro-
priedade de relatos, decisões e opiniões tomadas em um momento histórico anterior.
É assim que continuidade e originalidade vêm constituir a problematização
fundamental do Grupo de Pesquisa, visando situar os níveis anteriores diante desse
objetivo geral: se há um pensamento jurídico brasileiro original e se ele segue uma
cultura que se poderia chamar de brasileira. Mas isso não é tudo: é preciso inventar
e formular a própria tese a partir da problematização. A contribuição original. Para
isso, ter bem claros os problemas estabelecidos na etapa anterior. Como dito, a tese
de cada autor ou autora vai consistir em uma tomada de posição diante dos proble-
mas específicos previamente levantados. Assim se pensa pela própria cabeça e se
contribui para o conhecimento da realidade nacional.
42

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2014). Uma teoria retórica da norma jurídica e do


direito subjetivo, 2ª ed. São Paulo: Noeses.
_____ (2013). Filosofia do direito – uma crítica à verdade na ética e na ciência (em
contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann), 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva.
_____ (2012). Ética e retórica – para uma teoria da dogmática jurídica, 5ª ed. rev.
e ampl. São Paulo: Saraiva.
_____ (2009). A retórica constitucional – sobre tolerância, direitos humanos e
outros fundamentos éticos do direito positivo, 2ª ed. São Paulo: Saraiva.
_____ (1999). Bases para uma metodologia da pesquisa em direito. Revista do
Centro de Estudos Judiciários, ano III, vol. 7. Brasília: Conselho da Justiça Fe-
deral, p. 143-150.
_____ (org.) (1996). Jhering e o direito no Brasil. Recife: Editora Universitária
da UFPE.
_____ (1991). Brasilien. Vorstudien zu einer emanzipatorischen Legitimationstheo-
rie für unterentwickelte Länder. Rechtstheorie, 22. Band, Heft 1. Berlin: Duncker
und Humblot, p. 108-128.
_____ (1989a). O problema da legitimidade – no rastro do pensamento de Hannah
Arendt. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
_____ (1989b). Sobre um direito subdesenvolvido. Revista da Ordem dos Advo-
gados do Brasil, vol. XXI. São Paulo: Ed. Brasiliense, p. 71-88.
_____ (1985). A legitimação pelo procedimento juridicamente organizado — notas
à teoria de Niklas Luhmann, Revista da Faculdade de Direito de Caruaru, vol.
XVI. Caruaru: FDC.
ALEXY, Robert (1983). Theorie der juristischen Argumentation. Frankfurt a.
M.: Suhrkamp.
ARENDT, Hannah (1978). The life of the mind - Thinking/Willing. New York-Lon-
don: Harvest-HJB.
ARGYRIADIS, Chara (1987). Über den Bildungsprozeβ eines peripheren Staates:
Griechenland 1921-1827. Rechthistorisches Journal 6 (1987). Frankfurt a. M.:
Löwenklau, p. 158-172.
ARISTÓTELES (1990). Rhetoric. Transl. W. Rhys Roberts. Col. Great Books of
the Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica, v. 8.
BALLWEG, Ottmar (1982). Phronetik, Semiotik und Rhetorik. In: BALLWEG,
Ottmar; SEIBERT, Thomas-Michael (Hrsg.). Rhetorische Rechtstheorie. Frei-
burg-München: Alber, p. 27-71.
BLUMENBERG, Hans (1986). Antropologische Annäherung an die Aktualität der
Rhetorik. In: BLUMENBERG, Hans. Wirklichkeiten, in denen wir leben – Auf-
sätze und eine Rede. Stuttgart: Philipp Reclam, p. 104-136.
BOYCE, Robert W. D. (2005). Falácias na interpretação de dados históricos e so-
ciais. In: BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com tex-
to, imagem e som – um manual prático. Petrópolis: Vozes, p. 445-469.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 43

CERQUEIRA, Luiz Alberto (2002). Filosofia brasileira – Ontogênese da consci-


ência de si. Petrópolis: Vozes.
CHACON, Vamireh (2008). Formação das ciências sociais no Brasil – da Escola
do Recife ao Código Civil. Brasília: Paralelo 15 e LGE Editora. São Paulo: Editora
da UNESP.
DWORKIN, Ronald (1994). Taking rights seriously. London: Duckworth.
FERREIRA, Maria de Fátima (1990). Quem é e como se vê o estudante da Faculda-
de de Direito do Recife. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional
de Pernambuco, Ano XXXIV, no XXIV. Recife: OAB/PE, p. 105-126.
FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira (2008). A Escola do Recife e o pro-
blema da originalidade de um pensamento jurídico periférico. In: ADEODATO,
João Maurício (org.). Dogmática jurídica e direito subdesenvolvido – uma pes-
quisa pioneira sobre peculiaridades do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, p. 19-48.
GEHLEN, Arnold (1978). Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in der Welt.
Wiesbaden: Akademische Verlagsgesellschaft.
GOLDSCHMIDT, Victor (1963). Tempo histórico e tempo lógico na interpretação
dos sistemas filosóficos, in GOLDSCHMIDT, Victor. A religião em Platão, trad.
Ieda e Osvaldo Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.
LIAKOPOULOS, Miltos (2005). Análise argumentativa. In: BAUER, Martin W. e
GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual
prático. Petrópolis: Vozes, p. 218-243.
LOSANO, Mario (2000a). A América do Sul e o cosmopolitismo alemão no final
dos Oitocentos. Revista O Direito, ano 132o, n. III-IV, p. 335-348.
_____ (2000b). Um giurista tropicale – Tobias Barreto fra Brasile reale e Germa-
nia ideale. Roma / Bari: Laterza.
_____ (1996). Tobias Barreto und die Rezeption Jherings in Brasilien. In: BEH-
RENDS, Okko (Hrsg.). Jherings Rechtsdenken – Theorie und Pragmatik im Dien-
ste evolutionärer Rechtsethik. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1996.
MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa (1978). O liberalismo radical de Frei
Caneca. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
NIETZSCHE, Friedrich (1988). Zur Genealogie der Moral – Eine Streitschrift. In:
COLLI, Giorgio – MONTINARI, Mazzino (Hrsg.): Friedrich Nietzsche Kritische
Studienausgabe — in fünfzehn Bände, vol. 5. Berlin: Walter de Gruyter.
QUINTAS, Amaro (1977). O sentido social da revolução praieira. Recife: Editora
Universitária da UFPE.
REALE, Miguel (2000). Prefazione a LOSANO, Mario. Um giurista tropicale –
Tobias Barreto fra Brasile reale e Germania ideale. Roma / Bari: Laterza.
_____ (1994a). A filosofia como autoconsciência de um povo. In: REALE, Miguel.
Estudos de filosofia brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, p. 11-29
_____ (1994b). A filosofia na cultura brasileira. In: REALE, Miguel. Estudos de
filosofia brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, p. 31-51.
44

_____ (1977). Cem anos de ciência do direito no Brasil. In: REALE, Miguel. Ho-
rizontes do direito e da história, 2ª ed. revista e aumentada. São Paulo: Saraiva,
p. 171-196.
SCHMIDINGER, Heinrich (Hrsg.) (2002). Wege zur Toleranz – Geschichte einer
europäischen Idee in Quellen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
SOKAL, Alan; BRICMONT, Jean (1999). Imposturas intelectuais – o abuso da
ciência pelos filósofos pós-modernos, trad. Max Altman. Rio de Janeiro e São Pau-
lo: Record.
STRECK, Lenio (2009). Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias
discursivas – da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito, 3ª ed.
(revista, ampliada e com posfácio). Rio de Janeiro: Lumen Juris.
TOBIAS, José Antonio (1987). História das ideias no Brasil. São Paulo: EPU.
WEBER, Max (1985). Wirtschaft und Gesellschaft – Grundriss der verstehenden
Soziologie. Johannes Winckelmann (Hrsg). Tübingen: J.C.B. Mohr/ Paul Siebeck.
A OBRA DE SÍLVIO ROMERO
NO DESENVOLVIMENTO DA
NAÇÃO COMO PARADIGMA:
da dicotomia entre o positivismo e a
metafísica à adoção do evolucionismo
spenceriano na transição republicana

Camila Colares Soares de Andrade Amorim

Resumo: Este capítulo tem como objetivo analisar a filosofia de Sílvio Rome-
ro. Por meio do estudo das ideias que influenciaram o autor será possível ter
uma visão mais transparente de seu pensamento, cuidando, principalmente,
da época da proclamação da República para estudar o positivismo comteano
em Sílvio Romero. Essa análise dos textos de Romero será realizada à luz das
vias retóricas de persuasão: ethos, pathos e logos. Observa-se Sílvio Romero
como precursor da modernização do direito no Brasil, por meio de seu “cien-
tificismo” que influenciou o Código Civil de 1916. O racismo, a sociologia
e o culturalismo são temas que permeiam o trabalho, buscando, de forma
interdisciplinar, mostrar que Sílvio Romero não se limitou a resenhar autores
europeus e sua ambição de conhecer o ambiente cultural nacional terminou
por influenciar toda geração que se seguiu, podendo-se destacar autores como
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade.
Palavras-chave: Sociologia brasileira. Positivismo no Brasil. Culturalis-
mo. Nacionalismo.
Abstract: This chapter aims to analyze the philosophy of Sílvio Romero. The
study of the ideas that have influenced the author will permit a more transparent
view of his thought, mainly concerning the proclamation of the Brazilian
Republic and the role of the positivism of Auguste Comte. This analysis of
Romero’s texts will be based on the rhetorical means of persuasion: ethos,
pathos and logos. Sílvio Romero is taken as a precursor of the modernization
of law in Brazil through his scientific way of thinking, which influenced the
Civil Code of 1916. Racism, sociology and culturalism are important themes
here, taking an interdisciplinary approach to show that Sílvio Romero did not
conceal himself to reviewing European authors and that his ambition to know
the national cultural environment ended up influencing the new generations,
among whose authors one can point out Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda and Mário de Andrade.
Keywords: Brazilian sociology. Positivism in Brazil. Culturalism. Nationalism.
Sumário: Introdução: a proposta de uma análise retórica em Sílvio Romero, o
caráter de ensaio e a estrutura de abordagem. 1. O contexto histórico-cultural
de Sílvio Romero para formação de suas concepções e ideais. 2. A Proclamação
46

da República e a influência do positivismo: sua concepção como uma corrente


criadora de ilusões. 2.1. Doutrina contra doutrina: o novo dogmatismo como
um doutrinarismo compressor e ditatorial. 2.2. Metafísica: a proclamação da
morte da ciência do incognoscível. 3. Seu nacionalismo: discurso de recepção
a Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras. 3.1. A importância
do discurso. 3.2. Uma crítica às academias de luxo, às dificuldades dos
cafeicultores brasileiros e aos empréstimos consideráveis tomados pelo
governo a outras nações. 4. Todo brasileiro é mestiço, se não no sangue,
pelo menos nas ideias. 4.1. Da admiração por Tobias à aversão a Machado.
4.2. A identidade nacional como resultado da mestiçagem. 5. Culturalismo
sociológico e humanismo: divergências com o pensamento de Tobias Barreto.
5.1. O culturalismo sociológico capaz de dar uma melhor compreensão do
direito em seu ordenamento. 5.2. Cultura como problema de ordem filosófica
ou não? 6. A prevalência do paradigma científico na concepção do Código
Civil de 1916. 7. Sílvio Romero como precursor da modernização do Direito
no Brasil. 7.1. O diálogo da cultura brasileira com a obra romeriana. 7.2. A
formação do povo brasileiro. 7.3. A sensibilidade nacionalista. Referências.

Introdução: a proposta de uma análise retórica em


sílvio romero, o caráter de ensaio e a estrutura de abordagem

O presente trabalho visa observar e compreender os métodos utilizados por Síl-


vio Romero para persuadir o público alvo de seus discursos. Mediante o estudo de
movimentos e ideais que influenciaram o autor, assim como a abordagem dos temas
expostos pelo mesmo, se poderá ter uma visão mais transparente das raízes de seu
pensamento. Sua vida e obra serão analisadas de forma panorâmica, para em seguida
focar aspectos mais destacados de sua obra, do ponto de vista filosófico e jurídico. O
principal objetivo é analisar as suas obras a partir de suas concepções filosóficas.
Pretende-se realizar uma análise retórica do discurso de Sílvio Romero quando
da recepção a Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras assim como de
trechos controvertidos de sua obra, a partir de suas influências filosóficas e socioló-
gicas. Para isso, se vai observar sua relação com a Escola do Recife, corrente filosó-
fica da qual participou e que teve grande relevância para sua formação; a influência
de Hebert Spencer quanto ao evolucionismo filosófico e sociológico; o surgimento
da Escola Sociológica e sua repercussão quanto às novas vias para compreensão do
problema do homem contido na nacionalidade, dentre outros temas que marcaram
sua contribuição às ideias jurídicas no Brasil. Remete-se à época da Proclamação
da República, a qual tem profunda conexão com o positivismo, questionando-se,
então, o papel dessa corrente para o desenvolvimento do país.
A segunda metade do século XIX foi marcada por transformações profundas
na estrutura socioeconômica, política e intelectual do Brasil, que resultariam, pos-
teriormente, na queda do regime monárquico. Em termos socioeconômicos, o fim
do tráfico negreiro, em 1850, e o crescimento da imigração europeia assinalaram o
processo de substituição da mão de obra escrava pela assalariada. Política e intelec-
tualmente, a Guerra do Paraguai (1864-1870) e a influência de doutrinas científicas
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 47

como o darwinismo e o positivismo comteano ocasionaram o aparecimento de no-


vos padrões estéticos e ideias políticas. É no turbilhão desses acontecimentos que
Romero procura concretizar e transmitir suas ideias, buscando persuadir seu público
mediante métodos retóricos, os quais o presente trabalho procura desvendar.
Quanto às circunstâncias vividas por Romero, ele mesmo afirma que o decênio
que vai de 1868 a 1878 foi o mais notável de quantos no século XIX constituíram
a nossa vida intelectual. Um “bando de ideias novas” agitou o país nesse período,
dando-lhe novas diretrizes. Daí que o presente trabalho examina Sílvio Romero
como precursor da modernização do Direito no Brasil, por meio de seu “cientificis-
mo”, que acabou por influenciar o Código Civil de 1916. O racismo, a sociologia e
o culturalismo são temas que permeiam o trabalho, buscando, de forma interdisci-
plinar, resgatar as ideias que formam o pensamento romeriano.
Sílvio não se limitou a resenhar autores europeus, sua obra exerceu e sofreu
impacto do ambiente nacional, e por isso a importância de sua obra para resgatar
as ideias jurídicas e filosóficas do final do século XIX e início do século XX, as-
sim como as influência que elas receberam e transmitiram, seja no Brasil ou no
exterior. Não apenas se poderá ter uma compreensão mais transparente das raízes
jurídicas brasileiras, mas também compreender melhor as concepções atuais, fru-
to dessa base histórica, esclarecendo um autor cujo legado não tem sido difundido
como merece.
A análise dos textos de Sílvio Romero tem aqui como metodologia principal o
uso da retórica e suas chamadas provas de persuasão: ethos, pathos e logos. Nos textos
do autor, por exemplo, é possível perceber um claro tom ufanista, utilizado como es-
tratégia de persuasão do público por meio do pathos, o uso da emoção para persuadir.
O trabalho será desenvolvido em três etapas, por meio das quais se fará uso
da retórica em seus três níveis12(BALLWEG, p. 175-184): material, estratégica e
analítica. Na retórica material busca-se observar a interação com os eventos, o que
inclui três caminhos principais: autor, época e evento histórico no qual ele se en-
volveu. Já a retórica estratégica reflete sobre os métodos a serem escolhidos e como
podem interferir vitoriosamente sobre o meio ambiente, observa e ensina o bem
falar para convencer os outros, a persuasão que orienta como proceder diante da
retórica material, constituída por técnicas e experiências eficientes para agir, isto
é, compreender, argumentar, decidir, em suma, viver no mundo e nele influir estra-
tegicamente (ADEODATO, 2002, p. 268). Por fim, a retórica analítica tem caráter
descritivo e centra-se na observação do que acontece entre os dois níveis anteriores,
é um olhar externo, uma meta-reflexão retórica. A retórica consiste, assim, em um
método, numa metodologia e numa metódica. Faz-se necessário combater o equí-
voco de conceituar a retórica como exclusivamente ornamento e estratégia somente
para enganar incautos.

12 Divisão sugerida por BALLWEG, Ottmar. Retórica analítica e direito, trad. João Maurício Adeodato. Revista Brasileira
de Filosofia, São Paulo, IBF, Vol XXXIX, fascículo 163, jul.-set., 1991, p. 175-184. A retórica “prática” de Ballweg é aqui
chamada “estratégica” por sugestão de Adeodato (2012, passim).
48

1. O contexto histórico-cultural de Sílvio Romero


para formação de suas concepções e ideais

No século XIX, dentre as doutrinas europeias, tiveram ampla divulgação no Brasil


o positivismo de Comte, o determinismo de Taine e o evolucionismo de Darwin13,
Spencer, Haeckel, Sainte-Beuve e Zola14, todos imprescindíveis na inspiração para as
novas ideias que surgiam. Ao lado da vertente cientificista, se expandiu um sentimento
nativista, não mais voltado para o exótico indianista, mas para uma saudável tentativa
de descoberta das diferenças culturais do Brasil em relação à Europa. Os autores
preferidos de Sílvio Romero foram Spencer, Büchner, Vogt, Haeckel, Taine, Lévy-
Bruhl, Demoulins e Gobineau, dos quais provieram as ideias diretoras na obra do
sergipano, tais como as de raça, tradição histórica e meio social.
Por isso são importantes breves esclarecimentos acerca desses autores. Haeckel,
naturalista alemão e grande expoente do cientificismo positivista, tinha como um dos
seus principais interesses os processos evolutivos e de desenvolvimento, principais
temas abordados por Sílvio Romero. As observações desse médico levaram a uma
ligação entre a ontogenia e a filogenia, isto é, à tese de que a ontogenia recapitula
a filogenia. Hippolyte Taine foi um dos mais destacados autores do positivismo
francês do século XIX. Seu método consistia em fazer história e compreender
o homem à luz de três fatores determinantes: meio ambiente, raça e momento
histórico, questões que permeiaram toda obra romeriana. Lévy-Bruhl, filósofo e
sociólogo francês, procurou elaborar uma ciência dos costumes, sob influência da
teoria sociológica de Émile Durkheim; acreditava que a moral era determinada pelas
épocas históricas e pelos grupos sociais. Arthur de Gobineau, diplomata, escritor e
filósofo francês, foi um dos mais importantes teóricos do racismo no século XIX,
assunto muitíssimo abordado por Romero. Gobineau se celebrizou por meio de seu
Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), seu livro mais célebre, um
dos primeiros trabalhos publicados sobre eugenia e racismo, temas que ainda teriam
grande repercussão no século XX.
Para Sílvio Rabelo era Sílvio Romero menos um espírito especulativo do que
científico, já que seus estudos se ocupam menos da necessidade propriamente filosófi-
ca de investigar e explicar o que escapa à ordem sensível e próxima do mundo, do que
com os fundamentos necessários aos problemas que foram a sua obsessão permanen-
te: literatura, organização social e política, miscigenação, educação popular. Por isso
Sílvio Romero teria de ser um diletante em Filosofia (RABELO, 1969, p. xi).

13 Charles Darwin acreditava nas transformações das espécies, indo de encontro à teoria da imutabilidade dos seres. Na luta
pela sobrevivência no mundo animal, assim como no processo de adaptação ao ambiente ocorriam alterações orgânicas
nos seres vivos que eram transmitidas aos seus descendentes, possibilitando melhores condições de sobrevivência para
aquela espécie.
14 Esta doutrina não se aplica unicamente aos seres vivos, mas a tudo, aos seres humanos, às instituições, às sociedades,
em discordância com a teoria biológica, que abrange apenas os seres vivos. O evolucionismo tem como característica a
definição de evolução como sinônimo de progresso, diversamente da teoria de Darwin, que a compreendia nos enfoques
de regresso e progresso.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 49

Sílvio Romero afirmou que a filosofia tem tido e continuará a ter uma dupla
função, sendo uma composição das ciências particulares e uma inquirição sobre
aquilo que nunca formou uma ciência particular, isto é, a origem e a natureza intrín-
seca do universo. Num e noutro sentido, todos os sistemas filosóficos se reduzem
a quatro correntes principais: o monismo, o dualismo, o positivismo e o criticismo
naturalístico evolutivo (ROMERO, 1943. p. 301). Percebe-se, assim, incorporação
dos ideais de sua época, nos finais do século XIX, cujo marco no Brasil foi a Pro-
clamação da República.
Foi neste contexto que floresceu Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Ro-
mero, crítico, ensaísta, folclorista, polemista, sociólogo, pensador, professor e his-
toriador da literatura brasileira, que nasceu em Lagarto, Sergipe, em 21 de abril de
1851, e faleceu no Rio de Janeiro, em 18 de julho de 1914. Filho do comerciante
português André Ramos Romero e de sua esposa Joaquina Vasconcelos da Silveira,
iniciou os estudos primários em sua cidade natal. Em 1868 entrou para a Faculdade
de Direito do Recife, quando Tobias Barreto cursava o 4º período do curso. Ao con-
trário de Tobias, não permaneceu no Recife, mas mudou-se para o Rio de Janeiro,
devido, principalmente, às antipatias conquistadas pelo seu temperamento.
Sobre sua personalidade Lilia Schwarcz afirmou que Sílvio Romero era um
agitador. Autodidata, utilizou com entusiasmo as mais recentes discussões sobre
ciência e filosofia para lidar de forma direta com os problemas nacionais. Na reali-
dade, o aparente universalismo cultural só o interessava enquanto ajudava a pensar
em um compromisso com as questões locais, sobretudo em novas aspirações de uma
nacionalidade, no que foi um precursor (SCHWARCZ, 1993, p. 153).
Engajado na Escola do Recife por influência de Tobias Barreto, foi, a princí-
pio, positivista, mas seu espírito crítico e polemista o levaria a se afastar das ideias
de Comte para se aproximar da filosofia evolucionista de Herbert Spencer, na busca
de métodos objetivos de análise crítica e apreciação do texto literário. O evolucio-
nismo passou a ser mais importante do que o positivismo em seu pensamento.
No segundo ano do curso de Direito começou sua atuação jornalística na im-
prensa pernambucana, quando publicou a monografia A poesia contemporânea e a
sua intuição naturalista. Desde então, continuou a publicar textos no Recife, em
periódicos como “A Crença”, que ele próprio dirigia juntamente com Celso de Ma-
galhães, o “Americano”, o “Correio de Pernambuco”, o “Diário de Pernambuco”, o
“Movimento”, o “Jornal do Recife”, o “República” e o “Liberal”. Assim como To-
bias Barreto, Sílvio Romero era parlamentarista, sistema que defendia com grande
vigor em seus discursos.
Logo que se formou, exerceu a promotoria em Estância. Atraído pela política,
elegeu-se deputado à Assembleia provincial de Sergipe, em 1874, mas renunciou
logo depois. Regressou ao Recife para tentar fazer-se professor de Filosofia no Co-
légio das Artes; o concurso realizou-se no ano seguinte e ele foi classificado em pri-
meiro lugar, mas a Congregação resolveu anular o concurso. A seguir, defendeu tese
para conquistar o grau de doutor, concurso no qual enfrentou a banca examinadora
e a Congregação da Faculdade de Direito do Recife, afirmando que “a metafísica
50

estava morta” e discutindo com os professores Tavares Belfort e Coelho Rodrigues,


o que culminou com abandonar a defesa e ser submetido a processo pela Congrega-
ção, polêmica que atraiu muita atenção dos homens de letras da época.
Em 1876 foi exercer a magistratura na cidade de Parati, no Rio de Janeiro.
Nesse período aproveitou o ambiente de cidade pequena para estudar de forma
constante. Entretanto, não escreveu nesse período, restringindo-se à leitura e ao pla-
nejamento sistemático de sua obra. Aproveitou também para manter contato mais
próximo com o povo, suas necessidades e hábitos.
A contribuição de Sílvio Romero resulta das mais relevantes ao nacionalismo
literário. Seus determinismo e socialismo serviram-lhe para desenvolver a herança
nacionalista, desligando-a das vagas noções idealistas do romantismo, e consolidan-
do-a com a aquisição de mais firmes alicerces doutrinários. Sua crítica literária ul-
trapassa o romantismo e o indianismo em direção a um “brasileirismo”, para o qual
as regiões brasileiras concorrem cada qual com seu feitio peculiar (COUTINHO,
1968). Autor de 63 livros, é considerado um dos mais influentes autores brasileiros.
Wolkmer (2003, p. 159) afirma que sua obra pode ser dividida em quatro fases:

Primeira fase – caracterizada pelo período em que Sílvio Romero ainda


residia no Recife e por suas primeiras críticas;
Segunda fase – iniciada com a sua transferência para o Rio de Janeiro e
acomodação entre as correntes evolucionistas e positivistas;
Terceira fase – com a publicação de seu livro “História da Literatura
Brasileira”, em 1888;
Quarta fase – consiste na adoção da escola de Le Play, com tentativa de
aplicar no Brasil seu método monográfico.

Le Play utilizou esse método quando estudou a situação dos operários na Eu-
ropa. O método consiste no estudo indutivo de determinados indivíduos, condições,
profissões, instituições, comunidades ou grupos, para obter generalizações. Tal in-
vestigação deve examinar o tema escolhido pela análise de todos os fatores que o in-
fluenciaram, pois parte da ideia de que qualquer caso que se estude em profundidade
pode ser representativo de muitos ou até de todos os casos semelhantes.
Em 1878 publicou o A filosofia no Brasil, primeiro livro sobre a história das ideias
filosóficas na cultura nacional. Foi divulgador do pensamento filosófico de Tobias
Barreto15, principal figura da Escola do Recife. Defensor do liberalismo, criticou a
tese da ditadura positivista, e, na crítica e historiografia literária, destacou-se por seu
conhecimento dos autores e textos. Filiando-se à estética realista, também escreveu a
primeira história da literatura brasileira sob a perspectiva de uma obra de arte, ou seja,
procurando retratar, psicologicamente, uma sociedade. Foi um dos responsáveis pela
valorização das tradições populares, recolhidas nas obras sobre o folclore.

15 Romero era amigo próximo e admirador de Tobias, além de seu maior divulgador. Com a doença de Barreto, ele tenta
levantar recursos para o tratamento do amigo e auxílio à família.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 51

Durante o início do período imperial, a Faculdade de Direito foi instalada, por


breve período, em Olinda, e foi somente com sua transferência para o Recife que um
novo grupo de intelectuais deu origem à chamada Escola do Recife, a qual, a partir
da metade do século XIX, contribuiu para a formação de pensamentos avançados
para a época. Teve por base o germanismo, introduzido por Tobias Barreto.
Cabe destacar a distinção das quatro fases pela qual passou a Escola (PAIM,
1984, p. 387):

Primeira fase – caracteriza-se pela rejeição à metafísica, ao ecletismo e


à escolástica. Seu período temporal compreende os anos 1860 a 1875;
Segunda fase – vai de 1875 até 1880. É nessa fase que Sílvio Romero
declara a morte da metafísica durante sua defesa de tese, provocando
indagações em Tobias Barreto;
Terceira fase – compreende do ano de 1880 até o início do século XX,
quando a sociologia firma-se de maneira mais incisiva na análise dos
problemas nacionais;
Quarta fase – a última fase da Escola reflete seus brilhos finais, sendo
caracterizada pela fraqueza das discussões filosóficas e pela suspensão
de circulação de sua revista.16

A denominação “Escola do Recife” foi utilizada pela primeira vez por Sílvio
Romero, com a famosa expressão “surto de ideias novas” e um contexto polêmico
e irreverente, desprezando o conhecimento de pessoas contrárias a suas ideias. E aí
se vê a influência de Immanuel Kant: em filosofia geral o agnosticismo17, aceito e
desenvolvido por Herbert Spencer, inspirado na Crítica da Razão Pura, é a postura
predominante; em estética, o princípio adotado pelo darwinismo e por toda escola
evolucionista, é o de ser o belo um livre jogo de nossa imaginação e de nosso en-
tendimento, ponto de vista aprendido da Crítica do Juízo; e em moral, o postulado
de ser ela independente de nossas concepções metafísicas e religiosas, tomado da
Crítica da Razão Prática (ROMERO, 1953. p. 302).
A diferença capital entre o positivismo de Comte e o criticismo de Kant, acei-
ta por meio de Spencer, é que, em primeiro lugar, considera a metafísica fútil ou
perniciosa, e, em segundo, considera-a incompatível com a ciência, porém legítima
como manifestação de tendências inerentes à natureza humana (ROMERO, 1953.
p. 304). Sílvio concorda com Pedro Lessa, que afirma ser a metafísica “um conjunto
de especulações sobre os seres e os fenômenos que não podemos conhecer cientifi-
camente” (REALE, 1962, p. 122).

16 Foi em 1891 que circulou pela primeira vez a Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, caracterizada pela
ênfase nos problemas políticos e sociais nacionais. Com irregularidade esporádica, é publicada até hoje.
17 É a posição metodológica pela qual somente se aceita como verdadeira uma proposição que tenha evidência lógica
mínima. É, também, uma atitude que considera fútil a metafísica. Além de ser uma doutrina que informa a existência de
uma ordem de realidade incognoscível.
52

O auxílio das ciências, acredita Sílvio Romero, fecundará novas ideias e abrirá
novas vias à compreensão do problema do homem na nacionalidade. É por intermé-
dio do método cultural sociológico, desenvolvido a partir de Le Play, que o estudo
dos problemas sociais encontra sua plenitude.
Realizadas essas observações acerca do meio e situações que circundaram Síl-
vio Romero, seus aspectos biográficos e contextuais, cabe agora uma análise de seus
discursos e pretensões a partir dos três níveis da retórica referidos acima.

2. A Proclamação da República e a influência do positivismo:


sua concepção como uma corrente criadora de ilusões

2.1. Doutrina contra doutrina: o novo dogmatismo


como um doutrinarismo compressor e ditatorial

A Proclamação da República concretizou os ideais que permeavam a nação


na época e Sílvio Romero teve voz ativa em meio a este momento histórico. A
princípio adepto do positivismo, Sílvio partiu depois para uma visão completamente
contrária, insatisfeito com o novo dogmatismo que se implantou e que, em carta
a Rui Barbosa, apresentou como “um doutrinarismo compressor e ditatorial”
(SOUZA, 1981, p. 19).
Certas influências marcaram essa mudança de rumo: o socialismo, com valo-
rização do que era produzido no país, e o evolucionismo, por seus ideais científicos
foram fatores fundamentais para as concepções defendidas por Sílvio Romero. Na-
cionalista ferrenho, defendia o progresso e a civilização, e ambicionava um Brasil
respeitado, poderoso, preocupando-se com a política local e com o desenvolvimen-
to da nação por meio da ciência.
Acerca do que afirmava Romero cabe ressaltar as linhas presentes em Doutri-
na contra Doutrina:

No Brasil as doutrinas novas, que têm para todos os grandes fenômenos hu-
manos, Arte, Religião, Política, Moral, Filosofia, Ciência, uma resposta e uma
solução adequada, não se organizaram exteriormente, como o Positivismo.
Causas diversas, oriundas umas da índole mesma dessas doutrinas, matéria
de ensino, têm trazido semelhante resultado. Daí o ascendente do atrasado
positivismo, com seus anacronismos, suas ditaduras, seu patriciado, seu
grand-prêtre, seu grand-être, seu grand-fétiche, seu grand-milieu e outras
galhardias do gênero (ROMERO, 1969, p. 293).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 53

Assim considerou o positivismo responsável pela criação de ilusões, desvian-


do os estudos necessários para o desenvolvimento do país.

Aconselhamos, de passagem, porém com inteira covicção, aos sectários do


naturalismo evolucionista, cuja fórmula sintética pode ser bebida em Herbert
Spencer, a que se organizem também em um centro de ação e propaganda
e procurem reagir, pelo jornal, pelo livro, pela conferência, pela lição oral,
contra o neojesuitismo que nos invade. Entretanto, dissemos nós algumas li-
nhas acima, um estudo completo do alastramento indébito do Positivismo na
República do Brasil, deveria associá-lo à ação do militarismo, pelos motivos
indicados (ROMERO, 1969, p. 293).

Uma questão interessante para o historiador de ideias é saber se, na época,


o positivismo, corrente filosófica inspiradora da República, era ou não nocivo ao
desenvolvimento nacional. Observe-se a crítica aos positivistas, no sentido de que
estariam a dar ideias negativas ao Marechal Deodoro e a buscar depor a própria
Constituição brasileira:

A nação brasileira está vendo: aconselha-se a um imperador, a um chefe cons-


titucional do Estado a que rasgue a Constituição, que o investira de seu poder,
e que ele jurara manter e servir, e se declare ditador, reunindo, à guisa do tirano
Francia do Paraguai, em suas mãos o Legislativo e o Executivo e o direito de
indicar o seu sucessor; e, como o velho monarca teve o bom senso de resistir
a essa tentação do demônio, faz-se-lhe disto um largo capítulo de acusação...
Para nós, os democratas, outros foram os viços e os defeitos de D. Pedro, e
quase todos eles provindos do poder pessoal que por vêzes punha em prática.
Para o jesuitismo positivista aquilo era um bem, e o imperador devia deixar-se
de cerimônias e proclamar-se de uma vez ditador!... (ROMERO, 1969, p. 122).

O texto também revela o viés ufanista mencionado, uma tentativa de elevar


ideologicamente o nacionalismo para que a sociedade se motive e reaja. Romero
fala inclusive em rasgar a Constituição, dramatizando seus argumentos para chocar
o público leitor, tentando a persuasão por meio do pathos, concentrando-se na emo-
ção do auditório. Por isso coloca que o positivismo em geral, e principalmente no
Brasil, deve ser combatido larga, tenaz e sistematicamente, ponto por ponto, ideia
por ideia, doutrina por doutrina (REALE, 1962, p. 314). Seu pensamento pode ser
completado com o parágrafo subsequente:

Nós, individualmente, não temos a pretensão de fazê-lo definitivamente; o


trabalho é demasiado complexo para um só lutador, ainda armado de maior
energia e atividade, o que, infelizmente, não é o nosso caso. Não tendo a
menor dúvida sobre a vitória futura do naturalismo evolucionista, hasteado
nas mãos das maiores figuras intelectuais do nosso tempo, nem por isso jul-
gamos acertada a opinião daqueles que entendem a chegada a hora do triunfo
e aconselham a deposição das armas. É uma grave cegueira. O Positivismo
tem uma grande força no presente e é preciso repeli-lo enquanto não cresce
mais, enquanto não se torna verdadeiramente formidável e quase impossível
de rechaçar (apud REALE, 1962, p. 315).
54

Percebe-se que Romero utiliza expressões como “lutador” e “armado” para


envolver o leitor num ambiente de maior repulsa ao positivismo, fazendo com que
se sinta em uma verdadeira “luta contra o mal”, o que novamente demonstra sua
predileção pela retórica do pathos. Mas não somente; fala também que está “haste-
ado nas mãos das maiores figuras intelectuais do nosso tempo”, lançando mão do
ethos de autoridades respeitadas, para que o discurso seja aceito devido a quem o
profere e não ao que se diz, pois o ethos constitui o caráter do orador e a autoridade
é uma forma de ethos.
Já os argumentos em prol do evolucionismo de Spencer, como a filosofia “cer-
ta” para o desenvolvimento do ser humano e do país, tomam por meio de persuasão
o elemento logos, pois a ciência, tão acreditada no final do século XIX e início do
século XX, pretende persuadir com base no conteúdo da argumentação propriamen-
te dito, o qual pretendia ser verdadeiro e correto.

2.2. Metafísica: a proclamação da morte da ciência do incognoscível

Para seus defensores, a existência mesma da metafísica, entendida como ci-


ência do incognoscível, significa que os limites da filosofia e da ciência levam a
deduzir que há temáticas de interesse humano sobre as quais não há meio de de-
monstração irrefutável.
É na segunda fase da Escola do Recife, tal como descrita por Antonio Paim,
que Sílvio declara a morte da metafísica durante sua defesa de tese de doutoramen-
to, curiosamente intitulada Razões justificativas do art. 482 do Código Comercial.
O grande choque trava-se então com Coelho Rodrigues, quase tão jovem quanto Síl-
vio, em torno dos 29 anos de idade. Os debates foram agressivos, de parte a parte, e
custaram a Sílvio a desistência do concurso e um processo por crime de injúria pelos
insultos aos examinadores. Segundo a ata do concurso, declara Coelho Rodrigues:

– Está bem. Desde que em uma discussão perco a esperança de convencer ou


ser convencido, passo a outro assunto.
Realmente começa a discutir outros problemas, o calor da argumentação de am-
bos mais azedando os ânimos. A certa altura Coelho Rodrigues argumenta:
– Muito me admira que, tendo o senhor se mostrado, na epígrafe de suas teses,
tão contrário à metafísica, recuse agora um argumento a posteriori.
Sílvio retruca:
– Nisto não há metafísica, senhor doutor, há lógica.
Replica Coelho Rodrigues:
– A lógica não exclui a metafísica.
Mas Sílvio esbraveja:
– A metafísica não existe mais, Senhor Doutor; si não sabia, saiba.
– Não sabia, responde Coelho Rodrigues.
O sergipano exalta-se:
– Pois vá estudar, e aprender, para saber que a metafísica está morta.
– Está morta? Foi o senhor quem a matou? Pergunta humoristicamente Coe-
lho Rodrigues.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 55

Mal humorado Sílvio esbraveja:


– Foi o progresso, foi a civilização!
E sai numa ira horrorosa pela Academia afora gritando:
– Não estou para aturar essa corja de ignorantes, que não sabem nada (PAIM,
1984, p. 387).

Cabe, diante deste debate, expor e analisar estratagemas erísticos utilizados


pelos indivíduos para “vencer o debate sem ter razão”, nas palavras de Schope-
nhauer, buscar compreendê-los ante o meio e as influências sofridas pelo autor em
foco. Um dos estratagemas utilizados no debate por Coelho Rodrigues é a “provo-
cação da raiva”, meio do qual Sílvio Romero foi “vítima”, tornando-se agressivo e
perdendo o controle ante as provocações. A provocação da raiva é um estratagema
citado por Schopenhauer (1997, p. 157), quando da análise da dialética erística. A
ironia foi também utilizada por ambas as partes no debate referido, presente nos
pedidos de “máxima vênia” e no tratamento por “Senhor Doutor”.
Depois deste incidente com Coelho Rodrigues, o ambiente do Recife deixou
de ser agradável para o ilustre sergipano. As suas ambições como professor foram
ali definitivamente frustradas. (FERREIRA, 1994. p. 221)

3. Seu nacionalismo: discurso de recepção a


Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras

3.1. A importância do discurso

O nacionalismo brasileiro teve suas raízes em escritores, intelectuais e artistas,


cruciais na produção do imaginário nacional, situação na qual Romero se viu como
um dos principais personagens. Embora marcado pelo cientificismo, a perspectiva
nacionalista é ainda mais profunda em sua obra, o que o ajudou a decifrar e inter-
pretar o Brasil como poucos. Seus livros foram assim fundamentais na construção
de uma memória nacional.
Em carta a João do Rio, Sílvio Romero lembra de sua infância em Lagarto,
como quem quisesse dizer que o seu “brasileirismo” era autêntico como parte do
povo, e não uma simples curiosidade intelectual. O elemento pathos, está, portanto,
sempre presente em seu nacionalismo, desde a infância influenciado pela cultura
do país, por seus traços essenciais. Cumpre destacar que apesar de uma aparente
oposição ao romantismo, Romero não deixa de ter uma percepção romântica de
nacionalidade, o que era um ponto comum em toda atividade intelectual de sua
geração de pensadores.
Romero tanto foi apaixonado na polêmica quanto na amizade e tornou-se um
dos responsáveis pela consagração de Euclides da Cunha como escritor. Quando do
ingresso deste na Academia Brasileira de Letras, Sílvio foi quem discursou. Apesar
de não se ter pronunciado quando no lançamento do livro Os sertões, seu discurso foi
importante naquele momento em que a cadeira antes ocupada por Castro Alves passou
a Euclides da Cunha, legitimando a sucessão de um autor que parecia constrangido
por assumir a identidade de “homem de ciência” numa casa de “homens de letras”.
56

Ambos os autores advogavam certo essencialismo nacional que se assentava


no povo e cujo reconhecimento precisava de instrumentos científicos, ambos re-
cepcionaram a ideia romântica de que a nação teria uma essência, porém apenas a
ciência poderia realmente apreendê-la.
O argumento da ciência foi evocado como atributo para consagração de Os
sertões pelos críticos da época. Romero tinha a noção de raça como determinante
enquanto fator de diferenciação nacional, aludindo, também, à concepção de que a
natureza possuía papel fundamental na formação das sociedades e na determinação
dos homens. Romero, Tobias e Euclides não levantaram simplesmente a bandeira
da ciência, a qual surgiu articulada com a aspiração à nova atitude ética, ao valor do
talento e do mérito em substituição à sociedade aristocrática cortesã. Tanto a crítica
moderna e científica seria fundamental para a consagração de Os sertões e da nova
mentalidade quanto o seu aparecimento seria essencial para o exercício e afirmação
da mesma (ABREU, 2008).
Cumpre destacar a influência da sociologia spenceriana a partir da associação
do evolucionismo com o liberalismo autoritário. Os homens de ciência incorpora-
vam aquela nova perspectiva sociológica para explicar as disparidades sociais e, ao
lado de um papel autoritário do Estado, desviavam-se de qualquer proposta para
melhora das condições de vida da população. Assim, atribuíam o atraso brasileiro ao
povo miscigenado e incapaz de desenvolvimento. As únicas soluções possíveis se-
riam esperar que esse povo sucumbisse naturalmente ou constituir uma “verdadeira
nação” a partir do incentivo à vinda de imigrantes europeus (MISKOLCI, 2008).

3.2. Uma crítica às academias de luxo, às dificuldades dos


cafeicultores brasileiros e aos empréstimos consideráveis
tomados pelo governo a outras nações

O discurso de Romero, proferido em 18 de dezembro de 1906, na recepção de


Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, foi tido como um escândalo.
Estavam presentes o Presidente da República, Afonso Pena, e Machado de Assis,
dentre outros luminares. Foi em virtude deste discurso que se passou a censurar pre-
viamente os discursos de recepção na Academia Brasileira de Letras. Foram acerba-
mente criticadas questões pertinentes ao Brasil do início do século XX, tais como as
“academias de luxo”, a realização do Congresso Pan-americano no Brasil, as vanta-
gens e a incompetência dos cafeicultores brasileiros, os empréstimos consideráveis
tomados pelo governo a outras nações, concluindo Sílvio Romero: “Os governos, os
chefes políticos, os diretórios dos partidos, os grandes, os potentados, todos os que
formam essa classe dirigente, que nada dirige, não têm querido cumprir o seu mais
elementar dever para com as populações nacionais”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 57

Cabe citar outro trecho do conhecido discurso:

Quem não viveu nesse tempo não conhece por ter sentido diretamente em si
as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante
não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista,
católica e eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições
monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição
servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprie-
tários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, engano-
sos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha
adormecido à sombra do manto do príncipe ilustre que havia acabado com o
caudilhismo nas províncias e na América do Sul e preparado a engrenagem
da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história
em um grande país. De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de
longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou, e o sofisma do império
apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava a mostrar a todas
as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de
nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravi-
dão; e então a questão dos cativos se agita e logo após é seguida da questão
religiosa; tudo se põe em discussão: o aparelho sofístico das eleições, o sis-
tema de arroxo [sic] das instituições policiais e da magistratura e inúmeros
problemas econômicos; o partido liberal, expelido do poder, comove-se de-
susadamente e lança aos quatro ventos um programa de extrema democracia,
quase um verdadeiro socialismo; o partido republicano se organiza e inicia
uma propaganda tenaz que nada faria parar. Na política é um mundo inteiro
que vacila. Nas regiões do pensamento teórico o travamento da peleja foi ain-
da mais formidável, porque o atraso era horroroso (ROMERO, 2005, p. 285).

Ao destacar a descrição do povo e seu ambiente como um recurso de valor


literário, Romero se encontrava rigorosamente conformado ao topos literário-nacio-
nalista. Euclides da Cunha, ao por a ciência a serviço da arte, agradava Sílvio Rome-
ro, que buscava colocar ambas a serviço do reconhecimento de uma nacionalidade
brasileira (SCHNEIDER, 2005, p. 31).
Por ocasião desta recepção, Romero relembrou a novidade representada pelas
ideias cientificistas. As “novas ideias” lhe pareceram uma aposta no futuro, um rom-
pimento com o velho e o obsoleto, representados na monarquia, na escravidão e no
romantismo. Concordar com “bando de ideias novas” era moderno e progressista.
Romero exige da literatura brasileira uma identificação com o país e o Brasil
como nação lhe parece herdeiro das três raças “atiradas no cadinho do Novo
Mundo”. Aqui o elemento ethos pode ser observado quando Romero diz “quem
não viveu nesse tempo não o conhece por ter sentido diretamente em si as mais
fundas comoções da alma nacional”, aludindo a um conhecimento prévio que ele
particularmente possui. A evocação do passado é ainda utilizada como elemento
argumentativo patético, a partir do momento em que funciona como resgate de
determinadas situações históricas que modificam as relações sociais, unindo as
pessoas pela reafirmação dos laços comuns.
58

A nota que lança de passagem sobre o fato singularíssimo de não se haver o


povo brasileiro constituído por si próprio, senão por um poder estranho, de tal
arte que, como atividade, como força, como espírito, ele não se deu a si mesmo
os órgãos e funções de sua vida social, sendo-lhe tudo outorgado, como a um
autômato imenso, que devesse bulir e mexer-se por virtude de quem tivesse
aquela mágica e suprema chave de toda a organização política, segundo a frase
do texto constitucional, metáfora tosca e fútil, que, entretanto, se converteu em
princípio diretor dos destinos das nações! (ROMERO, 2005, p. 283).

É perceptível neste discurso de Romero o direcionamento para um público


específico, presente em círculos letrados, homens de Estado e todos aqueles que
pudessem ter alguma influência na esfera pública. O próprio caráter do discurso,
imbuído da ironia e audácia do sergipano, apresenta críticas e objetivo voltados a
esse auditório específico, o que é estratégico em termos de persuasão retórica.
No nono parágrafo de seu discurso, ele refere “o quadro evolucionalmente
progressivo, heroico, da humanidade, das nações, preponderantemente de nosso
amado Brasil”, numa tentativa de incitar o público ao patriotismo.

Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o povo não sabe ler;
de ter palácios de Monroe, quando a mor parte da gente mora em estalagens
e cortiços e as casas de pensão proliferam, e de ter avenidas à beira-mar e
teatros monumentais, que vão ficar fechados, quando não temos fartas fon-
tes de renda, quando a miséria é geral e quase todas as cidades e todas as
vilas do Brasil são verdadeiras taperas; de ter cá a reunião do Congresso Pan-
-Americano, para dar-lhe, como ilustração, as trucidações de Mato Grosso e
o assassinato de deputados e senadores, em pleno dia, nos desregramentos de
uma política feroz!...
Não estamos no caso de contrair empréstimos loucamente avultados e ruinosos
para os aplicar em obras suntuárias, quando os serviços mais simples estão
por organizar por todo o país; quando temos enorme deficit, não falo do orça-
mentário, o deficit da União, dos Estados, das Municipalidades, falo do deficit
do povo, aquele que os economistas chamam deficit de substâncias, porque,
possuindo o país talvez mais fértil do mundo, precisamos de comprar fora a
mor parte das cousas indispensáveis à vida... e assaz considerável parte da po-
pulação desceu até à degradação do jogo do bicho... (ROMERO, 2005, p. 306).

Percebe-se a crítica à situação brasileira e às desigualdades presentes ainda


hoje. A principal via retórica de persuasão aqui utilizada por Romero é o logos, por
meio do qual o auditório é influenciado pelo argumento lógico, no qual o apelo a
fatos históricos e à razão é aplicado. Mas não é a única, pois o pathos se revela na
menção aos graves problemas presentes e futuros que desperta estados de espírito
de raiva ou frustração nos ouvintes.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 59

Quero falar da singularíssima teima dos nossos intelectuais de toda a casta,


de dizerem mal das gentes do centro, sertanejos ou não, sem se lembrarem
que, há quatrocentos anos, elas é que trabalham e produzem, elas é que se
batem, isto é, sem se lembrarem que elas é que têm sustentando o Brasil como
povo que vive e como nação que se defende. Aos fazendeiros e senhores de
engenho tratam como adversários e maus sujeitos. Magnatas, senhores feu-
dais, déspotas, insaciáveis parasitas, são as gentilezas com que os brindam
(ROMERO, 2005, p. 299).

Nesse trecho do discurso Romero demonstra sua preocupação com o povo e


destaca a importância dos “sertanejos”, como aqueles que trabalharam para cons-
trução do país desde o seu início, na mesma linha do livro de Euclides da Cunha,
que deles trata na Guerra de Canudos e cunhou a expressão “o sertanejo é antes de
tudo um forte”. Em tom agressivo, Sílvio Romero dá aos fazendeiros e senhores
de engenho adjetivos negativos, como parasitas e déspotas, e se admira de como
o verdadeiro povo brasileiro pode ser tão mal visto pelos “homens de letras” da
geração romeriana, marcada pelos pressupostos cientificistas que tanto fizeram
parte da intelectualidade europeia na segunda metade do século XIX.

4. Todo brasileiro é mestiço, se não no sangue,


pelo menos nas ideias

4.1. Da admiração por Tobias à aversão a Machado

Em Sílvio Romero uma biologia científica e determinista convive com o elo-


gio da “mestiçagem”, a qual formava a cultura brasileira. Diversamente de outros
autores de sua época, Romero recepcionou as ideias europeias de eugenia com al-
gum desconforto e inventou um modo de aceitar e positivar a mestiçagem, afirman-
do-a como inexorável condição do Brasil. Apesar dos limites do seu tempo e da sua
formação, ele assumia um brasileirismo com uma visão crítica, mas não hostil, ao
Brasil mestiço de três raças.
Para Gilberto Freyre, o sergipano teria sido o primeiro a associar o fenôme-
no da ascensão social do bacharel e do mulato ao declínio do patriarcado rural no
Brasil: “a transferência de poder, ou de soma considerável de poder, da aristocracia
rural, quase sempre branca, não só para o intelectual – o bacharel ou doutor às vezes
mulato – como para o militar – o bacharel da Escola Militar e da Politécnica, em
vários casos negroide.” (FREYRE, 1977, p. 626). Sílvio Romero, durante sua vida,
pôde observar a ascensão social do mestiço, vê-lo ministro, general, diplomata, pro-
fessor da faculdade, mas, acima de tudo, personificado de maneira expressiva em
Tobias Barreto, amigo por quem tinha grande admiração intelectual. Ele enxergou
no mestiço um instrumento de adaptação, capaz de incorporar as manifestações
intelectuais e os avanços da civilização europeia, ao mesmo tempo em que viu na
mistura de raças um fator decisivo no desenvolvimento da democracia entre nós.
60

O ethos de Tobias e a referência à sua atuação apoiam o discurso de Romero na


questão da raça e da miscigenação. A amizade com Tobias parece sincera e mostra
que Sílvio Romero não compartilhava do preconceito racial tão difundido em seu
tempo. Considerava-o superior a escritores como Castro Alves e Machado de Assis,
a quem subestimava.
Muitas, porém, foram as acusações de preconceito racial a Romero devido às
influências do evolucionismo de Spencer e às críticas proferidas ao “mulato”, como
era chamado Machado de Assis.

A História do Brasil, como deve hoje ser compreendida, não é, conforme se


julgava antigamente e era repetida pelos entusiastas lusos, a História exclu-
siva dos portugueses na América. Não é também, como quis supor de pas-
sagem e romanticismo, a História dos Tupis, ou, segundo o sonho de alguns
representantes dos africanismos entre nós, a dos negros em o Novo Mundo.
É antes a História da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores,
formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um
mestiço, quando não no sangue, nas ideias. Os operários deste fato inicial
têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira.
Tudo quanto há contribuído para a diferenciação nacional deve ser estudado,
e a medida do mérito dos escritores é este critério novo.
Tanto mais um autor ou um político tenha trabalhado para a determinação de
nosso caráter nacional, quanto maior é o seu merecimento. Quem tiver sido
um mero imitador português, não teve ação, foi um tipo negativo (ROMERO,
1953, p. 55).

Ao afirmar que “todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas


ideias”, Romero se mostra um precursor sobre a tese da originalidade de um pensa-
mento brasileiro.

4.2. A identidade nacional como resultado da mestiçagem

Para Sílvio Romero, a sociedade é fruto do estado em que se encontram as ra-


ças, sendo elas produtos da natureza. Assim, ele contrapõe-se à visão contratualista,
segundo a qual a sociedade surgiria mediante de um pacto entre os indivíduos, os
quais logicamente precederiam a sociedade. Para Romero é o inverso que ocorre: a
sociedade é um fenômeno natural que precede o indivíduo.
Em todas as organizações sociais, afirma, fatores como a raça e o meio são
os principais para o surgimento e desenvolvimento da sociedade. Porém, com uma
perspectiva não escatológica, ele observa que não quer dizer com isso que todas as
sociedades passarão pelos mesmos estágios de evolução, pois cada sociedade possui
um ritmo de desenvolvimento que lhe é próprio. Neste sentido, a sociedade brasileira
possui características próprias que a conformaram e elas constituem uma identidade
nacional. Para ele, o espetáculo de nossa história é o da modificação de três raças para
a formação de um novo povo. É o espetáculo transformador de forças étnicas e de
aptidões de três culturas diversas, de três almas que se fundem. Mas defende também
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 61

que o fundamento biológico não é único, pois existem as influências transmitidas pela
educação, pela seleção artificial da cultura (ROMERO, 2002, p. 255-256).
A identidade nacional é, assim, resultado da mestiçagem. Daí os estudos sobre
as expressões artísticas populares, como a poesia popular e o folclore; era preciso
conhecer as características que provêm do mestiço, para conhecer o próprio país.
Na primeira fase de seu desenvolvimento histórico, para Sílvio Romero, o pas-
sado brasileiro era o encontro das três raças que habitaram o Brasil colonial, o bran-
co, o índio e o negro, com preponderância do elemento português nesta formação. O
presente ainda se caracterizada pela falta de um povo formado, o que se refletia no
sistema político imperial, cujo Poder Moderador constituía um entrave ao progresso
do país, pois se confundia com poder pessoal e ficção metafísica. O futuro referia-
-se a um país que já havia passado pelo processo de branqueamento populacional,
portanto, um país que ampliou o sistema representativo e possibilitou a participação
de todos. Dessa perspectiva, Romero via-se como um agente essencial no processo
histórico, como um interventor dentro da sociedade (MARTINS, 2008, p. 127).

5. Culturalismo sociológico e humanismo:


divergências com o pensamento de Tobias Barreto

5.1. O culturalismo sociológico capaz de dar uma melhor


compreensão do direito em seu ordenamento

O movimento culturalista, inaugurado por Tobias Barreto e enriquecido pela


contribuição de Sílvio Romero, representou um marco significativo para a história do
pensamento brasileiro, por constituir-se no primeiro movimento intelectual genuina-
mente nacional, de criação de novas concepções jurídico-filosóficas, ao mesmo tempo
em que combatia ideias e instituições retrógradas e conservadoras, como a escravidão
e a monarquia, desencadeando lutas em defesa de direitos individuais, de liberdades
públicas e das causas abolicionista e republicana (GONZALEZ et al., 2006).
O culturalismo nasce como reação ao positivismo, proclamando como dimen-
são fundamental do ser humano o mundo da cultura. Ele é a base do próprio conhe-
cimento, pois impregna a consciência antes mesmo de toda reflexão. Em seu dualis-
mo relativamente mitigado, Romero afirmava que a cultura não é manifestação de
uma realidade unicamente humana e oposta à natureza. A atividade humana tem ins-
piração moral, mas não se opõe à natureza e produz a única forma de transcendência
possível, que ele nomeou de evolução, e que nada tem a fazer com a metafísica. “A
civilização humana, disse, obedece também a leis, a forças que lhe são impostas
pela natureza do meio externo e interno em que se desenvolve o próprio homem.”
(ROMERO, 1908. p. 45)
O culturalismo sociológico fez, na história das ideias no Brasil, a ponte entre
o culturalismo filosófico, que teve início com Tobias Barreto, e o culturalismo que
tem continuidade, a partir da década de 1950, com Miguel Reale e outros adeptos
dessa corrente. A Escola do Recife tentou estabelecer uma base ampla de investi-
62

gação, a partir do conceito de cultura, a qual Miguel Reale se dedicou a analisar e


aprofundar. Essa problemática culturalista permitiu a formação de uma corrente
filosófica no Brasil, numa retomada dos valores como via de acesso aos objetos que
a ciência não é capaz por si só de compreender (REALE, 1952 p. 250).
Nesse aspecto segue a orientação inaugurada por Sílvio Romero, que busca no
plano da ciência um método da observação dos fenômenos que seja guiado pelos
fatos da cultura, sociais. O viés sociológico do culturalismo é seguido por diversos
intelectuais durante um período significativo, a despeito da oposição intransigente
que Tobias Barreto fez à sociologia como ciência em suas Variações antissocioló-
gicas (ROMERO, 2001, p. 13). As novas formulações da sociologia para explicar a
cultura seriam compatíveis com os princípios do kantismo, pois também refutavam
as teses do mecanicismo e do materialismo. Para Romero a cultura seria tudo aquilo
que não é para o homem uma dádiva direta e imediata da natureza, mas sim resulta-
do do trabalho espiritual, da produção consciente, do esforço voluntário.
Apesar da diversidade de fenômenos culturais, a cultura mostra sempre um
tronco comum. Esses fenômenos básicos da vida social constituem sete tipos de-
senvolvidos desde os mais remotos tempos da pré-história: ciência, religião, arte,
política, moral, direito e indústria (ROMERO, 1996, p. 596).
Quanto ao direito, Sílvio rejeita as definições de Rudolf von Jhering e Tobias
Barreto, por não assinalarem o momento da liberdade humana, enfatizando exces-
sivamente o aspecto da coercitividade. Para Romero seria o direito “o complexo
das condições criadas pelo espírito das várias épocas, que servem para, limitando
o conflito das liberdades, tornarem possível a coexistência social” (ROMERO,
1895, p. 215). Além da ação convergente da natureza e da cultura na formação
do direito, o caráter específico de cada povo também teria sua influência. É o ele-
mento nacional, que põe certa nota de especialização na generalidade. Por isso o
direito, assim como as demais manifestações da cultura, varia conforme os meios,
as circunstâncias históricas, políticas, econômicas e sociais.
Dentre os argumentos utilizados por Tobias está a afirmação de que a liberda-
de humana impossibilita a formação da sociologia enquanto ciência social que se
pretende descritiva; Romero responde afirmando ser a liberdade humana um fato
inegável, mas que não contradiz a sociologia, como não impede o estudo do direito
sobre bases científicas, uma vez que não são somente de explicações mecânicas que
se compõem as ciências. Também, se é possível uma ciência do Estado, a política,
deve igualmente ser possível uma ciência da sociedade, a sociologia. Essa visão em
prol da sociologia mostra a preocupação em valorizar o que era produzido no Bra-
sil, pois a cultura, os hábitos e os costumes específicos demandam um pensamen-
to brasileiro, pois só os nacionais conhecem e podem tratar dos problemas locais
(WOLKMER, 2003, p. 162).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 63

5.2. Cultura como problema de ordem filosófica ou não?

Segundo o sergipano, partindo de que só o homem é ser dotado de impulso de


criar e de fazer conscientemente, chega ele ao conceito de Cultura como sendo tudo
aquilo que não é para o homem uma dádiva direta e imediata da natureza, senão
um resultado do trabalho espiritual, da produção consciente, do esforço voluntário
(ROMERO, 1996, p. 250). O progresso dos povos não depende apenas da inspira-
ção moral ou do dever ser, mas também de fatores naturais e étnicos, ao contrário
do que afirmava Tobias Barreto.
Para Romero, em sua obra Ensaio de filosofia do direito, diferentemente de
Barreto, o conceito de cultura não representa unicamente um problema de ordem
filosófica. Para ele seria a cultura uma categoria sociológica explicada pelo evolu-
cionismo como um fato natural que não se antepõe à natureza. Sobre a concepção de
Tobias, Clóvis Beviláqua afirmou (REALE, 1962, p. 250) que ele estava de acordo
com a ideia de ser a sociedade uma ciência do homem, daí ser a antropologia prope-
dêutica ao estudo do direito, uma vez que esta prioriza o estudo do homem em seu
meio social e não a sociedade humana como o faz a sociologia.
Segundo Beviláqua, Tobias teria repulsa à sociologia devido a sua repulsa ao
sistema de Comte, no qual a sociologia tem o papel principal. Mas foi principalmen-
te a concepção de cultura como esfera insusceptível de explicação mecânica que fez
Tobias tomar posição contra a sociologia, vista como ciência fundada no princípio
de causalidade. Romero, conforme já afirmado, assumiu a posição culturalista den-
tro da concepção sociológica e discordou quanto à intransigência de Tobias sobre
esta ciência, pois a considerava como um saber necessário à explicação dos fatos
sociais, e assim hábil a dar uma melhor compreensão do desenvolvimento da so-
ciedade, bem como do direito em seu ordenamento. Romero (1969, p. 531) afirmou
que o Direito, como fato observável, é capaz de ser estudado em sua evolução, o
que dá origem a uma ciência especial, a ciência jurídica, inserida no quadro de uma
ciência mais geral, a sociologia.
Em seu ensaio contra a sociologia, Tobias apresenta os seguintes argumentos:
1. O estudo dos fenômenos sociais teria como resultado uma estupenda Pantosofia,
evidentemente incompatível com as forças do espírito humano; 2. Estamos num
período sociolátrico, e a sociolatria, ainda que lhe sirvam de objeto as mais altas ma-
nifestações de grandeza humana, é inconciliável com uma ciência social, qualquer
que seja o grau de desenvolvimento; 3. A admiração pelas ciências naturais é que
trouxe a mania da sociologia, que pretende aplicar seus mesmos métodos de obser-
vação. Mas no estudo de formações mais complexas como o homem, a família, o
Estado, a sociedade em geral, não se pode lançar mão de explicações mecânicas.
Romero contra-ataca, respectivamente, com os argumentos que seguem: 1. Não
vê motivo pelo qual a sociedade humana, submetida a estudo, daria lugar a uma Pan-
tosofia superior às forças de nossa inteligência, quando o mesmo não acontece no
mundo físico, mais vasto e variado. Cada um dos seus aspectos, que dão lugar à ma-
temática, à astronomia, à física, à química, à biologia, é por si só talvez tão extenso
64

quanto a matéria da sociologia, o que não impediu que o espírito humano instaurasse
sobre cada um deles uma ciência especial, que se divide em numerosas ramificações,
esquadrinhando a realidade por todas as faces e investigando milhares de problemas.
2. Pelo que toca ao segundo motivo alegado, a sociolatria e a adoração da ciência pe-
los positivistas comteanos, é possível replicar que nem todos partilham da concepção
de sectários como Clotilde de Vaux, seu Sacro Colégio, seu Grande Sacerdote, sua
Trindade de Grande Ser, Grande Meio e Grande Feitiço. 3. Depois, não é verdade que
o conhecimento de um objeto exclua, ipso facto, o respeito, a admiração, o espanto
até, por esse objeto. A ciência já ia adiantada em diversas direções e o homem era
ainda um politeísta, que divinizava aspectos vários da Natureza.

Não existe, em suma, antinomia entre conhecimento e veneração, dado de ba-


rato que houvéssemos mister de um culto da humanidade, o que não é absolu-
tamente preciso. O que cumpre é conhecer os problemas, todos os problemas
da vida social, para minorar os males, se possível for, da pobre humanidade,
começando por tirá-la da tentação da sociolatria.
Este argumento consiste em dizer que nas formações superiores, como o
homem, a família, o Estado, a sociedade em geral, não são admissíveis os
processos mecânicos de explicação. O resto mecanicamente inexplicável de
Kant na Biologia cresce e alastra todo aquele domínio superior, e a ciência
é impossível, sustentava Tobias Barreto. Este, porém, ficou em meio da jor-
nada com Kant, isto é, admitia o mecanismo em todo o mundo inorgânico
e não o aceitava nos ramos superiores da Biologia e da ciência do homem.
Admira como, conhecendo ele a fundo a doutrina de Von Hartmann, que cita
exatamente na parte em que este filósofo protege Kant dos ataques injustos de
Haeckel, não o acompanhou até ao ponto em que o ilustre autor da Filosofia
do inconsciente demonstrou admiravelmente que teologia e mecanismo são
duas faces de um só e mesmo processus, existindo ambos, portanto, de alto a
baixo em toda a Natureza. Aqui não há resto nenhum; não existe um domínio
para o finalismo e outro para o mecanismo; estes dois estão por toda a parte.
O velho Kant iludiu-se e Tobias Barreto com ele.
Esta crítica consiste em asseverar que, assim como não existe uma só ciência
geral para a Natureza, também não pode existir uma ciência geral para a hu-
manidade. A dificuldade desaparece se ponderarmos que os várias aspectos
da Natureza, tendo dado lugar a diversas ciências, igual fato se repete com
relação aos vários aspectos humanos, que dão também origem a diferentes
ramificações científicas; o que não impede que, numa e noutra esfera, se pro-
ceda a uma síntese final (ROMERO, 1969, p. 545).

Dentre os elementos retóricos utilizados por Romero para contra-argumentar


as afirmações de Tobias contrárias à sociologia, além da mesma ironia empregada
por Tobias, pode-se destacar o ethos, quando lança mão de argumentos de autori-
dade, referindo Kant, Spencer, Huxley, Harvey e Comte, dentre outros, além de sua
própria credibilidade enquanto intelectual.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 65

Mais uma vez o auditório alvo do discurso de Sílvio Romero são os círculos
letrados, homens de Estado e todos aqueles que pudessem ter alguma influência na
esfera pública. Isto é perceptível no próprio enfoque do texto.
Romero ressalta que o debate sobre o caráter científico da sociologia assenta-se
num paralogismo: a falta de definição do termo ciência, ou as diferentes definições
desse termo de cada lado dos arguentes. Depois de apresentar as diversas acepções
de ciência, Sílvio conclui que o método da sociologia é o mesmo de todas as ciências
(ROMERO, 1969, p. 553).

Neste empenho teórico é que Sílvio Romero, em seu compêndio de filosofia


jurídica, explica a difunde o espírito novo em filosofia; a sociologia e sua
localização entre as ciências; as criações fundamentais e irredutíveis da hu-
manidade e o direito entre elas; a extensão das criações políticas do homem
até o Estado e o direito; os elementos natural, cultural e nacional no direito
e os elementos que o compõe. Como se vê, o sociologismo domina a teoria
jurídica de Sílvio Romero, que nos presenteia com uma espécie de sociologia
geral do direito, um pouco sob inspiração de M. Jourdain, como no comum
ocorre a todos os sociologistas (MACHADO NETO, 1975. p. 201).

Em toda a sua vida procurou Sílvio Romero vincular a literatura à vida do


povo e às tradições culturais do Brasil, sua fonte essencial de inspiração e criação.
Para ele, a literatura não é uma torre de cristal, alheia ao contato com a realidade
(FERREIRA, 1994. p. 251). Como arquiteto da alma brasileira, soube pensar para
a sua época e para o futuro e foi um dos maiores observadores do espírito nacional.
Pelo tom, pela emoção, pelo saber, era um homem do século, unindo com força a
tradição e a cultura, como só as unifica a grande arte (MACHADO, 1975, p. 252).
Romero é o ponto de ligação entre a primeira e a segunda Escola do Recife.
A primeira é a de Tobias Barreto, a segunda, a de Gilberto Freire, que tinha poucos
pontos em comum com Tobias e muitos com Sílvio.
Em determinado momento do pensamento de Romero, ele professa o já abor-
dado evolucionismo spenceriano, a qual chama de evolucionismo sociológico, que
possibilita a contestação a Barreto quanto ao problema da cultura se antepor à natu-
reza. Essa forma de evolucionismo englobaria o pensamento de diversos filósofos e
naturalistas aproximados por ideias semelhantes:

Funda-se o evolucionismo spenceriano nas quatro ideias capitais de todo


desenvolvimento filosófico e científico moderno: a crítica do conhecimento,
iniciada por Hume, desenvolvida por Kant e levada às últimas consequên-
cias por Hamilton e Mansel; o princípio fundamental da evolução, do werden
perpétuo, que lhe passou do próprio Kant, de Goethe, de Hegel; a aplicação
prática desse princípio à Biologia pelo experimentalismo transformístico de
Von Baer, Darwin, Wallace; finalmente a concepção monística do Universo
preparada pelas descobertas de Grove, Meyer, Joule, Helmboltz e trinta ou-
tros, aceita hoje geralmente por naturalistas, como Haeckel e por filósofos
como Noiré e Hartmann (ROMERO, 1969, p. XVII).
66

É nessa doutrina do organicismo spenceriano que se fixa a busca de Romero,


relacionada ao apenas ao pensamento especulativo, teórico, mas à observação dos
fatos e à história do desenvolvimento humano. O problema da cultura como princí-
pio de toda criatividade humana na filosofia de Barreto passa efetivamente a Rome-
ro, mas como categoria sociológica, explicada à luz do evolucionismo enquanto fato
natural que não se antepõe à natureza, o que é amparado por Clóvis Beviláqua que,
nesse ponto, também diverge do mestre. O posicionamento destes pensadores para
a Sociologia e o Direito, parece estar relacionado com a implantação do positivismo
como “a filosofia” da nova ordem política estabelecida com a queda da Monarquia.
Sílvio Romero assume uma nova posição histórica a partir dos conhecimentos de-
senvolvidos na Escola do Recife, a qual Tobias fundara em meio ao florescimento
do regime parlamentar liberal.

6. A prevalência do paradigma científico na


concepção do Código Civil de 1916

O Código Civil de 1916 é fruto do Projeto de Clóvis Beviláqua e seu processo


de aprovação na Câmara dos Deputados e no Senado foi bastante conturbado. Na
Câmara, necessitava de parecer exarado por determinada comissão revisora, parecer
que foi ao final favorável, mormente pela atuação de seu relator, Sílvio Romero. No
Senado, as dificuldades foram muito maiores devido à atuação de Rui Barbosa, que
trouxe obstáculos a sua tramitação por meio de discussões meticulosas a respeito de
cada artigo, questionando inclusive a gramática do texto.
Romero foi escolhido relator da chamada Comissão dos 21 do Código Civil,
momento em que defendeu ideias filosóficas que se refletiram na codificação. O
Código de 1916 incorporou um sentido formal e instrumental característico das
doutrinas adotadas por juristas como Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua, defensor e
redator do Código, os quais possuíam formação acadêmica marcada pela Faculdade
de Direito do Recife, fazendo prevalecer o paradigma do cientificismo de cunho
monista (ORLANDO, 1975). Percebe-se, então, que o elemento retórico do logos
esteve sempre presente. Essa visão monista acredita que um único tipo de grupo
social, o grupo político (atualmente conhecido pela denominação genérica de socie-
dade global) está habilitado a criar normas de direito (LÉVY-BRUHL 1997, p. 24).

A sociedade global compreendia a sua similitude com o processo de desen-


volvimento de uma célula homogênea denominada mônada, cuja evolução e
crescimento desdobra-a em partes com funções especiais e individuais pre-
sentes nas características hereditárias do grupo superior. Essas característi-
cas potencializam o grupo portador de atributos específicos a tornar-se refe-
rência para a classificação dos conhecimentos e dos povos. Na perspectiva
do monismo, o processo de desenvolvimento da sociedade global abrange a
evolução, crescimento e diversificação dos elementos, desencadeia a luta dos
homens, a luta pela vida à moda darwinista. Essa perspectiva foi enunciada
por Haeckel, Spencer e outros teóricos no século XIX, e a sua formulação
biológica recebeu o entusiasmo de Tobias Barreto (RIBEIRO, 2006).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 67

Esta concepção dos juristas orientou as controvérsias que envolveram a ela-


boração da codificação brasileira e os demais grupos e classes sociais situados na
sociedade civil não se fizeram presentes. Daí é possível compreender a razão de o
Código Civil de 1916 se expressar em linguagem empolada e inacessível ao povo,
diferentemente das convicções do próprio Romero.
É preciso ressalvar que mesmo a cultura política da época era marcada pelo
bacharelismo. Pode-se assim compreender que o Estado e seu direito eram produto
de uma ordem econômica conservadora, que afastava o povo brasileiro de qualquer
participação na construção da vida política e jurídica nacional.
Mesmo assim, o conhecimento da ciência social e a busca por um direito mais
moderno contribuíram para combater “ideias expatriadas” que buscavam enraizamen-
to no Brasil, amparadas no “direito da força”. A Escola do Recife, por intermédio de
Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua, seguidores das ideias do seu fundador, Tobias Bar-
reto, contribuiu para o florescimento do regime parlamentar liberal (SOUZA, 2001).
Sílvio Romero estava convicto de que o auxílio da pesquisa sociológica e de
suas conquistas científicas fecundaria novas ideias e abriria novas vias à compreensão
da nação e ao encontro de seu próprio caminho de desenvolvimento. A defesa da so-
ciologia levada a efeito por Sílvio Romero contribuiu para apontar uma nova direção
aos seguidores da Escola do Recife mesmo após a sua dissolução. Insista-se que as
pesquisas intensivas nessa nova área do saber, a sociologia, deu grande contribuição
para o desenvolvimento do direito e sua adaptação à complexidade da vida moderna.

7. Sílvio Romero como precursor da modernização


do direito no Brasil

7.1. O diálogo da cultura brasileira com a obra romeriana

Como dito acima, o público de Sílvio Romero era conscientemente dirigido a


todos aqueles que pudessem ter alguma influência na esfera pública, detentores ou
aspirantes ao poder; por isso a repercussão de seus ensaios em grandes nomes do
passado nacional se dá de forma como que natural, com seguidores que surgem de
imediato após seu falecimento em 1914.
Nessa época firmam-se na Europa os grandes movimentos nacionalistas e o
Brasil não fica infenso ao fenômeno. Na constituição dessa civilização brasileira
foi muito importante a base doutrinária construída por Sílvio Romero pela obser-
vação dos eventos sociais verificados no momento nacional. Praticamente todos os
intelectuais que produziram, após a primeira Grande Guerra, obras voltadas para
projetos políticos ou culturais no Brasil tiveram inspiração direta ou indireta no
pensamento de Romero.
Mesmo hoje é possível dialogar com temas básicos da Escola do Recife, os quais
permeiam as concepções de Sílvio Romero, como os topoi sobre uma sociedade plural
e miscigenada. A influência do sergipano foi fundamental para nomes como Gilberto
Freyre e Mário de Andrade, principalmente no discurso quanto às “três raças”.
68

A obra de Sílvio Romero é contraditória e foi criticada por muitos. Porém, essa
extraordinária e perturbadora heterodoxia também se mostrou extremamente fecun-
da, pois, ao mesmo tempo em que defendia o cientificismo e a sociologia, sua obra
repousa sobre fundamentos românticos. Ao observar o povo e vê-lo como mestiço,
ele se impôs restrições às oposições da mestiçagem, que para ele simbolizavam a
singularidade histórica do Brasil. Romero defendia esta brasilidade como algo úni-
co, que distinguia este país dos demais.

7.2. A formação do povo brasileiro

A influência da obra de Sílvio Romero sobre Casa-Grande e Senzala e a obra


de Gilberto Freyre em geral possui conexões ainda pouco exploradas. Mas essas li-
gações são evidentes, principalmente quanto às três raças e à formação do povo bra-
sileiro. Romero não possuía a sofisticação metodológica e argumentativa alcançada
por Freyre, porém esse aprofundamento parte de diversas linhas que já estavam
esboçadas em Romero, o que se verifica nas várias citações feitas na principal obra
de Freyre ao sergipano (SCHNEIDER, 2005, p. 225).
Freyre pertence assim à linha interpretativa cultural de Romero, no sentido
da vocação democrática presente no cruzamento das raças, na metáfora de “sangue
tropical”, associando miscigenação e democracia (FREYRE, 2006, p. 83), porém
com a consciência de que usava o termo “democrático” mais no sentido de homo-
geneização étnica e cultural do que de eventuais conquistas de direitos formais ou
redução das desigualdades concretas entre os cidadãos. O discípulo pernambucano
também muito elogiou a busca romeriana por uma brasilidade mestiça, afirman-
do, em artigo em homenagem ao centenário de nascimento de Sílvio Romero, que
“História da literatura brasileira é um desses livros que protegem um povo contra
a agressão e o desânimo, como se fossem fortalezas, e, ao mesmo tempo, igrejas”
(FREYRE, 1951).

7.3. A sensibilidade nacionalista

Sílvio Romero também foi lido e citado por Mário de Andrade. Assim como
Casa-Grande e Senzala, Macunaíma é um pilar na construção do que seria o Brasil
moderno. Os três nexos principais são semelhantes àqueles percebidos em Gilberto
Freyre. O primeiro, de uma perspectiva antropológica, é falar de um Brasil mestiço,
herdeiro das três raças. O segundo é ter sido Romero um dos primeiros brasileiros
da elite intelectual a defender e realizar estudos sobre cultura popular, o que Mário
de Andrade viria a fazer mais tarde de modo mais profundo. Finalmente, ambos os
autores enxergaram nesse popular a própria nacionalidade, unidos por uma sensi-
bilidade nacionalista: assim como Sílvio Romero, Mário de Andrade relacionou o
popular à nacionalidade.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 69

Uma semelhança do pensamento desses autores está também no gosto literá-


rio, nas críticas à obra de Machado de Assis. Sílvio Romero o censurava muito pela
sua falta de engajamento no que considerava uma das grandes questões públicas
de seu tempo, o debate quanto ao “caráter brasileiro”. Mário de Andrade tinha a
literatura machadiana por antibrasileira e europeizada, vendo nela uma imitação do
estrangeiro. Romero via no humor de Machado uma imitação de autores ingleses.
Sérgio Buarque de Holanda está entre os estudiosos da obra romeriana, ava-
liando-a como um “tratado de sociologia da cultura brasileira”, na qual a riqueza e
a miséria da crítica residem em sua perspectiva sociológica. Ele observa também a
convivência contraditória entre os fundamentos românticos e o discurso sociológico
cientificista de Romero.
Por meio desses discursos por vezes incoerentes, aos quais não faltava um
tom quixotesco, Sílvio Romero almejou reformar o país de modo a tirá-lo do atra-
so e da ignorância, integrando-o à “marcha da civilização”. Foi contraditório não
apenas em sua obra, mas também em sua prática de vida, pois no âmbito político
submeteu-se a troca de favores e patrocínio, enquanto que como intelectual jamais
aceitou meios-termos e acomodações, rígido e implacável em seus julgamentos. O
fato é que sua atividade jurídica, literária e filosófica buscava mudar para melhor o
Brasil, o que provocou seu engajamento em grandes momentos da história nacional.
Um nome menos lembrado do que merece a marca que deixou na história do
país, Sílvio Romero foi um homem de ideais, mas não se intimidou em expô-los,
por mais reprovados que fossem pelas opiniões dominantes. Ele foi um intelectual
que fez de sua atividade política e jurídica uma estratégia para modificar a realidade.
Suas “novas ideias” fizeram parte de um importante momento de transição nacional,
no qual não foi mero espectador, mas atuante protagonista.
70

REFERÊNCIAS

ABREU, Regina (2008). O livro que abalou o Brasil: a consagração de Os sertões na vira-
da do século. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro. Disponível em:<http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701998000400006&lng
=&nrm=iso>. Acesso em: 12.10.2008. doi: 10.1590/S0104-59701998000400006.
ADEODATO, João Maurício (2009). A Retórica constitucional. São Paulo: Saraiva.
_______ (2002). Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Pau-
lo: Saraiva.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito. In: Revista Brasileira de
Filosofia, São Paulo, IBF, Vol XXXIX, fascículo 163, p. jul.-set.
BARRETO, Tobias (1951). Variações antissociológicas. In: Estudos de Direito.
Salvador: Livraria Progresso Editora.
COSTA, João Cruz (1969). O Brasil Monárquico. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de
(org.), História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, Volume V, São Paulo: Difel.
COUTINHO, Afrânio (1968). A tradição afortunada. Rio de Janeiro: J. Olympio.
FERREIRA, Pinto (1994). História da Faculdade de Direito do Recife. 2ª ed.
Recife: Editora da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco – Sociedade
Pernambucana de Cultura e ensino.
FREYRE, Gilberto (2006). Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Global.
_______ (1977). Sobrados e Mocambos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.
_______ (1951). O gigante Sílvio Romero. Correio Popular, Campinas, 22 de abril
de 1951.
GONZALEZ, Everaldo T. Quilici; PAJOLA, Marcelo Tadeu; ANDRADE, Mauri-
cio de; BRAY, Retano Toller (2006). O Culturalismo Jurídico da Escola do Reci-
fe. Anais do XV Encontro Preparatório do CONPEDI, Recife, 2006. Disponível
em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/teoria_da_justica_eve-
raldo_gonzales_e_outros.pdf>.
LÉVI-BRUHL, Henri (1997). Sociologia do Direito. São Paulo: Martins Fontes.
MACHADO NETO, Antônio Luís (1975). Teoria da Ciência Jurídica. São Paulo:
Saraiva.
MARTINS, Maro Lara (2006). Reflexões sobre a Teoria Social Romeriana. Cader-
nos de Sociologia e Política, Rio de Janeiro, n. 09. Disponível em: <http://www.
iuperj.br/publicacoes/forum/09.pdf>. Acesso em: 03.10.2008.
MISKOLCI, Richard (2006). Machado de Assis, o outsider estabelecido. So-
ciologias, n. 15. Porto Alegre.  Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222006000100013&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em: 02.09.2008. doi: 10.1590/S1517-45222006000100013
ORLANDO, Artur (1975). Ensaios de crítica. Introdução de Antonio Paim. São
Paulo: Gribaldo, Edusp.
PAIM, Antonio (1984). História das ideias filosóficas no Brasil. 3ª. ed., rev. e
ampl., São Paulo: Editora Convívio.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 71

REALE, Miguel (1952). Ensaio de filosofia do direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva.
_______ (1962). A filosofia em São Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura.
ROMERO, Sílvio (2001). O Brasil social e outros estudos sociológicos. Brasília:
Senado Federal.
_______ (1953). História da literatura brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora.
_______ (2001). Introdução a doutrina contra doutrina. São Paulo: Companhia
das Letras.
_______ (1996). Ensaio de filosofia do direito. In Sílvio Romero. Obra Filosófica
(introdução e seleção de Luís Washington Vita). São Paulo: José Olympio.
_______ (1979). Realidades e ilusões no Brasil. In Hildon Rocha (org.). Parlamen-
tarismo e presidencialismo e outros ensaios. Petrópolis: Editora Vozes e Governo
do Estado de Sergipe.
_______ (2005). Recepção de Euclides da Cunha (18 de dezembro de 1906) – Dis-
curso do Sr. Sílvio Romero. In Discursos Acadêmicos. Rio de Janeiro: ABL, vol.
I, p. 269-310.
RIBEIRO, Maria Thereza Rosa (2006). Itinerário da construção do risco e segurança na
sociedade brasileira. Sociedade e Estado. Brasília,  v. 21,  n. 3, Dec.  2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922006000300009&ln
g=en&nrm=iso>. Acesso em: 04  Jul  2009.  doi: 10.1590/S0102-69922006000300009.
SCHOPENHAUER, Arthur (1997). Como Vencer um debate sem precisar ter
razão. Rio de Janeiro: Topbooks.
SCHWARCZ, Lilia Moritz (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições
questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras.
SOUZA, Francisco Martins de (1981). O Culturalismo Sociológico de Alcides
Bezerra. São Paulo: Ed. Convívio.
_______. Prefácio In: ROMERO, Silvio. (Org.) (2001). O Brasil social e outros
Estudos Sociológicos. Brasília, Senado Federal: Biblioteca Básica Brasileira.
SCHNEIDER, Alberto Luiz (2005). Sílvio Romero, hermeneuta no Brasil. São
Paulo: Annablume.
WOLKMER, Antonio Carlos (2003). Humanismo e Cultura Jurídica no Brasil.
Florianópolis: Fundação Boiteux.
Rui Barbosa NO ADVENTO
DA REPÚBLICA –
retórica em defesa dos ideais federalistas

Laila Iafah Goes Barreto

Resumo: Este capítulo tem o federalismo de Rui Barbosa, desenvolvido


quando da queda do Império brasileiro, como tema. O objetivo específico da
pesquisa é analisar como foi inserido o discurso federalista no Brasil. A obra
de Rui Barbosa é tomada como principal fonte de argumentos no debate e
questiona-se a originalidade de sua teoria. A metodologia utilizada para al-
cançarem-se os resultados foi a retórica analítica , que se baseia na tripartição
da retórica nos níveis material, estratégico e analítico. Conclui-se que o autor
foi capaz de, por meio da adaptação retórica do paradigma, desprender-se do
discurso federalista norte-americano e tornar-se, pois, original.
Palavras-Chave: Retórica. Federalismo. Rui Barbosa. Originalidade cultural.
Abstract: This paper has the federalism that Rui Barbosa developed by the
fall of the Brazilian Empire, as its main theme. The specific objective of this
research is to analyze how the federalism’s speech was inserted in Brazil. The
work of Rui Barbosa is taken as the main source of arguments in the debate
and it is also questioned the originality of his theory. The methodology used
to achieve the results was the analytical rhetoric, which is based on three
rhetorical levels, the material, the strategic and the analytical. It is concluded
that the author was able to break away from the American federalist discourse
through his rhetorical adaptation of the paradigm and, thus, become original.
Keywords: Rhetoric. Federalism. Rui Barbosa. Cultural originality.
Sumário: Introdução: marcos balizadores do caminho, a análise retórica
como metódica e o federalismo de Rui Barbosa como objeto. 1. O Brasil de
meados do século XIX e a retórica da nacionalidade como elementos for-
madores do ambiente comunicacional intersubjetivo no qual Rui Barbosa
produzirá seus discursos. 1.1. Do nascimento ao engajamento político-jor-
nalístico via atuação no Diário de Notícias. 1.2. O novo paradigma social
surgido com a industrialização incipiente e o consequente evidenciamen-
to do anacronismo imperial. 1.3. A situação política do Brasil no final do
séc. XIX e a barreira retórica imposta ao método ruiano pela linguagem
de comando baseada no intervencionismo. 2. O Diário de Notícias como
propagador das estratégias de Rui Barbosa para a desconstrução retórica
dos sustentáculos do Império. 2.1. A simbologia do jornalismo “crítico e
independente” caracterizando a metodologia para atração da audiência, pri-
meiro passo na busca pela prescrição do comportamento. 2.2. Poder central
fragilizado como argumento metodologicamente utilizado para a “prova”
do anacronismo da monarquia brasileira. 2.3. A Guarda Negra e o discurso
libertador como mecanismos da Coroa para estimular a luta entre raças e
74

enfraquecer a coesão social. 2.4. Os abusos cometidos contra o exército


e a atuação estratégica de Rui Barbosa. 3. O federalismo de Rui Barbo-
sa enquanto solução liberal e democrática para o anacronismo do Império.
4. Conclusão: A federação instituída em 1891 como produto da adaptação
retórica do discurso norte-americano, idealizada por Rui Barbosa e capaz
de atualizar o paradigma constitucional brasileiro de maneira original. 4.1.
O federalismo de Rui Barbosa e sua originalidade no âmbito nacional. 4.2.
A teoria federalista ruiana e sua singularidade em relação ao paradigma
norte-americano. Referências.

Introdução: marcos balizadores do caminho, a análise retórica


como metódica e o federalismo de Rui Barbosa como objeto

O presente trabalho tem como objeto central as estratégias persuasivas uti-


lizadas por Rui Barbosa para a inserção do discurso federalista no Brasil do final
do séc. XIX, modificando o ambiente social então vigente. Para realizar tal estudo
foi necessária a investigação dos contextos político, social e econômico do Brasil
imperial e da forma retórica de abordagem do tema pelo autor.
Para isso, questionou-se a maneira de inserir o federalismo no País. Primeira-
mente, no que concerne à falta de maturidade política da sociedade brasileira de en-
tão para aceitação de forma inovadora de Estado, tornando-se, portanto, necessário
um trabalho de difusão retórica do ideário federalista. Posteriormente, no que diz
respeito à inter-relação do padrão federalista doutrinário/científico proposto por Rui
com o norte-americano dos Founding Fathers.
Nesse sentido, afloraram questões de grande interesse: qual o contexto
político-econômico-social do Brasil Imperial do final do séc. XIX? Como Rui
Barbosa foi capaz de criar, no auditório nacional, um ambiente favorável à inserção
e ao desenvolvimento da teoria federalista? Qual a importância da atuação do autor
no jornal Diário de Notícias para a formação do seu ethos perante o auditório
nacional e para o controle do pathos deste? Quais elementos persuasivos podem
ser encontrados no discurso ruiano pró-federação? Houve uma contribuição
inovadora do federalismo de Rui para a experiência vivida no Brasil do início do
séc. XIX? Qual a relação entre o modelo federalista proposto por Rui Barbosa e o
criado pelos Founding Fathers (Alexander Hamilton, James Madison e John Jay)?
Houve apenas reprodução ipsis litteris das ideias norte-americanas, ou Rui Barbosa
conseguiu inovar e, assim, inserir pensamentos e perspectivas próprios e criar o um
“federalismo à brasileira”?
Tendo o fenômeno jurídico como pano de fundo, o objetivo central do trabalho
é o exame de parte da origem teórica da experiência jurídica nacional, em torno da
questão de uma eventual originalidade dessas ideias, para além da mera repetição
dos ensinamentos estrangeiros. Assim, sabendo-se que a história das ideias é uma
forma de compreender a identidade de um povo, busca-se investigar, com funda-
mento no método retórico e na visão sisífica da história, as ideias de um pensador
brasileiro que foi importante na quebra de paradigmas jurídicos.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 75

Mais especificamente, objetiva-se analisar a ruptura de padrões sociais, jurí-


dicos e políticos consagrados no Brasil do séc. XIX, a qual foi determinante para
a ampliação dos horizontes da teoria geral do direito, ao influenciar especialmente
a formação da teoria constitucional brasileira. Dessa forma, tem-se como primeira
meta observar o contexto de surgimento da forma federativa de Estado e da demo-
cracia no País, o que possibilitará um conhecimento mais aprofundado acerca da ex-
periência jurídico-política brasileira passada e presente, já que tais institutos ainda
fazem parte da estrutura do Estado brasileiro. Como segunda meta busca-se avaliar
o papel de Rui Barbosa como artífice desse novo modelo de estruturação do Estado,
identificando os mecanismos retóricos utilizados por ele para convencer os diversos
segmentos sociais da importância dessa mudança paradigmática. Aí objetiva-se afe-
rir a eventual originalidade da teoria federalista ruiana.
Percebe-se, portanto, a relevância do presente tema situar-se justamente no
objetivo geral de melhor conhecer a história das ideias nacional, desvendando o pas-
sado cultural e ideológico do País. Justifica-se, assim, a pesquisa, uma vez que, no
momento histórico estudado, houve a difusão de um discurso político para além do
restrito espaço elitista (ROCHA, 1995, p. 2), o que torna a queda do Império e, espe-
cialmente, o advento da Federação marcos importantes na formação da identidade
nacional. Saliente-se, ainda, que o principal personagem desse processo foi Rui
Barbosa, o qual, com suas ideias liberais, democráticas e federalistas, deu origem a
uma nova teoria constitucional no País, modernizando-o (ROCHA, 1995, p. 27-33).
Para o desenvolvimento do trabalho, o material utilizado compreende livros
e artigos publicados em revistas científicas. Quanto ao método, foi utilizado o re-
tórico, pelo qual se divide o estudo da retórica em três níveis: material, estratégico
e analítico. Antes de analisar cada nível detalhadamente, cumpre salientar que a
retórica é comumente conhecida como a arte, a técnica de persuasão pelo discurso.
Entretanto, ela não se resume a esse conceito e é aí que aparecem suas demais face-
tas ou, na conceituação de Ballweg (1991, p. 175-184), seus demais níveis.
A retórica pode também ser vista como uma forma de experimentar o mundo e,
ao mesmo tempo, observar e estar no ambiente. Isso, na medida em que se parte de
uma concepção do homem como ser carente, incapaz de perceber qualquer verdade,
e da comunicação como único ambiente artificial com o qual o ser humano pode
lidar. Tornando-se, pois, o elo entre os indivíduos e o mundo que os cerca, a retórica
caracteriza-se como a maneira pela qual eles, interagindo, produzem discursos. Ao
comunicar sobre algo torna-se, pois, esse algo real. É o plano existencial da retórica,
a retórica material, a maneira pela qual efetivamente ocorre a comunicação, enfim, o
método inter-relacional. Dentro desse nível retórico os sujeitos produzem conjunta-
mente, por meio da linguagem comum e das regras publicamente controláveis, suas
verdades momentâneas, suas convicções, seu mundo, enfim, tudo o que existe para
o ser humano é criado no contexto da comunicação intersubjetiva (ADEODATO,
2009, p. 15-45; BALLWEG, 1991, p. 175-184).
76

No que diz respeito especificamente ao tema, torna-se importante destacar dois


momentos que compõem o nível material da retórica ruiana: o de configuração das
escolhas éticas feitas pelo autor, que constituirão seu mundo real e formarão seu ethos;
e o de caracterização dos discursos social, econômico e político do Brasil do séc.
XIX, responsáveis pela configuração da realidade nacional de então. Cada um desses
momentos será apresentado no primeiro capítulo da monografia. Tenta-se demonstrar
que a linguagem comum produzida por Rui desde a infância, ampliada pelo influxo de
ideias federalistas, vai adequar-se perfeitamente aos anseios sociais da época.
Por sua vez, a perspectiva estratégica da retórica constitui a forma pela qual os
sujeitos, ao observar o mecanismo de produção da linguagem, tentam influenciá-lo
e, pois, prescrevem condutas e produzem discursos de controle. Ou seja, obser-
vando a forma de produção de significados entre sujeitos, um indivíduo estabelece
práticas para intervir nesse processo, omitindo o caráter opinativo e transitório de
suas assertivas, que assim são tomadas como gerais, “reais” e, portanto, passíveis de
crença. É essa confiança que filtra as mensagens transmitidas na linguagem comum
diária e converte, de forma latente, “meras” opiniões pessoais em “verdades”. É
esse processo de filtragem que cria o sistema linguístico das linguagens de coman-
do, como o dinheiro, o direito, o poder/a política, o amor e a religião, reinserin-
do um discurso elaborado dentro do nível estratégico da retórica no nível material
(BALLWEG, 1991, p.176-177).
Na medida em que observa o método para poder agir sobre ele, esse nível re-
tórico caracteriza-se como uma metalinguagem, e, portanto, metodologia. Torna-se,
por isso, importante a seleção de argumentos, figuras de linguagem e entimemas. É
aí que serão utilizados os meios de persuasão: ethos, pathos e logos, relacionados,
respectivamente, a quem fala (caráter pessoal do orador), como fala (emoções pro-
vocadas na plateia), e o que se fala (próprio conteúdo do discurso)
O detalhamento desse nível retórico é o alvo dos capítulos segundo e terceiro
da presente monografia. Ter-se-á como meta analisar, diante da militância política
de Rui Barbosa no jornal Diário de Notícias, o processo de formação de uma nova
linguagem de comando, pela qual o autor prescreveu a constituição do Estado bra-
sileiro. Serão analisadas as estratégias baseadas na desconstrução dos sustentáculos
da monarquia e aquelas direcionadas à construção do novo sistema de formação do
Estado, criando a teoria federalista brasileira. Concomitantemente, tentar-se-á des-
construir os argumentos apresentados pelo autor e mostrar não somente as suas for-
mas estilísticas de apresentação, como também os seus conteúdos e os topoi neles
presentes. Será, então, elaborada uma análise tanto das figuras de linguagem como
da tópica presentes na teoria federalista de Rui Barbosa.
Por fim, o plano analítico da retórica reflete de maneira descritiva sobre as in-
terações existentes entre os demais níveis. Constitui uma metalinguagem de segun-
do nível, uma metódica (ADEODATO, 2009, p. 15-45). Nesse contexto, o último
capítulo da monografia apresentará as conclusões acerca do papel de Rui Barbosa
como unificador da sociedade em torno da Federação brasileira. Tentar-se-á, por-
tanto, com base nas análises dos capítulos anteriores, demonstrar o mecanismo de
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 77

adaptação retórica da doutrina federalista norte-americana, e a eventual originalida-


de do autor no desenvolvimento dessa teoria tanto no que diz respeito ao contexto
nacional, quanto ao internacional.
Enfim, examinando o período histórico do total anacronismo da Monarquia,
e da falência desta, dada a perda das suas bases sustentadoras, procura-se conhecer
melhor o passado do País. Nesse contexto, o discurso ruiano é percebido como vetor
da opinião pública da época, aglutinador da luta antimonárquica e, enfim, propulsor
da federação e da nova teoria constitucional no Brasil.

1. O Brasil de meados do século xix e a retórica


da nacionalidade como elementos formadores
do ambiente comunicacional intersubjetivo no
qual Rui Barbosa produzirá seus discursos

1.1. Do nascimento ao engajamento político-


jornalístico via atuação no Diário de Notícias

Nascido em 5 de novembro de 1849, em Salvador, filho de João José Barbosa


de Oliveira e Maria Adélia Barbosa de Almeida, Rui Barbosa de Oliveira foi, além de
advogado e jurista, jornalista, político, diplomata, ensaísta e orador (NOGUEIRA,
1999, p. 15-25). Tendo se bacharelado em Direito em 1870, pela Faculdade de
Direito de São Paulo, Rui chegou a estudar por dois anos (entre 1866 e 1868) na
Faculdade de Direito do Recife. Até sua morte, em 1923, em Petrópolis, participou
ativamente da vida político-jurídica do País e, assim, engajou-se nas campanhas
abolicionista e civilista, defendeu a democracia e a forma federativa de Estado e,
sobretudo, atuou, por meio de seus escritos no jornal Diário de Notícias, como mola
propulsora da República.
João José Barbosa, que foi deputado provincial (1846 a 1848) e deputado geral,
pela Bahia (1864 a 1868), era vinculado às ideias liberais, e foi integrante do Partido
Liberal, por meio do qual foi eleito, e secretário de direção central do jornal de ten-
dência liberal O Século (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, 1999, p. 13-32).
Além disso, o pai de Rui Barbosa teve envolvimento com a Sabinada, movimento au-
tonomista desenvolvido no período regencial em cuja pauta estava a defesa dos ideais
federativos em oposição ao centralismo monárquico. Cabe, ainda, salientar que ele foi
diretor-geral de Ensino Provincial da Bahia, sendo responsável pela organização do
Liceu Provincial e tornando-se conhecido por seus dotes oratórios.
É esse homem, atuante na vida política de sua província e do País e preocu-
pado com a educação, que, em 1854 (FUNDAÇÃO CASA DE Rui Barbosa,
1999, p. 17), resolve responsabilizar-se pela formação intelectual de seu filho.
Fê-lo memorizar os textos clássicos, deu-lhe noções de eloquência e levou-o a
cultivar o apreço à música. Rui Barbosa, então, criado num ambiente de apego
à leitura e ao conhecimento, cresce amando os livros e tendo seu pai, quem lhe
deixou “impresso no coração o sacrossanto selo do amor à verdade” (BARBOSA,
78

1947, Tomo I, p. XXIII), como figura bem presente em seus caminhos. Não por
acaso, Rui também se tornará político (igualmente deputado provincial e, depois,
deputado geral), jornalista, orador renomado e, sobretudo, democrata liberal que
luta por maior autonomia nas províncias.
Consequentemente, João José Barbosa é a primeira influência na formação do
pensamento ruiano. Ele marca indelevelmente a tomada de futuras posições éticas
de seu filho e a personalidade deste, uma vez que, por meio de suas conversas e de
sua autoridade de pai, cria junto ao autor um padrão de comunicação baseado no
respeito e na admiração, que irá produzir a realidade que este passa a conhecer e a
ter como verdade. Dessa maneira, é isto que faz sentido para Rui Barbosa: a crença
na monarquia como possível forma de governo, desde que ela seja do tipo parlamen-
tar e haja submissão plena à Constituição e à liberdade dos cidadãos. Entretanto, ao
mesmo tempo, Rui não se apega às formas de governo, importando-se, sim, com a
garantia das liberdades e direitos individuais, no mais típico estilo constitucionalista
inglês, com o qual teve contato também sob as orientações paternas.
Em março de 1866, Rui Barbosa matricula-se na Faculdade de Direito do Re-
cife, morando inicialmente no mosteiro de São Bento, Olinda, e depois, no Recife,
na pensão do irlandês Guilherme Martim Purcell (FUNDAÇÃO CASA DE Rui
Barbosa, 1999, p. 27). Ainda calouro, ele participa da Associação Acadêmica
Abolicionista, fundada por Castro Alves, amigo de infância desde os tempos de
estudo no Ginásio Baiano, renomado colégio particular de sua província natal. Ape-
sar da curta estada em Recife, Rui é grandemente influenciado nesse período. Isso
porque, ele entra em contato com os ideais da luta contra a manutenção da mão
de obra escrava no País, a qual será uma de suas pautas nos artigos publicados no
Diário de Notícias. Destarte, a produção de relatos acerca da inadmissibilidade do
trabalho escravo transforma a necessidade de emancipação do elemento servil numa
convicção pessoal para Rui. É, pois, mais uma das escolhas éticas que permearão
toda sua produção intelectual.
Em novembro de 1867, após ser aprovado com uma nota regular em seu se-
gundo ano de faculdade, Rui fica desgostoso e pede transferência para a Faculdade
de Direito de São Paulo (FUNDAÇÃO CASA DE Rui Barbosa, 1999, p. 29).
Em 1868, começa a cursar o terceiro ano e ingressa no Ateneu Paulistano, institui-
ção acadêmica, presidida por Joaquim Nabuco (e, mais tarde, por ele próprio), de
incentivo à arte e também interessada em questões políticas. Ademais, Rui foi eleito
redator-chefe da Imprensa Acadêmica, jornal político-literário da Faculdade de São
Paulo, além de escrever artigos para os jornais A Independência e O Ipiranga. Em
1869, ele passa a frequentar as reuniões do Clube Radical, agremiação de orienta-
ção liberal, e propõe a criação do jornal Radical Paulistano, cujo redator será ele
mesmo, no qual publicará seu primeiro artigo abolicionista. Em 1870, por motivos
de doença, o autor recebe antecipadamente o grau de Bacharel em Direito pela Fa-
culdade de São Paulo e retorna à Bahia para tratar-se.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 79

A permanência em São Paulo é, portanto, mais um fator decisivo na constru-


ção do pensamento ruiano. É nesse período que o autor estreia na imprensa, passa
a entrosar-se diretamente com o debate político e engaja-se com as questões do
governo do País e com as tendências democráticas, mais especificamente, com o
Partido Liberal. Consequentemente, o político passa a fazer parte da realidade em
que Rui Barbosa vive e suas escolhas ético-partidárias são a verdade circunstancial
por ele adotada. Ou seja, nos artigos dos jornais, nos debates na Faculdade, nas
reuniões da maçonaria (em 1868 ele passa a integrar a Loja América, loja maçônica
de relevo nesse período), o autor passa a comunicar sobre suas próprias percepções
do mundo, criando e consolidando, por meio da linguagem comum, mecanismos
regulares de transmissão desses relatos, o que torna possível a produção de sentidos
e a criação da realidade, do que existe.

1.2. O novo paradigma social surgido com a industrialização


incipiente e o consequente evidenciamento do anacronismo imperial

O Brasil da segunda metade do século XIX apresenta-se como um país de


grande desenvolvimento econômico proporcionado pela cultura do café. Essa pros-
peridade financeira, atrelada ao intenso intercâmbio econômico com a Inglaterra,
gera a inserção do capitalismo moderno no contexto social do País e a racionaliza-
ção do sistema de produção (HOLANDA, 1967, p. 298). A fazenda adquire ares de
empresa e, por conseguinte, o modo de produção escravocrata torna-se um entrave
à maximização dos lucros.
Diante dessas novas demandas socioeconômicas, forja-se o discurso abolicio-
nista com base em argumentos tais como: a igualdade entre os homens, a garantia
dos direito individuas consagrada pelos princípios democráticos e liberalistas e a
modernidade da humanidade, que não mais concebia a crueldade da exploração dos
negros. Assim, passou a fazer parte do debate nacional e, consequentemente, da
realidade à época vivenciada, a necessidade de adaptação da estrutura nacional aos
novos padrões ocidentais.
Por outro lado, com a abolição da escravatura e a consequente vinda dos imi-
grantes, começa a formar-se no País um incipiente mercado de mão de obra assa-
lariada e a desenvolver-se o processo de diferenciação do trabalho, fundamental à
industrialização. Como consequências principais da prosperidade econômica têm-
-se o crescimento da renda, o desenvolvimento do comércio, a produção artesanal,
manufatureira e, depois, fabril e o crescimento do setor de serviços.
Obviamente, tais transformações econômicas influiriam diretamente na estru-
turação das relações intersubjetivas. Como resultado desse processo de elevação do
nível de vida no País, começam a surgir tensões sociais e necessidades novas: au-
menta o interesse pela vida intelectual, por tecnologia e por capital, o que reflete no
dinamismo da sociedade que começa a formar-se. Surge uma nova classe, a dos pro-
fissionais liberais, a qual busca afirmar-se na cena nacional por meio de representa-
ção política. A modernização dos meios de comunicação permite que mais setores
80

da sociedade tenham acesso à informação e tomem conhecimento dos principais


acontecimentos do Império. A cidade começa a suplantar o campo. O mercado de
trabalho incipiente proporciona o progressivo abandono dos padrões estritamente
patrimoniais de organização da sociedade.
Enfim, no final do séc. XIX, o Brasil passa por uma situação de grandes trans-
formações econômico-sociais. O ritmo de vida, portanto, transforma-se: as posturas
solenes e as atitudes comedidas, tensas, contraídas são paulatinamente eliminadas do
tecido social. Isso porque, a liturgia típica da sociedade estamental é incompatível
com o paradigma de velocidade imprimido pela incipiente industrialização (VEIGA,
1984, p. 117), o qual irá caracterizar a passagem para a sociedade de classes que co-
meça a se esboçar. Inicia-se, então, a quebra do sistema de mobilidade praticamente
inexistente e de hierarquização rígida entre os diversos setores sociais. A elite brasi-
leira vai torna-se mais diversificada, e o País, ansiando a descolonização intelectual,
liberta-se progressivamente das amarras que ainda o prendiam ao colonizador.
Nesse contexto, as novas elites passam a exigir do governo uma menor inter-
ferência nos domínios econômicos. Isso porque ambicionava-se potencializar os
lucros e conferir autonomia para cada província poder evoluir conforme seu ritmo
próprio. De fato, um governo centralizador era incapaz de responder prontamente
aos interesses tão heterogêneos de cada região.
Entretanto, a monarquia apresenta-se indiferente às modificações exigidas
pela sociedade. Mostrando-se inerte, burocrático e esfacelado politicamente, diante
da constante instabilidade dos Gabinetes que, de fato, governavam o país, o Império
ignorava os anseios sociais e agia, ainda, pautado nos padrões rígidos e estamentais
do Brasil Colônia. Consequentemente, a monarquia tornou-se absolutamente ana-
crônica: era preciso romper com o passado e criar algo novo, que se assemelhasse,
de preferência, aos padrões ingleses.
Esse era, portanto, o panorama dos assuntos debatidos na sociedade brasileira
do séc. XIX e que formavam a linguagem comum de então, controlada publica-
mente e constituinte do “real”, dos “fatos”. É nesse ambiente retórico material (pla-
no existencial) que Rui Barbosa se insere, percebendo as brechas argumentativas
deixadas na linguagem política de comando então vigente, e, consequentemente,
tentando preencher essas lacunas com seu discurso inovador. Discurso esse que,
baseado no modelo norte-americano de estruturação do Estado e no padrão inglês
de democracia, adequava-se aos anseios da nova sociedade brasileira, mais dinâmi-
ca e ávida por mudanças políticas que afastassem a imagem omissa e instável do
governo vigente.

1.3. A situação política do Brasil no final do séc. XIX


e a barreira retórica imposta ao método ruiano pela
linguagem de comando baseada no intervencionismo

Diante desse panorama social do final do Brasil imperial, fica fácil perceber,
ainda no nível material da retórica, o encontro dos dois planos existenciais mencio-
nados acima: o de Rui Barbosa na construção de todas as suas “pré-compreensões”
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 81

(GADAMER apud OLIVEIRA, 2006, p. 225-248), e o do Brasil enquanto socieda-


de modificada por meio do capital. De fato, a linguagem produzida por Rui desde a
infância, ampliada pelo influxo de ideias federalistas e democráticas, vai adequar-se
aos anseios sociais da época. Filtrado da linguagem comum, o federalismo ruiano
transformar-se-ia em linguagem de comando que, portanto, prescreveria o futuro
constitucional do Brasil.
Entretanto, a despeito dessa interação direta entre a “vontade coletiva” e as
propostas do autor, havia uma barreira retórica material a ser transposta quando
do início da militância política do autor em prol do federalismo. A linguagem de
comando consagrada pela política nacional e produzida pela aristocracia cafeicul-
tora ainda comunicava sobre a inconveniência da federação, mesmo que a retórica
da nacionalidade apresentasse as marcas da incipiente “experiência federalista” do
início do século (DOLHNIKOFF, 2005, p. 23-79 e passim).
Os antifederalistas argumentavam que a forma de governo em vigor não se
contrapunha à democracia nem ao liberalismo, como afirmavam os federalistas
(LYNCH, 2007, p. 37-66). Alegavam os senhores rurais, quer filiados ao partido
conservador, quer ao liberal, que o modelo político “saquarema”18 era plenamen-
te satisfatório à realidade brasileira, não configurando qualquer entrave ao desen-
volvimento. Isso com base em dois fundamentos. Primeiramente, dizia-se que o
Imperador era, em virtude de sua aclamação popular, o intérprete privilegiado da
vontade nacional. Por outro lado, a pobreza e a vacuidade da vida política no País
justificavam a interveniência de um poder sólido e previamente determinado por via
hereditária, o poder Moderador, ao qual caberia funcionar como ponto de apoio para
a sustentação da organização social (LYNCH, 2007, p. 42).
Dessa maneira, num país pobre e ainda dominado pelas elites agrárias, era bas-
tante conveniente haver um Poder Moderador pelo qual as correntes de pensamento
insurreicional fossem neutralizadas, as camadas pobres mantidas “em seu devido
lugar” e, sobretudo, o governo central tivesse atuação conforme com os interesses
da aristocracia.
Contudo, esse posicionamento começaria a se modificar com as sucessivas al-
terações de Gabinetes operadas desde o início do segundo reinado e potencializadas
ao final do período imperial. Essa frequente alternância do ente responsável pela
“orientação” política do Poder Moderador, por ser desprovida de qualquer critério
preestabelecido, fragilizava a legitimidade do sistema de governo. Por outro lado,
a figura do imperador, apesar de estável, enfraquecia ainda mais o sistema político
nacional, uma vez que sua perenidade no poder era sinônimo de permanência da
omissão na participação do jogo político nacional e da interferência total no que
concerne ao desenvolvimento econômico do País. Consequentemente, o consagrado
mérito do regime saquarema de permitir a consolidação de políticas firmes e está-
veis era apenas ilusório no Segundo Reinado (HOLANDA, 1972, p. 10-28).

18 Expressão que caracteriza o estilo único de parlamentarismo instaurado no Brasil, qual seja: um sistema parlamentar,
mas, ao mesmo tempo, governado de forma unitária e determinada pelo poder moderador (HOLANDA, 1972, p. 10-13).
82

Conforme Holanda (1972, p. 7), a ascensão do Gabinete conservador de 16 de


julho 1868 marca o início da clivagem na história política da monarquia. Essa seria
responsável, futuramente, pela autodestruição do sistema. Destarte, a alternância
de grupos no poder e as sucessivas propostas de reformas vão fragmentando os
próprios partidos políticos, que começam a perder forças diante da formação de
dissidências. Isso porque as propostas de um partido eram realizadas por outro e os
integrantes de um partido passavam a defender ideias do outro. Consequentemente,
as plataformas políticas passam a se confundir, inexistindo propostas reais, mas sim
apenas o tradicionalismo de um setor social que temia perder poder.
Diante disso, nota-se que, apesar de ainda constituir discurso predominante no
nível material da retórica, os entraves impostos pelo intervencionismo ao discurso
ruiano estavam fadados a perder suas forças diante do próprio contexto político-
-econômico vivido no País. Rui Barbosa saberá explorar essa fragilização, criando
estratégias argumentativas capazes de produzir a queda dessas barreiras e a vitória
de sua proposta inovadora.

2. O diário de notícias como propagador das estratégias


de Rui Barbosa para a desconstrução
retórica dos sustentáculos do Império

2.1. A simbologia do jornalismo “crítico e independente”


caracterizando a metodologia para atração da audiência,
primeiro passo na busca pela prescrição do comportamento

Dentro desse ambiente comunicacional de modificações dinamizadoras da


sociedade e de instabilidade do regime monárquico, Rui Barbosa pôde perceber
as diversas lacunas existentes na então vigente linguagem política de comando
(ADEODATO, 2009, p. 15-45), ou seja, no discurso emitido estrategicamente pela
elite governante e tido como verdade no seio social. Tais brechas argumentativas
tanto tornavam o discurso imperial frágil, o que permitiria a uma atuação estraté-
gica desarticulá-lo, quanto geravam espaço a ser preenchido por novos discursos.
Caracterizam-se, assim, as duas facetas centrais do agir prescritivo de Rui Barbosa
em prol do federalismo. Num primeiro momento, o autor busca desconstruir as
bases de sustentação da monarquia, forjando uma argumentação antimonárquica.
Posteriormente, ele objetiva construir uma nova linguagem jurídico-constitucional
de comando no Brasil, preenchendo as brechas de conteúdo criadas pela Coroa com
o que lhe parecia mais adequado para o contexto brasileiro.
O primeiro passo metodológico da estratégia desconstrutiva foi atrair a
confiança do público, aumentando a popularidade do Diário de Notícias. Isso
porque a interferência no comportamento dos leitores adviria do contato diário com
as ideias divulgadas no jornal. Dessa maneira, Rui Barbosa associou à imagem das
publicações feitas no Diário críticas às falhas presentes no sistema governamental
e independência quanto a preferências partidárias. O caráter crítico comporia a
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 83

essência do jornal, significando uma atividade jornalística diferenciada, marcada pela


observação dos fatos e por sua avaliação. Entretanto, e aí surge a adição do elemento
“independência”, o avaliar não seria passional, mas sim adviria da isenção perante
qualquer forma política tida como “melhor”, havendo “amor à verdade”, e não uma
vinculação a interesses particulares e momentâneos. Assim, apesar de Rui Barbosa
declarar-se monarquista e liberal, ou seja, apesar de sua simpatia pelo sistema de
governo então vigente, seria garantido ao público um jornalismo imparcial, que, ao
observar as atividades da vida política do País, não hesitaria em julgar negativamente
o que se apresentasse inadequado com relação aos princípios democráticos e liberais.
Essa estratégia retórica de atração da audiência foi empregada desde o primeiro artigo
publicado no Diário, intitulado O Nosso Rumo e datado de 7 de março de 1989:

Abrir, contra o convencionalismo da verdade oficial, mais uma válvula à ver-


dade sem compromissos, e estabelecer, fora do liberalismo partidário, uma
pequena escola de princípios liberais, – aí tendes, em poucas palavras, o mo-
desto e difícil programa, que nos impomos (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 1);
Para soerguer o pêso dêsse véu [o da obscuridade sobre a real situação po-
lítica do Brasil], para lhe arredar a ponta, não será de mais o concurso de
uma boa vontade estreme de preconceitos, esclarecida pela experiência, sem
outras ambições afora a de militar resolutamente com os amigos ativos da
pátria, e não pactuar com as cumplicidades empenhadas em colorir o mal, e
desculpar abusos (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 2).

Analiticamente, pode-se encontrar nesses dois trechos figuras de linguagem,


cuja funcionalidade se situa precisamente na potencialização do argumento por
meio do estilo marcante, o qual provoca encanto e emoção nos leitores. É o aspecto
formal da persuasão. Percebe-se, assim, que as palavras “pequena”, “modesto” e
“difícil” são, no primeiro excerto, mecanismos de expressão de um eufemismo, fi-
gura de linguagem utilizada para atenuar, por meio de expressões consideradas mais
amenas, ideias que poderiam agredir ou chocar (AZEREDO, 2008, p. 500). Dessa
forma, o orador mostra-se modesto, comedido e realista. Esse trabalho do ethos,
ou seja, do caráter pessoal do orador e da credibilidade (Glaubwürdigkeit) que ele
inspira no público (ADEODATO, 2009, p. 15-45; UEDING, 2005, p. 11-37), faz
com que o argumento desenvolvido angarie mais simpatia e, sobretudo, confiança
do público. Nesse mesmo sentido, observa-se a presença de uma lítote na expressão
“não será de mais” expressa em lugar da “será necessário apenas”. Essa figura de
linguagem consiste também numa atenuação do pensamento expresso, a qual se
processa, porém, mediante a declaração de algo por meio da negação de seu contrá-
rio (REBOUL, 2004, p. 124; AZEREDO, 2008, p. 503). Negar o contrário do de-
clarado, significa indiretamente também negar a noção tradicional que seria suposta
pelo “leitor desavisado”, destacando-se sutilmente o ponto de vista novo apresenta-
do pelo autor. No exemplo em questão, os requisitos para extinguir-se com a obscu-
ridade da situação política brasileira são, então, percebidos como possíveis, apesar
de difíceis, de realizar. A concepção consagrada no imaginário popular (retórica
84

material) de que tais requisitos seriam impossíveis de se atingir por serem demasia-
damente inacessíveis à política nacional é suavizada pela negação do “demais” em
“não será de mais”. Dessa forma, além de aproximar-se do público ao mostrar que
a via solucionadora seria difícil, mas factível, o autor exalta sutilmente seu caráter,
na medida em que ele estaria disposto a trilhar tais caminhos. Por outro lado, o uso
de metáforas como “abrir válvula à verdade”, “soerguer o pêso dêsse véu” permite
ainda ao autor parecer concretizar conceitos abstratos, criando na mente do público
uma imagem palpável e, por isso, mais facilmente assimilada e memorizada.
Concomitantemente à franca associação entre o jornalismo ruiano e a avalia-
ção minuciosa e livre dos acontecimentos políticos do Brasil, o autor utilizou ainda
essa estratégia atrativa de outras duas formas indiretas. Julga-se serem indiretas
essas formas de aproveitamento do argumento, porque o objetivo primordial de
Rui Barbosa não era mostrar a essência do seu trabalho jornalístico, na tentativa
de criar um vínculo estável com o público. Ele objetivou primeiramente mostrar a
importância de uma imprensa engajada e ética para o desenvolvimento de uma Na-
ção livre. Explorando a ideia do dever geral de informar que caberia aos jornalistas
mesmo diante de ameaças e perseguições políticas, Rui Barbosa criou uma metoní-
mia, na qual o seu jornal Diário de Notícias, espécie de um gênero abrangente, era
tomado como se fosse o todo “imprensa de qualidade”. Consequentemente, o autor
vincula sutilmente o seu jornal à imagem de um jornalismo com credibilidade, que
contribuía para o enriquecimento do debate político nacional e, consequentemente,
também para a democracia e para o desenvolvimento do País. Mais do que isso, no
inconsciente dos leitores, o Diário de Notícias tornava-se o único modelo de “boa
imprensa”, uma vez que era a espécie tornada gênero. A funcionalidade dessa estra-
tégia caracteriza-se, pois, na possibilidade de ressaltar o aspecto da coisa (do jornal,
neste caso) que interessa ao autor (REBOUL, 2004, p. 121-122). Foi essa conden-
sação da “coisa geral”, em seu aspecto positivo associado à “coisa específica”, que
gerou uma estreita relação de confiança com os leitores, reforçada em vários artigos.
Aumentava-se, então, a receptibilidade das teses difundidas no Diário diante do
apreço despertado no público. Ao tratar, por exemplo, em diversos artigos sobre
a importância da garantia do direito de reunião, que era cerceado pelo governo, o
autor assim se manifesta:

Eis aí por que não levantaremos mão do assunto, por mais que se abespinhe o
govêrno. Acreditamos que o jornalista tem responsabilidades, das quais se deve
desempenhar ao menos por amor de sua consciência, que as questões de princí-
pio primam a tudo, e que a nação, que se não quiser mostrar talhada para arrasta
a opressão coroada, há-se reagir, antes que os almocreves do paço lhe acabem
de ajustar a canga, os canzis e a brocha (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 81);
Quando tomamos voluntariamente aos ombros a cruz da imprensa, fizemos
voto religioso de não titubear ante receios de risco, porque, a nosso ver, essa
é a origem íntima de todos os vícios da nossa sociedade e da nossa política
(BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 130).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 85

Por outro lado, ao rebater críticas sobre sua atuação à frente do Diário de No-
tícias, Rui Barbosa novamente aplicou indiretamente a mencionada estratégia. Cen-
surado por não possuir uniformidade de pensamento, uma vez que, apesar de monar-
quista, criticava acidamente o Império e propunha várias reformas que implicariam
uma redução do poder monárquico, o autor era acusado de defender apenas suas con-
veniências pessoais. Diante disso, ao apresentar-se como um jornalista diferenciado,
tentava “provar” sua “pura” vinculação aos princípios advogados em seus artigos.
Defendendo-se de tal sorte de acusações formuladas pelo jornal Gazeta de Notícias,
assim escreveu Rui no artigo intitulado Nossos Ídolos, de 7 de abril de 1989:

A nossa reta é o radicalismo liberal, cuja expressão imediata se traduz na


federação das províncias. Esta reta não se desviará, quaisquer que sejam as
responsabilidades, nos seus pontos de interseção com os acontecimentos fu-
turos. Qual é, então, o nosso partido? O das nossas ideias. Estaremos, onde
elas encontrarem apôio; combateremos, enquanto nos restar vida, os que as
adversarem (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 345).

Dessa maneira, o jogo com os significados “crítico” e “independente” utili-


zado direta ou indiretamente para caracterizar o tipo de jornalismo produzido por
Rui Barbosa foi a primeira linha estratégica traçada para alterar a linguagem de
comando vigente àquela época. Na medida em que atraia a audiência da população
brasileira, ao tornar seu jornal popular, Rui almejava aumentar seu campo de ação
retórica. Assim, independentemente das preferências e convicções políticas ou do
estamento a que se pertencia, passou-se a ler o Diário de Notícias na busca por in-
formações “neutras”, que diziam respeito aos interesses da nação, e não aos de um
grupo social determinado. Consequentemente, o autor passou a comunicar seus ide-
ais inovadores tanto para monarquistas, quanto para republicanos, tanto para con-
servadores, quanto para liberais, tanto para os politizados, quanto para as camadas
mais à margem do discurso político. Como símbolo de um jornalismo engajado e
livre, o jornal unificava os interesses desses diversos setores sociais, podendo então
Rui Barbosa, na função de redator-chefe, formar a opinião desses grupos diferencia-
dos. Prescrição de comportamento essa que não tardou a acontecer.

2.2. Poder central fragilizado como argumento metodologicamente


utilizado para a “prova” do anacronismo da monarquia brasileira

Como segunda estratégia traçada para se instituir a federação no Brasil e, as-


sim, modernizar o País, Rui Barbosa elegeu a desconstrução da crença na vantagem
que um poder monárquico centralizador pode proporcionar. De fato, a figura do
Imperador ainda era muito valorizada e a percepção de que ele, por meio do seu
poder central, teria uma visão do todo a ser administrado, o que traria unidade ao
governo e à Nação, ainda era uma das “verdades” sociais. Esses mitos precisavam
ser desconstruídos para, depois, serem substituídos.
86

Antes de iniciar a argumentação antimonárquica, foi estruturada uma estraté-


gia legitimadora da posição de avaliador ácido do governo assumida por Rui Bar-
bosa, por meio da qual ele apresentava-se como patriota admoestador da Coroa. De
fato, afirmando-se monarquista e sendo contrário a uma revolução, assumia-se uma
postura confortável para a formulação das críticas. Isso porque elas eram percebidas
não como juízo irracional, forjado sob o ódio contra o governo, mas sim como ten-
tativa de melhoria e adaptação do sistema brasileiro às demandas por modernização
e democratização. Rui Barbosa, então, destrincha estrategicamente os argumentos
de forma que suas observações e teses eram avisos de quem estava a prever na
postura absolutista, corrupta e incompetente da Coroa o seu próprio fim. Caso a
monarquia brasileira não fosse atualizada, o espaço dos revolucionários dentro da
sociedade iria crescer, de forma a derrubar o governo. O elemento “revolução” esta-
ria, portanto, inserido no âmago do governo e poderia, por conseguinte, ser por este
solucionado caso fossem ouvidas as críticas ruianas e realizadas algumas reformas
governamentais. Essa “preferência monárquica” torna-se, sob o ponto de vista re-
tórico analítico, uma ferramenta de potencialização do ethos do autor, que, ao ser
o “fiel admoestador” do Império mostra-se ao público como jornalista despido de
qualquer interesse, a não ser o de melhorar o País, o que atrai a audiência e cristaliza
a crença em seus escritos. Assim:

Prestando êste serviço, cumprindo êste dever, bem néscio seria o Diário de
Notícias, se pensasse em bem merecer da instituição, que êle adverte. Bus-
cando abrir os olhos ao trono, não é a êste, mas à nação, que nos devotamos,
não por vermos na monarquia uma forma superior à república, ou supormos
o Brasil inadaptável a esta, mas porque as transições não se operam sem aba-
lo, e para a liberdade a evolução nos pareceria mais salutar que a revolução
(BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 74).

Quanto à argumentação desconstrutiva propriamente dita, o autor critica quase


diariamente a elite política brasileira, apresentando ao público um Imperador doente e
fragilizado ao ponto de somente ocupar o trono, sem governar de fato nem representar
os interesses do povo; um Gabinete formado por um conjunto de ministros corruptos
e incompetentes; uma princesa regente que deu início ao seu reinado de fato, antes de
ser instituída no poder; e um príncipe consorte que se arvorava imperador.
Rui Barbosa argumenta, então, que o excesso de confiança em sua perpetuação
retiraria do Império a capacidade de autoavaliação, fazendo com que se ignorasse a
crise interna vivida na família real, a qual abalava mais ainda a imagem da monar-
quia. Essa falta de percepção do perigo era potencializada pela atuação bajuladora
dos integrantes do governo, que, para manterem-se no poder, satisfaziam sempre a
vontade da Coroa, conservando-a iludida sobre sua popularidade e ignorante das
reais necessidades políticas do País. Em reforço à falta de tino administrativo, havia
ainda perda de forças de dom Pedro II enquanto figura representativa do governo.
De fato, em virtude de doença que o fragilizava, estava o Imperador na maior parte
do tempo ausente da gerência da coisa pública. Observando essa situação, Rui Bar-
bosa soube tirar proveito retórico, associando ao monarca uma imagem de inepta
autoconfiança e de pusilanimidade:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 87

Só um pacto reservado com os herdeiros do trono explica razoàvelmente a


imutabilidade provocadora de uma política, que, quanto mais desacreditada,
quanto mais ulcerada, quanto mais aborrecida, tanto mais confiada se mostra
em sua duração; de uma política que parece fortalecer-se na gravidade mes-
ma das duas culpas, crescendo na confiança imperial, à medida que desce no
desprêzo da nação (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 212);
Com profundo sentimento de piedade acompanhou esta câmara o discurso,
que o ministério acaba de proferir pelos augustos lábios de Vossa Majestade;
e, escutando-o com a reverência devida à vossa posição constitucional,
deplora ver-se obrigada a reconhecer nesse documento a prova mais óbvia
de que o espírito do chefe de Estado se ausentou do governo do país, ou de
que no espírito do príncipe reinante se apagou a consciência da monarquia
(BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 245);
Mas, ao menos, salvem algumas aparências! Seja sequer em homenagem ao
Imperador, ainda fisicamente vivo. Se lhe tiram, nos conselhos do govêrno, o
poder real, ao menos não acabem de despi-lo de tôda a autoridade moral no
meio da rua (BARBOSA, 1947, Tomo III, p. 49).

Nesses três trechos percebe-se o uso de certas figuras de linguagem ser deter-
minante para conferir força especial ao argumento apresentado. No primeiro exceto
utiliza-se um polissíndeto, figura de sintaxe na qual o conectivo coordenativo é
repetido por diversas vezes numa cadeia de palavras ou de orações (AZEREDO,
2008, p. 492). O conectivo “quanto mais” é, assim, mencionado por três vezes,
criando-se uma repetição, a qual confere destaque a determinados termos. Esses
termos da sequência são, não por acaso, os adjetivos desabonadores da conduta
administrativa da Coroa, os quais por meio dessa ferramenta estilística ficam mais
facilmente gravados na memória do leitor. Além disso, é fornecido à mensagem um
sentido suplementar de dinamismo e de esforço, como se a monarquia brasileira
esmerasse-se em ser tortuosa. No mais, as ironias empregadas, presentes em termos
como “piedade”, “augustos lábios”, “ao menos, salvem”, “despi-lo no meio da rua”,
atingem o objetivo de evidenciar a situação deplorável do Imperador, a qual era
ridiculamente mal encoberta pelos seus conselheiros. Essa figura de linguagem, por
possuir ares de humor, “desarma” o público quando da recepção do argumento, pro-
duzindo uma aceitação mais fácil. Explora-se, então, principalmente ao elemento
pathos, uma vez que se tenta controlar os sentimentos da plateia para se conduzir
suas opiniões. No presente caso, forma-se uma imagem decrépita e ridicularizada
do Império, evidenciando-se seu anacronismo.
Sendo indivíduo que inspirava em seu povo piedade e condescendência, e não
respeito, não era mais dom Pedro II capaz de centralizar o poder. Consequente-
mente, ele foi responsabilizado como “causa originária” das tragédias administrati-
vas que se sucediam no País. Assim, quer falasse dos problemas de abastecimento
d’água no Rio de Janeiro, quer criticasse o deslocamento de tropas militares para o
interior do País, quer relatasse as mazelas causadas pela peste e pela falta de sane-
amento da capital do Império, quer apontasse a corrupção dos gabinetes e da corte,
quer destacasse o descumprimento da lei por parte da família real, concluía o autor
88

que esses problemas tinham como única origem a falha do monarca, que era incapaz
de reconhecer a própria incapacidade física. Joguete nas mãos dos ministros e do
chefe do gabinete, a majestade era anulada, o que permitia a esses políticos realiza-
rem livremente operações ilícitas, potencializando-se a corrupção no governo:

Quando o imperador ocupava, realmente, a chefia do Estado, sua personali-


dade absorvente dominava tôdas as situações, resolvia todos os problemas,
amolgava todos os partidos ao interêsse do poder, que lhe pendia do gesto
soberano (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 208);
Os que de outro modo procedem, estão preparando à república a mais irrefra-
gável das justificações; porque, se a monarquia se põe fora da lei, abdicando
positivamente nas mãos de uma camarilha clandestina, ficará claro que o mo-
vimento republicano constitui uma aspiração de legalidade contra a revolução
de galões brancos (BARBOSA, 1947, Tomo III, p. 163).

Além disso, a doença do Imperador gerava um ilegítimo terceiro reinado de


fato. O que deveria ser apenas uma representação temporária por parte de sua filha,
a princesa Isabel, tornara-se uma entronização nascida ilegítima, por ferir os prin-
cípios constitucionais. Consequência direta desse reinado irregular era o agiganta-
mento do príncipe consorte. O Conde D’Eu agia como se já fosse imperador, ao ten-
tar ocupar cargos exclusivos da monarquia legítima e coroada e, assim, desrespeitar
também as leis nacionais. Dessa forma:

Hoje, porém, o chefe de Estado não tem, senão por intervalos, o sentimento
de sua posição. Governa-o a camarilha; governa-o, acima da camarilha,
a princesa imperial; governa-o, ainda, acima desta, o príncipe consorte
(BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 330);
Bastava a posição oficial, que ocupa no exército brasileiro o marechal conde
D’Eu, para evidenciar que o govêrno constitucional, entre nós, é a mais gros-
seira mentira, que a família reinante entende a monarquia segundo as manhas
do regímen colonial (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 213);
Agora, porém, a influência ilegítima da dinastia deixou de ser uma: é
múltipla, é trina. À ação do imperador, quase extinta, revelada unicamente
nos intervalos de luz crepuscular, em que a vida intelectual e o interesse
político lhe despertam adormentados, vieram sobrepor-se a intervenção
imperativa da herdeira presuntiva e as pretensões imperatórias do príncipe
consorte (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 208).

A exploração dessa situação irregular na qual o governo central se encontrava


paradoxalmente descentralizado em virtude de existirem três autoridades “coroa-
das”, permitiu a Rui Barbosa desconstruir dois importantes pilares de sustentação
da Coroa: o Imperador e a capacidade de centralização administrativa do governo.
Essa desconstrução fundamentou-se, não somente nos argumentos já apresentados,
mas também no conjunto entimemático que eles representam. Entimemas são a ma-
neira retórica de criar argumentos, construindo-se o núcleo central da persuasão, o
logos, por meio da qual as ideias são apresentadas sob a aparente precisão lógica
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 89

de um silogismo, que é, na realidade, formal, quando falta algum dos enunciados,


ou logicamente, quando a conclusão não deriva necessariamente de uma das pre-
missas, imperfeito (ADEODATO, 2006, p. 293-315). A argumentação antigoverna-
mental de Rui Barbosa levava à formação de um silogismo retórico composto pelos
seguintes elementos: “a situação do Brasil está em desacordo com os padrões de
modernidade e de democracia vigentes nos países desenvolvidos” como primeira
premissa; “reformas políticas estruturais são hábeis para alterar sistemas anacrô-
nicos, atualizando-os” como segunda; e “O Brasil precisa de reformas políticas es-
truturais” sendo a conclusão. Apesar de aparentemente completo, já que possui os
três elementos próprios do silogismo, esse argumento era apresentado sem uma de
suas premissas, a qual era tomada como autoevidente. Transmitia-se a sensação de
completude do argumento, o que caracteriza o entimema. Isso para que a conclu-
são, parte detentora da mensagem mais interessante aos objetivos reformistas de
Rui Barbosa, fosse destacada, ao produzir, no nível material da retórica social, a
“necessidade” de uma mudança capaz de acabar com os inconvenientes do sistema
vigente. O absolutismo estava, portanto, estigmatizado. Desfeito o mito acerca das
vantagens do governo posto, foi possível atrair a atenção do público para a possibi-
lidade de uma descentralização enquanto solução para muitos problemas políticos
do Brasil, argumento posteriormente lapidado pelo autor.

2.3. A Guarda Negra e o discurso libertador como mecanismos da


Coroa para estimular a luta entre raças e enfraquecer a coesão social

Dando continuidade ao caminho traçado na direção da prescrição de sua re-


tórica material liberal, democrática e federalista, o autor forjou seu terceiro argu-
mento. Ao analisar principalmente o processo histórico de abolição da escravidão e
a criação da Guarda Negra como milícia particular da “princesa libertadora”, Rui
Barbosa objetivou destruir o apoio à Coroa conferido pelo elemento servil. Antes
da abolição, a escravidão era elemento chave da estabilidade monárquica, uma vez
que sua conservação satisfazia à aristocracia agrária, a qual mantinha seu apoio ao
trono. Depois de 13 de maio de 1888, porém, parte do apoio dos fazendeiros, que es-
tavam insatisfeitos com o não recebimento de indenizações, foi perdida. Os negros
passaram, então, a ser os devotos do Império que os libertara e avessos a quaisquer
movimentos que se opusessem à Coroa, os quais eram prontamente considerados
antiabolicionistas e reacionários. Era preciso acabar com mais esse mito social.
Por meio de um processo de resgate histórico, Rui Barbosa tentou demonstrar
que a abolição da escravatura foi sim uma conquista de toda a sociedade brasileira, e
não uma concessão magnânima da princesa Isabel, tendo, inclusive, a Coroa e o go-
verno atuado fortemente para retardar tal processo libertador. A sociedade brasileira
desde há muito tempo já demandava a libertação dos escravos e o Brasil foi o último
país escravocrata da América do Sul. O governo, porém, na tentativa de fazer perdu-
rar a escravidão por mais tempo, já que esta lhe rendia muitos lucros, optou por um
sistema de abolição “progressiva”, por meio do qual foram concedidas migalhas aos
90

negros, o que prolongava a condição servil. Quando a pressão social, especialmente


manifestada pela recusa do exército em servir de “capitão do mato” para o gover-
no, não podia mais ser contida, a monarquia capitulou e “libertou” os negros. Essa
“concessão”, então, não foi mais do que uma imposição popular. Assim:

Logo, a exoneração do ministério Cotegipe e a lei 13 de maio foram dois atos


de capitulação ante a fôrça. As fazendas ermavam-se de escravos; o movi-
mento propagava-se, em proporções de uma vasta maré de terremoto, a toda
a zona meridional do império; o exército recusara, em 25 de outubro do ano
anterior, as honras de canzoada escravista; o congresso da Associação Liber-
tadora, em S. Paulo, definira, em 25 de dezembro, a adesão da classe agrícola
à abolição, reclamando-a instantânea os republicanos, pelo dr. Campos Sales,
os liberais, pelo dr. Augusto de Queirós, o antigo caturrismo negreiro, pelo
conselheiro Moreira de Barros. A regência abriu os olhos; sentiu que o con-
sorcia do trono com a escravidão já se não podia firmar na grande lavoira;
percebeu que as classes conservadoras, não pegando em armas, para defender
o seu bôlso não as empunhariam, para cobrir a monarquia; viu, por outro lado,
a profundidade do entusiasmo desinteressado e do espírito de sacrifício nas
classes inferiores, que arriscavam a vida, sem esperança de prêmio, por um
sentimento de humanidade; e atirou-se aos braços da vitória popular, buscan-
do nela a combalida segurança do trono e a absolvição das antipatias criadas
contra êle pelo imperialismo escravista (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 296);
Todo o preço da abolição, por inestimável que seja, não vale esta abdicação
da verdade histórica e da personalidade nacional aos pés de uma divindade
áulica (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 155);
Podemos erguer a cabeça, orgulhosos de que a abolição não foi nenhuma
carta outorgada ao país, mas um decreto por êle impôsto às instituições que o
cativeiro sustentava, e que principiaram a definhar extinto o cativeiro (BAR-
BOSA, 1947, Tomo II, p. 338);
Inebriado pela intoxicação da lisonja, que lhe propinam visionários e mer-
cadores, o terceiro reinado convenceu-se de ter descoberto nesse embeleço
à pobreza de espírito da classe que saiu do cativeiro em estado de infân-
cia mental, o segredo de consolidação do trono contra o dilúvio republicano
(BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 135).

Processada a “prova histórica” de que a abolição era verdadeiramente produto


da sociedade, retirou-se o prestígio da suposta benignidade da princesa Isabel. A partir
daí, Rui Barbosa argumentou ser a criação da Guarda Negra uma tentativa de ma-
nutenção do status quo dominador da Coroa. De fato, a fidelidade exigida dos liber-
tos, com base no discurso de caridade formulado em torno da lei áurea, representava
uma forma de reescravizá-los, tornando-os massa de manobra da monarquia contra os
movimentos revolucionários, tidos como inimigos da abolição. Consequentemente, o
verdadeiro interesse do Império era estabelecer uma luta de raças no Brasil. Tal guerra
civil, não traria qualquer benefício para o País. Era ela vantajosa apenas para o trono,
que desarticulava a coesão social, enfraquecia as forças antimonárquicas e retirava
o foco da sociedade dos absurdos administrativos. Referindo-se ironicamente a essa
estratégia da Coroa, assim se manifesta Rui Barbosa:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 91

À rainha! Eis o santo da conspiração infernal contra a nossa liberdade. Eis a


chave dêste sistema, refletidamente generalizado, com o seu centro aqui na cor-
te, em casa do presidente do conselho, com a data de seu advento nas festas
natalícias do ministro, que especula com a sua fortuita intervenção na lei de 13
de maio, convertendo-a em cata de escravidão dos que a fizeram. Eis o rastilho
sinistro, que prepara a guerra civil, levando ao seio dos nossos sertões o ódio
entre as raças, sentimento funesto, que o cativeiro não gerara, e que um cálculo
de política perversa concebeu em dia de ajuntamento entre a ambição de uma
coroa e o servilismo de seus conselheiros (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 67).

Sob uma perspectiva analítica, a ironia presente nesse trecho moldava na so-
ciedade um sentimento de desprezo, repugnância e deboche para com o Império.
Usando-se do sarcasmo ínsito a essa figura, o autor associa ao grito de guerra da
Guarda Negra, “à rainha!”, as imagens de falta de compaixão, ódio e violência.
Revela-se, então, a funcionalidade da ferramenta estilística, posto que o ridículo
ressalta a incompatibilidade entre os dois termos aproximados (REBOUL, 2004,
p. 132-133), entre, subliminarmente, a conduta cruel estimulada pelo monarca e o
teórico dever deste de proteção do seu povo. Evidencia-se mais uma vez então a in-
competência administrativa, a falta de probidade e o descaso para com a população.
Demonstrada a inexistência de qualquer dever moral de fidelidade dos negros
para com a Coroa e as consequências maléficas da luta fratricida, propõe-se a união
da sociedade. Rui Barbosa demonstra que a Coroa era o inimigo comum a ambas as
raças, não devendo mais haver o ódio entre elas. O legado de violência e desrespeito
chegara ao fim com a abolição. Brancos e negros tinham que se unir, não devendo
estes passaram de perseguidos a perseguidores. Assim:

Não podemos consentir que o abolicionismo se perpetue como fermento de


ódio, eternizando os sentimentos e desforras do cativeiro. Se queremos que,
depois da redenção dos escravos, seja êle mais que uma imagem histórica,
que uma lição moral, que um aresto da eterna justiça arquivado entre as con-
quistas irrevogáveis da humanidade, se cogitamos projetá-lo além da suas
própria obras, – não lhe seremos fiéis ao gênio, à tradição e à honra, senão
atribuindo-lhe um apostolado sempre de paz e reconstrução (BARBOSA,
1947, Tomo I, p. 169);
Seja como fôr, é tempo de que as classes ameaçadas organizem a resistência, tem-
po de sistematização a ação, e armarem fôrças contra o inimigo que lhes leva o
espectro da morte ao seio de espôsas e mães (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 270).

Dessa maneira, o autor conseguiu desconstruir o mito da magnanimidade impe-


rial, ao realizar, por meio da análise histórica (dentre outros exemplos: BARBOSA,
1947, Tomo II, p. 337-341), um “avivamento” da memória do povo brasileiro sobre
o real processamento da abolição. Resgatou-se, então, a força dos brasileiros que,
enquanto sociedade, teriam sim poder para determinar o que a Coroa faria ou não,
posto que o poder instituído deles advinha. Além disso, essa mesma incursão histórica
“provou” que tanto o exército quanto parte da própria aristocracia agrária auxiliaram
na luta contra a escravidão. Dessa forma, a sociedade deveria resgatar sua unidade e
articular-se na luta antimonárquica. Estava reestabelecida a coesão social.
92

2.4. Os abusos cometidos contra o exército e


a atuação estratégica de Rui Barbosa

Como última estratégia desconstrutiva do discurso de controle formulado pelo


Império tem-se o desbaratamento do apoio dos militares à monarquia. A revolução
federalista precisava, ao assumir o poder, de uma força armada, que de preferência
tivesse ampla representatividade social. Os militares, então, eram a melhor opção,
principalmente por terem membros espalhados por diversas camadas.
Nesse sentido, Rui Barbosa destaca primeiramente que a criação de milícias
pessoais tais como a Guarda Negra e a Guarda Nacional gerava prejuízos para
as forças armadas. Isso porque tais grupos eram fortalecidos em detrimento dos
militares, único defensores legítimos do País. Essa inversão de valores que impli-
cava um ostracismo dos militares configurava-se, ainda, como uma maneira de o
governo corromper pessoas. Isso porque as adesões e a fidelidade ao governo eram
compradas por meio das patentes e da pompa “militar” dos novos integrantes das
milícias, especialmente os da Guarda Nacional. Dessa maneira, enfraquecendo os
militares e, no entanto, ainda garantindo sua segurança, a Coroa evitava um maior
reconhecimento social do exército e da marinha. Assim, interrompia-se o processo
de supervalorização dos militares iniciado ao final da Guerra do Paraguai e que pu-
nha em risco a estabilidade da monarquia a qual se via ameaçada, pois o apoio dos
militares à sociedade conferia a esta maior poder para lutar contra o absolutismo.
Por meio de exemplos históricos sobre os efeitos maléficos das guardas pessoais,
Rui Barbosa argumenta:

Por toda a parte onde germinou a ideias da instituição batizada com êste nome
por Lafayette, a experiência não tardou em lhe mostrar a feição romanesca,
impolítica, suspeita ora à ordem do Estado, ora às garantias do povo. O seu
descrédito é irremediável, em todos os países que a ensaiaram (BARBOSA,
1947, Tomo V, p. 117);
Máquina militar contra a liberdade de eleição, máquina administrativa contra
o civilismo do exército: tal se figura hoje a guarda nacional aos que acabam
de desenterrá-la. Eis as segundas tenções desse plano, cuja inépcia boas de-
cepções reserva à fútil esperteza dos seus autores. O exército fraternizou com
o povo na agitação vitoriosa contra o cativeiro dos negros. Teme-se agora a
perpetuação dos laços dessa aliança na propaganda pela liberdade dos bran-
cos (BARBOSA, 1947, Tomo V, p. 136);
Ora, as graduações de postos, na guarda nacional, entre nós, outra coisa não são
que uma subnobreza fácil e barata, um sistema de dignidades honoríficas, posto
ao alcance de todas as condições, de todas as profissões, de todas as fortunas.
[...] A guarda nacional adaptando-se a todas as classes e penetrando onde não
pode chegar o preço relativamente dispendioso da nossa aristocracia, vulgariza
esse tributo sobre a vaidade, explorando-a, porém, a benefício dos interesses
ministeriais. Os resultados dessa sedução liberalizada a todos os graus da escala
social são incalculáveis; [...] (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 88).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 93

É precisamente esse resgate de casos passados, como ocorre nesse primei-


ro excerto, que aponta diversos entimemas paradigmáticos presentes no discurso
ruiano. Entimemas paradigmáticos são silogismos retóricos, ou seja, conforme já
analisado, silogismos formal ou logicamente incompletos, nos quais a força per-
suasiva advém da narração de exemplos, tematicamente aproximados ao assunto
argumentado (ADEODATO, 2006, p. 304-305). Por meio desse recurso da tópica
é possível criar argumentos e produzir o conteúdo em si do debate, o logos. Isso
porque, a aproximação entre o paradigma brasileiro vivenciado e os exemplos histó-
ricos narrados possibilita a indução de regras gerais acerca do tema central que liga
os dois exemplos. Assim, no caso do trecho acima, se monarcas franceses e ingleses
cercavam-se de milícias pessoais sempre que estavam enfraquecidos, na tentativa
de manterem-se no poder de qualquer forma, mesmo que para isso se desrespeitas-
sem as garantias do povo, no Brasil a utilização de tais grupos não seria diferente.
Em seguida, mostra-se que a Guarda Nacional no Brasil era de fato utilizada para
enfraquecer o exército e para perseguir os opositores do governo. Conclui-se induti-
vamente, como é a estratégia nos silogismos paradigmáticos, que as Guardas Nacio-
nais em geral são instituições violentas e inadequadas a governos democráticos, por
serem instauradas somente por administrações reacionárias. Formado o conceito
negativo acerca dessa milícia, reafirmam-se as deficiências da monarquia nacional.
Concomitantemente Rui Barbosa estrutura uma argumentação de forma que
a população era sentimentalmente cativada para a causa dos militares. De fato, o
Diário de Notícia era jornal que não se limitava a descrever os fatos, mas, sobretu-
do, emitia um parecer. É justamente por meio desses “julgamentos”, que se forja o
discurso “pró-militar”, segundo o qual a ilegal invasão de competências por parte
do governo e as arbitrariedades perpetradas contra os militares são caracterizadas
como abjetas. Atrai-se o repúdio social para o lado da Coroa e une-se não somente
os militares em torno da defesa das forças armadas, mas sim a sociedade brasileira.
A humilhação e o descaso por meio dos quais os militares eram violentado são ana-
lisados em casos como o do desprezo para com a cura dos beribéricos da marinha;
o da demissão do médico Carneiro da Rocha e o da exoneração do tenente coronel
Mallet, somente porque eles discordaram do governo; e o do tenente Pedro Caroli-
no, que foi injustamente punido pelo presidente do conselho, mesmo não tendo este
autoridade para tanto. Rui Barbosa, então, denuncia:

Mas a verdade é que o espírito do ato do nobre presidente do conselho destrói


o exército pela base, anulando-o organicamente, substancialmente, irremedia-
velmente, se este incidente não encontrar uma solução jurídica, que restabele-
ça o direito nos seus eixos (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 175);
Enquanto, em todos os países, se trata de estabelecer leis, que punam, e remu-
nerem com a singeleza da razão e a impavidez do direito, entre nós, os repre-
sentantes do poder público procuram, com perigosa ignorância, ou calculada
má fé, confundir e alterar, não princípios controvertidos de direito militar,
mas leis imprescindíveis, regras indispensáveis – as molas reais desse grande
mecanismo que se chama exército (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 186);
94

Aquêle que se atrever ao arrôjo de ter uma opinião, de aspirar para a sua pátria
uma reforma, de encarnar os seus sentimentos políticos num candidato oposi-
cionista, pagará em tresdôbro a aventura nefasta. [...]. Abaixe-se, e estará se-
guro. Avilte-se, e será recompensado. Prostitua-se, e medrará. É um regímen,
em que o valor oficial dos homens cresce na razão inversa do seu valor moral
(BARBOSA, 1947, Tomo IV, p. 233).

Ainda na seara das perseguições contra os militares, o autor trata da campa-


nha do exército com destino ao centro do País. Tal empreitada era desprovida de
sentido, posto não haver perigo real que ameaçasse as fronteiras do centro-oeste.
Como agravante tinha-se que a viagem era bastante desgastante e os militares eram
obrigados a passar dias no local de “desterro” sem, porém, terem alguma missão
específica. O Império passou, então, a atacar não somente o brio dos militares, mas
também sua saúde física e mental, dissipando as tropas pelos lugares mais longín-
quos do Brasil. Sobre a expedição ao Mato Grosso, estopim do apoio militar ao
movimento republicano, Rui Barbosa analisa:

Descubramos, com relação ao exército, sobretudo, como, sob o pretexto de


combater imaginária indisciplina, tratam de aniquilá-lo, e dissolvê-lo. É mui-
to aceitável, entretanto, a hipótese de haver o governo aproveitado capcio-
samente a ocasião, que se lhe deparava, para exilar aquêles, que, na corte,
constrangiam de certo modo os desmandos e abusos que a degradação dos
nossos costumes introduziu na administração do país (BARBOSA, 1947,
Tomo VII, p. 90);
Podemos, sem exagêro, afirmar que mesmo durante a campanha do Paraguai,
jamais oficiais e praças do nosso exército foram tão maltratados, como nessa
viagem de 27 dias de Corumbá à corte; acrescendo, para maior responsabi-
lidade do governo, que o general em chefe e a maior parte da oficialidade
marchavam com famílias e crianças (BARBOSA, 1947, Tomo VII, p. 198).

Percebe-se, então, que em todos os pareceres acerca das questões militares o


Império é caracterizado como o grande violador das leis, ao se sobrepor à autori-
dade e à hierarquia de instituições seculares e legitimadas pelas normas militares.
Objetivou-se, portanto, incitar diretamente as forças armadas contra a monarquia.
Se anteriormente forjou-se a indignação dos militares e da sociedade contra o
Império, agora se buscava produzir uma revolta de fato. Para tanto, a conduta dos
militares é associada à legalidade e ao cumprimento do dever, sendo reiterada-
mente destacado que eles suportavam todas as arbitrariedades do governo da for-
ma mais legítima e pacífica possível. Isso, porém, seria uma conduta por demais
correta diante da situação atípica sob a qual viviam os militares. Ora, agindo o
governo contra a lei, desapareceria para as forças armadas o dever de obediência
e surgia, isto sim, a obrigação de proteger a pátria contra o inimigo, que tentava
subjugar o poder do povo. Esse era o novo dever a ser cumprido pelos militares,
somente assim permaneceriam eles vinculados a seus princípios e manteriam sua
essência de lealdade à pátria. Assim:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 95

Tendências disciplinares nunca as teve, em parte nenhuma, em grau mais alto do


que entre nós a classe militar. A prova está na cordura, com que se vai resignando
aos golpes do capricho ministerial (BARBOSA, 1947, Tomo VIII, p. 36);
E como tem resistido, até hoje, o exército a êsses desmandos, a essas preva-
ricações, a essas crueldades? Simplesmente requerendo o cumprimento da
lei, e deixando aos órgãos da opinião a discussão dos seus direitos. [...] Com
o instinto dessa missão nacional, com a consciência dêste papel patriótico, o
exército não pode, e certamente não há-se subscrever a sua própria extinção,
e muito menos o aniquilamento pela desonra, pela calúnia, pela ilegalidade,
pela proscrição, essa espécie de morte moral, a que parece quererem condená-
-lo, antes de dissolvê-lo (BARBOSA, 1947, Tomo VIII, p. 85-86).

Nesse primeiro trecho citado é possível perceber outro silogismo retórico (en-
timema), que irá forjar o conteúdo do debate. Como típico silogismo incompleto
(ADEODATO, 2006, p. 293-315), esse argumento é desprovido de sua primeira
premissa, qual seja, “o agir com cordura é prova da tendência disciplinar de uma
classe”. Por meio dessa omissão e da apresentação inicial da conclusão, Rui Barbosa
reforça a ideia de que o exército era instituição nobre e honrada, vítima das diversas
injustiças de um governo arbitrário. A consideração da premissa como autoexplica-
tiva estimula, portanto, o imaginário dos leitores, especialmente dos militares, que,
indignados, percebiam a “real necessidade” de se rebelarem. Omitindo-se a senten-
ça desnecessária para a compreensão da mensagem, o sentido não é prejudicado,
mas, ao contrário, favorecido. Isso porque essa esfera de silêncio não é percebida
pelo auditório (o conteúdo “evidente” é tido também por eles como prescindível) e
é muito funcional, uma vez que elimina o inconveniente de tornar explícitas todas
as construções linguísticas (SOBOTA, 1996, p. 251-273). Tal inconveniente carac-
teriza-se no fato de tornar o texto mais extenso e, portanto, mais monótono. Além
disso, a explicitação da primeira premissa evidenciaria a fragilidade do argumento,
posto que a cordura não é necessariamente a “prova”, pelo menos não a única, de
um comportamento obediente, disciplinado.
Desarticulado o apoio dos militares à monarquia, Rui Barbosa conseguiu aba-
lar o último pilar de sustentação da Coroa e, além disso, estabelecer uma força
armada para a revolução federalista. Estava, portanto, encerrada a estratégia deses-
truturante. Acabadas as crenças na importância do poder central, na necessidade
de fidelidade dos libertos para com o trono e na naturalidade das arbitrariedades
cometidas contra os militares, faltava somente prescrever a solução para a carência
nacional de legalidade, legitimidade e liberdade.

3. O federalismo de Rui Barbosa enquanto solução


liberal e democrática para o anacronismo do Império

A inserção do federalismo no Brasil não se processaria simplesmente com a


elaboração de um discurso antimonarquista, que tão somente unisse a sociedade
em torno de qualquer opção que depusesse o Império. Era preciso canalizar todos
os interesses para a teoria federalista e mostrar a federação das províncias como
96

a melhor solução para os problemas nacionais. É o momento construtivo da


argumentação, no qual o autor preenche as lacunas do discurso monárquico e forja a
constituição do novo Brasil. Nesse sentido, Rui Barbosa tinha o desafio de aumentar
a aceitação e a popularidade do partido republicano, único disposto a realmente
inserir a federação, e de criar uma teria federalista para o Brasil, demonstrando ao
povo as vantagens que tal forma de Estado traz consigo.
Desse modo, a argumentação pró-federalista inicia-se com a demonstração
de que a federação era um sistema adaptável a toda e qualquer forma de governo.
Embasado na defesa intransigente dos direitos individuais e da democracia, o autor
demonstra que o respeito à Constituição e aos direitos civis são o pressuposto funda-
mental de qualquer Estado, independentemente da forma de governo vigente. Ora a
federação garantia ao povo, por meio da repartição constitucional de competências,
justamente uma maior vinculação do governo à lei máxima e, consequentemente,
mais liberdade. Seria ela, então, plenamente adaptável ao regime monarquista bra-
sileiro e caracterizava-se como o mecanismo hábil para atualizar nosso governo e
permitir a sadia perpetuação dele e sua inserção na era moderna e liberal. A monar-
quia federativa era, portanto, a única forma de arrefecer as correntes dissidentes.
Essa revisão da estrutura do Estado brasileiro foi caracterizada como uma “re-
publicanização” da monarquia. Isso porque, a federação implicaria uma divisão de
competências. À Coroa caberia tão somente reinar, enquanto ao parlamento, com-
posto por representantes dos estados-membros e do povo, caberia o governo. Por
isso, a referência à república norte-americana que funcionava nesses moldes e que
se assemelhava, quanto ao respeito às leis e aos direitos, à monarquia parlamentar
inglesa. Por outro lado, a campanha republicana, e dentro dela a federalista, foi
apresentada como batalha de princípios e de ideais realizada por meio da oratória e
da tentativa de convencimento do parlamento, ou seja, era um luta pacífica, legíti-
ma, que não procurava desestabilizar o País, mas sim melhorá-lo de forma tranquila,
sem revoltas armadas. Começa-se a preparar a população brasileira para aceitação
do partido republicano ao fazer com que as propostas reformistas desse grupo fos-
sem observadas pela sociedade. Dessa forma:

Sob o domínio dessa persuasão profunda, não tenho cessas de mostrar,


no Diário de Notícias, a necessidade suprema de federação, como a única
solução possível dos problemas na aliança entre a monarquia e a liberdade
(BARBOSA, 1947, Tomo III, p. 231);
Os que se escandalizam com o caráter democrático, que pretendemos imprimir
à monarquia, esquecem-se de que, no mundo contemporâneo, a distinção entre
monarquia e república é apenas acidental (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 304);
Para neutralizar a fôrça dêsse inimigo impalpável, só haveria entre nós um
meio: americanizar a monarquia, isto é, republicanizá-la. [...] Monarquias re-
publicanas são as onde o monarca, símbolo eminente da unidade da nação e
da dignidade do Estado, aceita lealmente o papel constitucional, deixando
ao govêrno do povo pelos órgãos parlamentares a mais absoluta plenitude
(BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 215-216);
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 97

Ao nosso ver, pois, pleníssima razão têm os republicanos em confiar no deba-


te como no seu verdadeiro campo de luta contra o imperialismo (BARBOSA,
1947, Tomo II, p.288).

Analiticamente destaca-se a terceira citação, na qual a estratégia estilística de


Rui Barbosa funciona. Na tentativa de retirar o peso negativo da palavra “repúbli-
ca”, que na crença popular era pejorativamente associada a revolução, desordem e
instabilidade, o autor cria uma imprevisível fusão de imagens. É a “republicaniza-
ção da monarquia” ou a “monarquia republicana”. Imprevisível porque é promovida
uma junção entre termos os quais, apesar de pertencerem ao mesmo domínio de
conhecimento – a política – inseriam-se em âmbitos conceituais distintos. É justa-
mente aí que se configura a força expressiva da metáfora, que, por gerar uma econo-
mia lexical dotada de impactante associação de termos “inassociáveis”, aumenta o
potencial persuasivo da mensagem a ela subjacente, qual seja: a república é dotada
de qualidades democratizantes, modernizantes e liberalizantes. Consequentemente,
Rui Barbosa desarticula a repulsa da população para com o partido “revolucionário”
que surgia, neutralizando o sentido da palavra “república”. É o controle dos senti-
mentos do público – pathos – por meio de uma estratégia retórica bem planejada.
Depois de retirar o caráter pejorativo do termo “república”, ao mostrar serem
as mudanças sinônimo de atualização, de adequação, e não de revolta, Rui Barbosa
passa a destacar a importância do partido republicano para o País. Em primeiro
lugar por ter ele elaborado um discurso crítico e inovador. O debate proposto pe-
los republicanos arejava a política nacional de então. Isso porque os dois partidos
até então existentes, conservador e liberal, eram incapazes de realizar as mudanças
democráticas que se faziam necessárias. De fato, ambos tiveram a oportunidade
de concretizar reformas liberais, mas resistiram fortemente até quando, enfim, elas
ocorreram por meio da pressão popular. Assim ocorrera com os conservadores,
quando do gabinete 10 de março, momento em que a abolição era a questão de
ordem, mas foi tratada em segundo plano. Assim estava acontecendo em 1889 com
o gabinete liberal de 07 de junho, o qual poderia ter instaurado a federalização das
províncias, mas optou por não realizá-la. Essa negação do federalismo por parte
do partido liberal passou a ser o ponto mais atacado por Rui Barbosa no intuito
de mostrar à população que os partidos existentes no Brasil estavam todos falidos,
vendidos aos interesses monárquicos.
De fato, desde há muito tempo os liberais defendiam em seus programas re-
formas democratizantes e liberalistas. Ao assumir o poder, porém, o partido negara
a concretização de tais reformas, esquecendo-se completamente de seus princípios
numa tentativa vã de manter-se no poder em detrimento do desenvolvimento políti-
co do Brasil. Essa situação incongruente dos liberais agravava-se ainda mais quan-
do se observava que o próprio monarca havia consentido com a federação. Ao criar
o novo gabinete, dom Pedro II chamou o Sr. Saraiva, representante mais conserva-
dor entre os liberais, mas que aceitava a federação, para conversar e o autorizou a
realizar a transformação do Brasil numa monarquia federalista. Entretanto, mesmo
dotado de carta branca do poder moderador, os liberais mostraram-se mais retrógra-
dos que a Coroa.
98

Tentando defender seu retrocesso, os liberais alegaram que a sociedade bra-


sileira ainda não estaria madura politicamente para a pronta aceitação de estrutura
tão inovadora. Foi proposta a “federalização progressiva”, à moda da abolição. É
aí que Rui Barbosa passa a aproveitar estrategicamente essa brecha aberta pelos
“falsos liberais”. Isso se dá novamente por meio de um entimema paradigmático,
mas desta vez o paradigma é oriundo da própria história nacional. Ora, o Brasil já
havia experimentado uma situação como essa de “reforma progressiva”. Tal modelo
visava a não concretizar as reformas, prolongando o status quo conservador pelo
máximo de tempo possível. Realizando-se um processo indutivo a partir do micro
exemplo histórico, chega-se à conclusão geral de que reformas progressivas são,
como regra artifícios mantenedores do status quo. Dessa maneira, a federalização
progressiva seria uma forma de transformar uma proposta democrática e liberal em
elemento retrógrado e em ferramenta para a manutenção da monarquia. Além disso,
Rui Barbosa argumenta que a inserção progressiva da federação em virtude da falta
de maturidade da sociedade era argumento absurdo. Isso porque, o desenvolvimento
político de uma nação e o costume com a liberdade somente poderiam ser adquiri-
dos com o gozo pleno da liberdade, e não com sua concessão homeopática. Isso es-
pecialmente considerando-se o fato de que, apesar de ainda imatura politicamente,
a nação brasileira desejava a federação.
Consequentemente, diante das falhas cometidas por ambos os partidos mais
destacados na cena política nacional, a adesão paulatina dos grandes cafeicultores
e da aristocracia conservadora aos ideais republicanos foi caracterizada como uma
troca em nome da inabalável filiação a princípios morais “verdadeiramente” libe-
rais, e não como jogo político para a perpetuação do poder político dessas classes.
Com relação a todos esses argumentos, assim escreve Rui:

Se a abolição, pois, fora facílima ao gabinete 10 de março, a federação ain-


da mias plano encontrava o terreno. Esta achava o partido liberal de braços
abertos e a nação disposta a recebê-la; ao passo que aquela revoltava contra
si elementos poderosos na parcialidade dominante e no seio da grande pro-
priedade. Todavia, o ministério 7 de junho, cujos amigos tanto desdenharam
o papel do gabinete 10 de março na reforma abolicionista, coloca-se ainda
abaixo da fraqueza dêsse, abrindo mão voluntàriamente da oportunidade in-
comparável, que se lhe deparou, de realizar a grande aspiração nacional com
o assentimento prèviamente expresso do Imperador. [...] É, portanto, s. exa.
O criador exclusivo e espontâneo da situação contrafeita, humilhante e dolo-
rosa, em que se acha o partido liberal, aspirando ardentemente à federação e
representado, no governo, por um ministério que a não admite. S. exa. Cedeu
a El-rei o que êle lhe não pedia, supondo que lhe poderia dispor da cons-
ciência de seus correligionários para ratificarem uma capitulação oferecida
(BARBOSA, 1947, Tomo III, p. 310 e 312);
Se quiserdes o mais chapado conservador, é agarrardes qualquer liberal no
poder, disse um condensador sutil da nossa experiência política. Nunca se ve-
rificou tão insignemente a veracidade dêste axioma, como nos tempos atuais
(BARBOSA, 1947, Tomo IV, p. 251);
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 99

Tudo tem sido resistência; e de tal resistência, pela reação das aspirações
comprimidas, nasceu a abolição, nasceu a preamar republicana, a revolução
que cresce para nós. Como falar em moderação, em prudência gradativa, se
a urgência, pelo contrário, está em acelerar, em abrir de par em par as janelas
ao ar livre, em franquear o mais amplo escoadoiro às águas acumuladas na
represa? (BARBOSA, 1947, Tomo II, p. 223);
O preceito que subordina a adoção das reformas à preexistência de costumes,
que só elas poderiam criar, foi sempre, desde que o mundo é mundo, a cavi-
lação com que todos os retrógrados se opuseram a tôda as conquistas do pro-
gresso governativo. A prevalecer essa velha e capciosa coarctada, as nações
seriam a mais lenta espécie de tardígrados. Não teríamos saído, sequer, do
regímen colonial; porque nêle não adquiríramos as disposições morais, que
formam os povos para o govêrno representativo. [...] Desenganemo-nos de
que não há outro meio de praticar bem as instituições livres, senão adestrar-se
nelas, praticando-as mal (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 191);
As revelações sucessivas dos partidos atirados à oposição pelo arbítrio impe-
rial, a absorção progressiva da autoridade ministerial no elemento pessoal do
poder moderador, a ingerência inconstitucional da coroa em tôdas as esferas
da vida governativa, a corrupção exercida pelo trono sobre o caráter dos es-
tadistas, a tenacidade singular das alianças, a ação contínua dos déficits, que
enfraquecem a confiança popular na capacidade reparadora das instituições,
operavam, havia longo tempo, um trabalho de demolição revolucionária nos
sentimentos populares. [...] Considerar, porém, desnaturada, inquinada, poluí-
da a opinião republicana, só porque recebeu no seio as águas desse confluente
útil, é risível. Não descobrindo outra mácula que irrogar a essa agitação, seus
inimigos o que fazem, é confessar a própria impotência e a seriedade daquele
movimento. Pois há partido algum nesse mundo, haveria aí alguma ideias na
mais pura região das ideias, que, em sacrifício a frases como essas, recusasse
alianças ativas, deliberadas e tenazes? [...] Por terem possuído escravos, os fa-
zendeiros não ficaram sendo réus. Seu êrro já não pode existir, nem sequer na
memória dos abolicionistas (BARBOSA, 1947, Tomo I, p. 136, 139 e 141).

Abertos os caminhos para a maior aceitação da doutrina federalista, Rui Bar-


bosa passa a forjar as bases teóricas de seu federalismo. Nesse momento, à teoria da
federação são associadas todas as vantagens que o regime decrépito da monarquia
não mais proporciona. A descentralização administrativa seria a primeira e prin-
cipal vantagem da federação, pois implicaria a repartição de poder e o respeito à
constituição, norma indicadora da competência de cada ente. O governo das leis,
democrático e liberal surgiria finalmente no Brasil. Desconstrói-se, então, o mito
de que a descentralização administrativa, elemento do federalismo, provocaria o
esfacelamento da unidade nacional, especialmente no caso do Brasil, país conti-
nental. Argumenta-se, então, que ela diferiria essencialmente de descentralização
política, sendo esta sim o fator desagregador da nação. De fato, a descentralização
da administração de um país pressuporia a sua centralização política, que significa
estarem os entes constitutivos da federação unidos a um objetivo comum, sendo re-
presentados por um ente comum, apesar de terem seus interesses locais específicos.
100

Essa descentralização produziria uma cascata de poder, que fluiria do poder central
da união, para os poderes descentralizados das províncias. É o modelo federalista
centrífugo, por meio do qual as competências da União são claramente fixadas na
constituição e os Estados membros seriam dotados de competência material rema-
nescente (BARBOSA, 1947, Tomo VIII, p. 193-198). Quanto à descentralização:

Objeções congruentes contra ela, não as vemos senão entre os inimigos da des-
centralização administrativa; porque a federação é a mais ampla fórmula desta.
[...] A centralização política é tão essencial nas repúblicas, quanto nas monar-
quias; e precisamente por não contrariá-la, é que a forma federativa se acomoda
indiferentemente a umas e a outras. Erra parlamente o pressuposto, com que en-
tre nós se tem argumentado, de que centralização política e regímen federal são
têrmos incompossíveis. Tal antinomia não existe. Pelo contrário: tão adaptáveis
são entre si essas duas ideias, que a mais perfeita de todas as federações antigas
e modernas, a mais sólida, a mais livre e a mais forte, os Estados Unidos, é, ao
mesmo tempo, o tipo de centralização política levada ao seu mais alto grau de
intensidade (BARBOSA, 1947, Tomo VI, p. 178).

Como consequência direta dessa descentralização administrativa tem-se o


fortalecimento do poder executivo provincial, e, portanto, a realização do antigo
anseio social por liberdade econômica e administrativa, gerindo-se as localidades
conforme suas necessidades. Por conseguinte, haveria um desenvolvimento do po-
der legislativo provincial tanto local quanto, sobretudo, federal. O fortalecimento
do senado, como instituição representativa dos interesses provinciais, e a eleição
própria dos governos provinciais, sem que houvesse qualquer indicação ou inter-
ferência do poder central eram inovações trazidas necessariamente pela federação.
Um senado forte e não vitalício, com mandatos de nove anos para que a rotativi-
dade política mantivesse a representação sempre atual e consentânea com as reais
necessidades provinciais, seria indispensável. Somente dessa forma, segundo Rui
Barbosa, a União poderia compreender melhor as necessidades de cada região e for-
mular uma política de governo abrangente, mas não genérica, ou seja, sem ignorar
os problemas típicos das regiões:

Mas à federação corresponde, como complemento necessário, a temporali-


dade do senado, medida de simples obtenção, não lhe resistindo o trono, se
o projeto respeitar a situação dos senadores atuais [...] (BARBOSA, 1947,
Tomo II, p. 300);
A federação exclui radicalmente a interferência dos poderes centrais na nome-
ação do govêrno provincial. Não pode, portanto, abranger sob a sua rubrica um
sistema, em que a eleição dos governadores de província está, pela escolha do
chefe de Estado sôbre um uma lista eletiva, subordinada, em última análise,
à autoridade imperial. [...] Não há, pois, autonomia, a não ser na federação,
como não há federação, senão no regímen em que os Estados federais nomeiem
diretamente os seus administradores, sem a menor ingerência da autoridade na-
cional. [...] Pela eletividade pura e simples dos presidentes, o que se pretende
é fazer das províncias árbitras supremas de sues interêsses, emancipando-se da
tutela da monarquia (BARBOSA, 1947, Tomo III, p. 329 e 332);
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 101

Mas, na escala de dificuldade, o govêrno da província está para com o do país


na mesma razão em que o da municipalidade se acha para com o da província.
Se o mais contém o menos, se o composto pressupõe o simples, uma cons-
tituição política, que confere à nação o govêrno nacional, não pode recusar
à província o governo provincial. Ora, a federação é isto, meramente isto: o
govêrno da província pela província, num país onde a legalidade proclama o
govêrno da nação pela nação (BARBOSA, 1947, Tomo VII, p. 53).

Por fim, sendo o Brasil um país de grandes proporções geográficas, mesmo


dentro das províncias existiriam necessidades específicas que o governo provincial
não poderia satisfazer adequadamente. Rui Barbosa propõe, então, a reorganização
municipal. O arranjo estrutural dos municípios ainda seria competência conferida
às Assembleias Provinciais, uma vez que eles não configurariam entes federativos,
mas a eles seria concedida autonomia suficiente para sua gerência ser realizada
conforme as necessidades locais. Essa inovação do federalismo ruiano teria como
base teórica o self government inglês, sistema segundo a qual os municípios têm
plena liberdade administrativa e independência perante o governo provincial. A or-
ganização provincial inglesa foi, no entanto, considerada avançada demais para a
incipiência federalista brasileira, desejando-se, porém, reproduzir parte da liberdade
por ela concedida aos municípios. Desse modo:

[…] da Inglaterra o que conviria imitar, é menos a organização do que a liber-


dade. Atingir o ideal desta, evitando os vícios orgânicos, as excentricidades
intransladáveis daquela nas Ilhas Britâncias, seria a senha de uma boa reforma
municipal. […] Enquanto a nação não estiver federalizada, a organização do
governo local será forçosamente matéria da competência parlamentar. À le-
gislatura nacional incumbirá sempre, sob a monarquia unitária, a prerrogativa
de dar às localidades o seu código administrativo. Da centralidade dessa atri-
buição, exercida pelas câmaras legislativas, resultará forçosamente a subordi-
nação a um regímen geral, cuja uniformidade esmagará, escravizando-as, as
modalidades infinitas, que os interêsses municipais naturalmente revestem na
imensidade de um país como este. […] Cada circunscrição territorial requer
moldes municipais correspondentes. Uma organização medíocre, observadas
as afinidades convenientes entre a sua forma e a comunidade local, a que tem
de servir, será sempre incomparàvelmente mais frutificativa do que o mais ex-
celente dos sistemas, se não condisser com as exigências orgânicas do núcleo
humano, a que se vai ajustar (BARBOSA, 1947, Tomo VII, p. 32, 34 e 37);
Aí tem a Gazeta como entendemos as franquezas municipais sob a federação.
Neste regímen a organização dos municípios deve competir às assembleias
provinciais, tirando-se ao parlamento nacional essa atribuição, mas vedando-
-se, ao mesmo tempo, àquelas corporações a faculdade de intervirem por leis
especiais na administração local (BARBOSA, 1947, Tomo VII, p. 28).

Ao apresentar a federação como solução para a “necessidade” de reformas


estruturais no governo brasileiro, o autor induziu ideias que desembocam na regra
geral de que o federalismo sintetizava todas as respostas para os problemas nacionais.
102

É a conjetura retórica, que, enquanto arte de criar hipóteses (EMANUELE; PLEBE,


1992; ADEODATO, 2005, p. 235-262), foi utilizada por Rui Barbosa como
ferramenta construtiva, criadora de uma argumentação baseada em suposições, mas
estrategicamente apresentada como produto de raciocínio demonstrativo. Assim, ao
derivar causas para os atos da Coroa, Rui Barbosa apresenta a descentralização
administrativa do federalismo como único meio capaz de eliminar essas “causas” da
disfunção do sistema político nacional. Entretanto, analisando as insuficiências da
monarquia apontadas pelo autor, a instauração de um sistema monárquico realmente
constitucional também seria uma solução para os problemas nacionais, conforme
pregaram Frei Caneca e outros revolucionários da Confederação do Equador. Para
tanto, o poder moderador seria extinto, eliminando-se o absolutismo da Coroa, e o
parlamento assumiria a função governativa. Fortalecido o Congresso, a constituição
seria respeitada e garantir-se-ia ao povo a inviolabilidade de seus direitos, assim
como mandam os preceitos liberais. Por fim, extinguir a vitaliciedade do Senado
significaria assegurar uma melhor representação das províncias, o que lhes
permitiria pleitear junto ao governo central projetos que se adaptassem melhor
às suas necessidades regionais. Ou seja, mesmo sem a federação, extinto o poder
moderador, fortalecido o parlamento e imposto um período específico para os cargos
eleitorais, as reformas modernizadoras, liberalizantes e democratizantes ansiadas
por Rui Barbosa seriam realizadas. Seria mais outra opção para a “republicanização
da monarquia”, mas não a única.
Enfim, associando a federação ao oposto da monarquia absolutista, Rui Barbo-
sa construiu a aceitação social dos ideais federalistas e da república também já que o
federalismo no Brasil estava diretamente relacionado a esse partido. A democracia,
a vinculação à constituição e o liberalismo seriam implantados no Brasil por meio
da federação, que se caracterizava mais ou menos como uma “mão invisível da
política”, permitindo a cada ente federativo governar-se conforme seus interesses e
prioridades, mantendo-se, porém, o “mercado político” sempre estável.

4. Conclusão: a federação instituída em 1891 como


produto da adaptação retórica do discurso norte-americano,
idealizada por Rui Barbosa e capaz de atualizar o
paradigma constitucional brasileiro de maneira original

4.1. O federalismo de Rui Barbosa e sua


originalidade no âmbito nacional

Promulgada em 1891, a nova Constituição do Brasil trouxe como principal


inovação, consagrada já no artigo primeiro, a República Federativa. Juntamente
com a proibição de ingerência do governo federal nos “negócios peculiares aos
Estados” (BRASIL. Constituição, 1981, art. 6º), que seriam as antigas províncias
do período imperial, foram estritamente fixadas, nos artigos 7º, 34, 48 e 60, as
competências material e legislativa da União. Os Estados, portanto, ficaram com a
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 103

competência residual, o que significa que poderiam agir livremente, desde que não
se imiscuíssem no plexo de atribuições da União. Aos municípios, apesar de não
terem sido eles tratados como entes federativos, foi teoricamente garantida plena
autonomia administrativa no que dissesse respeito aos assuntos locais, conforme
previsão do artigo 68. Assim como o poder Executivo, os poderes Legislativo e
Judiciário foram divididos em duas esferas de competência, sendo o Supremo
Tribunal Federal, o órgão neutro responsável pelo julgamento de quaisquer disputas
entre a Federação e os Estados-membros. Por fim, a nova Constituição também
garantiu textualmente a igualdade de todos os brasileiros perante a lei e uma série
de outros direitos individuais típicos do liberalismo.
Dessa maneira, percebe-se que Rui Barbosa saiu vitorioso em sua empreitada
federalista, liberal e democrática. O autor conseguiu, pois, positivar suas convicções
pessoais não somente por ter participado da constituinte, mas também, e principal-
mente, por ter atuado publicamente durante longo período em defesa dos direitos
civis, dos ideais liberalistas e, especialmente a partir de 1880, do federalismo (FUN-
DAÇÃO CASA DE Rui Barbosa, 1999, p. 41-84). Os artigos publicados no Di-
ário de Notícias coroam seu agir estratégico, reunindo as principais críticas contra
as insuficiências do modelo político-administrativo então vigente e aglutinando a
luta federalista e antimonárquica. Rui Barbosa marca, portanto, a queda do império.
Saliente-se, porém, que aqui não se ignora o fato de o autor estar temporalmente
localizado em momento propício da história do Brasil. Conforme destacado na
literatura especializada (DOLHNIKOFF, 2005, p. 81-154 e passim), o País já
experimentava um contato com o federalismo desde 1831. A abdicação de dom
Pedro I configurava momento favorável para uma revisão do projeto político, dando-
se continuidade ao processo de construção do Estado nacional. As elites provinciais
de então, por estarem desconectadas da elite política responsável pela tomada de
decisões no Brasil, desejavam instituir mudanças na estrutura de governo, que lhes
permitissem uma maior participação no processo decisório. Essa alteração se deu
justamente pela implementação de reformas “federalizantes”. De fato, o grupo liberal,
que saiu vitorioso em 1831, conseguiu positivar certa autonomia para as províncias,
as quais passavam a ter Poder Legislativo próprio, liberdade para gestão de obras
públicas e para criação de empregos provinciais, autonomia tributária e força policial
própria (DOLHNIKOFF, 2005, p. 155-221). Eram as reformas do Ato Adicional
de 1834. Fortalecidas, por meio desse “avanço federalista”, as elites provinciais se
aproximaram do jogo político nacional, tornando-se mais influentes e mais capazes de
impor seus interesses. É exatamente essa ampliação de poderes que, ao final do século
XIX, contribuirá como apoio político fortalecedor da luta federalista.
Esse processo político do começo do século XIX, entretanto, não retira a ori-
ginalidade da campanha federalista ruiana. Primeiramente porque, dentro de uma
perspectiva filosófica retórica (ADEODATO, 2005, p. 213-240; ADEODATO,
2006, p. 277-291; ADEODATO, 2009, p. 15-45, 73-94), a construção da realidade
em que se vive se dá por meio da convenção entre os seres humanos que interagem
socialmente. Desprovidos de aparato cognitivo que os permita descrever o mundo
104

como ele é, os homens criam retoricamente o seu mundo. Entretanto, esse processo
criativo, que inclui também as modificações da “realidade” como no caso de Rui
Barbosa, não é independente da existência do outro, dos processos criativos dos de-
mais sujeitos. Há uma objetividade convencional. Dessa maneira, Rui Barbosa não
seria capaz de alterar a retórica material do Brasil do século XIX se não houvesse
um grupo organizado que também compartilhassem de suas ideias. Sem esse “eco
social”, ele não seria considerado inovador ou político sábio, mas sim louco, já que
sua percepção dos “fatos” destoaria da objetividade, representada pelas percepções
de todo o restante da sociedade.
Por outro lado, sob uma perspectiva histórica, o “avanço federalista” da dé-
cada de 30 do século XIX, implantou um federalismo incipiente, sem bases dou-
trinárias sólidas, voltado mais para o atendimento de necessidades práticas que se
faziam imediatas. De fato, concomitantemente às demandas das elites provinciais
por poder e por autonomia econômica, o Brasil passava por um processo de for-
mação do Estado independente, o que impregnava a linguagem comum da crença
na importância da unidade administrativa entre as províncias como forma de evi-
tar a fragmentação política. Dessa maneira, expressando-se de maneira acanhada e
sem qualquer base teórica federalista que se adaptasse às necessidades nacionais, o
legislador não determinou precisamente a separação de competências ente as pro-
víncias e o governo central, apesar do ensaio realizado nos artigos 10º e 11 do Ato
Adicional (BRASIL, 1834).
Foi justamente a dúvida acerca das competências que gerou a necessidade
de uma interpretação do Ato Adicional, como maneira de impedir a usurpação de
atribuições. Essa necessidade se manifestou inicialmente em 1840, dando origem
à Lei de Interpretação do Ato Adicional (Lei nº 105/1840), a qual tratou especial-
mente de questões relativas ao Poder Judiciário (BRASIL, 1840, arts. 1º - 8º). Em
1861 tentou-se reinterpretar a reforma constitucional de 1834, mas o projeto de lei
não foi adiante (DOLHNIKOFF, 2005, p. 233). O centro da polêmica girava em
torno de questões como a responsabilidade pelo pagamento de aposentadorias, o
recrutamento forçado da força policial e os impostos de exportação e de importação
(DOLHNIKOFF, 2005, p. 223-242). Era preciso, ainda, um amadurecimento teóri-
co do projeto federalista para que se definisse onde começavam e onde terminavam
as atribuições de cada governo.
Além dessas questões, a experiência federal de 1834 enfrentou outros
problemas estruturais. Na seara fiscal, as províncias passaram, diante da autonomia
tributária adquirida, a arcar sozinhas com seus gastos administrativos. Sendo,
porém, as receitas provinciais, diante da inadequada divisão de competência
tributária, inferiores às despesas, elas precisavam apelar para o governo central,
que possuía um sistema para suprir verbas, desde que necessidade de cobertura do
déficit fosse justificada pelos governos provinciais (HOLANDA, 2010, p. 169-175).
Ora, as províncias tornavam-se, apesar da legalmente consagrada independência,
financeiramente dependentes do governo central, o que enfraquecia bastante sua
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 105

autonomia e, por conseguinte, a própria estrutura “federalista”19. Por outro lado, a


figura do presidente da província também representava um entrave centralizador.
O Ato Adicional estabeleceu essa forma de poder Executivo provincial, nomeado
pelo governo central e que tinha poder de veto sobre as decisões da Assembleia
Provincial. Apesar de, conforme defendido por parte da doutrina (DOLHNIKOFF,
2005, p. 100-117), existirem vários mecanismos legais que diminuíam a margem
de discricionariedade do presidente ao tentar impor seu veto, o que asseguraria
em tese a autonomia do Poder Legislativo provincial, a simples existência desse
símbolo representava a superioridade de força que o governo central tinha sobre as
províncias, o que por si só abalava o equilíbrio entre os dois níveis administrativos.
Por fim, o Poder Judiciário continuou centralizado; o senado, composto pelos
representantes das províncias, continuou vitalício, o que engessava a sadia disputa
pelo poder entre as elites provinciais; e os municípios foram totalmente submetidos
à autoridade do governo provincial (BRASIL, Lei n. 16 de 1834, art. 10).
Como resposta a todas essas insuficiências e investigando a estrutura federa-
tiva de países como os Estado Unidos e a Argentina, Rui Barbosa apresentou uma
teoria federalista. Essa teoria inovava e aprofundava em muitos pontos a incipiente
descentralização realizada na década de 30 do século XIX. De fato, a repartição
precisa de competências entre os entes federados feita pela via constitucional foi
proposta como premissa básica para que a autonomia provincial pudesse se esta-
belecer. Sem ela não haveria efetiva descentralização administrativa que, conforme
demonstrado no capítulo 3, era a chave do sistema federativo segundo Rui Barbo-
sa. Esse equilibrado ajuste de atribuições evitaria um desajuste na seara tributária,
permitindo que os Estados-membros possuíssem receitas mais compatíveis com as
despesas que realizavam, tornando-se independentes financeiramente da União.
Além disso, Rui Barbosa lutava pela temporalidade do senado, luta essa fun-
damentada em estudos comparativos e na necessidade de melhor representação dos
Estados para que o pacto federativo fosse fortalecido. Salienta-se que os reformistas
de 1834 também tentaram acabar com a vitaliciedade do senado (DOLHNIKOFF,
2005, p. 93-100), mas não conseguiram, talvez pela falta de debate aprofundado e
fundamentado sobre o tema, talvez pela novidade, em território nacional, da ques-
tão. O fato é que um senado formado por representantes dotados de mandato tem-
porário foi primeiramente instituído em 1891, sob a clara influência de Rui Barbosa.
Além disso, o autor já defendia a autonomia administrativa dos municípios, pro-
posta ignorada pelos liberais quando da elaboração do Ato Adicional. É certo que a
constituição de 1891 não conferiu nível federativo a esses entes, o que foi realizado
somente com a Constituição de 1988. Entretanto, o artigo 68 da primeira carta mag-
na republicana passou a garantir a autonomia municipal em relação aos estados,
o que revela uma influência ruiana quando da elaboração do texto constitucional.
Além disso, por si só a defesa vanguardista da liberdade municipal mostra o caráter
inovador da teoria federalista de Rui Barbosa, que influencia a política nacional até
hoje, sendo um marco do constitucionalismo moderno.

19 Especificamente com relação à questão tributária, parte da doutrina discorda desse ponto de vista. Defende-se que a
autonomia tributária das províncias foi sim efetiva e representativa, capaz de fortalecer o sistema federal proposto pelo
Ato Adicional e de promover o desenvolvimento de algumas províncias (as mais ricas) (DOLHNIKOFF, 2005, p. 155-221).
106

Por fim, o autor sempre defendeu uma estrutura de governo que fosse atrelada
à defesa dos direitos civis, de típico viés liberalista. Admirador dos sistemas
democráticos inglês e norte-americano, Rui Barbosa tentava inserir a democracia
no Brasil, destacando os debates, como forma de esclarecimento e informação do
povo, e o respeito à Constituição e às garantias individuais como pressupostos de
modernização as nação. Esse projeto político não repudiava obviamente as elites,
tendo-as em verdade percebido como aliadas para concretização das reformas,
mas também não ignorava a importância do fortalecimento da sociedade, da
conscientização política do povo e, sobretudo, da ativa participação deste, que
conferia legitimidade ao governo. Essa consciência democrática foi mais pragmática
e fervorosamente defendida por Rui Barbosa quando da Campanha Civilista, mas
esteve sempre presente em seus escritos. Ora, a experiência descentralizadora
vivenciada no Brasil no início do século XIX não tinha nenhum compromisso
com a democratização nacional nem tampouco com uma reforma social, que
inserisse o Brasil no nível europeu de modernidade. Objetivava-se tão somente
garantir às elites provinciais participação política nas decisões do governo central e
independência administrativa para desenvolverem-se de maneira mais adequada às
suas necessidades (DOLHNIKOFF, 2005, p. 23-34). Consequentemente, também
fica clara nesse sentido a vanguarda política do federalismo de Rui Barbosa, que,
apesar de favorecido pelo curso da história nacional, foi capaz de criar elementos
novos que o diferenciavam de outras propostas descentralizadoras. Daí a importância
e a originalidade em território nacional da teoria ruiana.

4.2. A teoria federalista ruiana e sua singularidade


em relação ao paradigma norte-americano

Como arte que se ocupa com as palavras e com a persuasão (PLATON, 2004,
p. 16-17, 450 “b” e “c”), a retórica é guiada pelos critérios agonísticos da eficácia
e da funcionalidade, de modo que, ao buscar o êxito, o orador precisa propria-
mente inventar seus temas e conceitos, forjar sua argumentação, criando o conte-
údo de sua mensagem de forma atrativa, convincente e inovadora (EMANUELE;
PLEBE, 1992, p. 1-34). É o nível retórico estratégico que se relaciona da melhor
maneira com a agonística ínsita à retórica. Essa necessidade de criar uma estraté-
gia, de desenvolver uma metodologia para vencer o debate foi logo percebida por
Rui Barbosa, o que o tornou capaz de conferir visibilidade social a sua retórica
material. Essa visibilidade transformou-se em crença, a qual permitiu ao controle
público da linguagem, feito pela sociedade, filtrar a teoria federalista ruiana do
ambiente da retórica material, alçando-a à posição de linguagem de comando, isto
é, ao ao ambiente da retórica estratégica. Esse processo de filtragem se deu princi-
palmente por meio da astúcia do autor, que soube dissimular as estratégias de seu
discurso, transformando opiniões pessoais e meras “regularidades” (SOBOTA,
1996, p. 251-273) em regras, em “verdades”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 107

A metodologia de Rui Barbosa, conforme analisado nos capítulos segundo e


terceiro, foi estruturada de maneira bipartida: argumentação descronstrutiva e cons-
trutiva. Cada uma dessas estratégias foi formulada com base tanto na tópica e na
invenção propriamente dita do argumento, o que lhes conferia o conteúdo, o logos;
quanto no aperfeiçoamento da apresentação do argumento, melhorando-se a forma
para que o sentido pudesse ser mais marcantemente percebido, o que remete ao uso
das figuras de linguagem e à exploração dos elementos ethos e pathos. Foi dessa
maneira que Rui Barbosa prescreveu o futuro do País, exercendo influência até hoje
no sistema constitucional brasileiro.
Analisada a vitória persuasiva da teoria federalista de Rui Barbosa como ino-
vadora na esfera da comunicação nacional, faz-se ainda necessário analisar a ori-
ginalidade do federalismo ruiano com relação ao modelo norte-americano, que lhe
serviu de base.
Rui Barbosa utilizou a técnica retórica da iteração de conceitos, por meio da
qual a argumentação é desenvolvida a partir dos pilares de um modelo teórico para, a
seguir, derivar seus próprios temas e conceitos (EMANUELE; PLEBE, 1992, p. 39-
42). Dessa maneira, a reprodução de alguns motivos do texto é contrabalançada com
a variação livre e singular dos demais. A utilização dessa técnica gera realmente uma
maior dificuldade na obtenção da originalidade do texto, mas também traz o benefí-
cio de poder-se aproveitar do ethos da obra-paradigma, especialmente quando ela é
consagrada pela opinião pública. Rui Barbosa foi capaz de perceber essa vantagem.
Na teoria política formulada pelo autor podem ser percebidos dois elementos-
-centrais que a tornam singular com relação ao modelo federalista norte-americano.
Tais singularidades são fruto da criatividade do autor ao realizar o processo de adap-
tação retórica do modelo criado pelos founding fathers. Primeiramente tem-se a
ênfase brasileira na descentralização administrativa, enquanto os teóricos estaduni-
denses pregavam certa centralização dos Estados independentes. Por outro lado, o
federalismo brasileiro de Rui Barbosa defendia a concessão de autonomia também
à municipalidade, o que não se configura no paradigma norte-americano.
Quanto ao primeiro elemento distintivo, percebe-se que o federalismo dos
pais fundadores foi estruturado com base na necessidade de manutenção da união
entre os entes políticos formadores da Confederação dos Estados Unidos da Amé-
rica. Assim, John Jay destaca que a federalização seria a via garantidora da liber-
dade, uma vez que a criação de uma União fortaleceria os Estados independentes,
assegurando-lhes “segurança e felicidade” (HAMILTON; MADISON; JAY, 1984,
p. 103-107). Consequentemente, dever-se-ia ceder parte das competências para a
formação de outra instância, que os representaria perante os Estados estrangeiros e
os defenderia contra ameaças externas. Instância essa que, conforme reiteradamente
destacado pelos teóricos estadunidenses, não seria superior aos Estados-membros.
Esse processo de cessão de atribuições para a criação de uma União, não muito bem
recebido na retórica material dos EUA de então, foi equiparado à criação de um Es-
tado por meio do contrato social, segundo o qual o povo cede parte de seus “direitos
naturais” para poder investir a instituição política dos poderes que lhe são necessá-
rios para garantir a liberdade social (HAMILTON; MADISON; JAY, 1984, p. 103).
108

Por sua vez, a situação política brasileira demandava outras necessidades.


Construído sobre as bases absolutistas, o governo brasileiro era centralizado o
suficiente para impedir o mínimo de liberdade provincial. Esse sistema, porém,
começou a demonstrar suas insuficiências à medida que algumas províncias
começaram a se destacar econômica e politicamente das demais, passando
a demandar mais liberdade. É em torno dessa necessidade que Rui Barbosa
formula seu federalismo, pleiteando a cessão de competências para as províncias,
o que daria origem aos Estados-membros autônomos, porém ainda vinculados à
União. Dessa maneira, a proposta brasileira baseava-se nos polos “centralização-
desmembramento” versus “descentralização-unidade” (ROCHA, 1995, p. 13-33,
99-136), enquanto que a norte-americana fundava-se em binômios opostos, ou
seja, “centralização-unidade” versus “descentralização-desmembramento”. Sendo,
portanto, o problema federativo nacional exatamente o oposto do vivenciado na
América do Norte, foi necessário propor soluções diferentes de estruturação do
sistema, o que trouxe inovação ao cerne do federalismo ruiano.
Passando para a análise do segundo elemento inovador, nota-se que Rui Bar-
bosa dedica parte de sua teoria à situação dos municípios. Seguindo o raciocínio da
necessidade de conferência de autonomia para esferas mais locais do poder, em vir-
tude das inconveniências de uma política generalista em um país continental como
o Brasil, Rui Barbosa defende, baseado no modelo inglês do self government, que
também o governo municipal deveria ser dotado de atribuições específicas, sendo-
-lhe conferida certa liberdade. Isso porque, a política provincial seria ampla demais
para captar as necessidades específicas das cidades. Dessa forma, o federalismo bra-
sileiro é dotado de um caráter inexistente na teoria norte-americana, cujos teóricos
estavam preocupados em criar e fortalecer um governo central, evitando a fragmen-
tação da Confederação, e não em produzir uma cascata de poder que retirasse da
administração central sua indesejada força absoluta.
Rui Barbosa, porém, não prevê a configuração da municipalidade como ente
federativo, destacando, por isso mesmo, que a organização dos municípios caberia
ao Poder Legislativo estadual. O próprio autor considera a plena liberdade muni-
cipal inglesa como forma bastante avançada para a situação política incipiente do
Brasil. Ele, porém, já destaca a importância de se conferir aos municípios uma es-
fera de atuação livre. Destaque esse que coloca o federalismo ruiano na vanguarda
nacional e internacional, tornando-se, no Brasil, legado para as gerações futuras.
A Constituição de 1891 já declara (BRASIL, Constituição de 1891, art. 68), sob
evidente influência ruiana, a autonomia dos municípios, mas apenas em 1988 a tese
da liberdade municipal torna-se amadurecida, resultando na inserção dos municí-
pios na estrutura federativa brasileira. Esse federalismo tripartite, ensaiado na teoria
ruiana, é tido pela doutrina como um grande avanço trazido pela Constituição de 88,
colocando o Brasil na dianteira dos sistemas autonomistas (BONAVIDES, 2006, p.
344-360). A originalidade do projeto federalista ruiano é, pois, inegável e foi capaz
de oferecer frutos a outros períodos históricos.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 109

Conclui-se, então, que Rui Barbosa foi capaz de expressar-se de modo inde-
pendente e individual, variando livremente o federalismo norte-americano eleito
como modelo, mas não transformado em fonte de pura repetição acrítica. É justa-
mente essa livre interpretação do federalismo estadunidense que confere origina-
lidade ao federalismo ruiano. Rui Barbosa torna-se, portanto, marco fundamental
na história das ideias jurídico-políticas do Brasil, demonstrando que pensadores
brasileiros também foram capazes de criar e inovar sobre bases teóricas já fundadas.
110

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João M. (2006). Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática


jurídica. 2º ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva.
______ (2009). A Retórica Constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e
outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva.
______ (2005). Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3º
ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva.
AZEREDO, José C. (2008). Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Pau-
lo: Publifolha, p. 475-516.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito. Trad. João Maurício Ade-
odato. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, IBF, v. XXXIX, fascículo 163,
p. 175-184, jul./set.,1991.
BARBOSA, Rui (1947). Queda do Império. In: BRASIL. Ministério da Educação
e Saúde. Obras Completas de Rui Barbosa. v. XVI. t. I-VIII. Rio de Janeiro: Mi-
nistério da Educação e Saúde. Disponível em: <http://docvirt.com/docreader.net/do-
creader.aspx?bib=Obras RuiMP&pasta=Vol.%20XVI%20%281889%29\Tomo%20
I&pesq=queda%20do%20imp%C3%A9rio&paglog=>. Acesso em: 22 mar. 2008.
BONAVIDES, Paulo (2006). Curso de Direito Constitucional. 19 ed. atual. São
Paulo: Malheiros.
BRASIL. Constituição, 1891. Art. 6º. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao /Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 14 jan. 2012.
BRASIL. Lei n 105, de 12 de maio de 1840. Interpreta alguns artigos da Refor-
ma Constitucional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/
LIM/LIM105-1840.htm>. Acesso em: 15 jan. 2012.
BRASIL. Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834. Faz algumas alterações e adições à
Constituição Política do Império, nos termos da Lei de 12 de Outubro de 1832. Dis-
ponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LIM/LIM-16-1834.
htm>. Acesso em: 15 jan. 2012.
DOLHNIKOFF, Miriam (2005). O Pacto Imperial: origens do federalismo no Bra-
sil do século XIX. São Paulo: Globo.
EMANUELE, Pietro; PLEBE, Armando (1992). Manual de Retórica. Trad. de
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes.
FUNDAÇÃO CASA DE Rui Barbosa (1999). Rui Barbosa: cronologia da vida e
da obra. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John (1984). O Federalista.
Trad. de Heitor Almeida Herrera. Brasília: Editora da Universidade de Brasília.
HOLANDA, Sérgio B. (et al) (1967). História Geral da Civilização Brasileira: o
Brasil monárquico. t. II. v. 3. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.
______ (1972). História Geral da Civilização Brasileira: o Brasil Monárquico, do
Império à República. t. II. v. 5. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 111

HOLANDA, Sérgio Buarque de. (2010). Capítulos de história do Império. Org.:


Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras.
LYNCH, Christian. E. C. (2007). A utopia democrática: Rui Barbosa entre o Impé-
rio e a República. In: MAGALHÃES, Rejane de A.; SENNA, Marta de (Orgs.). Rui
Barbosa em perspectiva: seleção de textos fundamentais. Rio de Janeiro: Funda-
ção Casa de Rui Barbosa, p. 37-66.
NOGUEIRA, Rubem (1999). História de Rui Barbosa. 3º ed. rev. Rio de Janeiro:
Casa de Rui Barbosa.
OLIVEIRA, Manfredo A. de (2006). Reviravolta linguística-pragmática na filo-
sofia comtemporânea. 3º ed. São Paulo: Loyola.
PLATON (2004). Gorgias. In: Werke. Übersetzung und Kommentar von Joachim
Dalfen. Band VI-3. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht.
REBOUL, Olivier (2004). Introdução à Retórica. Trad. de Ivone Castilho Bene-
detti. São Paulo: Martins Fontes.
ROCHA, Leonel S. (1995). A Democracia em Rui Barbosa: o projeto político
liberal-racionalista. Rio de Janeiro: Liber Juris.
SOBOTA, Katharina (1996). Não mencione a norma, trad. de João Maurício Adeo-
dato. In: Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife. Nº 7. Recife:
Ed. UFPE, p. 251-273.
UEDING, Gert (2005). Klassische Rhetorik. 4., durchgesehene Aufl. München:
C. H. Beck.
VEIGA, Gláucio (1984). A história das ideias da Faculdade de Direito do Recife:
período Olinda. v. IV. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.
PRESSUPOSTOS RETÓRICOS DO
DIREITO À TOLERÂNCIA NO
ESTADO MULTICULTURAL

Maria Eduarda Corteletti P. Cardoso

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar qual a função do direito à
tolerância numa sociedade multicultural. Para tanto, buscou identificar, por
meio da filosofia retórica realista, a correlação entre a perspectiva ontológica
e os ideais de individualismo e uniformização, consolidados pelo capitalismo
contemporâneo, no intuito de notar a importância do multiculturalismo para
consolidação de um espaço de respeito e de coexistência na conjuntura da
diversidade ética e étnica. Pondera a relação entre o direito e a moral e a
tolerância e o reconhecimento.
Palavras-chave: Multiculturalismo. Direito à tolerância. Filosofia retórica.
Capitalismo e globalização. Política de reconhecimento.
Abstract: This paper has as a goal to analyze which is the function of the
right to tolerance in a multicultural society. For so, it seeks to identify,
through the realistic rhetorical philosophy, the correlation between the
ontological perspective and the ideals of individualism and standardization,
consolidated by contemporary capitalism, in order to notice the importance
of multiculturalism for the construction of an environment of respect and
coexistence in the conjuncture of ethic and ethnic diversity. It ponders the
relation between law and moral and tolerance and acknowledgement.
Keywords: Multiculturalism. Right to tolerance. Rhetorical philosophy.
Capitalism and globalization. Acknowledgement politics.
Sumário: Introdução: a consolidação de um panorama multiculturalista
a partir da desconstrução de um ideário ético consolidado pela perspectiva
ontológica. 1. Bases filosóficas da perspectiva retórica no direito. 2. A
dicotomia ontológica do estado moderno capitalista como forma de dominação
e homogeneização com exclusão dos diferentes. 3. A universalização de certos
conteúdos éticos como instrumento ideológico para legitimação de quaisquer
escolhas éticas. 4. O multiculturalismo como estratégia de preservação das
diversas formas de manifestação cultural e respeito para com o outro. 5.
Considerações finais: o direito à tolerância e o respeito para com o outro
como forma de preservação do multiculturalismo e efetivação de um estado
democrático de direito pluralista. Referências.
114

Introdução: a consolidação de um panorama


multiculturalista a partir da desconstrução de um
ideário ético consolidado pela perspectiva ontológica

O presente estudo cinge-se à discussão acerca do papel do direito à tolerância


numa sociedade multicultural. Nesse sentido, a pesquisa consistiu em uma análise
sobre aquilo que “a cultura” torna preponderante e como suas diversas formas de
manifestação são determinadas nos discursos solidificados pelos mecanismos de
poder, haja vista que as várias formas de interação, pautadas pela comunicação e
expressão humanas, têm levado a uma complexidade social sempre crescente.
O que se almeja com o desenvolvimento da pesquisa é identificar, nos moldes
de uma filosofia retórica, como a lógica ontológica opera os ideais de individualis-
mo e uniformização, abraçados pelo capitalismo, a fim de compreender a impor-
tância do multiculturalismo para o atual panorama de globalização econômica e
internacionalização jurídica. Assim, o objetivo consiste em examinar as bases do
multiculturalismo como reconhecimento, e não como uma busca pela igualdade
formal, a partir da análise do direito à tolerância.
Com isso, parte-se do pressuposto de que a riqueza da interação humana fun-
da-se justamente na valorização da diferença e não na uniformização de paradigmas
de comportamento (LOPES; CORRÊA, 2008, p. 480).
Nesse cenário, surge para a ética a necessidade do debate sobre a conjugação
entre respeito à diferença e direito à igualdade, pois o reconhecimento da diver-
sidade não rejeita a igualdade, mas sim a apatia e a negação daquele identificado
como diferente.
A tese aqui é que um processo para efetivação de um estado multicultural
emancipatório, ou seja, que não seja eurocêntrico nem tenha qualquer tradição ho-
mogênea como padrão cultural, é imprescindível para se estabelecer um espaço de
respeito e de coexistência na conjuntura da diversidade ética e étnica, intensificada
frente à onda de ataques aos grupos culturais minoritários nos tempos atuais.
A valorização da diversidade é imprescindível para um convívio plural respei-
toso, já que

As culturas são relativas; não há cultura, nem elemento dela, que tenha caráter
absoluto, que seja, em si e por si, a perfeição. Será certa e boa para a socie-
dade que a vivencia e à medida que nela se realiza e em que a exprime. [...]
As culturas são variantes, alternativas, distintos modos como o verbo “ser
homem” é conjugado na sincronia do espaço e na diacronia da história. Como
a forma verbal do indicativo não é mais certa ou errada que a do subjuntivo,
nem o nominativo mais correto que o acusativo: tudo depende da construção
da frase. O mesmo ocorre com as culturas e com seus elementos. Essa aproxi-
mação entre culturas e linguagem não é da ordem da metáfora; seria, antes, da
ordem da metonímia, pois estão em relação de todo e parte. Não são apenas as
palavras que são signos, mas, como Mauss tinha genialmente antecipado, é a
totalidade dos elementos culturais que pertencem à esfera do signo e que deve
ser estudada por uma semiótica. (MENESES, 2000, p. 249)
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 115

Nesses termos, a igualdade, na perspectiva do presente trabalho, tem como


base o respeito à história e à cultura de cada grupo, com o objetivo de “combater a
visão unilateral e a ignorância humanística” (ADEODATO, 2009, p. 75).
Interligado ao panorama traçado está o direito à tolerância, termo que histo-
ricamente já assumiu diversas concepções e que, no presente estudo, assume um
papel mais engajado, relacionando-se diretamente com o que atualmente é chamado
de política de reconhecimento.
Assim, a problematização do estudo é perquirir: seria o direito à tolerância um
pressuposto para o estado multicultural? O que significa dizer que esse pressuposto
é “retórico”? Perifericamente vão surgir outros questionamentos: é possível que
no atual contexto de globalização e, consequentemente, de amplo contato entre as
diversas culturas, a perspectiva do multiculturalismo seja de respeito entre os diver-
sos grupos sociais, possibilitando que cada um mantenha sua identidade histórica e
cultural? Caminhando no desenvolvimento da tese: como possibilitar, no panorama
mundial, a consolidação do direito à tolerância a partir de uma postura retórica sus-
tentada pela descrença na ideia de verdade absoluta e consequente impossibilidade
de definição de um conjunto de direitos humanos iguais para todos?
Para esclarecer tais apontamentos, o primeiro capítulo consolida elementos
conceituais e históricos importantes no que tange ao surgimento e evolução da retó-
rica e sua distinção da perspectiva ontológica.
No segundo capitulo, a discussão dá-se em torno da defesa ontológica do ideá-
rio capitalista e de qual sua relação com o surgimento do Estado moderno. Verifica-
-se nesse capítulo como o capitalismo e a modernidade contribuíram para a consoli-
dação de uma padronização moral e de consequentes desdém e exclusão de formas
diversas de manifestação cultural.
No capítulo subsequente é feita uma análise acerca da relação entre o direito
e a moral, no intuito de justificar como a universalização de certos conteúdos éticos
contribui para a consolidação do etnocentrismo, afastando-se determinados grupos
da produção legislativa e, assim, comprometendo a efetivação da lógica democrática.
O capítulo quarto concentra-se no estabelecimento do conceito de multicultu-
ralismo e sua diferenciação frente à teoria liberal e comunitarista. Além disso, a par-
tir da análise da necessidade do multiculturalismo para preservação do pluralismo
cultural, verifica-se sua importância na suplantação da perspectiva ontológica para
fins de aproximação da política de reconhecimento.
O tópico conclusivo se destina a consolidar as premissas para efetivação de
um Estado multicultural, o que será feito a partir de uma análise do direito, da tole-
rância e do reconhecimento.
116

1. Bases filosóficas da perspectiva retórica no Direito

Cumpre esclarecer, como ponto de partida para o melhor desenvolvimento


do tema, os traços característicos básicos da retórica na forma compreendida pelo
presente estudo.
A despeito dos inúmeros conceitos e concepções atribuídas ao termo, a re-
tórica adveio dos sofistas, que foram os primeiros a versar acerca dos lugares do
discurso e da forma como conduzir as paixões, emoções e sentimentos por meio do
uso persuasivo da linguagem, inclinando-se para o estudo da oratória (CASTRO,
2010, p. 179). Com isso, pode-se afirmar que o intuito da retórica nesse período era
o convencimento pelo discurso, fato este influenciado pela efervescência da demo-
cracia na época.
Ressalta-se que, apesar de alguns autores associarem o termo sofista com um
argumentador ardiloso despreocupado com a verdade, nos séculos V e IV a. C. tanto
o termo sophistês quanto os termos philosophia e rhetorikê não possuíam conceitos
precisos, o que somente veio a ser modificado por meio das definições de Aristóteles
(MCCOY, 2010, p. 15 e 19).
Os sofistas utilizavam como método o convencimento mediante a exposição
de duas teses contrárias, técnica esta criticada por Sócrates e Platão, na medida em
que Sócrates alvitrava um método composto por questões e respostas a partir do
qual Platão desenvolveu a dialética (CASTRO, 2010, p. 179).
Nesse desiderato, Platão procura delimitar que retórica e dialética são coisas
diversas ao questionar, em sua obra República (534 b), “Acaso também chamas
dialéctico aquele que apreende a essência de cada coisa? E aquele que não a possui,
negarás que quanto menos for capaz de prestar contas dela a si mesmo ou aos ou-
tros, tanto menos terá o entendimento dessa coisa?”. A respeito, elucida Zoraida M.
Lopes Feitosa (1997, p. 6), ao comentar sobre a obra de Platão, que:

O diálogo não deve ser tomado como veneno, mas como antídoto para pro-
porcionar um bem-estar aos homens. Por isso dialética e retórica não se con-
fundem, ou ao menos não devem se confundir. Dialética está em consonância
estreita a se integrar à ideia do Bem, enquanto que a retórica, ao contrário,
não tem compromisso com a ideia de justiça, de bem ou outros valores que
são necessários para a formação do bom cidadão, e, quem a pratica de forma
abusiva “ainda não se elevou ao verdadeiro conhecimento”.

Aristóteles manifesta a mesma preocupação que Platão, ao iniciar sua obra


Retórica (2007, p. 19) afirmando que “Retórica é a contrapartida da Dialética”.
Destarte, esclarece Aristóteles que a retórica e a dialética se aproximam por se-
rem ambas úteis e universais, além de terem como função discernir as formas de
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 117

persuasão aparente e real e silogismo aparente e real, na retórica e na dialética, res-


pectivamente. Contudo, ambas distanciam-se pois

O que torna um homem “sofista” não é a sua faculdade, mas seu propósito
moral. Entretanto, na retórica, o termo “retórico” pode descrever ou o saber
da arte do orador ou seu propósito moral. Na dialética é diferente. Um homem
é “sofista” porque tem determinado tipo de propósito moral; com relação ao
“dialético”, não é o seu propósito moral, mas sua faculdade. (ARISTÓTE-
LES, 2007, p. 22 e 23)

Nesse sentido, segundo Aristóteles, a retórica e a dialética materializam-se em


campos distintos, quais sejam, o argumentativo e o demonstrativo (ALEXANDRE
JUNIOR, 2005, p. 28).
Observa-se que, enquanto para Platão a própria retórica possui comprometi-
mento e responsabilidade com a ética, Aristóteles sustenta a neutralidade da retórica
e a “faz depender do orador, não do sistema retórico, o uso responsável ou não das
técnicas de persuasão” (ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 24). Nessa perspectiva,
segue o filósofo definindo a Retórica “como a faculdade de observar os meios de
persuasão disponíveis em qualquer caso dado” (ARISTÓTELES, 2007, p. 23).
Visto isso, cumpre salientar que a retórica transformou-se de arte da comuni-
cação persuasiva para ciência hermenêutica da interpretação, na passagem da antiga
para a nova retórica (ALEXANDRE JUNIOR, 2005, p. 10).
Ultrapassada a breve análise das acepções do termo retórica na Antiguidade,
cumpre tecer as bases para a compreensão da retórica da forma pertinente para o
presente estudo.
Para tanto, oportuno destacar a observância de duas linhas de pensamento
distintas, quais sejam, a que defende a existência de valores em si mesmos, in-
dependentemente da existência dos seres humanos, de que é exemplo a filosofia
de Nicolai Hartmann, e, em posição oposta, a linha de que tudo é “incognoscível,
intransmissível e incompreensível” (ADEODATO, 2012, p. 408). Esta perspectiva
é a retórica, enquanto aquela é a chamada ontológica. Quanto a tanto, assevera Ade-
odato (2012, p. 408) que,

pode-se traçar uma linha em cujas extremidades estariam os dois conceitos


aproximativos para que aqui se quer chamar atenção: em uma, por exemplo,
a filosofia de Nicolai Hartmann, para quem os valores existem em si mesmos,
são “descobertos”, objetivos, independem até da existência dos seres humanos;
na outra, é paradigmática a figura de Gorgias, para quem tudo é incognoscível,
intransmissível e incompreensível, segundo seu famoso adagio. Poder-se-ia
usar como exemplos também as figuras de Kant (em seu lado “pleno”) versus
Nietzsche (em todos os seus lados). A primeira tem-se chamado aqui a linha
ontológica, a segunda, a linha retórica.
118

Nesse sentido, enquanto na perspectiva ontológica a linguagem é um dos


pontos em comum da realidade, identificada como um instrumento para um fim,
qual seja, a verdade, para a retórica a linguagem é o máximo de acordo possível
(ADEODATO, 2009, p. 16-17).
Portanto, o postulado retórico cinge-se na ideia de que não há uma relação
direta de compatibilização entre sujeito e objeto, não sendo possível, com isso, a
imposição de uma ideia de verdade:

de um ponto de vista gnoseológico, o postulado de que um conhecimento


preciso do mundo, uma relação inteiramente adequada entre a mente de cada
ser humano e os objetos em torno não é possível, o que relativiza de modo
intransponível a percepção dos mesmos acontecimentos (ADEODATO,
2012, p. 407).

Cumpre ainda destacar que, para a perspectiva retórica, o homem é visto como
um ser “pobre ou carente”, enquanto para a ontologia é identificado como “rico ou
pleno” (ADEODATO, 2007, p. 309), portanto,

Enquanto pleno, o ser humano possui o critério e é capaz de chegar à verdade,


servindo-lhe a língua apenas como instrumento e a retórica como simples
ornamento, pelos quais aquele que fala pode influir no meio de forma mais
ou menos eficaz; como ser deficiente ou carente, o ser humano é incapaz de
perceber quaisquer verdades a respeito do mundo, independentemente de um
contexto linguístico, única realidade artificial com que é capaz de lidar (ADE-
ODATO, 2009, p. 17).

Logo, observa-se que a retórica se distancia da ideia de verdade, atribuindo


à linguagem o patamar de único ponto comum de acordo temporário admissível, o
que traz consequências para o campo da ética.
Estabelecidas tais premissas, ressalta-se que a análise a ser feita consiste na
discussão acerca da possibilidade de se estabelecer – seja por maioria ou não – uma
cultura como aquela correta ou central, a partir do debate no campo ético quanto à
existência ou não de uma ideia de verdade, encarada como o correto ou o justo, por
meio da contraposição entre as perspectivas ontológicas e retóricas.

2. A dicotomia ontológica do estado moderno capitalista


como forma de dominação e homogeneização
com exclusão dos diferentes

2.1. A negação, desumanização e uniformização do ideário capitalista

O presente capítulo tem como objetivo estabelecer o paralelo entre a perspec-


tiva ontológica das visões majoritárias, tal como caracterizada no capítulo anterior,
e as bases do estado capitalista moderno.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 119

Para tanto, inicialmente serão analisados o modo de operação do capitalismo e


sua relação com a negação, desumanização e uniformização dos “diferentes” e, num
segundo momento, outros aspectos da modernidade que denunciam a padronização
e exclusão das culturas com menor grau de complexidade.
O século XX foi o marco na história ocidental de consolidação da modernida-
de em sua plenitude (MELLO; COSTA, 1999, p. 10). Uma modernidade que, desde
o princípio, como afirma Bauman (2001, p. 9), foi marcada pelo “derretimento dos
sólidos”, uma modernidade fluida desde a sua geração.

O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: [...] a
industrialização que cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, ace-
lerando o próprio ritmo de vida;o rápido e muitas vezes catastrófico cres-
cimento urbano; os sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu
desenvolvimento; [...] enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e ins-
tituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em per-
manente expansão. (BERMAN, 1986, p. 16)

Assim, o rompimento com a solidez adveio do tratamento que o autoconfiante


e abundante espectro moderno fornecia à sociedade. A realidade impunha a necessi-
dade de uma nova sociedade, como condição para suprir seus anseios de progresso
econômico. A realidade em questão deveria livrar-se da “mão morta” de sua própria
história, criando uma aversão ao passado e à tradição (BAUMAN, 2001, p. 9).
Contudo, esse processo de derretimento não visa acabar com os sólidos, mas
sim preparar o terreno para a consolidação de “novos e aperfeiçoados sólidos, de
solidez duradoura, solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo pre-
visível e, portanto, administrável” (BAUMAN, 2001, p. 9-10). A nova ordem é
fundamentalmente pautada em termos econômicos, tornando-se mais “sólida” de-
vido a sua imunidade frente a desafios que não os econômicos, ou seja, os recursos
políticos e morais são insuficientes e extremamente debilitados para modificar ou
transformar a nova ordem estabelecida.
Com efeito, a modernidade estabeleceu novos modelos e representações tão
rígidos e inflexíveis como os de sempre.
Essa modernidade líquida, tal como apresenta Bauman (2001, p. 15-16), é a
relação metamórfica entre o espaço e o tempo. Ambos são desprendidos da praxe da
vida e da aproximação que possuem entre si. Estende-se o espaço para possibilitar
que o tempo permeie, transpasse ou cruze. O conceito de velocidade, no que tange à
relação entre tempo e espaço, pressupõe sua variação, consistindo o tempo moderno
em algo “flexível e expansivo”.
Na modernidade, um “piscar de olhos” é o suficiente para inativar os ativos e
para incapacitar os capazes. As coisas se relativizam, tornando-se escravas do tem-
po e do espaço de que fazem parte e o passado torna-se perigoso e inseguro como
possível fonte de previsão do futuro (BAUMAN, 2007, p. 7-8).
120

É a sociedade da metamorfose, da volatilidade e da futilidade. Quanto a isso,


Marx (1978, p. 475-476) afirma que

Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e vene-


ráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se
tornaram antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é sólido
desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profano, e os homens finalmente são
levados a enfrentar [...] as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações
com seus companheiros humanos.

Para acompanhar o turbilhão da vida moderna é necessário um regime econô-


mico igualmente rápido, fútil e volátil, qual seja o capitalismo. Este tem como base
“a exigência de acumulação ilimitada do capital por meios formalmente pacíficos”
(CHIAPELLO, 2009, p. 35), ou seja, o capital “entra em jogo” na economia com o
intuito de gerar lucro e esse aumento do capital será reinvestido no mercado confe-
rindo dinâmica ao sistema econômico.
Nas relações sociais de produção que dão vida ao capitalismo, de um lado
figuram os proprietários dos meios de produção, também chamados de burgueses. E
do outro lado encontram-se os proletários, ou seja, a classe trabalhadora que se vê
obrigada a vender sua força de trabalho para os donos dos mecanismos de produção.
No sistema econômico capitalista, o trabalho deixa de ser uma forma de o
homem transformar a natureza, humanizar-se e reconhecer-se no produto do seu
trabalho. O trabalho deixa de ser livre e criativo e torna-se “forçado”.
As consequências do trabalhador alienado20 são seu não reconhecimento no
produto final, a desumanização do homem por meio do trabalho mecânico e a pers-
pectiva do trabalhador de que o início da vida se dá depois do horário de trabalho.
Como afirma Marx (2001, p. 117-118),

É exatamente na atuação sobre o mundo objetivo que o homem se manifesta


como verdadeiro ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica ativa. Por
meio dela, a natureza nasce como sua obra e a sua realidade. Em consequ-
ência, o elemento do trabalho é a objetivação da vida genérica do homem:
ao não se reproduzir somente intelectualmente, como na consciência, mas,
ativamente, ele se duplica de modo real, e percebe a sua própria imagem num
mundo por ele criado. Na medida em que o trabalho alienado tira do homem
o elemento de sua produção, rouba-lhe do mesmo modo a sua vida genérica,
a sua objetividade real como ser genérico [...]. De forma geral, a afirmação
de que o homem se encontra alienado da sua vida genérica, significa que um
homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se encontra do
mesmo modo alienado da vida humana.

20 BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 5. Ao definir alienação,
afirma: “no sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual um indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade
se tornam (ou permanecem) alheios, estranho, enfim, alienados aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à
atividade ela mesma), e/ou à natureza na qual vivem, e/ou a outros seres humanos, e também a si mesmos”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 121

É por meio dessa desumanização e desconstituição da individualidade que o


sistema possibilita a consolidação do ideário que melhor se ajuste aos seus interes-
ses. Ou seja, o capitalismo retira do homem sua personalidade para emoldurá-lo
uniformemente conforme os anseios do Estado nacional.
Cumpre esclarecer, ainda, que da mesma forma que no materialismo histórico
dialético proposto por Karl Marx “a dialética contém em si a sua própria negação”,
o sistema capitalista contém em si um traço do feudalismo e do escravismo que ele
tenta negar e mitigar por meio da ideologia, pois é mediante essa mitigação que se
sustenta o sistema capitalista.
Com isso, apesar da óbvia desigualdade econômica gerada pelo sistema capi-
talista, cria-se uma ideia de igualdade cultural que funciona como motor do sistema
econômico, o que se concretiza a partir da consolidação do ideário de que “tudo o
que engendra um lucro (portanto, serve para o capitalismo) também serve para a
sociedade” (HEILBRONER apud CHIAPELLO, 2009, p. 44).
Dessa forma, “a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista con-
figura-se em imensa acumulação de mercadorias” (MARX, 2003, p. 57) e, conse-
quentemente, a produtividade do trabalho alarga sem parar, levando ao desenvolvi-
mento da propriedade privada e das trocas (ENGELS, 1997, p. 3).
Resumidamente, com base no materialismo histórico dialético proposto por
Karl Marx, a ordem social de determinada sociedade em determinado período é
dependente de duas formas de produção: por um viés, pelo nível de desenvolvimen-
to do trabalho e, por outro, da família (ENGELS, 1997, p. 2). Assim, a riqueza de
determinada sociedade é o reflexo do grau de desenvolvimento do trabalho desta, ou
seja, quanto mais produtos ela produz mais rica é.
A par do exposto, percebe-se que o desenvolvimento sempre esteve atrelado a
padrões europeus, de modo que os ideais capitalistas de individualismo e uniformi-
zação impuseram uma lógica dicotômica e, portanto, ontológica, de padronização
dos menos diferentes e exclusão dos mais diferentes (MAGALHÃES, 2012, p. 20).
Nesse sentido,

O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessi-


vamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal
do capitalismo. A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desen-
volvimento da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia de dependên-
cias sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo
também incluindo, na América Latina, a opressão dos países pequenos por
seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que
as grandes e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e dia a
dia. (GALEANO, 2009, p. 18)

Diante desse contexto, o tão almejado avanço das nações sempre foi confron-
tado com protótipos europeus e a ideologia capitalista pautada na lógica etnocên-
trica e uniformizadora era a grande responsável por, inicialmente, negar a cultura
originária de determinado povo, desumanizar através do trabalho e, por fim, unifor-
mizar as diferenças, conforme melhor explanado no tópico seguinte.
122

Para finalizar, importante destacar que, apesar de o capitalismo não manter a


mesma forma operacional da Revolução Industrial do século XVIII na Inglaterra, o
sistema econômico em questão é capaz de se reinventar no tempo e se sustentar ape-
sar das crises, mantendo, contudo, suas bases e o seu resultado central: a opressão
entre, atualmente, as nações – já que o que antes era regional passa a ser global – e
a consequente desigualdade no sentido negativo atribuído ao termo21.

2.2. A modernidade e a perspectiva ontológica

O surgimento do Estado moderno ocidental se deu a partir da consolidação


de quatro elementos, quais sejam, a unidade, a liberdade burguesa, a liberdade po-
lítica e a nacionalidade (JELLINEK apud ADEODATO, 2011, p. 51). Para tanto,
era fundamental a “defesa contra inimigos externos e manutenção da paz interna”
(ADEODATO, 2011, p. 51), o que apenas seria possível a partir do enfraquecimento
da Igreja, do Império Romano e das divisões sociais medievais.
Ou seja, a constituição do Estado moderno ocorreu a partir da unificação do po-
der nas mãos do rei e consequente enfraquecimento do domínio dos senhores feudais,
pela igreja e pelo imperador (MAGALHÃES, 2010, p. 204-205). Quanto a tanto:

[...] o Estado Moderno, surgiu na Europa com a Idade Média, sobre as ruínas
do feudalismo.
Teve por base o desenvolvimento da economia mercantil e a libertação das
sociedades civis do domínio temporal da igreja e assentou na concentração
do poder nas mãos do príncipe e no despertar da consciência nacional, que
permitiu encontrar um fundamento e um fim despersonalizados para o poder.
(CAETANO, 1996, p. 122)

Assim, o surgimento do conceito de soberania, nesse momento histórico, se


bifurca em dois sentidos: a soberania interna, a qual tinha como função a unificação
dos exércitos e da economia, no intuito de sobrepor este poder à soberania externa,
que compreendia os impérios e a Igreja.
Todavia, para reconhecimento do poder do Estado na figura do rei, um fenô-
meno importante se verifica, a impossibilidade de identificação do rei com qualquer
grupo étnico-cultural interno, já que a assimilação do poder central por um grupo
específico provocaria obstáculos de comunicação que dificultariam a concretização
do Estado Nacional (MAGALHÃES, 2010, p. 205). Desse modo, surge a necessi-
dade de consolidação de uma identidade nacional.
A não identificação do rei com apenas um grupo, leva à identificação do rei
com todos, ou seja, institui-se uma nacionalidade – “conjunto de valores de identi-
dade” – superior às identidades já existentes (MAGALHÃES, 2010, p. 205).
Para a consolidação dessa identidade nacional fez-se imprescindível a institui-
ção de valores comuns, que foram, inicialmente, “um inimigo comum [...], uma luta
comum, um projeto comum e, naquele momento, o fator fundamental unificador:
uma religião comum” (MAGALHÃES, 2010, p. 206).

21 Op. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2009.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 123

Desse modo, o monoteísmo, que já vinha sendo consolidado, assume papel de


maior destaque na padronização de valores, sendo um dos fatores que contribuíram,
de forma decisiva, no processo de normalização da intolerância. Nesse sentido,

a intolerância parece ter aparecido historicamente com os monoteísmos, isto é,


com a nova e revolucionária ideia de que só há um Deus. Isso implica a pre-
tensão, sedutora para as necessidades de segurança por parte do ser humano,
de uma verdade absoluta e uma exclusividade de percepção de mundo que não
aceita outras dela divergentes. (ADEODATO, 2009, p. 79-80)

Verifica-se que a consolidação do Estado moderno esteve intimamente relacio-


nada com a intolerância religiosa e cultural, e com a negação da diversidade fora de
determinados padrões e limites.
A formação do Estado moderno, nesse panorama, teve por base a imposição de
uma cultura como padrão e o não reconhecimento daquilo que não estava de acordo
com os patamares de normalidade traçados. Nesse sentido, o poder dominante
moderno é criador de dicotomias em prol da “uniformização dos menos diferentes
(brancos e cristãos) e expulsão dos mais diferentes (judeus e muçulmanos)”
(MAGALHÃES, 2012, p. 20).
Assim, outras culturas, com compreensões e graus de complexidades distintas,
eram (e dependendo da perspectiva, ainda o são) vistas não como diferentes, mas
como inferiores e, com isso, indignas de reconhecimento. Ou seja, as culturas que
não europeias, não eram consideradas dessemelhantes e sim subalternas, pautadas,
por conseguinte, como obsoletas.
A partir dessa perspectiva, resta claro que os valores individualistas europeus
consistiam, e ainda consistem, em instrumento de dominação frente a grupos de
americanos, ameríndios, analfabetos, incompetentes, homens com más maneiras,
entre outros.

3. A universalização de certos conteúdos éticos


como instrumento ideológico para legitimação
de quaisquer escolhas éticas

Estabelecido o panorama, que permite concluir que a modernidade e o ca-


pitalismo são responsáveis por disseminar a filosofia ontológica e a intolerância
ao fomentar determinados padrões como corretos e justos, elevando-os ao grau de
verdade, cumpre destacar como o direito se insere nessa perspectiva. Para tanto,
analisar-se-á a relação entre o direito e a moral e, consequentemente, a universaliza-
ção de certos conteúdos éticos.
Quanto ao paralelo entre o direito e a moral, serão brevemente examinadas as
teorias de Jürgen Habermas e Robert Alexy em contraponto com a Teoria pura do
direito proposta por Hans Kelsen.
124

Para Habermas (2003, p. 202-203) o Direito consolida sua legitimação social


a partir da moral, não sendo possível sua abstração das bases morais como forma de
sua validade normativa. Posteriormente, a teoria do referido autor é reestruturada
(SIMIONI, 2007, p. 35) para afirmar que direito e moral possuem uma relação de
complementaridade, ou seja, seriam cooriginários, na medida em que não haveria
hierarquia entre ambos, já que sua legitimação teria origem comum na efetivação
das condições do discurso (HABERMAS, 2007, p. 297).
Apoiado em bases diferentes, mas também defendendo a relação necessária
entre direito e moral, Robert Alexy (2004, p. 29) trabalha com a tese de que a moral
seria uma instância corretiva do Direito, sustentando que

existe una conexión conceptualmente necesaria entre derecho y moral y [...] hay
razones normativas que hablan en favor de una inclusión de elementos Morales
en el concepto de derecho que, en parte, refuerzan la conexión conceptualmente
necesaria y, en parte, van más allá de ella; dicho brevemente: existen conexiones
conceptual y normativamente necesarias entre derecho y moral.

Nesse sentido, Alexy (2009, p. 24) critica os conceitos positivistas de direito


afirmando que, apesar da diversidade de posições dentro do positivismo, todas as
teses sustentam a separação entre direito e moral. Com isso, o referido autor defi-
ne que o direito, como sistema normativo, estabelece uma pretensão (Anspruch) à
correção e é formado por normas socialmente eficazes, no sentido global de que
constituem uma constituição, assim como por normas produzidas em consonância
com essa constituição e que, igualmente, sejam minimamente eficazes socialmente,
ou possam vir a sê-lo, e não sejam injustas (ALEXY, 2009, p. 151).
Em via diametralmente oposta, como o próprio nome da obra “Teoria Pura do
Direito” sugere, Hans Kelsen almeja “garantir um conhecimento apenas dirigido ao
Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo
quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito” (2006, p. 1). Ou seja,
pretende Kelsen construir uma ciência jurídica que diferencie a norma jurídica dos
demais tipos de normas que regulamentam a conduta humana.
Oportuno ressaltar que Kelsen se preocupa em estabelecer uma distinção entre
direito e ciência jurídica, assim como entre a Moral e a Ética, inclusive traçando
um paralelo entre os termos ao afirmar que “assim como o Direito é confundido
com a ciência jurídica, a Moral é muito frequentemente confundida com a Ética”
(KELSEN, 2006, p. 67).
Nesse sentido, o referido autor define o direito como norma, explicando ser o
Direito o objeto da ciência jurídica (KELSEN, 2006, p. 67). Por outro lado, Kelsen
designa como Moral o conjunto de normas, que não as jurídicas, que “regulam a
conduta dos homens entre si” (2006, p. 67), estando o termo intimamente ligado
com a questão da justiça, enquanto a Ética seria a disciplina responsável pelo co-
nhecimento e descrição da Moral.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 125

Ao se debruçar sobre o exame do que diferencia o Direito da Moral, o autor em


questão afasta a colocação por muitos preconizada de que o Direito prescreve uma
conduta externa e a Moral uma interna, dispondo, para tanto, o seguinte:

[...] a concepção, frequentemente seguida, de que o Direito prescreve uma


conduta externa e a Moral uma conduta interna não é acertada. As normas
das duas ordens determinam ambas as espécies de conduta. A virtude moral
da coragem não consiste apenas no estado de alma de ausência de medo, mas
também numa conduta exterior condicionada por aquele estado. E quando
uma ordem jurídica proíbe o homicídio, proíbe não apenas a produção da
morte de um homem através da conduta exterior de outro homem, mas tam-
bém uma conduta interna, ou seja, a intenção de produzir um tal resultado.
(KELSEN, 2006, p. 68)

De igual modo afirma Kelsen que o Direito e a Moral não se diferenciam com
base na produção ou aplicação de suas normas, pois ambas “são criadas pelo costu-
me ou por meio de uma elaboração consciente [...]. Nesse sentido a Moral é, como
o Direito, positiva” (KELSEN, 2006, p. 70).
O que diferencia o Direito da Moral, conclui Kelsen, seria o modo como as
normas prescrevem ou coíbem determinada conduta humana, já que enquanto o
Direito se efetiva por meio de uma ordem de coerção, a Moral não se concretiza por
meio de sanção. Nesse sentido:

O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quanto – como já


mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma or-
dem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à
conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral
é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as
suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas
e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer
em linha de conta, portanto, o emprego da força física. (KELSEN, 2006, p. 71)

Ainda quanto à relação entre o Direito e a Moral, Kelsen observa que “na
medida em que a Justiça é uma exigência da Moral, na relação entre a Moral e o
Direito está contida a relação entre a Justiça e o Direito” (2006, P. 67). Portanto,
conclui-se que ao separar o direito da moral o autor possibilita que o direito possa
ser ou não justo, de modo que tanto os direitos fundamentais positivados quanto o
direito nazista sejam considerados direito.
Isso, pois, na perspectiva kelseniana, não há uma única moral válida, razão
pela qual não se pode falar em um ideário de Justiça absoluta.
Nesse diapasão, Kelsen afirma que uma coisa é um determinado ordenamento
jurídico, outra é a valoração a ele atribuída por meio de determinada concepção mo-
ral. De tal constatação é possível observar que não há um juízo de valor absoluto e
que a validade de um ordenamento jurídico independe da sua correspondência com
qualquer preceito Moral, a ver:
126

A pretensão de distinguir Direito e Moral, Direito e Justiça, sob o pressuposto


de uma teoria relativa dos valores, apenas significa que, quando uma ordem
jurídica é valorada como moral ou imoral, justa ou injusta, isso traduz a relação
entre a ordem jurídica e um dos vários sistema de Moral, e não a relação entre
aquela e “a” Moral. Desta forma, é enunciado um juízo de valor relativo e não
um juízo de valor absoluto. Ora, isto significa que a validade de uma ordem
jurídica positiva é independente da sua concordância ou discordância com
qualquer sistema de Moral. (KELSEN, 2006, p. 75-76)

Todavia, importante destacar que o positivismo não nega que o direito tenha
conteúdo moral, mas sim que o direito tenha um conteúdo moral prévio, a que sem-
pre estaria subordinado. A propósito, acerca da teoria positivista:

o direito tem sempre um conteúdo moral, sim, só que esse conteúdo moral
não se impõe por si mesmo, não é previamente determinado. Existem sem-
pre várias concepções morais em conflito e, nesse confronto ético, algumas
vencem e outras são derrotadas. As vencedoras são as que se positivam ju-
ridicamente e pretendem se impor coercitivamente sobre todas as demais.
(ADEODATO, 2012, p. 395-396)

O que diferencia a teoria de Alexy, por exemplo, do positivismo jurídico re-


laciona-se ao fato de que o positivismo não acata a ideia de que existe uma moral
universal e que, portanto, sempre prevalecerá no procedimento legislativo, mas de-
fende que existem diversas posturas morais que, após determinado procedimento,
serão positivadas e tidas como direito, o que, todavia, não afasta a possibilidade
de determinado grupo acreditar que o conteúdo do direito seja ou não justo, já que
“a perspectiva moral transformada em direito deixa de ser moral, exatamente por
pretender se impor coercitivamente sobre as demais” (ADEODATO, 2012, p. 396).
Em razão do exposto, é possível observar uma relação de consonância entre
a Teoria Pura do Direito proposta por Hans Kelsen e a filosofia retórica, na medida
em que a inexistência de uma verdade absoluta, como preconiza a retórica, acarreta
a consequente impossibilidade de estabelecer determinados valores morais de uma
cultura como aqueles, corretos, bons ou verdadeiros. Desse mesmo modo, Kelsen
(2006, p. 76) afirma que:

[...] não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma
Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós cons-
tituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos
nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a
possibilidade de valores opostos.

Nessa perspectiva, a crença em um conjunto de direitos, imutáveis e inerentes


a todos os seres humanos, afasta-se das bases da retórica, na medida em que não
é concebível que determinado grupo de direitos seja identificado como verdadeiro
e único, sem que sua concretização perpasse por um processo democrático que
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 127

possibilite a participação de grupos culturais minoritários. Acerca da temática,


Adeodato (2009, p. 4) assevera que:

O problema filosófico é que “dignidade humana” é um conceito,


retórico como todos, cuja efetivação depende fundamentalmente de uma
ideologia, de uma concepção de mundo; como essas concepções variam,
individualmente pulverizadas na modernidade, parece que é só no âmbito
normativo da positivação do direito que tal discussão pode acontecer. A
sociedade contemporânea modifica-se com esse esvaziamento de conteúdo
axiológico, esse abandono da ideia de uma justiça em si, no momento
em que o positivismo coloca legitimidade como sinônimo de legalidade
e uma decisão legitima passa a ser aquela que está de acordo com as
regras prefixadas pelo sistema jurídico-positivo (validade dogmática),
independentemente de seu conteúdo.

Assim, levando-se em consideração que a produção intelectual, cultural, reli-


giosa, musical e até mesmo jurídica foi até então moldada pelos padrões etnocên-
tricos uniformizadores, conforme visto nos capítulos anteriores, resta muito claro
que os grupos culturais minoritários muitas vezes ficam a mercê do ordenamento
jurídico, não lhes sendo concedida a possibilidade de participação na produção
normativa. A possibilidade de concepção de valores morais universais consequen-
temente elide a diversidade cultural, tendendo à padronização de comportamentos.
Destarte, a perspectiva de cultura, nos seus moldes mais prosaicos, esteve re-
lacionada ao campo das humanidades institucionalizadas no Ocidente. A cultura,
nessa perspectiva, é definida como

[...] repositório do que de melhor foi pensado e produzido pela humanidade,


a cultura, nesse sentido é baseada em critérios de valor, estéticos, morais ou
cognitivos que, definindo-se a si próprios como universais elidem a diferença
cultural ou a especificidade histórica dos objetos que classificam. O cânone
é a expressão por excelência desta concepção de cultura, estabelecendo os
critérios de seleção e as listas de objetos especialmente valorizados como
patrimônio cultural universal, em áreas como a literatura, as artes, a música, a
filosofia, a religião ou as ciências. (SANTOS, 2003, p. 27)

Nesse passo, faz-se mister a substituição do sistema eurocêntrico e, suposta-


mente, civilizatório e universal, em favor de um “sistema não hegemônico, demo-
crático, dialógico, plural e complementar” (MAGALHÃES, 2012, p. 31), pautado
no reconhecimento da diversidade, já que

não existe um sujeito único ou universal, nem tampouco uma ética universal,
pois o conceito de humanidade é fundamentado na identificação de situa-
ções singulares, em uma pluralidade de formas de vida singular e de valores
produzida e acumulada objetivamente ao longo da História, assim, há tantos
sujeitos quantas verdades existirem. (LEISTER, 2013, p. 5)
128

Com efeito, após tais enfrentamentos, o capítulo seguinte se presta a analisar


o conceito e a origem do Estado Multicultural para, no capítulo conclusivo, estabe-
lecer-se como o direito pode contribuir para a concretização de um Estado Multi-
cultural e se neste processo faz prescindível ou não o papel do direito à tolerância.

4. O multiculturalismo como estratégia de


preservação das diversas formas de manifestação
cultural e respeito para com o outro

4.1. O liberalismo e o comunitarismo como


pretexto para surgimento de uma nova teoria

O multiculturalismo nasce como uma das tentativas de elucidar os pretex-


tos do fato do pluralismo (TAVARES, 2005, p. 89). O pluralismo é aqui abordado
como fato devido à obviedade da sua ocorrência e amplitude da sua extensão. Nesse
sentido se desenvolve a concepção que reconhece a pluralidade de culturas, como
observa Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 27), “definindo-as como totalidades
complexas que se confundem com as sociedades, permitindo caracterizar modos de
vida baseados em condições materiais e simbólicas”.
Nessa perspectiva, o multiculturalismo surge como opção ao liberalismo e ao
comunitarismo, propondo uma crítica interna ao comunitarismo e externa ao libera-
lismo universalizante. Quanto à temática,

[...] nem o liberalismo, nem o comunitarismo, este num sentido mais restri-
to, conseguiram fornecer uma resposta adequada para o entendimento da di-
mensão do indivíduo, enquanto sujeito de direitos e deveres sociais, marcado
por um senso de pertença ao grupo de que faz parte, mas que transforma e
constrói sua identidade dialogicamente, num dinamismo inigualável, incapaz
de ser reduzido a simples senhor autônomo, livre e igual ou integralmente
submisso à vontade comum de seu grupo, comunidade ou sociedade. (TAVA-
RES, 2005, p. 89-90)

Frente a tanto, para melhor entendermos a teoria multiculturalista e situar sua ori-
gem, faz-se relevante retomar alguns aspectos básicos do liberalismo e do comunitarismo.
O liberalismo, na sua concepção mais branda, tendo como exemplo a teoria de
John Rawls, reconhece a existência de indivíduos ou comunidades, como conjunto
semi-homogêneos, com acepções aproximadas e diferençadas a aspirações de bem
comum que, contudo, se resguardam no âmbito da vida privada e por conta disso,
desde que pautados nos parâmetros da razoabilidade, devem ser protegidos, tendo
em vista que no âmbito público há o consenso da preservação de uma sociedade
democrática (TAVARES, 2005, p. 91).
Por outro lado, o comunitarismo se ateve à crítica à identidade, sustentando que
a sociedade moderna, hodiernamente, pela sua lógica abstrata e homogeneizante, se
afastou das tradições e valores comuns que, para serem recuperados, pressupõem
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 129

um retorno a uma comunidade profundamente integrada, apta a fornecer a seus


membros uma base moral (2005, p. 93).
Assim, a perspectiva do comunitarismo rompe com a tradição universalista
da modernidade para recuperar a propagação de uma identidade comunitária aqui
entendida como excessiva. Nesse passo, seus defensores argumentam que

os padrões “do que é justo” devem estar fundados na forma de vida e tradi-
ções dos grupos em particular, e de que uma efetiva crítica ou análise social
deverá repousar e refletir sobre os hábitos e tradições da vivência de um povo,
em tempos e lugares específicos. Pois quem abstrai o contexto particular, para
universalizar o procedimento, está fadado à incoerência filosófica e à irrele-
vância política. (TAVARES, 2005, p. 92)

Portanto, enquanto Rawls pretende uma razão universal, por meio da qual o
nível do justo está acima do bom, pois é o nível dos valores universais, os comu-
nitaristas argumentam que tal perspectiva ignora os valores que existem e variam
de comunidade para comunidade, afirmando que não é possível pensar uma teoria
da justiça deixando de lado valores comunitários, pois os conflitos não podem ser
resolvidos da mesma forma em todos os lugares.
A principal colocação do comunitarismo é que princípios universais não podem
orientar instituições políticas, devendo-se analisar os valores comuns de determinada
comunidade. Ou seja, enquanto o liberalismo prega uma “individualidade liberada de
qualquer marco social e cultural de pertença, assim como a igualdade básica entre os
homens [...] com a possibilidade de estabelecer um marco comum de convivência”
(TAVARES, 2005, p. 93), os comunitaristas defendem que o bem comum deve ser o
parâmetro a partir do qual as preferências individuais devem ser avaliadas. Em outras
palavras, para eles o bem comum precede os critérios de justiça.
Em face do exposto, percebe-se que o comunitarismo teceu suas bases em tor-
no de uma concepção de sociedade como “grupo concreto, unido por fortes vínculos
de integração e solidariedade, opondo-se a uma postura de desarticulação social e
atomização, característica da Modernidade” (TAVARES, 2005, p. 94). A comunida-
de é sempre tida como um todo homogêneo, sem se debruçar na pluralidade de fato
que permeia as comunidades reais.
Nesse sentido, cumpre transcrever o questionamento crítico de Julio Seoane
Pinilla (1997, p. 380) acerca da concepção comunitarista, a ver:

La crítica más habitual a los comunitaristas es su extrañamente homogéneo


concepto de identidad y de comunidad: ¿Qué identidad es la que se construye?
¿Qué comunidad cabe en un mundo plural y complejo como el nuestro? En una
sociedad moderna existen valores no compartidos por todo que, sin embargo,
sí merecen ser protegidos (es el caso de los protagonizados por las mujeres, las
distintas culturas étnicas o linguisticas, etc.) y de esto no pueden dar cuenta los
comunitaristas que generalmente olvidan que existen sociedades plurales que
en más o en menos funcionan.
130

Com isso, apesar da teoria comunitária tentar romper com o ideário universa-
lizante do liberalismo, pautado em fundamentos morais e ensaios políticos do oci-
dente, ela ignora que há valores que não são comuns a todos mas que, ainda assim,
merecem ser tutelados.

4.2. A lógica multicultural como forma de efetivação do


pluralismo e suplantação da perspectiva ontológica

Em vista das considerações delineadas no tópico anterior, é possível perceber


que o multiculturalismo emerge da crítica à impossibilidade de compreensão de
uma comunidade como homogênea em termos de identidade, razão pela qual não
seria coerente definir com clareza o que é o bem comum e fins compartilhados, en-
fraquecendo, com isso, os pontos de partida do comunitarismo.
Nesse diapasão, os movimentos multiculturais surgiram “para chamar a aten-
ção da diversidade cultural e da necessidade de um cuidado com as diferenças”
(OLIVEIRA JUNIOR, 2006, p. 163).
Assim, o multiculturalismo crítico, conforme explica Maria José da Silva
(2008, p. 64), consiste naquele que

Levanta a bandeira da pluralidade de identidades culturais, a heterogeneidade


como marca de cada grupo e opõe-se à padronização e uniformização defi-
nidas e impostas pelos grupos dominantes. Celebrar o direito à diferença nas
relações sociais como forma de assegurar a convivência pacífica e tolerante
entre os indivíduos caracteriza o compromisso com a democracia e a justiça
social, em meio às relações de poder em que tais diferenças são construídas.
Conceber, enfim, o multiculturalismo numa perspectiva crítica e de resis-
tência pode contribuir para desencadear e fortalecer ações articuladas a uma
prática social cotidiana em defesa da diversidade cultural, da vida humana,
acima de qualquer forma discriminatória, preconceituosa ou excludente.

Logo, a abordagem multicultural inevitavelmente perpassa pela necessidade


de abandono da visão tradicional ou monocultural. O objetivo dos primeiros capí-
tulos foi justamente comprovar que o eurocentrismo sempre foi “a cultura”, única
supostamente digna de respeito. Nesse sentido,

Para a visão tradicional monocultural, a realidade tem existência independen-


temente das representações humanas. O fato não depende das nossas repro-
duções mentais e linguísticas, e a verdade de um julgamento depende do grau
de rigor na sua descrição de uma condição do mundo. Já a visão multicultural
assenta no fato de que a realidade social não existe independentemente dos
seus criadores, das teorias que fazem sua descrição e da linguagem que possi-
bilita essa descrição e transmissão. Toda verdade é uma verdade de um ponto
de vista acerca da realidade. No mais, o ato interpretativo é essencialmente
um ato pessoal, fixado por um horizonte interpretativo e delimitado pelas
instâncias competentes que o orientam. (TAVARES, 2005, p. 99)
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 131

O multiculturalismo desponta na defesa do relativismo de valores, reconhe-


cendo o conhecimento como fato político e se afastando da ideia ontológica de
existência de uma verdade absoluta e imutável, já que a história é construída a partir
de convenções coletivas (SEMPRINI, 1999, p. 84).
Por isso a análise do processo para efetivação de um estado multicultural
emancipatório, ou seja, que não seja eurocêntrico nem tenha qualquer tradição ho-
mogênea como padrão cultural, é imprescindível para se estabelecer um espaço de
respeito e de coexistência na conjuntura da diversidade étnica.
Esclarece-se que a superação do ideal uniformizador moderno não passa pela
busca da igualdade agonizante, muito ao revés, decorre do reconhecimento da diver-
sidade e superação da visão que utiliza uma cultura como a cultura. Ou seja, trata-se
da necessidade de respeito à diversidade cultural, de modo a possibilitar que cada
povo tenha sua cultura preservada sem que lhe seja imposta a cultura dominante.
O presente estudo defende como forma de manejo das diferenças não a uni-
formização, mas sim o reconhecimento do multiculturalismo emancipatório, que se
pauta “no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou
construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos” (SANTOS,
2003, p. 33). O multiculturalismo consiste, destarte, na defesa do

convívio das diferenças, a valorização das culturas, o respeito ao Outro cultu-


ralmente distinto, procurando desconstruir a uniformização e a padronização
do ser humano, em favor de relações sociais mais justas e igualitárias. Ou seja,
o multiculturalismo implica uma não homogeneização cultural e étnica, defen-
dendo uma visão diversificada das formas de vida na sociedade. É a tentativa
de preservar valores próprios de cada parcela constituinte de uma região ou
país, frente a um processo de globalização que tenta a homogeneização cultural.
(LOPES; CORRÊA, 2008, p. 481)

Tendo em vista a já traçada correlação do monoculturalismo com a filosofia


ontológica, imprescindível assumir uma perspectiva retórica para efetivação de um
estado multicultural. Ou seja, o procedimento de reconhecimento da diversidade
está diretamente relacionado com a suplantação da perspectiva ontológica de exis-
tência de uma verdade moral absoluta, já que a verdade, como afirma Nietzsche
(2009, p. 2), consiste em

Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim,


uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retorica-
mente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo
sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se es-
queceu que o são, metáforas que se tomaram gastas e sem força sensível,
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como
metal, não mais como moedas.
132

Com efeito, após tais enfrentamentos, o que se almeja é a análise da forma de


concretização de um Estado Multicultural no âmbito do direito e qual o papel do
direito à tolerância nesse cenário.

5. Considerações finais: o direito à tolerância e o respeito


para com o outro como forma de preservação do
multiculturalismo e efetivação de um estado
democrático de direito pluralista

Importante agora ressaltar que o direito, longe de ser um postulado verdadei-


ro ou correto, consiste em um ajuste de vontades institucionalizado que, mesmo
conforme a teoria positivista, é impregnado de valores morais que historicamente
sempre foram de supremacia da cultura dominante e opressão dos grupos culturais
minoritários, partindo de uma ótica universalizante.
As formas de socialização traduzem o que temos em comum enquanto com-
ponentes de uma comunidade, todavia o sentimento de pertença e identidade em
determinado referencial não acarreta, determinantemente, na “formulação e defesa
de um bem comum em nome de toda nação, centro de unificação social, no qual
todos os indivíduos formam uma comunidade una, ordenada e refletida por uma só
identidade homogênea” (TAVARES, 2005, p. 122).
O direito não deve se pautar num ideário liberal universalista, comprometido
apenas com direitos individuais e um projeto político neutro, mas sim respeitar e
proteger o valor inerente às diferentes formas de manifestação cultural, a partir da
qual cada indivíduo se expressa e determina sua personalidade.
Ou seja, o conteúdo jurídico deve se afastar do pragmatismo ontológico, uni-
formizante, no intuito de garantir o direito à diferença, o que seria um ideário co-
mum a ser respeitado pelos indivíduos integrantes de determinada sociedade para
que haja a possibilidade de convivência pacífica.
Aí ressalta-se que o reconhecimento da diferença não impugna a igualdade,
mas sim a indiferença, a negação e o desinteresse pelo outro visto como diferente
(LOPES; CORRÊA, 2008, p. 485). Com isso, a tolerância não consiste em permitir
ou suportar o outro, mas sim em aceitá-lo e reconhecê-lo, de modo que o artigo 3º,
incisos I e IV, da Constituição Federal Brasileira de 1988 deve ser interpretado nes-
sa perspectiva (BAGGIO, 2010, p. 153).
Nesse sentido, esclarece Adeodato (2009, p. 75) que

a palavra tolerância não é entendida aqui apenas como “tolerar”, em seu


uso vulgar, mas fiel ao sentido primitivo de “suportar” algo desagradável.
Significa, ao revés, a aceitação e o apoio recíproco a pessoas, opiniões e
atitudes oriundas de visões de mundo diferentes e não redutíveis umas às
outras, principalmente religiões, ideologias e outros sistemas de orientação
normativos. Diferentes e não redutíveis umas às outras significa dizer: po-
tencialmente conflituosas.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 133

Daí a importância da tolerância como postura ética para lidar com os conflitos
e do direito dogmaticamente organizado como garantia dessa tolerância, na
medida em que diferencia-se das morais e religiões, esvazia-se de conteú-
do ético prévio e neutraliza os demais sistemas de orientação normativos.
Por isso a tolerância não pode ser um fim em si mesmo e precisa observar
ceticamente as convicções éticas da certeza, mutuamente excludentes. Ela
é um meio para o respeito ao outro, serve aos chamados direitos humanos.
Não necessariamente aos direitos subjetivos construídos pela modernidade
ocidental, de “novas ordens mundiais”, norte-americanas ou não, mas, sobre-
tudo, a direitos no sentido da liberdade de autodeterminação do indivíduo e
da ordem social.

Logo, o multiculturalismo está intrinsecamente ligado ao direito à tolerância,


termo que originariamente estava relacionado à luta pela liberdade religiosa e hoje
assume um significado mais amplo, de harmonia na diferença e liberdade de escolha
frente a diferentes convicções (UNESCO, 1997). Em outras palavras, a tolerância
assume o sentido de reconhecimento.
Ao tratar sobre a necessidade de respeito à diferença, Charles Taylor (1994,
p. 58-59) estabelece que as bases do reconhecimento estão na negativa de impo-
sição de uma identidade a determinada pessoa e na necessidade de respeito da
mesma tal como ela se define.
Para tanto, o referido autor justifica que “a formação da mente humana é [...]
não monológica, não algo que se consiga sozinho, mas dialógica” (1994, p. 53).
Com isso, partindo do pressuposto que as identidades são formadas pelo diálogo,
o que impossibilita sua análise através de uma estandarte social preestabelecido, o
reconhecimento assumiu papel de importância para a efetivação de uma sociedade
democrática.
Taylor (1994, p. 57) afirma que “a recusa de reconhecimento pode ser uma for-
ma de opressão”. Isso, pois, a construção dialógica do indivíduo resta prejudicada se
não há respeito à retórica da inautenticidade. Quanto a isso,

é no diálogo com o entendimento das outras pessoas de eu sou que eu desen-


volvo uma concepção da minha identidade (ponto de Taylor) mas também
porque a minha identidade é crucialmente constituída de conceitos e práticas
disponíveis para mim através da religião, da sociedade, da escola e do estado,
e mediados a vários graus pela família. O diálogo molda a identidade que eu
desenvolvo enquanto cresço, mas o material do qual me formo é fornecido,
em parte, pela minha sociedade, pelo que Taylor chama a sua linguagem num
“sentido amplo”. (APPIAH, 1994, p. 170)

Vejamos, se o indivíduo identificado como “diferente” tem que lutar contra as


convenções sociais para desenvolver sua diversidade, não haverá o procedimento
dialógico essencial para construção da identidade individual, pois, desde o princí-
pio, aquele indivíduo não será reconhecido pelo corpo social. Um exemplo ampla-
mente vivenciado pela sociedade ocidental é o racial:
134

[...] ser negro é recodificado por ser Preto, e isto exige, entre outras coisas,
a recusa em assimilar normas de discurso e de comportamento brancas. E se
alguém numa sociedade racista é Preto, então terá de lidar constantemente
com assaltos à sua dignidade. Nesse contexto, insistir no direito de viver uma
vida digna não será suficiente. Nem sequer será suficiente exigir ser tratado
com igual dignidade apesar de se ser Preto, pois isso irá exigir uma concessão
de que ser Preto conta naturalmente ou até certo ponto contra a nossa digni-
dade. E então acabaremos por pedir para sermos respeitados enquanto negros.
(APPIAH, 1994, p. 177)

Portanto, para construção de uma sociedade múltipla resta imprescindível a


compreensão da diversidade cultural no âmbito jurídico por meio de métodos capazes
de garantir o direito à tolerância reconhecedor das várias especificações culturais.
O que abstraímos do exposto é que a adoção de uma perspectiva ontológica
justifica a opressão de grupos culturais minoritários tendo em vista a tendência à ho-
mogeneização advinda da justificação de uma ideia de verdade absoluta, por meio da
qual certas posturas morais são identificadas como corretas e outras como incorretas.
Com isso, na medida em que o direito é uma expressão moral do discurso ven-
cedor de determinada sociedade e tal discurso sempre se deu, no Ocidente, com base
no eurocentrismo, concluímos que é necessário adotar uma concepção retórica, com
base no reconhecimento e não na opressão e exclusão da diversidade, sendo certo
que, para tanto, faz-se mister a observância do direito à tolerância com base numa
política de reconhecimento.
Todavia, poder-se-ia questionar um eventual paradoxo, já que para concretiza-
ção do direito à tolerância seria necessária a repulsa a determinadas práticas intole-
rantes, ou seja, estaríamos sendo intolerantes para com os intolerantes.
Vejamos, a partir do momento em que o discurso jurídico é o discurso vencedor,
a moral vitoriosa sempre será a majoritária, ou a mais bem armada, a mais organizada,
a mais economicamente favorecida etc. Nesse sentido, sempre houve intolerância dos
grupos culturais minoritários pelos majoritários, já que o discurso da maioria é am-
plamente utilizado para justificar práticas etnocêntricas e uniformizadoras.
A par disso, tutelar a prática da intolerância para com os intolerantes apenas
seria democratizar tal prática, já que a mesma sempre esteve implícita no ideário
capitalista. Por isso, não tolerar a intolerância consiste num mecanismo essencial
para a garantia de uma sociedade múltipla, já que, se é garantido o reconhecimento
de todas as formas de manifestação cultural e se nenhum grupo deve se sobressair
frente aos demais, já que não existe uma cultura certa ou errada, não há que se falar
na possibilidade de um grupo, seja majoritário ou minoritário, ofender as bases éti-
cas dos demais (como exemplo o que o Nazismo fez com os Judeus).
Por conta disso, frisa-se, não é apenas a maioria que tem o direito de ditar pra-
ticas intolerantes, que obviamente serão praticadas contra as culturas minoritárias,
mas todos os grupos têm o direito de exigir o respeito à tolerância e ao reconheci-
mento. O problema é o respeito às minorias.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 135

Outro ponto a ser ressaltado diz respeito aos limites da intransigência frente
aos intolerantes: até onde deve-se permitir a repressão da intolerância? Ou melhor,
até onde é possível a intervenção naquilo que desaprovamos moralmente?
A posição adotada é a de que a intolerância e a intervenção justificam-se na
medida necessária para permitir uma vida plural democrática, ou seja, a intolerância
deve ser reprimida quando obstaculiza o multiculturalismo.
Marcello Ciotola (2007, p. 438), ao tratar do paradoxo da tolerância22, explica que
“entender que há coisas intoleráveis não significa dar uma prova de intolerância”: acatar
uma tolerância universal “deixaria livres as mãos do que querem suprimi-la. A tolerância
só vale, pois, em certos limites, que são os de sua própria salvaguarda e da preservação
de suas condições de possibilidade” (COMTE-SPONVILLE, 1995, p. 176).
Ao estabelecer os limites da tolerância, Ciotola (2007, p. 439) defende que

o primeiro limite à tolerância consiste em não aceitar aquilo que põe em perigo
a própria tolerância. O segundo limite consiste em não permitir um exercício
das liberdades que seja prejudicial aos outros, e mesmo um defensor extremado
da liberdade individual como John Stuart Mill reconhece esse limite, o que
significa dizer que existe uma fronteira intransponível, que é aquela a partir
da qual o gozo da nossa liberdade representa um dano para os outros. Além da
preservação das condições de seu próprio exercício e da exclusão do dano cau-
sado aos outros, uma terceira justificação dos limites da tolerância refere-se à
necessidade de preservar determinadas condições de existência social comum.

Destarte, a tolerância apenas pode sofrer reservas quando colocar em risco o


direito à autoexpressão e reconhecimento de algum grupo cultural, e não com base
na alegação de ser uma cultura moralmente melhor ou superior a outra, já que tais
possibilidades são recusadas pela retórica.
Conclui-se que a tolerância, no sentido abordado pelo presente estudo, que
abarca o direito ao reconhecimento, constitui prática imprescindível para a efetiva-
ção do Estado multicultural; não basta que o direito tutele o consenso da maioria, já
que este sempre refletirá a perspectiva cultural majoritária, sendo indispensável que
o sistema jurídico tutele o reconhecimento das minorias para fins de construção de
uma sociedade democrática.

22 O referido autor trata do paradoxo da tolerância como a forma de “explicar que pode ser moralmente válido permitir coisas
que são consideradas moralmente nefastas” (2007, p. 438), não adotamos exatamente tal concepção tendo em vista
que o ponto de partida do presente trabalho é justamente o relativismo moral, não sendo, portanto, aceitável falar em
concepções “moralmente nefastas”, já que cada grupo tem uma concepção moral que deve ser respeitada, justificando-
se a intervenção apenas na medida em que isso dificulta ou impede a convivência plural.
136

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2009). A retórica constitucional: sobre tolerância, di-


reitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva.
______ (2012). Ética e Retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São
Paulo: Saraiva.
______ (2011). Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo.
São Paulo: Noeses.
ALEXY, Robert (2004). El concepto y la validez del derecho, trad. Jorge M. Seña.
2 ed. Barcelona: Editorial Gedisa.
______ (2009). Conceito e validade do direito, trad. Gercélia Batista de Oliveira
Mendes, Ernesto Garzón Valdés (Org.). 1 ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2009.
ALEXANDRE JUNIOR, Manuel (2005). Conflito entre a retórica e a filosofia. In:
ARISTÓTELES. Retórica. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 9-64.
APPRIAH, K. Anthony (1994). Identidade, autenticidade sobrevivência: sociedades
multiculturais e reprodução social. In: GUTMANN, Amy (Org.). Multiculturalis-
mo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, p. 165-179.
ARISTÓTELES (2007). Retórica, trad. Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel.
BAGGIO, Moacir Camargo (2010). Da Tolerância (Direito e conflito sob o signo
da tolerância: por uma jurisdição constitucional comprometida com a fraternidade).
São Paulo: LTr.
BAUMAN, Zygmunt (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
______ (2007). Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
BERMAN, Marshall (1999). Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras.
BOTTOMORE, Tom (1988). Dicionário do Pensamento Marxista. 1. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
CAETANO, Marcello (1996). Manual de Ciência Política e Direito Constitucio-
nal. 6. ed, Tomo I, Coimbra: Almedina.
CASTRO, Fábio Caprio Leite de (2010). Arte retórica e hermenêutica jurídica. Re-
vista da AJURIS: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v. 37,
n. 118, abr./jun. 2010.
CHIAPELLO, Ève; BOLTANSKI, Luc (2009). O novo espírito do capitalismo.
São Paulo: Martins Fontes.
CIOTOLA, Marcello (2007). A tolerância em Michael Walzer. In: TORRES, Ri-
cardo Lobo. Legitimação dos direitos humanos, 2ª ed, Rio de Janeiro: Renovar,
p. 421-458.
COMTE-SPONVILLE, André (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes.
São Paulo: Martins Fontes.
FEITOSA, Zoraida M. Lopes (1997). Dialética e retórica em Platão. Boletim do
CPA. Campinas, ano 1997, n. 4, jul./dez. 1997.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 137

FREYRE, Gilberto (2004). Sobrados e Mucambos. 15 ed. São Paulo: Global.


GALEANO, Eduardo (2009). As veias abertas da América Latina. São Paulo:
Paz e Terra.
HABERMAS, Jürgen (2001). Direito e Democracia: entre facticidade e validade,
trad. Flávio Beno Siebeneichler. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011.
______ (2007). A inclusão do outro: estudos de teoria política, trad. George Sper-
ber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola.
KELSEN, Hans (2006). Teoria Pura do Direito, trad. João Baptista Machado. 7 ed.
São Paulo: Martins Fontes.
LEISTER, Margareth Anne (2013). Aculturação e identidade cultural: uma revisão do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. Publicado em: 1 jan. 2013. Disponível em:
<http://www.derechoycambiosocial.com/revista031/Acultura%C3%A7%C3%A3o.
pdf> Acesso em: 30 out. 2013.
LOPES, Aline Luciane; CORRÊA, Darcísio (2008). O multiculturalismo e os direi-
tos fundamentais dos povos indígenas: a luta pela igualdade no Brasil da intolerân-
cia. Revista de Ciências Juridicas e Sociais da Unipar. Umuarama, ano 2008, v.
11, n. 2, jul./dez 2008.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros (2010). Culturalismo e universalismo diante do
Estado plurinacional. Revista de Mestrado em direito: direitos humanos funda-
mentais, Osasco, n. 2, p. 205 e 206, dez. 2010.
______ (2012). Estado plurinacional e direito internacional. Cuiabá: Juruá, 2012.
MARX, Karl (2001). Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Editora
Martin Claret, 2001.
______ (2003). O Capital: critica da economia política: livro I. 21 ed. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 2003.
______ (1978). Speech at the anniversary of the people’s paper, trad. Samuel Moore.
In: The Marx-Engels Reader. 2. ed. Nova Iorque: W. W. Norton & Company.
MCCOY, Marina (2010). Platão e a retórica de filósofos e sofistas. São Paulo:
Madras, 2010.
MELLO, Luís César Amad; COSTA, Leonel Itaussu (1999). História do Brasil.
11 ed. São Paulo: Scipione.
MENESES, Paulo (2000). Etnocentrismo e relativismo cultural: algumas reflexões.
Síntese – Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 27, n. 88, p. 245-253.
NIETZSCHE, Friedrich (2009). Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral,
trad. Torres Filho, R. In: Antologia de Textos Filosóficos, Marçal, J. (org.). Curi-
tiba: SEED.
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de (2006). Multiculturalismo: o “olho do
furação” no direito pós-moderno. Revista de Direitos Culturais, Santo Ângelo,
v. 1, n. 1, p. 161-175, dez. 2006.
PINILLA, Julio Seoane (2014). Comunitarismo. Multiculturalismo. Un Comentario.
In: Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho – Revista de Universidad de Ali-
cante, Madrid, n. 20, p. 377-390, 1995. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.
com/servlet/SirveObras/12493875355693728543657/cuaderno20/Doxa20_13.pdf>
Acesso em: 25 abr. 2014.
138

PLATÃO (1996). República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. 8ª ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2003). Reconhecer para libertar: os caminhos
do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
SEMPRINI, Andrea (1999). Multiculturalismo. Bauru: Edusc.
SIMIONI, Rafael Lazzarotto (2007). Direito e moral em Jürgen Habermas. Revista
da Faculdade de Direito/UCS. Caxias do Sul, v. 17, n. 1, jan./jun. 2007.
SILVA, Maria José A. da; BRANDIM, Maria R. Lima (2008). Multiculturalismo e
educação: em defesa da diversidade cultural. Revista Diversa, n.1. p. 31-66, jan./
jun. 2008. Disponível em: <http://www.ufpi.br/subsiteFiles/parnaiba/arquivos/files/
rd-ed1ano1-artigo4_mariasilva.PDF>. Acesso em: 30 out. 2013.
SOUZA, Jessé (2000). A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema
brasileiro. s/ ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
TAVARES, Quintino Lopes Castro (2005). Multiculturalismo. In: LOIS, Cecilia Ca-
ballero (org.). Justiça e Democracia: entre o universalismo e o comunitarismo. São
Paulo: Landy, p. 89-124.
TAYLOR, Charles (1994). Multiculturalismo: examinando a política de reconhe-
cimento. Lisboa: Instituto Piaget.
UNESCO (1997). Declaração de princípios sobre a tolerância, trad. Universida-
de de São Paulo. São Paulo: USP, 1997.
PONTES DE MIRANDA:
a opacidade, o escamoteamento e
a retórica da ressignificação
André Lucas Fernandes

Resumo: Neste trabalho tentar-se-á alertar para os mecanismos retóricos de


produção de um modelo de história das ideias jurídicas no Brasil. A tentativa
é de uma análise retórica que aponte para uma revisão histórica da obra de
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. No caso de Pontes de Miranda o tra-
balho criticará, principalmente, o escamoteamento causado por uma análise
descontextualizada e laudatória de sua obra. A necessidade de revisão do seu
papel para o direito pátrio, como da sua classificação, na história das ideias,
como um pensador ontológico ou nominalista crítico.
Palavras-chave: Retórica jurídica. Metáforas. Pontes de Miranda. Filosofia
do direito.
Abstract: This paper will try to warn against the rhetorical mechanisms
of production of images in the history of legal ideas in Brazil, a rhetorical
analysis that points to a historical review of Francisco Cavalcanti Pontes de
Miranda’s work. In Miranda’s case, criticize the work, especially the juggling
caused by a decontextualized and laudatory analysis of his work. Also, the
need for revision of his role on Brazilian Law, as his classification, in the
history of ideas, as an ontological or nominalist thinker.
Keywords: Legal rhetoric. Metaphors. Pontes de Miranda. Philosophy of law.
Sumário: Introdução: método, metodologia e metódica na construção da
originalidade da cultura jurídica brasileira. 1. O espaço-tempo passado – a
reconstrução da esfera do método: comentários sobre o entorno de Pontes de
Miranda. 1.1 Formação e influências: “o filho espiritual de Tobias Barreto”.
1.2 O caráter senoidal da democracia brasileira como fator fundamental
na produção de uma obra de caráter liberal e, posteriormente, socialista:
a transmutação do método em objeto da metódica. 1.3 “Antropofagia te-
orética”: a influencia dos mais diversos autores sobre a obra de Pontes de
Miranda. 2. Projeções para o presente e o futuro – a metodologia pontesiana
atuando sobre o mundo circundante. 2.1 A teoria do conhecimento do jeto. O
“tijolo” usado por Pontes de Miranda para construir uma tentativa de filosofia
científica no brasil. 2.2 Um naturalismo diferenciado e o sistema de ciência
positiva: a “igual-força” das leis físicas e jurídicas. 2.3 Retórica estratégica,
doxografia e a opinião do jovem Gilberto Freyre. 3. A aplicação da esfera me-
tódica para percepção da singularidade da obra pontesiana: menos ontologia,
mais relativismo. 4. Conclusão: o caráter pragmático a ser extraído da obra
ponteana. Referências.
140

Introdução: método, metodologia e metódica na


construção da originalidade da cultura jurídica brasileira

A formatação deste trabalho sustenta suas bases numa estrutura de pensamento


específica: a do Grupo de Pesquisa em Retórica e História das Ideias Jurídicas da
Faculdade de Direito do Recife. Assim, é imprescindível explicitar, ainda que de
forma breve e introdutória, os três pilares de análise que serão usados.
A tripartição entre método, metodologia e metódica é gradativa, busca o distan-
ciamento do pesquisador do recorte feito e que será usado como objeto de pesquisa,
com base no trabalho de Adeodato (2005, 2009, 2010), na formulação desse modelo.
É assim que o nível do método está associado à retórica material, o nível da
metodologia à retórica estratégica e o nível da metódica à retórica analítica.
O método faz referência aos eventos dentro do tempo do objeto de estudo.
No caso deste trabalho, diz respeito ao tempo de vida, pós-faculdade, do jurista
alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda até o ano de sua morte, em 1979
(CDPB, 2011); vai do início do período republicano brasileiro – que a historiografia
oficial costuma chamar “República Velha” – até dez anos antes da redemocratiza-
ção. É o que se pode chamar de entorno, ou seja, os acontecimentos que influencia-
ram a construção social da época. Além disso, a esfera do método/retórica material
tem direta relação com o que foi produzido por outros autores, tendo conexão com
o trabalho do autor analisado e a própria realidade daquele recorte temporal.
A metodologia têm relação direta com a atuação do autor em estudo sobre o
entorno social. É, pois, associada à retórica estratégica: o mais conhecido nível da
retórica, a retórica do convencimento. Este é o nível da metodologia, o qual busca
os meios e argumentos do autor para tentar influenciar nas questões da sua época.
A problematização aqui aparece sob duas perspectivas: a do autor analisado e a dos
autores que falaram sobre o mesmo (doxografia).
No caso de Pontes de Miranda, poder-se-ia citar os comentários às consti-
tuições e a influência que ele tentou, e exerceu, sobre seu ambiente, além de suas
críticas ao engodo de uma constituição que nunca é cumprida (PEREIRA, 1992,
p. 101-106).
O nível da metódica, por fim, é o do afastamento máximo. Aqui a tentativa é
suprimir as preferências do pesquisador, contudo sem negar sua influência sobre as
projeções e forma de conhecer de cada homem. A análise, neste momento, é sobre
o que o futuro, do qual o autor analisado não faz parte, tem a dizer sobre as influ-
ências e construções dos níveis anteriores (método e metodologia). É o momento
em que o pesquisador tenta fazer a ponte entre o passado e o presente, detectando e
demonstrando possíveis influências da obra do autor – a partir do foco eleito – sobre
o contexto em que ele quis atuar. Questões como a efetividade do alcance das ideias
de Pontes de Miranda na alteração da sociedade e a propriedade dessas ideias são
colocadas nesse momento.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 141

Continuidade e originalidade, binômio orientador do grupo de pesquisa, são


revelados, de forma introdutória na seguinte constatação: existe continuidade, pois
existe filosofia tipicamente nacional, através da obra ponteana e do espraiamento das
ideias do autor – tome-se como exemplo a continuidade dada por Djacir Menezes
ou Pinto Ferreira, a sempre crítica leitura de Lourival Vilanova entre tantos outros.
Além, existe originalidade, pois o pensamento ponteano foi construído com uma
independência “eclética” de crítica declarada diante do pensamento estrangeiro.
É essa a base sobre a qual este trabalho se organiza. A questão da continuidade
têm relação com os trabalhos que já são feitos por alguns autores na área da história
das ideias, mas especialmente – e aqui o número de trabalhos diminui – na história
das ideias jurídicas brasileiras. A questão da originalidade, que começa pela forma
de análise, com um enfoque retórico e cético (BALLWEG, 1991), vai além: traz
novas perspectivas sobre os autores e procura a criação de uma tese, a invenção
original por parte do pesquisador.
A tese fundamental defendida aqui, partindo do princípio de que Pontes de Mi-
randa não foi um “gênio” (PINTO FERREIRA, 1980, p. 135) (MACHADO NETO,
1969, p. 186), mas sim um produto de seu contexto – o que não o desmerece nem
diminui sua importante contribuição ao direito pátrio – é que uma análise contextu-
almente equivocada das ideias ponteanas alinhou-o, historicamente, a um “nomina-
lismo crítico” e à “ontologia racionalista” (ACERBONI, 1969, p. 60) (VITA, 1969,
p. 109), em seu sentido mais estanque.
Pontes de Miranda tomou como base, em sua obra, três pilares fundamentais:
ciência, pragmatismo das ações e respeito à liberdade e dignidade do homem, em
seus sentidos mais amplos. Desenvolveu uma obra que em alguns momentos carece
da objetividade científica que ele mesmo apregoou. Assim, a melhor conceituação
parece ser uma inovação que passe a tratar a obra ponteana dentro de um cientificismo
espiritualista, ideia que será mais bem explicitada no decorrer do trabalho.

1. O espaço-tempo passado – a reconstrução da esfera


do método: comentários sobre o entorno de Pontes de Miranda

1.1. Formação e Influências: “O filho espiritual de Tobias Barreto”

A busca por uma esfera do método leva diretamente a uma viagem ao “espaço-
-tempo passado”. A metáfora alude à Mecânica Quântica, apreciada por Pontes de
Miranda e relacionada, por meio da relatividade, às construções teóricas do jurista
alagoano no seu livro Sistema de Ciência Positiva do Direito. O espaço-tempo pas-
sado é a metáfora que leva em conta a quarta dimensão do tempo e permite retornar,
de forma breve e episódica, ao período de vida do mestre do direito brasileiro e ao
espaço-tempo e sua conjuntura, que circundou sua existência – a noção é de troca,
coerência, mas não de simetria entre esses espaços. A palavra “conjuntura” implica
– como se poderia esperar de sua etimologia, coniungere, associar – um sentido de
conexão entre fenômenos diversos, mas simultâneos” (BURKE, 1997, p. 129).
142

Pontes de Miranda era alagoano, do bairro Mutange em Maceió. Nasceu em


23 de abril de 1893. Formou-se aos 18 anos na Faculdade de Direito do Recife,
concluindo seu bacharelado em Direito no ano de inauguração do prédio centenário
que até hoje abriga a graduação em Direito, incorporada à Universidade do Recife
no ano de 1946 e à Universidade Federal de Pernambuco em 1965.
A história do maior jurista brasileiro do século passado é um dado precioso,
esquecido por boa parte das obras de história das ideias, como é o caso de Acerboni
(1969), Machado Neto (1969) e Pinto Ferreira (1980). Desde muito novo, Francisco
Cavalcanti Pontes de Miranda recebeu uma educação intensa, envolvendo Lógica,
Matemática, Física, além de idiomas estrangeiros. De acordo com Marcos Bernar-
des de Mello, “já aos 7 anos lia correntemente em português e francês” (MELLO,
2008). Não é a toa que uma prodigiosa inteligência, “alimentada” da forma que foi,
geraria um impressionante estudioso. Para Pontes de Miranda, só faltava o trabalho
diuturno, ingrediente que ele adicionou mais e mais no decorrer de sua vida.
Ainda na graduação, Pontes escreveu À margem do Direito, seu primeiro li-
vro, que foi lançado em 1912 e recebeu elogios de Rui Barbosa e Clóvis Beviláqua
e “A moral do futuro”, em 1913, também elogiado. Foi Beviláqua, de acordo com
Machado Neto, que disse: “É filho della, desenvolveu-lhe os princípios para seguir
novos rumos” (MACHADO NETO, 1969), reconhecendo em Pontes o último dos
diretamente influenciados pelas ideias da Escola do Recife, de Tobias Barreto. So-
bre a influência deste, em entrevista, Pontes afirmou: “Absolutamente. Do alemão,
mas não dele. Tanto assim que em minha obra, mais de trezentos volumes, são rarís-
simas as referências ou citações de Tobias Barreto” (MOTA, 1981-1982).
É em 1922, ano da Semana de Arte Moderna, que surge uma das mais impor-
tantes obras de Pontes de Miranda e que constitui estrutura basilar de suas constru-
ções filosóficas relacionadas ao direito: o “Sistema de ciência positiva do direito”,
elogiado dessa forma por Clóvis Beviláqua:

Sem vossa excepcional capacidade de trabalho, sem a vossa mentalidade supe-


riormente organizada, e sem a coragem que vos dá a confiança em vós mesmo
não poderíeis escrever esta obra, amostra magnífica de altura a que atingiu o
pensamento jurídico brasileiro. Beviláqua (1923 apud QUEIROZ, 2012).

O esforço de construir “uma ciência” original no Brasil pode ser constatado


em outras obras desse período “industrializante” que encontraria seu ápice na déca-
da de 50, sob o governo “dourado” de Juscelino Kubitschek: em 1925, “Método de
análise sociopsicológica”. Em 1926, “Introducção à sociologia geral” – obra basilar
que retoma conceitos do Sistema de ciência positiva e amplia as noções de “quan-
tum despótico” e “círculos sociais”.
Em 1932, “Os fundamentos actuaes do direito constitucional”. Obra que deu
início ao ciclo de comentários ponteanos às constituições brasileiras.
Em 1933, o jurista alagoano lançou a obra “Anarchismo, communismo, socia-
lismo”, com estudo e sistematização de um modelo político para a sociedade global.
Era a opção ponteana pelo comunismo, em pleno crescimento da ideologia fascista
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 143

no Brasil. A partir de 1933, também iniciou o lançamento do que ficou conhecido


como “Colecção dos 5 Direitos do Homem” – Direito à Educação, à Subsistência,
ao Trabalho, à Assistência, ao Ideal. Volumes dessa coletânea foram queimados e
desaparecem completamente durante a ditadura varguista23. Pontes de Miranda, di-
vidido entre pareceres e cargos diplomáticos, ainda produziu comentários à Consti-
tuição de 1937, carta maior que foi a base jurídica do Estado Novo, tendo a alcunha
de “polaca” – que é a vitória contra os valores liberalistas, mais especificamente os
de não intervencionismo econômico, relacionados a uma subserviência com a ges-
tão da política global inglesa e americana, presentes na República Velha.
Em 1937, trouxe à superfície a obra “O Problema Fundamental do Conheci-
mento”, o segundo marco desta pesquisa. O livro trata sobre o problema gnosio-
lógico e a apreensão do conhecimento – aqui Pontes expõe sua adesão às teorias
do Positivismo Lógico do Círculo de Viena. Essa obra compõe os fundamentos de
pontos que serão abordados posteriormente neste trabalho.
O livro “Democracia, liberdade e igualdade: os três caminhos” é lançado em
1945, ano de dissolução do Estado Novo e reinício de um novo período democrático
brasileiro cujo fim estaria marcado para 31 de março de 1964, com o Golpe Militar.
Através de suas obras, o jurista alagoano não só respondeu aos acontecimentos,
como foi vanguardista – caso da “Coleção 5 dos Direitos do Homem”, em que ante-
cipou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Buscando sempre combater as
tendências totalizadoras e ditatoriais que imperavam no país, seja pela via fascista,
seja pela via neoliberal norte-americana.
Em “Democracia, liberdade e igualdade”, Pontes aborda a história e a cons-
trução conceitual da democracia americana, liberdade inglesa e igualdade russa,
buscando uma síntese teórica para o funcionamento de uma sociedade global. A
luta do autor alagoano é diuturna e sua fé na possibilidade de um mundo melhor,
inabalável. Nesse sentido, Pontes de Miranda era um idealista, um otimista que
acreditava piamente num futuro melhor para a humanidade.
A sucessão de obras de Pontes traz ainda preocupações diversas: “Garra,
mão e dedo”, de 1953, é um ensaio filosófico-psicológico sobre as origens do
homem, da fala, da sociedade; “Tratado de direito predial” é do mesmo ano e
mostra a resposta ponteana às questões geradas pela urbanização cada vez mais
acentuada e problemática.
Pontes de Miranda foi uma figura obstinada, de inteligência ímpar, que pro-
duziu obras nos mais diversos ramos do saber – sociologia, filosofia, antropologia,
ciência política, literatura, linguística, biologia, matemática – vindo a se destacar
como jurista. Metódico, possuiu uma extensa biblioteca de dois pavimentos loca-
lizada na sua casa, no Rio de Janeiro, na qual guardava as famosas corujas que
acabaram por se tornar seu símbolo.

23 O testemunho é do próprio Pontes de Miranda: “Para quem, há mais de sessenta anos, se dedicou à história e prática
do habeas-corpus e há quase meio século, em 1932, lançou livros sobre os direitos humanos, três volumes publicados
(Novos Direito do Homem, Direito à assistência, Direito à Educação) e dois volumes queimados por ordem de alguém do
Governo (Direito à Assistência e Direito ao Ideal) é grande sofrimento, no fim da vida, em vez de ver respeitar-se o que tal
pessoa sustentou antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assistir a um decênio de retorno a mais de cinco
séculos da nossa herança jurídica, política e moral” MIRANDA (1978).
144

É um ambiente de artista que conduz a uma biblioteca de 70.000 volumes, de


direito mundial e ciências matemáticas, físicas, biológicas, antropológicas e
sociológicas, distribuída em dois pavimentos, nos quais, o mestre circula lepi-
damente, sem dificuldades. [...] mais importante que tudo isso é o fichário de
estudos de Pontes de Miranda, tão metódico e tão organizado que um amigo
íntimo, após vê-lo, comentou: “Você é tão obstinado que leva tudo a sério”
(FLORIANO, 1973, p. 281).

No direito, escreveu obras que vão da filosofia do direito, ao direito constitu-


cional, direito processual, direito internacional privado, psicologia jurídica, entre
tantas outras. A referência direta neste trabalho são duas grandes obras que envol-
vem a filosofia do direito e a filosofia do conhecimento: Sistema de ciência positiva
do direito e O problema fundamental do conhecimento.
Pontes de Miranda morreu no ano de 1979, pouco tempo depois de ser con-
templado com a aprovação à cadeira nº 7 da Academia Brasileira de Letras, na qual
foi recebido pelo grande jurista e amigo Miguel Reale (1994. p. 143).

A Cadeira de que hoje tomo posse teve como patrono Castro Alves, nascido na
Bahia, foi ocupada por Euclides da Cunha e por Afrânio Peixoto, outro baiano,
e por um mineiro, Afonso Pena Júnior, e de novo pelo baiano Hermes Lima.
Hoje, aqui está um alagoano. Honra-me esta Cadeira por ter escrito, antes da
Declaração dos Direitos Humanos, livros sobre os Direitos do Homem, dos
quais dois foram, como já mencionei, queimados, e a obra Democracia, Liber-
dade e Igualdade, assuntos que já marcaram a Cadeira 7. (MIRANDA, 2012).

Na esfera do método, acompanhando a sistemática metodológica deste traba-


lho, a descrição histórica é fundamental. Essa “forma de pensar” é mais explícita
neste capítulo 1. Aqui não será descrita, de forma alongada, a vida de Pontes de Mi-
randa, levando em conta que essa descrição exaustiva e biográfica já está presente
em tantos outros autores. Para compreender o enfoque dado às quatro obras men-
cionadas acima, escolhidas como representantes da filosofia, será preciso uma breve
viagem ao espaço-tempo passado, um aporte histórico que vai comprovar algo que
foi ignorado por tanto tempo, para a incredulidade do pesquisador: o diálogo e o
caráter visionário e antecipatório de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda diante
dos acontecimentos no Brasil e no mundo.

1.2. O caráter senoidal da democracia brasileira como fator


fundamental na produção de uma obra de caráter liberal e,
posteriormente, socialista: a transmutação do
método em objeto da metódica

Os marcos temporais desse trabalho são os anos de 1911 e de 1979 que corres-
pondem, respectivamente, ao ano de graduação na Faculdade de Direito do Recife
e ano de morte de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Funcionam então como
pontas de uma linha temporal, delimitando o campo de observação a ser explorado.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 145

Destarte, não seria estranha uma crítica acerca do grande espaço temporal que
poderia comprometer seriamente o trabalho do observador, deixando escapar dados
fundamentais. A crítica procede. Estaria correta, se esse fosse um ponto cego dessa
pesquisa, contudo não o é24. Aos propósitos aqui esboçados, a delimitação grosseira
desse “feixe temporal” é interessante, a pesquisa não é especificamente sobre his-
tória do Brasil, sequer uma biografia exaustiva do autor-objeto; a pesquisa é uma
busca pelas ideias produzidas por Pontes de Miranda. É exatamente por buscarmos
as ideias, com especial foco em duas obras – quais sejam: Sistema de ciência po-
sitiva do direito e O problema fundamental do conhecimento – que um marco tão
arbitrário é possível. Não importa contar em pormenores a historia oficial brasileira,
nem mesmo os dados da vida do autor, mas sim a relação do espaço-tempo passado
e da atuação de Pontes de Miranda sobre esse espaço, utilizando suas ideias.
A partida, então, é do período conhecido como “Primeira República”. Desde
o início é notável, no jurista alagoano, uma capacidade absurda de trabalho que vai
se confirmar com o lançamento de obras e mais obras até o fim de sua vida. Nada
de surreal, ou místico, para alguém de base e erudição sólidas, formada desde mais
tenra idade, como registrou Pinto Ferreira (1980): “Tanto o avô, como o pai tinham
uma natural predileção cientifica pelas ciências exatas, especialmente a matemá-
tica, e dai os pendores lógicos e precisos do seu pensamento”. Além dele, Marcos
Bernardes de Mello (2008): “A seu avô, o menino Chico, de inteligência invulgar,
deveu uma rigorosa e bela formação intelectual voltada para a Lógica, a Matemáti-
ca, a Física e os idiomas estrangeiros (já aos 7 anos lia correntemente em português
e francês) e a religião”.
A República Velha foi um dos períodos da história brasileira em que a imi-
gração atingiu níveis altíssimos. O historiador Boris Fausto coloca o ano de 1914
como ano-marco que finalizou um fluxo imigratório iniciado em 1887 – “O Brasil
foi um dos países receptores dos milhões de europeus e asiáticos que vieram para
as Américas em busca de oportunidade de trabalho e ascensão social” (FAUSTO,
2002, p. 275). É nesse contexto que a ação do jovem advogado Pontes de Miran-
da, morando já no Rio de Janeiro, se insere, sempre preocupado com a formação
de uma ciência do direito sólida, nivelada com as ciências exatas tão caras à sua
formação. Além, uma prática do direito voltada ao apreço pela legalidade, pela
constitucionalidade, pelo humanismo e pela democracia.
É de 1916 o livro “História e Prática do Habeas-Corpus”, relançado recente-
mente pela Bookseller no Brasil. Considerado pelo próprio Pontes um de seus livros
mais importantes, foi um dos livros condenados na Ditadura Vargas e, posterior-
mente, relembrado por Pontes em sua luta pela reativação do instituto jurídico que
dá nome ao livro durante a Ditadura Militar iniciada em 1964.

24 Nas palavras de Burke (2008, p. 8): “De acordo com esse ponto de vista, o historiador cultural abarca artes do passado
que outros historiadores não conseguem alcançar. A ênfase em ‘culturas’ inteiras oferece uma saída para a atual
fragmentação da disciplina em especialistas de história da população, diplomacia, mulheres, ideias, negócios, guerra e
assim por diante”.
146

O Brasil da República Velha, além de porto para os estrangeiros, era um


país ainda de predominante economia agrícola, sem grande estrutura industrial,
mas com uma crescente implementação e construção do que viria a ser o parque
industrial nacional25. Foi o período que iniciou o processo principal de urbanização
da sociedade brasileira, com destaque para o crescimento da cidade de São Paulo.
A década de 20, pós-primeira guerra mundial, trazia para o Brasil uma profusão de
novas culturas, ideias e, por que não, novos modelos de sociedade.
É esse o contexto em que a intelectualidade brasileira se volta à construção
de uma ciência nacional, para as lições do positivismo lógico – um neopositivismo
que é filho do empreendimento primeiro de Tobias Barreto, mas totalmente refinado
pelas ideias vindas do Circulo de Viena de Moritz Schlick.

A intelectualidade brasileira participou ativa e diretamente do processo de re-


elaboração das correntes filosóficas de inspiração cientificista – cujo resultado
principal se considera tenha sido a constituição da corrente denominada neo-
positivisrno ou positivismo lógico – nos dois primeiros decênios deste século,
através de numeroso grupo de matemáticos e cientistas (PAIM, 2007b, p. 272).

Para Boris Fausto (2002, p. 284), o crescimento das cidades, a multiplicação e


diversificação das atividades realizadas dentro dos espaços urbanos e a velocidade e
espraiamento das informações na urbe, foram condições basilares para a formação de
um movimento social da classe trabalhadora urbana – mais uma forma de organização
social espontânea que tornou mais complexa a sociedade brasileira; esquentando ain-
da mais o caldeirão histórico de ideias no qual o autor-objeto esteve inserido.
A historiografia oficial, baseada na antropologia, costuma relacionar os fatores
que produzem uma sociedade desenvolvida. Num Brasil que iniciava seu desenvolvi-
mento e industrialização, ampliando o foco e ampliando os horizontes de sua ativida-
de diplomática, a preocupação com a instituição de uma maneira de pensar nacional,
com uma ciência nacional, era uma relação causa-consequência esperada. Pontes de
Miranda é filho do seu meio circundante e atuava constantemente sobre ele.
O ano de 1930 é o marco do período conhecido como “A era Vargas”. A atu-
ação de Pontes de Miranda aqui fica ainda mais intensa pela dicotomia gerada por
sua admiração pela Alemanha, mas total desapreço pelo regime nazista e pela figura
de Hitler. No Brasil, o recrudescimento da centralização e autoritarismo pode ser
explicado pelas palavras de Thomas Skidmore:

A crise financeira mundial de 1929 havia criado um poderoso argumento


econômico para o fortalecimento do governo central no Brasil. Getúlio
aproveitou o momento, dissolveu o Congresso Nacional, instituiu um regime
de emergência (legitimado pelo decreto em 11 de novembro de 1930)
(SKIDMORE, 1998, p. 155).

25 “Embora a economia brasileira saísse dos anos de guerra com inflação alta, ela demonstrou ser notavelmente elástica
na década de 1920. [...] Esses preços elevados possibilitaram ao Brasil aumentar suas importações em 150% entre 1922
e 1929, período no qual a indústria brasileira foi capaz de duplicar suas importações de bens de capital (o elemento
essencial para a industrialização subsequente).” (SKIDMORE, 1998. p. 141).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 147

As ações de Vargas incluíram ainda a demissão de governadores eleitos, a cria-


ção de um Código de Interventores, limitando as ações dos estados, o aumento nos
gastos com os salários e armamentos para as polícias, etc. “A tortura de suspeitos
políticos era frequente e não havia recurso seguro aos tribunais, dada a constante in-
vocação pelo governo da Lei de Segurança Nacional.” (SKIDMORE, 1998, p. 194).

1.3. “Antropofagia teorética”: a influência dos mais


diversos autores sobre a obra de Pontes de Miranda

A “antropofagia teorética” é uma metáfora diretamente ligada à lembrança do


empreendimento do movimento artístico modernista brasileiro de 1922. A concepção
dessa antropofagia aqui, em palavras poucas, está relacionada à leitura, absorção e
ressignificação da produção científica e filosófica estrangeira. Não adianta transplan-
tar diretamente uma ideia, é preciso que ela seja ressignificada de acordo com a re-
alidade brasileira – e a ressignificação é uma transformação tão visceral que a ideia,
ainda que possível reconhecer sua origem, é transmutada em algo inteiramente novo.
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda não obedecia aos limites teóricos do
“local”, “global” ou “universal” – em relação à produção de um conhecimento ali-
nhado somente ao estado-nação, ou uma forma de pensar exclusiva de uma sociedade
global. O compromisso de Pontes esteve sempre relacionado ao trabalho, à produção
de ideias que pudessem auxiliar na estruturação da sociedade. O jurista alagoano foi
um mestre da antropofagia teorética, como bem comprova, com ressalvas, o comentá-
rio de Nelson Saldanha sobre um de seus livros: “publicava em 1924 uma Introdução
à Política Científica [...] já fisicalismo e já formalismo, mas com alusões esporádicas
e brilhantes ao caso brasileiro” (SALDANHA, 2001, p. 285). Ressalvas, sim, pois
mesmo em 1924 já era possível destacar em Pontes de Miranda o cuidado com a rea-
lidade nacional: é o exemplo das abordagens que comparam global e local no Sistema
de Ciência Positiva do Direito; além, após o lançamento de Introdução à Política
Científica, Pontes de Miranda se deteve mais e mais ao caso brasileiro.
A erudição ponteana, realidade justificável pela história de vida do jurista ala-
goano, causa incredulidade nos mestres e aprendizes no mundo do Direito. A imen-
sa gama de obras consultadas, lidas e criticadas é digna de uma grande equipe de
profissionais e não de um único homem. Que pesem a falta de dados objetivos sobre
isso, uma observação, na quebra desse mito, deve ser levantada: o “Sistema” tem
seu lançamento em 1922, poucos anos após Pontes de Miranda sair da graduação.
O Pontes de 1922 ainda era um jovem advogado que estava no Rio de Janeiro há
poucos anos – nesse panorama difícil é imaginar a constituição de uma equipe espe-
cializada para escrever e assessorar na produção de livros.
A avaliação dos lançamentos constantes e das entrevistas que o autor deu – re-
vista LEMI, Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, entre outras – leva
a crer que a produção das obras sempre tomou longos anos de trabalho contínuo; o
próprio “Sistema” começou a ser escrito ainda na graduação, dez anos antes. Até aqui
nenhuma justificativa para o mito de “gênio” criado nas ideias jurídicas nacionais.
148

Entre os escritos ponteanos sobressalta a bibliografia, com o destaque de di-


versos nomes. A lista, não exaustiva, inclui: Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino,
Descartes, Leibniz, Kant, Ihering, Schuppe, Ernst Mach, William James, Avenarius,
Frege, Husserl, Whitehead, Russell, Radbruch, Einstein, Clarence Irving Lewis,
Wittgenstein, Heidegger, Carnap, Auerbach, Heisenberg, Ramsey entre tantos ou-
tros. Estão entre os nomes citados filósofos, matemáticos, linguistas, juristas, fí-
sicos, etc. A condição financeira permitia-lhe o acesso às obras em seu formato
original, sem uma dificuldade temporal, ou seja, sem ter que esperar a tradução, ou
o lançamento no Brasil, indo diretamente à fonte das mesmas. Além, como no caso
de Wittgenstein e seu Tractatus Logico-Philosophicus, Pontes de Miranda acompa-
nhava quase que simultaneamente a construção do pensamento do autor e a virada
linguística com as “Investigações Filosóficas” de 1953.

2. Projeções para o presente e o futuro – a metodologia


pontesiana atuando sobre o mundo circundante

2.1. A teoria do conhecimento do jeto. O “tijolo” usado por


Pontes de Miranda para construir uma tentativa de
filosofia científica no Brasil

Falar em “duas obras” faz parecer uma redução empobrecedora, mas a im-
pressão é equivocada. Aqui entra um ensinamento do próprio Pontes na obra que
consolidou sua visão epistemológica, qual seja, o reconhecimento da influência do
observador na produção do conhecimento e na construção do mundo26, abandonan-
do uma “ingenuidade” de ciência “asséptica”.
Isso dito com o intuito de clarificar que mesmo as obras escolhidas não serão
analisadas radiograficamente em seus conteúdos, pois o objetivo é mostrar um lado
de Pontes de Miranda que não foi, até hoje, apreciado com a devida atenção pelos
historiadores dos conceitos e juristas. A provocação está em afirmar que Pontes
de Miranda fazia uso propositado da retórica estratégica e comandava as palavras
buscando a construção de mundo melhor. A opção de Pontes não foi por descobrir
a “verdade imutável e inescapável das coisas”, mas por propor modelos operativos
tanto para uma ciência do direito, como para uma teoria do conhecimento. E mesmo
quando fala em “ciência do ser”, o “ser”, aprisionado no plano da existência, não é
aquele de uma ontologia clássica estéril.
O problema fundamental do conhecimento é uma obra inédita no contexto
brasileiro de 1934. Representa uma continuidade do trabalho de Pontes de Mi-
randa que começou, em 1922, a fundar uma ciência social no Brasil, reforçando
ao mesmo tempo todo o panorama das ciências brasileiras. O esforço tem início

26 “Permita-se-nos uma originalidade, não querida, mas aceita, diante de fatos sobre que meditamos: a consciência é
ciência. Tal afirmação surpreende. Nem podia deixar de surpreender. Em verdade, consciência é ciência; já é ciência.
[...] Que é ciência? É observação de alguns fatos, eliminando-se, quanto possível, o que o observador introduz na
observação.” MIRANDA (1999, p. 122, destaque nosso).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 149

com o Sistema de ciência positiva do direito, passa pela Introdução à sociologia


geral e Introdução à política scientifica, mas é com a obra de 1934 que Pontes
de Miranda sistematiza o pensamento do que viria a ser a primeira empreitada da
“filosofia da ciência” no Brasil.
O livro segue o padrão de escrita ponteano: um grande volume de informa-
ções, a erudição na escrita, o apelo aos neologismos, à abordagem que se pretende
“humilde” e que trabalha um enorme arsenal de autores e ideias sobre o tema. Em
qualquer estudo sobre Pontes de Miranda, esse ponto acaba por representar uma
falha: o volume de referências constrange o pesquisador à aceitação de muito do que
foi dito. O resultado é um espaço de indeterminação entre o abordado e a objetivi-
dade e fidelidade na referenciação.
Pontes empreende um trabalho que intenciona quebrar com a rixa clássica en-
tre empiristas e imanentistas, realistas e idealistas27. O autor alagoano se surpreende
que alguns escolham interpretar os dados do mundo a partir de um “fatalismo dos
tipos ideais” que leva a questão do conhecimento a extremos. Pontes de Miranda
é um otimista, e seus escritos sempre tenderam a uma crença na capacidade do
homem. Alinha-se, assim, a um conceito de “evolução” como transformação funda-
mental a partir dos rigores do método científico.
Interessante é a consideração que fez no prefácio da edição original de O proble-
ma fundamental do conhecimento em 1937, afirmando que esperou dez anos até que
alguém escrevesse um livro com o conteúdo que ele iria expor na obra, mas que nin-
guém o fez (MIRANDA, 1999, p. 19). É possível estabelecer, a partir do depoimento
do próprio autor, uma explicação ao caráter enfraquecido de suas referências e citações.

A consciência dessa lacuna – ou talvez os impasses e percalços com que se


defrontavam os partidários do Círculo de Viena – leva-o a elaborar uma obra
de enorme importância e que, se não veio a alcançar grande repercussão, de-
ve-se, na opinião de Djacir Menezes, ao “confinamento filosófico de nossas
elites” (PAIM, 2007a, p. 277).

Sua análise começa no âmbito de uma reflexão sobre a cognição do homem e


dos animais, onde começa o conhecimento, qual o ponto que transforma o homem
nesse ser “especial”, mas que ainda está inserido no holos da natureza. É por isso
que Pontes insiste acerca da questão do instinto.

O que é certo é que o instinto já nos aparece feito, fixado, rígido. Ligado a
interesses graves da espécie, nunca é fútil – sempre útil, preciso, por bem
dizer sonambúlico, quanto ao seu objetivo. [...] o instinto dá [...] ele é solução
a problemas que foram postos outrora e alhures (MIRANDA, 1999, p. 31).

27 Quando à relação se chama relação “sujeito-objeto”, já o termo conhecente se considerou a si mesmo, já olhou
o organismo que ele é, já levou em conta os dois prefixos que revelam a relatividade do conhecimento sensível. (O
Idealismo pretenderá que ao primeiro termo se subordine o segundo, e sem reciprocidade; o Realismo, que o segundo se
imponha ao primeiro). (MIRANDA, 1999, p. 35)
150

Para fundar uma Teoria do Conhecimento pretensamente livre da metafísica,


alinhada ao positivismo lógico, Pontes de Miranda precisava se contrapor aos clás-
sicos. Entende Pontes que os cientistas do hoje, possuidores dos conhecimentos da
Matemática e da Lógica, não se subordinam a um desejo de responder às “velhas
perguntas da filosofia clássica” (MIRANDA, 1999, p. 43). É no Wittgenstein do
Tractatus Logico-Philosophicus que Pontes vai buscar o aforismo que sustenta o
“pensamento científico”: a necessidade primeira da ciência é a possibilidade de por
o problema – aqui entendido como qualquer problema apreciável pela ciência.
Inegável também é a influência de Nietzsche em Pontes, fato percebido por
Miguel Reale (1994, p. 154), quando o autor alagoano, no rastro de Ernst Mach,
afirma que a renovação do pensamento só se dá pela quebra e mudança do conceito
de verdade. A noção de que a verdade é apenas a qualidade, o adjetivo, que foi subs-
tantivado pelo uso, no decorrer do tempo. A ciência, e por isso a filosofia da ciência
como ferramenta da primeira, é e, ao mesmo tempo, está a se fazer no tempo.

Desde que se substantiva o verdadeiro, aprioriza-se, impõe-se: o que foi, até


pouco, exposição passa a ser imposição. Ora, Ciência é persuasão. Onde se
impõe, não há mais Ciência. (MIRANDA, 1999, p. 42, destaque nosso).

A concepção de ciência como persuasão se aproxima da ideia de retórica que é


a base metodológica desse trabalho. Pontes de Miranda refina sua obra ao ponto de
considerar a dimensão de uma retórica estratégica na construção do conhecimento
científico. O autor alagoano não escapa à coerência que sustentou por toda a vida:
uma ciência que se percebe falível é uma ciência capaz de erguer uma sociedade
democrática. A filosofia científica não compreende o universo como um “imodifi-
cável”, rompe com a “velha” metafísica e se liberta do dogmatismo, para auxiliar a
Ciência, exaurindo-a e preenchendo-a constantemente.
Pontes enxerga explicitamente a dimensão ontológica da nossa linguagem e
conceitos, fala até em “tropeços” diante de tais entidades. É a ciência o grande pro-
jeto de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, e não é possível ignorar o seu apelo
e a razão de suas colocações. Pontes é, junto com Gilberto Freyre, fundador de uma
Sociologia Científica no Brasil (MEUCCI, 2006, p. 82).
Na obra ponteana constam os níveis de apreensão e construção do conheci-
mento: instinto, sensação, percepção. É a partir dos exemplos da apreensão das co-
res que o jurista alagoano vai iniciar a teoria dos jetos. É assim que ao observamos
uma cor, o vermelho, por exemplo, estamos diante do vermelho. Não existe ai um
ignorar, não ver, as outras cores, azul, verde, amarelo, muito menos um afastamento
através de um “não ver” gostos, sons, odores. A cor que vemos não é a dos processos
de decodificação do cérebro, nem a apreensão invertida do globo ocular. O que nós
apreendemos, o vermelho, para Pontes, é o jeto do vermelho. Pontes não aceita a de-
finição psicológica de um “Eu” que percebe, cheira, sente, ainda que reconheça que
a sensação está relacionada ao “sentinte”. Pontes critica o solipsismo cartesiano que
considera o sujeito como um prejeto ou suprajeto, antes do próprio pensamento28.

28 “Dubito, ergo cogito, ergo sum” é a famosa conclusão de René Descartes em seu Discurso do Método. A estrutura é uma
tradução latina posterior do francês “je pense, donc je suis”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 151

O jeto é para Pontes a invariante funcional. É o resultado de uma operação


comum ao intelecto humano que extrai do mundo, a partir do referencial subjetivo
do observador, uma conclusão determinada. O conhecimento científico, para Pontes
de Miranda, é a forma mais precisa de se encontrar jetos. Contudo, o conhecimento
empírico, como, por exemplo, receitas ancestrais indígenas, podem também ser jetos,
mais espessos, menos precisos. Alerte-se que a falta de correspondência com o mundo
fático, é tida como uma falha na operação, não detendo, o sujeito, jeto algum, apenas
extrato de conhecimento que não corresponde à realidade, em nenhum nível.
Para Pontes, representação é uma imagem interior de algo que não foi dado, é
o “ver” cognoscitivo, sem o ver fisiológico (via de apreensão dos dados do mundo).
A percepção, por sua vez, é como a vida psíquica pueril: é primeira apresentação
do percebido, um somatório inter-relacionado de sensações, experiências de vida,
representações e juízos. É a partir da percepção das relações que surge o neologismo
jeto no pensamento ponteano. O caráter precário dos nossos sentidos é dado funda-
mental para demonstrar que só recebemos partes da realidade, partes do espaço e do
tempo diretamente relacionados a nós. Deixando de lado os universais-substantivo
e universais-verbo, Pontes busca focar sobre os universais-preposições, universais-
-advérbios, pois percebe que entre objetos materiais, para ficar com um exemplo
mais concreto, existe um espaço relacional que os une e modifica. Negar isso é
perceber o mundo como unidades estanques, desconectadas.

[...] o verdadeiro de agora corrige o de ontem, mas o do futuro pode corrigir


o do hoje e comprovar o do ontem, porque a Ciência não é, em definição,
temporal. Temporais são os outros processos sociais adaptativos: a Moral,
a Política, a Economia, a Religião, o Direito, a Arte, e essa filha miúda do
Tempo, que é a moda (MIRANDA, 1999, p. 81).

No plano dos jetos, a facticidade de um objeto material, ou do sonho (seres


sonhados, o mundo dos sonhos), não importa, pois todas elas são reminiscências,
impurezas do conhecimento. É o nosso “sensível”, com que interagimos com o
mundo de forma imediata que se afasta, não coincidente, com o objeto. “A existên-
cia é a mesma, porque é estranho ao problema se a construção foi humana, ou não.
O átomo deixa de ser átomo, a matéria deixa de ser matéria, o raio deixa de ser raio.”
(MIRANDA, 1999, p. 89)

A bipolaridade da relação emerge no que se põe, no que se jecta, que, ao opor-


-se, já é oposto, já é ob-jectum. Assim, as qualidades direcionais dos prefixos
– o sub que se ligam à voz jectar – são pressupostos inevitáveis. Empregando
a linguagem matemática, diria que a grandeza escalar chamada jecto ganha
função vetorial ao receber a prefixação, que lhe dá sentido. Como grandeza
escalar, está aquém do Conhecimento; como vector, abre o capítulo da Gno-
siologia, isto é, transitamos, com aqueles prefixos, do psiquismo animal para
o plano humano (MENEZES 1959 apud PAIM, 2007a, p. 70).
152

Pontes ainda critica a Fenomenologia de Edmund Husserl, reprovando seu


afastamento de Hume e aproximação com Platão, da polarização do eidético, no lu-
gar do empírico, quando o que importaria é o que existe de dado empírico e eidético
no conhecimento.

Pontes de Miranda retorna à imagem do tijolo e do edifício para a contesta-


ção. Há confusão entre os dois. O edifício jetivo não implica qualquer edifica-
ção fática, objetiva ou subjetiva; também de modo correlativo, as proposições
verdadeiras do edifício jetivo, puras verdades eidéticas da fenomenologia,
nenhuma afirmação contém, por mínima que seja, sobre o edifício fático, ob-
jetivo ou subjetivo (MERCADANTE, 2009).

O jurista alagoano, não cede em seu pensamento, ao realismo ou idealismo,


sempre propugna pelo afastamento das duas visões, entendo-as excessivas. A rela-
ção jeto a jeto é a relação de conhecimento pura. Quando a ciência revê sua versão
dos fatos, o que se percebe é a mera dimensão, ou gramatura do jeto: jeto mais
grosso se tornando jeto mais fino, através do trabalho da ciência.
O avanço da ciência municia o homem, em sua insuficiência, no trato com o
objeto, que também é, de sua parte, insuficiente e defeituoso. A equação do “por
entre parênteses” é o esquema que resume o trabalho da ciência.
Para Pontes, a noção de jeto é mais larga que as anteriormente usadas, contudo
mais precisa, pois é o “tijolo” que constitui os diferentes universais e, a partir dele,
é possível construir todos os outros. Pontes afasta as diversas nomenclaturas: uni-
versais, pela palavra denotar uma absolutização que não faz parte do jeto; essências,
por seu caráter hipostasiante, sua fluidez e falta de substância. Assim, a ciência não
contém idealismos, realismos, ou fenomenalismos, todas atitudes de uma filosofia
clássica, na visão ponteana.
As relações, sobre as quais investe Pontes de Miranda, não estão ligadas ao
sujeito e ao objeto, pois que impuros, elas se dão no plano dos jetos, entre jetos.
Na atitude da filosofia científica o sujeito conhecedor, penetra no objeto não como
sujeito, mas como jeto, eliminando, naquele contexto, a impureza do “su-”. São
(ob)jetivos, já dentro da operação do “por entre parênteses”, e só apresentando o
“(ob)” porque, para Pontes, a relação mais forte do jeto está com o objeto e não com
o sujeito conhecente, ainda que no problema do conhecimento, naquele momento
específico, as impurezas presentes sejam ignoradas diante do dado que se apreende.
A dualidade se desfaz, pois ambos são jetos: podem tanto vir do (su)jeito, como do
(ob)jeto. “Pontes de Miranda estava convencido de que a sua doutrina teria o mérito
de preservar, em sua inteireza, o programa do Círculo de Viena, que procura difun-
dir no país e ao qual adere.” (PAIM, 2007b, p. 9)
Não se deve por entre parênteses, ou seja, executar a equação jetiva – o que
para Pontes de Miranda seria a execução do método científico – quando o objeto
for insuficiente ou quando houver intervenção demasiada do sujeito. No primeiro
caso, ou temos um problema com os observadores e seus instrumentos – impureza
do sujeito, ou por conta das reações analisadas – objeto, ou porque nos enganamos
e estamos lidando com outras entidades – jeto diferente.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 153

O meu hábito é o de substituir à correlação sujeito-objeto, que me poria em


posição de pura consciência, a correlação (su)jeito-(ob)jeto, que me faz tratar
a mim mesmo, à minha mão que mede, aos meus olhos que veem, aos meus
dedos que examinam a estrutura da pedra, às minhas próprias escolhas de cál-
culo e encadeamento lógico, como instrumentais (MIRANDA, 1999, p. 117).

Pontes insiste na operação jetiva e, curiosamente, rompe com a noção do sen-


so comum sobre o que faz a ciência, a ruptura com a ontologia, utilizando uma
linguagem ôntica, como ele mesmo explicita, leva a uma igualdade de planos entre
as pedras, os sentimentos, o pensamento, as relações lógicas e matemáticas, os so-
nhos. “[...] ser ou não ser, quando, pela informação da Epistemologia e da Filosofia
científica, há graus de concreção, pois que o relacional o supõe e o comprova.”
(MIRANDA, 1999, p. 121)
Os limites que normalmente são utilizados para delimitar uma ciência exterior
e uma consciência (do latim conscientia, ou “estar a par de”, no sentido ponteano,
estar a par consigo, conhecimento interno; consciência que também vem do verbo
latino conscire, “saber em conjunto”) não se sustentam na visão colocada no Pro-
blema Fundamental do Conhecimento.

[...] não há diferença tão marcada quanto se pretende; será que o descobri-
mento de um algorito, de uma relação física, de uma relação biológica, é
de todo interior, se o descobrir, é ato e o ato supõe a relação sujeito-objeto?
(MIRANDA, 1999, p. 123).

Depois de apreendido o jeto, ele está livre para ser reconstruído, remontado
em novos jetos, em novas gramaturas de jeto, sem necessidade de nova extração,
sem se reportar a objeto individual, material.
A operação de extração, que se dá após a percepção, não é um elevar-se, não
é metafísica, mas permanece no mesmo plano, realizando sucessivos afinamentos e
extensões. É assim que se trabalha com o jeto. Pontes adota a noção de que somos
seres deficientes, compreende o problema da apreensão do conhecimento e como
a linguagem é ferramenta. “Tudo faz crer que somos incapazes de criar o a priori.
Por mais longe que possamos ir, as nossas raízes nos prendem à experiência.”
(MIRANDA, 1999, p. 174). Assume, pois uma atitude de submissão, ou sacrifício
do sujeito, para apreender o objeto.

A indução é a laboriosa (dolorosa mesmo) extração de jetos e a construção


jetiva, que se apresenta, por fim, sob a forma de proposições (qualquer que
seja a linguagem — a caminho aliás de uma pasigrafia, ainda que assintoti-
camente). E a experimentação é o contínuo voltar-se do espírito aos fatos, às
relações sociais, ricamente munido de universais (jetos), mas sem lhes em-
prestar formalismo absoluto, de liberdade omnímoda em relação aos fatos
(relações, real cognoscível). (OLIVEIRA, 2012)
154

Quanto mais primitiva uma linguagem, maior a sua concreção, sua relação
direta de coisa-nome. Vocabulários imensos, jetos diminutos. São jetos espessos,
mais próximos da concreção, pouquíssimos jetos finos, abstratos. Extraído e afina-
do o jeto ganha na sua indeformabilidade e no seu caráter verificável e comunicá-
vel: são as proposições verdadeiras que o uso no tempo substantivou, as metáforas
de Nietzsche (1999, p. 51) que foram petrificadas pelo tempo, mas que ainda são
metáforas. O absoluto está, na visão de Pontes de Miranda, fora do espaço de co-
nhecimento, apenas podemos lidar com a operação jetiva extrativa-situadora: dos
jetos mais espessos para os mais finos, e vice-versa. Os próprios jetos se unem na
composição dos objetos, é essa “comunicabilidade jetiva” que permite com que
associemos, raciocinemos.
Nesse sentido, Pontes constrói uma gradação relacionando as ciências e as res-
pectivas gramaturas de seus jetos, mas garantindo a autonomia de seu conteúdo – a
mesma noção é levada ao senso comum, de gramatura muito espessa. “A divisão de
ciências em empíricas e formais é, portanto, já de dentro das ciências, e não gnosio-
lógica.” (MIRANDA, 1999, p. 218)
A ciência indica, não age com imperativos. A existencialidade com que traba-
lha a ciência é não ôntica, mas não nega a ontologia. A lição de Pontes de Miranda
é clara, sua intenção também. Surpreende, por isso, que ele ainda seja considerado
“ontológico” no sentido clássico do termo. Quando o empírico ganha status de ab-
soluto, novamente a proposição verdadeira substantivada, é sinal indicativo, não
definitivo, de que encontramos o jeto; se falha a empiria é sinal de que o jeto, que
parecia ser adequado aos diversos casos, não o é. Necessária à busca de novo jeto
mais amplo, mais fino e elevado, por isso abstrato, por isso tratado como universal.
Tratado, sim, não sendo.
Os jetos mais finos, mais maleáveis, abstratos, manejáveis se relacionam mais
harmonicamente com as implicações lógico-formais do experiencial no mundo. Os
jetos mais espessos, de maior gramatura, não permitem perfeita correspondência
lógica; impossibilitam, por exemplo, a construção de axiomas. Quanto mais fino
o jeto, portanto, maior a capacidade de dedução de uma ciência. Já no processo
indutivo, a extração se dá normalmente após a construção teórica de uma lei após
exaustivo confronto com a realidade: só então é encontrado o jeto.

Entre um jeto e outro descobrem-se, por vezes, jetos, e entre o objeto e o


mais espesso dos jetos que lhe tiramos é de admitir-se que exista outro jeto,
ou existam outros jetos, que não extraímos [...] A fórmula “ôntico é o que
aparece, sensivelmente e por processos científicos, do que existe” satisfaz a
filosofia científica (MIRANDA, 1999, p. 259-260).

É possível compreender, então, que sub- e ob- que carregam impurezas, tam-
bém demarcam posições na observação. É o não eu e o eu, o objeto e o observador/
sujeito. A operação jetiva desnuda que gnosiologicamente isso não importa, pois se
trata, no fundo, de uma relação jeto-jeto impura.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 155

Se é certo que o mundo que vemos não corresponde, salvo funcionalmente,


àquele que a ciência nos reconstrói, também é certo que os nossos conceitos
não tem a liberdade que se supõe, na sua composição, porque os mais arbi-
trários, os mais fantasiosos, se fazem com elementos sensíveis divorciados ou
associados, e na sua admissão à ciência, porque se lhes exigem provas de se
ajustarem a objetos ou a jetos (MIRANDA, 1999, p. 266).

As relações jetivas, entre as ciências, também pode limitar determinado con-


ceito ao espaço de ciência específica. Assim, relacionado ao seu jeto, ou a alguns
jetos, determinado conceito pode sofrer com a possibilidade de transposição de uma
ciência para outra, ou, ao contrário, pode ser extremamente maleável. Os conceitos
que não são experimentáveis, passíveis de correção, além dos dissociados de forma
arbitrária, não reconstruindo os jetos na forma devida, levam ao erro. O filósofo
cientista pensa ter encontrado o jeto, quando, em verdade fez uma extração incom-
pleta, defeituosa. São as falhas já citadas anteriormente quando influi de maneira
equivocada o observador, ou o próprio meio experiencial. O conceito volta-se para
fora da relação gnosiológica, permite o conhecer, vai além traduzindo, mas ele não
tem um valor ontológico, é uma ponte ao que foi extraído via percepção.
A problemática da verdade, apresentada pela lógica clássica, não se sustenta: os
esquemas operativos da lógica clássica se portam de maneira devida, relacionados a
conceitos e julgamentos científicos, e verificavelmente, verdadeiros. Contudo, cabe-
riam, nos mesmos esquemas, conceitos e julgamento não verdadeiros, que não respei-
tam uma correção científica. O caráter apodítico do jeto está diretamente relacionado
com a possibilidade do mesmo jeto ser pensado como regra, ou consciência de ordem
(MIRANDA, 1999, 275). A consciência de ordem está relacionada a um conteúdo
anterior como as paredes não percebidas por aqueles que já estão no centro do salão,
para ficar com a metáfora de Pontes de Miranda. Não escapa o homem, pois da esfera
do concreto, do fisiológico, a percepção pela irritabilidade e pelo sentir.
É o “Eu” que é o agente da operação do conhecimento, mas de atribuição me-
ramente colhedora. As significações fazem parte do pensamento: para uma atitude
científica é necessário que esse Eu colhedor, se sacrifique; é a remoção, pela ciência,
da escória do sub- e do ob-. A ciência deve pretender esse conhecimento provado
– de proposições verdadeiras – como indicativos de fatos. Até mesmo, de forma
recursiva, o próprio conhecimento é mero indicativo de um fato e não o fato em si.
Pontes de Miranda sugere um holismo científico, o que hoje costuma se chamar
de inter e até transdisciplinaridade: a construção dos moldes da ciência que enxer-
ga o psíquico como esfera última, logo se põe à prova, percebendo que, por vezes,
o psí¬quico deveria ser a base da construção científica. O argumento é circular, no
sentido de que se curvando sobre si busca retornar e inter-relacionar todas as ciências,
sem uma verdadeira base gnosiológica, por que não existe tal justificativa.
“A verificabilidade, pelos métodos científicos, sela o valor jetivo das conclu-
sões [...] tal mensagem leva sempre o pós-escrito: ‘se os fatos forem diferentes,
retirarei o que disse [...].” (MIRANDA, 1999, p. 293). Pontes de Miranda conclui
sua teoria dos jetos levantando pontos já discutidos por todo o livro: não se deve
156

embasar uma Teoria do Conhecimento em uma Ontologia rígida; rechaço completo


de uma gnosiologia apsicológica e seu descritivismo excessivo. “Ora, as ciências
– em seu conjunto – podem servir-nos a uma filosofia que fuja, à ontologia, sem
mergulhar no ‘demasiado formal’, no secamento lógico, do criticismo, nem se por a
ferros o intuicionismo, que é reação àquele.” (MIRANDA, 1999, p. 58). A operação
do conhecimento é circular, não viciada, pois é o espaço que temos para cognição.

Todo sair do círculo é um despenhar-se no abismo, ou só é um falso sair,


como toda atitude dogmática: para em outro ponto e crê desfazer o círculo.
Ora, o círculo é, porque a relação entra a consciência e o mundo constituem
a linha única em que se conhece e tal relação é o próprio círculo. Nele cabem
(e dele não podem sair) todas as ambições e todas as inquietudes do homem
(MIRANDA, 1999, p. 302).

A consciência é, assim, fundamental na construção do conhecimento, é condi-


ção mesma dele. A mudança de consciência não afeta o mundo real, afeta o conhe-
cimento do mundo. O filosofo do conhecimento não avança, mas retorna sempre ao
ponto de partida, “marca passo” (MIRANDA, 1999, p. 313).

2.2. Um naturalismo diferenciado e o sistema de ciência


positiva: a “igual-força” das leis físicas e jurídicas

A construção do sistema de ciência positiva ponteano antecipou muitas das


tendências que, hoje, são consideradas fundamentais para a construção do conhe-
cimento científico. Assim, o sistema ponteano é desenvolvido a partir de um pano-
rama geral das ciências, especialmente da Física, Biologia e Psicologia, até chegar
aos elementos do que constituiria uma Teoria Geral do Direito. Dois tomos inteiros
compõem o esforço de Pontes de Miranda para dar base científica ao Direito.
O estilo ponteano é semelhante: sendo o Sistema de Ciência Positiva do Direi-
to uma obra que antecede em 12 anos O Problema Fundamental do Conhecimento,
é interessante notar que o autor se manteve fiel a uma estilista própria que o caracte-
rizou e, em parte, constituiu o “fenômeno da opacidade imagética” que será tratado
de forma breve neste trabalho.
Para entender a lição que Pontes de Miranda tenta passar através do seu siste-
ma, não basta entender seu contexto – já explorado nos capítulos anteriores: busca
por fundação de uma ciência nacional, mais especificamente de uma ciência do
direito nos moldes das ciências naturais. É preciso compreender que em 1922, o
jurista alagoano já aplicava fortemente em suas ideias as noções de interdisciplina-
ridade e holismo científico.

A Ciência do Direito não é somente ciência empírica da civilização, não se


serve apenas do método histórico, e não tem por única preocupação os valores
jurídicos; é também ciência da natureza, que estuda realidades físico-psíqui-
cas, forças sociais, processos biológicos da vida comum. Continua a Biologia,
como todas as ciências sociais (MIRANDA, 2005, T. 2, p. 168-169).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 157

O sistema ponteano compreende conceitos amplos. Na esteira da superação


einsteiniana que permitiu à mecânica relativística englobar a mecânica newtoniana,
Pontes pretende que a quantitatividade seja caso geral da qualitatividade, específica
dos fenômenos e superável a partir da coleta de dados e indução-experimentação.
É da Física que Pontes vai retirar outro importante sustentáculo de sua obra:
o principio da relatividade. A relatividade do espaço e do tempo será ferramen-
ta conceitual fundamental da observação ponteana da sociedade. É o relativismo
científico, no sentido da Mecânica quântica, espraiado pelas ciências, que mostra,
em 1922, as opiniões contrarias à ontologia e a falta de base para crer que a ciência
encontra “o real”, ao invés de “uma versão otimizada do real”.
O direito como continuação da Biologia e das outras ciências, é a isso que
chamam “naturalismo”. A expressão é alvo de enganos: sendo interpretada como
o “engessamento” de uma dinâmica do direito como ciência social, vai contra o
pensamento ponteano. Ora, o direito, para Pontes de Miranda, continua a biologia
de maneira imbrincada e complexa. Todas as ciências continuam umas às outras. A
divisão das ciências é organização logístico-didática de um todo que é o conheci-
mento humano acerca do mundo.
O que diz Pontes de Miranda é que a igualdade de força da lei jurídica com-
parada à lei física existe na medida em que a ciência torna possível. É uma recons-
trução de um modelo que melhor compreende e descreve a realidade, e por isso
objetivo. Quantos mal entendidos não foram criados a partir de uma interpretação
equivocada dos dizeres ponteanos? Lei, não é a lei abordada como “Fonte do Direi-
to” das cadeiras de Introdução ao Estudo do Direito nas universidades brasileiras,
a lei-código, o “dado de entrada” de Friedrich Müller. Sobre essas, é importante
salientar as palavras do próprio Pontes de Miranda: “As leis não são o Direito; a re-
gra jurídica apenas está em conexidade simbólica com a realidade” (MIRANDA,
2005, T. 1, p. 114, grifo nosso).
A lei jurídica é equiparável à lei física na sua acepção científica, na sua capa-
cidade de recriar intelectivamente modelos que traduzam de forma mais perfeita e
sistemática fenômenos da realidade. Nada falou Pontes de Miranda, que não se fale
ainda hoje nas academias jurídicas de todo o país, ainda entre aqueles que seguem o
ceticismo, a retórica e a cognição do homem pelas metáforas.
No Sistema também aparecem conceitos sociológicos: espaço social, que é
aquele onde se manifesta a energia social, através de suas relações – diferencia,
assim, espaço e energia/matéria social, da matéria ou energia no sentido dos corpos
(físicos). Percebe-se, pois, que Pontes de Miranda não era ingênuo – fato que ana-
lisaremos no próximo ponto –, muito menos praticou aquilo que Alan Sokal (2006,
p. 29) denunciou como sendo uma “impostura intelectual”. Importa notar, nesse
sentido, que a crítica de Sokal se dirige a um contexto não contemplado por Pontes
de Miranda, que é a pós-modernidade. Assumir que Pontes transpôs, da forma des-
crita por Sokal, conceitos das ciências naturais para as ciências sociais seria uma
conclusão absurda, pois a construção do sistema ponteano está distante do que se
entende por pós-modernismo, cujos primeiros lances históricos aconteceram após
158

1950; e, além, o jurista alagoano constantemente pontua o uso dos conceitos de ou-
tras ciências, seja a Física, seja a Biologia ou Psicologia, com as devidas ressalvas
e a necessidade de se compreender a ciência como um modelo – que ele crê mais
seguro – de explicação da realidade.
A adaptação social faz referencia à capacidade do individuo e da sociedade
de corrigir defeitos da relação homem-sociedade. O tempo social, por seu turno,
deve ser compreendido próximo ao “tempo quântico”: plural, peculiar ao contexto
dos sistemas, localizado e relativo. Refere-se a um tempo de cada grupo social.
“Esse tempo geral difere do de outros círculos e, assim confirma a descontinuidade,
e nos dá o uno de cada sistema, o que reforça a noção de continuidade.” (MIRAN-
DA, 2005, T. 1, p. 222)
Por fim, o círculo social, é o conceito que pretende representar a necessária
transcendência que se dá a partir da interação entre duas pessoas se construindo,
sistemática e complexamente, até o todo social. O círculo social cria um novo sis-
tema que se relaciona com todos os outros círculos sociais. Família, clã, Estado,
homoafetivos, católicos, são exemplos de círculos sociais rastreáveis a partir da
teoria ponteana.
Para Pontes o fenômeno social é complexo e a complexidade está intimamente
relacionada ao relativismo de se considerar as diversas facetas do fenômeno social
e do observador desses fenômenos. É nesse sentido que Pontes pensa a imagem de
um hiperespaço (n-dimensional > 3 dimensões) para representar funções capazes
de incorporar todos os elementos da vida social.
Pontes segue, mas excede a orientação do positivismo comtiano. Por isso preten-
de uma sucessão, sem eliminação de três momentos (MIRANDA, 2005, T.2, p. 169):
“1. Sentimento: intuição; empiria jurídica.
2. Ideia: dedução; racionalismo.
3. Investigação científica: indução; ciência”.
A interposição de estágios, na obra ponteana, está intimamente ligada a uma
conclusão comum aos “cientistas do direito”, especialmente da linha cética, de que
a sucessão de estágios – o exemplo clássico é a linha que vai do jus naturalismo ao
positivismo jurídico – não elimina os anteriores. No mesmo sentido em Garra, Mão
e Dedo (2002, p. 58), Pontes de Miranda constrói uma metáfora que associa estágios
da evolução humana à garra, à mão e ao dedo. Se o homem moderno é o dedo, ele
não perdeu seu estágio de mão e garra que se encontram “adormecidos”, “sobrepu-
jados” em potência pelo dedo que indica. Novamente a recorrente ideia no autor de
que a superação logística do conhecimento não elimina, não oblitera a concepção
anterior, ainda válida, mas, se equivocada, rastreável a construção do equivoco a
partir de uma visão mais geral; se limitada, parte de um todo mais completo.
A opinião ponteana é de que falta à ciência do Direito os dados que são encon-
trados a partir de aplicação do método científico. Em 1922, Pontes de Miranda com-
batia com singular destaque o mero debate de ideias. A fé na ciência aparece, até
mesmo, na possibilidade de revelação, descobrimento, experimentação no processo
de interpretação da lei. Sempre dentro dos pressupostos científicos, sempre falíveis.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 159

Outro conceito basilar da teoria ponteana é a ideia de processos sociais de


adaptação, juntamente com a redução do quantum despótico. Os processos sociais
de adaptação aparecem como uma espécie de “programas” que permitem a existência
dos círculos sociais. A metáfora computacional não está em Pontes. A expressão pro-
cessos, nesse sentido, aparece como um conjunto de “instruções” que tem, como fim
último, a adaptação do homem à sociedade e a redução do quantum despótico.
O quantum despótico é a capacidade de cada processo social de interferir na
vida, na liberdade do sujeito e da sociedade. A redução do quantum despótico está
intimamente relacionada à estabilidade a partir da adaptação (MIRANDA, 2003,
p. 150). Pontes estabelece pesos para os sete principais processos de adaptação:
quanto à estabilização – Religião, 7; Moral, 6; Estética, 5; Ciência, 4; Direito, 3;
Política, 2; Economia, 1 – quanto ao quantum despótico – Religião, 5; Moral, 3;
Estética, 2; Ciência, 1; Direito, 4; Política, 7; Economia, 6. Os valores são explica-
dos pelo autor como aproximações valorativas para induções que, até o fechamento
dessa pesquisa, não tiveram os registros encontrados. A recomposição se daria da
seguinte forma: “Para isso basta que se tente mudar a religião, a moral, o gosto
estético, convicção gnoseológica [...]” (MIRANDA, 2003, p. 207). Quanto mais
resistente à mudança, maior o grau de estabilidade.

2.3. Retórica estratégica, doxografia e a


opinião do jovem Gilberto Freyre

Os pontos 2.1 e 2.2 foram exclusivamente fichas de leituras com algum co-
mentário. Como abordado na introdução, o método é a atuação do autor estudado
sobre o seu tempo, e os pontos anteriores apresentam resumos das ideias ponteanas
em obras específicas. Mas a associação com a ideia de retórica estratégica exige um
comparativo, um diálogo que é sustentado a partir da doxografia, ou seja, da opinião
de outros autores sobre o autor estudado aqui.
O problema que uma pesquisa sobre Pontes de Miranda demonstra é que o juris-
ta alagoano, por diversos motivos, oblitera sua oposição a partir de adesão da grande
maioria dos outros autores. Outro fator marcante é que Pontes de Miranda nunca tra-
vou grandes embates: se recebeu ou se fez críticas, o movimento não foi recíproco.
Quantas não são as colocações irônicas que permeiam suas obras? A acidez
ponteana é reconhecida por seus seguidores e adversários. Seria possível, provavel-
mente, compor embates se o objeto desse estudo fosse a dogmática ponteana, não
sua filosofia. A conclusão que desenvolveremos dará conta de demonstrar que sua
filosofia sofreu de forma ainda mais violenta o efeito da opacidade.
Em 1923, na coluna “Da outra América”, Gilberto Freyre se correspondia com
o Diário de Pernambuco, estando nos Estados Unidos da América. No artigo do dia
16 de setembro de 1923, Freyre (1979, p. 308), dedicou suas palavras para opinar
acerca da obra ponteana que adjetivou por “luxuosa”, no sentido de ser algo além
do que o leitor médio brasileiro era capaz de compreender e por entender que de
nada adiantava a criação escrita, sem leitores. Freyre classifica o público leitor das
obras ponteanas:
160

Mas foi feliz o Sr. Pontes de Miranda. Espantosamente feliz. Conseguiu criar
para as ideias puras, em pleno país de bananeiras, um público relativamente nu-
meroso, ainda que nem sempre discriminador, antes demasiado plástico e pas-
sivo. [...] Ele conseguiu o milagre de criar um público para o que escreve: tem
diante de si a rara oportunidade de fazer obra integral (FREYRE, 1979, p. 308).

A crítica freyreana é ferina. Ao relembrar Tobias Barreto, faz reviver sátiras


em seu artigo opinativo: questiona veementemente a quantidade de elogios e o
grau dos encômios que recebeu Pontes de Miranda. Um Pontes que se formara
apenas 10 anos antes, na Faculdade de Direito do Recife. Freyre acusa Pontes
de usar de retórica, sem conteúdo. “Isto é de discurso de colegial aliteratado.”
(FREYRE, 1979, p. 310). Interessante notar que é o “jovem” Gilberto Freyre que
critica o “adolescente” Pontes de Miranda. Ora, Pontes de Miranda nasceu 8 anos
antes de Freyre. Freyre se correspondia em 1923, tinha adquirido recentemente o
título de mestre na Universidade de Columbia.
A resposta nunca aconteceu. Pontes de Miranda sempre evitou o desgaste de
embates desse tipo, apesar de ser aprendiz da escola de Tobias Barreto, que tinha
nos embates opinativos uma de suas maiores ocupações. Em parte o perfil traçado
por Freyre (1979, p. 311) explica a atitude de Pontes de Miranda:

Muito me encanta no jovem pensador brasileiro que ele não é só um espírito,


mas também um temperamento. Um temperamento muito amigo de si pró-
prio. De um egoísmo nietzscheano. Sempre a vibrar do que certos psicólogos
chamam empatia (do grego em-pathos), isto é, da delícia de encontrar-se o
seu “eu” em tudo, a ponto de “só amar os deuses parecidos consigo”. Não há
nisto inconveniência para um pensador. É Miguel de Unamuno quem nos diz
um tanto paradoxalmente que não há nada mais universal que o individual.

É possível extrair, uma resposta de Pontes de Miranda a partir de escrito na


obra A Sabedoria dos Instintos, 1921, criticada por Gilberto Freyre. Disse Pontes
de Miranda (2012):

17. Leitores
Feliz o autor que encontra três leitores sábios. - Os bons livros são aqueles
em que se nos depara um pouco para todos, ao passo que o livro forte é o em
que cada um se encontra a si mesmo. Espiritualmente, cinco mil leitores para
nós outros nada valem. É grave prejuízo para o escritor que cerca de cinco mil
medíocres se encontrem nele.

Os primeiros sociólogos de cunho científico da história brasileira, não troca-


ram palavras diretas, mas se entendiam, além do gênio.
Quanto às três provas artísticas de Aristóteles, que compõem a arte retórica
teríamos: o ethos – a credibilidade de quem fala – de Pontes de Miranda era absurdo.
Desde o início de sua carreira, com os elogios de Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa,
o entorno de Pontes de Miranda construiu a mítica que chegou à adjetivação de
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 161

“gênio”, combatida nesse trabalho. Que Pontes de Miranda foi um dos maiores
juristas do século XX, não se pode negar, os dados objetivos testemunham a favor
do autor alagoano, mas o efeito gerado pela adesão às ideias ponteanas, e além, pelo
respeito à figura de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, criaram o que neste
trabalho vem sendo chamado fenômeno da opacidade.
O pathos – ou a capacidade de cativar o auditório – ponteano é complexo.
Pontes de Miranda possuía um estilo sempre rebuscado, neologista, prolixo que em
parte afastou os leitores de seus trabalhos, ou gerou maiores e mais danosos mal en-
tendidos. Se o autor alagoano buscou, toda a vida, por uma erudição científica, um
discurso de precisão e refino, não foi esse o contexto gerado pela educação jurídica
brasileira que ele presenciou com o passar do tempo. Pontes de Miranda foi cons-
tante crítico da proliferação das escolas de direito no país, ao que chamou “bacha-
relismo”. Por outro lado, a construção do texto do jurista alagoano cativou, e segue
cativando, seguidores como Djacir Menezes, Pinto Ferreira, Marcos Bernardes de
Mello, para ficar com esses exemplos.
A última prova artística da Ars Rhetorica é o logos – o apelo lógico, a capa-
cidade do orador/escritor de alcançar o senso de lógica de seu auditório. O logos
ponteano é tão complexo quanto seu pathos. Sendo “homem da ciência”, Pontes de
Miranda caminhava com alguma facilidade pelos mais diversos espaços do saber
científico. Disso dois problemas: o primeiro, que atacar a lógica do texto ponteano
exige de quem ataca conhecimento vasto, ou a união de uma equipe multidiscipli-
nar para dissecar a enorme quantidade de publicações; segundo, as leituras da obra
ponteana são, na visão aqui defendida, equivocadas. A leitura errada dos marcos
teóricos propostos pelo jurista alagoano causou confusão quanto à correta interpre-
tação do que ele disse. A conclusão do presente trabalho intenta uma aproximação
pessoal do que queria Pontes de Miranda, fazendo uma releitura que, somada a tudo
que já foi mostrado aqui, apresente uma proposta mais coerente que será chamada
cientificismo espiritualista.

3. A aplicação da esfera metódica para


percepção da singularidade da obra pontesiana:
menos ontologia, mais relativismo

Este capítulo tem como objetivo fundamental a releitura, a crítica científica.


Dessa forma os pontos debatidos nesse trabalho serão aqui colocados de forma sin-
tética com a devida análise e revisão histórica necessária acerca do filósofo e jurista
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.
Ainda que impressione pela quantidade, é possível criticar a profundidade das
referências, nos textos ponteanos. O autor parte de um recurso de construção textual
que obriga o leitor, a saber, antecipadamente, todas as obras que ele elenca em seus
textos. Especialmente em O Problema Fundamental do Conhecimento, Pontes peca
pela conexão entre aquilo que afirma e as obras que referencia, especialmente no
sentido de possível reconstrução dos temas abordados.
162

Pontes de Miranda não é um nominalista crítico. De acordo com o Dicio-


nário Oxford, o nominalismo pode ser entendido como:

The doctrine that universals or general ideas are mere names without any
corresponding reality, and that only particular objects exist; properties, numbers,
and sets are thought of as merely features of the way of considering the things
that exist. Important in medieval scholastic thought, nominalism is associated
particularly with William of Occam29 (OXFORD DICTIONARIES, 2012).

A teoria do conhecimento que Pontes de Miranda aborda no ensaio O Proble-


ma Fundamental do Conhecimento não pode ser entendida como um nominalismo.
Existe uma confusão, especialmente no que envolve a equação jetiva, entre o mode-
lo cientifico, explicativo, logístico que Pontes de Miranda propõe para “rastrear” o
conhecimento e a ideia de que os universais são simplesmente nomes, sem corres-
pondência no mundo real.
A partir da releitura feita nesse trabalho a visão de Vita (1969, p. 60) se mostra
totalmente equivocada. O nominalismo não admite a existência do universal nem no
mundo da experiência, nem do pensamento – ele é mera flatus vocis. Pontes pensa
que o jeto, e não o universal – a necessidade de um novo nome é retoricamente
estratégica –, é extraído de uma operação que relaciona os dois aspectos: não é
realista, não é conceptualista. A operação da extração, a operação mental, necessa-
riamente, perpassa pelos dois polos: o objeto e o sujeito. Afastado um, cai por terra
toda a construção ponteana.
Profícua é a comparação que pode ser desempenhada entre o pretenso positi-
vismo lógico de Pontes de Miranda e o culturalismo de Miguel Reale. É na obra
Experiência e Cultura que Miguel Reale (2000, p. 11) vai abordar o que ele chamou
de ontognoseologismo. Interessante notar que da mesma forma que Pontes de Mi-
randa pensou a equação jetiva como a conjugação sujeito-objeto, assim é a cons-
trução de Miguel Reale: o onto faz referência ao objeto, o gnosiológico ao sujeito.
Também como Pontes, Reale não estabelece um domínio de um lado da “moeda
do conhecimento” sobre o outro. Sujeito e objeto são necessários para a produção do
conhecimento, para a compreensão da realidade. A realidade entre sujeitos é a realidade
interobjetiva. Para combater qualquer reducionismo, Miguel Reale expõe claramente
aquilo que está em Pontes sem o nome que damos hoje: a interdisciplinaridade.

É diante dessa fratura do pensamento contemporâneo que procuro situar-


me, cooperando com aqueles que, em diversos campos do saber, objetivam
elaborar uma Teoria do Conhecimento que abranja todos os aspectos da
realidade, e, ao mesmo tempo, lhes assegure relativa unidade. Tal objetivo me
parece viável se levarmos em conta tanto a contribuição do sujeito como a do
objeto no processo cognoscitivo, no âmbito do que denomino Ontognoselogia
(REALE, 2000, p. 17-18).

29 Em tradução livre: “A doutrina de que universais ou ideias gerais são meros nomes sem nenhuma correspondência com
a realidade, e que apenas objetos particulares existem; propriedades, números, e conjuntos são vistos como recursos
na forma de considerar aquilo que existe. Importante no pensamento escolástico medieval, o nominalismo é associado
particularmente com Guilherme de Occam”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 163

A melhor categorização para o filósofo Pontes de Miranda é de cientificista


espiritualista. Por cientificismo espiritualista não queremos dizer nada além do
apego aos métodos, da relatividade advinda do conhecimento científico, da visão
positiva do mundo. O cientificismo espiritualista mistura a ação da ciência com uma
gestão otimista da sociedade. Sua maior função é gerar modelos que traduzam o real
e sejam capazes de operar logisticamente a sociedade para alcançar o maior grau
de felicidade possível. A teoria ponteana é sistêmica. Ela pode ser correlacionada
tomando como base o Sistema de Ciência Positiva do Direito.
Pontes de Miranda não era um ontológico no sentido clássico. É preciso
perceber uma distinção: a ontologia aqui trabalhada não é a ontologia do Experi-
ência e Cultura de Miguel Reale, ou o reconhecimento de um limite imposto pelo
mundo em Marcuschi (2007). A versão da ontologia rechaçada aqui é aquela em que
ao investigar o ser, mais precisamente o objeto, buscando sua essência, concluiria
que a resposta encontrada é. O que se dá com isso é a cristalização total, ou seja, a
ideia de que determinado objeto não é mutável. Rechaçar o termo é uma proposta
que o próprio Pontes de Miranda busca, exatamente pelo comprometimento meta-
físico daquele.
Nesse sentido, a posição ponteana (MIRANDA, 2005, T. II, p. 184): “A posição
que assumimos quanto ao método bem nos dispensaria a indagação de tais problemas,
que elidimos, por isso mesmo que renunciamos a todo pretenso investigar ontológico”.
Assim como Miguel Reale, Pontes de Miranda aceita a ontologia a partir de
um novo sentido: como investigação das coisas, sem buscar uma pretensa natureza
intima imutável.

A ciência não supõe ontologia, – o que ela supõe é que se alcance, em certos
pontos, o ser, e que as construções sejam verdadeiras, isto é, apresentem
pressupostos suficientes de funcionalidade em relação ao pensamento
mesmo e em relação ao ser (MIRANDA, 1999, p. 267, grifo nosso).

Assim, satisfaz a ideia de cientificismo espiritualista. A revisão da ciência


e da teoria do conhecimento modernas e sua persecução retificável aos “objetos
do mundo” e sua relação complexa com os sujeitos é suficiente para as conclusões
pragmáticas, retoricamente autorreferentes, deste trabalho: a realocação de Pontes
de Miranda, na história das ideias jurídicas nacionais, em posição condizente com
seu pensamento.
A ontologia ponteana é uma “ontologia” provisória atenta aos limites da ciên-
cia. “Ontologia” com aspas, nesse trabalho, difere fundamentalmente de Ontologia,
sem aspas. Conceitualmente diferentes, a primeira está presa ao principio da relati-
vidade, tão abordado pela ciência desde Einstein.
164

4. Conclusão: o caráter pragmático a


ser extraído da obra ponteana

A crítica procedente é aquela que vai demonstrar a própria metafísica no tra-


balho de Pontes de Miranda, metafísica tão atacada na obra do jurista alagoano,
especialmente pela pretensão científica da mesma. Não é despropositado que Mi-
guel Reale (1994, p. 143) tenha dado o título de “Pontes de Miranda, um metafísico
que se ignora” ao discurso com o qual recebeu o amigo alagoano na Academia
Brasileira de Letras. Contudo, tal conclusão não apresenta desvalor, nem diminui a
construção científica do autor de O Problema Fundamental do Conhecimento e do
Sistema de Ciência Positiva do Direito.

No discurso de saudação a Pontes de Miranda na Academia Brasileira de


Letras – publicado na Revista Brasileira de filosofia, fascículo 117, janeiro-
-março, 1980 - Miguel Reale, indica que, com o passar dos anos, Pontes de
Miranda amenizaria o empirismo radical. Parece-lhe mesmo que a teoria dos
“jectos” poderia ser interpretada como uma tentativa de deslocar a coisa em
si kantiana do plano transcendental para o empírico, tornando compreensível
a abertura que viria a revelar em relação à transcendência. Recorda que, na
obra literária, Pontes de Miranda afirmaria que o Real “é um deus, e, como
todos os deuses, invisível e absoluto”. Assim, sob a rígida catadura científica
em que se procurou encerrar sua obra, descobre-se um romântico da univer-
salidade cósmica (PAIM, 2007a, p. 280).

“É fraca a sustentação ponteana do caráter científico na teoria dos jetos”: essa é


a interpretação errônea que esse trabalho pretende retificar. Os esquemas expostos em
O problema fundamental do conhecimento só servem a partir de uma visão metafórica
do saber. Não, Pontes de Miranda não utilizou a metáfora como uma teoria, ainda que,
em paralelo, a teoria ontognoseologica de Miguel Reale, similar em tantos pontos a
teoria dos jetos, faça referencia expressa a ela. A obra epistemológica do jurista ala-
goano é um Ensaio, e como tal deve ser compreendida. As observações que buscam
cientificidade na obra supramencionada deixaram escapar que o objetivo maior de O
Problema Fundamental do Conhecimento é fundar poética e didaticamente – duas
características de toda a produção intelectual de Pontes de Miranda – uma filosofia
científica, base da ciência Logística: cujo maior escopo seria a máxima ordenação
possível do mundo, buscando otimização e operatividade. Pergunta não respondida
neste trabalho: qual o limite no uso das palavras “metafisica”, “ciência” na obra pon-
teana? Sobre isso, por hora, podemos apresentar apenas o silêncio.
Aqui a interpretação é do saber como uma “literatura do saber”, e essencial-
mente, como um saber prático. As conclusões a que chega CASTRO JR (2009) em
sua tese de doutorado, comparando as teorias prima facie incompatíveis de Lourival
Vilanova e Pontes de Miranda, podem ser aplicadas ao presente trabalho. Nesse
sentido: “Ambos os modelos, como se vê, são igualmente metafóricos em relação à
continuidade do tempo, apesar de ambos preocuparem-se tão enfaticamente com a
‘objetividade’ de suas considerações” (CASTRO JR., 2009, p. 107).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 165

A teoria dos jetos, ao falhar em alcançar o “grau de cientificidade adequado”


– expressão aspeada por conter enorme vagueza –, serve enormemente a esquemas
explicativos da superação metodológica das ciências. Que sirva a lição indutiva da
obra ponteana para por a prova toda teoria do jeto, que volte contra si mesma, mais
científica. Que também sirva a lógica com seus arranjos otimizadores para modelos
científicos e a dedução, que para Pontes de Miranda, viria após as conclusões indu-
tivas, mais seguras.
Da visão pragmática aqui colocada, não podemos escapar da conclusão que
detectou um fenômeno aqui chamado de opacidade. A opacidade na história das
ideias funciona como um jogo de lentes utilizado pelo sujeito-observador. Assim
como na sociologia, a opacidade opera um efeito da inclusão pela exclusão, em
relação cíclica: por todos os motivos já elencados anteriormente a obra de Francisco
Cavalcanti Pontes de Miranda recebe o filtro da opacidade que a qualifica como
“genial”. É justamente através da mitificação que a opacidade se perfaz, excluindo a
verdadeira e objetiva apreciação do que escreveu Pontes de Miranda. As consequên-
cias são, e foram, as mais nefastas. Pelo fenômeno da opacidade, diversos enganos
acerca do pensamento ponteano se deram, impedindo uma visão equilibrada que
reconhecesse as limitações, mas que percebesse que Pontes excedeu não apenas a
Ontologia, como o programa do positivismo lógico do Círculo de Viena e muitas
das “etiquetas” que a história jurídica nacional pregou em sua obra.
166

REFERÊNCIAS

ACERBONI, Lídia (1969). A filosofia contemporânea no Brasil, trad. de João


Bosco Feres. São Paulo: Grijalbo Ltda.
ADEODATO, João Maurício (2005). Filosofia do direito – uma crítica à verdade
na ética e na ciência, 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva.
_____ (2009). Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 4ª ed., rev.
e ampl. São Paulo: Saraiva.
_____ (2010). A retórica constitucional: sobre tolerância, direitos humanos e ou-
tros fundamentos éticos do direito positivo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito. In: Revista Brasileira de
Filosofia. Vol XXXIX, fascículo 163, julho-setembro. Editora IBF. São Paulo.
BURKE, Peter (2008). O que é história cultural? 2ª ed. Rio de Janeiro: J. Zahar.
______ (1997). A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da his-
toriografia. São Paulo: Ed. UNESP.
CASTRO JR., Torquato da Silva (2009). A Pragmática das Nulidades e a Teoria
do Ato Jurídico Inexistente. São Paulo: Noeses.
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB)
(2011). Disponível em: <http://www.cdpb.org.br/dic_bio_bibliografico_miranda-
francisco.html>. Salvador, Bahia, Brasil. Acesso em: 27 out. 2011.
FAUSTO, Boris (2002). História do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Universidade de
São Paulo.
FLORIANO, Raul (1973). Pontes de Miranda – o intelectual e o homem. In: Revis-
ta dos Tribunais (Notas e Comentários). São Paulo: RT, nº 457, p. 281-288.
FREYRE, Gilberto (1979). Tempo de Aprendiz: artigos publicados em jornais na
adolescência e na primeira mocidade do autor 1918-1926. São Paulo: IBRASA.
MACHADO NETO, Antonio Luis (1969). Historia das ideias jurídicas no Brasil.
São Paulo: Grijalbo: Editora da Universidade de Sao Paulo.
MARCUSCHI, Luiz Antônio (2007). Cognição, linguagem e práticas interacio-
nais. Rio de Janeiro: Lucerna.
MELLO, Marcos Bernardes de (2008). A genialidade de Pontes de Miranda. Revis-
ta Getulio. São Paulo, março, 2008.
MENEZES, Djacir (1959). O sentido antropógeno da história. Rio de Janeiro:
Ed. Simões.
MERCADANTE, Paulo de Freitas (2012). Pontes de Miranda: crítica à redução fe-
nomenológica. Disponível em: <http://paulomercadante.wordpress.com/2009/08/12/
pontes-de-miranda-critica-a-reducao-fenomenologica-3/ >. Acessado em: 22 abr. 2012.
MEUCCI, Simone (2006). Gilberto Freyre e a sociologia no Brasil: da sistemati-
zação à constituição do campo científico. Campinas: [s. ed.].
MIRANDA, Pontes de (1978). Sem Democracia e Liberdade não há Estado de Di-
reito. Revista Jurídica Lemi, abril 1978.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 167

______ (1999). O problema fundamental do conhecimento. Campinas: Bookseller.


______ (2002). Garra, Mão e Dedo. Campinas: Bookseller, 2002.
______ (2003). Introdução à Sociologia Geral. Campinas: Bookseller, 2003.
______ (2005). Sistema de Ciência Positiva do Direito. Campinas: Bookseller,
2 tomos.
______ (2012). Discurso de Posse. Disponível em: < http://www.academia.org.br/
abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=130>. Acesso em: 07 abr. 2012.
MOTA, L. D. (Coord.) (1982). A história vivida: entrevistas. São Paulo: O Estado
de S. Paulo.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (1999). Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural.
OLIVEIRA, Mozart Costa de (2012). Alguns Pontos da Filosofia Científica de Pon-
tes de Miranda. Disponível em: <http://mozarcostadeoliveira.blogspot.com/2012/02/
alguns-pontos-da-filosofia-cientifica.html> Acessado em: 08 mar. 2012.
OXFORD DICTIONARIES. Disponível em: <http://oxforddictionaries.com/
?region=us>. New York, NY, USA. Acessado em: 23 de agosto de 2012.
PAIM, Antonio (2007a). História das Ideias Filosóficas no Brasil. 6ª ed., vol. 2.
Londrina: Edições Humanidades.
______ (2007b). A Filosofia Brasileira Contemporânea. 2ª ed., vol. VII. Brasília:
Edições Humanidades.
PEREIRA, Caio Mário da Silva (1992). No centenário de Pontes de Miranda. Re-
vista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Janeiro, n. 3, Ano VI,
p. 101-106.
PINTO FERREIRA, Luiz (1980). História da Faculdade de Direito do Recife.
Recife: Ed. Universitária da UFPE.
QUEIROZ, D. S. (2012). As vozes d’Africa. Discurso de Posse. Disponível em: <http://
www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13116&sid=131>.
Acessado em: 08 abr. 2012
REALE, Miguel (1994). Figuras da inteligência brasileira. 2ª ed. refund. e aum.
São Paulo: Siciliano.
REALE, Miguel (2000). Experiência e Cultura. 2ª ed. revista. Campinas: Bookseller.
SALDANHA, Nelson (2011). História das ideias políticas no Brasil. Brasília:
Senado Federal.
SKIDMORE, Thomas E. (1998). Uma história do Brasil, trad. de Raul Fiker. São
Paulo: Paz e Terra.
SOKAL, Alan D. (2006) Imposturas intelectuais, trad. Max Altman. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Record.
VITA, Luis Washington (1969). Panorama da Filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo.
A CRÍTICA DE GILBERTO FREYRE
AO BACHARELISMO:
ensaio para uma análise retórica

Lorena Freitas

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar retoricamente as ideias jurídi-
cas de Gilberto Freyre. Acerca da retórica, esta tem sido trabalhada por duas
vertentes: a) focando a fronética (Ottmar Ballweg) em razão de a referência
central ser Gilberto Freyre como sujeito retórico, e então: b) apropriando-se
do discurso freyreano para observar as figuras de linguagem que indicam o
gênero deliberativo.
Palavras-chave: Gilberto Freyre. Retórica. Ideias jurídicas.
Abstract: This paper aims to analyse rhetorically the legal ideas by Gilberto
Freyre. Concerning the rhetoric, this has been worked from two ways:
a) focusing the fronetic (Ottmar Ballweg), because the main reference is
Gilberto Freyre as rhetoric subject, and then: b) observing his speech in order
to highlight the linguistic figures that indicate a deliberative genre.
Keywords: Gilberto Freyre. Rethoric. Legal ideas.
Sumário: Introdução: A proposta de uma análise retórica em Gilberto Freyre:
o caráter de ensaio e estrutura de abordagem. 1. Acerca dos níveis retóricos:
aproveitando as intuições de Ballweg. 1.1. A apresentação sucinta dos níveis
retóricos em Ballweg: a cada leitura um novo detalhe; 1.2. Duas possibilida-
des congruentes de identificar os níveis retóricos numa análise. 1.2.1. A partir
da proposta da retórica realista em Adeodato: método, metodologia e metódi-
ca. 1.2.2. A partir da fronética, holística e semiótica. 2. O contexto histórico-
-cultural em que Gilberto Freyre é criado para uma compreensão da retórica
material. 3. A falta de uma perspectiva sociológica na formação dos “doutores
bacharéis acadêmicos”: a crítica ao bacharelismo como filtro da linguagem
comum (elementos de uma retórica estratégica). 4. Questões para uma des-
construção da conferência Sociologia, Ecologia e Direito. 4.1. O discurso
freyreano como gênero deliberativo e epidíctico e a característica do tempo
presente na censura aos bacharéis em direito. 4.2. Passos para a desconstrução
de um discurso como exercício de uma retórica analítica: acerca dos tipos de
argumentos e figuras mais recorrentes. 5. Considerações finais: originalidade
e continuidade nas ideias de Gilberto Freyre. Referências.
170

Introdução: a proposta de uma análise retórica em


Gilberto Freyre: o caráter de ensaio e estrutura de abordagem

O objeto deste trabalho faz parte da temática estudada no Grupo de Pesquisa


“As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil: originalidade e continuidade
como questões de um pensamento periférico”.
Dentre os vários autores estudados, nossa opção foi por Gilberto Freyre, por
razões que exporemos adiante, sendo o objetivo geral a realização de uma análise
retórica de suas ideias jurídicas. Nesse intuito, o GP vem pesquisando acerca da
retórica como método, do que decorre a tentativa de compreensão dos níveis retóri-
cos que Ballweg (1991) propõe, bem como uma metodologia de uniformização das
análises retóricas a serem feitas pelos pesquisadores.
O trabalho ainda procura uma maneira própria de fazer uma análise retórica,
apesar de ter um parâmetro geral para a pesquisa – passos metodológicos – a exem-
plo da busca inicial da biografia do autor escolhido, para identificá-lo e também os
eventos históricos que viveu, seguida de pesquisa de suas obras, doxografia e biblio-
grafia sobre a época, para então identificar os problemas que o próprio autor levanta,
aqueles colocados pelos seus doxógrafos e os levantados por nós pesquisadores,
bem como tomar apoio teórico em textos que metodologicamente se direcionam
para uma análise retórica.30
Com a devida vênia, assume um caráter de ensaio tal monografia principal-
mente por encarnar a sensação de desbravamento que, de forma literária, o poeta
espanhol Antonio Machado expressou nos versos “caminhante, não há caminho, o
caminho se faz ao caminhar”. Assim, o trabalho enfrenta problemas que reforçam
sua característica ensaística, tais como:

a) trabalhar com um autor que não é jurista, visto o projeto centrar-se nas
ideias jurídicas no Brasil;
b) quanto à retórica, ter uma bibliografia abrangente (aspecto positivo), con-
tudo exígua quanto aos níveis da retórica e ao desenvolvimento de uma aná-
lise retórica;
c) por ser parte de um projeto maior de estudo do GP, cujas pesquisas e dis-
cussões estão em andamento e ainda em produção, esta monografia inaugura
nossa tentativa de uma análise retórica.

Estes fatores indicam a provisoriedade das hipóteses a serem trabalhadas no


texto, como nossa proposta específica de análise retórica, no que concerne:

a) à identificação geral dos três pontos ou capítulos respectivamente ligados ao


método, metodologia e metódica para um estudo retórico em Gilberto Freyre;

30 Textos como os de Sobota e Adeodato foram os pontos de partida para a construção de uma forma de analisar
retoricamente um texto; naquele chamou-nos a atenção o estilo de desconstrução e análise de argumentos e neste a
estrutura em tópicos separando pressupostos e problemas. Ver SOBOTA (1996) e ADEODATO (2005).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 171

b) à identificação dos âmbitos ou níveis retóricos: material, estratégico ou prático;


c) à restrição, por ora, de análise retórica a partir da fronética, nos seus três
campos: agôntica, ergôntica e fitanêutica;
d) no âmbito da fitanêutica, a possibilidade de problematizar o discurso freyre-
ano como gênero deliberativo, dados os elementos de um discurso epidíctico
na característica do tempo presente na censura aos bacharéis em direito;
e) à concretização da análise retórica por meio da identificação de argumentos
éticos, lógicos e patéticos e das figuras de linguagem que afloram na argu-
mentação freyreana.

Estas questões colocadas, além de expressarem dúvidas ainda presentes, for-


mam as hipóteses em que se erguem as discussões trazidas neste trabalho. Antes de
expor como estes cinco itens são trabalhados, resta justificar a opção por Gilberto
Freyre e sua aderência ao projeto do Grupo de Pesquisa.
Inicialmente a escolha foi influenciada pelo estudo do pragmatismo e pela in-
tenção de identificar possíveis influências dessa corrente filosófica no pensamento de
Gilberto Freyre. Nossa principal hipótese podia ser expressa no seguinte problema:
a ênfase na necessidade de análise dos fatos empíricos e a consequente aproximação
das ciências jurídicas e sociais teria fundamento numa possível influência recebida do
pragmatismo e da Escola de Chicago durante sua estada acadêmica nos EUA?
Para este foco, considerávamos: a) sua admiração pelos filósofos pragmáticos
americanos; b) o contexto de fase áurea da Escola de Chicago e desenvolvimento
de uma vocação sociológica empírica nos centros universitários de estudos sociais
americanos coincidindo com a época em que estudava em Columbia; c) que o prag-
matismo é uma filosofia prática, tendo como diretriz a máxima de que a utilidade está
nas consequências práticas, logo elidindo um saber puramente especulativo (JAMES,
1974, p. 10) e prezando por sua aplicação no real, postulado que inspira a Escola de
Chicago; d) que na trilogia Casa-grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e
progresso, principalmente, Freyre usa sobremaneira da investigação sociológica com
base em documentos pessoais, técnica esta empregada pela primeira vez por William
Thomas – a quem reconhece como um dos seus mestres e um dos maiores sociólogos
da modernidade (VILA NOVA, 1995, p. 55) – e Florian Znanieki, expoentes da Esco-
la de Chicago, quando pesquisaram sobre os imigrantes poloneses nos EUA.
Ainda como estudante orador na coloção de grau do Colégio Americano Batista,
em 1917, Freyre profere discurso e defende a concepção pragmática do saber: “[...]
sem um fim social o saber será a maior das futilidades” VILA NOVA (1995, p. 53).
E nas suas anotações pessoais em diário relata que “é um tal de William James que
talvez seja o filósofo moderno mais capaz de dar ao mundo de agora uma filosofia
adequada a várias formas novas de experiência humanas” (FREYRE, 1975, p. 15).
Iniciamos este trabalho até que na fase de leitura encontramos dois discursos
que nosso autor profere nas Faculdades de Direito de São Paulo e Recife. Neste
momento elidimos a questão do pragmatismo e centramos o foco na sua crítica ao
bacharelismo, tema de seus discursos e já apresentada em outros escritos seus.
172

Assim, temos um autor que, apesar de não ser jurista, critica o fenômeno jurí-
dico na figura de seus operadores, ironicamente denominados “Senhores Acadêmi-
cos”, dentre outros epítetos.
Nossa proposta é realizar uma análise retórica da crítica que Gilberto Freyre
faz à cultura do bacharelismo no Brasil. Sua apreciação se estende aos cursos jurí-
dicos no tocante à formação acadêmica dos bacharéis em direito, ressaltando a ne-
cessidade de aproximação das ciências jurídicas com a sociologia e a antropologia,
por também trabalhar com dados concretos, empíricos, da realidade sociojurídica.
Este foco no direito vai ser sua preocupação explícita nas conferências que fez
nas Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo em 1934 e 1935, respectivamen-
te, datando também deste período o Curso de Sociologia Moderna que ministrou na
Faculdade de Direito do Recife. Portanto, é em conferências e como professor, que
vai centrar sua discussão no jurídico (FONSECA, 2001, p. 83 e 94).
Especificamente a transcrição desta conferencia no Recife é nosso objeto de
análise, visto que a de São Paulo dela pouco difere. Contudo, nosso estudo não se
restringirá a esse texto, pois outras obras vão na mesma direção: assim, ressaltamos
que, num primeiro momento, Gilberto Freyre apenas atenta para a cultura bachare-
lesca de forma mais genérica no contexto histórico de meados do século XIX, pers-
pectiva de que são exemplos Sobrados e mucambos (FREYRE, 1991) e Vida social
no Brasil em meados do século XIX (FREYRE, 1977). Naquele temos os elementos
argumentativos da análise freyreana ao tratar da ascensão do bacharel e do mulato.
A segunda obra, cronologicamente anterior à primeira citada, foi sua dissertação de
mestrado em ciências sociais, jurídicas e políticas, defendida em 1922 na Universi-
dade de Columbia.
Ainda em sede de introdução, passamos a detalhar as cinco problemáticas que
elencamos supra e como o presente trabalho se estrutura.
Pela alínea “a” nos remetemos a uma tentativa de operacionalmente concen-
trar a análise retórica em três formas de abordagem: método, metodologia e metó-
dica, que correspondem aos três níveis da retórica: material, estratégica e analítica
respectivamente.
Assim o ensaio inicia discutindo estes níveis retóricos a partir do texto de
Ballweg (alínea “b”) e cotejando com a proposta de Adeodato de identificar tais ní-
veis pensando a retórica como método, logo intentando uma metódica para análise
e discussão das ideias jurídicas.
Em seguida, também a partir da exegese do texto de Ballweg, que esquematiza
a retórica analítica, destacamos a fronética no campo externo e assim afastamos a
discussão – seja no plano interno seja no externo – dos meandros da holística e da
semiótica. Tal escolha se assenta no centro objetivo de onde partem as possibilida-
des de análise retórica, ou seja, a fronética tem no centro o sujeito. Pensar na relação
sujeito – sujeito é o primeiro desdobramento da fronética, no campo da agôntica;
a relação sujeito – objeto compõe a ergôntica; e a relação sujeito – signo forma a
fitanêutica, na linguagem de Ballweg.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 173

Nesta mesma correspondência se constroem interações do objeto (holística)


com outro objeto, com o sujeito e com o signo, para o que Ballweg reserva as ex-
pressões ontotática, axiotática e teleotática. Partindo do signo temos a semiótica,
que se desdobra em pragmática (signo – sujeito); semântica (signo – objeto) e sin-
tática (signo – signo).

Esquematizando temos (BALLWEG, 1991, p. 182):

Fronética
Sujeito (S) Sujeito (S) = agôntica
Objeto (O) = ergôntica
Signo (Z) = fitanêutica

Holística
Objeto (O) Sujeito (S) = axiotática
Objeto (O) = ontotática
Signo (Z) = teleotática

Semiótica
Signo (Z) Sujeito (S) = pragmática
Objeto (O) = semântica
Signo (Z) = sintática

Como nosso interesse é Gilberto Freyre, fizemos um corte epistemológico e


elencamos o âmbito da fronética para analisar a retórica a partir deste autor/ sujeito.
Diferencia-se da análise de discurso, pois não é o signo o ponto de partida. A dis-
cussão acerca da retórica não pode ser vislumbrada, sem padecer de incompletude,
abstraindo o sujeito ou relegando-o a segundo plano, até porque só tem sentido falar
de objeto cognoscível porque existe um sujeito cognoscente.
Investigar o discurso freyreano a partir de sua forma de abordagem, do uso
de argumentos, insere nossa proposta no âmbito da retórica, pois esta “cumpre um
papel decisivo, para não dizer único no conhecimento acadêmico contemporâneo, é
arte de interpretar textos, ou seja, a retórica cada vez é menos produção de discurso,
mas sim, arte de interpretá-los” (REBOUL, 1998, p. XIX).

1. Acerca dos níveis retóricos:


aproveitando as intuições de Ballweg

1.1. A apresentação sucinta dos níveis retóricos em Ballweg:


a cada leitura um novo detalhe

A retórica material, de primeiro nível, encontra-se no processo de condensa-


ção da linguagem comum em direção às linguagens de controle (BALLWEG, 1991,
p. 176). Por linguagem de controle entendemos a comunicação mesma, voltada para
174

a efetividade de esferas sociais como direito, poder, amor, dinheiro etc., inerente à
própria condição humana como dado da interação que a fala proporciona no sentido
da sociabilidade.
Para além de considerar a fala um minus ou um plus na natureza humana
(BLUMENBERG, 1999, p. 115 e 125; ADEODATO, 2005, p. 240-242), esta sea-
ra retórica acontece ainda sem reflexão, mas nem por isso sem saber “aonde quer
chegar”, comunicar algo implica o emissor pretender passar alguma mensagem ao
receptor, e “naturalmente” ele aprende meios de como transmiti-la. Tem por objeto
a própria comunicação.
Se caricaturarmos a figura de um Don Juan para tentar compreender os âmbi-
tos material e estratégico da retórica temos que ainda criança ele já saberia de que
conversas as mulheres gostam, porém enquanto adulto é que reflete sobre a maneira
de melhor conduzir ou desenvolver esses diálogos. Assim a retórica material, sim-
bolicamente, pode ser entendida como este momento infantil no exemplo; já como
adulto, a retórica material em que Don Juan se encontrava inserido transforma-se
em retórica estratégica.
Assim, o segundo nível, retórica estratégica ou prática, como o próprio ter-
mo já acena, tem uma característica reflexiva em cima da retórica material, i.e., é
o primeiro grau de reflexão, tem a retórica material como objeto. Temos então um
vocabulário filtrado da linguagem comum (BALLWEG, 1991, p. 177), filtrado por
ser estrategicamente trabalhado na direção prática a que o discurso visa.
Uma ênfase feita por Ballweg é quanto seu caráter teórico ou doutrinário. So-
bre isto ponderamos no seguinte sentido:
Numa leitura anterior, apesar de vislumbrar tais níveis como muito próximos
e de tal forma imbricados que dificulta separá-los, o que só vale a pena como pre-
ocupação didática, formulamos a seguinte pergunta como ponto de partida para
construir uma hipótese teórica: podemos “separar” retórica material e a retórica
estratégica a partir da inconsciência e consciência quanto à função persuasiva ou
fins do discurso?
Daí, a retórica material estaria mais no nível de inconsciência do orador em
sua preocupação de convencer, ao passo que a retórica estratégica ficaria mais no
plano da consciência. Passamos a trabalhar neste sentido, mas logo afastamos a
hipótese, dadas as zonas cinzentas entre os níveis e o fato de ser a categoria “cons-
ciência” um conceito muito ambíguo na história da filosofia.
Um fator que contribuiu para tal confusão inicial foi nossa interpretação acen-
tuada da tônica que se dá à ideia de teorização e doutrina em cima da observação da
retórica material. O fato é que tanto a retórica estratégica quanto a analítica têm a
retórica material por objeto. A diferença é que a primeira, como o nome diz, procura
construir estratégias para obter sucesso no âmbito da realidade material, ela está
permanentemente interessada em estabelecer o discurso dominante que vai se impor
aos demais participantes do discurso e constituir o mundo real. Ela é uma doutrina
ou teoria em um sentido de que reflete sobre como obter esse relato vencedor, ou
seja, a teoria está no “estudo” que o orador faz de meios para efetividade do que
quer comunicar, como escolha de palavras, de exemplos, de entonação etc.; isso
tudo representa um primeiro grau reflexivo, a ideia de filtro trazida por Ballweg.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 175

No terceiro nível, a retórica analítica é a única a buscar a neutralidade e o de-


sinteresse que jazem em seu caráter descritivo e não normativo ou prescritivo. Con-
cretamente é o olhar externo, de quem pesquisa, um segundo nível reflexivo ou uma
meta-reflexão retórica. É o resultado do trabalho de cada pesquisador em relação ao
autor-objeto da pesquisa escolhido; no caso, Lorena Freitas objetiva desenvolver
uma análise retórica das ideias jurídicas de Gilberto Freyre.
Por sua vez esta análise pode ser alvo de outra análise posterior, ou seja, al-
guém pode tomar o texto que resulta de nossas pesquisas no Grupo e analisá-lo,
desconstruir sua argumentação, problematizar as teses defendidas e as hipóteses
colocadas estruturalmente por meio de figuras de linguagem, argumentos, de todo
arsenal analítico da retórica. Outra perspectiva poderia genuinamente defender a
ideia de que nosso próprio trabalho, que se pretende analítico, também é estratégico
na medida em que procura persuadir a comunidade de pesquisadores de que essa
forma retórica de pesquisa é legítima e frutífera.
Isso se conclui da afirmação de Ballweg: “os resultados analíticos servem in-
diretamente à práxis e podem otimizá-la na efetivação de seus objetivos”. Temos
assim a retórica analítica com ares de retórica estratégica, assumindo a preocupação
precípua do segundo nível (BALLWEG, 1991, p. 179).

1.2. Duas possibilidades congruentes de identificar os níveis


retóricos numa análise

1.2.1. A partir da proposta da retórica realista em Adeodato:


método, metodologia e metódica

Na tentativa de organizar a construção de uma análise retórica, elencamos aqui


dois modelos que, mesmo tendo sido distintamente pensados, não se excluem, antes se
identificam pela preocupação e estrutura comuns de observação dos níveis retóricos.
O grupo de pesquisa trabalha os três níveis retóricos no estudo de um autor, no
contexto da história das ideias jurídicas no Brasil, por meio dos postulados metodo-
lógicos de método, metodologia e metódica.
O primeiro momento consiste na análise do autor e de sua época, âmbito este
no qual se verifica o primeiro nível da retórica, material, pois aí temos o “como as
pessoas falam”, como os argumentos são utilizados na prática. É a seara do método,
os relatos que triunfaram na arena dos discursos concorrentes. Ela equivale ao ca-
minho escolhido, o caminho que prevaleceu, daí estar “sobre o caminho”, nível dos
“métodos” (do grego odos = caminho).
A metodologia é uma teoria sobre o método, já configura um grau de reflexão
sobre como as pessoas falam, aqui são criados elementos para otimizar a inserção
no primeiro nível, criar estratégias para a vitória retórica, seja por vias persuasivas,
seja por outras mais erísticas. Ela estuda os caminhos escolhidos ou métodos do
primeiro nível, daí consistir numa “metodologia” (estudo de métodos).
176

A metódica é uma visão de teoria ligada à prática, i.e., aos efeitos que aquela
teoria (retórica estratégica) tem sobre a realidade (retórica material), o que poderia
ser expresso na seguinte questão: Em que medida a teoria influiu na prática? Centra-
-se na observação do que ocorre entre os dois níveis anteriores e, nesse sentido, é
uma teoria sobre as metodologias e os métodos, daí uma “metódica”.
A tentativa de identificar esses efeitos é o próprio estudo ou análise que se
pretende das ideias do autor; assim, a retórica analítica tentada aqui constitui uma
metódica, pois estuda a metodologia pragmática de como Gilberto Freyre desen-
volve seu discurso. Vê-se então a retórica estratégica (metodologia) e a material
(método) como objetos da retórica analítica (metódica).
Esboçando o projeto de abordagem de Adeodato, temos:

1. material método
2. estratégica metodologia
3. analítica metódica

A partir deste esquema teórico apresentado, passamos a cotejar com ou-


tra possibilidade de abordagem (na verdade apresentamos duas variações de uma
mesma ideia, ambas igualmente possíveis frente ao caráter lacunoso do texto de
Ballweg nesse ponto), a qual entendemos pertinente para compreender os três níveis
retóricos e metodologicamente propor um modelo para uma análise retórica.

1.2.2. A partir da fronética, holística e semiótica

Nossa hipótese de trabalho foi desenvolvida a partir do estudo dos três âmbitos
de que Ballweg (1991, p. 182) se utiliza para esquematizar a retórica analítica.
Daí pretende verificar os três níveis retóricos a partir dos três campos de rela-
cionamento para a construção de um sistema linguístico social, a saber, fronética,
holística e semiótica. Assim, o estudo da retórica material seria concretizado pela
fronética, na qual temos o orador como ponto de partida; no caso, estudar a biografia
de Gilberto Freyre e o contexto em que é criado o ambiente para o qual escreve, a
tarefa de identificar a retórica material; a retórica estratégica estaria ligada à holísti-
ca porque esta se concentra no objeto, que seria o discurso em si, o objeto filtrado da
linguagem comum, o que demonstra seu objetivo prático ou estratégico; a semiótica
é concretamente a fonte da retórica analítica, pois tem o centro de gravidade no
signo, as expressões simbólicas da linguagem humana.
Logo teríamos:

Fronética retórica material método


Holística retórica estratégica metodologia
Semiótica retórica analítica metódica
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 177

Na fronética temos contemplados os três elementos (S, O e Z), cujas relações,


a partir da interação provocada pelo sujeito, podem ser equiparadas, numa tentativa
de equivalência didática, ao trabalho que se desenvolve nos três âmbitos da retórica.
Tal escolha se assenta no centro em torno do qual gravitam as possibilidades de aná-
lise retórica, ou seja, a fronética tem o centro no sujeito. Pensar na relação sujeito
– sujeito é o primeiro desdobramento da fronética, chamado o campo da agôntica;
sujeito – objeto é a ergôntica; e sujeito – signo é a fitanêutica.
Nessa mesma razão combinatória, Ottmar Ballweg constrói interações do ob-
jeto com o objeto, com o sujeito e com o signo, denominando-as, respectivamente,
de ontotática, axiotática e teleotática, todas formando o espaço da holística. Toman-
do o signo como ponto de partida tem-se a semiótica, que se desdobra em pragmá-
tica (signo – sujeito); semântica (signo – objeto) e sintática (signo – signo). Como
nosso interesse é Gilberto Freyre, porém, optamos por fazer um corte investigativo
e eleger o âmbito da fronética para a análise retórica deste autor e sujeito.
Nossa proposta, acoplada ao modelo trazido pela retórica realista de Adeo-
dato, pode ser visualizada assim:


Fronética

{
Agôntica (S –S)
Ergôntica (S – O)
Fitanêutica (S – Z)
material
estratégica
analítica
método
metodologia
metódica

Em um resumo de conteúdo deste capítulo do nosso livro sobre a história das


ideias jurídicas no Brasil, o primeiro item aborda o autor e sua época, os relatos que
deixaram sobre o ambiente; mas, além de aspectos biográficos, trata também de pro-
blemas que o autor levanta e soluções que propõe. É o âmbito de investigação acerca
do sujeito Gilberto Freyre, condições, contexto e influências mútuas na relação com
o meio circundante. O item dois procura entender a retórica estratégica utilizada no
discurso de 1934, proferido na Faculdade de Direito de Recife, contendo as críticas
e expectativas de Freyre sobre o que gostaria de mudar naquele meio circundante.
As partes terceira e quarta pretendem expor uma visão analítica. Aqui trabalha-
mos detalhes do discurso para explicitar a fitanêutica como momento e espaço perti-
nentes para a desconstrução do discurso em seus argumentos e figuras de linguagem.
É de se notar que, no campo da agôntica, a análise situa o sujeito Gilberto
Freyre frente ao sujeito “acadêmicos de direito de 1934”. Na ergôntica, a preocu-
pação está em identificar influências do sujeito no objeto (o discurso) como parti-
cipantes do sistema linguístico. E na fitanêutica, o objetivo é ver o sujeito frente ao
signo, ou seja, observar as escolhas de sinais e regras de comunicação feitas pelo
autor para construir sua argumentação.
178

2. O contexto histórico-cultural em que Gilberto Freyre


é criado para uma compreensão da retórica material

Apesar de não ter como objetivo dissertar sobre aspectos biográficos e contex-
tuais, impera aqui fazer algumas considerações a respeito, principalmente porque
não deixa de ser uma hipótese viável supor que Gilberto Freyre é também fruto
desta cultura bacharelesca que critica.
Gilberto Freyre nasceu no Recife em 15 de março de 1900, numa família tradi-
cional de Pernambuco, de senhores de engenhos de açúcar, filho de um professor ca-
tedrático de Economia Política na Faculdade de Direito do Recife, livre-pensador, e
de uma mãe católica e conservadora. Sua infância se situa historicamente na última
fase da transição do patriarcalismo aristocrático para a época moderna no Nordeste
do Brasil.
Faz seus primeiros estudos com professores particulares e aos sete anos é ma-
triculado no Colégio Americano Gilreath, referência educacional na época, onde
aprendeu as principais línguas modernas e o latim, tendo dado sua primeira confe-
rência na Paraíba, ainda adolescente, sobre “Spencer e o problema da educação no
Brasil” em 1916 (MENESES, 1991, p. 10 s; AMADO, 1962; ANDRADE, 1995;
CHACON, 1993; MATOS, 1988; PEREIRA, 1986; VILA NOVA, 1995).
Após ter concluído o curso de Licenciatura em Letras, em 1917, foi para a
Universidade de Baylor, onde concluiu o bacharelado; depois, em Nova Iorque,
concluiu o Mestrado em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade
de Columbia, em 1922, com uma dissertação intitulada Social life in Brazil in the
middle of the 19th century. Correspondente do Diário de Pernambuco durante a sua
estadia nos Estados Unidos mostrou-se sempre muito crítico do American Way of
Life. Na Universidade de Colúmbia teve como mestres Franz Boas e John Dewey
(MENESES, 1991, p. 24-26).
Depois foi à Europa aprimorar seus estudos, proferiu palestras e fez amiza-
des, retornando ao Recife em 1924. Em 1945 foi escolhido para a Assembleia que
se transformou em Constituinte, sendo depois eleito para a primeira legislatura do
regime democrático saído da Constituição de 1946.

3. A falta de uma perspectiva sociológica na formação dos


“doutores bacharéis acadêmicos”: a crítica ao
bacharelismo como filtro da linguagem comum
(elementos de uma retórica estratégica)

O bacharelismo não foi tema apenas de Gilberto Freyre. A continuidade desse


relato crítico fica clara em relação a Abreu e Lima, por exemplo, que tece os seguin-
tes comentários no mesmo sentido:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 179

Desgraçadamente estamos coalhados de uma peste: é uma inundação das


academias e cursos que têm produzido uma espécie de semidoutos, o maior
açoite que poderia nos caber depois de 300 anos de escravidão. Incapazes de
avançar em conhecimentos, porque creem saber que tudo sabem, falam de
tudo e confundem tudo [...] com uma petulante loquacidade. Nesse caso não
há outro remédio que não lhes dizer as verdades (CHACON, 1981, p. 109).

Para citar uma crítica mais atual e na mesma direção, o historiador José An-
tonio Tobias diz que “o Brasil desde os jesuítas é encharcado por ideias retóricas e
literatos sintetizados pelo mito do padre e depois (séc. XIX) pelo mito do doutor”
(TOBIAS, 1987, p. 128). O mesmo autor, sob o título Universidade como meio de
ascensão social, informa que o critério para fazer curso superior será exclusivamen-
te em função das consequências do proveito econômico e prestígio social que deles
possa retirar o universitário (TOBIAS, 1987, p. 172).
O principal aspecto colocado por Gilberto Freyre é a falta de uma perspectiva
sociológica (VILA NOVA, 1995, p. 57), de percepção das peculiaridades da cultura
brasileira, na formação dos Doutores Bacharéis Acadêmicos ou Senhores Acadê-
micos, como ele mesmo os designava já na sua dissertação de mestrado (FREYRE,
1977, p. 93; FREYRE, 1981, p. 573).
Aqui desenhamos o percurso de desenvolvimento dessas ideias em torno da
formação dos bacharéis. Nossa hipótese é que tais questões são inicialmente abor-
dadas na dissertação de mestrado, que data de 1922, apesar de essa temática não ser
foco exclusivo de mais nenhum trabalho seu, exceto as suas conferências de 1934 e
1935. Mas o tema aparece novamente em 1933, em Casa Grande & Senzala, sendo
complementado e já com maior ênfase em Sobrados e Mucambos (1936), no qual
um capítulo inteiro aborda a questão da ascensão social do bacharel e do mulato.
Antes, porém, de lançar Sobrados e Mucambos, nos dois anos anteriores, te-
mos duas conferências em 1934 na Faculdade de Direito do Recife: a primeira inti-
tulada O estudo das ciências sociais nas universidades americanas e a segunda, que
representa a aula inaugural de um Curso de Sociologia Moderna, intitulada Socio-
logia, ecologia e direito. Em 1935, também como um “laboratório de ideias” para
amadurecimento da crítica ao bacharelismo, profere a conferência Menos doutrina,
mais análise na Faculdade de Direito de São Paulo (FREYRE, 2001, p. 83 e 94).
Apesar de nossos comentários terem como objeto a segunda conferência na
Faculdade de Direito de Recife, da qual há transcrição completa, os outros tex-
tos também são referenciais teóricos para compreender os problemas que Gilberto
Freyre coloca, os quais podem ser resumidos assim: (a) como a cultura bachare-
lesca despreza uma relação de vizinhança científica, nas palavras do autor, o que
hoje chamaríamos de ausência de interdisciplinaridade; (b) a falta de informação ou
orientação sociológica ou antropológica para percepção mais completa da realidade
social pelo jurista (FREYRE, 2001, p. 77-79).
Contudo alguns questões prévias podem ser interligadas à colocação desses
problemas, principalmente por ressaltarem o tom crítico à cultura do bacharelismo,
que seriam:
180

(i) Direito, medicina e engenharia são cursos para inserção social dos morado-
res dos sobrados, como ressalta o autor:

O jovem que fosse a flor da família, como inteligência, era escolhido, quase
sempre [...] para a Academia de Direito, servindo esta para a formação não
só jurídica, de advogados e de magistrados, como política, preparando jovens
para o Parlamento, para os ministérios para a administração pública e para a
diplomacia do Império (FREYRE, 1977, p. 93).

Ou ainda quando enfatiza a valorização social, no processo de substituição da


Casa Grande pelos Sobrados, que começa a fazer-se em torno de outros elementos
como o chá de uma Europa burguesa, a cerveja inglesa, o maior gosto pelo teatro em
vez da igreja, a bengala substituindo a espada etc.
A nova aristocracia, envolta nesses valores, tem na figura do bacharel, a
encarnação dessa tendência, razão para D. Pedro II, durante o “reinado dos bacha-
réis”, propor mandar para o Pará, com o fim de ajustar aquela “província indianoi-
de” do extremo norte ao sistema imperial, “carne, farinha e bacharéis” (FREYRE,
1981, p. 575; VENÂNCIO FILHO, 2005, p. 271).
Esta identificação dos três cursos como representativos da elite fica evidente:

Somos vítimas de uma rotina que não se deixa vencer com duas razões: a
de que estudos superiores sérios só existem, no mundo, os de Direito, os de
Medicina e os de Engenharia. Tudo o mais seria sobremesa. Doce. Alfenim
(FREYRE, 1981, p. 78).

As artes militares eram a opção para o mulato:

A farda do exército, os galões de oficial, a cultura técnica do soldado, a car-


reira militar, foi um dos principais meio de acesso social do mulato brasileiro
[...] os mulatos que chegaram a exercer postos de senhores [...] tornavam-se
oficialmente brancos (FREYRE, 1981, p. 586-587).

Estes aspectos são estrategicamente apresentados nos textos e conferências e,


mostram um elemento de continuidade teórica, que é a crítica ao bacharelismo, e
ganha originalidade com a defesa de uma maior aproximação entre as ciências jurí-
dicas e a sociologia, foco do discurso de 1934 na Faculdade de Direito.
Dois momentos históricos distintos devem ser devidamente enfatizados, para
evitar confusão de períodos no tocante à Escola do Recife, como um dos centros das
atenções de Gilberto Freyre na sua crítica ao bacharelismo. Importa mencionar
que, apesar de nossa bibliografia primária constar de dois livros e duas transcrições
de palestras, todas tornadas públicas entre 1922 e 1936, o referencial temporal não
se restringe àqueles quatorze anos.
Note-se que a dissertação de mestrado tem como objeto de estudo os meados
do século XIX, por volta de 1850; Sobrados e Mucambos tem seu foco no período
da decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do meio urbano, também
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 181

século XIX, contudo em especial a localização no tempo da cultura de bacharéis


que abrange o período do Segundo Reinado (de 1840 a 1889). Apenas as duas
conferências falam “para o tempo presente”, 1934 e 1935.
Neste período focado pelas duas obras (1860 até começo do século XX), a Es-
cola do Recife vive o positivismo culturalista, que se afasta do positivismo ortodoxo
(PAIM, 1967, p. 130; ADEODATO, 2002, p. 285-286).
Esta coincidência parcial de período histórico possibilita uma riqueza maior
na investigação da retórica material e estratégica, do contexto cultural que Gilberto
Freyre analisa e do ambiente para o qual discursa. A partir destes elementos é que a
análise retórica, especificamente no campo da agôntica, pode situar o “sujeito Gil-
berto Freyre” frente ao “sujeito acadêmicos de direito” em 1934.

4. Questões para uma desconstrução da


conferência Sociologia, Ecologia e Direito

4.1. O discurso freyreano como gênero deliberativo e epidíctico e a


característica do tempo presente na censura aos bacharéis em direito

Preliminarmente, a preocupação aqui não é conceituar os três gêneros, mas


apenas problematizar acerca da possibilidade de percepção do discurso freyreano
como deliberativo e epidíctico. Tais conceitos são entendidos conforme Aristóteles
os define na sua obra Retórica (ARISTÓTELES, 2007, p. 29-32).
É, pois, o gênero deliberativo (ou político) aquele que visa aconselhar ou desa-
conselhar, trabalhando com valores como o útil e o nocivo, que remete a um tempo
futuro e que se constrói pelo argumento-tipo paradigmático (indução pelo exemplo).
Quando pensamos essas características, cotejando-as como o formato do dis-
curso de Gilberto Freyre, podemos identificar o auditório com a assembleia dos
presentes e os estudantes em geral. O discurso não se dirige exclusivamente ao
futuro, pois contém várias remissões históricas que pretendem fornecer diretrizes ao
tempo presente. Assim, uma observação primeira quanto à invenção como primeiro
elemento retórico não mostra o texto como discurso eminentemente deliberativo
(REBOUL, 2004, p. 45), mesmo que a função a que se dispõe, função política, seja
voltada para o tempo futuro, no sentido de aconselhar os futuros bacharéis.
Numa classificação mais rigorosa, entendemos o discurso como epidíctico,
devido a seu caráter pedagógico, característica considerada essencial por Reboul;
também chamado de político, este gênero de discurso refere-se ao futuro, pois ins-
pira decisões e projetos e volta-se para uma assembleia política, enquanto o epidíc-
tico refere-se ao presente, ainda que extraindo argumentos do passado e do futuro,
e se dirige para espectadores em geral; aquele aconselha ou desaconselha, já este
segundo censura ou louva algo ou alguém. No caso, se entendermos que o texto em
análise tem um tom imediatamente persuasivo, porque a necessidade de percep-
ção, pelos juristas, da realidade social circundante era atitude urgente para Gilberto
Freyre, que estudou no exterior e observou como a sociologia era valorizada nos
centros desenvolvidos, estaremos descaracterizando-o como epidíctico, pois esse
tipo de discurso deve versar sobre problemas que não exigem decisões imediatas.
182

A característica do aconselhamento faz o discurso configurar-se como deli-


berativo, assim como a presença de argumentos paradigmáticos. Destaquem-se os
exemplos em que Freyre cita o padre Antonio Vieira e Abreu e Lima, quando Gil-
berto mostra como aproveitavam do cotidiano, o que demonstraria a riqueza da
observação sociológica:

Pe. Antonio Vieira, por exemplo, que além da capacidade extraordinária de


analisar-se como “socius”, isto é, como ser social, em mais de um documento,
foi também detentor de recursos os mais plásticos para a observação e a ex-
perimentação social: os do confessionário. Recursos que qualquer sociólogo
logo inveja nos mais simples dos padres [...] Quando leio uma página de An-
tonio Vieira sobre o meio brasileiro do seu tempo é lembrando-me da grande
riqueza de observação e de documentação social viva, quente, acumulada por
ele no confessionário. Quando Vieira afirma que os grandes reinóis no antigo
Estado do Maranhão eram quase uns ladrões, roubando os moradores, rou-
bando os índios, roubando os negros, sempre me vem à lembrança o fato de
que não se trata de uma impressão vaga de simples observador, mas da con-
clusão de quem se serviu de um instrumento e de um método de informação
quase sociológico (FREYRE, 2001, p. 89-90).

4.2. Passos para a desconstrução de um discurso como exercício


de uma retórica analítica: acerca dos tipos de argumentos
e figuras mais recorrentes

A tarefa da desconstrução textual tentada neste ensaio enfrenta a tarefa de


realizar uma análise retórica por meio da tópica, ou seja, do estudo dos argumentos
e da teoria das figuras presentes no discurso, incluindo as figuras de argumentos, as
quais evidenciam o trânsito entre ambas as partes (REBOUL, 2004, p. 135). A pro-
posta é identificar, separar, classificar e perceber a função que podem desempenhar
no contexto linguístico.
A identificação dos tipos de argumentos segue a conceituação apresentada na
Retórica de Aristóteles e tem o fito de verificar que estruturas o texto traz ao apre-
sentar o orador como figura qualificada ética e cientificamente perante o auditório
(ethos), quais possíveis conjuntos de paixões e sentimentos Freyre buscou inspirar
nos acadêmicos que formavam seu auditório (pathos), bem como o conteúdo pro-
priamente dito dos argumentos (logos).
Quanto às figuras, tomamos por base duas fontes principais: Vico (2005), que
as elenca em categorias a partir da função que pretendem, e Cícero (2005), que cita
uma incontável variedade de figuras distribuídas em mais de oitenta páginas devida-
mente seguidas de exemplos. Este primeiro momento não se confunde com a clas-
sificação, apesar de já antecipá-la, aqui a atividade é de pesquisa, de busca no texto.
A necessidade de separar significa tirar do texto o argumento ou figura, mes-
mo que fora dele, isoladamente, perca sua característica persuasiva; mas esta etapa
cumpre o desiderato de pesquisar a classificação, que obviamente é feita a partir da
disposição do argumento ou figura no discurso. Na prática, a separação é como fazer
uma epígrafe, tirar hipoteticamente de um contexto e colocar em outro para atender
a fins didáticos na exposição.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 183

Perceber a função é o resultado final, ou seja, o entendimento da natureza do


argumento ou figura em tela.
Por fim, uma questão superveniente diz respeito à obediência às fases classi-
camente elencadas. Rigorosamente não temos como averiguar as quatro fases da
retórica, pois, apesar de se tratar de texto escrito e que foi falado (fase da ação),
não há diretamente como analisar a invenção senão por meio de suposições a partir
da disposição e elocução. As fases são invenção (busca dos argumentos e outros
meios pelo orador); disposição (ordenação daqueles, planejamento da exposição);
elocução (redação escrita do discurso) e ação (proferir o discurso) (REBOUL, 2000,
p. 43 s.).
Para exemplificar uma aplicação deste esquema teórico, tomemos a seguinte
passagem da conferência Sociologia, ecologia e direito, da qual, para fins de des-
construção, vamos destacar trechos em itálico, seguidos de uma numeração entre
colchetes, que depois servirá como indicativo de algumas possibilidades de discus-
sões para uma retórica analítica das figuras:

Com essas pesquisas, algumas das quais em torno de assuntos, para alguns
sociólogos megalomaníacos, miúdos e humildes [1] – os sociólogos da casa,
por exemplo [2] – a Sociologia corre o perigo de perder parte considerável
de sua grandiosidade de ciência imperial [3]. Mas seu desenvolvimento cien-
tífico ganha em solidez e em segurança [4]. Daí não me terem magoado os
comentários desdenhosos com que o programa do curso de Sociologia que
hoje se inaugura na Faculdade de Direito de Recife, foi acolhido por alguns
mestres desta antiga e ilustre Escola [5], um dos quais diante de tópicos como
Sociologia da Rua, Sociologia da Casa, Sociologia da Fábrica, perguntou,
com o melhor de seus sorrisos irônicos, porque não Sociologia do W.C. Seu
desdém atinge toda uma corrente sociológica moderna que opõe às sínteses
grandiosas, mas sem fundamentações regionais que as justifiquem, concreta
e solidamente, os estudos ou as análises do regional, do particular, do con-
creto. Do ecologicamente social e mais que social [6].

O discurso como um todo, além do trecho elencado, recorre à delonga, que é a


permanência e o retorno frequente a um aspecto ou tema, ornamento de construção
que não deixa o ouvinte desviar a atenção do ponto que se pretende enfatizar
(CÍCERO, 2005, p. 291).
Em [1] temos o contrário, um ornamento de palavra que ocorre quando a
construção se faz por uso sucessivo de contrários (“megalomaníacos e miúdos”),
seguidos de sua conclusão rápida e completa (“humildes”) (CÍCERO, 2005, p. 237).
Em [2] o aposto é um breve argumento paradigmático ou exemplar, é, pois
o argumento que vai do fato à regra (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 344; REBOUL,
2000, p. 181). Um indício que reforça nossa posição de que Freyre faz, em parte, um
discurso deliberativo, é recorrer à exemplificação, o que ocorre em [2].
Em [3] aparece o circunlóquio que aparece quando o discurso toma coisas
simples e faz-lhe um rodeio na elocução (CÍCERO, 2005, p. 265).
184

Quando Freyre encerra o período [4] com um mínimo necessário de palavras


está usando da brevidade (CÍCERO, 2005, p. 309).
Em [5] temos distribuição, quando o sujeito não dá uma atribuição específica
a coisa ou pessoa, mas o faz genericamente, como em “acolhido por alguns
dos mestres”. Já “desta antiga e ilustre escolha” é exemplo de interpretação
e prenominação, respectivamente a tentativa de evitar a repetição do termo
Faculdade de Direito do Recife pelo uso de “antiga e ilustre Escola”, e o uso
desta mesma expressão para uma referência que o nome próprio efetivamente não
designa (CÍCERO, 2005, p. 257 e 263).
Por fim, [6] é uma frase que representa uma descrição, ornamento que faz uma
exposição perspícua, clara e grave das consequências das ações.

5. Considerações finais: originalidade e


continuidade nas ideias de Gilberto Freyre

Apesar de um ensaio não pretender concluir questões, justamente por apresen-


tar hipóteses, pontuamos aqui os aspectos mais característicos de originalidade e
continuidade no pensamento de Gilberto Freyre, ainda que em linhas gerais.
O aspecto principal no sentido de continuidade é quanto à proposta de aná-
lise crítica do bacharelismo, temática encontrada em outros pensadores e neste
ensaio exemplificada com as citações de Abreu e Lima, Alberto Venâncio e José
Antônio Tobias.
A originalidade de suas ideias é que merece atenção especial, enquanto carac-
terística de seu pensamento, de forma que uma coletânea de palestras e conferências
foi chamada de “antecipações”. Algumas delas são o pluralismo metodológico, a
transdiciplinaridade, a utilização de anúncios de jornais, história oral, teses médicas
e outros documentos até então ignorados pela historiografia tradicional (RÊGO,
1999, p. 91).31 Pode-se dizer que Gilberto antecipou a outros bem como a si mesmo
na sugestão de ideias ou métodos, quer de análise, quer de interpretação, das facetas
do comportamento humano.
Gilberto Freyre inaugura uma visão da nossa cultura com aportes empírico-
-sociológicos e esta metodologia assume papel relevante na crítica à insuficiência
da formação dos juristas, fechados num saber abstrato, distante da própria reali-
dade circundante.
Por outro lado, mesmo tendo estudado em centros desenvolvidos, sua independên-
cia intelectual o levou a ser um dos primeiros a romper com a mentalidade de subser-
viência às ideias importadas dos Estados Unidos e da Europa, conforme corretamente
salienta Alessandro Warley, em tese defendida na França (Ecole de Hautes Etudes en
Sciences Sociales) (ALBUQUERQUE, 2000, p. 45; CANDEAS, 2002, p. 28).

31 “Freyre thought that the analysis of such cultural complexities go beyond the standards of the pure methodological and
epistemological apparatus of the conventional scientific and social theories. Rather, in oder to study a phenomenon like
the Brazilian culture, it would be necessary to contrast the scientific laws resulting from theories and models of modern
sciences with the incertitudes which come out of the complex cultural realities”.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 185

Por fim, talvez, a característica primeira que identifica seu pensamento é tam-
bém uma antecipação da etnometodologia: para além da história do patriarcalismo
no Brasil, e outros grandes temas, estudou hábitos culinários do Nordeste, o uso
de xales, a vestimenta que caracterizava a ascensão do bacharel, como o fraque, os
sapatos ingleses etc. É na enumeração, na ênfase, enfim, nos detalhes que a argu-
mentação se desenvolve, explorando diversas figuras de palavras e de pensamento,
para assim fundamentar e confeccionar toda uma crítica à cultura bacharelesca.
186

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2002). O positivismo culturalista da Escola do Reci-


fe. In: Anuário dos cursos de Pós-graduação em Direito. N. 12. Recife: Editora
Universitária da UFPE.
______ (2005). Filosofia do Direito: Uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3ª
ed., São Paulo: Saraiva, 2005.
______ (2005). Limites éticos do poder constituinte originário e da concretização
da constituição pelo judiciário. In: Anuário do Programa de Pós-graduação em
Direito. N. 15. Recife: UFPE, p. 235-257.
ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti de (2000). Gilberto Freyre e a invenção do
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.
AMADO, Gilberto (org.) (1962). Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua
arte. Rio de Janeiro: José Olympio Editora.
ANDRADE, Manuel Correia de (1995). Gilberto Freyre: Pensamento e ação. Re-
cife: Fundaj/ Massangana.
ARISTÓTELES (1997). Retórica. Lisboa: Imprensa nacional.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito, trad. João Maurício Adeo-
dato. Revista brasileira de filosofia. Volume XXXIX, fascículo 163, julho-setem-
bro. São Paulo: IBF, 1991.
BLUMENBERG, Hans (1999). Una aproximación antropológica a la actualidad
de la retórica. Barcelona: Paidós, 1999.
CANDEAS, Alessandro Warley (2002). Tropiques, culture et developmment au
Bresil: La tropicologie dans l´oeuvre de Gilberto Freyre. França: Ecole de Hautes
Etudes en Sciences Sociales, 2002.
CÍCERO. Retórica a Herênio (2005). São Paulo: Hedra.
CHACON, Vamireh (1981). História das ideias socialistas no Brasil. Rio de Janei-
ro/fortaleza: Civilizaçao brasileira / UFCE.
______ (1993). Gilberto Freyre: uma biografia intelectual. Recife: Massangana.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio (2003). Introdução ao estudo do direito. 4ª ed. São
Paulo: Atlas.
FONSECA, Edson Nery da (org) (2001). Gilberto Freyre: Antecipações. Recife: Edufep.
FREYRE, Gilberto (2001). Antecipações. Organizado e prefaciado por Edson Nery
da Fonseca. Recife: EDUPE.
______ (1981). Sobrados e Mucambos. Decadência do patriarcado rural e desen-
volvimento do urbano. (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil). 6.
ed. Tomo II. Rio de janeiro: José Olympio.
______ (1977). Vida social no Brasil em meados do século XIX. Trad. Waldemar
Valente. 2.ed. Rio de Janeiro: Artenova/ Recife: Instiruto Joaquim Nabuco de Pes-
quisas Sociais.
______ (1975). Tempo morto e outros tempos: trechos de um diário de adolescên-
cia e primeira mocidade: 1915-1930. Rio de Janeiro: José Olympio.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 187

JAMES, William (1974). Pragmatismo. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
MATOS, Potiguar (1988). Gilberto Freyre: presença definitiva. Recife: Fundação
Gilberto Freyre.
MENESES, Diogo de Mello (1991). Gilberto Freyre. Recife: Massangana.
PAIM, Antônio (1967). História das ideias filosóficas no Brasil. São Paulo: Grijalbo.
PEIRCE, Charles Sanders (2005). How to make our ideas clear. Disponível em
<http://www.peirce.org/writings/p119.html>. Acesso em 17/5/2005.
PEREIRA, Nilo (1986). Gilberto Freyre: visto de perto. Recife: Massangana.
REBOUL, Olivier (2004). Introdução à retórica. São Paulo: Martins fontes.
SOBOTA, Katharina (1996). Não mencione a norma!, tradução João Maurício
Adeodato. Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife. N. 7,
Recife: UFPE, p. 251-273.
TOBIAS, José Antônio (1987). História das ideias no Brasil. São Paulo: EPU.
VENÂNCIO FILHO, Alberto (2005). Das arcadas ao bacharelismo: 150 anos de
ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva.
VICO, Giambattista (2005). Elementos de retórica: El sistema de los estúdios de
nuostro tiempo y princípios de oratoria. Madrid: Trotta.
VILA NOVA, Sebastião (1995). Sociologias & pós-sociologia em Gilberto
Freyre: Algumas fontes e afinidades teóricas e metodológicas do seu pensamen-
to. Recife: Massangana.
RETÓRICA E IDENTIDADE NACIONAL
NA ESCOLA DO RECIFE

Graziela Bacchi Hora

Resumo: O presente capítulo busca fornecer uma noção da identidade nacio-


nal durante a formação do movimento intelectual chamado Escola do Recife.
A aproximação dá-se a partir duma análise da construção retórica das ideias,
estilo de exposição e escolha de temáticas com menção a alguns marcos his-
tóricos correspondentes ao período. Como objetivo, deve-se contribuir para a
compreensão de uma identidade nacional ocupada em conquistar autonomia
e diferenciar-se de modelos importados pelo Brasil enquanto colônia. A uti-
lização de uma retórica combativa, ainda que enraizada em conteúdos euro-
peus, adotaria doravante uma liberdade de expressão e associação peculiares
e flexíveis, acarretando uma baixa tendência à sistematização e à estagnação
no movimento intelectual.
Palavras-chave: Retórica. Escola do Recife. Tobias Barreto.
Abstract: This text aims to provide a notion of national identity during the
formation of the intellectual movement called Escola do Recife. The approach
relies on analysis of the rhetoric of ideas, argumentative style and choice of
subjects mentioning some historical landmarks corresponding to the period.
We seek to contribute to the understanding of national identity that intended
to become autonomous and different from imported Brazil-colony models.
The use of a combative rethoric by the Escola do Recife, although with roots
in European contents henceforth adopts some freedom of expression and
association of ideas in peculiar and flexible forms, causing a low tendency
to systematization and to stagnation of ideas in this intellectual movement.
Keywords: Rhetoric. School of Recife. Tobias Barreto.
Sumário. 1. A Crítica da Escola do Recife como manifestação da arte da
disputa 2. Reação contra o direito natural e renovação política positivista. 3.
Introdução do alemanismo no Brasil, vanguarda e a questão do argumento
“fraco”. 4. Estilo e identidade nacional em Tobias Barreto. Referências.

1. A crítica da escola do recife como


manifestação da arte da disputa

Ao falar da Escola do Recife pode-se ter em vista o movimento iniciado no


começo da década de 60 do Séc. XIX que repercutiu noutros centros culturais
(CHACON, 2008, p. 139-164), abrangendo quase a totalidade das esferas da ati-
vidade intelectual, dentre elas a crítica literária e musical, a filosofia, o direito, a
história, o folclore.
190

A presença da Escola do Recife na formação das faculdades jurídicas brasi-


leiras é potencializada no período republicano pelo fato de só terem existido dois
centros de formação de juristas durante a monarquia: Recife e São Paulo. A influên-
cia sentir-se-á tanto nas faculdades criadas no Nordeste, como a da Bahia em 1890,
chegando a se falar do “grupo baiano” da Escola do Recife, na Faculdade Livre do
Rio de Janeiro, que contou com a participação de Silvio Romero, figura central ao
lado de Tobias Barreto no movimento do Recife, quanto em Estados mais distantes
como o Rio Grande do Sul, cuja faculdade, criada em 1900, sofre grande influência
dos juristas formados no Recife (ARAÚJO, 1996, p. 38).
A repercussão é sentida curricularmente pela utilização de bibliotecas trazidas
pelos professores oriundos do Recife, representativas da nova concepção do direito,
com destaque para os Estudos de Direito de Tobias Barreto, como também para as
contribuições inovadoras de Haeckel e Darwin.
A noção de critica trabalhada pela Escola do Recife sofre muitos ataques que
se direcionam a sua falta de especificidade como método e ao seu suposto potencial
puramente destrutivo. Por conta dessas criticas, em momento da edição da reunião
das Polemicas travadas por Tobias Barreto, Sylvio Romero irá sair em defesa do
amigo para enfatizar o equívoco em que estariam incorrendo aqueles que só consi-
deravam filosofia àquelas “monstruosas construções phantasistas, abstractas e arbi-
trárias, que tinham o nome de systemas e a pretensão de dar a chave do enigma de
todas as coisas” (ROMERO, 1901, p. XVI).
Os assuntos tratados por Tobias Barreto como crítico se enquadram segundo
Silvio Romero em seis categorias: religião, filosofia, literatura, arte musical, política
e direito (ROMERO, 1901, p. XI).
A crítica exige um tropismo e uma atitude destemida, ou até mesmo um tro-
pismo pelas agressões que, antes de constituírem efeito colateral a ser evitado, se
equiparam à criatividade necessária ao desenvolvimento intelectual. Nesse sentido,
Tobias é capaz de afirmar:

Para que a crítica, diz H. Landsmann, falando de Lessing, se mantenha na


altura de sua vocação, para que ella se affirme como um elemento, tão in-
dispensável ao desenvolvimento espiritual das nações como a própria poesia
creadora, é preciso um homem da mais alta coragem moral, um homem a
quem não affiligem nem desgostam as aggressões pessoaes, a que elle inevi-
tavelmente se expõe, ou a quem pelo menos os desgostos não podem curvar
(BARRETO, 1901, p.156).

Tobias Barreto acentua sempre a necessidade de “bater, bater e bater”


(CHACON, 2008, p. 153), como forma de desmascaramento dos pseudo-intelectuais
de seu tempo, afirmando por diversas ocasiões que isso seria uma obrigação para
com seus objetivos pedagógicos e de esclarecimento.
A necessidade da punição como atitude de respeito à comunidade também se
faz notar no tratamento que destina ao tema nos escritos de direito criminal.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 191

A semelhança com a sofística se faz observar também no entendimento que


tem do direito e do crime. Mesmo tendo forjado a nova intuição do direito – que
representa, dentre outras ciências, com o auxilio da biologia – entende o crime não
como atavismo ou patologia, mas como monstruosidade ou irregularidade a ser eli-
minada pela pena. A ideia de punição permite vislumbrar paralelo com a ideia da
sofística de que é possível ensinar-se a virtude. Se a virtude pode ser ensinada,
a punição representa a consequência da obrigatoriedade à qual se assujeita o ci-
dadão participante de comunidade de observar e ter conhecimento a respeito do
que é entendido por virtude na comunidade. Esta posição sofre temperamentos na
medida em que Tobias Barreto considera o crime como parcialmente gerado pelas
condições de miséria, mas é bastante claro ao defender sua determinação a partir de
outros fatores latentes e lembra a ocorrência de criminosos cultos e abastados como
não excepcional. A aceitação da responsabilidade era necessária para que fosse pos-
sível a compreensão da punição como contrapartida.
Tobias aqui, como na defesa de um espaço de opinião pública, parece colocar
em primeiro plano a consideração da polis. Assim se pode dizer que ele “via a cida-
de”, conforme Hermes Lima. Tobias é capaz de revoltar-se contra o desprezo com
que os magnatas de Escada tratavam a localidade, o que expressa com exemplos
concretos e não com recurso ao discurso liberal, enaltecedor dos valores democrá-
ticos em termos teóricos.
Tobias chama a atenção para a inexistência, no município da Escada, de uma
edificação digna da influência de que os proprietários de terra queriam gozar. Ao
contrário, conforme aduz: “Muitos até existem, que contam nos dedos de uma só
das mãos as vezes que teem vindo à sede do município, e ainda fica dedo desoccu-
pado para um pitada de rapé”.
Denuncia a ausência de espaços públicos onde os problemas afetos à cidade
pudessem ser discutidos. Esta circunstância seria indício da desconsideração à popu-
lação dos trabalhadores. Para os trabalhadores, defende que não deveriam esperar por
socorro, mas sim tomar as rédeas de seus destinos, ao invés de deixá-los nas mãos de
“meia dúzia de felizes”, sem compromisso com a cidade ou esperar pela liberdade
teorética atingida após uma maturidade popular depositada no futuro. Para Tobias o
“Brazil já faz a impressão de um menino de cabellos brancos” (BARRETO, 1939,
p. 300) no que dizia respeito à demora na aquisição de autonomia para a população.
Revolta-se ao reconhecer que o povo brasileiro nada mais seria do que “um
número abstrato, número que não é a força – perseguido, humilhado, abatido, a
ponto de sobre elle os grandes disputarem e lançarem os dados, para ver quem os
possue...” (BARRETO, 1939, p. 295-297). Funciona como exemplo desta contesta-
ção terem os partidos liberal e conservador, por ocasião da qualificação dos votan-
tes em 1876, terem levado à imprensa “com uma ingenuidade infantil” somente a
informação a respeito do número dos engenhos que estariam apoiando cada um dos
lados. Discutiu-se, ainda nessa ocasião, que se os liberais detinham maior número
de engenhos, os dos conservadores seriam mais ricos e populosos. Esta seria, segun-
do Tobias, a prova revoltante de que em Escada estaria creada uma “assucarocracia”
192

e as cidades estariam na condição de serem filiais das fazendas, o que deveria ser
contestado pelo povo, pondo-se fora da tutela e impedindo que os poderosos dispu-
sessem desta forma da cidade.
A situação observada com pesar por Tobias Barreto refere-se à discrepância
entre a organização do Estado em termos de governo e administração e o desagre-
gamento do povo “amorpho e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a com-
munhão da língua, dos máos costumes e do servilismo” (BARRETO, 1939, p. 288).
“Os habitantes do município, máxime os da cidade, fazem a impressão de viajantes,
que se reuniram à noite em uma mesma casa de rancho, mas logo que amanheça,
cada um tomará o seu caminho, quasi sem probabilidade de outra vez se encontra-
rem” (BARRETO, 1939, p. 287). O que revolta Tobias é este “modo de viver à
parte, de sentir e pensar à parte” (BARRETO, 1939, p. 289). A consequência seria
a impassibilidade e a indiferença a respeito dos tormentos humanos, vistos sempre
como alheios, até o momento em que calhasse de serem sentidos pessoalmente num
sentido mais estreito.
A falta de cultura, vista como estigma carregado pelo brasileiro, segundo To-
bias, era o que impedia de “ter paixões elevadas” e esses costumes que seriam aque-
les sensíveis e inexoráveis pela tirania e pela injustiça. Estes, conforme apontara
St. Just, impediriam que houvesse formação de opinião pública entre nós e que as
correntes políticas e de pensamento circulassem na vida pública nacional (LIMA,
1939. p. 268).
Tobias insurge-se contra esses costumes ou hábitos sociais gerados pela escra-
vidão, criticando em voz alta, como se ignorasse os obstáculos postos pelos hábitos
sociais à sua atitude. Falava como se pressupusesse haver público que pudesse ouvi-
-lo, assim como editava jornais em língua alemã, na tarefa de inserir, em debates
mais altos, terras dominadas pela “bitola limitada” da “assucarocracia”.
Refletindo sobre essa situação contrastante entre sua ação e o entorno social, que
não lhe poderia proporcionar acolhida, Tobias afirma haver “algo de trágico” em sua
vida, que não lhe permitia efetivar reformas na sociedade em que vivia, ao mesmo
tempo em que não poderia ser levado passivamente por seus condicionamentos.

2. Reação contra o direito natural e


renovação política positivista

O Recife do século XIX, na qualidade de metrópole regional economicamente


vigorosa, foi palco de três revoluções de cunho libertário (1817, Confederação do
Equador e a Praieira), ostentando uma atmosfera de inconformismo e tradição libe-
ral, sintetizada na metáfora que lhe atribui a alcunha “Leão do Norte”.
No plano intelectual, o surto de ideias novas que “esvoaçavam no horizonte”,
segundo Sylvio Romero, não era metodologicamente absorvido pela prática esco-
lástica ou pelo tomismo. Ainda que o direito natural racionalista fosse introduzindo-
-se aos poucos, a mudança encontra obstáculo no fato de que a razão estaria sendo
cultivada como uma deusa.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 193

A despeito de o próprio tomismo já significar, do ponto de vista da história do


direito, um passo em direção a prática, o que não havia sido possível até o agostinis-
mo, a sua necessidade de redução a princípios e a sua sistematicidade não exploram
a potencialidade dialógica que poderia ser extraída dos ensinamentos de Aristóteles.
Assim como o Estagirita, o Doutor Angélico também devia satisfações a um
princípio unitário, transformando-se, o conjunto de seu pensamento, numa discipli-
na monádica e unitarista do ponto de vista gnoseológico.
Conforme alerta Villey, o próprio Tomás de Aquino não seria tão dogmático
quanto seus seguidores (VILLEY, 2005, 148). Entre estes, podem ser enquadrados os
lentes e a abordagem da cátedra de direito natural da faculdade de direito do Recife.
No entanto o que acaba por predominar no ensino é o conhecimento sedimen-
tado pelos métodos da escolástica, apesar de Já se poder ler na Revista Acadêmica
em 1876, nos esclarecimentos a cargo de Nina Ribeiro sobre a disciplina de direito
natural o seguinte:

Para os escholásticos e glossadores o direito natural era o conjuncto das leis


scriptas nos livros santos. Jus naturae est quod in lege et evangelio continetur,
quo quisque jubetur alii facere quod sibi vult fieri, et prohibetur alii inferre
quod sibi nolit fieri. Todo trabalho metaphysico desta época, diz um escriptor
moderno, consiste na comparação dos textos da escriptura com os do direito.
Não é uma análise, não é uma synthese, é a desordem dos espíritos fracos
no meio das grandes riquezas de que não sabiam usar. Com Grotius, o pater
juris naturalis, a metaphysica sai do abatimento em que jazia. Seus serviços
à sciencia do direito são relevantissimos.

Ilustra o passo em que andavam os estudos do direito natural a obra de Pedro


Autran da Mata Albuquerque, intitulada “Elementos de Direito Natural Privado”
(ALBUQUERQUE, 1983, p. 5), que a partir das criticas recebidas por Tobias Bar-
reto, torna-se objeto de polêmica pública.
Autran irá tratar o direito como fórmula racional em termos que vale a
pena transcrever:

He, pois, claro que os homens reconhecem um direito anterior a toda lei ar-
bitraria, dado só pela razão; e um principio universal e immutável, por onde
se pode discernir o justo do injusto. O objecto do direito da natureza, ou da
sciencia philosophica do direito, he indagar qual seja este principio ou con-
ceito supremo do direito, para dahi deduzir principios geraes, que sejão appli-
caveis aos direitos e deveres jurídicos dos homens em suas diversas relações.
Segundo este conceito do direito pelo qual se podem discernir as acções jus-
tas das injustas, he fácil de formular o principio primário do direito natural
da maneira seguinte: São justas todas as acções, que não repugnão ao estado
social de entes igualmente livres; e são injustas, ou lesões de direito, todas as
acções oppostas.
[...]
194

Podemos pois, enunciar o principio supremo dos deveres jurídicos por esta
formula: Omitte todas as acções, que offenderião a justa liberdade dos outros.
Este princípio se pode também reduzir aos seguintes: não trates os outros
como simples meios para os teus fins arbitrários – Omitte todas as acções,
que tornarião impossível a sociedade – deixa a cada um o que he seu – não
perturbes os direitos dos outros – não leses a ninguém.
O direito distingue-se da moral; e esta distincção he fundada no mesmo fim
particular a cada uma destas sciencias. O direito não tem outro fim, senão
conciliar a liberdade exterior dos homens, em razão da sua coexistência no
estado social, e por conseguinte ordena só o que he justo. Porém a moral se
propõe um fim mis nobre, e mais sublime, porque aconselha o bem, exige a
boa intenção do agente, pois para ser elle justo perfeitamente não basta dar o
seu a cujo he, mas deve fazel-o com boa intenção.
[...]
O direito he a sciencia dos direitos, e a política a dos meios convenientes e
ao exercício e à conservação dos mesmos direitos. Àquelle tem por objecto
a justiça; e a política occupa-se de diversos meios concernentes à felicidade,
O primeiro funda-se em principios puramente racionaes, e a politica na ex-
periência. Aquelle prescreve leis geralmente obrigatorias, necessárias, e que
não admittem excepção alguma; e a política ordena os seus meios, segundo
as circumstancias variáveis do tempo, do lugar e das pessoas. ... fiat justitia,
pereat mundus.
[...]
Mas a principal distincção entre os direitos he a que os divide em direitos
innatos, também denominados immediatos, originários e absolutos; e
direitos adquiridos, ou mediatos, derivados e hypotheticos. Aquelles resultão
immediatamente da natureza do homem, e são a condição para se poderem
adquirir outros; e o homem os póde fazer valer em todas as cricumstancias, e
a respeito de qualquer, sem que lhe seja necessário provar que os possue, Os
outros, pelo contrario, não resultão immediatamente da natureza do homem,
mas de um acto seu; são adquiridos pela actividade do homem. (1) o direito
primigenio chama-se também formal ou ideal, porque nasce immediatamente
de uma for- mas da razão, e so da noção essencial de um ente racional e
livre, abstrahindo de todo o objecto determinado, a que se applique; e porque
exprime simplesmente a forma, a condição, e o fundamento de todo o direito,
que se póde conceber, Chamão-se direitos materiais (e também reaes) os
derivados do primigenio, porque estes se referem a certos objectos, como
materia da sua applicação, nos quaes se manifesta o justo uso da nossa
liberdade. (ALBUQUERQUE, 1983, P. 5-23).

Neste cenário em que a razão será tratada como principio uno, vale, antes
de tudo, ressaltar as implicações republicanas e renovadoras da organização social
advindas da própria incorporação do positivismo comtista como doutrina num dos
ciclos da Escola do Recife.
Observe-se que o próprio clima democrático que vem acompanhado do de-
senvolvimento da retórica se vislumbra de forma marcante na faculdade do Recife
de então.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 195

Assim como a de São Paulo, a Faculdade de Direito do Recife era responsável


pela formação das elites intelectuais e políticas dirigentes, representando um papel
de extrema notoriedade na vida do Império. O clima pós-guerra do Paraguai, acom-
panhado do desejo de renovação, irão se direcionar de forma contrária à formação
jurídica em prática.
A reação direciona-se à cátedra de direito natural, acusada de abstração, obsoles-
cência é obstáculo a ser removido em prol da reforma dos cursos jurídicos que, para
alinharem-se com o novo, deveriam abrir as portas aos estudos científicos e sociológi-
cos, para posteriormente também criticá-lo em suas implicações deterministas.
Há, aqui, no Recife, o abandono da defesa incondicional e dogmática do
comtismo relativamente cedo, se compararmos com os outros centros de seu desen-
volvimento no país. É oportuno lembrar a criação no Rio de Janeiro da Sociedade
Positivista em 1876, convertida em Centro ou Igreja Positivista em 1881, que se
manteve em atividade até 1927, aceitando de Comte, além da doutrina filosófica
positivista, o culto ao positivismo ortodoxo embutido na “religião da Humanidade”.
De toda sorte, é importante que se retenha o saldo progressista em termos po-
líticos que pode ser atribuído à militância positivista que se opõe ao conformismo
social das velhas oligarquias em prol do pensamento antropológico antirracista, da
adesão ao abolicionismo bem como da luta pelo Estado leigo.
No entanto, as dificuldades de uma nova dogmatização, desta feita dentro do
comtismo, chegam ao ponto de promover o desprezo de porções da intersubjetivi-
dade, ou das próprias contradições da História.
Observe-se que o positivismo, ao padecer de um determinismo redutor, impõe
um modo estreito de fazer ciência, que se chocava com as pretensões de tratar das
realidades atinentes ao conjunto de todos os saberes.
Comentando a defesa de Sílvio Romero, Tobias vai esclarecer que o que lhe
pareceu realmente estupendo foi que os examinadores de seu companheiro tenham
considerado uma heresia o que à época já seria de certo modo um atraso, tendo-se
em vista o momento de divulgação do positivismo.
A atuação renovadora de Tobias Barreto, não é recepcionada de forma harmô-
nica pelos seguimentos sociais que compõem a faculdade. Sua atitude se contrapõe
à congregação da Faculdade de Direito de modo que ao passo em que Tobias é ama-
do pelos alunos e por seus discípulos, que representam a demanda pela renovação,
é igualmente odiado pela congregação que representa a manutenção do statu quo.
Ter se consolidado para a Faculdade de Direito do Recife a designação de
“Casa de Tobias”, seria, por conta da rejeição sentida por Tobias Barreto por parte
da congregação dos professores de sua época, algo impensável para o sergipano.
Segundo Nilo Pereira, nunca a faculdade poderia ser vista por Tobias como
sua casa:

Hoje, a Faculdade é a Casa de Tobias! Ele não acreditaria nisso. Acreditaria


que fosse a Casa de Paula Batista. Ou de Lourenço José Ribeiro. Ou de Coe-
lho Rodrigues. Dele, não. (PEREIRA, 1977, p. 214).
196

3. Introdução do alemanismo no Brasil,


vanguarda e a questão do argumento “fraco”

Utilizar-se da capacidade de transformar o argumento mais frágil ou débil


em argumento forte é apontado como característica central da sofística protagórica
(DUESO, 1996, 46-56).
O reconhecimento da capacidade toma ares de acusação, caso se faça derivar,
desta capacidade, a ideia de que tal transformação só seria possível enquanto engodo.
Diversamente, se aceitamos considerar o argumento como “débil”, ou “fraco”,
em um momento determinado, pode se dever apenas à ausência de sedimentação da-
quele argumento na tradição, abre-se uma nova perspectiva para o entendimento da
possibilidade do reconhecimento da relevância do argumento débil como portador
da inovação no curso da história das argumentações.
Mais além, abre espaço para que se compreenda a atuação dos sofistas como
personagens representativos das transformações sofridas pela educação grega com
o progressivo abandono do arsenal valorativo relacionado á educação da nobreza
antidemocrática.
A incorporação do inesperado, diverso do tradicional, como vitorioso surpre-
endente na disputa verbal, transporta para a argumentação a possibilidade de incor-
poração da criatividade sem que a exigência de justificativa seja abandonada, mas
antes seja acirrada, uma vez que, na ausência de argumento a priori privilegiado, os
opositores devem se servir de qualquer ornatus para conquistar adesão do ouvinte.
Traduz-se em maior liberdade na medida em que a vitória não está previamente
acometida ao argumento valorado anteriormente.
Que o julgamento do argumento superior caiba à disputa, guiada pela vontade
de vitória e não à dialética guiada pelo amor ao universal, poderá tanto servir de
acusação como de defesa para a sofística comprometida com um auditório e por isso
mesmo mais segura em termos de democracia. O compromisso platônico pode, iro-
nicamente, ser tido por redutor em sua busca pelos universais já não tão confiáveis
e menos ainda comprováveis pelas nossas exigências empiricistas.
Entendido o argumento fraco no sentido de novidade, temos que Tobias Barreto
utiliza-se frequentemente do argumento inverso àquele sedimentado tradicionalmente.
Esse mecanismo muito próprio da modernidade, à qual interessa a derrocada
da tradição, pode ser justificado a partir da identificação da utilização da técnica do
antimodelo. Em Tobias, ele é útil especialmente como utilização da técnica para a
apresentação e valorização de autores ou modelos novos, ainda não absorvidos e
sequer presentes nos debates intelectuais de seu meio.
De novo, para o caso especifico de Tobias Barreto, os exemplos de defesa de
posicionamentos vanguardistas são sobejantes: o primeiro intelectual brasileiro a
citar Karl Marx (CHACON, 2008, p.43), (o primeiro homem a defender a eman-
cipação feminina em território nacional (COSTA, 1942, p.93) – com a propositura
legislativa de criação de colégios femininos de estudos superiores –, o primeiro na
América Latina a criticar o determinismo naturalista de Lombroso.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 197

A qualidade de vanguarda da escolha dos argumentos, bem como a agressivida-


de de sua defesa correlata ao ataque de seus opositores, são responsáveis pela identifi-
cação da Escola do Recife como centro de inovação do pensamento brasileiro.
O posicionamento do movimento da geração de 1870, no Recife, é repre-
sentativo das grandes novidades, que ocupam a mentalidade brasileira do século
XIX: o nacionalismo ou a necessidade de sua invenção no Brasil nordestino que
se quer modernizar, o que permite o enquadramento da Escola do Recife como
movimento vanguardista.
Apesar de parecer mais comum ou sedimentada a identificação da vanguarda
moderna como ligada a São Paulo e à semana de arte de 1922, o Recife pode se con-
siderar o palco de transição entre a tradição e o novo, com a derrota da aristocracia
agrária. Nesse sentido, aponta para os ecos modernistas vindos de Silvio Romero
por conta de seu nacionalismo e cientificismo e que a repercussão atingida pelos
modernistas paulistas acabou ofuscando a memória de outros discursos modernistas
(SCHNEIDER, 2005, p. 191-192).
São Paulo se identifica por sua jovialidade, irreverência e falta de compromis-
so com os essencialismos ainda presentes na tentativa de se entender a nacionalida-
de. O Recife nos fornece através da contraposição entre tradição e novidade a radi-
calização das oposições por meio da polêmica que vai se superpondo ao beletrismo
e ao romantismo do século XIX.
A transição também pode ser observada como um afrouxamento dos ideais
românticos. Em Tobias Barreto, exemplarmente, demonstra-se pela substituição do
romantismo pela sátira e pela polêmica, como veículo de manifestação intelectual.
A manutenção do antigo, no entanto, resiste e é preciso que se empreguem
as forças disponíveis nos novos topoi fornecidos pelas ciências emergentes como
oposição à esta manutenção por meio da polêmica.
Note-se que a modernização cultural do Brasil é coetânea da discussão critica
dos dois grandes movimentos europeus: o positivismo e o evolucionismo. Se o pri-
meiro veio a se fazer conhecer pelo médico fluminense Luis Pereira Barreto que o
difunde já em São Paulo, após período de estudos na Bélgica, o debate referente ao
monismo evolucionista teve como capital o Recife.
Assim, também, em termos gerais, a própria introdução da filosofia alemã no
Brasil – apesar de Miguel Reale ter trabalhado no sentido de retirar do esquecimento
o ensinamento de disciplina dedicada a Kant em São Paulo, antes mesmo que em
Paris – continua a ser creditada em maior medida ao Recife. O centro nordestino é
responsável por sua difusão e defesa entusiasmadas.
Essa conexão dos estudos iniciais de filosofia alemã ao Recife se deve, segun-
do Mario Losano, à assunção do germanismo de forma mais “direta e vivaz” pela
Escola do Recife (LOSANO, 1974, p. 330).
À parte a hipótese do estudo de autores alemães servir como distintivo de To-
bias e como instrumento para a demonstração de seu poderio intelectual, temos que
Tobias se interessa pela Alemanha de forma envolvente a ponto de viver relações
intelectuais com o debate alemão da época.
198

Tobias vê na produção filosófica alemã a atitude que ele mesmo adota em


termos de método filosófico. De um lado se permite extrapolar o terreno infértil
do mero acúmulo de informações sobre os fenômenos, sem que se veja obrigado a
ancorar nos domínios do a priori e da invariabilidade que seriam os caminhos do
encontro de um absoluto que fora o caminho dos racionalistas que também critica
e associa aos teólogos, necessitados da verdade como de Deus, sempre na mesma
necessidade metafísica.
Tobias considera que, assim como Heráclito, o primeiro evolucionista, segun-
do sua interpretação, a filosofia alemã não permitiria que uma obra fosse lida duas
vezes, pois se da primeira vez se tinha uma obra de teoria, da segunda seria uma
obra de história, em virtude da “marcha constante, a rapidez cometária do processo
de criação e transformação das ideias”, o que interessa a Tobias e o identifica com o
espírito alemão que ele homenageia é o “contínuo redemoinhar do espírito indaga-
dor, nessa incessante ebulição do pensamento...” (BARRETO, 1966, p. 153).
Tobias Barreto, que toma como missão a difusão da nova intuição do direito e
constantemente se opõe aos defensores da “intuição retrógrada” (BARRETO, 1966,
p. 155), refere-se tanto ao tomismo, quanto ao comtismo. O comtismo teria se torna-
do retrógrado por conta da repetição de expressões cabalísticas, como mentalidade
e evolução. Esta última, segundo Tobias, mal entendida na “lei dos três estados”.
A identificação de retrógrada também atinge a área empírica, apesar dela se
colocar em pé de guerra com o transcendentalismo da metafísica. O apego a uma
ciência encarregada de estudar, isto é, de descrever a forma material e os fenômenos
vitais do corpo animal, nada explicaria nem tentaria explicar. Vejamos:

Não valera a pena cultivar tal ciência, desde que fosse peremptoriamente de-
cidido que não lhe compete ir além dos velhos domínios conhecidos, que só
lhe é dado caminhar de dia, no pleno dia da observação empírica, nunca po-
rém entrar pela noite, por mais clara que ela se mostre, a noite das conjeturas,
dos altos pressentimentos, dos rasgos divinatórios e quaisquer que sejam as
chanças de tudo isso ser alguma vez confirmado (BARRETO, 1966, p. 160).

A noite da explicação metafórica de Tobias Barreto pode ser identificada com a


novidade, guardando as características de ser ao mesmo tempo desconhecida e indô-
mita, diferentemente dos “velhos domínios”, mas ao mesmo tempo “clara” e profícua.
Demais disso, entendemos que a explicação que se contenta com a hipótese
do arrivismo negligencia o aspecto da aspiração pelo papel civilizatório que Tobias
atribui a cultura alemã. Este papel, que de acordo com a própria etimologia da pala-
vra civilização aponta para o status de cidadão. Atinge-se uma cultura mais urbana
que agrária, inspiradora do debate público de ideias e neste ponto contrastiva quan-
do comparada a tradição açucareira ao mesmo tempo em que reforça a exigência
de revolução no cenário de mendicância, inércia e atraso que Tobias retrata para a
imprensa alemã em sua carta aberta (BARRETO, 1878, p. 52).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 199

O entusiasmo pela Alemanha é nomeado por Tobias de “luta pela luz”


(BARRETO, 1901, p. 35 ) em polemica com o Visconde de Taunay.
O papel civilizatório da Alemanha irá aparecer noutros lugares, tendo persistido
na citação das fontes alemãs, ainda que essa sua preferência tenha sido motivo de cha-
cota, principalmente pela edição do periódico Deutscher Kämpfer, em Escada, o que
lhe legou a alcunha de líder da “Escola Teuto-sergipana (BARRETO, 1901, p. 172).
O papel civilizador da Alemanha torna-se também munição para a defesa da
secularização do ensino na Faculdade de Direito. Tobias, em agosto de 1883, res-
ponde à crítica do padre maranhense, transcrita no Diário de Pernambuco. O incô-
modo teria sido gerado pelo discurso proferido por Tobias por ocasião do doutora-
mento do bacharel Hermenegildo de Almeida, em que defendera a nova intuição
do direito. O contentor dirige-lhe críticas por seus trechos de “puro germanismo”.
Na ocasião de sua réplica, intitulada “Os theologos da Civilisação” (“Civilisa-
ção” era então o nome de um jornal católico), Tobias considera o fato gravíssimo,
citando mais uma vez a produção alemã em seu socorro, e em socorro da liberdade
de cátedra e do ensino secularizado nestes termos:

Se um jornal catholico, o de qualquer outra feição, se julga autorisado a


citar perante o seu tribunal um discurso pronunciado em uma solemnidade
acadêmica, mais tarde estenderá esse direito até ao ponto de apreciar nas
suas columnas as preleções do corpo docente; e isto é perigoso. Ainda ha
pouco o professor H. von Treitschke nos Annaes Prussianos (dezembro de
1882) protestava contra similhante anomalia. Elle disse com razão que “a
disciplina dos estudantes, a liverdade dos professores, o serio do trabalho
scientifico correm perigo, se as folhas se arrogam uma funcção judicial em
um terreno onde somente deve haver mestres e discípulos (BARRETO,
1901, p. 182-183).

Também a própria opção pela publicação de seus estudos sob o título de Estu-
dos Alemães será justificada da seguinte forma:

O que eu pretendo publicar, sob o título de Estudos Alemães, abrange uma


série indefinida de escritos de diverso conteúdo e datas diversas, mas em sua
maioria inspirados e dirigidos pelo princípio comum a todos os trabalhos, que
tëm ocupado, há mais de dez anos, minha vida espiritual. Nem é preciso que o
diga, pois que já se sabe: esse princípio é o da crítica severa e despreocupada,
no interesse de alguma coisa de encantador e delicioso, cuja posse, entretanto,
como a da mulher adorada, muitas vezes encerra menos prazer do que a ânsia
mesma de possuí-la e gozá-la.
O epíteto de alemães , que dou aos escritos aqui prometidos, não serve para
indicar o momento objetivo do meu programa, visto como não tenho em mira
fazer da Alemanha, em todas ou qualquer das relações, em que ela possa e deva
ser considerada, o assunto obrigado das minhas indagações; mas esse epíteto
indica, sem exceção alguma, o momento subjetivo da coisa, quero dizer, põe
logo a descoberto o meu ponto de partida, a minha intuição, as pressuposições
necessárias do meu escrever e criticar [...] (BARRETO, 1991, p. 45).
200

4. Estilo e identidade nacional em Tobias Barreto

Se atentarmos para o estilo dos textos filosóficos produzidos por Tobias Bar-
reto, torna-se verificável o descompasso com o tipo de produção narrativa que visa
reduzir o raciocínio a alternativas de verdade e falsidade.
O discurso enxuto, caracterizado pela brevidade, que identifica a braquiologia
denominada pelos antigos, e da qual já era adepto, em tese ao menos, Platão, deverá
caracterizar a narrativa cientificista; mas não parece ser utilizado pela Escola do
Recife, se observarmos as técnicas retóricas presentes nos textos.
A despeito da possibilidade de se vislumbrarem repercussões de ordem histó-
rica em nosso estudo, temos que a história das ideias postas em discussão pela Esco-
la do Recife pela obra de Tobias Barreto, bem como suas relações com a conjuntura
sociopolítica de então, se nos mostram interessantes na medida em que permitem
vislumbrar a caracterização da retórica na produção filosófica.
Por ocasião do concurso para a Faculdade de Direito em 1882, Tobias Barreto
irá apresentar as ideias de Rudolf von Jhering, de quem esposava a interpretação do
direito como fenômeno histórico de criação cultural da humanidade.
Adicionava à concepção de Jhering, para quem o direito seria o conjunto das
condições de vida da humanidade coativamente asseguradas pelo poder público, a
qualidade evolucional ou de desenvolvimento destas condições, ao mesmo tempo
em que dispensava a referência ao poder público (JHERING, 2000, p. 299-319).
Deste modo, fazia incluir suas filiações filosóficas evolucionistas à concepção
do jurista alemão, o que garantiria a originalidade e independência do fundador da
Escola do Recife, como confirma Clóvis Beviláqua (MERCADANTE, 1972, p. 173).
Interessante observar, mais uma vez aqui, a ausência da importação acrítica do
modelo estrangeiro. Mais vale, ainda, observar que o cotejo da filosofia de Jhering
com a obra de Tobias se nos mostra especialmente rico em termos de comparações
relacionadas à identificação de elementos retóricos relativos às figuras de linguagem.
Conforme afirma Adeodato, em artigo no qual analisa a dimensão retórica na
obra de Jhering, teria cabido a Tobias Barreto, bem como a Clóvis Beviláqua, en-
xergar o relativismo jurídico no lado heurístico de Jhering. Acresce, ainda ter sido
Tobias responsável por uma visão mais própria e criativa da obra de Jhering, a des-
peito de ter sido privilegiada na literatura jurídica o lado sistemático, generalizador
e dogmático da obra do jusfilósofo alemão (ADEODATO, 1995, p. 29).
Também em Gláucio Veiga, que entre nós se preocupou notadamente com
a história das ideias da Faculdade de Direito do Recife, encontramos referências
comparativas dos dois filósofos. A comparação se estabelece não só em relação às
ideias comungadas pelo “nosso Tobias” e por Jhering, como também, em relação
à fragmentação dos trabalhos, ao amor ao paradoxo, à utilização da eloquência das
frases de impacto, da sátira, da galhofa, como virtudes de um temperamento san-
guíneo e colérico, dentre outras características que nos são profícuas em revelar
a possibilidade de analisar os textos e seu estilo à luz das técnicas persuasivas da
retórica (VEIGA, 1995, p. 64).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 201

Conforme lembra Adeodato (2010, p. 62), ao mesmo passo em que atenta para
as armadilhas do formalismo radical no julgamento da atitude retórica que a reduza
ao exame das figuras de estilo e de sua classificação, temos que:

Retórica é ornamento, sim, mas não apenas ornamento. Ornatus é a qualidade


do orador que coroa o discurso e a palavra é a mesma empregada no estar
preparado para a batalha. Observe-se a expressão “ornado” e não “ornamen-
tado”. Essa “armadura” consiste do conjunto de qualidades que compõem o
estilo, a habilidade culminante do grande orador (SKINNER, 1966, P. 49). A
Retorica ad Herennium compara literalmente a eloquência a uma arma pode-
rosa para aniquilar os inimigos.

A tentativa estoica que propõe imunidade em relação as paixões faz com que
no plano da linguagem, haja necessidade de separação entre figuras de pensamento
e figuras de linguagem. As ideias são entendidas como apartáveis de sua expressão
linguística e dos tropos, das figuras de linguagem. Pressupõe-se uma oposição entre
sentido reto e sentido figurado (GARAVELLI, 2000, p. 157).
A atitude, flagrantemente ontológica, compagina-se com a desconfiança de
Aristóteles com respeito aos argumentos que fazem confundir coisas com nomes.
Já na abertura das “Refutações Sofísticas”, afirma que apesar de aparecerem como
argumentos, na verdade, seriam apenas falácias já que os nomes possuem vários
significados (ARISTOTLE, 1952, p.227).
O estudo que privilegie o estilo, no entanto, pode ser abordado com signifi-
cados menos associados a uma classificação estéril e mais próximos de descober-
tas frutíferas.
O estudo do estilo pode ser entendido não como prescrição, mas antes como
preocupação a respeito da medida em que o estilo influencia o ouvinte de forma a
afetar-lhe a sensibilidade, podendo assegurar a adesão tranquila.
Obviamente, a relação entre estilo e seus efeitos não poderia ser entendida
como relação historicamente estanque, considerando-se que a repetição e banaliza-
ção desgastam o efeito de encantamento á exemplo do que ocorre com a metáfora
na conhecida observação de Nietzsche (SLOTERDIJK, 2002, p. 78-79).
Conforme já reconhece Hegel, o estilo não poderia, por conta de sua nor-
matividade, ser confundido com a beleza da obra de arte, sendo-lhe, no entanto, a
posteriori (HEGEL, 2001, p. 291). Contudo, o próprio estilo pode se pôr a serviço
da sugestão, permanecendo implícito e sendo principio de descoberta capaz de for-
necer chave iconográfica. Esta chave permaneceria indefinível e poderia ser propos-
ta como hermenêutica de modo a limitar a objetivação radical do objeto, forma de
fazer desaparecer a antinomia entre a obra de arte e a história dos estilos desde que
o estilo seja tomado no sentido de criação histórica e não no sentido matemático de
um conjunto de formas categoriais formais nem no sentido psicológico de uma certa
maneira de ver ou ainda de resposta à percepção.
202

Atente-se para a possibilidade de atrelar o estudo do estilo à proposta de solu-


ção de uma narrativa. Independentemente da intencionalidade do autor real, pode-se
falar em autor implicado, reconhecendo-se uma operatividade que se coaduna com
a retórica persuasiva. Não há mera preocupação com a intenção, mas antes com a
estratégia comunicacional que antecipa ou tenta antecipar o momento da leitura,
incluindo o leitor ou o auditório (RICOEUR, 1997, p. 280).
Tobias Barreto, como a Escola do Recife, estando mais ou menos localizado
entre o romantismo e o início do modernismo, irá adotar estilo que reúne caracterís-
ticas gerais atribuíveis aos dois padrões ou modelos. Atente-se para o fato de que o
incipiente modernismo do Recife irá acentuar o compromisso com a superação da
aristocracia agrária ao mesmo tempo em que estará mais vinculado aos traços do
regime antigo.
A respeito das relações entre o romantismo e o cientificismo no Brasil do sé-
culo XIX, Nelson Saldanha dá conta das características do romantismo e enfatiza
o sentido de posteridade e historicidade como método usual dos românticos. Este
sentido se coadunaria com traços da cultura moderna marcados pela sensação de
crise e pelo “demônio da comparação”.
A cultura romântica, apesar de não se ater a uma doutrina nova especificamente
delineada, já teria proposto uma literatura nova realizada em meio a fatores como a
relação com a burguesia, o idealismo, o nacionalismo, a historiografia, o liberalismo,
o conservadorismo, o empirismo, decorrente da consciência histórica e etnográfica.
Com os ímpetos românticos que incluíram a necrofilia e a ironia, teriam flo-
rescido os “ismos” propiciados pelo estímulo ao debate vindo do liberalismo, e pelo
relativismo da secularização da cultura, acompanhados do desenvolvimento das ci-
ências sociais pela “reflexão sobre a crise”.
A atitude eclética associada ao século XIX não deve ser lida como produ-
ção anterior às produções intelectuais sistemática, o que parece óbvio do ponto de
vista cronológico, mas que é frequentemente um preconceito contra as filosofias
ecléticas. Assumir-se-ia que elas seriam menos profundas e pacientes quando com-
paradas às construções filosóficas sistemáticas. Entretanto, o mérito do ecletismo
estaria em ter se convertido em “reexame”, “contraprova” e “balanço” das filosofias
sistemáticas anteriores ou das alterações que as condicionaram, numa demonstração
de “consciência de historicidade”, que Saldanha reputa mais acurada do que aquela
observada já no século XX (SALDANHA, 1997, p. 60-62).
Numa análise mais específica do estilo de Tobias Barreto, Saldanha insiste em
sua índole iluminista e fragmentária, menos tratadista do que ensaísta. Isto decorre-
ria de seu estilo crítico e pessoal, de forma alguma correspondendo à um tratamento
superficial dos temas, inclusive dos estritamente jurídicos, mas antes, haveria na
sua maneira de “escrever (ou de pensar) a expressão de uma filosofia ousada e pe-
netrante. Inclusive no modo de citar autores, não simplesmente “mencionando os
nomes e as obras, ou expondo comportadamente as teorias, alinhando-se como em
um mostruário, mas fazendo-os (aos autores) entrar em seu raciocínio, concordando
ou discordando deles, fazendo deles personagens de uma reflexão viva, ardente e
evolvente” (SALDANHA, 1997, p. 43).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 203

O próprio Tobias também será chamado em sede de polemicas a se explicar a


respeito do estilo, que conecta com seu tempo e sua história tanto quanto com suas
determinações mais pessoais. No plano pessoal, quanto às últimas tivera oportuni-
dade de fazer comparar o estilo ao nariz, cada um tendo o seu e sobre a relação do
estilo com o tempo:

A apreciação dos estylos é uma questão de sentimento. Os allemães, cujo


espírito altamente philosophico se accentúa na propria língua, exprimem e
consagram esta verdade pela palavra Stilgefühl, sentimento do estylo. Ou
seja, como parece a uns aquella capacidaded de tornar-se accessível à força,
à graça, à impregnação do modo de dizer de um escriptor; ou seja antes,
como opinam outros, aquella propriedade, não muito, de distinguir o estylo
de uns do de outros escriptores; o certo que a estylistica pertence sobre tudo
à esphera da sensibilidade. Há no estylo o que quer que seja de indefinido e
indefinível, como na musica, e o ouvido é o seu órgão. [...] Sabe em que pé,
em que relação se acha o estylo de um escriptor com o desenvolvimento geral
da litteratura do seu paiz? [...] Ora, nós, que ainda não temos uma poesia bem
accentuada; nós que não temos uma sciencia, que não temos uma philosophia,
que não tempos uma litteratura em geral, como podemos ter um estylo, uma
estylistica systematisada, cujas regras devamos respeitar, como podemos em
uma palavra, ter o tecto antes de possuir o edifício?

Ainda quanto ao estilo de Tobias Barreto, vale ressaltar a reação contra a for-
malização da linguagem. Esta característica que já não se atribui ao romantismo,
mas ao modernismo é bem acentuada como inovação, apesar de a educação sempre
ter se baseado na manutenção do português reinol.
Exemplo da separação entre as línguas, com o rebaixamento da popular origi-
nária das senzalas, promoviam os padres mestres dentre os quais exemplifica Gil-
berto Freyre a figura do Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama que se zangava
e reagia com beliscões à pronuncia de “oxentes” ou “mi deixe” pois o modelo de
português correto era o do reino (FREYRE, 2006, p. 417).
Afirma, ainda Freyre que embora o esforço dos jesuítas no sentido de fazer
perdurar o português reinol no Brasil tenha fracassado, subsistiria uma disparidade
entre a língua falada e a escrita no Brasil a ponte da “...escrita recusando-se, com
escrúpulos de donzelona, ao mais leve contato com a falada; com a do povo; com a
de uso corrente” (FREYRE, 2006, p. 415).
Tobias Barreto, promove, pois, em seus escritos o enfraquecimento desse dis-
tanciamento, antecipando atitude modernista de modo a empregar os termos e ex-
pressões populares, bem como denuciar o exagerado apego às questões gramaticais.
Para tal, criticará constantemente a atitude daqueles para os quais aplica a alcunha
de canis gramaticus (BARRETO, 1901, p. 201-203), por serem empenhados em
filigranas gramaticais e destituídos de considerações mais relevantes.
204

Talvez possamos terminar essas observações a partir da citação a respeito do


exame da liberdade nas associações de Tobias Barreto, por ele mesmo empreendido,
o que valeria como justificativa e boa ilustração para o estilo, a atitude intelectual,
o tempo, o ethos:

Ora, o mesmo se dá com a faculdade de associar, que se póde considerar, no


estado actual do seu desenvolvimento, um dos productos mais significativos da
phylogenia intellectual. Ella está na razão inversa do grau de estupidez: quanto
menos exercido, quanto menos vivace o homem tem o poder de associação,
tanto mais acanhado e estúpido elle se manifesta (BARRETO, 1901, p. 149).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 205

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (1995). O sério e o jocoso em Jhering: uma visão retó-
rica da ciência jurídica. In: ADEODATO, João Maurício (Org.). Jhering e o direito
no Brasil. Recife, Editora Universitária da UFPE.
______ (2010). A retórica constitucional – sobre tolerância, direitos humanos e
outros fundamentos éticos do direito positivo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva.
ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta (1983). Elementos de direito natural
privado. Recife, Livraria Medeiros.
ARAÚJO, José Francelino de (1996). A Escola do Recife no Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, Sagra D.C. Luzzatto.
ARISTOTLE (1952). On Sophistical Refutations. Chicago/London/Toronto,
Encyclopaedia Britannica.
BARRETO, Tobias. Polemicas (1901). Rio de Janeiro, Companhia Typographica Nacional.
______ (1939). Um discurso em mangas de camisa. In: LIMA, Hermes. Tobias
Barreto: a época e o homem. São Paulo, Rio, Recife, Porto Alegre: Companhia
Editora Nacional.
______ (1966). O Haeckelismo na biologia In BARRETO, Tobias. Estudos de Fi-
losofia. Tomo 1. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro.
______ (1878). Ein öffener Brief an die Deutsche Presse. Escada: ed. do Autor.
______ (1900). Himmel und Escadafahrt. In: BARRETO, Tobias. Vários Escrip-
tos. Rio de Janeiro: Laemmert.
______ (1991). Estudos Alemães. 5. ed. Rio de Janeiro: Record; Aracaju: Secreta-
ria de Estado de Cultura e Meio Ambiente.
CHACON, Vamireh (2008). Formação das ciências sociais no Brasil: da Escola
do Recife ao Código Civil. 2ª ed. Brasília, Paralelo 15; Brasília, LGE editora; São
Paulo, Fundação Editora da Unesp.
COSTA Filho (1942). Tobias Barreto. In: Revista Trimestral do Instituto His-
tórico e Geográfico de Sergipe. Anos XV – XXV (1930-1940) N. 16 – VOL XI.
Aracaju, imprensa Oficial.
DUESO, José Solana (1996). “Protagoras, el Filosofo Relativista” (Introducción)
In: PROTÁGORAS. Dissoi Logoi. Madrid, Akal.
GARAVELLI, Bice Mortara (2000). Manual de Retórica. 3.ed. Madrid, Cátedra.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich (2001). Cursos de estética I, 2.ed. São Paulo, Edusp.
JHERING, Rudolf von (2000). El fin en el derecho. Granada: Comares.
LIMA, Hermes (1939). Tobias Barreto: a época e o homem. São Paulo, Rio, Reci-
fe, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional.
LOSANO, Mario G. (1974). La scuola di Recife e l’influenza tedesca sul diritto bra-
siliano. In: TARELLO, Giovanni (Org.). Materiali per uma storia della cultura
giuridica. Vol. IV, Mulino.
MERCADANTE, Paulo e PAIM, Antônio (1972). Tobias Barreto na Cultura
Brasileira: uma reavaliação. São Paulo, USP.
206

PEREIRA, Nilo (1977). A Faculdade de Direito do Recife – Ensaio Biográfico, 2


vols. Recife: Universidade Federal de Pernambuco.
Ricoeur, Paul. Tempo e Narrativa (1997). Tomo III. Campinas: Papirus.
ROMERO, Sylvio (1901). Prefácio. In: BARRETO, Tobias. Polêmicas, Rio de Ja-
neiro, Cia. Tipográfica do Brasil.
SALDANHA, Nelson (1997). Romantismo, evolucionismo e sociologia: figuras
do pensamento social do Séc. XIX. Recife, Fundaj, Editora Massangana.
SCHNEIDER, Alberto Luiz (2005). Sílvio Romero, hermeneuta do Brasil. São
Paulo, Annablume.
SKINNER, Quentin (1996). Reason and rhetoric in the philosophy of Hobbes.
Cambridge: Cambridge University Press.
SLOTERDIJK, Peter (2002). Se a Europa despertar: reflexões sobre o progra-
ma de uma potência mundial ao final da era de sua letargia política. São Paulo,
Estação Liberdade.
VEIGA, José Gláucio (1995). Jhering, Tobias e a “nova intuição do direito” In:
ADEODATO, João Maurício (Org.). Jhering e o direito no Brasil. Recife, Editora
Universitária da UFPE.
VILLEY, Michel (2005). A formação do pensamento jurídico moderno. São Pau-
lo, Martins Fontes.
A SOCIAL DEMOCRACIA DE Rui
Barbosa E A DEFESA DA POSITIVAÇÃO
DE DIREITOS SOCIAIS NA CAMPANHA
PRESIDENCIAL DE 1919

Anselmo Laghi Laranja

Resumo: Esta pesquisa visa analisar o discurso de Rui Barbosa na campanha


presidencial de 1919, no qual enfatizou a necessidade de uma reforma consti-
tucional para a positivação dos direitos sociais. Para tanto, dividiu-se o traba-
lho em três segmentos: 1) exame do contexto em que Rui vivia; 2) análise dos
instrumentos de teoria da argumentação e de figuras de linguagem utilizadas
para o convencimento do eleitorado; 3) e aferição dos impactos sociais cau-
sados pelo discurso eleitoral, assim como sua originalidade e influência no
pensamento atual.
Palavras-chave: Rui Barbosa. Direitos sociais. Campanha presidencial de 1919.
Abstract: The goal of this research is to analyze Rui Barbosa speech during
the 1919 presidential campaign, in which he emphasized the need of a
constitutional reform for the positivity of the social rights. The work was
divided into three segments: 1) Examining the context in which Rui lived
in; 2) Analyzing the instruments of the argumentation theory and language
figures used to convince the electorate; 3) and measurement of the social
impacts caused by the electoral speech, such as its originality and influence
on the actual thinking.
Keywords: Rui Barbosa. Social rights. The 1919 presidential campaign.
Sumário: Introdução. 1. Rui Barbosa e República Velha. 1.1 Rui Barbosa: do
nascimento à segunda candidatura presidencial. 1.2 O candidato às eleições
presidenciais de 1919. 1.3 A República Velha no Séc. XX. 1.3.1 A economia
e o papel das oligarquias. 1.3.2 A formação do operariado brasileiro. 2. O
discurso eleitoral e as estratégias de Rui Barbosa para a conformidade da re-
tórica material. 2.1 Alusão à literatura. 2.2 Construção do ethos que legitimas-
se sua defesa à causa operária. 2.3 Analogia entre exploração escravocrata e
exploração assalariada: ainda a construção do ethos. 2.4 Distanciamento das
correntes socialistas e a defesa da democracia social: o diálogo entre capital e
trabalho. 2.5 A retórica ornamental: ironia, exetasmo e dialogismo. 3. O dis-
curso de Rui Barbosa como impulsionador das conquistas sociais posteriores.
3.1 Liberalismo e coletividade: o discurso social democrata de Rui Barbosa.
3.2 A influência do discurso social de Rui Barbosa para a afirmação histórica
dos direitos sociais no Brasil. 3.3 A presença do discurso de Rui Barbosa nas
doutrinas jurídicas modernas e considerações finais. Referências.
208

Introdução

S. ex. o sr. Conselheiro Rui Barbosa beliamente discursou aos operários.


E os operários não comprehenderam o Conselheiro...
É que os operários, como os peixes, ao bom estylo preferem o alimento com
que saciem a fome, contanto que elle não sirva de disfarce ao anzol.
Adjectivos e advérbios, nem por muito sonóros, enchem estômagos vasios...
Revista Contemporânea, 22 de Março de 1919.

Os direitos fundamentais constituem tema em voga na produção jurídica con-


temporânea. Dentre os diversos aspectos sobre os quais podem ser abordados, como
sua normatividade, eficácia, características e dimensões, encontra-se a perspectiva
histórica desses direitos, aqui compreendida enquanto fruto de um processo de rei-
vindicações sociais.
Nesse sentido, importantes obras têm tratado do processo de reconhecimento
pelo Estado desses direitos. Destacam-se, por exemplo, A Era dos Direitos, do ita-
liano Norberto Bobbio (1992), e A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, de
Fábio Konder Comparato (2005), textos esses que são muito utilizados nos cursos
de direito.
Assim, o presente estudo visa contribuir com essa temática, mas busca apro-
fundar o assunto no processo de afirmação histórica desses direitos na realidade
brasileira. Mais especificamente, procura entender o papel do jurista Rui Barbosa no
processo de afirmação dos direitos ditos de segunda geração a partir de seu discurso
de campanha presidencial do ano de 191932.
Para tanto, como metodologia de pesquisa e para buscar compreender toda
aquela ambientação em que vivia Rui, utiliza-se dos ensinamentos da filosofia retó-
rica proposta por João Maurício Adeodato, que, aprofundando-se nos estudos do an-
tropólogo Arnold Gehlen, entende o processo gnosiológico humano como deficien-
te frente a outras espécies, uma vez que os seres humanos são animais carentes, ou
seja, são seres que não possuem habitat fixo, porque não conseguem se comunicar
diretamente com o meio circundante, dependendo da linguagem para, no máximo,
realizarem uma comunicação indireta, metafórica (ADEODATO, 2011, p. 2-8).
Segundo João Maurício Adeodato, a linguagem é o único ambiente onde o ser
humano consegue viver e se comunicar. De certa forma, o autor aproveita elementos
da chamada virada linguística ao sustentar que a linguagem não é meio, instrumento
no qual o sujeito observa a realidade, mas é componente crucial do processo de co-
nhecimento. De acordo com Adeodato, pode-se reduzir tudo aquilo que se costuma
chamar de realidade em linguagem, na forma de um controle público da linguagem,
ou contrato linguístico, que permite criar um local comum de comunicação, mas
que também se torna a própria realidade (ADEODATO, 2011, p. 2-8).

32 Discurso intitulado como a Questão Social e Política no Brasil, proferido no teatro lírico do Rio de Janeiro, no dia 20
de março de 1919. A versão utilizada para a presente pesquisa foi aquela publicada pelo Senado Federal em 1999
(BARBOSA, 1999).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 209

Sob essa perspectiva filosófica, divide-se a observação retórica da realidade


em três níveis: a retórica material, a retórica estratégica e a retórica analítica33. Es-
ses três níveis consistirão no caminho a ser trilhado para analisar a atuação de Rui
Barbosa na busca pela positivação dos direitos sociais a partir de seu discurso como
candidato à Presidência da República em 1919.
O primeiro nível, denominado retórica material, consiste em tentar reconstruir
o contexto de discursos que existia no período de atuação de Rui Barbosa. Trata-se
da busca por entender quais relatos estavam em disputa, assim como identificar qual
era o relato vencedor e qual era o vencido. Assim, serão abordados os contextos
econômico e social em que viveu Rui Barbosa e as correntes de pensamento a favor
e contrárias ao movimento operário na Primeira República brasileira. Essa con-
textualização busca enquadrar o discurso de Rui Barbosa em seu devido momento
histórico, sempre sob uma perspectiva histórica não linear, mas exemplificativa.
O segundo nível, chamado retórica estratégica, consiste na análise dos ins-
trumentos retóricos utilizados por Rui Barbosa para tentar persuadir o eleitorado
e demais cidadãos na importância da questão social e da reforma constitucional.
Nesse nível se encontra a dimensão da retórica mais próxima do sentido comum,
como a arte do convencimento. Compõem esse nível a análise da teoria das figuras
e da tópica jurídica34.
O terceiro nível, intitulado retórica analítica, é o único de natureza descritiva e
representa a observação do pesquisador acerca da efetividade, originalidade e conti-
nuidade do discurso e das estratégias retóricas desenvolvidas por Rui Barbosa a fim
de convencer seus ouvintes.
Com esses três passos se busca entender o processo de afirmação dos direitos
sociais na realidade brasileira a partir da ação política de Rui Barbosa, assim como
averiguar possíveis contornos peculiares no seu discurso que favoreceram essa afir-
mação, porque, como se verá, o processo de reconhecimento formal estatal dos
direitos fundamentais ocorreu de modo mais célere no Estado brasileiro. O que se
quer dizer com isso não é que não houve resistência pelo Estado e cobranças pela
sociedade nesse reconhecimento, mas que, enquanto em âmbito mundial o Estado
Liberal se consolida entre os séculos XVII e XVIII e só vai sofrer grandes modifi-
cações, como o reconhecimento constitucional dos direitos sociais, no século XX
(com a Constituição mexicana de 1917), no Brasil, o período entre a formação de
um Estado Liberal, com a Carta Política de 1891, e as medidas sociais adotadas
principalmente por Getúlio Vargas a partir dos anos 30, foram de menos de 50 anos.
É nesse contexto que a figura de Rui Barbosa parece ter sido relevante no pro-
cesso de afirmação histórica dos direitos humanos na realidade brasileira. Rui Barbosa
foi o principal redator da mais liberal das Constituições promulgadas pelo Brasil e
também o primeiro político de renome nacional a colocar a questão social e a interfe-
rência do Estado nas relações contratuais como base de sua campanha presidencial.

33 Far-se-á uma breve exposição da teoria do Dr. João Maurício Adeodato (2009), tendo como fundamento o texto As retóricas
na história das ideias jurídicas no Brasil – originalidade e continuidade como questões de um pensamento periférico.
34 João Maurício Adeodato (2008, p. 55-82) explica a divisão presente na retórica, na qual a tópica trata da teoria da
argumentação, enquanto a teoria das figuras preocupa-se com a forma do texto e seus ornamentos linguísticos.
210

Por isso há interesse em questionar como Rui Barbosa entendia os direitos


sociais, sua natureza, sua legitimidade fora do direito positivo, e como esse pensa-
dor conseguiu conciliar o pensamento liberal com o pensamento sócio comunitário,
ambos defendidos firmemente por ele em dois momentos distintos de sua atuação
política, embora muito próximos.
Dessa forma, far-se-á, no primeiro capítulo, uma breve abordagem acerca da
biografia de Rui, até o momento da sua candidatura à presidência na campanha de
1919, e do contexto político-social da República Velha em que viveu. Nesse capítu-
lo, insere-se um primeiro problema, qual seja, como a rápida mudança de configu-
ração social dos centros urbanos brasileiros (Rio de Janeiro e São Paulo), devido ao
surto industrial ocorrido no período, afetou as forças políticas da época e influenciou
o surgimento do candidato Rui Barbosa como defensor da constitucionalização de
direitos sociais.
No segundo capítulo, tratar-se-á da análise de algumas estratégias presentes no
discurso presidencial de Rui Barbosa e os métodos de convencimento utilizados por
ele. Já no terceiro capítulo, far-se-á análise da interação do discurso social de Rui
em meio ao contexto da República Velha, com o objetivo de procurar respostas para
perguntas como: qual o relacionamento de Rui Barbosa com os pensamentos socia-
listas da época ou como Rui lidará com uma campanha em prol de direitos sociais,
apesar de ser marcado por seu posicionamento liberal?
Além disso, procura-se ampliar a visão para entender a relação do discurso de
Rui dentro do contexto de afirmação histórica de direitos sociais no Brasil e como
esse discurso pode ter afetado a história jurídica brasileira, e ainda, se se pode obser-
var traços do discurso dele no atual estágio do direito moderno.

1. Rui Barbosa e a República Velha

1.1. Rui Barbosa: do nascimento à segunda candidatura presidencial

Rui Barbosa nasceu em Salvador, em 1849. Filho de João Barbosa e Maria


Adélia, foi um menino de saúde frágil, que ingressou no colégio aos 5 anos de idade,
e “em quinze dias sabia ler e conjugar verbos” (VIANA FILHO, 1965, p. 10). Seu
professor chegara a afirmar que, “em trinta anos de magistério, ainda não encontrara
criança tão inteligente” (VIANA FILHO, 1965, p. 10).
Orgulhoso dos progressos escolares do filho, João Barbosa não daria mais paz
a Rui e, buscando moldá-lo à vida pública,

preparava-o para ser um erudito e um orador, e a cada instante chamava-o para


ler e decorar longos trechos. Fazia-o também subir numa alta mala, ensinava-
-lhe a posição em que deviam ficar as mãos do orador, obrigando-o a declamar
em voz forte, sílaba por sílaba, como se estivesse diante do sonhado auditório
(VIANA FILHO, 1965, p. 11).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 211

Já no ano de 1865, ingressou nos estudos jurídicos em Recife, onde não ficou
por muito tempo, diagnosticado com congestão cerebral, tendo obtido aprovação
medíocre em uma das matérias da faculdade, o que feriu o orgulho tanto do pai
quanto dele. Não demorou para que João Barbosa concluísse que “não tinham sido
propícios os ares do Recife” (VIANA FILHO, 1965, p. 21) para o filho e o transfe-
risse para a Faculdade de Direito de São Paulo, onde terminou o curso.
Nesse período em São Paulo, esteve em contato com outros bacharéis do porte
de Fagundes Varela, Álvares Azevedo e Gonçalves Dias. Esse ambiente permitiu uma
forte influência literária e crítica, de forma que “não apenas faziam peças literárias
de conteúdo político, mas, sobretudo, só concebiam a atividade política munida do
arsenal das belas-letras, da eloquência e da oratória” (GONÇALVES, 2000, p. 17).
Concluído o curso jurídico no ano de 1870, Rui, desde cedo ao lado dos libe-
rais, tendo como leituras autores como Tocqueville, logo se viu lançado no mundo
político, sobretudo devido à dissolução da Câmara pelo Imperador, que levou à
perda do cargo de seu pai. Segundo Viana Filho (1965, p. 24), após esse episódio “o
lutador acordava”. Esse foi o momento no qual Rui levantou-se para a vida política.
Ainda no período monárquico, defendeu causas como a separação entre Estado
e Igreja, a secularização do ensino, as eleições diretas, a abolição da escravidão e
o federalismo, ideias que expressou, sobremaneira, por meio de sua atividade no
Diário da Bahia (VIANA FILHO, 1965, p. 87). Dessas, atuou de forma intensa
em prol da mudança do sistema eleitoral instituído pela Carta de 1824. Desejava,
junto com o Partido Liberal, uma reforma eleitoral que substituísse o voto indireto
(cidadãos votantes formavam um colégio de eleitores, que por sua vez escolhia
os parlamentares) por meios diretos de eleição de representantes. Apesar disso,
ainda defendia o voto censitário, de modo que essa reforma tratava-se mais de uma
ampliação da participação dos já votantes que uma universalização dos direitos
políticos (GONÇALVES, 2000, p. 28).
Por essa razão, percebe-se que Rui, no regime monárquico, adotou uma pos-
tura um tanto mais liberal que democrata. A preocupação de Rui Barbosa, naque-
le momento, era predominantemente com a defesa das liberdades fundamentais
(GONÇALVES, 2000, p. 28). Assim sendo, em 1877, um ano após casar-se com
Maria Augusta, a tomada do poder pelos liberais teve com resultado a eleição de
Rui Barbosa como deputado provincial da Bahia, sem sequer precisar “pedir votos”
(VIANA FILHO, 1965, p. 91).
Cabe ressaltar, no entanto, entendimento contrário apontado por Alfredo Buzaid
(1966, p. 214), para quem Rui Barbosa já apresentava, na campanha abolicionista em
1884, ideais sociais. Segundo o autor, a defesa de Rui Barbosa na luta pela aprova-
ção de projeto legislativo que garantisse salário mínimo aos libertos já demonstrava
sua preocupação com os direitos sociais. Continua Buzaid: “A sua [de Rui Barbosa]
contribuição na campanha abolicionista não foi, portanto, lírica e romântica senão
objetiva e realista, com visão clara do problema social” (BUZAID, 1966, p. 214).
212

Nada obstante, com a Proclamação da República, Rui assumiu o Ministério


da Fazenda e a tarefa de escrever a Constituição liberal35. Viana Filho (1965, p. 87)
aponta que ele foi “o relator, o redator e, afinal, o verdadeiro autor da Constituição”.
Mas a proximidade com o poder não durou muito e, após a dissolução do Congres-
so, Rui passou à oposição, que abrangeu tanto o final do governo Deodoro, após a
dissolução do Congresso, quanto o governo Floriano, quando ela se intensificou e
levou Rui Barbosa ao exílio, passando pela Argentina, Lisboa, Paris e Londres.
O retorno só se deu em 1895 quando, já eleito senador e na busca por retomar
seus serviços na advocacia, logo transformou-se “numa espécie de advogado do
povo. Há alguém preterido nos seus direitos? Rui será, certamente, o seu patrono”
(VIANA FILHO, 1965, p. 269). Bem elucidativo desse ponto é o trecho em que Via-
na Filho relata e transcreve parte de uma carta onde se tem a visão que os próprios
colegas de senado tinham de Rui:

Severino Vieira, seu colega de senado (de Rui) escreve a Luiz Viana, gover-
nador da Bahia: 'O Rui a golpes de erudição e abusando de sua autoridade,
prestigiada, alias, pelo país inteiro, perante juízes que nada estudam e pouco
raciocinam, tem causado ultimamente os maiores embaraços à administração
do Prudente' (VIANA FILHO, p. 270).

Em 1907, sob a presidência de Rodrigues Alves, foi enviado como represen-


tante do Brasil a Haia, para a 2ª Conferência da Paz, na qual defendeu o princípio da
igualdade entre os Estados, fato que lhe rendeu, no Brasil, o apelido de Águia de Haia.
Apesar do brilhantismo e erudição que permeia sua biografia, Rui Barbosa
também foi alvo de críticas. Em especial, a Revista Contemporânea (1919, p. 13)
reproduziu trecho de obra de Araripe Júnior, publicada em 1909, cuja notícia foi
intitulada como Um talento sophistico.

Isto posto, a que fica reduzido o talento sophistico de Rui Barbosa? Ao hyper-
trophismo da lógica, como já vimos que o era da palavra. Homens do pró e
do contra têm havido em todos os tempos e a espécie continua a propagar-
-se. Retoricos chamavam-nos os Romanos e o período alexandrino encheu o
mundo dos productos da escola. A compleição entretanto, nesses indivíduos
é tudo. [...] Não faço injustiça de considerar o orador baiano, um rethorico ou
um sophista desta espécie propriamente dita. [...] Se eu não fosse inimigo da
escola lombroziana, acharia no capítulo de Max Nordau, sobre o egotismo,
um optimo lugar para acommodal-o. Essas classificações patológicas exa-
geradas, porém, não calham nos moldes de meu espírito. Rui Barbosa é um
perfeito responsável e nos tempos da inquizição elle não escaparia das mãos
de Torquemados. Os gregos não o deixariam quieto; e, quando menos fosse,
condemnal-o-iam ao ostracismo.

35 A Constituição de 1891 apresentava um núcleo de princípios que buscava resguardar as liberdades individuais. Dessa
forma, apresentava apenas direitos de primeira dimensão dentre os elencados no trecho da “Declaração de Direitos”. Esse
posicionamento voltado para proteção da pessoa individual é bem retratado pelo art. 72 da referida Carta Política, que diz:
“Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes
à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 1º - Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. § 2º - Todos são iguais perante a lei” (BRASIL, 1896).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 213

Ao disputar a presidência em 1910 contra o marechal Hermes da Fonseca, a


quem ele tinha se recusado a apoiar, ressaltando a importância de um governo civil
e os perigos daquilo que ele chamava de militarismo, que teria início com a subida
de um militar ao poder, suas ações ficaram conhecidas como a campanha civilista, na
qual foi acompanhado, inclusive, por intelectuais estrangeiros. Viana Filho retrata que
Rui recebeu uma carta de apoio do criminalista italiano Enrico Ferri, na qual ele dizia:

Não somente pela grande estima pessoal que tenho por vós, mas, sobretudo,
pelo futuro do Brasil, desejo de todo o coração a vossa eleição. Na evolução so-
cial do Brasil vossa presidência seria a personificação dum período de progres-
so civil e a realização dum programa econômico e moral digno de aprovação
por qualquer um que, como eu, amo vosso país e vaticine-lhe o mais fecundo
desenvolvimento (VIANA FILHO, 1965, p. 335).

Aponta-se, ainda, que a campanha civilista pode ser vista para além da disputa
do civilismo contra o militarismo. Segundo Bruno (1995, p. 38-39), a indicação do
Marechal Hermes da Fonseca “nada tinha de militar”. Buscava, na verdade, afastar
o risco de uma campanha baseada na massa votante, como proposta por Rui Bar-
bosa, e manter a força das oligarquias paulista e mineira. Desse modo, a campanha
presidencial de Rui também pode ser vista como uma “primeira manifestação das
classes liberais, dos republicanos históricos remanescentes”, dos idealistas contra
a política tipo São Paulo-Minas, em que o povo não era ouvido e nem o candidato
precisava ir às ruas” (BRUNO, 1995, p. 38).
Rui Barbosa perdeu a eleição, mas não desistiu de alcançar o cargo mais alto
do governo, que novamente disputou em 1919, contra Epitácio Pessoa.
Vale ressaltar que, antes disso, na 1ª Grande Guerra, defendeu que “os tribunais,
a opinião pública, a consciência não são neutras entre lei e crime” (VIANA FILHO,
1965, p. 358), contestando a posição de neutralidade inicialmente assumida pelo Bra-
sil no conflito, lutando para que nos aliássemos aos já Aliados contra o Eixo.
Rui já estava consagrado ao concorrer na campanha eleitoral contra Epitácio.
O pensador baiano comemorou o seu jubileu literário em 1918, pelo qual “a nação
inteira, representada pelo que havia de mais expressivo, o governo, o parlamento, os
tribunais, as academias literárias, associaram-se às homenagens tributadas ao após-
tolo” (VIANA FILHO, 1965, p. 367), fato que repercutiu, inclusive, em organismos
de imprensa estrangeiros. Um deles, o La Nación, de Buenos Aires, destacando a
importância de Rui, assim escreveu:

Rui Barbosa assiste à sua própria glorificação nacional. Não foi nunca pri-
meiro ministro, nem governador de província, nem Presidente da República.
Contudo, é a mais alta representação intelectual e moral do Brasil neste mo-
mento (VIANA FILHO, 1965, p. 367).
214

O jornal A Reforma (DIVERSOS, 1919a, p. 1) ilustra bem o reconhecimento


de Rui Barbosa, que ao fazer a comparação dos candidatos diz que “O sr. Epitacio,
é certo, reune todas as qualidades que deve ter um chefe de Estado, mas não pode
almejar nem os applausos nem a solidariedade que os brazileiros prestam ao seu glo-
rioso competidor”. Quanto a Rui, vincula o mesmo periódico: “o sr. Rui Barbosa, a
glorificação perfeita da nossa grandeza intellectual e cívica, o factor primacial das
nossas conquistas na ordem política e ordem social, o summo pontificie das nossas
aspirações como povo policiado, e livre culto” (DIVERSOS, 1919b, p. 1).
Nem mesmo toda essa fama garantiu ao apóstolo a conquista da presidência
em 1919, embora tenha vencido em “todas as capitais, exceto Manaus e Paraíba”
(VIANA FILHO, 1965, p. 374), a eleição, na qual tratou da questão social, com
a consequente reforma da Constituição, “defendendo um sistema de leis a cuja
sombra o capital não tinha meios para abusar do trabalho” (VIANA FILHO, 1965,
p. 374) restara perdida.
Rui ainda tentou reagir, mas a velhice e as desilusões fizeram com que ele dei-
xasse a agressividade que lhe acompanhou durante toda a vida de crítico, afastando-
-se um pouco da vida política.
Em 1923, tendo sido diagnosticado com paralisia bulbar e compreendendo ter
chegado ao fim, o próprio Rui disse ao médico que já não havia mais nada a fazer. Logo
depois foi ministrada a extrema-unção “ao doente, que a progressiva paralisia já não
permitia falar” (VIANA FILHO, 1965, p. 394), que morreu em 1° de março de 1923.

1.2. O candidato às eleições presidenciais de 1919

A candidatura de Rui Barbosa, em 1919, teria tudo para dar certo. Ele era, à
época, uma opção quase que natural, indivíduo que gozava de grande popularidade
e reconhecimento social. O apóstolo era, além de tudo, um sobrevivente no sentido
de estar vivo, tendo em conta que, contemporâneos seus, políticos como Campos
Sales, Rodrigues Alves, Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, entre outros, já ha-
viam falecido, enquanto Arthur Bernardes, Washington Luís e Getúlio Vargas ainda
eram muito novos. Assim, sobraria Rui Barbosa, como um bom candidato a uma
espécie de mandato tampão, que era o que buscavam as oligarquias nacionais, sem
representar grandes mudanças (FAORO, 2012, p. 680).
No entanto, Rui buscava mais do que um mandato tampão. Queria a refor-
ma constitucional que permitisse a intervenção do Estado nas relações trabalhis-
tas, como forma de proteger essa nova classe que crescia, ideal que “afugentava
os poderosos, que não desejavam saber do risco das modificações constitucionais”
(VIANA FILHO, 1965, p. 371). A própria incolumidade constitucional “vinha sen-
do ciosamente guardada pelas forças políticas que, desde a república, empolgaram o
poder” (FAORO, 2012, p. 683). Por isso, Rui, ao chegar com as ideias de reforma à
Constituição, passou a ser visto como um risco ao regime vigente à época, haja vista
que, para a elite do período, a busca por uma reforma constitucional poderia levar a
caminhos imprevisíveis, um risco que não estava disposta a correr.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 215

Restaria, portanto, “segregá-lo do convívio dos bons, salvo se desmentisse


as veleidades reformistas” (FAORO, 2012, p. 681). Mas Rui não desmentiu suas
ideias, o que não daria opção às oligarquias: outro candidato teria que ser escolhido.
A nova escolha recaiu sobre Epitácio Pessoa, candidato neutro, ainda fiel ao
liberalismo e que doutrinava “a convergência de vontades republicanas na defesa
da Constituição Federal, de modo a impedir que seja vitorioso o surto das doutrinas
subversivas no nosso país” (FAORO, 2012, p. 684), apresentando-se como o candi-
dato mais certo, ou, no mínimo, menos subversivo se comparado com Rui.
Dessa maneira, Rui, que sempre perseguiu o poder, agora, quando tinha a
chance de conquistá-lo com o apoio da classe dirigente, preferiu manter-se aferra-
do àquilo que vinha defendendo, que tanto assustava à elite dirigente, e de forma
consciente “começava a levantar com as próprias mãos os obstáculos que os amigos
tinham removido” (VIANA FILHO, 1965, p. 370-371), o que levou o próprio Viana
Filho a afirmar que Rui, na verdade, parecia temer o poder (1965, p. 371).
Era ele próprio o responsável pela sua não escolha. A oportunidade lhe foi
dada. No entanto, junto com ela vinha a exigência de um mero mandato de transi-
ção, tampão, o que Rui não aceitou e, por isso, foi substituído pelo paraibano Epitá-
cio Pessoa na escolha da elite agrária.
Entretanto, Rui Barbosa não ficou parado. Provocado por Macedo Soares, que,
ao lhe dar a notícia sobre a sua não escolha, disse-lhe que se fosse candidato não
teria nem três por cento da votação (VIANA FILHO, 1965, p. 373), candidatou-se
a presidente pela oposição.
O afastamento dele do grupo dirigente o aproximou dos oposicionistas, “das
oposições locais, dos eleitores independentes das cidades, elementos perigosamente
contagiáveis, combustíveis de contestações sociais nas suas tendências” (FAORO,
2012, p. 681).
Entre as camadas das quais Rui Barbosa se aproximou, uma das mais impor-
tantes foi a do operariado, que já começava a se levantar. As greves desde 1917
eram um bom indicador de que essa nova classe, no ambiente público, já passa a
reclamar, senão por uma participação política mais efetiva, pelo menos por melho-
res condições de vida, com a presença regulamentadora do poder público (FAORO,
2012, p. 681).
A defesa de uma regulamentação das relações trabalhistas foi um dos motivos
da perda de apoio das elites, aproximando-o da oposição, sobretudo das classes
operárias, direcionando o debate político na campanha para o tema da questão so-
cial, resumida na discussão sobre a intervenção do Estado para proteger o operário
em contraposição àqueles que defendiam que a intervenção estatal só deveria se
dar para garantir a ordem, deixando que patrão e empregado estabelecessem suas
próprias convenções.
O autor da Constituição liberal agora estava do lado dos que defendiam um Esta-
do mais ativo, que não se limitasse apenas à manutenção da ordem, mas também que
garantisse uma proteção aos trabalhadores por meio da regulação das relações traba-
lhistas pelo direito posto, não deixando o operariado ao alvedrio das livres convenções
216

(VIANA FILHO, 1965, p. 374). Já a defender o outro lado, das livres convenções e
do Estado não interventor, estava Epitácio Pessoa. É sob este tema, a questão social,
portanto, que se desenvolve grande parte do debate de campanha em 1919.
Rui, inclusive, industrialista que era, ainda buscou aproximar os interesses do
operariado aos interesses dos industriais, alegando que é do interesse do próprio
industrial o ajuste com o operário e que capital e trabalho não eram entidades estra-
nhas. Pelo contrário, sustentou em campanha que um dependia do outro e, por isso,
deveriam trabalhar juntos (FAORO, 2012, p. 687).
Não obstante os esforços de Rui, seria da Paraíba o novo presidente. O resulta-
do demonstrou que, mais do que discursos e boas intenções, à época, o mais impor-
tante era ter à disposição a máquina política: o poder do campo era muito difícil de
ser vencido. E Epitácio foi eleito pelos grandes estados e pela oligarquia (FAORO,
2012, p. 691).
Mas a derrota não foi por completo. As urnas mostraram que Rui Barbosa,
embora considerado por alguns demagogo, sendo subversivo,

falava em nome de realidades concretas. Sustentado apenas pelos governos


do Pará e do Estado do Rio, obteve, além da vitória nas suas bases, a maioria
dos votos da Capital Federal, com trinta por cento no cômputo geral (FAORO,
2012, p. 689).

Pois bem, “às vezes luta-se para perder” (VIANA FILHO, 1965. p. 373). Mes-
mo assim, a partir daí “estava selada e consagrada a separação entre as camadas
médias e governo, este agora, não mais do que uma oligarquia que fala entre si,
sem repercussão popular” (FAORO, 2012, p. 689). Entre os governantes e a nação
já estavam enfraquecidas as relações de reciprocidade. Embora perdida a batalha, o
recado estava dado e a própria sociedade já não seria mais a mesma.

1.3. A República Velha no Século XX

1.3.1. A Economia e o papel das oligarquias

A República Velha rompeu o regime absolutista brasileiro e consolidou a figura


dos barões do café como classe política dominante. Por outro lado, não tardou para
que a 1ª Guerra Mundial e a crise do café afetassem estas estruturas sociopolíticas.
Por isso, se abordará neste tópico as características agrárias do período e as poste-
riores mudanças advindas da industrialização.
Durante toda a República Velha o Brasil manteve a sua característica de agrário
e exportador de produtos primários, sobretudo de café, como bem apontam os dados
do censo de 1920, ao mostrar que “apenas 16,6% da população vivia em cidades
de 20 mil habitantes ou mais [...], e 70% se ocupava em atividades agrícolas”
(CARVALHO, 2004, p. 54).
Essa estrutura econômica influenciou diretamente o modelo político efetivado
durante a República Velha. Destaca-se, nesse sentido, o domínio das oligarquias
paulista e mineira no controle do cenário político nacional, que teve como um dos
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 217

instrumentos a chamada política dos governadores. Consagrou-se a baixa efetivi-


dade dos pretensos direitos civis e políticos, que acabaram por se restringir a essas
camadas oligárquicas da sociedade.
José Murilo de Carvalho é bem explícito ao afirmar: “A primeira república
foi dominada economicamente pelos estados de São Paulo e Minas Gerais” (2004,
p. 54). Ocorreu a consagração da política dos governadores, fortalecida pelo co-
ronelismo como sistema político, pelo qual “Os coronéis articulavam-se com os
governadores, que se articulavam com o presidente da república, quase sempre
oriundo dos dois estados” (2004, p. 54). O voto era de cabresto dos coronéis.
Desse modo, a “política dos Estados” tornou-se política nacional, capaz de
eliminar quaisquer esperanças dos grupos políticos minoritários. Raymundo Faoro
retrata que o processo eleitoral não despertava nenhum interesse dos grupos políti-
cos. Enquanto as seções eleitorais ficavam vazias, qualquer atrevimento maior das
oposições era seguido por uma rápida “degola institucionalizada”, em que os opo-
sicionistas não passavam de “infamados na tentativa torpe de profanar o templo”
(FAORO, 2001, p. 646).
Essa usurpação dos direitos políticos só era possível por uma prévia negação
dos próprios direitos civis. Na fazenda, o que valia era a lei do coronel, o estado
só agia nesse território se em acordo com o coronel, indivíduo grande latifundiário
que, ao passar o seu apoio político (de curral) ao governador, recebia em troca o
poder de indicar as autoridades, como o delegado de polícia, o juiz, o agente do
correio, a professora, etc. (CARVALHO, 2004, p. 56).
Esse coronel, ao contrário daquele que recebia o título da Guarda Nacional,
representava um líder econômico, cuja influência política é reflexo de seu patrimô-
nio pessoal. Nada obstante, não é apenas o poder econômico que lhe confere tal
relevância social na República. O coronel se “avigora com o sistema da ampla eleti-
vidade dos cargos”, em que sua capacidade de aliciamento do processo eleitoral faz
com que receba por um “pacto não escrito” o poder político de fonte estadual que a
descentralização da federação permite (FAORO, 2001, p. 700).
Por isso mesmo, não se deve entender o coronelismo apenas como parte de
uma estrutura econômica. Ele já havia se consolidado, inclusive, no controle públi-
co da linguagem da época, o que é possível de se notar nas expressões cotidianas
como “juiz nosso”, “delegado nosso”, que demonstram, basicamente, uma terceiri-
zação dos serviços da justiça e da polícia, que eram postos a serviço de um interesse
privado (CARVALHO, 2004, p. 56).
O coronel, à época, era figura marcante na vida daqueles que o circundavam,
daqueles que estavam sob sua “jurisdição”, tendo em conta que “os próprios direitos
dependiam da vontade dele, seja o direito de ir e vir, de manifestação, de inviolabili-
dade do lar, entre outros, todos dependiam do coronel e só com o seu aval poderiam se
efetivar” (CARVALHO, 2004, p. 57). Havia extrema dependência para com o coronel,
da qual decorre a falada impossibilidade de bem executar os direitos civis e políticos.
Como se vê, “a república ou os vitoriosos da república fizeram muito pouco
em termos de expansão de direitos civis e políticos” (CARVALHO, 1987, p. 45).
Os vitoriosos da república, e Rui tinha sido um deles, logo veriam que quase nada
mudou, que o poder passou de um Rei para os militares e dos militares para as
218

oligarquias cafeeiras que, misturadas ao leite mineiro, dividiram entre São Paulo e
Minas Gerais o comando da nação. Ora um, ora outro, o comando permaneceria nas
mãos de um ciclo fechado, que decidia os rumos da nação.
Era o presidente quem indicava seu sucessor, as eleições que eram vencidas no
“bico de pena” (FAORO, 2012, p. 641), uma máquina eleitoral que levava ao poder
aquele que a controlava. Houve esvaziamento da oposição. Era isso que se via com
a república, um povo bestializado (CARVALHO, 1987, p. 9), completamente exclu-
ído da tomada de decisões, que a tudo assistia sem nada compreender.
Rui mostrou-se indignado com essa situação. Via o coronelismo, o agrarismo e
o federalismo exacerbado como um atraso, como um forte obstáculo às suas ideias,
tanto econômicas, de implementar no Brasil um sistema que permitisse o incentivo
às indústrias, quanto políticas, de realizar a modificação constitucional.
A política do encilhamento havia sido uma primeira tentativa de Rui, enquanto
Ministro da Fazenda, de mudar o quadro econômico brasileiro, buscando uma base
industrial para a República que se formava, mas obteve resultados opostos. O au-
mento da emissão de papel moeda fez com que a indústria fosse incentivada, mas
por outro lado garantiu crédito e dinheiro fáceis à cafeicultura paulista. Como apon-
ta Faoro (2001, p. 586) “as emissões aceleram o plantio cafeeiro, graças ao crédito
abundante, dobrando a exportação, o período de 1891-1900”.
Como jurista, certamente não agradava a Rui a noção de um “juiz nosso”, de um
juiz que respondesse não à lei, mas sim ao coronel, ou de um delegado de polícia que
nada mais era do que um dos “funcionários” do coronel. Pensar que os direitos civis
dependiam da vontade de um coronel é como negar a importância ou relevância de
uma Constituição, ou de qualquer outra lei. Essa própria dependência dos trabalha-
dores rurais para com os coronéis deve ter sido um fator de influência para que Rui
buscasse uma legislação que, regulando as relações trabalhistas, viesse a proteger os
trabalhadores urbanos, sabendo que, assim como os trabalhadores rurais, os urbanos,
se deixados às livres convenções, ficariam por completo na dependência do industrial.
Os caminhos que a República assumiu, legitimada pela Constituição liberal,
escrita pelo próprio Rui, não o agradavam nem um pouco. Dessa maneira, era preci-
so reformar tanto a Constituição quanto o modo de se fazer política. Essa seria a sua
nova bandeira. Não havia meios de implementá-la senão disputando a presidência
do país e pondo essas questões em pauta.

1.3.2. A formação do operariado brasileiro

Sob direção de Boris Fausto, a obra História Geral da Civilização Brasileira


(2006) traz importantes reflexões sobre a formação do movimento operário, a co-
meçar pelo questionamento feito acerca do corte histórico no qual relega sua impor-
tância apenas aos períodos após o golpe de 1930. Isso porque, após esse período, o
apoio da classe operária torna-se crucial para a estabilidade do poder político, mas
é nos 20 anos que o precedem que ocorrerá a acomodação e o realinhamento das
forças políticas, a fim de se adequarem a um contexto de industrialização e reivindi-
cação da classe operária em ascensão (FAUSTO, 2006, p. 147-148).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 219

Esse período brasileiro é marcado por um dos mais fortes êxodos rurais da
história nacional. Duas massas populacionais são responsáveis pelo inchamento das
cidades. Primeiro, os negros libertos que, principalmente nos estados do Rio e da
Bahia, formaram os chamados “núcleos africanos”, as atuais favelas (RIBEIRO,
1999, p. 194). Da mesma forma, o monopólio da terra e a monocultura levaram os
camponeses, muitos dos quais imigrantes que substituíram a mão de obra escrava,
a se deslocar para as cidades. Assim, a implementação dos princípios democráticos
junto com a República consagrou a figura do cidadão enquanto classe pobre e atra-
sada (MARINS, 1998, p. 133).
A formação do operariado propriamente dito, no entanto, teve presença mas-
siva de imigrantes na composição do movimento operário, que, oriundos tanto di-
retamente da Europa para as indústrias, como advindos do êxodo rural, auxiliaram
na formação de uma rápida conscientização dessa nova classe de trabalhadores. O
Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo indicou que 92% dos operários
industriais no estado no ano de 1900 eram estrangeiros (FAUSTO, 2006, p. 150).
Havia, ainda, um quadro de baixíssima salubridade nas fábricas paulistas. Bo-
ris Fausto (2006, p. 155-156) também comenta que mais da metade dos operários
industriais tinham menos de 18 anos. Outro dado surpreendente para os dias atuais
é que 32% dos operários de uma das fábricas do famoso grupo industrial Matarazzo
eram menores de 16 anos, que trabalhavam 13 horas por dia.
Esse quadro retrata a miséria dos trabalhadores do período e não passou des-
percebido por Rui. Durante o discurso presidencial, ele utilizou-se de dramaticidade
para demonstrar o modo precário de vida dos trabalhadores e justificar a luta pela
aquisição de direitos dessa classe, marginalizada socialmente.
Nesse contexto, surgiram correntes de pensamentos que guiaram o movimen-
to operário na busca por transformações sociais: o anarquismo, os reformistas, os
socialistas e os mediadores. Conhecê-las importa entender quais ideias pairavam so-
bre a classe operária e com quais posicionamentos Rui Barbosa houve de dialogar.
O anarquismo brasileiro se configurou em sua forma anarcossindicalista, que
enxergava o sindicado como peça basilar na construção de uma nova sociedade.
Para tanto, defendia o fim do Estado e considerava o embate direto, como as greves,
a base de sua ação política. Esse setor do movimento operário rejeitava o processo
democrático e o eleitoral e possuía uma forte tendência internacionalista. Com pre-
sença massiva de imigrantes, também foi a corrente de pensamento que mais cati-
vou a classe operária em sentido estrito, porém não sendo tão aceito, por exemplo,
pelas classes médias (FAUSTO, 2006, p. 162).
Importante ressaltar a percepção de Boris Fausto (2006, p. 166) acerca do tipo
de discurso do movimento anarcossindicalista. Essa corrente de pensamento não
utilizava o discurso marxista, que se vinculava naquela época ao Estado Social, em
especial o alemão.
Das três correntes essa será aquela que Rui Barbosa terá menos empatia. O
caráter violento e o descaso com o processo eleitoral são contrários ao pensamento
de Rui Barbosa, que incondicionalmente defendeu o Estado de Direito e o uso do
processo legislativo. Como se verá, Rui tentou se distinguir dessa corrente radical.
220

A segunda corrente do movimento operário da República Velha compõe-se da-


queles chamados de reformistas, que acreditavam na possibilidade de colaboração
com o Estado. Assim, admitiam a participação do movimento operário no sistema
eleitoral, chegando a formar partidos políticos. Essa corrente destacou-se no Rio
de Janeiro, Distrito Federal da época, que possuía índices um pouco menores e
estrangeiros em relação a brasileiros se comparado a São Paulo (FAUSTO, 2006,
p. 175-178).
A terceira corrente, representada pelo pensamento socialista, não obteve gran-
de êxito no cenário político nacional, ficando mais restrita ao contexto de Santos.
Isso porque, seu principal líder, Silvério Fontes, acabou por incorporar elementos de
outras correntes. Apesar de sua formação marxista, defendia, como os reformistas, a
atuação política sem violência, mas também sustentava a ação sindical como medi-
da política para o Partido Socialista Brasileiro, fundado em 1902, que durou apenas
um ano aproximadamente. As ideias socialistas foram divulgadas no período, por
meio do jornal Avantil, mas que parou de circular com a eclosão da primeira guerra
mundial (FAUSTO, 2006, p. 180-181).
Convém destacar, também, a corrente que Boris Fausto (2006, p. 181-184)
chama de mediadores, ou políticos dissidentes. Dentre esses destaca-se Antônio
Evaristo. Ele era vinculado ao Partido Operário de França e Silva e discordava
do pensamento anarquista, mas enquanto advogado defendeu interesses da classe
operária como um todo. Boris Fausto (2006, p. 184) ressalta que Antônio Evaristo
apoiou Rui Barbosa na campanha de 1910, como o fez em 1919, o que demonstra
que Rui já estava em contato com pessoas que tendiam a defender a causa operária
desde a campanha civilista.
O cenário apresentado demonstra que os principais apoios a Rui Barbosa nas
eleições estavam nas correntes dos reformistas e dos políticos dissidentes, cuja afi-
nidade de posicionamentos e ideais é mais forte.
Vivia-se um cenário de mudanças. Pouco se pensava, até então, em direitos
trabalhistas, estando o país ainda preso a um liberalismo clássico e legitimado pela
Constituição republicana, na qual se encontravam os grandes impedimentos para
que o governo interviesse nas relações de trabalho. O Estado permanecia a pregar
as livres convenções e a não intervenção (CARVALHO, 2004, p. 61).
No entanto, alguns trabalhadores já começavam a lutar por uma nova vida, por
melhores condições de sobrevivência, “cobrando medidas que regulassem a jornada
de trabalho, as condições de higiene, o repouso semanal, as férias, o trabalho de
menores e de mulheres, as indenizações por acidentes de trabalho” (CARVALHO,
2004, p. 63), opinião que dissentia da adotada pelo Estado, que ainda via a questão
social como caso de polícia.
As condições das indústrias permaneciam péssimas para a atividade laboral.
Os trabalhadores viviam em ambientes insalubres, fétidos, sem qualquer espécie de
higiene. Pela falta de higiene e má ventilação era comum o contágio da tuberculose,
lástima que o próprio Rui traz para o seu discurso presidencial, demonstrando a
enorme influência que tivera o sofrimento pelos quais passavam os trabalhadores na
formação de suas ideias, ao dizer:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 221

Na casa de cômodos se atestam criaturas humanas como sacos em tulhas, em


uma promiscuidade inconcebível, que lembra os quadros do tráfico negreiro:
os porões coalhados de homens, mulheres e crianças, como de fardos mortos,
em uma tortura de mil torturas, que gela a imaginação transida e horripilada.
Os covis de sarrafos e folhas-de-flandres se agacham e penduram vacilantes, à
encosta dos morros suspeitos, como canis de rafeiros maltratados, onde entes
humanos se dão a si mesmos a ilusão de estarem ao abrigo das intempéries,
das sevandijas, dos bichos daninhos, que por toda a parte os varejam e infes-
tam (BARBOSA, 1999, p. 385).

O recurso à dramaticidade e a tentativa de criar um estado de espírito favorável


nos ouvintes é patente no trecho apresentado. Nele, Rui se vale do uso de adjetivos e
comparações esdrúxulas para causar emoção ao ouvinte numa carga concentrada, o
que configura a utilização do pathos36. Busca sensibilizar o ouvinte para sua causa.
Essas estratégias serão adiante estudadas.
Em suma, o surgimento de uma classe proletária pode explicar a guinada de
Rui para as novas causas sociais urbanas, sobretudo a causa operária, haja vista que,
tentar trazer para si os trabalhadores do campo sem o apoio dos governos e dos co-
ronéis era tarefa hercúlea, dificultada pelo discurso reformista, cujo sistema vigente
queria evitar. Por isso o apelo aos trabalhadores da cidade, que há muito lutavam
por melhores condições de vida e por uma legislação trabalhista, e que não estavam
presos à vontade de um coronel ou grande proprietário como as classes do campo.

2. O discurso eleitoral e as estratégias de Rui Barbosa para a


conformidade da retórica material

2.1. Alusão à literatura

Agora conhecendo Rui e o contexto social no qual viveu, torna-se possível


compreender seu discurso de campanha eleitoral ao cargo de Presidente da Repúbli-
ca, proferido no dia 20 de março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Nesse
discurso, Rui aponta a base do seu programa político, respaldado na reforma social
e rebate as críticas advindas de seu concorrente, Epitáfio Pessoa.
O texto se revela como um importante objeto de estudo do pensamento e da
capacidade retórica do jurista baiano, uma vez que é explicitamente um documento
do gênero ‘discurso político’, que busca convencer os ouvintes a fim de modelar a
realidade, no caso fazer com que votassem no próprio Rui Barbosa.

36 Adeodato (2008) faz eco as palavras de Aristóteles quando diz que ethos, pathos e logos são expressões “utilizadas na
Retórica de Aristóteles como meios de persuasão na comunicação e compõem a autorrepresentação dos oradores: ‘A
primeira espécie depende do caráter pessoal do orador; a segunda, de provocar no auditório certo estado de espírito; a
terceira, da prova, ou aparente prova, fornecida pelas palavras do discurso propriamente dito’”.
222

Rui inicia o discurso fazendo alusão ao personagem Jeca Tatu, da obra Urupês,
de Monteiro Lobato (2010). Utiliza-se da figura do Jeca Tatu como arquétipo para
“aquele tipo de raça que, ‘entre as formadoras da nossa nacionalidade’, se perpetua, ‘a
vegetar de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao progresso’” (BARBOSA,
1999, p. 367).
Rui Barbosa mescla a técnica da repetição e da exemplificação para sustentar
sua tese de que o setor social, representado pelo arquétipo do Jeca, o qual – apesar
dos grandes eventos históricos acontecidos desde a independência do Brasil –, não
havia alterado sua condição e permanecia “de cócoras” (BARBOSA, 1999, p. 367).
A alusão ao texto e ao universo simbólico da personagem da obra de Monteiro
é uma estratégia continua de Rui Barbosa. Para exemplificar:

• A cada um desses baques, a cada um desses estrondos, soergue o torso,


espia, coça a cabeça, ‘magina’, mas volve à modorra, e não dá pelo resto
(grifo nosso) (BARBOSA, 1999, p. 367).
• Roupa, a do corpo. Mantimentos, os que juntam aos cantos da sórdida
arribana. O luxo do toucinho, pendente de um gancho, à cumeeira
(BARBOSA, 1999, p. 368).

Rui descreve o cenário em que Jeca vive, aludindo à característica preguiça do


personagem e às escolhas que menos lhe dão trabalho. Nesse sentido: “Se a cabana
racha, está de ‘janelinhas abertas para o resto da vida’”; “Da terra, só a mandioca, o
milho e a cana, porque não exige cultura, nem colheita” (BARBOSA, 1999, p. 368).
Dentro dessa contextualização, utiliza-se do texto literário para demonstrar a
percepção do “homem do campo” para com a situação nacional frente às questões
político-eleitorais. E destaca:

Para Jeca Tatu, “o ato mais importante da sua vida é votar no Governo”. “Vota.
Não sabe em quem, mas vota”. “Jeca por dentro rivaliza com Jeca por fora. O
mobiliário cerebral vale o do casebre”. Não tem o sentimento da pátria, nem,
sequer, a noção do país. De “guerra, defesa nacional ou governo”, tudo quanto
sabe se reduz ao pavor do recrutamento. Mas, para todas as doenças, dispõe de
meizinhas prodigiosas como as ideias dos nossos estadistas. Não há bronquite
que resista ao cuspir do doente na boca do peixe, solto, em seguida, água abaixo.
Para brotoeja, cozimento de beiço de pote. Dor de peito? “O porrete é jasmim-
-de-cachorro”. Parto difícil? Engula a cachopa três caroços de feijão mouro e
“vista pelo avesso a camisa do marido” (BARBOSA, 1999, p. 368).

Assim, termina o tópico a pensar, dialogando com os ouvintes, que Monteiro


Lobato, ao criar a figura do Jeca Tatu, conseguiu, consciente ou inconscientemen-
te, sintetizar a percepção que a classe dirigente tem da nacionalidade brasileira, ao
passo que também os retrata como sendo aqueles que não dispõem ou não querem
se valer do verdadeiro “remédio” de que a nação necessita, que é a reforma constitu-
cional para a consagração dos direitos sociais.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 223

2.2. Construção do ethos que legitimasse sua defesa à causa operária

Ao sustentar que a classe dirigente brasileira enxerga seus cidadãos como se-
res inferiores, sem condições de racionalidade e muito menos de possibilidade de
participação autônoma no processo político, Rui Barbosa tenta chamar atenção dos
ouvintes por meio de elogio aos cidadãos, afirmando que os brasileiros, em verdade,
não seriam como o Jeca Tatu. É nesse sentido que ele vai afirmar que os cidadãos
são uma das majestades as quais devem se subordinar a classe política.
Rui (1999, p. 368) continua seu discurso dizendo: “Às majestades da força
nunca me inclinei. Mas sirvo às do direito. Sirvo ao merecimento. Sirvo à razão.
Sirvo à lei. Sirvo à minha pátria. São essas as que eu reconheço neste mundo, e é
uma delas a com que em vós me encontro neste momento”.
Assim, Rui apresenta quais as “majestades” a que ele se sujeita. Inicia se posi-
cionando contrário à ação violenta. Talvez já seja um adendo para rejeitar as formas
de mudança por meio da força. Nesse contexto, ele resume suas “majestades” em
direito, merecimento, razão, lei e pátria. Pode-se inferir o apreço do orador à lei e
à pátria, e ao merecimento, que demonstra seu caráter liberal. Essa afirmação de
Rui, contudo, possui um tom de conservadorismo, principalmente se se considerar
o ambiente anarcossindicalista que predominou entre as correntes políticas do mo-
vimento operário. Possivelmente esse seja um instrumento retórico para objetivar
suas ideias, como se elas não fossem seus interesses, mas sim de todos. Com isso
ele se põe na posição de mero subserviente do legítimo interesse da pátria brasileira.
Vale ressaltar que Rui também se utiliza da figura do dialogismo37, comunican-
do-se diretamente com os ouvintes, sugerindo serem eles também uma das majes-
tades a quem ele se curva. Elogia-os também chamando-os de “barreira do poder”,
“reservatório da vida” (BARBOSA, 1999, p. 372).
O dialogismo é também utilizado em outros fragmentos do discurso. Por exemplo:

operários brasileiros, que viestes hoje a mim, que me honrais com o desejo
de me ouvir, que me estais dando a vossa atenção, a importância do elemento
que representais cresce a olhos vistos, dia a dia, mas não principalmente por
irdes crescendo em numerosidade, não por engrossardes em vulto, não por
aumentardes em materialidade, bruta; sim por vos elevais em inteligência,
sim porque melhorais em moralidade; sim porque vos desenvolveis no sen-
timento de vos mesmos, do vosso valor no meio dos outros fatores sociais,
das vossas necessidades na cultura desse valor. (BARBOSA, 1999, p. 372).

Rui elogia os operários que, segundo ele, alcançaram um amadurecimento in-


telectual. Ele termina o tópico com uma frase de efeito e de inversão de termos: “Os
homens não se governam pela inconsciência do peso, mas pelo peso da consciência”
(BARBOSA, 1999, p. 372).

37 Figura de linguagem que se utiliza de instrumentos como perguntas e vocativos para chamar a atenção do leitor e simular
conversa com ele. Esse ornamento linguístico será melhor trabalhado no decorrer do texto.
224

A utilização dessas sofisticadas estruturas linguísticas demonstram o zelo de


Rui pelos ornamentos retóricos e o seu reconhecimento da eficácia desses instru-
mentos como forma de convencimento.
É a partir dessa construção de reconhecimento e exaltação da classe trabalha-
dora que Rui vai tentar se legitimar como melhor candidato a representá-los. Perce-
be-se que o orador chega a utilizar-se do pathos, tentando construir a ideia de haver
relação de amistosidade entre ele e a classe operária. É o que fica nítido na passagem
“Em mim, bem sabeis que não ides ter um cortejador; mas se vos mereço justiça,
deveis estar certo que podeis contar com um amigo” (BARBOSA, 1999, p. 373).

2.3. Analogia entre exploração escravocrata e exploração assalariada:
ainda a construção do ethos

Para continuar sustentando sua legitimidade para representar a classe operária,


Rui utiliza de seu passado na defesa da causa abolicionista e a assemelha com a
causa dos trabalhadores.
Nesse sentido, Rui aponta a responsabilidade do governo da Primeira Repúbli-
ca, que deixou os libertos em um estado marginal de existência, não se preocupando
com esse setor da sociedade. Ele traz o artifício divino para vaticinar que, se não
cometeram nada contra a lei, não deixaram de agir de forma amoral:

Que conta darão a Deus esses governos, senhores, de tudo o que ambiciona-
ram, poderosos para tudo o que quiseram, livres em tudo o de que cogitaram,
– que contas darão a Deus da sorte dessas gerações, que a revolução de 13 de
maio deixou esparsas, abandonadas à grosseria originária, em que a criara e
abrutara o cativeiro? (BARBOSA, 1999, p. 375).

Rui continua criticando a Lei Áurea e a postura da classe dirigente quanto a


não assistência dada aos antigos cativos. Assim: “Dar liberdade ao negro, desinte-
ressando-se, como se desinteressaram absolutamente da sua sorte, não vinha a ser
mais do que alforriar os senhores” (BARBOSA, 1999, 375). Essa expressão formu-
lada por Rui cria um estranhamento e gera reflexão, pois ele inverte o senso comum
de que a Lei Áurea alforriou os negros.
Rui prossegue e faz uma relação entre esse desamparo do governo para com
os libertos com aquele do operariado, sugerindo que os escravos foram os operários
do período colonial e do período monárquico.
Rui inicia esse trecho de seu discurso diferenciando direito e iniquidade.
“Como optar o risco, em lugar da vantagem, senão por antepor o direito à iniqui-
dade?” (BARBOSA, 1999, 377). Nesse sentido, vai utilizar-se de uma comparação
entre o cativeiro do operário com o do negro.
Parece que Rui separa a postura dos abolicionistas e dos republicanos no
início da República Velha. Assim, sugere que alguns republicanos se venderam,
enquanto os abolicionistas se mantiveram firmes em suas convicções: “E, entre
esses opostos, extremos de grandeza e desgraça, de onipotência e sujeição,
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 225

nunca houve um abolicionista que se vendesse ao dinheiro, que traísse o direito,


que desertasse o seu posto. Pudessem o mesmo de si dizer os republicanos!”
(BARBOSA, 1999, p. 378).
Assim, argumenta ser natural que os abolicionistas também se preocupem com
a causa operária, o que passa a fazer. Rui Barbosa então expressa que o capitalismo,
no momento em que vivia, se configurou e permitiu que os trabalhadores, ao contrá-
rio dos escravos, fossem portadores de direitos individuais. Assim, segundo ele, a
queixa dos trabalhadores é que as relações peculiares do trabalho com o capital não
correspondem a um sistema de leis equitativas, “a cuja sombra o capital não tenha
meios para abusar do trabalho” (BARBOSA, 1999, p. 379).
Rui faz uma ressalva na comparação, mas confirma sua analogia. Acredita que
a intercessão entre as realidades dos escravos e dos trabalhadores está em ambas
interessarem ao trabalho. Assim,

a primeira, nas liberdades elementares do homem e do cidadão, e a segunda,


na independência econômica do trabalhador. O abolicionismo restituiu o
escravo à condição humana. A reforma social, na sua expressão moderada,
conciliatória, cristã, completaria, no operário livre, a emancipação do
trabalho, realizada, outrora, em seus traços primordiais, no operário servil
(BARBOSA, 1999, p. 379).

Por conseguinte, sustenta que a causa operária traz “um corpo de reivindicações
à dignidade humana do trabalhador e à ordem humana da sociedade” (BARBOSA,
1999, p. 379). Todo esse esforço retórico de Rui parece caminhar em dois sentidos.
Primeiro, na criação do ethos que o legitimasse como defensor da causa operária; e
segundo, na busca de se prevenir e rebater as críticas quanto à contrariedade de seus
posicionamentos, anteriormente liberal e agora social. Com a analogia da relação
social vivida entre os antigos cativos e os operários de sua época, encontra-se o
fundamento de Rui para explicar sua mudança de pensamento político e o ideal de
justiça na defesa das classes necessitárias.

2.4. Distanciamento das correntes socialistas e a defesa da democracia social:


diálogo entre capital e trabalho

Outro aspecto do discurso de Rui Barbosa é a sua defesa contra os argumentos


daqueles que o criticavam por não ser socialista e por isso não poder representar os
trabalhadores. Rui sustenta que não é necessário adotar as teorias socialistas para
defender a causa operária. Nesse sentido, afirma:

Mas, senhores, socialista é o adepto do socialismo, e o socialismo é uma


teoria, um sistema, um partido. No socialismo, pois, como em todas as
crenças de partido, em todos os sistemas, em todas as teorias, a um fundo
verdadeiro, com acessórios falsos, ou um fundo errôneo, com acidentes justos
(BARBOSA, 1999, p. 379-380).
226

Não de outra forma, sustenta que ao se vincularem a uma teoria, os indivíduos


passam a estar “amalgamando tudo em uma só doutrina inteiriça, estiram a verdade,
por exageração, até os limites de erro ou impõem o erro como consequência insepa-
rável do assentimento da verdade” (Barbosa, 1999, p. 380).
É nesse contexto que Rui vai expor um dos trechos que se procurou aqui desta-
car em seu discurso, que se certa forma resume sua percepção acerca das mudanças
sociais ocorridas desde a proclamação da república e que exigem a mudança da
forma de se enxergar o direito. Nas suas palavras:

A concepção individualista dos direitos humanos tem envolvido rapidamente,


com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensu-
rável nas noções jurídicas do individualismo, restringidas agora por uma exten-
são, cada vez maior, dos direitos sociais. Já se não vê na sociedade um mero
agregado, uma justaposição de unidades individuais, acasteladas cada qual no
seu direito intratável, mas uma entidade naturalmente orgânica, em que a fase
do indivíduo tem por limites inevitáveis, de todos os lados, a coletividade. O di-
reito vai cedendo à moral, o indivíduo à associação, o egoísmo à solidariedade
humana (BARBOSA, 1999, p. 380).

O trecho demonstra como Rui entende a sociedade. Para ele, não é mais
possível enxergar o indivíduo sozinho, separado da coletividade. Assim, a sociedade
não seria apenas um conjunto de indivíduos, mas haveria uma coesão a interligar
esses indivíduos. Importante notar, também, como Rui entende que, a partir da
noção de sociedade como grupo orgânico, encontra-se uma aproximação entre
direito e moral, já que desta associação “o egoísmo” cede “à solidariedade humana”
(BARBOSA, 1999, p. 380). Constata e defende, então, a necessidade da extensão
dos direitos sociais.

2.5. Retórica ornamental: ironia, exetasmo e dialogismo

No discurso presidencial de Rui Barbosa há como se identificar a utilização


adequada de construções linguísticas para transmitir as ideias desejadas, valendo-se
de ferramentas da retórica literária para estabelecer um entendimento com o ouvin-
te. Três dessas ferramentas se destacam no discurso presidencial de Rui Barbosa: o
dialogismo, o exetasmo e a ironia.
O dialogismo, segundo Lausberg (2004, p. 255), é aquela “figura que se come-
te cuando la persona que habla no hace como si platicara consigo mismo”. Pode ser
entendido em um sentido lato, que abarque a “licença38”, “apóstrofe39”, etc. Desta
forma, representa a tentativa contínua de Rui durante o discurso de manter o canal
comunicativo aberto e, sempre que possível, falar pelo ouvinte, chamando-lhe aten-
ção ou fazendo-lhe perguntas.

38 “consiste na expressão franca de um pensamento, que choca o público e que mal dispõe o orador contra o seu próprio
partido. Ela faz-se acompanhar, no mais das vezes, por uma formula, em que se pede desculpa” (LAUSBERG, 2004. p. 257).
39 “nela o orador pode dirigir-se aos seus adversários, a pessoas ausentes (seres supraterrenos ou pessoas de uma
vivência fantasiosa, ou mesmo a coisas” (LAUSBERG, 2004, p. 259).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 227

Pode-se observar os seguintes exemplos de dialogismo no discurso:

• Não sei bem, senhores, se, no tracejar deste quadro, teve o autor só em
mente debuxar o piraquara do Paraíba e a degenerescência inata da sua
raça. Mas a impressão do leitor é que, neste símbolo de preguiça e fata-
lismo, de sonolência e imprevisão, de esterilidade e de tristeza, de sub-
serviência e hebetamento, o gênio do artista, refletindo alguma cousa do
seu meio, nos pincelou, consciente, ou inconscientemente, a síntese da
concepção, que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram
(BARBOSA, 1999, p. 368-369).
• Mas, senhores, se é isso que eles vêm, será isto, realmente, o que somos?
(BARBOSA, 1999, p. 370).
• O Brasil não é isso. É isto. O Brasil, senhores, sois vós (BARBOSA,
1999, p. 371).
• Operários brasileiros, que viestes hoje a mim, que me honrais com o
desejo de me ouvir, que me estais dando vossa atenção, a importância
do elemento que representais crescem a olhos vistos, dia a dia [...]
(BARBOSA, 1999, p. 371).
• Risum teneatis, amici? Senhores meus, não arrebentais de riso ao espe-
táculo desses santos, desses altares e desses levitas? Ou entrais também
na pilhéria, começando a sentir, como eu, pruridos reverenciais para com
essas ortodoxias, essas religiosidades, esses pontífices do catecismo con-
servador (BARBOSA, 1999, p. 383).

Quanto ao exetasmo40, Rui Barbosa o utiliza para um debate hipotético com


seus adversários políticos, criando uma discussão artificial na qual ele antecipa as
críticas que podem ser feitas a ele, já procurando dar as respostas que elabora como
mais adequadas para enfrentá-las. Essa figura pode ser exemplificada no texto de
Rui nos seguintes trechos:

• A ortodoxia rio-grandense não quer negócio comigo; porque eu sou re-


visionista, e ela não transige com a revisão. Mas adota o candidato da
Convenção do Carnaval, cujo revisionismo, tão declarado como o meu,
não tem, sequer, para sossego dos antirrevisionistas, a vantagem de ser
rigorosamente definido e circunscrito, individualmente a certos pontos
(BARBOSA, 1999, p. 383).
• Assim, o meu alvoroçado embargante, vindo-me ao encontro, como se
faz com a terra a desmontar, da primeira lançada, o adversário, outra
coisa não fez, senão me dar razão de todo na minha tese essencial
(BARBOSA, 1999, p. 402).

40 “consiste na imitação de um diálogo do orador com o seu adversário ou com o público. Neste processo, o orador repete,
interrogando, uma pergunta ou uma afirmação, por si próprio forjadas, como se elas proviessem do adversário. Depois
disto acrescenta-lhes uma resposta antitética” (LAUSBERG, 2004. p. 255).
228

• Assombrai-vos em o apreciar no discurso do senador rio-grandense, que


tomou a si, na baixa comédia da Convenção, a tarefa de reduzir a pó a
minha entrevista com o Correio do Povo, de Porto Alegre, sobre a revi-
são constitucional. [...] Não quero ventilar agora as opiniões do veneran-
do nefelibata. Só um habitante das nuvens, estrouvinhado ao acordar na
Terra, poderia, neste momento, relegar para o domínio das hipóteses re-
motas a Liga das Nações, com a missão de negociar a qual o Brasil tem,
agora mesmo, na Europa, uma embaixada (BARBOSA, 1999, p. 381).

Mas Rui não para aí. Outra figura de linguagem muito utilizada por ele é a iro-
nia41. Durante o discurso, o orador utiliza-se de expressões, perguntas e termos com
o objetivo de ridicularizar seus adversários políticos e as críticas que lhe são feitas.
Exemplos desse recurso no texto de Rui Barbosa que podemos destacar são:

• Mal me pronunciara eu desta maneira, quando, boca que tal disseste,


logo me saiu a desafio um cavaleiro andante dos pampas, dizendo-me de
cambulhada coisas, que estão a marrar umas com as outas (BARBOSA,
1999, p. 401).
• Porque o ilustre paladino da intangibilidade constitucional [...]
(BARBOSA, 1999, p. 401).
• O adocicado Sr. Lauro Müller é o estradivário made in Germany. Exe-
cuta as surdinas, os pizzicatos e as fugas da bravura em teuto-brasileiro
(BARBOSA, 1999, p. 413).

É um recurso linguístico de grande complexidade, uma vez que consiste em


construção linguística na qual a mera leitura literal não é suficiente para que o leitor
consiga atribuir-lhe o significado intencionado, mas demanda a construção de con-
texto que o permita reconhecer esse sentido. O recurso da ironia atribui um caráter
menos tenso a um texto bastante longo. Assim, acaba funcionando como uma forma
de manter o ouvinte interessado. Rui bem sabia o que estava fazendo.

3. O discurso de Rui Barbosa como impulsionador das conquistas


sociais posteriores

A falta de efetividade dos direitos fundamentais civis e políticos prometidos


por aqueles que trabalharam pela proclamação da República de 1889 contribuí-
ram, à sua medida, para a insatisfação de Rui Barbosa para com os setores agrários
e para com os ideais federalistas. Rui, que era industrialista, via no coronelismo,
no agrarismo e no federalismo exacerbado fortes obstáculos às suas ideias, tanto
econômicas, quanto políticas (defender a industrialização, tornar-se presidente e

41 “é a utilização do vocabulário que o partido contrário emprega para os fins partidários, com firme convicção de que o
público reconhecerá a incredibilidade desse vocabulário [...] as palavras irônicas são compreendidas num sentido que é
contrário ao seu sentido próprio [...] O sinal geral da ironia é o contexto” (LAUSBERG, 2004, p. 163).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 229

modificar a Constituição). É possível aferir tal conclusão do próprio resultado da


eleição de 1919, perdida por Rui. Ele obteve um grande apoio das classes médias
e trabalhadoras urbanas. Portanto, a perda das eleições só poderia ter vindo de um
lugar: do campo.
A previsão dessas consequências também pode explicar a escolha de Rui em
discursar para as classes urbanas, sobretudo operárias, haja vista que tentar trazer
para si os trabalhadores do campo sem o apoio do governo e dos coronéis era tarefa
difícil no sistema político então vigente e Rui não conseguiria realizá-la. Por isso, o
apelo aos trabalhadores da cidade, que há muito já lutavam por melhores condições
de vida, por uma legislação trabalhistas e que não estavam presos à vontade de um
coronel, ou grande proprietário, como as classes do campo.
Um outro elemento nessa mistura é a própria insatisfação da classe trabalha-
dora com a República, ou melhor, a decepção destes com as promessas do novo
regime. Assim é que Carvalho (1984, p. 23) diz que “Os operários, ou parte deles,
acreditaram nas promessas do novo regime, tentaram organizar-se em partidos, pro-
moveram greves, seja por motivos políticos, seja em defesa de seu poder aquisitivo
erodido pela inflação”.
A aproximação de Rui Barbosa da classe operária não parece ter sido algo di-
fícil, uma vez que era pela voz de Rui que os trabalhadores ouviam a defesa de seus
direitos e essa constatação é possível tendo em vista o resultado da eleição, com a
vitória de Rui onde a presença do operariado era forte. Assim, ao defender a questão
social, Rui conseguia o apoio dos trabalhadores, mas se dissociava das elites polí-
ticas. Dissociava-se também dos defensores do texto constitucional em vigor, que,
àquela altura, já era em grande parte incompatível com as ideias assumidas por Rui.
Ele sempre estivera na defesa de outras questões sociais, como a abolição,
a separação entre Estado e Igreja e as eleições diretas. Esse arcabouço da retórica
material influenciava seu discurso.
Quando, para as eleições de 1919, Rui Barbosa defende os trabalhadores, este
nada mais faz do que seguir uma espécie de marcha natural do seu pensamento.
Voto direto, abolição, separação entre Estado e Igreja, direitos dos trabalhadores,
cada uma delas uma reforma necessária ao seu tempo. É diante das mudanças so-
ciais e das novas necessidades que Rui se levanta e passa a defender cada uma des-
sas reformas, mas numa continuidade ética, atrelado à ideia de justiça social.
Embora Rui, em 1891, na Constituição liberal, não tenha se referido à inter-
ferência do Estado nas questões trabalhistas, não se extrai disso o significado que
ele fosse mais liberal naquela época do que em 1919, mas sim que, em 1891 ainda
não se tinha a dimensão das novas necessidades que viriam junto à industrializa-
ção, entre elas os direitos trabalhistas. Outro ponto relevante foi a promulgação da
Constituição mexicana de 1917, que já consagrava os direitos sociais. Rui tinha co-
nhecimento sobre o que se passava em outros centros. O fim do liberalismo radical
já estava visível no horizonte, e Rui, à frente de seu tempo, parecia enxergá-lo bem.
230

3.1. Liberalismo e coletividade: o discurso social democrata de Rui Barbosa

A divisão do movimento operário entre aqueles que negavam o Estado e aque-


les que não o viam com maus olhos não passou sem abordagem nas falas de Rui,
que negava o socialismo. Rui provavelmente sabia que o lado mais radical dos
trabalhadores, além de grande parte ser estrangeira, não se preocupava em votar.
Então voltou-se para uma parte mais conservadora dos trabalhadores, que lutava por
direitos, mas aceitava a estrutura estatal.
Ele não estava pregando a cooptação total dos trabalhadores e nem falando
apenas aos cooptados – haja vista que era candidato de oposição –, mas avesso
às mudanças drásticas que era, se dirigia àqueles trabalhadores não radicais, que
lutavam, não para o fim do Estado ou pela ditadura do proletariado, mas sim por
direitos sociais.
É nesse sentido que Rui Barbosa vai se utilizar da figura do Cardial Mercier42
para fundamentar sua tese da democracia social. A fala de Rui no discurso presi-
dencial sintetiza a forma de pensamento que o conduziu por sua carreira política,
sem deixar de acreditar no liberalismo, mas também guiado pelo conservadorismo
católico, o que seu biógrafo (VIANA FILHO, 1965, p. 371) cuida de ressaltar quan-
do alude à unção dos enfermos que recebeu alguns dias antes de sua morte, apesar
de no início ter angariado alguns adversários por causa de sua luta pela laicização
do Estado.
Assim, Rui Barbosa conseguiu, com o pensamento do cardial belga, conciliar
a reforma social com sua aversão a movimentos de ruptura radical.
Seguindo tal estratégia, valeu-se de autores estrangeiros como Lincoln, Mer-
cier, Comte, Stuart Mill, Jorge Street, etc., apesar de criticar a submissão do pensa-
mento nacional ao internacional, uma vez que o pensamento nacional, por si só, não
tinha muita credibilidade (CARVALHO, 1998, p. 208).
Não é com outro sentido a passagem de Rui Barbosa acerca da adoção de sis-
temas herméticos, como o socialista:

Os teoristas, os sistemáticos, os partidistas não discriminam entre o grau de


verdade e a liga de erro, que a inquina, ou entre a base de erro e a superfície
de verdade, que o recobre, e, amalgamando tudo em uma só doutrina intei-
riça, estiram a verdade, por exageração, até os limites de erro ou impõem o
erro como consequência inseparável do assentimento à verdade (BARBOSA,
1999, p. 390).

42 Désiré-Joseph Mercier foi cardial e educador belga que liderou um movimento de retorno à escolástica tomista no século
XIX. Poucas referências acadêmicas existem sobre o cardeal. No entanto, a Encyclopædia Britannica alude que “foi
ordenado sacerdote em 1874 e fundou em 1894 o Instituto Superior de Filosofia de Lovaina [na Bélgica]. […] O instituto se
tornou um grande centro de Tomismo, publicando o Revue Néoscolastique e desenvolvendo filosofias contemporâneas”
(ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, on-line).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 231

Rui sabia da necessidade de legitimar seu discurso no pensamento interna-


cional, mas é com base na sua continua mudança de posicionamento doutrinário
e na negação de uma teoria totalmente hermética que pode se dizer que Rui não
estava apenas a importar o pensamento internacional, mas esse tinha como principal
função o instrumento retórico para vencer o debate, conciliando, com habilidade,
teorias aparentemente antagônicas.
Contudo, não se pode chegar à conclusão de Rui Barbosa não ter feito sepa-
ração de justo e injusto, bom e ruim ou verdade e mentira. Apesar de reconhecer a
mudança, é seguro pensar que Rui não deixa seu forte núcleo moral. Nesse sentido,
ele reconhece a necessidade de reformas, mas até elas estão submetidas a valores de
justeza e eticidade que sempre o acompanharam.

3.2. A influência do discurso social de Rui Barbosa para


a afirmação histórica dos direitos sociais no Brasil

Perdidas as eleições, Rui, que tinha conseguido grande atenção no meio social,
diria “A nação entendeu: o que me basta” (FAORO, 2012, p. 689). Ao que parece, os
efeitos dessa campanha de Rui se fariam sentir com o passar do tempo, a começar
pelo grande vácuo que se criou entre a sociedade urbana, na qual o apóstolo obteve
grande aceitação, e o governo, que ainda privilegiava o campo e por ele era susten-
tado. Era como se estivesse quebrado o vínculo de solidariedade entre a nação e seus
dirigentes, que se tornaria mais tortuosa a partir de então (FAORO, 2012, p. 689).
A luta pelos direitos sociais tomara um novo rumo. Antes, limitava-se quase que
exclusivamente a setores dos trabalhadores e de alguns intelectuais pouco conhecidos.
Mas agora, com a adesão de Rui Barbosa, a Águia de Haia, um dos intelectuais, já à
época, de maior renome no país, a questão dos direitos sociais tomaria uma outra di-
mensão, um outro patamar de relevância social na República Velha, se dividindo entre
antes e depois da campanha de 1919, onde figurou como principal debate.
É certo que os trabalhadores já lutavam por direitos sociais antes disso, como
bem nos demonstra a greve geral de 1917 (CARVALHO, 2004, p. 63). No entanto,
o que se quer mostrar é que no momento em que esse tema sai de uma luta exclusiva
de trabalhadores para ser discutido em plena campanha presidencial, como o princi-
pal assunto, tendo como defensor um dos intelectuais mais reconhecidos do país, a
questão assume um novo patamar.
Por isso mesmo não demoraria muito para que as coisas começassem a mudar.
Já em 1923, quatro anos após a disputa, seria criado o Conselho Nacional do Trabalho,
um fundo de aposentadoria e pensão para os ferroviários, considerada, “a primeira lei
eficaz de assistência social” (CARVALHO, 2004, p. 63). Em 1926 foi regulamentado
o direito de férias e o instituto da previdência para funcionários da União.
O forte debate sobre essas questões no discurso de Rui, ao que parece, surtiu
efeito e modificou a retórica material quanto ao trato dos direitos dos trabalhadores,
cujas leis recém-editadas tinham ligação direta com as ideias da Águia de Haia, e
logo influenciaram as legislações getulistas, quando se instituiu, de vez, uma ampla
regulação legal das relações trabalhistas.
232

Rui não inventou os direitos sociais, não seriam eles fruto da genialidade do
apóstolo. Muito pelo contrário, estes já eram discutidos amplamente no exterior, e a
Constituição do México de 1917 já os tinha adotado. Em países como a Inglaterra,
onde a revolução industrial já havia atingido sua segunda fase, também já se discutiam
direitos sociais há tempo, e Rui, atento aos acontecimentos estrangeiros, sobretudo
europeus, já tinha conhecimento das mudanças que se operavam no ramo industrial.
Mas, embora Rui Barbosa não os tenha inventado, ele foi o patrono desses
direitos em terras brasileiras. Patrono não no sentido de o primeiro a falar deles
no Brasil, mas sim de um patrocinador indispensável, um mecenas, sem o qual os
direitos sociais teriam demorado ainda mais para serem reconhecidos e se consoli-
darem no país. Inserir esse tema como assunto principal num discurso de candidato
a Presidente da República, por certo, contribuiu para isso.

3.3. A presença do discurso de Rui Barbosa nas doutrinas jurídicas e


considerações finais

Uma das características que marca os grandes pensadores é a continuidade


de suas ideias. Pertence aos grandes a capacidade de fazer ecoar no tempo pensa-
mentos criados em momentos e circunstâncias completamente diferentes das mais
recentes. Continuidade que não significa cópia do pensamento, mas sim a aplicação
atual da ideia, mesmo que em constante evolução, inaugurada por determinado au-
tor que estava à frente de seu tempo. Alguém que anteviu como o mundo ficaria e
cujas pregações se consolidaram.
Assim, o que se pretende mostrar é que Rui Barbosa está incluído entre esses
grandes autores, que têm, no passar do tempo, a consagração com a continuidade de
ideias por eles expostas no passado.
Como dissociar, por exemplo, aquele que diz que é preciso lançar as bases de
um direito do trabalho, “onde a liberdade absoluta dos contratos se atenua quando
necessária seja […], submetendo a regras gerais de equidade as estipulações do con-
trato” (BARBOSA, 1999, p. 381), daquele que afirma que “os direitos trabalhistas
são irrenunciáveis pelo trabalhador. Não se admite, por exemplo, que o trabalhador
renuncie a suas férias. Se tal fato ocorrer, não terá qualquer validade o ato do ope-
rário?” (MARTINS, 2012, p. 70).
A ideias contidas nessas orações são bastante semelhantes: a necessidade de
se evitar uma liberdade contratual absoluta, criando, para isso, uma regulamentação
legal, dentro da qual a própria liberdade de contratar deve estar inserida para ser tida
como legítima. Contudo, os períodos em que foram elaboradas são drasticamente
diferentes, quase 100 anos as distanciam. A primeira pertence a Rui Barbosa e foi
utilizada por ele em seu discurso presidencial de 1919; a segunda pertence a um
autor de manuais em direito do trabalho – na 28ª edição e com data de 2012 – para
caracterizar o princípio da irrenunciabilidade de direitos. Nota-se que, ainda hoje,
aqueles princípios se impõem. São inúmeras as possibilidades de aproximação da-
quelas ideias de Rui Barbosa de muitas das que vigoram hoje, sobretudo no que
tange ao direito do consumidor e do trabalho.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 233

Veja o que diz, por exemplo, Amauri Mascaro Nascimento (2011, p. 421), em
livro de direito do trabalho:

Como o direito do trabalho trata de bens socialmente relevantes, como a saú-


de, a vida, a integridade física e a moral do trabalhador, e como o trabalho é
uma constante da vida dos povos, o direito do trabalho, embora direito priva-
do, por alguns foi considerado direito público, o que facilitou a afirmação da
inderrogabilidade das suas leis, entendendo-se, portanto, pela impossibilida-
de de acordos derrogatórios dos seus comandos.

Essa fala muito se aproxima daquilo que Rui Barbosa disse em sua cam-
panha presidencial:

O operário não tem meios de constranger, nos seus ajustes, o patrão à cláusula
do seguro. Como nos mais dos outros capítulos, em que o interesse do traba-
lho aparenta colidir com o interesse do capital, a dúvida, aqui, só se resolve,
seriamente, com a substituição do princípio contratual pela tutela legislativa
(BARBOSA, 1999, p. 393).

Rui falou à exaustão da necessidade de leis que regulamentassem as relações


trabalhistas, não deixando o trabalhador ao alvedrio das livres convenções que, na
maioria dos casos significavam a prisão do empregado aos desejos do patrão, e que
as noções de igualdade entre eles, e consequentemente de liberdade, nada mais eram
do que “imaginárias” (BARBOSA, p. 387).
Ainda hoje essa questão é bastante suscitada. Por todos, veja o que diz Mônica
Bierwagen (2007, p. 46):

o exercício de tal liberdade, levado a extremos, mostrou que esse modelo, em vez de
libertar, cada vez mais escravizava a parte social ou economicamente mais fraca: a
pretensa isonomia das partes enfraquecia-se cada vez mais ante o poderio econômico.

Foi percebendo essa realidade que se criou o hoje chamado dirigismo con-
tratual, que consiste na proibição ou imposição de certos conteúdos nos contratos
(BIERWAGEN, 2007, p. 46), que nada mais é do que a “substituição do princípio
contratual pela tutela legislativa” (BARBOSA, 1999, p. 393), que Rui já reclamava
em prol dos trabalhadores.
Por isso que o pensamento de Rui é indissociável das ideias jurídicas da atualida-
de, do viés que o direito tomou nos dias atuais. Suas teses ainda são defendidas e estão
presentes nos manuais de direito da atualidade, ainda que pouca justiça se faça a Rui
Barbosa como sendo o precursor desses direitos sociais no Brasil.
Mesmo que não tenha usado a expressão dirigismo contratual, o que seria isso
senão a defesa de uma tutela legislativa para os trabalhadores? Ou mesmo, o que seria
a parte mais desvalida, reconhecida por Rui (1999, p. 399), senão aqueles que hoje cha-
mamos de hipossuficientes?
Indo ainda mais longe, como poderíamos adotar hoje, no Brasil, o dirigismo
234

contratual e a mitigação da liberdade contratual, se não tivéssemos tido um autor


brasileiro que, diante da realidade do nosso industrialismo, diferente do europeu,
percebesse que essas igualdade e liberdade que tanto se elevavam não passavam de
“imaginárias?” (BARBOSA, 1999, p. 387).
No presente, essas concepções se ampliaram. Inicialmente tratadas no direito do
trabalho, chegaram ao direito civil, e hoje fazem-se presentes, de maneira mais mar-
cante, no direito do consumidor, o que não impede de se ver a continuidade das ideias
de Rui. Ao contrário, suas teses auxiliam ainda mais nessa empreitada, tendo em conta
que, na sociedade atual, a opressão ou prevalência de forças não se dá apenas entre
trabalho e capital, mas entre consumidor e fornecedor, pequeno e grande contratantes,
ao ponto de se chegar àquilo que hoje se convencionou chamar de boa-fé objetiva, na
contínua ideia de equilibrar, pelo dirigismo contratual, as relações sociais.
Por isso, as ideias formuladas por Rui se encaixam no direito moderno, seja
para falar de restrições nos contratos de adesão, de proibição de determinadas cláu-
sulas iníquas, de hipossuficiência ou de dirigismo contratual, será sempre possível
fazer alusão a elas, o que já demonstra sua utilização atual, sinal da continuidade que
aqui se investiga, podendo-se concluir que, mesmo se considerando o Brasil como
periférico em relação ao pensamento europeu, houve um pensador aqui que, com
originalidade, mesclou teses reformistas e outras de certo conservadorismo moral,
forjando um direito social adaptado às nossas realidades, e cujas ideias permanecem
válidas nos dias atuais.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 235

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2008). Retórica como metódica para o estudo do di-
reito. In: Sequencia: estudos jurídicos e políticos. ano XXVII, n. 56. Florianópolis:
Fundação Boiteux.
______ (2009). As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil: originalidade
e continuidade como questões de um pensamento periférico. Revista da Esmape,
Recife, v. 14, n. 29, p. 243-278, jan./jun.
______ (2011). Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo.
São Paulo: Noeses.
ARARIPE JÚNIOR (1919). Um talento sophistico. Revista contemporânea, Rio de
Janeiro, 29 mar. 1919, ano. 2, n. 19, 20 p. Disponível em: <http://memoria.bn.br/
docreader/DocReader.aspx?bib=351130&PagFis=385. Acessado em: 20 out. 2014>.
BARBOSA, Rui (1999). A questão social e política no Brasil. In: BARBOSA, Rui.
Pensamento e ação de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal.
BIERWAGEN, Mônica Yoshizato (2007). Princípios e regras de interpretação
dos contratos no novo código civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva.
BOBBIO, Noberto (1992). A era dos direitos. 19. ed. São Paulo: Editora Campus, 1992.
BRASIL (1986). Constituição de 1891. Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil - 24 de fevereiro de 1891. Brasília, DF: Fundação Projeto Ron-
dom - Minter, 1986.
BRUNO, Deusa da Cunha (1995). Brasil república: o jogo do poder oligárquico.
Niterói: EDUFF.
BUZAID, Alfredo (1966). Rui e a questão social. Revista da Faculdade de Direi-
to, Universidade de São Paulo, v. 62, n. 1, p. 207-240.
CARVALHO, José Murilo de (1998). Pontos e bordados: escritos de história e
política. Belo Horizonte: Editora UFMG.
______ (2004). A cidadania no Brasil – o longo caminho. 6. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
______ (1987). Os bestializados: Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed.
São Paulo: Companhia das Letras.
COMPARATO, Fábio Konder (2005). A afirmação histórica dos direitos huma-
nos. 4. ed., rev., e atual. São Paulo: Saraiva.
DIVERSOS (1919a). A reforma, Território do Acre, 27. abr. 1919, ano. 2, n. 51.
Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/720640/per720640_1919_00051.pdf>.
Acessado em: 20 out. 2014.
______ (1919b). A reforma, Território do Acre, 13. abr. 1919, ano. 2, n. 49, 4. p. Dispo-
nível em: <http://memoria.bn.br/docreader/DocReader. aspx?bib=720640&PagFis=
197>. Acessado em: 20 out. 2014.
FAORO, Raymundo (2001). Os donos do Poder. 3ª ed. São Paulo: Globo.
______ (2012). Os donos do Poder. 5. ed. São Paulo: Globo.
236

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson (2011). Direito civil: teoria
geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
FAUSTO, Boris (Org.) (2006). História da civilização brasileira. O Brasil repu-
blicano – 2. Sociedade e instituições (1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
FILOMENO, José Geraldo Brito (2010). Manual de direitos do consumidor. 10.
ed. Atlas: São Paulo.
GONÇALVES, Carlos Roberto (2013). Direito civil brasileiro: Contratos e atos
unilaterais. 10. ed. São Paulo: Saraiva.
GONÇALVES, João Felipe (2000). Rui Barbosa: pondo as ideias no lugar. Rio de
Janeiro: Editora FGV.
LAUSBERG, Heinrich (2004). Elementos de retórica literária. 5. ed. Lisboa: Fun-
dação Calouste Gulbenkian.
LOBATO, Monteiro (2010). Urupês. São Paulo: Globo.
MARQUES, Cláudia Lima (2011). Contratos no código de defesa do consumi-
dor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais.
MARINS, Paulo César Garcez (1998). Habitação e vizinhança: limites da privaci-
dade no surgimento das metrópoles brasileiras. In.: NOVAIS, Fernando A. (Coord.).
História da vida privada no Brasil. Republica: da Belle Époque à era do rádio. v.
3. São Paulo: Companhia das Letras.
MARTINS, Sérgio Pinto (2012). Direito do Trabalho. 28. ed. São Paulo: Atlas.
MERCIER, Désiré-Joseph (2014). Encyclopædia Britannica. Disponível em:
<http://www.britannica.com/EBchecked/topic/375755/Desire-Joseph-Mercier>.
Acessado em: 7 jan. 2014.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro (2011). Curso de direito do trabalho: história e
teoria geral do direito do trabalho, relações individuais e coletivas do trabalho. 26.
ed. São Paulo: Saraiva.
RIBEIRO, Darcy (1995). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras.
VIANA FILHO, Luiz (1965). A vida de Rui Barbosa. 7. ed. São Paulo: Martins Editora.
AS TESES DO JOVEM PONTES DE
MIRANDA SOBRE OS DIREITOS DO
HOMEM COMO VARIANTES
DO SOCIALISMO JURÍDICO

Fernando Joaquim Ferreira Maia

Resumo: O objetivo é analisar criticamente os direitos do homem defendidos


por Pontes de Miranda em suas primeiras obras e em comparação com o socia-
lismo jurídico de Anton Menger. A metodologia empregada se vale da retórica,
em seus níveis material, estratégico e analítico, para situar o ambiente em que
esse jurista estava inserido e decompor as suas teses jurídicas e as suas estraté-
gias discursivas reformadoras da ordem capitalista. O artigo sustenta a hipótese
de que a tese ponteana se aproxima do socialismo jurídico de Anton Menger.
Palavras-chave: Pontes de Miranda. Socialismo jurídico. Direitos
fundamentais. Dignidade da pessoa humana. Anton Menger.
Abstract: The objective is to critically analyze human rights as advocated by
Pontes de Miranda in his early works, and in regards to juridical socialism of
the Anton Menger. The methodology draws on rhetoric in its material, strategic
and analytical levels, to situate the environment in which the jurist was inserted,
with legal arguments and discursive strategies reforming the capitalist order.
The article supports the hypothesis that the theory of Pontes de Miranda has
many points in common with the legal socialism of Anton Menger.
Keywords: Pontes de Miranda. Juridical socialism. Fundamental rights.
Human dignity. Anton Menger.
Sumário: Introdução: um novo enfoque sobre o pensamento jurídico de
Pontes de Miranda a partir da abordagem retórica da sua teoria dos direitos
do homem. 1. Da retórica dos métodos à retórica metodológica nas teses
de Pontes de Miranda: as bases da transformação social em sua teoria e
os direitos humanos. 2. A juridicização do socialismo proposta por Anton
Menger. 3. A metaforização dos “direitos do homem” por Pontes de Miranda e
o socialismo jurídico. 4. Conclusão: a versão ponteana do socialismo jurídico
na radicalização da ordem jurídica constitucional promovedora de direitos
fundamentais. Referências.
238

Introdução: um novo enfoque sobre o pensamento


jurídico de Pontes de Miranda a partir da abordagem
retórica da sua teoria dos direitos do homem

Este artigo constitui uma sequência do material publicado no nº 109 da Revista


Jurídica da Presidência sob o título Reformismo e direitos humanos no jovem Pontes
de Miranda (MAIA, 2014).
Francisco Pontes de Miranda (1892-1979) dispensa apresentações. Talvez por
conta da sua formação eclética (escreveu e pesquisou no campos da matemática, da
biologia, da física, da sociologia, da lógica, da filosofia, da psicologia, do huma-
nismo, da literatura, da análise do discurso e da metodologia), a sua obra jurídica é
marcada em muitos aspectos pela multidisciplinariedade e até mesmo pela transdis-
ciplinariedade. Seu legado, impregnado de forte nacionalismo, transita por várias
áreas do direito (SALDANHA, 1989, p. 42-43).
No presente desenvolvimento, a opção foi analisar criticamente os direitos hu-
manos defendidos por Pontes de Miranda em suas primeiras obras em comparação
com a tese do socialismo jurídico defendida por Anton Menger.
A metodologia empregada se vale da retórica metódica para situar o ambien-
te em que Pontes de Miranda estava inserido e decompor as suas teses jurídicas e
as suas estratégias discursivas reformadoras da ordem capitalista. Para Adeodato
(2009), a retórica constitui uma metalinguagem para a ação do homem na realidade
em que vive. Nesse contexto, Ottmar Ballweg (1991, p. 176-178) concebe a retórica
em três acepções principais: a retórica material, a retórica prática (ou estratégica) e
a retórica analítica. Na retórica material (ou dos métodos) ocorre um controle pú-
blico da linguagem, em cima das expectativas do sujeito, pelo qual a realidade só
existe para o homem na comunicação; nada acontece fora da linguagem, significa os
condicionantes históricos e materiais em que Pontes de Miranda estava inserido. Na
retórica estratégica (ou metodológica), o orador verifica fórmulas para a persuasão e
tenta alterar a realidade para atingir objetivos seus. Já na retórica analítica (ou metó-
dica), o orador verifica a relação da retórica dos métodos com a retórica metodoló-
gica para desvelar os mecanismos de persuasão empregados, como o próprio conhe-
cimento obtido pelo homem no ambiente comunicativo. Então, a tese utiliza esses
três níveis de linguagem. Para maior aprofundamento sobre o tema, recomenda-se a
leitura de Adeodato (2009) (2011).
Ao seguir essa abordagem metodológica, o artigo busca situar o ambiente em
que Pontes de Miranda recepciona e reconstrói os direitos do homem (retórica ma-
terial) para, em seguida, analisar as suas teses jurídicas (retórica estratégica) e as
estratégias discursivas utilizadas para a defesa e a prevalência dos mencionados
direitos na ordem capitalista (retórica metódica). Pontes de Miranda concebe a sua
teoria dos direitos do homem a partir da crise do capitalismo brasileiro e do conflito
capital e trabalho. Sua argumentação reconhece o esgotamento da economia de mer-
cado, recepciona a ascensão do capitalismo financeiro e das teorias que defendem o
Estado como sustentáculo e indutor das forças produtivas capitalistas, defende a su-
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 239

peração do paradigma liberal; interage num contexto marcado pelo acirramento das
contradições sociais propiciado pela inserção do Brasil no processo de acumulação
de riqueza do capitalismo como exportador de capital.
Em cima das bases referidas, entende que os direitos humanos devem ser ma-
terializados pela universalização do direito ao trabalho, pelo direito à assistência,
pelo direito à saúde, pelo direito à subsistência e pelo direito à educação, com o ob-
jetivo de amenizar as tensões sociais. A estratégia que Pontes de Miranda segue para
conciliar a sua teoria dos direitos humanos com a contradição principal da economia
de mercado é a proposição de uma ordem jurídica constitucional promovedora de
direitos fundamentais, mas a partir da radicalização das constantes socializações
jurídicas, pela qual o homem, indivíduo-social, progride moralmente a partir de
círculos mais elevados. Defende o homem concreto, histórico e real e o socialismo
como produto desse homem.
O artigo sustenta a hipótese de que a tese ponteana não se trata de uma variante
do socialismo científico de Marx e Lênin, mas pode ser tomada, comparativamente,
como do socialismo jurídico de Anton Menger (1841-1906), jurista austríaco, de-
fensor de que a radicalização dos institutos jurídicos seria suficiente para produzir
transformações na sociedade capitalista e a sua transição ao socialismo. Para cor-
roborar a tese do artigo, a estratégia discursiva de Pontes de Miranda metaforiza
uma teoria socialista a partir da figura do Estado, mas como ente acima das classes
sociais, como núcleo gestor da economia e da sociedade e regulador dos conflitos
e das contradições sociais. Sua tese advoga um constitucionalismo democrático e
reformador, promovedor e aprofundador de garantias fundamentais gerais à base
da conciliação entre as classes sociais. A “Constituição socialista” ponteana é uma
metáfora que se funda, sobretudo, em vínculos externos ao direito e em fatores con-
cretizadores de poder. Como o grau desses vínculos e fatores de poder é medido pela
existência e pelo choque de diferentes classes sociais, a Constituição aparece como
um meio fundamental para a efetividade do equilíbrio social e fator de prevenção da
violência política e revolucionária.
Ao considerar as questões acima, o ensaio coloca o seguinte problema: as
posições sobre os direitos humanos de Pontes de Miranda têm relação com as teses
de Anton Menger? Caso afirmativo, em que medida elas podem ser consideradas
variantes do socialismo jurídico?

1. Da retórica dos métodos à retórica metodológica nas


teses de Pontes de Miranda: as bases da transformação
social em sua teoria e os direitos humanos

Pontes de Miranda (1933a, p. 26), ao refletir sobre os desafios da incipiente


República brasileira, afirma que o capitalismo financeiro acaba por mostrar que a
lógica do lucro conduz ao parasitismo e eleva a exploração do homem pelo homem
e a mais-valia à escala internacional. Ele mostra que o Estado nacional tinha
contra si obstáculos gerados pela natureza mesma do capitalismo: os fenômenos
240

da holding, do monopólio, do oligopólio, dos trustes, dos cartéis e do dumping, o


que permitia ao capital estrangeiro a expropriação das riquezas brasileiras e a sua
remessa para as matrizes localizadas nos países ricos, aumentando a dependência
econômica do Brasil em relação aos países industrializados (PONTES DE
MIRANDA, 1933a, p. 14-15, 19-20, 25, 128).
Esse contexto vai colocar em questão o paradigma liberal adotado na econo-
mia brasileira nas primeiras décadas da República (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 207-
209), o qual tinha como eixos a abertura comercial e a pouca regulamentação estatal
da atividade produtiva. O liberalismo clássico, que pregava o livre mercado, com a
dissociação mercado, capital e Estado, e negava ao poder público qualquer compe-
tência regulatória ou interventiva sobre a economia, o sujeitava apenas à realização,
negativamente, da defesa dos direitos e garantias relativos à vida, à liberdade e à
propriedade (BOBBIO, 1992, p. 21). O liberalismo, ao recusar qualquer garantia à
subsistência e ao trabalho (PONTES DE MIRANDA, 1933c, p. 59), promove uma
crise nas próprias instituições liberais econômicas no País, que Pontes de Miranda
(1933c, p. 85, 86) já apontava, acompanhada por uma crise nas instituições demo-
cráticas, o que vai culminar nas Revoluções dos anos 20 e 30 e nos seus movimentos
constitucionalistas (SECCO, 2010, p. 155-156). Essa época vai ser marcada por
movimentos que advogavam o papel do Estado como sustentáculo das forças pro-
dutivas capitalistas e como indutor do mercado, sendo a política de substituições de
importações a mais alta expressão disso. Pontes de Miranda (1933a, p. 119), nessa
fase, será crítico em relação ao modelo liberal, pois afirma que o não dirigismo libe-
ral será responsável pela crise de superprodução que abalou o país na década de 30
e gerou desemprego e queda do poder aquisitivo da população.
Pontes de Miranda propõe uma solução eclética, que concilie o individualismo
com as garantias sociais defendidas pelo socialismo. O resultado é a defesa de um
pentágono articulado de garantias fundamentais, que Pontes de Miranda denomina
de “os novos direitos do homem”.
Na prática, os novos direitos são os direitos reformadores, materializados no
acesso ao trabalho, à assistência, ao ideal, à subsistência e à educação. Considera-
-os bases do Estado Democrático de Direito e direitos subjetivos contra o próprio
Estado (PONTES DE MIRANDA, 1933c, p. 37, 39, 56, 64).
O jurista, quarenta anos antes da chegada das ondas juspós-positivitas no Brasil,
já se preocupa com a efetividade da norma jurídica. Defendia que o Estado deveria
assumir juridicamente uma prestação positiva sobre os mencionados direitos. Por isso
sua preocupação em que a executividade dos novos direitos fosse contra o Estado e de
conferir aos titulares o direito de forçar esse órgão a realizar o bem-estar social e dos
indivíduos (PONTES DE MIRANDA, 1933c, p. 46, 49) (SARMENTO, 2012). Daí a
concepção desses direitos como direitos públicos subjetivos. O objetivo era reforçar
a individualidade e a técnica jurídica, bem como aumentar a vinculação do Estado
sobre a realização do direito à subsistência (PONTES DE MIRANDA, 1979, p. 493).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 241

Na obra ponteana, o direito à assistência se refere a um mínimo essencial


e é apresentado como meta garantia, o que abrange saúde interina, assistência à
maternidade, pediatria, vestuário, alimento, habitação e instrução (PONTES DE
MIRANDA, 1933c, p. 62-63). Constitui um direito fundamental do Estado, ligado
à existência e à vida dignas, pois as garantias dele decorrentes são fins e meios para
outros direitos fundamentais (PONTES DE MIRANDA, 1979, p. 496). É importan-
te não confundir com o direito à subsistência. Em Pontes são distintos. O direito à
assistência abrange aquelas coisas que dizem respeito à saúde e ao auxílio humano,
não compreendidos no direito à subsistência (LIMONGI, 1998, p. 202).
O direito ao trabalho também é apresentado como um direito fundamental.
Pontes de Miranda (1933a, p. 119-120) (1979, p. 500, 502) considera que a garantia
do pleno emprego é um modo eficiente da economia nacional aumentar a produção
e a circulação de bens e serviços, além de apoiar o consumo mediante o fortaleci-
mento do poder aquisitivo do cidadão. Pensa o direito ao trabalho do ponto de vista
da planificação econômica, ou seja, a obrigatoriedade do Estado em assegurar o
pleno emprego exige um plano geral de organização do trabalho e de repartição da
produção (LIMONGI, 1998, p. 202-204).
Dá grande valor à educação, coloca-a como condição para o sucesso de modi-
ficação social, política e econômica, além de permitir a elevação moral e intelectual
da população. Para que assim seja, defende a liberdade criativa e expressionista na
produção do conhecimento e o acesso universal às artes e à cultura (PONTES DE
MIRANDA, 1933c, p. 74-76). Ela complementa o direito de subsistência. Do ponto
de vista da Constituição, sustenta que o direito à educação tem que ter eficácia plena
e ser um direito unitário, obrigatório e gratuito (PONTES DE MIRANDA, 1933c,
p. 70-72) (SALGADO, 2012). Nesse sentido, a orientação de Pontes de Miranda
(1979, p. 286) é pela constitucionalização do direito do cidadão de invocar a tutela
jurisdicional estatal para a proteção e a execução do direito à educação.
Em relação ao direito ao ideal, Pontes de Miranda afirma ser este aquele direi-
to ao livre desenvolvimento de todas as faculdades humanas. Envolve tudo aquilo
para além do trabalho, o que significa tanto o lazer como o ócio moderado e implica
considerá-los parte da saúde humana e da criação e do agir livre na sociedade. A
realização de uma atividade que traga satisfação pessoal ao indivíduo é dever do
Estado e este tem que facilitar, oferecer meios e não obstaculizar a sua realização
(PONTES DE MIRANDA, 1933b, p. 505, 508, 509).
O Estado tem que ser propositivo na gestão das forças sociais, mas consciente
da sua função teleológica de realização dos direitos humanos. Mas, em Pontes de
Miranda (1933c, p. 88), a instrumentalização do Estado assume também caráter ne-
gativo, pois defende que cabe ao governo preservar a liberdade individual, inclusive
a econômica e a cultural, e só se valer de meios para garantir a efetividade dos novos
direitos humanos.
A visão ponteana relaciona o ordenamento com a perspectiva instrumentalista
do direito, existe a preocupação em não reduzir o ordenamento a um puro tecnicismo.
O método que o jurista vai adotar é a constitucionalização de normas equitativas
242

vinculadas à realização do direito no plano concreto. A “concretização” passa por


tentar dar eficácia plena a direitos que funcionem como núcleos organizadores da
ordem social e econômica, reprodutores da ideia de justiça daí decorrente.
Percebe-se que no centro da argumentação de Pontes de Miranda está a defesa
da constitucionalização de garantias fundamentais com o intuito de amenizar
as desigualdades sociais mediante a igualdade material, técnica para efetivar a
norma legal e conciliar as classes sociais. Entretanto, o jurista reconhece que seja
realizada mediante uma transição lenta que leve em conta os aspectos morfológicos,
fisiológicos e psicológicos do indivíduo (MACHADO NETO, 1969, p. 185-186).
Daí que ele fala da simetrização das classes, nada mais sendo que a diluição da luta
social pelo asseguramento progressivo da igualdade (PONTES DE MIRANDA,
1979, p. 489) (PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 103-104, 105, 108).
A lógica do Estado Democrático de Direito, em Pontes de Miranda, é a concre-
tização da igualdade e da liberdade (LIMONGI, 1998, p. 188, 194). São condições
para a efetivação dos direitos humanos, desde que, claro, afirmem fins em conjunto.
A democracia, sob pena de inefetividade, tem que ser realizada nos marcos desses
fins do Estado (LIMONGI, 1998, p. 184-185).
Por fim, a concepção ponteana defende a positivação dos direitos humanos
nos tratados internacionais e nas ordens constitucionais internas dos Estados, desde
que baseados na dignidade da pessoa humana e no bem-estar social (PONTES DE
MIRANDA, Francisco 1933c, p. 40-41).

2. A juridicização do socialismo proposta por Anton Menger

Anton Menger foi um jurista austríaco, professor de Direito Processual Civil e


Reitor da Universidade de Viena, considerado ideólogo do socialismo jurídico, cor-
rente de pensamento que defendia a transição do capitalismo ao socialismo por meio
do sistema jurídico (NAVES, 2012b, p. 9-10) (NAVES, 2012a). A ele é atribuída a
postura de reduzir a luta pelo socialismo a uma questão de Direito, tendo por objetivo
a realização da justiça social (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 25, 28, 47-48).
Anton Menger (1998, in passim) sustenta que a emancipação do trabalho do
capital é uma questão de Estado e de Direito e não, pelo menos como objeto direto,
de ordem econômica. Assim, o movimento operário deve positivar as suas reivin-
dicações no ordenamento de tal forma que quanto mais houver o aprofundamento
dessa positivação mais se criarão as condições para a superação do capitalismo
(NAVES, 2012b, p. 15).
O jurista austríaco reconhece que a divisão do trabalho e da produção geram
contradições no processo de produção, classes sociais e interesses antagônicos e
inconciliáveis entre essas classes. Entretanto, refuta Karl Marx e Friedrich Engels
para sustentar que a dominação social projetada pela ordem classista não é de esfera
da produção de riqueza, mas jurídica e é no campo do Estado e do Direito que as
relações econômicas se erigem e não o contrário. Então, ao admitir um protagonis-
mo das classes sociais na construção jurídica de uma sociedade civil alternativa ao
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 243

capitalismo, coloca a solução do impasse na política, pela qual a instrumentalização


do Estado e do Direito seriam suficientes para emancipar o operariado do capital.
O Direito seria consequência da luta de classes e o socialismo poderia ser colocado
como opção no campo jurídico (MENGER, 1944, p. 11).
Não pára por aí. Defende um direito universal do trabalhador ao produto in-
tegral do seu trabalho. O Estado seria o fiador desse direito, cabendo organizar, de
forma progressiva, mas sempre juridicamente, o seu acesso, a sua transformação
em um direito social e a limitação dos direitos individuais. Nota-se que não tem a
intenção de modificar a divisão do trabalho, mas, pelo contrário, perpetuá-la. Essa,
inclusive, é uma das críticas de Engels e Kautsky (2012, p. 30) a Menger.
Para que essa formulação seja possível, será necessário negar o postulado
marxista de que o ordenamento jurídico é superestrutura ideológica do modo de
produção em que está assentado. Defende que o campo do ordenamento é o poder
político estatal e não o processo de produção de riqueza. É só nessa lógica que se
poderia sustentar que o Estado e o sistema jurídico seriam autônomos e independen-
tes do modo de produção. O raciocínio de Anton Menger se processa do seguinte
modo: como as esferas estatal e jurídica são autônomas, a classe dominante tem
um poder econômico relativo, pois as relações proprietárias são derivadas do seu
reconhecimento pelo Estado mediante o sistema jurídico (MENGER, 1944, p. 127-
128). A formulação permite sustentar que modificações no plano do poder político
e do ordenamento podem projetar transformações na infraestrutura social e servir
permanentemente não só como campo de luta, mas principalmente de realizações
dos interesses do operariado e de passagem gradual a uma sociedade não capitalista
(MENGER, 1904, p. 321-322, 326).
O socialismo jurídico mengeriano constitui uma tentativa de fundamentar o
direito privado em direitos sociais e de estruturar o pensamento socialista em con-
ceitos extraídos do Direito. Tenta-se a apropriação do sistema jurídico como seara
de aspirações e de transformações sociais anticapitalistas, tomam-se as fontes do
Direito como topos revolucionário de conquista de poder político e de instrumento
de construção de uma nova ordem social (PÉREZ, 1998, p. 9-14).
A sua tese é que as conquistas econômicas do mundo do trabalho só se efeti-
vam quando são postas no ordenamento jurídico pelas fontes conhecidas do Direito.
Esses direitos são colocados como fundamentais, pois enfeixam um conjunto de
condições mínimas de existência da classe operária (ENGELS; KAUTSKY, 2012,
p. 24-25). Esse conjunto constitui uma ampliação do conceito burguês de cidadania
e serve de base para a luta do movimento operário por novos direitos.
Menger, então, vai dizer que o socialismo deve ser realizado em três direitos
fundamentais: 1) direito ao produto integral do trabalho; 2) direito à existência; 3)
direito ao trabalho (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 28).
Esses três direitos fundamentais abarcam situações jurídicas historicamente
transmitidas pela evolução da luta de classes. Isso fica evidenciado principalmente
nas declarações de direitos, que ora continham enunciação de direitos de classes
sociais, ora compromissos jurídicos específicos dos Estados em relação aos direitos
244

humanos. Os direitos consagrados na Carta Magna de João Sem Terra de 1215, na


Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na própria Declaração de
Direitos do Povo Trabalhador e Explorado de 1918 e na Declaração Universal dos
Direitos dos Homens de 1948, pela Assembleia-Geral da ONU, seriam exemplos
dessa consolidação da ideologia de classe no mundo do direito.
O que o socialismo jurídico advoga é que esse processo permite a ilação de
uma teoria do direito das classes não proprietárias mediante a noção de direitos
econômicos fundamentais, complementar dos direitos políticos e asseguradora da
cidadania efetiva (MENGER, 1944, p. 19, 156).
Então, a tarefa não é revelar as relações de exploração do homem pelo homem,
fomentadas pelas relações de produção e leis econômicas do capitalismo, mas de-
clarar juridicamente, mediante a positivação das reais aspirações dos segmentos
não proprietários da sociedade, a injustiça dessas relações e a sua incompatibilidade
com os direitos humanos historicamente construídos.
Menger vê o Direito, particularmente o direito privado, sendo usurpado pela
classe dominante, mas que poderia ser redirecionado em favor dos interesses das
camadas menos abastadas da sociedade. A tarefa transformadora passaria em elevar
gradativamente, mediante reformas jurídicas, o direito privado em direito social e
superar a clássica dicotomia público/privado (PÉREZ, 1998, p. 52-53). Como o di-
reito privado está dissociado dos direitos fundamentais e não assegura as condições
mínimas de existência e de bem-estar às classes subalternas, uma dessas reformas
seria assegurar requisitos mínimos para o direito de propriedade. Daí que se pode
afirmar, embora Menger não toque na matéria expressamente, que a superação da
dicotomia mencionada passaria por impor uma função social à propriedade e às
relações que a tangenciam, como os contratos e a família.
O socialismo apareceria não apenas como um modo de produção, pelo qual
a propriedade seria socializada, mas como um método de distribuição justa da ri-
queza produzida durante o próprio capitalismo. Esse método exigiria a utilização
permanente do Estado e do Direito para assegurar e ampliar novos direitos, conter
os efeitos colateriais da economia de mercado e amenizar as contradições sociais
geradas inerentemente pelo capitalismo (MENGER, 1904, p. 28, 37, 64).
Essa lógica conduz à defesa de que a passagem do capitalismo ao socialismo
se daria nos marcos das instituições jurídicas democráticas das forças do mercado,
de forma pacífica. Haveria uma convivência híbrida entre dois sistemas econômi-
cos via centralização do poder político e intervenção deste sobre as relações de
produção e as leis econômicas. O socialismo seria um movimento de progressão
ao poder político materializado na positivação de direitos fundamentais das classes
subalternas. Nesse caso, o objetivo do movimento operário seria aprofundar sempre
a radicalidade dessas instituições mediante a conversão das suas reivindicações em
princípios jurídicos fundamentais (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 45).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 245

3. A metaforização dos “direitos do homem”


por Pontes de Miranda e o socialismo jurídico

Pontes de Miranda, com o objetivo de defender a existência de uma teoria sobre


os novos direitos do homem, vai fazer variado emprego da metáfora ao longo das suas
primeiras obras. O jurista vai utilizar metáforas implícitas, ditas “adormecidas”.
A metáfora é uma analogia condensada que expressa certos elementos do que
se quer provar ou do que serve para provar algo (REBOUL, 2000, p. 187). Em
outras palavras, na metáfora, vai-se transferir o significado de um termo comum
para outro termo, este estranho, diferente (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 453).
Nesse sentido, o próprio Pontes de Miranda (1933c, p. 10-11) afirma:

Certa vez dissemos que as fornalhas e os capinzais onde se metem café, mi-
lho, algodão, livros e carnes, são os círios acesos pelo individualismo capita-
lista, antes de morrer. Infelizmente o suicida excêntrico não se satisfaz com
isso: da queima de gêneros e de objetos maquino faturados passará, segundo
sabe fazer, à queima de homens, nas praças públicas e nas trincheiras.

A expressão “círios acesos” tem o objetivo de induzir o auditório a condenar


o gênio destrutivo do capitalismo que, justamente, inutiliza gêneros alimentícios,
livros, máquinas e utensílios (PONTES DE MIRANDA, 1933c, p. 10).
Segundo Aristóteles (1998, III, 1410b, 1411a, 1411b, p. 196-197) (2007,
1458a, 1458b, 1459a, p. 96-101), a metáfora é composta por palavras agradáveis,
com determinado significado, que permitem ao homem conhecer o seu sentido
apropriado, proporcionando também conhecimento, pela qual vai se deslocar o
sentido de uma palavra comum para uma palavra estranha, de ornamentação, alte-
rada em sua forma. Em Aristóteles, essa transferência de sentido se dá da espécie
ao gênero, do gênero à espécie, da espécie à espécie e por analogia (BERISTAIN,
1995, p. 311). É por isto que Perelman (2005, p. 453) vai definir a metáfora como
uma analogia condensada, na qual ocorre uma união entre “o que se quer provar”
e “o que serve para provar”. As formulações acima conduzem à conclusão de que
a metáfora deriva da analogia, o que é admitido pelo próprio Aristóteles (1998,
III, 1411b, p. 199) (2007, 1458a, 1458b, p. 96-97).
Vale ressaltar que a analogia constrói a realidade que permite encontrar e pro-
var uma verdade por meio de uma semelhança de relações, ou seja, por meio de
comparações (REBOUL, 2000, p. 185). Então, a analogia vai ligar um termo ante-
rior, já aceito, com um termo posterior, ainda não aceito, mas que se quer evidenciar.
Para tanto, utilizar-se-ão expressões do tipo “assim como”, “também”, “como”, an-
tecedendo a descrição (SOUZA, 2008).
246

Pontes de Miranda emprega várias analogias. Cita-se o seguinte trecho:

Até aqui se recorria à legislação social (objeto de mofa, por parte dos socia-
listas, e com razão). Agora, com a praxe do direito ao trabalho, do direito à
subsistência, da escola única, do direito à assistência, e a consagração parcial
em Constituições (o que mostra a evolução do direito constitucional e, ao
mesmo tempo, da teoria do Estado), o aspecto da questão mudou. Não se trata
de medidas de reforma social hipócritas; trata-se de direitos concretos, que
valem como outra Magna Carta e justificarão reivindicações decisivas, além
do mérito de obrigarem a levarem-se em conta, nos orçamentos, a alimenta-
ção, a casa, a roupa, a medicina, a educação e a diversão de todos (PONTES
DE MIRANDA, 1933c, p. 33).

Na citação acima, embora o jurista utilize uma metáfora, o certo é que ele
vai fazer também uma analogia. Reduz a definição de reforma à concretização de
direitos fundamentais, tenta provar que esses direitos permitem ampliar a esfera da
cidadania das classes subalternas. O seu objetivo é anular tudo o que a relação de
produção capitalista exclui e reforçar a sua própria tese de que os novos direitos
ampliam a democracia e restringem os arbítrios dos governantes.
Essas importantes considerações sobre a analogia, são fundamentais para a
compreensão da questão metafórica em Pontes de Miranda na discussão sobre os
novos direitos do homem, pois, conforme já dito, a metáfora condensa a analogia,
misturando “o que se quer provar” e “o que serve para provar”, torna perceptível
termos muito diferentes, que não se vinculam no dia a dia. Por isso mesmo, a me-
táfora é mais persuasiva que a analogia, pois além de ser redutora, ela transforma
comparação em identidade, anula as próprias diferenças entre os termos, dentro, é
claro, do contexto do discurso. A metáfora vai utilizar outras expressões antes de
introduzir os termos, tais como “é” e “tem”, sempre com afirmações definitivas
(REBOUL, 2000, p. 188).
Entretanto, muitas expressões normais podem ser empregadas metaforica-
mente, é suficiente que ela possa assim ser percebida, inclusive com o emprego
da analogia. Essa percepção é dada pelo contexto em que a expressão é utilizada.
Aqui, a metáfora desempenha todas as funções da analogia, reforça-a, pois quando
a primeira é condensada se integra na linguagem (PERELMAN; OLBRECHTS-
-TYTECA, 2005, p. 463, 465).
Ao mostrar a viabilidade de se efetivar a ampliação da esfera da cidadania, tal
como fez o jurista austríaco, Pontes de Miranda emprega os seguintes argumentos:
O determinismo econômico simplista (Marx, Plekhanov, Kautsky) não conse-
guiu dominar os espíritos do século XX. Mas foi-lhes fecundo. Chamou aten-
ção para o importante papel da estrutura econômica e para o caráter que ela
imprime às sociedades e às almas. Só o seu exclusivismo é que foi censurado.
Não são somente as condições econômicas que enformam a moral, a política,
o direito, a religião e a arte. Contra tal simplismo ergue-se outro, – o do tra-
balhista Ramsay Macdonald: o homem é determinando e determina-se, pois
‘é possível dizer que nos deram o fio a trama da vida, mas podemos modificar
o modelo que nos deram a tecer’. Este, evidentemente, se liga a outras fontes
filosóficas (PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 97-98).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 247

Ressalte-se que o próprio Pontes de Miranda (1933a, p. 98) isenta Marx e


Engels da acusação de quererem reduzir os fenômenos sociais e humanos a mero
reflexo da base material, mas logo em seguida afirma:

Hoje nós sabemos um pouco mais do que isso, sabemos que a interdepen-
dência dá conta das propriedades físicas de cada um dos processos sociais
de adaptação e que os coeficientes variam em ciclo social assaz expressivo
(PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 99).

Na citação anterior acima, observa-se que o jurista estabelece relações no texto,


liga os termos heterogêneos “almas”, “enformam”, “fio”, “trama” e “tecer”, para po-
tencializar os efeitos persuasivos do seu discurso. A visão ponteana tenta mostrar ao
auditório que, ao considerar os recentes avanços, na época, da pesquisa sociológica,
as formulações de Marx são dogmáticas, excessivamente revolucionárias e aquém
das necessidades objetivas do contexto social, econômico, político e histórico em que
o Brasil estava inserido (PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 95-96). A argumenta-
ção metafórica desse jurista busca reduzir todos os termos envolvidos, anteriormente
citados, a um elemento comum, e mascarar as diferenças entre eles. Esse elemento
comum é a edificação da sociedade socialista, mas a partir de reformas pacíficas es-
tritamente no campo da política e do Direito. Ao aproximar termos diferentes, ele
acaba por criar um movimento nas próprias metáforas para negar o primado marxista
de que a superestrutura ideológica da sociedade, na qual o Direito se insere, erige-se
a partir da infraestrutura social (PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 97-98), invoca,
para tanto, no início, a expressão “nos deram o fio a trama da vida”, e, no final, outra
expressão, “podemos modificar o modelo que nos deram a tecer”, e revela, como con-
trapartida, o inverso: que os processos sociais de adaptação, como a religião, a moral,
o direito, a política, a arte e a ciência podem atuar sobre as relações de produção e leis
econômicas; vai além, afirma que existe uma interdependência entre esses processos
sociais que envolve propriedades físicas e psicológicas de cada um deles (PONTES
DE MIRANDA, 1933a, p. 62-64, 99) (PONTES DE MIRANDA, 2005, p. 46). O que
importa é que a fusão operada pela metáfora se dê a partir da analogia, esta envolven-
do relações associativas entre expressões (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
2005, p. 456-457).
A tese do artigo é que a concepção ponteana metaforiza os direitos do homem e,
tomada em comparação com as posições de Anton Menger, pode ser considerada uma
variante do socialismo jurídico. Essa concepção fetichiza o Estado socialista mediante
transformações sociais que conciliem os direitos de propriedade, de liberdade e de
igualdade com relações não proprietárias (PONTES DE MIRANDA, 1933a, p. 96).
Pontes de Miranda valoriza o Direito como projeção do poder político e, por
isso, tenta enxergar nele um caráter emancipador/transformador da cidadania me-
diante reformas na sociedade que declarem e efetivem novos direitos no campo
social e econômico. O Estado socialista passaria a assumir o compromisso de con-
cretizar positivamente esses novos direitos (acesso ao trabalho, à assistência, ao
ideal, à subsistência e à educação) como expressão material da cidadania. Cita-se:
248

Em vez de ser a democracia a caixa em que se metem o socialismo e ou-


tros partidos, a caixa é o socialismo e dentro dele, nunca fora dele, é que se
exerce a atividade opinativa [...] Os 5 direitos permaneceriam, em qualquer
das discussões, como o fim do Estado, de modo que a democracia não seria
só Rousseau, mas Rousseau e Montesquieu, não só vontade, mas vontade e
verdade, não só liberdade, mas liberdade e lei (PONTES DE MIRANDA,
1933c, p. 79, 81).

Voltando a Aristóteles, nos termos já postos, a metáfora é um instrumento de


conhecimento, de natureza associativa, que nasce do raciocínio, mas que é empre-
gado conforme as necessidades da retórica dos métodos e metodológica. Ela tem o
poder de não só transferir o sentido de uma palavra, mas também o sentido de um
enunciado (RICOUER, 2005, p. 10, 12, 84, 97). Nesses termos, quando Pontes de
Miranda raciocina sobre os novos direitos ele o faz metaforicamente para designar
a concretização da cidadania, ele não pode seguir fielmente as regras da lógica, pois
produz uma mudança de significado ou mesmo um sentido dito “figurado” na argu-
mentação empregada, opondo-se ao significado literal de novos direitos, oferece um
sentido conotativo ao argumento para significar a ampliação da esfera da cidadania,
além dos limites impostos pela burguesia.
Isto fica evidente na seguinte passagem da obra ponteana:

O homem é indivíduo-social e por isto mesmo o direito igualizante, comu-


nizador, do socialismo, tem os seus limites, como tem o individualismo [...]
O círculo mais elevado melhora o homem e os homens cooperam na melhor
integração do círculo (PONTES DE MIRANDA, 1972b, p. 33).

Observa-se que Pontes de Miranda ao empregar as palavras “indivíduo-so-


cial”, “homem” e “círculo”, se vale, mais uma vez, da utilização da metáfora, como
transferência de um enunciado, objetiva unir dois elementos diferentes (homem e
indivíduo-social), para destacar uma semelhança (a ideia de base, fundamento).
Embora a tese ponteana defenda o homem concreto, histórico e real e o socialismo
como produto deste homem (PONTES DE MIRANDA, 1921, p. 213), a utilização
da palavra “círculo”, nesse contexto, é empregada como ilação à ideia de que o so-
cialismo é um fenômeno social inevitável de evolução das constantes socializações,
pela qual o indivíduo se aprimora moralmente a partir de círculos mais elevados, o
que só o Direito pode permitir (PONTES DE MIRANDA, 1972b, p. 33) (PONTES
DE MIRANDA, 1972a, p. 264). Como já sinalizado, não existe qualquer pretensão
objetiva de realização de uma sociedade mediante a ruptura da ordem jurídica e
institucional, mas apenas de uma gradual modificação nos marcos das instituições
democráticas vigentes. Como visto no tópico anterior, esse era o desejo dos adeptos
do socialismo jurídico.
Quentin Skinner (1999, p. 251, 253-255) defende que a maioria dos auditórios
constroem sua opinião tendo por base imagens, muitas vezes nunca vistas, apenas
imaginadas para empregar metáforas, com o intuito de clarear as ideias e despertar
emoções nos ouvintes. Ao que parece Pontes de Miranda se aproveita disto, mas
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 249

não emprega qualquer metáfora, mas aquelas baseadas em imagens claras, propor-
cionais ao contexto do discurso, ligando de forma arrojada termos estranhos, de
forma a ampliar o efeito persuasivo do seu discurso, o que as linhas citadas acima
constituem um exemplo.
O movimento comunista é visto a partir do princípio de evolução pacífica e
gradual do capitalismo ao socialismo e da extinção das formas estatais, o que se
harmoniza também com as teses de Anton Menger. Essa “evolução pacífica” força
Pontes de Miranda (1933a, p. 71-72, 80-81, 88) a ver o Estado como um ente neutro
e de garantia das liberdades e a serviço do pluralismo político. A visão ponteana
parece querer garantir a individualidade contra o poder político (PONTES DE MI-
RANDA, 1933a, p. 92, 103).
Ao substituir a defesa da ruptura pela da transição (PONTES DE MIRANDA,
1933a, p. 85), Pontes de Miranda coloca em segundo plano o papel das forças produti-
vas sobre a catalização das demais relações sociais e, ao mesmo tempo, atribui função
principal e definitiva à estrutura jurídica. Essa visão leva o jurista a se preocupar com
a segurança jurídica, o que só é possível se a teoria geral do direito separar a ciência
do direito do direito existente (PONTES DE MIRANDA, 1947, p. 110).
A tese ponteana é a de que não se podem suprimir as formas capitalistas de
produção antes da realização do socialismo integral. Daí a proposta da transição
gradual e pacífica rumo a um ideal socialista (PONTES DE MIRANDA, 1932,
p. 87), o que leva a assunção da luta social no campo do Direito de um projeto
reformador do capitalismo que tenha por meta reinvindicações de igualdade ma-
terial, isso passa pela universalização do direito ao trabalho, pela realização da
assistência, pelo asseguramento do direito ao ideal, à subsistência e à educação
(PONTES DE MIRANDA, 1932, p. 95-96). Aqui, o uso das metáforas, alterando
e distorcendo significados, cumpria grande papel persuasivo no discurso, pois
permitia conduzir melhor a população na consecução dos objetivos postos pelo
Estado na transição socialista rumo ao comunismo.
Essas teses estão em consonância com o socialismo jurídico. A posição pon-
teana resulta em que o mundo do trabalho deve não só exprimir seus interesses no
ordenamento jurídico, mas também aceitar a seara das instituições jurídicas e de-
mocráticas como única realidade possível à construção e uma sociedade alternativa
ao capitalismo.

4. Conclusão: a versão ponteana do socialismo


jurídico na radicalização da ordem jurídica
constitucional promovedora de direitos fundamentais

O socialismo jurídico de Pontes de Miranda (1933a, p. 116-117, 123)


participa de um ponto em comum com Anton Menger: ele é voltado para a
pacificação dos males sociais que ameaçavam a sociedade e para a minimização
das suas consequências para a vida prática dos homens. Isso implica em renunciar
a qualquer juridicização de elementos que coloquem, abruptamente, em xeque a
250

ordem capitalista. O objetivo é atenuar progressivamente as desigualdades sociais e


o aumento das contradições na sociedade, fatores inerentes à economia de mercado,
e evitar o acirramento da luta de classes e a decomposição violenta do capitalismo,
como sustenta o próprio Pontes de Miranda (1932, p. 108).
Pretende associar o socialismo com a efetivação de garantias fundamentais à
pessoa humana. O reconhecimento das instituições representativas, nucleadas por
uma Constituição democrática e afirmadora da liberdade e da igualdade, implica na
rejeição da luta política, desde que o Estado tenha fins sociais precisos (PONTES
DE MIRANDA, 1933c, p. 20).
Por isso, o pensamento ponteano, como já afirmado em artigo anterior (MAIA,
2014), rejeita o espírito das “massas”. A insistência no papel da ordem constitucio-
nal na incorporação dos novos direitos do homem tem o mérito de criar represen-
tações metafóricas sobre a satisfação das necessidades básicas da população pela
idealização de um Estado social.
Assim, uma vez fixados os novos direitos do homem na Constituição, basea-
dos numa igualdade material, o Estado deve intervir sempre na ordem econômica,
social e cultural, com o objetivo de minimizar as desigualdades sociais (PONTES
DE MIRANDA, 1933c, p. 29). É uma posição que se aproxima do caminho do so-
cialismo jurídico de Anton Menger, tenta uma radicalidade democrática mediante a
construção de um mínimo de garantias vitais que unifique o interesse individual e o
coletivo e coloque os direitos humanos como a seara da luta contra as contradições
geradas pela organização do mercado, pelo livre comércio, pelo sistema monetário
e pela distribuição do trabalho.
O “socialismo continente constitucional” de Pontes de Miranda (1933c, p. 78-
79) é também uma versão metafórica desse socialismo jurídico. A figura do Estado
é alçada no centro, aparece como um ente acima das classes sociais, gestor da eco-
nomia e da sociedade e regulador dos conflitos e das contradições sociais (PONTES
DE MIRANDA, 1933a, p. 124, 125).
Por fim, nessa lógica, o Direito se funda em fatores concretizadores de poder,
pela qual, em função do acirramento da luta social, a constitucionalização de reais
aspirações sociais serve como válvula de regulação do equilíbrio social e fator de
prevenção da revolução violenta.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 251

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2009). A retórica constitucional – sobre tolerância,


direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva.
_______ (2011). Uma teoria da norma jurídica e do direito subjetivo. São
Paulo: Noeses.
Aristóteles (2001). Ética a Nicômaco. 3. ed. Brasília, Editora da Universida-
de de Brasília.
_______ (2007). Poética. Madrid: Alianza Editorial.
_______ (1998). Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito. In: Revista brasileira de
filosofia. Tradução João Maurício Adeodato. São Paulo: Instituto Brasileiro de Fi-
losofia, v. XXXIX, p. 175-184.
BERISTAIN, Helena (1995). Diccionario de retórica y poética. Ciudad de Mexi-
co: Librería Porrúa.
BOBBIO, Norberto (1992). A era dos direitos. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus.
ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl (2012). O socialismo jurídico. São Paulo: Boitempo.
LIMONGI, Dante Braz (1998). O projeto político de Pontes de Miranda. Rio de
Janeiro: Renovar.
MACHADO NETO, A. L. (1969). História das ideias jurídicas no Brasil. São
Paulo: Grijalbo.
MAIA, Fernando Joaquim Ferreira (2014). Reformismo e direitos huma-
nos no jovem Pontes de Miranda. Disponível em: <https://www4.planalto.
gov.br/revistajuridica/vol-16-n-109-jun-set-2014/menu-vertical/artigos/arti-
gos.2014-09-29.9750799057>. Acesso em: 26 dez. 2014.
MENGER, Anton (1998). Derecho civil y los pobres. Granada: Editorial Comares.
_______ (1944). El derecho al producto íntegro del trabajo en su desarrollo
histórico. Buenos Aires: Editorial Americalee.
_______. L’Etat socialiste (1904). Paris: Société Nouvelle de Librairie et d’Édition.
NAVES, Márcio Bilharinho (2012a). A ilusão da jurisprudência. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/neils/downloads/v7_artigo_marcio_naves.pdf>. Acesso em:
04 dez. 2012.
_______ (2012b). Prefácio. In: ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialis-
mo jurídico. São Paulo: Boitempo, p. 9-16.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie (2005). Tratado da argu-
mentação: a nova retórica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes.
PÉREZ, José Luis Monereo (1998). Reformismo social y socialismo jurídico. In:
MENGER, Anton. Derecho civil y los pobres. Granada: Editorial Comares, p. 7-80.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti (1979). Democracia, liberdade,
igualdade (os três caminhos). 2. ed. São Paulo: Saraiva.
_______. (1972). Sistema de ciência positiva do direito. 2. ed. Rio de Janeiro:
Borsoi, t. I-III.
252

_______. (1947). Comentário à Constituição de 1946. São Paulo: Revista dos


Tribunais, t. I.
_______. (1933a). Anarchismo, comunismo, socialismo. Rio de Janeiro: Ander-
sen Editores.
_______. (1933b). Direito à Educação. Rio de Janeiro: Alba.
_______. (1933c). Os novos direitos do homem. Rio de Janeiro: Alba.
_______. (1932). Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Ja-
neiro: Freitas Bastos.
_______. (1921). A sabedoria dos instinctos. Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos.
PRADO JÚNIOR, Caio (2008). História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense.
REBOUL, Olivier (2000). Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.
RICOUER, Paul (2005). A metáfora viva. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola.
SALDANHA, Nelson (1989). Espaço e tempo na concepção de direito de Pontes
de Miranda. In: CARCATERRA, Gaetano; LELLI, Marcelo; SCHIPANI, Sandro
(Orgs.). Scienza giuridica e scienza sociali in Brasile: Pontes de Miranda. Padova:
CEDAM, p. 41-51.
SALGADO, Joaquim Carlos (2012). Pontes de Miranda e o Direito à Educa-
ção: exposição crítica. Disponível em: <http://amlj.com.br/artigos/126-pontes-de-
-miranda-e-o-direito-a-educacao-posicao-critica>. Acesso em: 03 fev. 2012.
SARMENTO, Jorge (2012). Pontes de Miranda e a teoria dos direitos funda-
mentais. Disponível em: <http://www.georgesarmento.com.br/wp-content/uploa-
ds/2011/02/Pontes-de-Miranda-e-a-teoria-dos-direitos-fundamentais2.pdf>. Aces-
so em: 09 mar. 2012.
SECCO, Lincoln (2010). A revolução passiva no Brasil: hegemonia, legislação e
poder local. In: MOTA, Carlos Guilherme; SALINAS, Natasha S. C. (Coord.). Os
juristas na formação do Estado-Nação brasileiro (de 1930 aos dias atuais). São
Paulo: Saraiva, p. 143-158.
SKINNER, Quentin (1999). Razão e retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP.
SOUZA, Américo de (2008). A persuasão. Disponível em: <http://www.labcom.pt/
livroslabcom/pdfs/sousa_americo_persuasao.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2008.
O CONCEITO DE HOMEM DE
LETRAS E A RETÓRICA JURÍDICA
NO BRASIL DO SÉCULO XIX

Helena Maria Ramos de Mendonça

Resumo: O objetivo deste capítulo é compreender as relações existentes


entre Retórica, Filosofia e Poética, aplicando estas interseções à análise do
conceito e das ações do Homem de Letras no discurso jurídico do Brasil do
Século XIX. A tese é que a atividade desses agentes históricos, associada à
aproximação com a imprensa e com a literatura, promoveu uma peculiar con-
tribuição à cultura jurídica nacional daquele período.
Palavras chave: Retórica. Poética. Narrativa. Homem de letras.
Abstract: The purpose of this paper is to understand the relationship between
Rhetoric, Philosophy and Poetics, applying these intersections to analyze the
concept of “man of letters” and their actions in Brazilian legal discourse of
the nineteenth century. The thesis is that the activity of these historical agents,
associated with the proximity of the press and literature, promoted a peculiar
contribution to the legal culture of that period.
Keywords: Rhetoric. Poetics. Narrative. Man of Letters.
Sumário: 1. As interfaces da relação Retórica, Filosofia e Poética; 2. O con-
ceito de Homem de Letras; 3. As letras brasileiras: a interferência da imprensa
e da literatura no Séc. XIX; 4. A construção da retórica do Homem de Letras
nacional. Referências.

1. As interfaces da relação retórica, filosofia, poética

Na introdução à edição em língua portuguesa da Retórica, de Aristóteles, Ma-


nuel Alexandre Júnior (2005, p. 09) chama a atenção para o uso retórico da lingua-
gem em sociedades iletradas e sem escrita, sugerindo que a retórica não se restringe
aos estreitos limites da referência da palavra escrita e talvez não seja demais afirmar
que a retórica não se restringe nem mesmo aos limites mais generosos da palavra
como referência, uma vez que é possível falar sobre uma retórica do corpo, do
olhar, enfim tudo aquilo que sugere ou que deseja significar parece ser passível de
uma organização ou de uma sistematização retórica. Isto acontece porque a matéria
prima da retórica é a linguagem e a linguagem representa o mundo em que os seres
humanos estão mergulhados.
Este indício serve para demonstrar a precariedade de tentar estabelecer um
ponto de partida para falar sobre retórica em um sentido amplo. De certo, é possível
estabelecer um momento na história da humanidade em que o nome “retórica” e sua
definição começaram a ser empregados para apontar determinada atividade, mas
254

uma “atitude retórica” é anterior a esta denominação, porque como foi dito anterior-
mente, a retórica nasce com a linguagem e a linguagem nasce com o ser humano.
Como adverte Olivier Reboul (2004, p. 01), “é inconcebível que os homens não
tenham utilizado a linguagem para persuadir”, ou seja, é impossível que os homens
não sejam vistos como “seres retóricos”.
É interessante pensar que quando os homens do Paleolítico, cerca de 15.000-
10.000 a.C., faziam desenhos nas paredes das cavernas, não faziam outra coisa se-
não tentar “convencer” a realidade ou um ser divino a lhes beneficiarem, ou seja,
não faziam outra coisa senão tentar persuadir a natureza, tentar submeter uma força
que lhes era contrária.

Aparentemente, para os homens do paleolítico não havia uma distinção muito


nítida entre imagem e realidade; ao retratarem um animal, pretendiam fazer
com que ele fosse também trazido ao seu alcance, e ao ‘matarem’ a imagem jul-
gavam ter matado o espírito vital do animal (JANSON; JANSON, 1996, p. 16)

As imagens já eram signos evidentes, pois já possuíam a função de compensar


a ausência de algo, eram linguagem e, se pensarmos nos recursos que estavam à dis-
posição daqueles ancestrais, por que não afirmar que eram representantes remotos
de uma retórica visual?
Então, é impossível determinar o princípio daquilo que se convencionou cha-
mar de “retórica”? A resposta parece estar contida na pergunta. Considerando-se a
retórica como esta capacidade inata do ser humano de buscar repercussões para suas
crenças, pode-se dizer que é impossível buscar um marco inicial preciso para esta
circunstância, assim como é impossível buscar uma marco preciso para o nascimen-
to da linguagem (ou mais especificamente, da língua), no entanto “aquilo que se
convencionou chamar de retórica” pode ser identificado como um fato tipicamente
grego (assim como a filosofia) nascido por volta do Século V a. C.
A retórica (ou esta metalinguagem, como prefere Barthes) nasceu por volta do
ano 485 a.C quando dois tiranos sicilianos Gelon e Hieron decretaram deportações
e expropriações com o intuito de povoar Siracusa; quando os tiranos foram destituí-
dos, os cidadãos prejudicados reclamaram seus bens, gerando diversos processos de
um tipo desconhecido para a época, processos que mobilizavam grandes júris popu-
lares que demandavam uma nova habilidade: a arte do convencimento, a arte da elo-
quência. Tal necessidade criou uma especial atenção sobre a linguagem, ensejando
o desenvolvimento de uma nova arte, a tekchné rhetoriké ou “arte oratória”, como
sugeriram Córax e Tísias (discípulos de Empédocles de Agrigento) ao publicarem
uma “coletânea de preceitos práticos que continha exemplos para uso das pessoas
que recorressem à justiça” (BARTHES, 1975, p. 151; REBOUL, 2004, p. 02).
Note-se que esta é a primeira conexão entre a retórica e o direito, no entanto
é válido salientar que nestas circunstâncias a retórica é uma ferramenta colocada a
serviço de uma situação jurídica específica, ou seja, a retórica ainda não estabeleceu
para si a função de investigar sua adequação ao fenômeno jurídico e investigando a
si, investigar o direito, ou melhor, a retórica representava uma forma de aperfeiçoa-
mento do discurso e não, uma forma de investigação do discurso.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 255

Era uma forma ainda rudimentar de observação do uso da linguagem, na ten-


tativa de sistematizá-lo e colocá-lo a serviço dos interesses daqueles que faziam
um uso específico da língua. Neste sentido, a retórica “é e não é” uma novidade: a
retórica não é uma novidade porque em um primeiro instante ela apenas observa o
que já estava a sua disposição, ou seja, apenas observa o uso que os cidadãos faziam
da língua, suas estratégias espontâneas e as reações causadas por tais estratégias.
Por outro lado, a retórica inova, exatamente, quando percebe a língua como objeto,
ou seja, quando percebe a língua como um objeto digno de observação, de sistema-
tização e de interpretação.
Observe-se que os “criadores” da retórica a ela se referiam como uma “arte”,
no sentido privilegiado pela antiguidade (conceito aproximado ao que hoje se enten-
de por técnica, em relação a uma atividade especializada e voltada para um objetivo
prático), qual seja:

[...] todo conjunto de regras capazes de dirigir uma atividade humana qual-
quer. Era nesse sentido que Platão falava de arte e, por isso, não estabeleceu
distinção entre arte e ciência. Arte, para Platão, é a arte do raciocínio (Fed. 90
b), como a própria filosofia no seu grau mais alto, isto é, a dialética (Fedro,
266 d). Arte é a poesia [...]. Aristóteles restringiu notavelmente o conceito de
arte. [...]. Somente o possível que é objeto de produção é objeto da arte. [...]
a arte se define como o hábito, acompanhado pela razão, de produzir alguma
coisa (Et. nic., VI, 3-4). [...]. São arte a retórica e a poética, mas não é arte a
analítica (lógica) cujo objeto é necessário (ABBAGNANO, 2007, p. 92-93).

A extensão da citação justifica-se pela relevância do assunto que a seguir será


discutido: a relação da retórica com a filosofia e a arte poética.
Pensar a retórica como “arte”, como fizeram Córax e Tísias; pensar a filoso-
fia como “arte”, de acordo com os argumentos platônicos, assim como a poética,
segundo Aristóteles é um ponto de interseção interessante para perceber a relação
entre estes três espaços. Porém, note-se que a filosofia que convive com esses pri-
meiros sinais de vida da retórica (Séc. V a.C) não é a filosofia platônica, mas a
filosofia construída (ou mesmo criada) por aquele grupo de filósofos chamados de
pré-socráticos ou filósofos da natureza.
O surgimento da filosofia, apesar de ser ainda tema bastante controverso, re-
presenta uma revolução nas formas de percepção, compreensão e interpretação do
mundo: é o que a história da filosofia costuma destacar como a passagem do mito à
filosofia, a passagem do mito ao pensamento racional.
A perspectiva filosófica surge na Grécia, a partir do Séc. VI a.C., e “[...] se-
gundo uma tradição, que remonta aos próprios gregos antigos, o primeiro filósofo
teria sido Tales de Mileto” (PESSANHA, 2000, p. 15). Apesar disso, é importante
destacar que, de acordo com exposição da história da filosofia, este momento cor-
responde a uma passagem, a um momento de transição entre o pensamento mítico
e o pensamento racional. Isto equivale a dizer que apesar de representar uma revo-
lução na maneira de perceber o mundo, a filosofia não substitui, automaticamente,
o pensamento mítico. Há um espaço de convivência e de tolerância entre os dois
universos que deve ser considerado.
256

Segundo Jaeger (2003, p.191-2):

Não é fácil definir se a ideia dos poemas homéricos, segundo a qual o oceano
é a origem de todas as coisas, difere da concepção de Tales, que considera a
água o princípio original do mundo; seja como for, é evidente que a represen-
tação do mar inesgotável colaborou para a sua expressão. [...] Parafraseando o
dito de Kant, poderíamos dizer que a intuição mítica, sem o elemento forma-
dor do Logos, ainda é ‘cega’ e que a conceituação lógica, sem o núcleo vivo
da ‘intuição mítica’ originária, permanece ‘vazia’.

Para Aristóteles, a concepção de Tales de considerar a água o princípio origi-


nal do mundo teria dado início a explicação do universo através da “causa material”
(PESSANHA, 2000, p. 15), no entanto a influência da perspectiva impregnada de
mitos da epopeia homérica é evidente. Jaeger afirma que é difícil distinguir nitida-
mente as duas percepções.
Sendo assim, o que se pretende afirmar é que a filosofia primitiva, diante do
desenvolvimento de conteúdos teóricos, ainda estava fortemente ligada ao pensa-
mento mítico, ao passo que a retórica possuindo compromisso teórico predominan-
temente formal insinuava uma provocação importante em relação ao pensamento
racional, afinal de contas não existe nada mais subversivo para o sagrado do que
pensar a Palavra como um objeto manipulado pelos homens.
Desta forma, para alguém que observa o debate entre retórica e filosofia com
o distanciamento histórico necessário, é possível compreender que apesar de terem
surgido com objetos e preocupações absolutamente distintas (enquanto a filosofia
primitiva tinha como centro de suas atenções a natureza, a retórica ocupava-se de
um aperfeiçoamento específico do uso da linguagem e, de certa forma, já colocava
o homem como objeto de suas “investigações”), o conceito de filosofia construído
desde seu nascimento aos dias atuais não parece permitir uma separação tão taxativa
em relação à retórica.
Obviamente, não se poderia esperar que os filósofos e retóricos que assistiram
ao surgimento das duas disciplinas quisessem, no seu tempo, fundir ou aproximar
estes espaços, que, para os olhos daqueles indivíduos, deveriam parecer (e, de certa
forma, eram) tão distantes e inconciliáveis. O espaço de aproximação entre a filoso-
fia e a retórica talvez não esteja exposto nitidamente nas suas origens, mas naquilo
que suas origens revelam de possibilidades, de potencialidades: a filosofia sempre
pretendeu ser um espaço de questionamento e a retórica, sugerindo a observação da
linguagem, representa um instrumento determinante para tornar tal questionamento
mais eficiente ou até mesmo viável. O conceito de “arte” pleiteado por Platão para
abrigar a filosofia já estava contido na “arte” retórica. A questão é que Platão pa-
recia perceber (ou se esforçava para criar esta imagem) (d)a retórica apenas como
um instrumento de construção do discurso, sem se dar conta (ou sem expor) que ao
construir o discurso, a retórica já reunia elementos para investigar o discurso.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 257

Sendo assim, entende-se que a retórica não é simplesmente mais uma ferra-
menta colocada à disposição do direito, da filosofia ou de qualquer outra disciplina
que dela se utilize, mas a retórica representa um instrumento de investigação, um
espaço para o exercício da dúvida, assim como a filosofia, ou seja, a retórica é uma
forma de ser da filosofia43, uma vez que a retórica fornece subsídios analíticos para
que o próprio discurso filosófico seja investigado.
Observe-se, no entanto, que as conclusões aqui esboçadas servem simples-
mente como uma indicação, uma sinalização de perspectivas privilegiadas por este
texto, uma vez que discutir pormenorizadamente a relação “retórica x filosofia” é
um objetivo que foge às pretensões almejadas, até mesmo porque, como adverte
Manuel Alexandre Júnior (2005, p. 26): “Esse foi, aliás, o grande conflito travado na
Antiguidade: o conflito de competência entre filósofos e retóricos”. E Jaeger (2003,
p. 1060) complementa:

Não é possível pintar em todas as suas fases este debate (o pleito da filosofia e
da retórica, cada uma das quais pretendendo ser a melhor forma de educação),
tanto mais que abundam neles as repetições e às vezes os seus representantes
não têm, como personalidades, grande interesse em si mesmos.

Por sua vez, retomando a citação que deu origem a esta primeira discussão,
é oportuno lembrar que para Aristóteles a retórica e a poética são “artes” ou repre-
sentam uma tekchné. Diante disto, será possível perceber regras ou habilidades ne-
cessárias que aproximem a “arte retórica” da “arte poética”? Ou será que a pergunta
mais adequada seria: em que ponto elas se distanciam?
Segundo Manuel Alexandre Júnior (2005, p. 33),

Aristóteles escreveu dois tratados distintos sobre a elaboração do discurso. A


sua Retórica ocupa-se da arte da comunicação, do discurso feito em público
com fins persuasivos. A Poética ocupa-se da arte da evocação imaginária, do
discurso feito essencialmente com fins poéticos e literários.

Então, Aristóteles escreveu “dois tratados distintos” sobre um mesmo objeto:


a elaboração do discurso, no entanto este objeto (e consequentemente, os tratados
que dele se ocupam) distinguem-se em relação aos fins que pretendem alcançar. A
retórica parece ter finalidade persuasiva, enquanto a poética possui “fins poéticos e
literários”. Mas o que vem a ser, exatamente, “fins poéticos e literários” em opo-
sição aos “fins persuasivos”? A retórica não possuiria nenhuma finalidade poética
ou literária? Por outro lado, a poética, como forma de elaboração do discurso, não
possuiria nenhuma finalidade “persuasiva”?

43 Em seu texto Retórica como metódica para estudo do direito, João Maurício Adeodato (2009, p. 15-6) se ocupa da relação
entre retórica e filosofia, partindo da concepção da “retórica como uma espécie de filosofia”.
258

O sistema retórico divide-se em quatro partes: a invenção (heurésis); a disposi-


ção (taxis); a elocução (lexis) e a ação (hypocrisis). Segundo Reboul (2004, p. 43),

[...] a invenção é a busca que empreende o orador de todos os argumentos e


de outros meios de persuasão relativos ao tema de seu discurso. [...] a dis-
posição é a ordenação desses argumentos, donde resultará a organização in-
terna do discurso [...]. A terceira é a elocução, que não diz respeito à palavra
oral, mas à redação escrita do discurso, ao estilo [...]. A ação é a proferição
efetiva do discurso [...].

Esta divisão é bastante esclarecedora no sentido de responder uma das ques-


tões acima sinalizadas, qual seja: a retórica não teria nenhuma finalidade poética ou
literária? É razoável supor que a terceira parte do sistema retórico, a elocução ou
“a redação escrita do discurso”, possua elementos literários, pois é nesta fase que
se destaca o caráter estético do discurso, sua apresentação através das chamadas
“figuras de estilo”.
Em suas artes poéticas, tanto Aristóteles, quanto Horácio ocupam-se das for-
mas de apresentações das palavras. Aristóteles diz que a poesia deve utilizar-se de
“vocábulos peregrinos” e afastar-se da “linguagem vulgar”, e ainda, que se deve
destinar a maior importância à metáfora, porque esta “revela o engenho natural do
poeta, [...] bem saber descobrir as metáforas significa bem se aperceber das seme-
lhanças”. Por sua vez, Horácio dá especial valor aos “neologismos”, chamado de
“nomes inventados”, por Aristóteles44. Dizia Horácio que: “Era e sempre será lícito
dar curso a um vocábulo de cunhagem recente” (1997, p. 56-7)45.
Sem dúvida, estas eram preocupações literárias que também encontram-se
bem delineadas na retórica aristotélica quando o filósofo trata das metáforas ou,
simplesmente, quando adverte que “é necessário, portanto, produzir uma linguagem
não familiar, pois as pessoas admiram o que é afastado, e aquilo que provoca admi-
ração é coisa agradável” (ARISTÓTELES, 2005, p. 245). Desta forma, é possível
afirmar que a retórica, assim como a poética, possui preocupações literárias. No en-
tanto, vale ressaltar que preocupações literárias não se confundem, necessariamen-
te, com preocupações poéticas (no sentido originalmente proposto por Aristóteles).
No início de sua Poética, Aristóteles afirma, categoricamente, “poesia é imi-
tação”. Levando em consideração que Poiesis é um vocábulo grego que significa
“fabricação, criação”, percebe-se que poesia, de acordo com a Poética aristotélica
propõe a criação de algo a partir do real, recriando o real, imitando a realidade, daí
vem o conceito de mimesis que se vinculou à noção de Literatura como ficção, ou
seja, algo que “não é real”.

44 “Inventado é o nome que ninguém usa, mas que o próprio poeta forjou” (1999, p. 135)
45 “Como, à veloz passagem dos anos, os bosques mudam de folhas, que as antigas vão caindo, assim perece a geração
velha de palavras e, tal como a juventude, florejam, viçosas, as nascediças. Somos um haver da morte, nós e o que é
nosso.” (HORÁCIO, 1999, p. 57)
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 259

Ocorre que, neste caso, o fato de não ser uma descrição absolutamente “estéril”
do real não significa que a poesia (ou a ficção) é algo “oposto” ao real; muito pelo con-
trário, uma vez que “poesia é imitação”, ela está impregnada pelo real, é uma espécie
de “mergulho” no real. Pensar a poesia ou a ficção como algo “oposto ao real” é rati-
ficar a ressalva platônica relativa aos poetas; é pensar a poesia ou a ficção como uma
espécie de “afastamento”, de distanciamento. No entanto, o que ocorre é exatamente
o oposto: ao recriarem a realidade, os poetas não se afastam dela; aproximam-se, pro-
movendo um valioso mecanismo de interpretação das ações humanas.
Ora, que a retórica possui preocupações literárias é uma conclusão relativa-
mente simples de se construir, mas e quanto aos “fins poéticos”? A retórica, como
forma de elaboração do discurso, é também uma recriação ou uma imitação do real,
uma vez que tal “imitação” não é algo “oposto ao real”?
Paul Ricoeur (2005, p. 23-4) destaca que à tríade “retórica – prova – persua-
são”, Aristóteles opõe a tríade “poiesis – mimesis – catharsis”, ou seja, os “fins po-
éticos” são diversos dos “fins persuasivos” porque os primeiros almejam à catarse
(mecanismo pelo qual os espectadores poderiam purgar-se dos sentimentos de “terror
e piedade”, através das sensações experimentadas na tragédia), enquanto os “fins per-
suasivos”, como o nome sugere, buscam o convencimento; não pretendem apresentar
o indivíduo aos seus próprios sentimentos ou a si mesmo (como faz a tragédia e seus
fins catárticos), mas pretendem apresentar o homem ao outro homem, fornecendo-lhe
ferramentas que facilitem o diálogo ou que tornem a comunicação mais eficiente.
É esta predisposição ao diálogo que faz com que a retórica – como forma de
elaboração do discurso – seja um instrumento colocado a serviço da ação, da polí-
tica: ela é uma forma de construção do discurso que pressupõe a presença do outro,
afinal a persuasão não é necessária se não houver resistência e é exatamente esta
resistência que torna necessário o conhecimento das razões do outro, com o objetivo
de tornar adequado o discurso daquele que visa convencer. É preciso antecipar-se
às razões do outro e esta antecipação fortalece e elabora os argumentos daquele que
pretende persuadir.
Por outro lado, a poética não é feita para a resistência. A teoria da literatura
criou um conceito bastante elucidativo para referir-se a esta situação: é o conceito
de “pacto ficcional”. O espectador ou o leitor compromete-se a aceitar – sem maior
resistência – a realidade recriada pelo autor. O autor não precisa convencer o espec-
tador ou o leitor que a obra de ficção é ou não é real; é ou não é verdadeira, pois o
espectador ou o leitor sabe ou está disposto a crer que aquele espetáculo ou aquele
romance são recriações do real e que não pretendem ostentar a qualidade daquilo
que é real ou verdadeiro. Este é um pressuposto do universo poético. Quando o
autor pretende ou se propõe a convencer que aquilo que criou é algo “real” ou “ver-
dadeiro”, o espaço poético é transposto e surge o espaço retórico.
É por esta razão que tanto Aristóteles, quanto Horácio ressaltam em suas Po-
éticas o valor da verossimilhança, pois as obras de “ficção” não devem promover
uma discussão (ou qualquer espécie de resistência ou constrangimento) entre o au-
tor e o espectador ou o leitor, uma vez que tais obras devem favorecer à catarse e
260

não, serem veículos de persuasão, ou seja, apresentar o inverossímil criaria um obs-


táculo à catarse, pois o espectador ou leitor ficaria mais ocupado em “desmascarar”
o autor do que em identificar-se com as personagens.
Nada impede que a retórica integre-se à literatura como um elemento facili-
tador do pacto ficcional, favorecendo a verossimilhança das obras de “ficção” ou
auxiliando o diálogo entre personagens, no entanto o desafio de retórica parece ser
de outra natureza, o desafio de retórica é exatamente relacionado ao inverossímil,
ou melhor, é tornar o inverossímil, verossímil (e, se possível, tornar o verossímil,
“real”). Interpretando a Retórica aristotélica, Reboul (2004, p. 27) afirma:

O domínio da retórica, o das questões judiciárias e políticas, não é o mesmo


da verdade cientifica, mas do verossímil. [...] É a arte de defender-se argu-
mentando em situações nas quais a demonstração não é possível. [...] É a
arte de encontrar tudo o que um caso contém de persuasivo, sempre que não
houver outro recurso senão o debate contraditório.

Como a “vida real” não comporta um “pacto ficcional”, o retor precisa distin-
guir-se de um “autor de ficção” e faz isto impondo-se através da lógica de seus argu-
mentos. O retor, ao contrário do “autor”, não conta com a cumplicidade do auditório
e precisa provar que as ideias que expõe são verdadeiras ou, ao menos, razoáveis.
Isto é o inverossímil que precisa tornar-se verossímil: convencer o auditório de que
a “ficção” criada pelo retor é real. É por esta razão que nas tríades citadas anterior-
mente, relativas às oposições entre a retórica e a poética aristotélicas, Ricouer opõe
“prova à mimesis”, porque enquanto o autor pretende que o espectador veja através
de (ou com) seus olhos (do autor), destacando o aspecto mimético da criação; o
retor pretende que o ouvinte pense através de (ou com) seu raciocínio (do retor),
destacando o aspecto lógico da criação.
Sendo assim, é possível concluir que a retórica (como forma de elaboração do
discurso) é, sim, uma espécie de recriação do real ou de “ficção”, na medida em que
qualquer tentativa de “enformar” o real ou de construir um discurso é uma forma
(ou “fôrma”) de recriar o real. A diferença fundamental entre a poética e a retórica
(ou dos “fins poéticos” e dos “fins persuasivos”) é a maneira como o outro se apre-
senta ao autor ou ao retor: como um cúmplice ou como um adversário.
Desta maneira, não é de se estranhar que o direito tenha se mostrado um terreno
tão fértil para a retórica. Assim como outras formas de interpretação do real, o direito
pode ser compreendido como uma forma de ficção que precisa ser exposta como “re-
alidade”. É certo que o direito possui referências reais, “fatos” cuja realidade pode ser
demonstrada, no entanto a interpretação destes fatos é construída pela compreensão
dos indivíduos que se ocupam do direito, ou seja, é construída na “mente” dos juristas,
legisladores e advogados e são, portanto, uma espécie de ficção.
Mas de que espécie de ficção é o direito? Em primeiro lugar, e como já foi de-
monstrado, o direito é uma espécie de ficção que se integra ao espaço retórico e não,
ao espaço poético, porque ele pretende convencer o auditório de que as ideias que
constrói são “verdadeiras” ou “reais”. Sobre isto, observa Bourdieu (2007, p. 244-5):
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 261

Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua


eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer,
na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbi-
trário que está na origem do seu funcionamento. A crença que é tacitamente
concedida à ordem jurídica deve ser reproduzida sem interrupções e uma das
funções do trabalho propriamente jurídico de codificação das representações
e das práticas éticas é a de contribuir para fundamentar a adesão dos profanos
aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo dos juristas, a
saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas.

A parte de “arbitrário que está na origem do funcionamento do direito” é o


que este texto compreende como “ficção” e o esforço de demonstrar a “neutralidade
e a autonomia do direito e dos juristas” é o esforço de transformar a “ficção” em
“Verdade” ou de fazer com que algo construído pelo homem seja visto como puro,
imaculado ou divino.
Obviamente, tratar o direito como ficção é um tanto desconcertante, pois como
sinalizado anteriormente, a ficção é facilmente associada àquilo que é oposto ao
“real”, aproximando-se da imaginação, do conhecimento simbólico e afastando-se
do que é usualmente compreendido por “razão”.
Sem dúvida, é difícil conciliar o léxico jurídico – que é composto por palavras
como “regras”, “segurança” e “justiça” – com aquilo que se aproxima da imagina-
ção. É difícil, porque esta concepção é instável, rebelde, mas se se pretende consi-
derar com seriedade qualquer área do conhecimento humano que lida com ideias e
interpretações, é preciso considerar a hipótese de que a ficção é uma realidade (ou
o contrário), ou ainda, é preciso considerar a hipótese de que o homem constrói o
mundo através da linguagem.
Talvez seja esta uma das razões de desconfiança da filosofia em relação à re-
tórica: a aproximação entre a retórica e a poética, uma vez que ao representar uma
forma de elaboração do discurso, a retórica estabelecia uma estreita ligação com a
poética e, por sua vez, frequentava o espaço do “possível” sem comprometer-se – de
acordo com determinados “moldes filosóficos” – com o “verdadeiro”.
No entanto, como destacado anteriormente, a ligação com a poética é parcial
e revela apenas um aspecto da retórica: o aspecto que destaca a elaboração do dis-
curso; é a retórica vista pelos olhos do retor. Além disto, há um segundo aspecto da
retórica, um aspecto que é consequência da elaboração e da observação do discurso
e que aproxima-se das pretensões filosóficas; é a retórica vista pelos olhos daque-
le que pretende investigar o discurso. Sendo assim, investigar o discurso jurídico
através de uma perspectiva retórica é um instrumento legítimo para o filósofo do
direito, assim como é possível analisar o discurso jurídico com o auxílio de algumas
ferramentas da investigação ficcional.
Apesar desta dupla perspectiva, há muito tempo a filosofia tem obtido suces-
so em reservar para si um “posto de observação” legítimo e privilegiado entre as
“ciências” consideradas “humanas”. É possível que esta autoridade do saber filosó-
fico tenha impedido o reconhecimento da retórica como forma também legítima de
investigação do discurso e da “realidade”. Este não reconhecimento da retórica ou
262

esta exclusão da retórica das pretensões investigativas peculiares ao saber filosófico,


fez com que a retórica criasse uma identificação relevante com um de seus aspec-
tos, o aspecto que se aproxima da poética, o aspecto que se ocupa da elaboração
do discurso, por isso a ideia tão comum de que a retórica é apenas uma espécie de
“maquiagem” para as palavras, afinal observando-a superficialmente ela não teria o
compromisso da filosofia, nem tampouco a nobreza da arte e seus “fins poéticos”.
A reabilitação da retórica (ou o nascimento de uma “nova retórica”) começa
a surgir a partir do Século XX e coincide com um interesse cada vez mais signi-
ficativo pelos estudos da língua, interesse que acabou por caracterizar o que ficou
conhecido como “virada linguística”. Reboul (2004, p. 82) afirma que “[...] a partir
dos anos 60 aparece na França e na Europa uma nova retórica, que logo conhecerá
imenso sucesso”.
A expressão “nova retórica” é elucidativa no sentido de sugerir que a retórica
que surge mantém uma ligação com a tradição (permanece “retórica”), mas é de
uma espécie diversa da “retórica antiga”, é uma “retórica renovada” pelas “novas”
preocupações da Teoria da Literatura e da Filosofia da Linguagem.

2. O conceito de homem de letras

Ao pensar no lugar ocupado pelos indivíduos que vivenciaram e refletiram o


Brasil do Século XIX, uma expressão imediatamente se apresenta: o conceito de
Homem de Letras. Não é por acaso que no prólogo de seu livro Estudos de direito e
Economia Política, Clóvis Beviláqua (1902, p. XII) observa:

Porém, pondo de parte a poesia, em que as producções de origem brazilei-


ra se têm mostrado não somente numerosas, mas tambem com umas certas
irradiações de originalidade e frescor; pondo de parte o jornalismo político,
que tem desorientado muitas intelligencias sadias e alimentado cardumes de
nullidades ambiciosas e trefegas; pondo de parte, finalmente, o romance, é,
por certo, o direito, sobretudo em suas applicações praticas, o assumpto que
mais nos tem consumido papel e tinta (sic).

Não é por acaso que no prólogo do livro de Beviláqua o direito esteja disputando
“tinta e papel” com a literatura e o jornalismo. Isto ocorre porque o “homem do direi-
to” ou o “homem de leis” não estava completamente entregue ou restrito ao espaço
de sua atividade específica. Muitas vezes, antes de ser um “homem do direito”– ou
mesmo sendo um “homem de leis” – o estudioso ou o pensador do Século XIX que
se dedicava à atividade jurídica era um “homem de letras” e este entrelaçamento de
ocupações trouxe desdobramentos à retórica jurídica no Brasil do Séc. XIX.
A expressão “Homem de Letras” será, inicialmente, orientada pelo ponto de
vista do autor inglês Thomas Carlyle. Em sua obra On Heroes, hero-worship and
the heroic in history (1840-41), Carlyle enaltece (transformando-o mesmo em “he-
rói”) a função daquele que se conhece, contemporaneamente, como “intelectual”46.
46 “Para T. W. Heyck, esse é o termo mais aproximado de que dispomos, no século XIX, para a categoria significativamente ausente
de ‘intelectual’, que, em sentido moderno, só passaria a ser de uso corrente na década de 1870.” (EAGLETON, 1991, p. 37). E
ainda: “Na França e na Inglaterra, o próprio termo ‘intelectual’ só se firmou nos anos 1870” (ALONSO, 2002, p. 30).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 263

Para Carlyle (1924, p.138), “o herói como o homem de letras” era um fenôme-
no singular dos “novos tempos”:

Hero-Gods, Prophets, Poets, Priests are forms of heroism that belongs to the old
ages, make their appearance in the remotest times; some of them have ceased to
be possible long since, and cannot any more show themselves in this world. The
hero as Men of Letters, again, of which class we are to speak to-day, is altogether
a product of these new ages; and so long as the wondrous art of writing, or ready-
writing which we can call printing, subsists, he may be expected to continue, as
one of the main forms of Heroism for all future ages.47

Dois aspectos chamam a atenção nos parágrafos anteriores: o “homem de le-


tras” funcionava como uma espécie de antecessor do “intelectual” e o “homem de
letras” era um indivíduo dedicado à “arte de escrever” (arte que, na visão de Carlyle,
possuía uma função nobre e heroica). Diferente do que ocorre com o atual termo
“intelectual”, que sugere uma ênfase no “pensar” (intelectual é o indivíduo que se
dedica ao trabalho intelectual, ao trabalho com a mente, com a razão), o “homem de
letras” sugere um compromisso com a forma pela qual o pensamento é exposto ou
representado: essa forma é a escrita. Do privilégio da escrita, insinua-se uma retóri-
ca (e uma poética) singular nos textos jurídicos do período em apreço.
Em um artigo intitulado Os tempos modernos, Jean-Paul Sartre (1999, p. 128-9)
tece um interessante comentário sobre a categoria dos “homens de letras” e a peculia-
ridade de seu ofício:

[...] Outrora, o poeta se considerava profeta, era honorável; em seguida ele se


tornou pária e maldito. Isso ainda era admissível. Mas hoje ele caiu na catego-
ria dos especialistas e não é sem certo mal-estar que inscreve, nos registros de
hotel, o ofício de ‘homem de letras’, ao lado de seu nome. ‘Homem de letras’:
esta associação de palavras, em si, tem a capacidade de tirar o gosto por escre-
ver. [...] O homem de letras escreve, enquanto os outros brigam. [...] Diante
dos burgueses, que o leem, tem a consciência de sua dignidade; mas diante
dos operários, que não o leem, sofre de um complexo de inferioridade, [...].

Apesar de refletir a cobrança por uma atividade intelectual “engajada”, a ob-


servação de Sartre é particularmente interessante para o contexto analisado porque
ela recupera o conceito de “homem de letras” relacionando-o com o mundo ou
o espaço do “trabalho”, indicando que aquela “associação específica de palavras”
(praticada em meados do Séc. XIX) projetou consequências importantes para o fu-
turo (“O homem de letras escreve, enquanto os outros brigam”).

47 “Deuses-Heróis, Profetas, Poetas, Religiosos são formas de Heroísmo que pertencem à Antiguidade, destacando-se no
passado; alguns deles perderam a viabilidade desde então e não podem mais se mostrar neste mundo. O herói como
homem de letras, categoria a que nos referimos a partir de agora, é um produto dos novos tempos e enquanto a arte da
escrita e a imprensa existirem, ele vai continuar, como uma das principais formas de heroísmo para o futuro” (CARLYLE,
[1841], 1924, p.138) (Tradução livre).
264

A partir de determinado momento histórico (notadamente, a partir do aperfei-


çoamento dos serviços da imprensa, conforme registrado por Carlyle), a categoria
“homem de letras” passou a ocupar um lugar no mundo “prático” (do trabalho),
representando um conjunto de atividades unidas sob a ação comum da “escrita”. E
esta “escrita” começava a definir-se como “produto”, veiculado e vendido, predo-
minantemente, em jornais. Observe-se que a “escrita” representava a materialidade
do produto, no entanto o “pensamento” – que regia a escrita e era indissociável dela
– acabava por compor aquilo que estava sendo posto à venda, daí as contradições
inerentes à atividade do “homem de letras” destacadas pelo filósofo francês: o pen-
sar estaria comprometido com a ação ou com a escrita? E a escrita do homem de
letras estaria comprometida com o pensar ou com a produção?
Em um mundo que ainda não absorvia, especificamente, cada uma das ati-
vidades englobadas pela multifacetada função do “homem de letras” – através de
um mercado editorial aquecido, da expansão das universidades ou da dedicação
exclusiva à atividade jornalística – não era de se estranhar que aqueles indivíduos
precisassem se desdobrar em variedades de escrita para tornar viável o exercício da-
quela “profissão”. Sem dúvida, estas circunstâncias exigiam um compromisso com
a “produção”. Como adverte Eagleton (1991, p. 37), “[...] a necessidade material
força-o [ao “homem de letras”] a ser um bricoleur, um diletante, um homem dos
sete instrumentos, envolvido a fundo, para sobreviver, exatamente com o mundo
literário comercial do qual Carlyle se afastou com desprezo”.
Carlyle se afastava com desprezo daquele “mundo literário comercial” porque
em suas quimeras o “homem de letras” deveria representar um herói dos novos tem-
pos e, obviamente, um herói não poderia render-se a nada, muito menos às volúveis
exigências do mercado. O “herói como homem de letras” atribuía à imprensa uma
nobre função de defesa da democracia:

Em outras palavras, todo o ensaio representa uma constrangida e nostálgica


reinvenção da clássica esfera pública burguesa, enaltecendo o poder que o
discurso tem de influenciar a vida política e elevando os repórteres parlamen-
tares à condição de profetas, pastores e reis (EAGLETON, 1991, p. 38).

Carlyle tinha razão sobre o poder de influência da imprensa, mas não havia
como isolá-la dos “tempos modernos”, ou seja, não havia como pensar em imprensa
sem “maculá-la” com a produção, posto que a imprensa e a produção estavam (e
continuam) visceralmente ligadas. Esta é a razão de Eagleton (1991, p. 37) referir-se
ao “homem de letras” como “[...] uma categoria que reunia, não sem constrangi-
mento, o sábio e o crítico de aluguel”.
A função do homem de letras encontrava-se, portanto, na metade do caminho
entre “o sábio e o crítico de aluguel”. A informação começava a se multiplicar rapi-
damente e cabia ao “sábio” reconhecer aquelas “novas ideias”, digeri-las e divulgá-
-las a um público leitor interessado, mas não especializado. Desta maneira, cabia ao
“crítico de aluguel” adaptar aquela mensagem, tornando-a acessível e “pronta para
o consumo”. É importante destacar que este processo de divulgação de informações
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 265

(ou de “novas ideias”) revestia-se de um relevante valor didático. Neste sentido,


afirma Eagleton (1991, p. 40-1):

Sua função [do homem de letras] é instruir, consolidar e confortar – propor-


cionar a um público leitor perturbado e ideologicamente desorientado resu-
mos de popularização do pensamento contemporâneo, [...]. Ou seja, a relação
que ele mantém com seu público deve ser a de sujeito para objeto, e também,
de sujeito para sujeito; uma inquieta responsividade frente à opinião pública
deve ter lugar dentro de uma postura veladamente propagandística em relação
ao público leitor, processando o conhecimento no ato mesmo de provê-lo.

O contexto retórico do homem de letras no Brasil do Séc. XIX correspondia


– à sua maneira – às características gerais até aqui delineadas: o crescimento da
imprensa; a tentativa de profissionalização do trabalho intelectual; a “poligrafia”,
entendida como uma variedade de práticas de escrita, capazes de atender as deman-
das jornalísticas e do mercado editorial; o alcance didático dos textos produzidos.
Não obstante isto, cumpre destacar algumas peculiaridades do homem de le-
tras nacional: se na Europa, as “necessidades materiais” empurravam o homem de
letras para uma escrita “pulverizada”; no Brasil, as circunstâncias empurravam estes
indivíduos para múltiplas atuações profissionais, muitas vezes paralelas, porém, não
especificamente vinculadas à escrita. Ou seja, mesmo que o domínio das Letras
fosse amplo, no Brasil, o homem de letras não poderia “fragmentar-se” com exclu-
sividade, não poderia pertencer exclusivamente ao múltiplo espaço “das letras”: era
necessário combinar esta atividade com as profissões liberais, o magistério ou o em-
prego público. Daí a disputa de “tinta e papel” entre direito, jornalismo e literatura,
sinalizada por Beviláqua no início deste item, afinal de contas a formação jurídica
era predominante no período analisado.
Esta nova divisão, colocada por circunstâncias específicas ao homem de le-
tras nacional, representava um enorme desafio, implicando um extenuante trabalho
físico (dedicação a múltiplas atividades) e psíquico (muitas vezes, a fragmentação
entre a vocação e a profissão), no entanto, este labirinto de ações praticadas por
estes indivíduos possuía uma consequência fundamental: Sartre (1999, p. 128) afir-
mava que os “homens de letras escrevem, enquanto os outros brigam”; no Brasil,
os homens de letras escreviam, mas – como não estavam restritos ao domínio das
letras – também brigavam, ou melhor, também “atuavam” através da sua escrita. Os
homens de letras nacionais não estavam (e não podiam estar) circunscritos aos seus
gabinetes ou suas “torres de marfim”; eles faziam de sua escrita uma importante
conexão com o mundo que, de fato, experimentavam, recuperando, de uma certa
maneira, o ideal do “herói como homem de letras” preconizado por Carlyle.
266

3. As letras brasileiras: a interferência


da imprensa e da literatura no séc. xix

Nelson Werneck Sodré (2011, p. 27), no início de sua História da Imprensa no


Brasil, chama a atenção para a “coincidência” relacionada ao fato do nascimento da
imprensa e o aparecimento do Brasil na história serem acontecimentos de uma mes-
ma época, com uma diferença essencial: se aquele primeiro evento contribuía para a
ascensão da burguesia, o Brasil principiava sua existência marcado pela dominação
estrangeira e pelo escravismo. Estas circunstâncias históricas condenaram aquela
“coincidência”, que poderia representar um encontro, a muitos anos – na realidade,
a séculos – de “desencontro”.
Ao contrário do que é possível supor, a distância do Velho Mundo não repre-
sentava papel determinante em tal distanciamento. Na verdade, o Brasil foi um dos
últimos territórios do Novo Mundo a ser apresentado, oficialmente, a uma “oficina
de tipografia”, atrás da Cidade do México (“Vice Reinado da Nova Espanha”) que
já em 1533 recebia uma oficina tipográfica; atrás de Lima (1584) e da cidade de
Massachusetts, na América Inglesa (1638) e, finalmente, atrás da cidade de Buenos
Aires (1780). (RIZZINI, 1977, p. 158). O fato é que o livro e as atividades dele
decorrentes já representavam um objeto de censura na metrópole portuguesa e tal
desconfiança foi facilmente estendida à colônia.
É oportuno registrar que algumas iniciativas buscaram reverter este quadro de
atraso como a tentativa realizada pelos holandeses em meados do Séc. XVII:

Desde fevereiro de 1642, o Grande Conselho do Recife requisitara-a [oficina


tipográfica] à Assembleia dos Dezenove [...]. Atendendo, prometeu a Assem-
bleia remetê-la e adiantava ter embarcado para o Brasil o mestre impressor
Pieter Janszoon, o qual concordaria em introduzir a sua arte no Recife. Esse
Janszoon faleceu em seguida. (RIZZINI, 1977, p. 164)

Também em Recife aparece, em 1706, uma pequena oficina tipográfica, ime-


diatamente proibida pela metrópole. Em 1746, mais uma tentativa é registrada na
cidade de Rio de Janeiro. Desta vez, a oficina chegou a ser colocada em funcio-
namento, imprimindo alguns escritos. No entanto, como acontecera em Recife, a
metrópole interveio rapidamente, desativando a tipografia.
Desta maneira, oficialmente – sob proteção e por “iniciativa oficial”, como
lembra Sodré (2011, p. 40) – a imprensa brasileira nasce em 1808 com a chegada
da família real portuguesa. O material gráfico vinha de Portugal. Nas circunstâncias
peculiares que cercaram a saída da corte de D. João VI para a colônia, o Sr. Antônio
de Araújo, futuro Conde da Barca, mandou depositar nos porões do Medusa o ma-
terial que havia sido adquirido em Portugal, mas não chegara a ser montado. Sendo
assim, ao desembarcar no Brasil, montou-se aquela “oficina de impressão”, desti-
nada a imprimir, “[...], exclusivamente, toda a legislação e papéis diplomáticos, que
emanarem de qualquer repartição [...]”, conforme decreto de D. Rodrigo de Souza
Coutinho (SODRÉ, 2011, p. 40-1; RIZZINI, 1977, p. 170-3).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 267

Desta maneira, em 10 de setembro de 1808, surge a Gazeta do Rio de Janeiro,


impresso em quatro páginas em papel de pouca qualidade, “dando notícia apenas do
que se passava na Europa” (RAMOS, 2010. p. 70-71). Segundo Sodré (2011, p. 42),
tratava-se de “jornal oficial, feito na imprensa oficial, nada nele constituía atrativo
para o público, nem essa era a preocupação dos que o faziam, como a dos que o
haviam criado.” Era veículo essencialmente informativo, não ostentando as carac-
terísticas mais representativas do periodismo do Séc. XIX, como se verá adiante.
Apesar da Gazeta do Rio de Janeiro representar o primeiro periódico nacional
surgido em território brasileiro, é oportuno destacar que sob o critério de uma “te-
mática” nacional aquele jornal foi precedido, em alguns meses, pelo Correio Brasi-
liense (número inaugural datado de 1º de junho de 1808). Impresso no exterior (em
Londres), sob os cuidados de Hipólito José da Costa, o Correio Brasiliense tratava
de questões nacionais, usufruindo do benefício da distância e esquivando-se, sob
este artifício, dos rigores da censura. O contraponto entre esses dois periódicos é
representativo para os propósitos desta pesquisa e por isto merece especial atenção.
Comparando os dois jornais, Nelson Werneck Sodré (2011, p. 45) faz as se-
guintes considerações:

Representavam, sem a menor dúvida, tipos diversos de periodismo: a Ga-


zeta era embrião do jornal, com a periodicidade curta, intenção normativa
mais do que doutrinária, formato peculiar aos órgãos impressos do tempo,
poucas folhas, preço baixo; o Correio era brochura de mais de cem páginas,
geralmente 140, de capa azul escuro, mensal, doutrinário muito mais do
que informativo, preço muito mais alto. Pretendia, declaradamente, pesar na
opinião pública, ou o que dela existia no tempo, ao passo que a Gazeta não
tinha em alta conta essa finalidade.

Enquanto esses jornais eram impressos, a difusão das oficinas tipográficas


pelo Brasil também se tornava, lentamente, uma realidade. De acordo com Carlos
Rizzini, (1977, p. 186) era este o mapa de distribuição das tipografias no período
compreendido entre o surgimento da imprensa em território nacional e a proclama-
ção da Independência:

Até a proclamação da Independência havia, portanto, no Brasil: a Impressão


Régia; e as oficinas da Bahia, do Recife, do Maranhão e do Pará, autorizadas,
e mais duas de Vila Rica e as seis do Rio de Janeiro [dedicadas aos avulsos
políticos e ao jornalismo], estas fundadas após o alvará do príncipe regente,
de 28 de agosto de 1821, proclamando a liberdade de imprensa. Ao todo treze.

A multiplicação dos prelos tentava atender a uma demanda por divulgação de in-
formações e de opiniões. A “coincidência” entre a “novidade” que aportava no país – a
chegada da família real portuguesa – e a possibilidade de dar voz ao que se pensava
das circunstâncias decorrentes daquele fato, fez recair sobre a recém-criada imprensa
uma sobrecarga de atribuições: além da típica função informativa (modesta pretensão
da Gazeta do Rio de Janeiro), a imprensa revestia-se da intenção de instruir e de de-
268

finir tendências políticas e culturais, atraindo simpatizantes para os respectivos lados


dos confrontos de ideias que começavam a se configurar. Devido a esta conjunção de
fatores, a partir do ano de 1821 (usufruindo de alguns benefícios decorrentes da liber-
dade de imprensa) surge o que se passou a chamar de “praga periodiqueira”:

Em 1821, a ‘praga periodiqueira’, motivada pelo clima de agitação política


e pelos primeiros arroubos da liberdade de imprensa, fez explodir o número
de periódicos, que somente na capital andou ao redor de 20 até 1822. Muitos,
[...], apareciam como opúsculos ou folhetos, de curta duração e limitada cir-
culação, [...]. Outros tinham o caráter de semanários e, conforme seu êxito,
convertiam-se em diários de maior influência, portando um discurso mais po-
lítico e ideológico do que cultural, [...], com decisiva atuação nas polêmicas
travadas no processo da Independência (NEVES, 2008, p. 362).

A identificação destas características levou a classificação desta espécie de


prática jornalística como “periodismo político”. Note-se que os propósitos de co-
municação daqueles periódicos interferiam, claramente, sobre suas formas, o que
leva a autora Lúcia Neves (2008) a apresentá-los como “opúsculos” ou “folhetos”,
atribuindo-lhes “decisiva atuação nas polêmicas travadas no processo da Indepen-
dência”. A atuação e a retórica dos “homens de letras” nacionais se consolidavam.
Entre o estabelecimento da imprensa no Brasil e o advento da República, o
“periodismo político” vai passar por fases de maior e de menor prestígio. Desta for-
ma, entre os anos de 1821 e 1848, as lutas políticas representadas pela Confederação
do Equador (1824); pela abdicação de D. Pedro I (1831) e pela Revolução Praieira
(1848), entre outros eventos, foram intensamente estimuladas pelos “palcos” jorna-
lísticos e pela prática dos atores em questão.
Ainda segundo Neves (2008, p. 363), “especialmente após a Praieira (1848),
a estabilidade do Segundo Reinado levou a um relativo declínio dos jornais políti-
cos e viabilizou outros tipos de periódicos. Proliferaram as revistas literárias [...].
Nelas tornou-se comum a atuação dos homens de letras, que também publicavam
romances sob a forma de folhetim, [...]”. Esta aproximação ou este entrelaça-
mento entre os domínios jornalístico e literário é uma característica deste novo
período e não se sabe afirmar com precisão se o jornalismo absorveu a literatura
ou se a literatura passava a dominar o espaço do jornal. O certo é que o formato
e as maneiras de divulgação destes escritos continuavam ligadas ao domínio jor-
nalístico, mas os gêneros textuais ali veiculados estavam vinculados ao domínio
ficcional ou literário. Eram poemas, folhetins e escritos decorrentes destes gêne-
ros, como a crítica literária.
Nelson Werneck Sodré (2011, p. 276) também ratifica a ideia de uma nova fase
no periodismo nacional, que se estenderia desde os anos 50 até o final da década de
60 do Séc. XIX:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 269

Na fase anterior, essa não era a regra: Cipriano Barata, Soares, Borges da
Fonseca não eram homens de letras, a rigor, mas tão somente jornalistas. Mais
ainda os panfletos e os pasquineiros. Não havia, então, nos jornais, espaço
para as letras. Estas ficavam relegadas às revistas e jornais especializados,
apenas literários, e de vida efêmera quase sempre. Assim, a imprensa política
era uma, a imprensa literária era outra. Quando a primeira declina, com a
consolidação do predomínio do latifúndio, começam a fundir-se.

O fim da Guerra do Paraguai (1869/1870) anunciava o renascimento do “pe-


riodismo político”, mas é importante ressaltar que, ao contrário do que ocorrera na
transição da primeira para a segunda “fase”, o ressurgimento do periodismo político
não anula ou diminui o prestígio da veiculação de gêneros textuais vinculados ao
domínio literário no espaço do jornal. Na passagem do periodismo político decor-
rente dos fatos ligados à Independência para um periodismo que privilegiava a li-
teratura, há um declínio daquela primeira prática jornalística, enquanto prevalecia
uma tendência “literária”. Esta terceira “fase” representa um certo equilíbrio. O
papel da literatura – ou a literatura no papel – já estava estabelecida e a atividade do
autor de ficção se tornava, aos poucos, mais especializada. Por sua vez, o periodis-
mo político desta última fase também renovava-se com aquela convivência.
Esta nova fase de “agitação” durará até os anos que sucedem a proclamação
da República (1889). Neste período de transição que anuncia um novo século, a
imprensa brasileira se transforma: nas palavras de Sodré (2011, p. 404), este é o
momento que representa a passagem “da pequena à grande imprensa”:

Os pequenos jornais, as folhas tipográficas, cedem lugar às empresas jornalís-


ticas, com estrutura específica, dotadas de equipamento gráfico necessário ao
exercício de sua função. Se é, assim, afetado o plano da produção, o da circu-
lação também o é, alterando-se as relações do jornal com o anunciante, com a
política, com os leitores. [...]; o jornal será, daí por diante, empresa capitalista,
de maior ou menor porte. O jornal como empreendimento individual, como
aventura isolada, desaparece, nas grandes cidades. [...] Uma das consequên-
cias imediatas dessa transição é a redução no número de periódicos.

O panorama apresentado indica que ao contrário das gerações anteriores (Sé-


culos XVII e XVIII), que conviveram com a censura e com uma concepção “heréti-
ca” do livro, a geração oitocentista passava a vivenciar circunstâncias históricas que
lhe permitia acessar, com maior facilidade, estes instrumentos de conhecimento.
Já no final do Séc. XVIII, tem-se notícia do aparecimento de algumas bibliotecas
particulares; os estudantes traziam os livros, clandestinamente, da Europa e come-
çavam a movimentar uma incipiente circulação de textos (SODRÉ, 2011, p. 30;
BESSONI, 2008, p. 484-7), mas foi, sem dúvidas, o estabelecimento da Corte no
Rio de Janeiro, conforme sinalizado, que representou um marco para o domínio
literário nacional.
270

De acordo com Antonio Candido (2000, p. 215), o período que corresponde à


chegada da família real pode ser reconhecido como a “Época das Luzes” brasileira:

Imprensa, periódicos, escolas superiores, debate intelectual, grandes obras


públicas, contato livre com o mundo (numa palavra: a promoção das luzes)
assinalam o reinado americano de D. João VI, obrigado a criar na colônia
pontos de apoio para o funcionamento das instituições. Foi a nossa época das
Luzes, acarretando algumas consequências importantes para o desenvolvi-
mento da cultura intelectual e artística, da literatura em particular.

Os Séculos XVII e XVIII foram períodos históricos que abrigaram impor-


tantes manifestações literárias nacionais, representadas por autores como Gregório
de Matos Guerra e Padre Antônio Vieira, no Barroco e Cláudio Manuel da Costa e
Tomás Antônio Gonzaga, no Arcadismo. A diferença que parece saltar aos olhos a
partir do Séc. XIX é o papel atribuído à literatura, em um sentido amplo; não se trata
“apenas” de uma manifestação artística, mas o “fazer literário” passa a representar
um requisito intelectual que serve de referência a outras atividades.
A exigência de reunir talentos - ou, ao menos, competências - para a consoli-
dação de novas instituições nacionais, somada à escassez de atributos específicos
naquele contexto histórico, fez recair sobre o papel do erudito, do literato indícios
de “aptidão intelectual” necessários ao exercício das novas funções e serviços que
surgiam. Esta conjunção de fatores – que, inusitadamente, ligou a atividade literária
às atividades concretas e essenciais para a vida prática – fez com que o papel do
escritor fosse alçado a outros patamares:

A raridade e dificuldade de instrução, a escassez de livros, o destaque dado brus-


camente aos intelectuais (pela necessidade de recrutar entre eles funcionários,
administradores, pregadores, oradores, professores, publicistas) deram-lhes um
relevo inesperado. Daí, a sua tendência, pelo século afora, a continuar ligado às
funções de caráter público, não apenas como forma de remuneração, mas como
critério de prestígio. Acrescentemos a esses fatores a tendência associativa que
vinculava os intelectuais uns aos outros, fechando-os no sistema de solidarieda-
de e reconhecimento mútuo das sociedades político-culturais, conferindo-lhes
um timbre de exceção (CANDIDO, 2000, p. 222).

Não é por acaso que o mesmo Antonio Candido (2000, p. 226) adverte para o
fato de que a espécie de literatura que se destaca neste período (até a década de 40
do Séc. XIX) é uma literatura veiculada por “gêneros públicos”, ou seja, “a oratória,
o jornalismo e o ensaio político-social”. Era como se o exercício do “fazer literário”
precisasse se mostrar atuante diante dos novos papéis reservados aos escritores. É
interessante notar que, ao contrário do entendimento de Sodré (2011, p. 276), esta
perspectiva de análise sugere uma fusão entre o domínio jornalístico da primeira
fase do periodismo nacional e o domínio literário relacionado às primeiras quatro
décadas dos Oitocentos.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 271

Quando uma relativa estabilidade política, econômica e social se estabelece,


os “gêneros públicos” começam a perder espaço, enquanto gêneros literários pas-
sam a ser privilegiados (poemas, romances, folhetins, crítica literária), impondo-se,
inclusive, no domínio jornalístico, conforme as observações feitas anteriormente. É
o momento de efervescência do movimento Romântico.
É oportuno observar que aquilo que se costuma chamar de Romantismo re-
presentou uma espécie de “revolução cultural” (MOISÉS, 2004, p. 407), cujas ori-
gens estavam marcadas por duas grandes revoluções que marcaram a história da
humanidade: a Revolução Industrial (que começa a projetar-se, na Europa, a partir
da segunda metade do Séc. XVIII, ressaltando as contradições decorrentes dos re-
levantes avanços técnicos em contraposição às precárias condições de trabalho dos
operários) e a Revolução Francesa de 1789 (representando o declínio dos Estados
monárquicos absolutistas e a ascensão das formas governamentais republicanas)
(FALBEL, 2002, p. 23-34). Desta maneira, o Romantismo está, inicialmente, rela-
cionado às dicotomias “democracia x oligarquia” e “burguesia x aristocracia”.
A natureza “revolucionária” confere ao Romantismo um traço estrutural de
contestação em relação aos valores que lhe precederam. Sendo assim, o “Século das
Luzes” que o antecede representa o referente imediato que deve ser questionado.
Ora, se o Iluminismo representava a prioridade da Razão, o Romantismo chegava
para desestabilizar este pressuposto através do Sentimento; se a humanidade estava
objetivamente condicionada à Razão, que representava os limites do conhecimento
do homem sobre a natureza e sobre si mesmo, era necessário “libertar-se” destes
moldes rigorosos sob a inspiração do Sentimento. Esta mudança de postura e de
percepção desencadeou uma cadeia de consequências comprometidas e enraizadas
em um valor fundamental para o movimento em apreço: a Liberdade.
O desejo de liberdade que se encontrava na base do trinômio da Revolução
Francesa irradiou-se pelos ideais românticos potencializando no indivíduo a von-
tade de encontrar-se com sua natureza íntima e transcendê-la, projetando-a sobre o
ambiente que o cercava. Desta maneira, ao mesmo tempo que o Romantismo carac-
teriza-se por um “individualismo egocêntrico” (NUNES, 2002, p. 58), ele também
transfere (ou transplanta) o seu olhar para a Natureza:

Ponto cêntrico da realidade e passagem para o universo [...], o Eu, assim con-
figurado, assegurou um primado ontológico à interioridade, à vida interior,
que foi sinônimo de profundeza, espiritualidade, elevação e liberdade, [...].
O Eu transcende a Natureza física – o exterior mecânico disperso dos fenô-
menos – mas para encontrar-se, dada a essência absoluta que o Romantismo
germânico da primeira fase lhe atribuiu, ao nível orgânico das coisas, com o
entendimento interno da Natureza viva e animada (NUNES, 2002, p. 58).

Esta representação da Natureza como uma espécie de continuação ou des-


dobramento do Eu gerou outras duas características estruturais do movimento
Romântico: o nacionalismo (ressaltando os elementos peculiares e originais que
identificam uma nação ou um “Eu” nacional) e a religiosidade (voltada para uma
272

reabilitação da Natureza como fonte de vida espiritual e para um estreitamento


de relações com a Igreja Católica). Não obstante isto, vale ressaltar que a Arte
é a legítima forma de expressão deste Eu identificado com a Natureza, posto
que “[...] é na obra de arte que o Eu alcança a intuição de si mesmo como Ab-
soluto, [...]” (NUNES, 2002, p. 61). Esta autoridade concedida à Arte fez com que
o Romantismo fosse reconhecido, prioritariamente, como um movimento artístico,
mas é importante destacar que a influência de suas ideias interferiram em domínios
muito mais amplos.
A oposição aos valores do Classicismo desvia o olhar da Antiguidade e da cul-
tura Greco-romana, transferindo a atenção para a Idade Média (atenção que reforça
o interesse pela Igreja Católica) e para as culturas orientais. Este olhar voltado para o
Oriente redescobre o Sânscrito e a cultura hindu, promovendo condições favoráveis
para o surgimento de uma Linguística Histórica, trazendo contribuições fundamentais
para as ciências da linguagem (ELIA, 2002, p. 113). Por sua vez, o questionamento
das ideias iluministas também promove uma nova concepção da História, ressaltando
o problema de sua interpretação. Segundo Guinsburg (2002, p. 14-5):

[...], o Romantismo é um fato histórico e, mais do que isso, é o fato histórico


que assinala, na história da consciência humana, a relevância da consciência
histórica. É, pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou historicamen-
te. [...] [No Romantismo] O discurso histórico sofre mudança revolucionária.
Deixa de ser meramente descritivo e repetitivo, para se tornar basicamente
tanto interpretativo quanto formativo, genético. É a história que produz a ci-
vilização. Mas não a História, e sim as histórias.

De fato, o reconhecimento de um discurso do Povo (sob inspiração da Revo-


lução Francesa e em oposição à univocidade do discurso aristocrático), os fatores
que levaram a uma nova percepção do “nacional” e o enaltecimento da Arte como
forma legítima de expressão do Eu multiplicaram as possibilidades de atuação da
História, compreendendo o passado sob uma perspectiva muito mais “cultural” do
que a forma praticada anteriormente.
No Brasil, o Romantismo é introduzido por um viés, preponderantemente, li-
terário, mas as características do movimento ao lado das circunstâncias históricas
que estruturavam o país naquele momento, fizeram com que as discussões desen-
cadeadas pela nova tendência alcançassem limites mais amplos. De um lado, o na-
cionalismo romântico; de outro, um país que, aos poucos, consolidava sua situação
de independência. A reunião destes dois fatores trouxe condições propícias para a
criação de uma teoria da literatura brasileira, que destacava como um de seus prin-
cipais problemas a identificação de uma literatura autenticamente nacional. Esta
preocupação em demonstrar uma autonomia cultural em relação à antiga metrópole
promoveu uma significativa intenção de pensar o Brasil.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 273

Um dos primeiros indícios do romantismo no Brasil surgiu da obra de um au-


tor francês, Ferdinand Denis, que ensaiou os passos de uma teoria e de uma história
da literatura nacional. Segundo Candido (2004, p. 19),

[...] ele [Denis] fundou a teoria e a história da nossa literatura, baseado no


princípio, então moderno, que um país com fisionomia geográfica, étnica, so-
cial e histórica definida deveria necessariamente ter a sua literatura peculiar,
porque esta se relaciona com a natureza e a sociedade de cada lugar. Os bra-
sileiros deveriam portanto concentrar-se na descrição da sua natureza e cos-
tumes, dando realce ao índio, o habitante primitivo e por isso mais autêntico.

Além do propósito de “redescobrir” e de desvendar o Brasil, o pensamento te-


órico sobre uma literatura nacional provocou mais uma consequência fundamental:
o surgimento de uma crítica literária. A crítica nasce em decorrência da teoria que
lhe fornece as ferramentas necessárias para discutir as ideias e as obras literárias co-
locadas em circulação. Desta maneira, a crítica romântica nacional aparece marcada
pela intenção de revelar o significado de uma literatura brasileira, representando
um dos principais gêneros pertencentes ao domínio literário no período em apreço.
Note-se que este relevo patriótico não era contrário à tradição, ao contrário disto
algumas atividades ligadas ao movimento romântico no Brasil (como a criação do
Instituto Histórico em 1839) foram apoiadas pelo Imperador Pedro II.

4. A construção da retórica do homem de letras nacional

A interferência dos discursos literário e jornalístico produziram uma conse-


quência fundamental na atividade dos “homens de letras” nacionais: o uso de re-
cursos narrativos estendidos a diversos e inusitados domínios discursivos, como o
domínio jurídico. Mas qual seria o significado da utilização dos recursos narrativos?
A narração pode ser concebida em dois sentidos fundamentais, “conforme o seu
enquadramento na arte oratória ou na prosa de ficção.”; na arte oratória, a narração
corresponde à exposição dos fatos, enquanto na ficção está associada ao relato de
acontecimentos, “[...] envolvendo, por conseguinte, a ação, o movimento e o trans-
correr do tempo” (MOISÉS, 2004, p. 314).
O sentido que se pretende destacar neste texto talvez esteja mais relaciona-
do com aquele que narra do que, exatamente, com o conceito ou com a definição
precisa da narração. O indivíduo que narra – o narrador – é aquele que conta uma
história, conservando um espaço preciso para o relato da experiência.
Segundo Walter Benjamin (1994, p. 200):

[...] o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se ‘dar conselhos’
parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mes-
mos nem aos outros. [...] O conselho tecido na substância viva da existência
tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria
– o lado épico da verdade – está em extinção.
274

A sabedoria decorrente da arte de narrar é proveniente da capacidade de ob-


servar, do “dom de ouvir” e de apropriar-se de outras histórias para reinventá-las e
partilhá-las com outros ouvintes (ou leitores) em uma estrutura circular e infinita,
como o fio tecido pelo tempo. Benjamim (1994, p. 203) defende esta liberdade de
interpretação promovida pela narrativa da seguinte maneira:

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos po-


bres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acom-
panhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece
está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade
da arte narrativa está em evitar explicações.

Mas de que maneira esta relativa ausência ou esta diminuição de ênfase nas
explicações poderiam ser úteis ou adequadas ao desenvolvimento de textos teóricos,
como os textos privilegiado pela escrita jurídica? Ou seja, de que maneira se justifi-
ca o elogio ao papel do narrador no domínio jurídico? Exatamente pelo lado oposto
desta constatação, ou seja, a diminuição de ênfase nas explicações é compensada
pelo privilégio da experiência e pelas possibilidades decorrentes do exercício da
dúvida e das contradições.
O narrador não está tão preocupado em fornecer respostas corretas; esta não
é a sua função. O narrador preocupa-se em contar uma história; a sua história. E o
narrador preocupa-se em interagir com o leitor, criando oportunidades para que a
sua experiência passe a fazer parte da vida daquele que o lê. Esta perspectiva é uma
contribuição fundamental dos “homens de letras” do Séc. XIX: o registro para os
seus contemporâneos e para as gerações futuras da sua experiência com o direito,
da sua maneira peculiar de vivenciá-lo e de compreendê-lo, demonstrando que o
direito é um objeto, essencialmente, histórico. Se aqueles autores e pensadores esti-
vessem concentrados no objetivo de elaborar respostas corretas, unidas em torno de
“verdades”, é possível que suas ideias não promovessem discussões e indagações ao
longo do tempo; elas estariam, simplesmente, ultrapassadas.
Promovendo a relação entre texto e contexto (“contando sua história”), a re-
tórica dos “homens de letras” do Sec. XIX permitiram que o objeto jurídico fosse
renovado e atualizado aos olhos de sucessivos leitores; não por intermédio de con-
ceitos – que podem se tornar ultrapassados –, mas através da experiência – que
representa, perenemente, um elemento de identificação com o leitor.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 275

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola (2007). Dicionário de Filosofia. 5ª Ed. São Paulo: Mar-


tins Fontes.
ADEODATO, João Maurício (2009). A Retórica Constitucional (sobre tolerância,
direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva.
ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel (2005). Prefácio e introdução à Retórica de Aris-
tóteles. 2ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda
ARISTÓTELES (1999). Poética. Tradução; Prefácio; Introdução; Comentários e
Apêndices: Eudoro de Souza. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda.
______ (2005). Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior. 2ª ed.
Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda.
BARTHES, Roland (1975). A retórica antiga. In: COHEN, Jean et al. (org.). Pes-
quisas de retórica. Petrópolis: Vozes.
BENJAMIN, Walter (1994). Magia e técnica. Arte e política: ensaios sobre litera-
tura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense.
BEVILÁQUA, Clóvis (1902). Estudos de direito e economia política. Rio de Ja-
neiro: H. Garnier.
BOURDIEU, Pierre (2007). O Poder Simbólico. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
CANDIDO, Antonio (2000). Formação da Literatura Brasileira: momentos deci-
sivos. 6ª Ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda.
______ (2004). O Romantismo no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Humanitas; FFLCH.
CARLYLE, Thomas (1924). On Heroes, hero-worship and the heroic in history.
Disponível em <http://books.google.com.books?id=kC-AAAAYAAJ&pg=PA183&
source=Gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false>. [1841], 1924.
EAGLETON, Terry (1991). A Função da Crítica. São Paulo: Martins Fontes Editora.
ELIA, Sílvio (2008). Romantismo e linguística. In: GUINSBURG, J. (Org.). O Ro-
mantismo. São Paulo: Perspectiva.
FALBEL, Nachman (2008). Os fundamentos históricos do romantismo. In: GUINS-
BURG, J. (Org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva.
GUINSBURG, J. (2008). Romantismo, historicismo e história. In: GUINSBURG,
J. (Org.). O Romantismo. São Paulo: Perspectiva.
HORÁCIO (1997). Arte Poética. In: A Poética Clássica. Introdução de Roberto de
Oliveira Bransão. Tradução direta do grego e do latim de Jaime Bruna. 7ª Ed. São
Paulo: Cultrix.
HOUAISS, Antônio (1991). O que é língua. São Paulo: Brasiliense, 1991.
JAEGER, Werner (2003). Paideia: a formação do homem grego. 4ª Ed. São Paulo:
Martins Fontes.
JANSON, H.W; JANSON, Anthony F. (1996). Iniciação à história da arte. 2ª Ed.
São Paulo: Martins Fontes.
MOISÉS, Massaud (2004). Dicionário de termos literários. 12ª Ed. São
Paulo: Cultrix.
276

NEVES, Lúcia Bastos Pereira das (2008). Panfletos. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.).
Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva.
NUNES, Benedito (2008). A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O Ro-
mantismo. São Paulo: Perspectiva.
PESSANHA, José Américo Motta (2000). Vida e obra. In: Os Pré-Socráticos
(fragmentos, doxografia e comentários). São Paulo: Nova Cultural.
RAMOS, Henrique Cesar Monteiro Barahona (2010). O Periodismo jurídico brasi-
leiro do Século XIX. In: Passagens. Revista Internacional de História Política e
Cultura Jurídica. Rio de Janeiro: vol. 2 nº 3, Janeiro 2010, p. 54-97.
REBOUL, Olivier (2004). Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.
RICOUR, Paul (2005). A metáfora viva. 2ª Ed. São Paulo: Edições Loyola.
RIZZINI, Carlos (1977). O jornalismo antes da tipografia. São Paulo: Companhia
Editora Nacional.
SARTRE, Jean Paul (1999). Os Tempos Modernos. In: BASTOS, Elide Rugai;
RÊGO, Walquíria D. Leão (Orgs.). Intelectuais e Política. A moralidade do com-
promisso. São Paulo: Olho d’Água.
SODRÉ, Nelson Werneck (2011). História da imprensa no Brasil. São Paulo: IN-
TERCOM; Porto Alegre: EDIPUCRS.
O DIREITO DE RESISTÊNCIA E A
DICOTOMIA RETÓRICA DAS FORMAS
DE GOVERNO EM CIPRIANO BARATA:
a influência original do periódico Sentinela
da Liberdade para a legitimação jurídica
das revoluções liberais do Século xix
e derrocada do Império brasileiro
Francisco Arthur de Siqueira Muniz

Resumo: Busca-se evidenciar a existência de originalidade e continuidade na


formação do pensamento jurídico brasileiro, mediante a análise das retóricas
das ideias jurídicas difundidas por Cipriano Barata no contexto histórico do
início do Século XIX. Focam-se aspectos de sua obra, do ponto de vista filo-
sófico e jurídico, em especial, a sua argumentação acerca do direito natural
de resistência e da dicotomia retórica das formas de governo. Pretende-se
caracterizar o desenvolvimento da nação brasileira e suas instituições como
não apenas decorrentes da reprodução do pensamento estrangeiro, mas sim
marcado por arroubos de originalidade, cujos frutos ainda hoje são percebi-
dos no nosso ordenamento jurídico.
Palavras-chave: Retóricas. Cipriano Barata. Direito de resistência. História
do Direito brasileiro.
Abstract: This paper aims to demonstrate the originality and continuity on
the development of Brazilian legal thought, through the rhetorical analysis
of the legal ideas spread by Cipriano Barata in the context of the beginning
of the 19th century. The article focuses on some aspects of his work, from
a philosophical and legal perspective, in particular, his discourse on the
natural right of resistance and on rethorical dichotomy of government forms.
Ultimately, the paper intends to describe Brazilian national development, in
its political and legal institutions, not simply as the reproduction of foreign
thought, but as it is marked by bursts of originality, whose fruits are still
perceived in our legal system.
Keywords: Rhetorical. Cipriano Barata. Right of resistance. History of
Brazilian law.
Sumário: Introdução: impostação do problema e método de análise retórica
das ideias jurídicas. 1. O resgate da história do direito brasileiro: em busca
de originalidade e continuidade no pensamento jurídico periférico. 2. Análise
da história das ideias jurídicas mediante as três dimensões da retórica. 3. As
ideias e os acontecimentos históricos da instituição de um Estado e da forma-
ção de uma nação: o primeiro plano da realidade em que vivia o “homem de
todas as revoluções” – a retórica material. 4. A argumentação e o ornatus de
Cipriano Barata – a retórica estratégica. 4.1. Dois momentos. 4.2. O ethos,
278

o pathos e o logos da argumentação de Cipriano Barata no jornal “Sentinela


da Liberdade”. 4.3. O ornatus de Cipriano Barata: a retórica que ultrapassa
a linguagem escrita e se completa nas vestes e entonações do orador. 5. Uma
análise metódica na desconstrução do jornal “Sentinela da Liberdade”: como
a retórica das ideias jurídicas de Cipriano Barata o transformou em um dos
personagens mais influentes do Brasil no século XIX – a retórica analítica.
Conclusões: a legitimação jurídica das revoluções liberais do Século XIX
e a instauração das bases da derrocada do império extraídas do pensamento
original do “Sentinela da Liberdade”. Referências.

Introdução: impostação do problema


e método de análise retórica das ideias jurídicas

Existe um pensamento jurídico originalmente brasileiro? É no intuito de res-


ponder a pergunta que se desenvolveu o presente trabalho, no qual se busca obser-
var se o desenvolvimento da nação e de suas instituições político-jurídicas não foi
apenas fruto da reprodução do pensamento estrangeiro, mas também marcado por
arroubos de originalidade, cujos frutos ainda hoje são percebidos no nosso ordena-
mento jurídico. A posição sustentada ao longo deste artigo busca uma perspectiva
retórica acerca das ideias que constituem o arcabouço político-jurídico brasileiro do
Século XIX, em contraposto à visão positivista tradicional aqui ilustrada pela asser-
tiva de Gilmar Ferreira Mendes, para quem o país “apenas refletia o que nos vinha
de fora, numa espécie de ‘fatalismo intelectual’ que subjuga as culturas nascentes...”
(MENDES, 2008, p. 163).
Além da pesquisa bibliográfica, foi realizada pesquisa de campo nos Arquivos
Públicos dos Estados de Pernambuco e da Bahia, além do Acervo Geral da Uni-
versidade de Coimbra. O objetivo desta fase inicial de pesquisa era a colheita de
material biográfico de Cipriano Barata, bem como obter cópia dos exemplares ori-
ginais do seu periódico, então escassos e de difícil acesso a todos os que não lidam
diretamente com as pesquisas históricas, razões suficientes para justificar a ausência
de estudos sobre o autor pelos pesquisadores do Direito.
A metodologia utilizada no estudo da influência do pensamento de Cipriano
Barata na história das ideias jurídicas no Brasil é lastreada nas três dimensões da
retórica: como método (retórica material), metodologia (retórica estratégica) e me-
tódica (retórica analítica). Ressalte-se que o aprofundamento da concepção tripartite
da retórica apenas se deu com a publicação, quase um ano após da conclusão deste
artigo, da tese apresentada para o concurso de livre-docente da USP pelo Dr. João
Maurício Adeodato (2011), obra para a qual remetemos para maiores aprofunda-
mentos do marco teórico sobre o qual se desenvolve a pesquisa ora apresentada.
É mediante a compreensão da retórica em seus distintos níveis que analisamos
a influência de Cipriano Barata no contexto jurídico-político e social de seu tempo
que buscamos trabalhar, por conseguinte, a hipótese de pesquisa formulada.
Toma-se por paradigma o ambiente histórico do advento da nação brasileira, o
desenvolvimento das instituições jurídicas do país e a influência de Cipriano Barata
no Brasil do Século XIX.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 279

Tratamos inicialmente da importância do estudo da história do direito para a


formação do Bacharel em Direito e discorremos sobre a atual situação do ensino da
disciplina no Brasil e na Europa. Na segunda seção, minudenciamos o método de
análise utilizado na presente monografia para o estudo da história das ideias jurí-
dicas do Brasil, mediante delimitação do marco teórico utilizado. A terceira seção
é dedicada a uma síntese biográfica de Cipriano Barata e à contextualização do
ambiente histórico em que se divulgaram suas ideias. A seção seguinte explicita as
ideias e os métodos de argumentação divulgados por Cipriano em seu jornal “Sen-
tinela da Liberdade”, enquanto na quinta seção é realizado o cotejo entre as ideias e
os acontecimentos históricos influenciados por Cipriano Barata, bem como a influ-
ência de seu pensamento para o sistema jurídico brasileiro. Ao final, sintetizamos as
conclusões obtidas mediante a aplicação do marco teórico utilizado ao estudo das
retóricas da história das ideias jurídicas de Cipriano Barata no contexto do Brasil
do Século XIX.

1. O resgate da história do direito brasileiro:


em busca de originalidade e continuidade no
pensamento jurídico periférico

Resgatar as raízes do direito brasileiro, de forma a compreender holisticamen-


te o ordenamento jurídico contemporâneo do país, cuja gênese vai além da adapta-
ção da práxis estrangeira à realidade político-social do Brasil, realçando o papel das
ideias de personagens históricos nacionais hodiernamente esquecidos em decorrên-
cia de um ensino cada vez mais tecnicista e menos zetético. Esses foram alguns dos
objetivos da revisão curricular proposta pelo MEC e auspiciada pela OAB, concre-
tizada na Portaria n° 1886/94 do Ministério da Educação e revogada pela Resolução
CNE/CES n. 9, de 29 de setembro de 2004, que fixa os currículos mínimos e as
diretrizes dos cursos de direito, tornando Sociologia do Direito e História do Direito
disciplinas mais presentes nas faculdades do país.
A História do Direito no Brasil comporta, pois, inestimável contribuição ao
delinear, em conjunto com a Sociologia do Direito, a gênese da nossa ordem jurídi-
ca, bem como o perfil dos aplicadores da lei e dos agentes de transformação do or-
denamento jurídico, informações que podem e devem iluminar uma nova práxis dos
operadores do direito, enquanto agentes sociais. Nesse sentido, a lição do professor
Waldemar Ferreira (1928 apud AZEVEDO, 2007, p. 36):

Nenhum jurista pode dispensar o contingente do passado a fim de bem com-


preender as instituições jurídicas dos dias atuais. Ninguém é capaz de dar
um passo à vanguarda, adiantando um, sem deixar o outro pé na retaguarda.
Diferentemente não se realizam caminhadas.
280

Estudar a História do Direito no Brasil significa reaprender a valorizar a rique-


za cultural produzida ao longo de séculos pela nossa sociedade, a despeito dessa tra-
jetória não ser devidamente retratada pela historiografia oficial, sendo esses lapsos
refletidos, por conseguinte, nas obras jurídicas dogmáticas contemporâneas.
É, pois, papel do pesquisador da História do Direito questionar o conhe-
cimento dogmático e tentar introduzir uma visão sociopolítica da historicidade
jurídica, de forma a desmistificar o Direito por meio da reordenação metodoló-
gica e da inserção da interdisciplinaridade, atitudes cujo escopo é trazer ao lume
personagens e ideias basilares das instituições jurídicas do Brasil apagados pela
historiografia jurídica, e demonstrar a originalidade e importância desta herança
para o direito brasileiro contemporâneo.
O conservadorismo da historiografia jurídica é refletido na visão tradicional da
doutrina sobre a formação do direito brasileiro, que – na introdução deste trabalho
– exemplificamos pela assertiva de Gilmar Mendes. O Ministro observa a história
sob o prisma do racionalismo cartesiano, que estabeleceu uma concepção etiológica
e escatológica dos estudos históricos (ADEODATO, 2009, p. 25), ou seja, uma su-
cessão natural de causas e efeitos repetíveis e reproduzíveis, a qual impregnou todas
as áreas do conhecimento humano e reduz o conhecimento aos modelos científico-
-positivos (SALDANHA, 2005, p. 17).
O historicismo da visão retórica aqui utilizada, entretanto, considera a história
sisífica (ADEODATO, 2007, p. 266), irrepetível, não linear ou pensada em termos
causais, pois, conforme alerta Nietzsche (2008, p. 34-36),

No fundo o que foi possível outrora não poderia se reproduzir uma segunda
vez, a menos que os pitagóricos tivessem razão em acreditar que uma mes-
ma constelação dos corpos celestes produzisse até nos mínimos detalhes os
mesmos acontecimentos na terra, de modo que, quando as estrelas ocuparem
a mesma posição uma com relação às outras, um estoico se uniria a um epi-
curista, César seria assassinado e, de novo, em outras condições, Colombo
descobriria a América. Se a terra recomeçasse cada vez seu espetáculo após o
final do quinto ato, se fosse certo que o mesmo encadeamento de motivos, o
mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe fosse apresentada em intervalos
determinados, somente então o homem poderoso poderia reivindicar a histó-
ria monumental, em toda a sua veracidade icônica, exigindo cada ato segundo
sua particularidade exatamente descrita. Isso provavelmente não será o caso
antes que os astrônomos se tornem astrólogos. Até lá a história monumental
não poderá usar essa plena veracidade, sempre haverá de recriminar o que
é desigual, haverá de generalizar para tornar equivalente, sempre haverá de
enfraquecer a diferença dos móveis e dos motivos, para apresentar os acon-
tecimentos à custa dos efeitos e das causas, sob seu aspecto monumental, ou
seja, como monumentos dignos de ser imitados. [...] Portanto, quando a con-
sideração monumental do passado domina as outras maneiras de considerar
as coisas, quero dizer as maneiras antiquadas e críticas, o próprio passado
padece com isso. Períodos inteiros são esquecidos, são desprezados, são dei-
xados de escoar como uma grande onda cinzenta da qual só emergem alguns
fatos semelhantes a ilhotas enfeitadas.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 281

Não se confunde o historicismo da visão retórica com a historiografia tradi-


cional, impregnada com a ideia de que o próprio saber histórico, assim como as
demais ciências sociais, ruma ao progresso, em direção à construção de um domínio
e metodologias consensuais entre os seus observadores, um processo altamente con-
tencioso e que duraria três séculos (LLOYD, 1995, p. 42). Uma unidade épica da
narrativa das ciências sociais e dos tempos históricos (KOSELLECK, 2006, p. 50)
é substituída pela ideia que

Passado e futuro jamais chegam a coincidir, assim como uma expectativa


jamais pode ser deduzida totalmente da experiência. Uma experiência, uma
vez feita, está completa na medida em que suas causas são passadas, ao passo
que a experiência futura, antecipada como expectativa, se decompõe em uma
infinidade de momentos temporais (KOSELLECK, 2006, p. 310).

Afasta-se, pois, a previsibilidade dos acontecimentos em prol da revalorização


do caos, que não se traduz em uma visão negativa do futuro (SANTOS, 2011, p. 80),
mas sim de suspensão de juízos (epoché ou epokhé) sobre o mundo e o devir, cuja
consequência é o prudente silêncio, a afasia, ante a ignorância do cerne das coisas
(ADEODATO, 2006, p. 354-355), um ceticismo de cunho pirrônico que, aliado ao
historicismo sisífico, constitui pressuposto para o estudo da história do direito me-
diante a tripartição da retórica adiante exposta.
Para além de uma mera importação de ideias estrangeiras, uma visão retórica da
história do direito brasileiro observa não só a impossibilidade de se reproduzir o pen-
samento alienígena no país – dado o contexto histórico, social e econômico completa-
mente diverso daquele observado na modernidade central europeia e norte-americana
–, como também a existência de uma preocupação dos pensadores nacionais com a
singularidade, a identidade cultural, a diferenciação do seu pensamento em relação ao
que vem de fora e é por eles utilizado (FERREIRA, 2008, p. 44).
É diante uma visão retórica do historicismo que são trazidos ao lume os perso-
nagens cuja influência para a formação do sistema jurídico-político do país é obnu-
bilada pelos estudos históricos tradicionais sobre o direito brasileiro, ao exemplo de
Cipriano Barata. Para Caio Prado Junior (1963, p. 209), embora esquecido, “Cipria-
no Barata ombreia vantajosamente com qualquer das grandes figuras consagradas
daqueles anos de luta que transformaram o Brasil de colônia em nação livre, e de-
ram ao povo brasileiro suas primeiras liberdades”. Foi diretamente ao povo, e “daí,
talvez, o relativo desprezo que a história oficial lhe dedica”.

2. A análise da história das Ideias Jurídicas


mediante as três dimensões da retórica

A análise do momento histórico vivido por Cipriano Barata e sua influência no


contexto social encontrado no Brasil do Século XIX é aqui realizada com espeque
no ramo da História denominado História das Ideias. Sintetiza Christopher Lloyd
(1995, p. 117) o conceito deste ramo dos estudos históricos:
282

‘Ideias’ em geral se refere a conceitos explícitos publicamente afirmados, re-


gistrados e compartilhados, que se admitem terem uma história passível de
ser estudada. Assim, história das ideias ou história intelectual foi tradicional-
mente o estudo do desenvolvimento e influência social de certos conceitos
– chave no discurso filosófico e da ciência social.

Se, no entender de Garcia (2007, p. 379), “A História das Ideias se interessa


pelos fatores dinâmicos constantes, pelas ideias que dão lugar a consequências na
história do pensamento”, o presente trabalho restringiu-se ao estudo das ideias de
Cipriano Barata que influenciaram as instituições jurídicas brasileiras, ou seja, à
História das Ideias Jurídicas no Brasil.
Para interpretar e sistematizar os dados obtidos mediante o estudo da influência
de Cipriano Barata na História das Ideias Jurídicas no Brasil, tomamos por marco
teórico a metodologia desenvolvida por João Maurício Adeodato (2009, p. 15-45)
acerca das três dimensões da retórica: como método (retórica material), metodologia
(retórica estratégica) e metódica (retórica analítica).
A utilização das retóricas como instrumental para compreender o desenvol-
vimento das ideias jurídico-filosóficas que formam o nosso ordenamento toma por
base o pressuposto gnoseológico da visão de mundo caracterizada pelo dualismo da
antropologia filosófica, que observa o homem como um ser pobre ou um ser rico
(BLUMENBERG, 1999, p. 115). Em ultima instância, a dicotomia reflete o embate
entre o pensamento clássico de Parmênides e Heráclito, que representa a oposição
entre a ontologia e a retórica.
Para a ontologia, lastreada no pensamento do filósofo Parmênides, o ser huma-
no seria um ente “rico” ou pleno, cuja linguagem existe para refletir e descrever os
dados ônticos preexistentes da realidade. Heráclito, por seu turno, considera o ser
humano “pobre” ou carente, para quem a linguagem constitui seu único ambiente,
isto é, não existiriam critérios para a descoberta de uma verdade “objetiva”, pois
todo objeto é formado pela própria linguagem e todo conhecimento consiste de
acordos linguísticos intersubjetivos de maior ou menor permanência no tempo, mas
todos circunstanciais, temporários, autorreferentes e assim passíveis de constantes
rompimentos (ADEODATO, 1996, p. 197-198). Para a visão retórica, as ideias for-
mariam um cosmos que o mundo aparente reproduziria (BLUMENBERG, 1999,
p. 118) e a relação do homem com a realidade é indireta, seletiva e, antes de tudo,
metafórica (BLUMENBERG, 1999, p. 125).
Tomado por pressuposto que não existem eventos “em si”, que a realidade é
comunicação, impossível encontrar, portanto, “a” verdade, conclui-se que não só
a linguagem é retórica, por traduzir uma doxa e não uma epistéme (BALLWEG,
1991, p. 176), como o próprio ambiente social em que vivemos o é. Aos fatos,
ao ambiente formado pelas ideias transmitidas nas interações entre os utentes da
língua, ou seja, ao que se compreende por “realidade”, Ballweg denomina retórica
material (BALLWEG, 1991, p. 176).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 283

Busca-se no primeiro nível da retórica, a material, observar como a sociedade


reage aos relatos e às ideias apreendidas das comunicações intersubjetivas. Essa di-
mensão material corresponde, pois, ao método, literal e etimologicamente ao cami-
nho (όδóς, odos) (ADEODATO, 2009, p. 38) que as pessoas adotam, os relatos que
compõem os “fatos” da vida, os discursos retoricamente regulados, ou seja, ações e
reações linguísticas a estímulos também linguísticos.
Em síntese, constitui-se a retórica material pelas ideias, apreendidas por meio
da circulação das palavras que as designam, situadas nos seus enraizamentos so-
ciais, pensadas na sua carga afetiva e emocional, tanto quanto no seu conteúdo
intelectual, que se tornam, assim, tal como os mitos ou os complexos de valores, as
forças coletivas pelas quais os homens vivem o seu tempo e, portanto, as componen-
tes da “psique coletiva” de uma civilização. (CHARTIER, 1990, p. 43)
A retórica estratégica, por seu turno, reflete sobre os métodos e sua interferên-
cia nos meios, se observa o aprender a falar bem para convencer os outros, a persua-
são utilizada pelos autores. É o estudo dos métodos (metodologia) com a finalidade
de mudar, transformar ou conformar os métodos do primeiro nível retórico. Nesse
sentido, a tópica, a teoria da argumentação, as figuras de linguagem e de estilo e,
no direito, as doutrinas dogmáticas, todas constituem-se metodologias. Elas tratam
justamente de quais topoi aparecem mais frequentemente em um discurso, que mé-
todos são empregados para esse ou aquele efeito, como os lugares-comuns retóricos
são construídos e trabalhados, que táticas, palavras, gestos melhor produzem os
efeitos desejados para o construtor do discurso.
Por fim, a retórica analítica, o terceiro nível da retórica, é o último e tem caráter
descritivo, centra-se na observação que se forma a partir dos dois níveis anteriores, nas
relações entre a retórica material e estratégica, sendo, pois uma metódica. É o olhar
externo, de quem estuda um segundo nível reflexivo ou uma metarreflexão retórica.
A visão metódica que consubstancia a retórica analítica afasta, pois, a tradicio-
nal e reducionista análise da retórica como simples ornamento ou instrumento para
esconder as fragilidades do discurso. Da mesma forma, refuta a posição defendida
pela corrente dominante entre os próprios retóricos, no sentido de que a retórica se
dirige exclusivamente à persuasão. Em síntese, ambas as teses reduzem metoni-
micamente a retórica a seu nível estratégico (a suas metodologias), fundamental,
porém, não a única dimensão existente. Trata-se, portanto, de uma teoria, não sobre
os métodos efetivamente aplicados, como o faz a retórica metodológica, mas sim
sobre o funcionamento das metodologias sobre os métodos, dissecando-as em uma
postura denominada de metódica desestruturante (ADEODATO, 2009, p.39), dado
o seu caráter avalorativo, ao revés do que propugna Müller em sua metódica estru-
turante do direito, constituída como uma teoria da prática decisória na busca pela
racionalidade na escolha entre valores (MÜLLER, 2009, passim).
Após a formação da hipótese de pesquisa (“existe um pensamento jurídico
originalmente brasileiro?”), delimitado o objeto de estudo (as ideias difundidas por
Cipriano Barata) e o método utilizado (a história das ideias jurídicas do Brasil ana-
lisada por meio das três dimensões da retórica), restringimos o objeto da presente
284

monografia à seguinte problematização: A original influência das ideias de Cipriano


Barata, em especial, o que denominamos por “dicotomia retórica das formas de
governo” e o direito de resistência na formação brasileira do ideário republicano.
Em primeiro lugar, faremos, pois, uma breve retrospectiva biográfica de Ci-
priano Barata e, em seguida, analisaremos o ambiente histórico que influenciou
Cipriano Barata e também foi por ele influenciado, o contexto social, econômico,
político e jurídico do Brasil no início do Século XIX: a retórica material.

3. As ideias e os acontecimentos históricos da instituição de um


estado e da formação de uma nação: o primeiro
plano da realidade em que vivia o “homem de
todas as revoluções” – a retórica material

Cipriano José Barata de Almeida - o “Homem de Todas as Revoluções” – nas-


ceu em 26/09/1762, em Salvador, um ano antes da transferência da capital para o
Rio de Janeiro. Filho de tenente, originado em família da classe média, matriculou-
-se em 1786 no curso de Filosofia na Universidade de Coimbra, onde também ini-
ciaria estudos em Medicina e Matemática. Em 1788 foram registradas catorze faltas
“sem justificativa” à Universidade, ano em que foi interrogado pela Mesa da Inqui-
sição em Coimbra, acusado de heresia (MOREL, 2008, p. 18). Conforme pesquisa
realizada in loco por nós, apesar de seu comportamento desviante, Cipriano era alu-
no de destaque, pois sempre foi aprovado nemine discrepante ao longo dos quatro
anos do curso, tendo obtido o grau de Bacharel em Filosofia em 9 de julho de 1790.
Entre 1797 e 1798, Cipriano Barata, que retornara de Portugal é objeto de de-
núncias enviadas à rainha d. Maria I e ao Santo Ofício pelo padre José da Fonseca
Neves, capelão de engenhos próximos a Salvador, que o acusa de pregações aos
“rústicos povos” e de práticas heréticas (MOREL, 2001, p. 41-42). Em 12 de agosto
de 1798, “papéis sediciosos” eram espalhados por Salvador, proclamando uma “Re-
pública Bahiense”, poucos dias antes de Cipriano ser preso acusado de participação
na Conjuração Baiana (MOREL, 2008, p. 19). Passou mais de um ano detido e,
apesar de evidências contrárias, nega participação no episódio e foi absolvido em
5 de novembro de 1799 “pela nímia debilidade da prova e em atenção também, a
que têm purgado no dilatado tempo de prisão algum indício que contra eles pudesse
resultar” (GARCIA, 1997, p. 33), quatro dias antes da morte e esquartejamento dos
mártires da Conjuração Baiana. Posteriormente, Cipriano seria o único a lembrar,
positiva e publicamente, a participação nestes episódios, lembrando que estivera
preso em 1798 “pelo bem da pátria” (MOREL, 2001, p. 81).
A proclamação da República em Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Nor-
te, em 1817 causou estado de alerta nas autoridades baianas em relação a Cipriano
Barata, tido como articulador do movimento na Bahia e, por isso, “convidado” a
uma reunião no Palácio da Bahia pelo Conde dos Arcos, que lhe ameaça deca-
pitação (MOREL, 2008, p. 19). Quando os líderes da revolução de Pernambuco
são transferidos à Bahia (inclusive Frei Caneca, origem da amizade entre os dois
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 285

revolucionários), presta assistência aos presos e luta pela anistia (MOREL, 1986,
p. 30-31). Em 1821, após o Movimento Constitucionalista do Porto, que na Bahia
teve Cipriano Barata como um dos lideres, é eleito deputado nas Cortes de Lisboa,
que fariam a Constituição do Reino Unido. Após se envolver, e conseguir sobre-
viver, à conjuração baiana e à revolução pernambucana de 1817, movimentos de
cunho republicanismo e separatistas, “Barata optava, neste momento, pela redefi-
nição de direitos e liberdades no interior da monarquia luso-brasileira” (MOREL,
2008, p. 19).
Após um ano de intensa atividade parlamentar nas Cortes de Lisboa, rompe
com a constituinte, que adquiriu nítido caráter recolonizador e, em 6 de outubro de
1822, foge com mais seis deputados brasileiros para Londres (Padre Diogo Fei-
jó, Antonio Carlos Andrada, Nicolau Vergueiro, Costa Aguiar, Agostinho Gomes e
Lino Coutinho), de onde retorna ao Brasil, fixando residência na Rua Nova, centro
do Recife (MOREL, 1986, p. 38-39). Em 12 de outubro daquele mesmo ano, acla-
mava-se o Imperador a inaugura-se o Primeiro Reinado do Brasil.
Em 1823, cria o jornal “Sentinela da Liberdade”. As ideias liberais de Barata
incomodam as elites dominantes ao ponto de José Bonifácio determinar providên-
cias para a expulsão do ex-deputado do Recife. Em razão das notícias da iminente
expulsão de Cipriano da atual capital pernambucana, a Bahia o elege deputado à
Assembleia Constituinte, apesar de não residir naquela localidade desde o seu re-
gresso da Europa (GARCIA, 1997, p. 82). Recusa-se, entretanto, a tomar posse,
sob o argumento do caráter despótico e pouco aberto às discussões livres naquele
ambiente cercado por baionetas do imperador (MOREL, 2001, p. 178). Em novem-
bro do mesmo ano, é preso em sua residência no Recife e levado para a Fortaleza
do Brum, de onde é transferido um mês depois para a Fortaleza de Santa Cruz, no
Rio de Janeiro. No intermédio de sua transferência a Assembleia Constituinte fora
dissolvida pelo imperador.
A partir de então, Cipriano Barata enfrenta um cativeiro que perdura quase
todo o primeiro Reinado, grande parte isolado e impossibilitado de publicar seu
jornal. À época da promulgação da Constituição, em março de 1824, Barata conti-
nuava preso de forma ilegal e sem acusação formal. No mês de julho é proclamada a
Confederação do Equador, revolução de que pode ser considerado um dos prepara-
dores doutrinários e práticos. Pouco depois da eclosão do movimento, é condenado
à prisão perpétua (MOREL, 2008, p. 20).
Com a crise do Primeiro Reinado, Cipriano teve provida uma revisão proces-
sual e foi solto em setembro de 1830, quando retorna à Bahia e torna-se partícipe da
oposição ao imperador e ao projeto político-jurídico-social que se implantava no país.
Em janeiro de 1831 retoma seu jornal, até ser novamente preso três meses depois e
enviado ao Rio de Janeiro, acusado de “haitianismo”. Peregrina por inúmeras prisões,
de onde editava esporadicamente seu jornal e, septuagenário, é condenado a dez anos
de prisão com trabalhos forçados. Em 1833, é transferido à Bahia e, mesmo preso, re-
cebe votação para Senador pela Paraíba (MOREL, 2008, p. 21). Consegue a liberdade
em 1834 e vai morar novamente no Recife, onde retoma o seu periódico e é votado
novamente para Senador pela Paraíba, para Regente (o eleito é o padre Feijó a quem
faz oposição) e para o Senado por Minas Gerais (MOREL, 2008, p. 22).
286

A sua indicação para representante de províncias espalhadas pelo Brasil, pos-


sível em virtude do permissivo legal inserto no art. 96 da Constituição de 1824
(“Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis
em cada Districto Eleitoral para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não
sejam nascidos, residentes ou domiciliados.”), é, pois, indicativo da popularidade
que gozava no país.
Candidato a Senador pela Bahia em 1835, em 26 de setembro, data de seu 73º
aniversário, encerra definitivamente seu jornal em Pernambuco. Muda-se para a Pa-
raíba, mas as perseguições continuam e é forçado a sair de lá. No começo de 1837
vai morar em Natal-RN a convite do presidente da Província, onde falece em 1° de
junho de 1838 (MOREL, 2008, p. 22).
Fácil observar que Cipriano Barata foi protagonista de um dos momentos mais
conturbados da historiografia brasileira. No campo político-jurídico, a Monarquia
constitucional surgida após a Carta de 1824 era permeada por faculdades autocrá-
ticas conferidas ao Imperador (MENDES, 2008, p. 165), cujo poder moderador,
considerado “a constitucionalização do absolutismo” (BONAVIDES, 2002, p. 105),
caracterizar-se-ia como a anomalia mais marcante daquele regime jurídico, em rela-
ção ao modelo tripartite concebido por Montesquieu.
O arcabouço constitucional formulado pelo Imperador D. Pedro I influenciou
sobremaneira a sociedade civil brasileira que se formava. Em oposição à forma de
governo então vigente, inúmeras revoluções liberais eclodiram na primeira metade
do Século XIX e a forma de governo republicana sempre permeava os anseios e
objetivos daquelas coletividades insurgentes. Duramente reprimidas, as revoluções
como a Confederação do Equador eram as únicas formas abertas de expressão pelo
fim do governo monárquico, uma vez que pregar abertamente pelo republicanismo
era proibido pela constituição imperial de 1824 (MOREL, 2008, p. 906).
No âmbito da imprensa e do Poder Legislativo, as críticas restringiam-se à atu-
ação do governo, especialmente dos Ministros do império, já que atingir a imagem
do Imperador também era proibido, sendo costumeiramente aprisionados aqueles
que assim ousavam, a exemplo do próprio Cipriano Barata.
Àquele tempo, portanto, a forma de governo monárquico constitucional vigen-
te era colocada como diametralmente oposta a um governo republicano, costumei-
ramente identificado com a fase do terror da Revolução Francesa, o que dificultava
a sua defesa pública, ante o pathos negativo que encarnava a expressão republicana
de governo com aquela comparação. Formava-se, pois, uma verdadeira dicotomia
entre as duas formas de governo.
Foi inserida nesse ambiente de revoluções liberais e de cunho republicano que
se propagou no Brasil a ideia do direito de resistência. Segundo Nelson Nery Costa
(2000, p. 29), o direito de resistência seria originário da idade média, porém Sófocles

foi o primeiro autor a falar sobre o direito de resistência, inclusive invocando


a possibilidade do resistente sofrer uma grave sanção, mas sua teoria não lo-
grou desenvolvimento na Grécia, nem na teoria política antiga, sendo fecun-
dada apenas quando da instituição do Estado moderno e da ciência política.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 287

Identificado, portanto, mesmo na antiguidade, embora assentado na idade mé-


dia como o direito natural do cidadão de resistir às ordens injustas do soberano
(ARAÚJO, 2002, p. 18), admitia até o tiranicídio como decorrência do exercício
legítimo desse direito, que tem por escopo restaurar a ordem jurídica violada e a
liberdade que esta assegura (MELLO, 1936, p. 100), tendo se tornado lastro jusfilo-
sófico das ações dos liberais exaltados à época. Nos dizeres de Araújo (2002, p. 46),

No pensamento político do século XVIII, o direito de resistência é considerado


como um direito fundamental do indivíduo e foi tratado desta forma pela De-
claração dos Direitos do Homem, elaborada após a Revolução Francesa. Ele
encontra-se revestido deste caráter revolucionário por ser um instrumento efi-
caz para resistir contra o autoritarismo e o arbítrio do soberano.

No Brasil, a Constituição outorgada em 1824 extraiu da Constituição francesa


de 1791 apenas o que era de interesse do Imperador. O que poderia eventualmente
oferecer perigo, que fosse “metafísico” ou “teorético”, nos dizeres de D. Pedro quan-
do da abertura dos trabalhos da constituinte em 1823 (FRANCO, 1957, p. 229), foi su-
primido: o caput do art. 179 da Carta de 1824 garantia a “inviolabilidade dos direitos
civis e políticos”, ao passo que suprimiu, propositadamente, o direito de resistência à
opressão, que se destacava no art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cida-
dão de 1789, bem como estava inserta no prefácio da Constituição francesa de 1791.
As posteriores constituições brasileiras seguiram o mesmo caminho: não dispõem
expressamente sobre o direito de resistência (MACIEL, 2003, p. 18).
É nesse contexto de ideias, pois, que se fará a análise das três dimensões das
retóricas, no intuito de tentar demonstrar que a construção do direito no Brasil é
marcado por arroubos de originalidade cujos frutos ainda hoje são percebidos no
nosso ordenamento jurídico.

4. A argumentação e o Ornatus de Cipriano Barata –


a retórica estratégica

4.1. Dois momentos

Os resultados obtidos mediante o cotejo entre a obra de Cipriano Barata e o


momento histórico circundante levaram em consideração o fato de que as publica-
ções são divididas em dois momentos históricos distintos. A primeira fase do jornal,
onde se verifica sua maior regularidade, compreende os 65 números publicados en-
tre abril e novembro de 1823 e retrata uma retórica material caracterizada pelo em-
bate de ideias na Assembleia Constituinte do Rio de Janeiro (na qual se recusara a
tomar assento), as críticas e opiniões de Barata sobre o projeto de Constituição, bem
como as discussões em todo o país acerca do paradigma de Estado que se cunhava
no Brasil, além de relatar a situação política internacional.
288

Neste primeiro momento do jornal, as críticas contundentes de Cipriano Bara-


ta ao modelo centralizador unitário que propugnavam os Conservadores e Modera-
dos, a defesa do liberalismo constitucional, do federalismo e por uma distinção fir-
me entre os Poderes e pela limitação do Imperador ao posto de Chefe do Executivo,
denunciavam uma oposição ferrenha aos objetivos do Imperador de manter o status
quo e não realizar as reformas sonhadas pelos Liberais, ao exemplo de Frei Caneca.
Na tentativa de influenciar aquela retórica material – consubstanciada em
um ambiente social que discutia os rumos da nação recém-independente e cami-
nhava para a formação de um Estado unitário, sem autonomia para as províncias
e com uma distribuição desigual entre os poderes, caracterizado pelas faculda-
des de cunho absolutista conferidas ao Imperador – Cipriano Barata desenvolveu
uma retórica estratégica peculiar, cujos frutos apareceriam alguns meses depois
na Confederação do Equador, da qual Cipriano pode ser considerado, por isso, um
dos preparadores, embora já se encontrasse detido quando da eclosão formal do
movimento (MOREL, 2008, p.162).
A segunda fase do jornal vai de 1831 a 1835 e compreende o período imedia-
tamente posterior à libertação de Cipriano Barata dos cárceres do império, no ocaso
do Primeiro Reinado, sua nova peregrinação pelas cadeias no período das Regên-
cias e a libertação em 1834. Nesta fase, Cipriano encontra um ambiente caracteri-
zado pela ausência da figura aglutinadora de um monarca no exercício do poder e
o crescimento das contendas entre grupos, facções e lideranças, enfraquecendo a
unidade e eficácia controladora das autoridades. Diversas rebeliões ocorriam pelo
Império, como a Cabanagem (Pará, 1835-1840), Malês (Bahia, 1835) e a Farroupi-
lha (Sul, 1835-1845), sobre as quais o jornal de Cipriano se expressa, informa e se
posiciona. Foi também um momento-chave para a definição dos rumos do Estado
e da nação no Brasil, particularmente pelo debate das reformas federalistas que se
consubstanciaram, com seus limites e avanços, na reforma constitucional de 1834.
O embate de ideias nesta fase se dava entre o projeto hegemônico e predomi-
nante do grupo unitário e conservador, que culminou com a coroação precoce de d.
Pedro II em 1840, e o ideário federalista dos Liberais Moderados, levado ainda mais
além pelos Liberais Exaltados, cujo bojo de suas ideias trazia um sonho republicano
disfarçado. Segundo Marcello Basile (2006, p. 32),

Os moderados seguiam os postulados clássicos do liberalismo, tendo em


Locke, Montesquieu, Guizot e Constant suas principais referências; preten-
diam, e conseguiram, efetuar reformas político-institucionais que reduziam
os poderes do imperador, conferiam maiores prerrogativas à Câmara dos
Deputados e autonomia ao Judiciário, e garantiam a observância de direitos
previstos na Constituição, almejando uma liberdade moderna, que não amea-
çasse a ordem imperial. Já os exaltados, adeptos de um liberalismo radical de
feições jacobinistas, inspirado sobretudo em Rousseau, buscavam conjugar
princípios liberais clássicos com ideais democráticos, pleiteando profundas
reformas políticas e sociais, como uma república federativa, a extensão da
cidadania política e civil a todos os segmentos sociais livres, o fim gradual
da escravidão, uma relativa igualdade social e até um tipo de reforma agrária.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 289

4.2. O ethos, o pathos e o logos da argumentação de


Cipriano Barata no jornal “Sentinela da Liberdade”

Tanto na primeira quanto na segunda fase de divulgação das ideias de Barata


pelo periódico “Sentinela da Liberdade”, a retórica estratégica utilizada pelo autor é
permeada por características marcantes. A linguagem utilizada denota um caráter de
oralidade típico dos “papéis incendiários” que circulavam em uma época de grande
efervescência política marcada por vozes, gritos e gestos que povoavam as ruas,
uma sociedade caracterizada pela comunicação oral e visual (MOREL, 2002, p. 40)
dos impressos que se espalhavam, dado o baixo índice de alfabetização à época.
A utilização de frases de efeito, quase como gritos de ordem no final do dis-
curso é uma forma de despertar emoções nos ouvintes, influenciando no pathos re-
tórico do seu texto. Também a utilização de palavras que o identificam com o leitor
no início da argumentação é forma de apresentar o caráter do orador, dando peso e
credibilidade a suas palavras, o ethos do meio discursivo de persuasão, como deixa
claro no excerto da seguir:

Quisera eu poupar-me de falar coisas que tocam nas excelentíssimas pessoas dos
Membros do Nosso Governo Provisório, mas agora é impossível que fale; e não
há remédio se não contentar a muita gente de bem; e até ao meu Irmão e Amigo
Povo, que tanto sofre em toda parte por falta de Defensor (BARATA, 1823b).

Apesar de iniciar e terminar o discurso de forma magistral a prender os senti-


mentos, e, com isso, a opinião dos leitores e ouvintes, Cipriano Barata não se furta,
durante a estruturação lógica de sua argumentação, a amarrar o leitor, sempre a citá-lo
para que este não se perca na sua leitura do texto. É o pathos retórico que se imiscui
no logos discursivo, portanto. O autor da gazeta toma, pois, o exemplo do filósofo
latino Marco Túlio Cícero, que na obra “De Oratore” alerta ser de grande importância
cativar as emoções do receptador da mensagem não só no início e no fim do discurso,
mas durante toda a argumentação, por ser este o mais importante instrumento da ora-
tória, o “movere audientium animos.” (vide, sobre esta técnica: SOLMSEN, 1938, p.
390-404), tal como registrado na conclusão de outro periódico:

Pernambucanos, quem não sustenta os seus Direitos, quem não tem leis nem
justiça é vil escravo, não tem pátria! Vigilância, Pernambuco! Vigilância! Ó
Sansão do Brasil! Os Filisteus estão sobre ti! Não durmas, acorda, acorda,
alerta! Alerta! (BARATA, 1823h).

Na estruturação do logos da retórica estratégica, comumente utiliza-se de enti-


memas paradigmáticos. Costumam ser, muitas vezes, o gancho para a construção de
uma crítica ao Imperador e à forma de governo monárquica, de forma a lastrear, com
base em fatos históricos contemporâneos, a solidez dos argumentos desenvolvidos.
290

O entimema paradigmático retira sua força persuasiva de exemplos. Esses


exemplos somam-se a outros pela semelhança e daí, pela indução, chega-se à norma
conclusiva. Esse tipo de entimema estabelece relação entre um fato passado, que,
como tal, é indiscutivelmente aceito, e um fato futuro apenas provável (ADEODATO,
2006, p. 304-305). É um exemplo desta argumentação silogística paradigmática a
pregação teórica acerca da legitimidade do poder inserta nos jornais “Sentinela da
Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!”, número 27, de 5 de julho de 1823, e
no “Sentinela da Liberdade Hoje na Guarita do Quartel-General de Pirajá na Bahia
de Todos os Santos. Alerta!!”, número 3, de 31 de janeiro de 1831.
Nos referidos números do jornal, Cipriano traz exemplos históricos de deten-
tores do poder que foram depostos pelo povo quando este considerou que o gover-
nante perdera a legitimidade em decorrência dos mais diversos fatores. Alude ao rei
Tarquínio soberbo em Roma, Jacques II, na Inglaterra, Afonso VI, em Portugal, bem
como a exemplos contemporâneos a sua pregação: Itúrbide, no México, e Carlos X,
em Paris. Após colacionar os exemplos que lastreiam sua conclusão, afirma:

O povo é unicamente que dá a legitimidade aos seus Chefes, reis ou impe-


radores, escolhendo-os, e mantendo-os. [...] Por isso são legítimos aqueles
reis ou imperadores que os povos conservam segundo as suas leis, e de livre
vontade. Olhando pois a proposição pelo lado oposto, é consequência natural
que se pode perder a legitimidade quando os povos fazendo novas leis e re-
formando os governos despedem ou expulsam os reis, ou chefes, como seus
delegados, dissolvendo o pacto ou contrato social existente, ou seja pelos
abusos que eles tem feito da autoridade... (BARATA, 1831a).

Assim como Schopenhauer (1997, p. 180) considera o argumentum ad perso-


nam o ultimo estratagema a ser utilizado em um discurso também Barata conclui seu
pensamento frisando a importância dos entimemas paradigmáticos e utilizando-se
do argumentum ad personam para tentar desmoralizar os opositores de suas ideias:

Estas verdades estribadas em fatos históricos de todas as idades e nações além


do direito público, e do raciocínio, convencem melhor, porque são mais sensí-
veis; e todo o escritor que for contra elas é servil obstinado, traidor da pátria,
e inimigo da liberdade do gênero humano (BARATA, 1831a).

Alerte-se que não se deve confundir o argumentum ad personam com o ar-


gumentum ad hominem, que consiste em limitar a validade e aceitabilidade de uma
tese ao que cada qual está disposto a conceder aos valores e fatos com os quais se
está de acordo (FERRAZ JUNIOR, 2010, p. 315).
É, pois, em um discurso permeado por entimemas paradigmáticos e argumen-
tos erísticos que se desenvolve a defesa do direito de resistência na obra de Cipriano
Barata. Ao afirmar que a legitimidade reside no povo, que apenas delega o exercício
do poder aos governantes com a cláusula rebus sic stantibus, conclui que a resistên-
cia às arbitrariedades governamentais seria apenas o exercício do direito natural de
retomar o poder “usurpado”:
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 291

É verdade que a todo tempo, reconhecendo os Povos a gravidade de seus ma-


les depois de verem baldadas suas representações e queixas, podem reformar
Rei, Ministros, Autoridades de toda qualidade e tudo, pois que o mesmo Povo
conserva sempre os seus direitos, soberanos e salvos para tudo isto em caso
de grande necessidade. Por isso que esses direitos são inerentes e absolutos,
inalienáveis e imprescritíveis (BARATA, 1823a).

A estratégia que adota, comumente, é, por conseguinte, a de se firmar em torno de


acontecimentos relevantes para, a partir destes paradigmas, inferir axiomas ou melhor
conformá-los, alimentando teses ou juízos favoráveis à causa (MONTENEGRO,
1978, p. 90). Mais de uma década depois, em outro periódico, arvora-se de mais um
entimema paradigmático na defesa do direito natural de resistência:

O povo só desrespeita as leis quando o Governo primeiro as pisa juntamente


com seus direitos. Quando um povo, julgando-se sem segurança, toma as ar-
mas, é torrente impetuosa à qual não se pode resistir. Luiz 18 em França não se
manteve com mais de 30 mil homens em sua defesa, nem outro qualquer poderá
conservar quando um povo resiste com afincamento, persuadido que só com
a resistência (Direito imprescritível) se pode salvar do despotismo. O sangue
corre, mas a pátria e os direitos do homem social triunfam (BARATA, 1835a).

O direito natural de Puffendorf, para quem o legalismo era sempre confor-


mado ao moralismo (BARACHO, 2006, p. 412), era aqui aplicado por Barata
à realidade brasileira, que estava em vias de definir o Estatuto máximo de seu
ordenamento jurídico.
Em sua defesa do direito natural de resistência às leis injustas, Cipriano Barata
distingue a validade e a vigência social (LATORRE, 2003, p. 70) das leis, ao pugnar
pela imprescindibilidade de o ordenamento jurídico encontrar respaldo na realidade
que o circunda para poder ser válida:

A Lei é a vontade geral, expressada como regras, para se conseguir algum


bem, e por isso tem cominação ou penas aquele que a quebranta. Mas se a Lei
não é Lei senão no nome, nada disto se pode aplicar. Se ela é Lei só no nome,
não é Lei na realidade e na substância, e por consequência não tem o caráter
distintivo de Lei e por isso não obriga. Quero dizer que ninguém a deve obe-
decer (BARATA, 1823f).

Se é certo que não se podia conceber o direito de resistência às emanações


positivas estatais como um direito objetivo, posto que considerado antinormativo,
contra legem, ingressando no universo jurídico tão-só como fato ilícito (VILANOVA,
1984, p. 44), Cipriano Barata construía seu pensamento sob o prisma de uma
faculdade do sujeito – um direito subjetivo de resistência, cujo titular era o povo.
O direito subjetivo de resistência, em Barata, constituir-se-ia em um direito natural
tanto por existir independentemente de reconhecimento pelos poderes estabelecidos
quanto porque preexiste por si mesmo (ADEODATO, 2009, p. 83).
292

Ao discorrer sobre a situação da Assembleia Constituinte em 1823, Barata trata


hipoteticamente da possibilidade de o Imperador dissolvê-la, o que se concretizaria
meses depois, bem como adianta os acontecimentos que se sucederiam à dissolução
da constituinte. O recurso estilístico de tratar o futuro que se dava quase como certo
de forma hipotética seria uma saída para também poder desmoralizar “hipotetica-
mente” o Imperador, bem com “hipoteticamente” incitar o povo para a defesa de seu
direito natural de resistência, a partir de outro entimema paradigmático:

Eu estou persuadido que, de fato, ele pode dissolver o Congresso Soberano


com os alucinados batalhões como já foi dissolvido o Consistório Eleitoral,
em 1821. Mas também estou certo que se tal acontecesse, as Províncias po-
diam e podem, sem duvida alguma, e devem desunir-se logo e buscar todos
os meios de rebaterem o Despotismo. De sorte que neste caso da hipótese o
Imperador é um usurpador, um Tirano que obra um arbítrio malvado, anár-
quico e desorganizado, viola todos os direitos e toda a justiça, e o povo e as
Províncias fazem o que devem, cumprem a sua obrigação, pois sustentam
seus direitos inalienáveis e imprescritíveis, defendem sua Liberdade e os in-
teresses da Pátria, para o que sempre tem direitos salvos, e uma vez que os po-
dem sustentar com força devem fazê-lo e nem se espera outra coisa. E como
a opinião demonstrada que a força é a ultima razão dos Estados, parece-me
que as províncias devem rebater força com força firmadas neste princípio de
direito (BARATA, 1823d).

Especificamente no contexto em que se formulava o projeto de Constituição,


no ano de 1823, Cipriano lembra que “o nosso pacto social das Províncias não está
concluído e só é condicional, e que por isso não se deve anuir a abraçar qualquer
Constituição servil e despótica” (BARATA, 1823c), o que findou por se constituir
em fundamento para a legitimação jurídica da ruptura provocada pela Confederação
do Equador em 1824, minudenciada “hipoteticamente” no seguinte número:

Digo, pois, que se a Constituição for despótica, aristocrática e tirânica, mais ou


menos disfarçada, não se deve aceitar, porque as províncias reuniram-se con-
dicionalmente. Quero dizer, debaixo da condição de se fazer uma Constituição
tanto ou mais liberal do que a de Portugal. As províncias não convencionaram
que se fizesse a Constituição a gosto do Imperador e de suas tropas; sim ao
gosto do povo, e ele não pode arredar-se desta cláusula. Porque se o Imperador
pode faltar a promessas, ajustes e juramentos, então o povo, a seu exemplo,
deve fazer o mesmo, e não tem obrigação de estar por nada do que está feito,
especialmente naquilo que diz respeito à Liberdade, igualdade, segurança, In-
dependência. E eu ainda avanço: que sendo as promessas e ajustas de Sua Ma-
jestade o fundamento da nossa eleição, da nossa graça de exaltação, aclamação,
coroação etc., faltando estes fundamentos, fica sem alicerce ou base a dita nossa
graça, exaltação, aclamação, coroação etc. E, por consequência, nulo o nosso
pacto social e aniquilado o nosso Império; o povo desligado de todo juramento
e obrigação; e o Brasil em figura de escolher o Governo à sua vontade; de fazer
novo pacto social; nova federação a seu arbítrio. Pois a falar com precisão as
províncias não devem admitir, e nem lhes convém, senão o Governo Federati-
vo, ou Imperial Liberal como se acha constituído (BARATA, 1823e).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 293

Frei Caneca beberia desta fonte e, meses depois, usaria os mesmos argumen-
tos em seu parecer, que foi acatado pelas câmaras municipais de recife e Olinda,
quando recusaram-se a aceitar a Constituição imperial nos moldes formulados e
apresentados, dando origem à Confederação do Equador.
O fechamento da Assembleia Constituinte por D. Pedro e a outorga da Cons-
tituição de 1824 – que hipertrofiou os poderes do Imperador – revelou um país que
se travestia de um constitucionalismo liberal e fomentou as inúmeras revoluções
liberais do Século XIX, todas lastreadas no direito natural subjetivo de resistência,
superior ao ordenamento posto, que preconizava Cipriano Barata. A retórica mate-
rial imposta pela força do Imperador enquadra-se na concepção de Lourival Vila-
nova, para quem a revolução como um direito subjetivo só tem cabimento quando
um órgão aos outros se sobrepõe, concentra todas as funções e onde o povo não seja
partícipe da formação da vontade estatal, quando “só lhe resta desinvestir os titu-
lares das magistraturas supremas através da violência” (VILANOVA, 1984, p. 45).
Anos depois, na segunda fase de seu jornal, Cipriano trata de suas “hipóteses”
de argumentação mediante o recurso à figura de linguagem da ironia:

Eu falo segundo os princípios de Direito Público e das Gentes, apresento


opiniões, que podem ser combatidas. O que digo são hipóteses e futuros pro-
váveis. Eu não dou leis para ninguém obedecer; só quero abrir os olhos aos
patriotas e às autoridades que, aliás, devem ser obedecidas e respeitadas como
justas e sustentáculos das boas leis (BARATA, 1832).

Acerca das verdadeiras intenções que se extraem dos seus escritos, Cipriano,
mais uma vez, é irônico:

Todavia, se apesar das minhas patrióticas intenções, houver algum malvado,


ou alguma gazeta servil, como a Aurora e o Diário Fluminense, que envene-
ne as expressões, quando toquei na Constituição, já desde agora declaro que
valha só o que for verdadeiro e ortodoxo com os bons princípios, que só pode
entender quem for patriota e bem intencionado; e por isso finalizo com as pa-
lavras de Jesus Cristo: “Quem puder entender, entenda” (BARATA, 1831b).

O arsenal que compõe a retórica estratégica de Barata também resta verificado


em uma argumentação que permeia os discursos de Cipriano em toda sua obra: a
tentativa de imiscuir na forma de governo monárquica os pressupostos de um go-
verno republicano, liberal e federativo, conformando, pois, o status quo aos anseios
dos Liberais. Pugnar por reformas republicanas era considerado crime de “haitianis-
mo”, pelo qual Cipriano chegou a ser acusado e preso, razão pela qual a dicotomia
entre as formas de governo republicana e monárquica eram tão evidentes. A argu-
mentação de Cipriano Barata tenta transformar esta em uma dicotomia meramente
retórica, no sentido comum ou metonímico do termo, ou seja, em uma dicotomia
aparente, falaciosa ou persuasiva.
294

A intenção de Barata ao aproximar as duas formas de governo era minar as


bases da legitimidade da monarquia no Brasil: se, por intermédio de sua retórica es-
tratégica, ele conseguisse incutir na sociedade que a monarquia estava desvirtuada
das bases liberais com as quais o povo havia assentido ao aclamar o Imperador do
Brasil, estava aberto o caminho para a aplicação do direito de resistência e implan-
tação do regime republicano no país.
Na primeira fase de seus jornais, Cipriano estava ciente de que era difícil a
união do país em bases diversas das da monarquia; ainda assim, buscava demarcar
os limites do poder do Imperador e sugeria à Constituinte que limitasse as regalias
imperiais à semelhança da situação encontrada na república dos Estados Unidos,
em uma argumentação permeada de entimemas tópicos, “que deduzem conclusões
prováveis a partir de pontos de vista tidos por geralmente aceitos” (ADEODATO,
2006, p. 306):

A Corte, Governo ou Presidência de um Imperador é instituição muito dis-


pendiosa e pesada, e por isso é muito necessário cortar-lhe as asas na despesa
a fim de que não se remonte sobre os direitos dos povos e os despenhe. É,
pois, da essência das nossas despesas que elas se limitem só ao necessário.
Os povos não devem concorrer com superfluidades. Se o nosso Imperador
tiver unicamente ordenado de cem mil cruzados, que é o dobro do que tem o
Presidente dos Estados Unidos da América do Norte [...] podemos diminuir
oito ou dez tributos e fazer todas as despesas, obejando ainda muito dinheiro
(BARATA, 1823g).

O tratamento entimemático, retórico, da dicotomia das formas de governo


também resta evidente em outro trecho do mesmo número, quando Cipriano afirma
que, mediante recurso tópico, que a nomenclatura dada à autoridade máxima do
Estado não importa, uma vez que os poderes conferidos seriam os mesmos em qual-
quer situação, ante a tripartição dos poderes:

Ele pode ter o nome de Imperador, Presidente, Príncipe, Defensor perpétuo ou


qualquer outro, porque o nome é indiferente para a representação e autoridade
de que ele goza.

Em outro periódico, novamente afirma que a nomenclatura não importa, mas


sim o sistema que está subjacente a ela:

Não briguemos pelo nome. Embora não se declare que o nosso Governo fica
Confederativo, seja o Governo bem frouxo em benefício das Províncias; seja
o sistema livre, segundo as Bases que havemos jurado seja a Constituição
Representativa bem liberal como a de Portugal, segundo se contratou, e já eu
estou calado (BARATA, 1823h).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 295

Em outros números ainda na primeira fase, Cipriano defende que o poder não
pode ser hereditário, devendo ser a nobreza transitória e personalíssima, o Impera-
dor limitado ao cargo de chefe do Poder Executivo, submetido às ordens provenien-
tes da Assembleia e limitado seu poder enquanto o povo assim o desejar.
Uma vez que criticar abertamente a forma de governo monárquica era proi-
bido, assim como defender o ideário republicano abertamente, Cipriano Barata
utilizava-se de um recurso estilístico frequentemente utilizado nos textos de caráter
doutrinário dos séculos XVIII e XIX: a suposta “aparição” de um “espírito” ou de
um sonho portador de determinado discurso, que, se o autor assumisse ser próprio
dele, poderia ser levado a julgamento por crime de imprensa.

Já tinha soado meia-noite, e eu vigiava na Guarita; quando de repente me


senti com sono irresistível e ouvi a Visão do costume falar e sentei que os
espíritos tem a propriedade de fazerem adormecer aqueles à quem se apre-
sentam. Entrei então a ouvir como em sonhos o que se segue. [...] Do exposto
se vê que nos governos Monárquicos a sociedade não pode marchar aos fins
para que foi instituída, e que estes Governos são diabólicos, antissociais e
de nenhum modo comparáveis aos Governos Republicanos, felizes e livres
neste mundo, segundo permite a natureza que nos criou; digo felizes e livres,
porque a felicidade é irmã da Liberdade, e nem pode existir uma sem a outra.
[...] De todo o exposto, se conclui que as Repúblicas são governos de Deus e
as Monarquias governos do Diabo: vê-se afinal que as aristocracias das Mo-
narquias são Fidalgos, Delegados dos Reis e Aspirantes; e que as das Repú-
blicas são os Ricos, os Sábios e os grandes Funcionários; conhece-se também
a grande desigualdade dos homens nas Monarquias e a grande igualdade nas
Repúblicas, onde ninguém tem a audácia de se dizer distinto por um chamado
foro, pela insígnia de um hábito ou fita mágica que dá honra, merecimentos,
sabedoria, virtudes, e tudo. Parece pois demonstrado, Sentinela, que de Di-
reito, a República é governo superior e mil vezes preferível à Monarquia [...].
Assim dizendo ausentou-se; e eu tornando a mim escrevo o sonho, o qual por
isso não sei que crédito mereça; porque da minha parte não me meto com
opiniões; meu sistema é seguir e obedecer as leis; e pedir a todos que façam
o mesmo (BARATA, 1835b).

Somente de maneira indireta se compreende, pois, a opção pela forma de go-


verno republicana. Vale lembrar que a associação entre liberdade, felicidade e Re-
pública era a tônica também dos papeis ditos incendiários que circularam e foram
apreendidos pelas ruas de Salvador em agosto de 1798, episódio conhecido poste-
riormente por Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, em decorrência do qual
Cipriano sofreu sua primeira prisão, 37 anos antes da publicação deste jornal.
296

4.3. O ornatus de Cipriano Barata: a retórica que ultrapassa a


linguagem escrita e se completa nas vestes e entonações do orador

Ao lado do ethos de defensor do povo, característica que cultivou durante toda


a vida e restou evidente quando foi libertado da prisão em 1834 e uma multidão o
recebeu no Rio de Janeiro e na Bahia com fogos, demonstração de sua popularidade
facilmente constatável em todo o território nacional (GARCIA, 1997, p. 118), do
pathos e do logos desenvolvidos em seus textos, Cipriano Barata se distinguia dos
demais personagens de sua época pelo desenvolvimento de um ornatus retórico
que não se encontrava apenas em seus textos, mas também externamente: as suas
vestimentas faziam parte da expressão do ideário nacionalista que ele defendia e se
tornaram sua marca registrada.
O ornatus é a “armadura” que compõe o conjunto de qualidades, estilo e habi-
lidades do orador (ADEODATO, 2009, p. 28) e que aqui subdividimos em ornatus
externo, composto pelas características físicas e vestimentas do orador, e ornatus
interno, correspondente à letra ou fonte de texto, a cor e o papel utilizados, a estru-
turação formal da mensagem, a ortografia utilizada. Frise-se que o ornatus interno
influencia não a compreensão da leitura do texto, como também a forma com que
o orador repassa a mensagem aos ouvintes e, consequentemente, a apreensão do
relato. O ornatus interno e o externo interligam-se, portanto, e apenas separam-se
topicamente: o primeiro origina-se no texto escrito, enquanto o segundo encontra-se
no próprio orador.
O ornatus externo de Cipriano Barata era um mecanismo de afirmação da
liderança que exercia sobre as massas, identificando-se com o povo por meio de
suas vestimentas e portando símbolos da identidade nacional: vestia-se de casaca
de algodão da terra, chapéu de palha e um ramo de café nas mãos. Portava-se assim
como uma alegoria viva e ultrapassava os limites da palavra impressa e verbalizada
por porta vozes de seus textos, comunicava-se também pelo impacto visual.
Destacamos do ornatus interno dos textos de Barata a aposição de canções em
meio aos textos doutrinários, que sintetizavam em forma musical a tônica das ideias
minudenciadas com profundidade em sua doutrina. Dentre as características mais
marcantes, observa-se a valorização daquilo que seria a identidade nacional e tam-
bém a negação dos traços de opressão deixados pela identidade portuguesa. Nesse
sentido, Cipriano realiza esta contraposição por intermédio da ortografia, no caso
destacando (e ironizando) o sotaque português, com recursos como a troca do b pelo
v, o que revela também a caracterização de uma busca por uma linguagem brasileira
(MOREL, 2008, p. 821), o que o torna o precursor do Romantismo no Brasil, pois
somente décadas depois, José de Alencar, com o romance Iracema (1865), e outros
escritores da primeira fase do romantismo brasileiro começariam a estabelecer uma
forma brasileira de escrever a língua portuguesa.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 297

5. Uma análise metódica na desconstrução do jornal


“Sentinela da Liberdade”: como a retórica das ideias jurídicas
de Cipriano Barata o transformou em um dos personagens
mais influentes do Brasil no Século xix – a retórica analítica

Os resultados obtidos mediante o cotejo analítico entre a retórica estratégica


de Cipriano Barata e a retórica material que o circundava, que se constitui o obje-
tivo precípuo da retórica analítica, vieram a confirmar, pois, a hipótese de pesquisa
trabalhada: existe sim um pensamento jurídico-filosófico com traços de originalida-
de em nosso país, cujos frutos até hoje observados denotam a continuidade de um
pensamento periférico que não se resume à assimilação do pensamento estrangeiro.
A retórica estratégica desenvolvida no Brasil pode ser considerada um ver-
dadeiro cocktail de ideias (FERNANDES, 2009, p. 14), as quais não se resumiam,
entretanto, àquelas apreendidas por aqueles que entravam em contato com o pen-
samento estrangeiro, mas eram absorvidas no país e difundidas com um toque de
originalidade, criando um pensamento próprio para a realidade brasileira.
Cipriano Barata foi o fundador de um jornal identificado, cronologicamente,
como a inicial republicana no jornalismo brasileiro (CASCUDO, 1938, p. 28). Foi,
pelo que se pode compreender da análise retórica empreendida, uma das primeiras
lideranças políticas de amplitude nacional forjadas no imediato período pós-inde-
pendência e viu ainda em vida, frutificar seus exemplos em rebeliões por todo o
país, mesmo que sem a sua participação direta.
Na Revolta Farroupilha, por exemplo, surgiu a “Sentinela da Liberdade na
Guarita do Norte da Barra de São Pedro do Sul”, que circulou até 1837 (MOREL,
2001, p. 300). Décadas depois, no Rio de Janeiro, surgiria a “Sentinela do Povo”
(1855) e “Sentinela da Liberdade”, periódico abolicionista que circulou em 1869
(MOREL, 2001, p. 361).
O movimento “baratista” espalhou-se por todo o país: em Minas Gerais (“A
Sentinela”, jornal republicano de 1892), Maranhão (“Sentinela Maranhense”, em
1834. No ano seguinte, era publicada a “Sentinela Maranhense na Guarita do Pará”.
Em 1849, imprimiu-se a “Sentinela da Liberdade”), Ceará (“Sentinela Cearense na
Ponta de Mucuripe”, de 1838), Bahia (“Nova Sentinela da Liberdade na Guarita do
Forte de São Pedro na Bahia de Todos os Santos. Alerta!!”, de 1831) e Pernambuco
(“Sentinela da Liberdade”, de 1848, e a “Sentinela da República no Estado de Per-
nambuco”, de 1891) publicaram-se jornais abertamente inspirados em Barata. Há
referências, inclusive, a uma publicação de um grupo de exilados na Inglaterra que
publicaram, em 1825, a “Sentinela da Liberdade do Brasil na Guarita de Londres”,
como suplemento do “Sunday Time” (MOREL, 2001, p. 362-363). Com Cipriano
nasce, pois o ideário republicano brasileiro.
Cipriano Barata formulou uma interpretação própria para o Brasil e suas insti-
tuições jurídico-políticas. É possível encontrar vários elementos que apontam para
uma interpretação específica do país: a cultura clássica e a iluminista como compo-
nentes gerais; a delimitação de um passado histórico nacional e seus personagens;
298

a formulação de propostas para a organização do Estado nacional; a análise e pro-


jeção para uma sociedade futura de aspectos contemporâneos da economia, direito,
política e cultura, tudo passando pelo crivo do liberalismo exaltado, conformado às
peculiaridades da situação do país.
Barata transpõe para o Brasil, com as circunstâncias que lhe são peculiares, dada
a forma com que o Brasil conquistou a independência, a doutrina do Contrato Social
de Rousseau e o direito de resistência, este lastreado no pensamento jusnaturalista de
Puffendorf, cuja teoria infunde no direito uma qualificação essencialmente ética, ideia
comungada também por Frei Caneca (MONTENEGRO, 1978, p. 45). A adaptação
dessas ideias à realidade do país torna-se a fundamentação jurídica das principais re-
voluções liberais do Século XIX, especialmente a Confederação do Equador.
Além da continuidade de seu pensamento por Frei Caneca e seus seguidores
a análise da questão republicana nos jornais de Cipriano deixaria um legado que
contribuiria para um debate que só viria a ocorrer de maneira mais ampla após três
décadas e meia, com Joaquim Nabuco à frente deste ideário republicano, cujas ori-
gens são encontradas nos escritos de Cipriano Barata.
O pensamento de Cipriano Barata refletiu, pois, no programa liberal de 1868,
redigido por Nabuco (NOGUEIRA, 2001, p. 69), já constituído em um ambiente
mais propício ao ideário republicano plantado por Barata e que se materializaria,
ao menos em parte, em 1891 com a proclamação da república. A continuidade do
pensamento de Cipriano Barata aqui reverberada é expressa nos seguintes termos
por Montenegro (1978, p. 82):

Por ele, já se alcança o nível da atividade criadora do intrépido periodista


e político na formulação de matrizes político-ideológicas que se prolonga-
riam numa corrente de pensamento subterrâneo em largos momentos da nossa
história. E emergentes dominantemente em escassos momentos outros, mas
compondo um patrimônio definitivo de ideias.

Mesmo as ideias acerca do direito de resistência ainda hoje podem ser obser-
vadas na doutrina (Vide, nesse sentido, as inúmeras citações a Barata em MOTA,
1979, passim) e na jurisprudência do Brasil, ainda que com diferentes objetivos e
pressupostos. O Superior Tribunal de Justiça concedeu ordem de Habeas Corpus
a líder do MST exatamente com base neste fundamento jurídico, que, apesar de
não se encontrar expressamente previsto na nossa Constituição, sempre permeou
o pensamento jurídico brasileiro desde os tempos de Cipriano Barata. No indigi-
tado acórdão (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 1996, p. 10491), o Minis-
tro Ademar Maciel lançou os seguintes questionamentos acerca das invasões de
terras pelo MST:

Seria o uso do direito de resistência? Não temos na Constituição brasileira,


como em alguns estatutos jurídicos estrangeiros, expressamente, o direito de
resistência. Tem os súditos o direito de se rebelar contra o soberano que não
está agindo em favor de seu povo?
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 299

O mesmo Ministro responderia a pergunta em entrevista à Folha de São Pau-


lo “Essas atividades não seriam o direito de resistência? É o direito do súdito de
se rebelar contra o soberano que está agindo não pelo povo, mas contra o povo”
(ARAÚJO, 2002, p. 17).
Também a doutrina brasileira debate a aplicabilidade do instituto no país. Na
mesma linha seguida pelo Ministro Ademar Maciel, Salo de Carvalho afirma que
“mais do que um ‘direito’, a resistência à opressão é um mecanismo tipicamen-
te garantista, pois sua natureza reflete instrumentalidade à satisfação dos direitos
humanos individuais, sociais e/ou transindividuais” (CARVALHO, 2003, p. 243).
Aplicando o direito de resistência à realidade carcerária do país, assevera Andrei
Schmidt (2007, p. 238):

A resistência é um direito do preso. Se o poder judiciário está sendo moroso


em apreciar um pedido de progressão de regime ou de livramento condiciona,
[...], é direito do preso, p. ex. entrar em greve de fome contra tal omissão, não
podendo por esse motivo, ser punido disciplinarmente. Da mesma forma, se
os presos amotinados reivindicam melhorias na alimentação, no espaço de
celas etc. – que é o que geralmente ocorre, das as condições desumanas dos
estabelecimentos prisionais brasileiros -, não podem eles ser punidos por tais
condutas, ainda que decorram danos toleráveis do protesto.

Em Portugal, onde o direito de resistência é expressamente previsto no art. 21°


da Constituição da República Portuguesa (Conforme CANOTILHO, 2008, p. 20, o
artigo assim dispõe: “Todos tem o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os
seus direitos, liberdade e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando
não seja possível recorrer à autoridade pública”.), Canotilho coloca-o entre os meios
de defesa não jurisdicionais, entendendo-o como ultima ratio do cidadão que se vê
ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, seja por atos do poder público ou
por atos de entidades privadas (CANOTILHO 1991, p. 676-677). O debate acerca
do direito de resistência, iniciado no Brasil por Cipriano Barata, rendeu, por conse-
guinte, frutos ainda hoje observados na práxis do direito brasileiro.
A originalidade de Cipriano barata também está no fato de que, mediante a
dicotomia retórica das formas de governo, argumentação sem paralelo na histo-
riografia política ocidental e permeada por entimemas paradigmáticos, ele tentava
minar as bases da monarquia. A argumentação de Barata não expressava a impo-
sição radical de um novo método (forma de governo republicana) em substituição
ao existente, mas sim, a necessidade de transmudar as bases do método existente,
uma conformação retórica da monarquia aos preceitos basilares da república. Barata
tenta aproveitar o clima de composição em que surgira a monarquia constitucional
brasileira para, interna corporis, transformar o Estado brasileiro no verdadeiro esta-
do liberal que apenas com a constituição de 1891 se iniciaria a construir.
Ao tentar incutir no sistema constitucional vigente as bases republicanas,
mediante uma distinção meramente retórica entre as formas de governo monárquica
e republicana, Cipriano Barata intenta, portanto, uma verdadeira luta pela mutação
300

política das bases do Estado brasileiro recém-independente, o que, segundo


Lourival Vilanova, finda por promover uma mutação da própria norma fundamental
(VILANOVA, 1984, p. 44), a qual, no caso, lastreava a Constituição de 1824.
Após o processo de mutação capitaneado pelas ideias de Cipriano, a norma
fundamental – ao tempo de Barata correspondente às “Bases que havemos jurado a
Constituição” (BARATA, 1823h) – é tomada por fundamento a legitimar juridica-
mente a Confederação do Equador, dada a argumentação utilizada pelos liberais de
haver o Imperador desconsiderado a vontade do povo brasileiro, o qual teria contra-
tado uma Constituição liberal distinta daquela imposta por D. Pedro I.
Anteriormente aos movimentos armados liderados por Frei Caneca, portan-
to, o jornal “Sentinela da liberdade” era um veículo de transformação da retórica
material que formava o sistema jurídico e o político do Brasil pós-independência,
tendo em vista não ser a via revolucionária a única forma de se passar de uma norma
fundamental para outra diferente (VILANOVA, 1984, p. 44), mas também possível
pela modificação intrassistêmica do ordenamento jurídico vigente, através de novas
visões hermenêuticas.
Frutos dessa mutação político-constitucional foram as reformas ocorridas no
período das regências, quando a “republicanização” da monarquia situava-se lado
a lado com a sua “federalização”. Sintomático a esse respeito a cópia da legislatura
bienal ou do mandato senatorial de seis anos, bem como a regência uma, resquícios
presidenciais da Constituição americana introduzidas na reforma proposta pela Câ-
mara dos Deputados em 1831 (BONAVIDES, 2002, p. 121), que encontrou óbice
no conservadorismo do Senado, responsável pela aprovação da “Lei de Interpreta-
ção do Ato Adicional de 1834”, aprovada em 1840. Apesar de amputar os avanços
liberais, se este não nos fez mais republicanos e federativos com as autonomias
provinciais cerceadas pela Lei de Interpretação, ao menos fechou o caminho do re-
trocesso unitarista e centralizador, deixando margem às mudanças que se seguiriam
no ultimo quartel do século XIX (BONAVIDES, 2002, p. 132).
Para além da mera estrutura argumentativa, vocabulário, linguagem e ima-
gens das roupas relacionavam-se, assim, com um trabalho ideológico (MOREL,
2001, p. 256), consubstanciado na influência da retórica estratégica de Cipriano
Barata, que era marcada pelo direito de resistência e pela dicotomia retórica das
formas de governo, na retórica material de seu tempo. A análise destas relações
constituiu-se no objeto da retórica analítica e na problemática deste trabalho mo-
nográfico, cujo resultado obtido não poderia ser outro senão o de que a retórica
utilizada por Cipriano Barata naquele ambiente histórico contribuiu de maneira
original para a formação do ideário republicano brasileiro e os frutos das suas
ideias seriam colhidos no final do mesmo Século XIX, além de até hoje serem
observados no ordenamento jurídico do Brasil.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 301

6. Conclusões: a legitimação jurídica das revoluções liberais


do século xix e a instauração dasbases da derrocada do
império extraídas do pensamento original
do “Sentinela da Liberdade”
A existência de um pensamento jurídico com traços de originalidade no Bra-
sil, evidenciados e exemplificados neste trabalho pelas ideias de Cipriano Barata
explicitadas no jornal “Sentinela da Liberdade”, constitui-se, pois, na conclusão
deste artigo. Pudemos comprovar que Barata transpõe para o Brasil e adapta à nossa
realidade a doutrina do Contrato Social de Rousseau e o direito de resistência, este
lastreado no pensamento jusnaturalista de Puffendorf. Ao explicitar de forma origi-
nal esse conjunto de ideias, as Sentinelas Retóricas de Cipriano Barata tornaram-se
fundamento para a legitimação jurídica das principais revoluções liberais do Século
XIX, especialmente a Confederação do Equador.
As ideias acerca do direito de resistência, lançadas no Brasil pela primeira vez
por Cipriano, ainda hoje podem ser observadas na doutrina e na jurisprudência do
Brasil. Mesmo que com diferentes objetivos e pressupostos, o instituto do direito de
resistência continua presente na práxis do direito brasileiro a incitar debates doutri-
nários e jurisprudenciais.
Ao lado do ethos, do pathos e do logos desenvolvidos em seus textos, Cipriano
Barata se distinguia dos demais personagens de sua época por se arvorar de um or-
natus retórico que não se encontrava em seus textos, mas sim externamente: as suas
vestimentas faziam parte da expressão do ideário nacionalista que ele defendia e se
tornaram sua marca registrada. Sua escrita eloquente e retórica influenciou jornais
publicados em todas as regiões do país, o que demonstra a força de suas ideias, o
alcance e a continuidade do seu pensamento ao longo do século.
Destacamos do ornatus interno dos textos de Barata a busca por uma lingua-
gem brasileira, o que o torna o precursor do Romantismo no Brasil, pois somente
décadas depois, José de Alencar – com o romance Iracema (1865) – começaria a
estabelecer uma forma originalmente brasileira de se escrever a língua portuguesa,
no intuito de crismar a independência cultural sobre a antiga metrópole.
Além da continuidade do seu pensamento em Frei Caneca e seus seguidores, a
análise da questão republicana por Cipriano tornar-se-ia legado importante para um
debate que só viria a ocorrer de maneira mais ampla três décadas e meia depois, en-
cabeçado por Joaquim Nabuco e pelo programa liberal de 1868, cujas ideias centrais
já são encontradas nos escritos de Cipriano Barata, que influenciaram as reformas
liberais do Ato Adicional de 1834, barradas, em parte, pela força conservadora se-
natorial e sua Lei de Interpretação.
Os resultados obtidos mediante o cotejo analítico entre a retórica estratégica
de Cipriano Barata e a retórica material que o circundava – objetivo precípuo da
retórica analítica – vieram a confirmar a hipótese de pesquisa trabalhada: existe sim,
na nossa história, um pensamento jurídico-filosófico com traços de originalidade em
nosso país, cujos frutos até hoje observados denotam a continuidade de um pensa-
mento periférico não resumido à assimilação do pensamento estrangeiro.
302

A outra conclusão não se poderia chegar, pois, senão a de que há um pensa-


mento jurídico originalmente brasileiro, cujas ideias – em que pese a influência do
pensamento europeu e norte-americano – foram concebidas para a nossa realida-
de e pelos protagonistas do cenário político-jurídico brasileiro. A originalidade da
retórica estratégica de Cipriano Barata no contexto do Brasil pós-independência
contribuiu para a formação do ideário republicano brasileiro e os frutos das suas
ideias seriam amadurecidos e colhidos ainda no Século XIX, além de observados
até hoje no ordenamento jurídico brasileiro, uma demonstração da continuidade do
pensamento jurídico originado na modernidade periférica.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 303

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2009). A retórica constitucional: sobre tolerância, di-


reitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva.
______ (2005). Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 2ª ed. – São
Paulo: Saraiva.
______ (2007). Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 3ª ed. – São
Paulo: Saraiva.
______ (1996). Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São
Paulo: Saraiva.
______ (2009). Teoria dos direitos subjetivos e o problema da positivação dos di-
reitos humanos como fundamento da legalidade constitucional. ADEODATO, João
Maurício; BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco (coords.). Princípio da
legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense.
______ (2011). Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo.
São Paulo: Noeses.
ARAÚJO, Cláudia de Rezende Machado (2002). O direito constitucional de resis-
tência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris.
AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito (2007). 2ª ed. São
Paulo: RT.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito. In: Revista brasileira de
filosofia, Vol XXXIX, São Paulo, jul/ago/set 1991.
BARACHO, José Alfredo de Oliveira (2006). Direito processual constitucional:
aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum.
BARATA, Cipriano (1831a). Sentinela da Liberdade Hoje na Guarita do Quartel-
-general de Pirajá na Bahia de Todos os Santos. Alerta!!. n. 3, 31 de janeiro de 1831.
______ (1823a). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 14, 21 mai. 1823.
______ (1823b). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 15, 24 mai. 1823.
______ (1823c). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 22, 18 jun. 1823.
______ (1823d). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 48, 17 set. 1823.
______ (1823e). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 54, 08 out. 1823.
______ (1823f). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 59, 25 out. 1823.
______ (1823g). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 61, 1 nov. 1823.
______ (1823h). Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Alerta!
n. 62, 05 nov. 1823.
304

______ (1832). Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel-General de Pira-


já, Mudada Despoticamente para o Rio de Janeiro, e de lá para o Forte do Mar
da Bahia, de onde Generosamente Brada Alerta!!!. n. 32, 21 nov. 1832.
______ (1831b). Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel-general de Pi-
rajá Hoje presa na Guarita da Ilha das Cobras no Rio de Janeiro. Alerta!!. n.
24, 1 out. 1831.
______ (1835a). Sentinela da Liberdade na sua Primeira Guarita, a de Pernam-
buco, onde Hoje Brada Alerta!! n. 25, 16 abr. 1835.
______ (1835b). Sentinela da Liberdade na sua Primeira Guarita, a de Per-
nambuco, onde Hoje Brada Alerta!! n. 35, 26 set. 1835.
BASILE, Marcello (2006). Revolta e Cidadania na corte regencial. Dez. 2006, p.
32. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/tem/v11n22/v11n22a03.pdf>. Aces-
so em 20/12/2010.
BLUMENBERG, Hans (1999). Una aproximación antropológica a la actualidad
de la retórica. Las realidades en que vivimos. Trad. de Pedro Madrigal. Madrid:
ediciones Paidós.
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de (2002). História constitucional do
Brasil. 4. Ed. Brasília: OAB Editora.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital (2008). Constituição da República
Portuguesa e Lei do Tribunal Constitucional. 8ª ed. Coimbra: Almedina.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes (1991). Direito constitucional. 5ª ed. Coim-
bra: Almedina.
CARVALHO, Salo de (2003). Pena e garantias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
CASCUDO, Luiz da Câmara (1938). O Dr. Barata. Bahia: Imprensa Oficial do Estado.
CHARTIER, Roger (1990). A história cultural: entre práticas e representações.
Trad. de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
COSTA, Nelson Nery (2000). Teoria e Realidade da Desobediência Civil. Rio de
Janeiro: Forense.
FERNANDES, Aníbal (2009). Ideias francesas em Pernambuco na primeira
metade do Século XIX. Recife: CEPE.
FERRAZ JR., Tercio (2010). Introdução ao estudo do direito. 6ª ed. São Paulo: Atlas.
FERREIRA, Maria Augusta Soares de Oliveira Ferreira (2008). A escola do Recife
e o problema da originalidade de um pensamento jurídico periférico. ADEODATO,
João Maurício (Coord.). Dogmática jurídica e direito subdesenvolvido: uma pes-
quisa pioneira sobre peculiaridades do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
FRANCO, Afonso Arinos de Melo (1957). Estudos de direito constitucional. Rio
de Janeiro: Forense.
GARCIA, Paulo (1997). Cipriano Barata, ou a liberdade acima de tudo. Rio de
Janeiro: Topbooks.
GARCIA, Viviane Macedo (2007). Metodologia da história da ideias. In: GUSTIN,
Miracy Barbosa de Sousa; SILVEIRA, Jacqueline Passos da; AMARAL, Carolline
Scofield (org.). História do direito: novos caminhos e novas versões. Belo Hori-
zonte: Mandamentos.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 305

KOSELLECK, Reinhart (2006). Futuro passado – contribuição à semântica dos


tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto.
LATORRE, Angel. Introducción al Derecho (2003). Barcelona: Ariel Derecho.
LLOYD, Christopher (1995). As estruturas da história, trad. Maria Júlia Goldwa-
ssu. Rio de Janeiro: Zahar.
MACIEL, Adhemar Ferreira (2003). Observações sobre o constitucionalismo bra-
sileiro antes do advento da República. PEREIRA, Antonio Celso Alves; MELLO,
Celso Renato D. de Albuquerque (orgs.). Estudos em homenagem a Carlos Alber-
to Menezes direito. Rio de Janeiro: Renovar.
MELLO, Baptista de (1936). O direito de resistência – Archivo Judiciário. Jornal
do Commercio. Vol. XXXVII. Jan/Mar. de 1936.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gus-
tavo Gonet (2008). Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva.
MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa (1978). O liberalismo radical de Frei
Caneca. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
MOREL, Marco (1986). Cipriano Barata. São Paulo: Brasiliense.
______ (2001). Cipriano Barata na sentinela da liberdade. Salvador: Academia
de Letras da Bahia e Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.
______ (2002). Papéis incendiários, gritos e gestos: a cena pública e a construção
nacional nos anos 1820-1830. Topoi 4 – Revista de História da UFRJ, Rio de
Janeiro, mar. 2002, p. 39-58. Disponível em: <http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/
topoi4a2.pdf>. Acesso em 23/04/07
MOREL, Marco (org. e edição) (2008). Sentinela da liberdade e outros escritos.
São Paulo: EDUSP.
MOTA, Carlos Guilherme (1979). Ideia de revolução no Brasil (1789-1801). Pe-
trópolis: Vozes.
MÜLLER, Friedrich (2009). Teoria estruturante do direito. 2. Ed. São Paulo: RT.
NIETZSCHE, Friedrich (2008). Da utilidade e do Inconveniente da História
para a Vida: Segunda Consideração Intempestiva. Trad.: Antônio Carlos Braga e
Ciro Mioranza. São Paulo: Escala.
NOGUEIRA, Octaviano (2001). Constituições brasileiras, volume I: 1824. Brasília:
Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos.
PRADO JUNIOR, Caio (1963). Evolução política do Brasil e outros estudos. 4.
Ed. São Paulo: Brasiliense.
SANTOS, Boaventura de Souza (2011). A crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. 8. Ed. São Paulo: Cortez Editora.
SALDANHA, Nelson (2005). Da teologia à metodologia: secularização e crise do
pensamento jurídico. 2. Ed. Belo Horizonte: Del Rey.
SCHMIDT, Andrei Zenkner (2007). Direitos, deveres e disciplina na execução pe-
nal. CARVALHO, Salo de (org). Crítica à Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris.
SCHOPENHAUER, Arthur (1997). Como vencer um debate sem precisar ter razão:
em 38 estratagemas (dialética erística). Introdução, notas e comentários por Olavo de
Cavalho; tradução de Daniela Caldas e Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks.
306

SOLMSEN, Friedrich (1938). Aristotle and Cícero on the Orator’s Playing upon
the feelings. University of Chicago Press, Classical Philology, Vol. 33, n° 4. Di-
sponível em: <http://links.jstor.org/sici?sici=0009-837X(193810)33%3A4%3C390
%3AAACOTO%3E2.0.CO%3B2-1>. Acesso em 10 jan. 2007.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (1996). 1ª Turma. Habeas Corpus 4399/
SP, Relator: Ministro William Patterson., Brasília, 12.03.1996, DJ de 08/04/1996.
Disponível a partir de: <www.stj.jus.br>. Acesso em 10 mai. 2010.
UNIÃO EUROPEIA (2010). Declaração de Bolonha. Disponível em <http://euro-
pa.eu/legislation_summaries/education_training_youth/lifelong_learning/c11088_
pt.htm> Acesso em: 04 ago. 2010.
VILANOVA, Lourival (1984). Teoria Jurídica da Revolução (anotações à margem
de Kelsen). Revista de Direito Público. São Paulo: RT, jan./mar. 1984, p. 33-58.
AS ESTRATÉGIAS RETÓRICAS
DE BERTHA LUTZ PARA A
CONQUISTA DO DIREITO DE VOTO
DAS MULHERES NO BRASIL

Yumi Maria Helena Miyamoto

Resumo: Este artigo tem por objetivo verificar em que medida as estratégias
retóricas de Bertha Lutz contribuíram para a cidadania política das mulheres
no Brasil. A tese é que a sociedade brasileira, tradicionalmente conservadora
e patriarcal, sofre os embates da agenda política do movimento sufragista
feminino no Brasil, o que provoca fissuras nos papéis sociais entre homens
e mulheres e alterações na ocupação privilegiada do espaço político pelos
homens motivando a sua ocupação também pelas mulheres.
Palavras-chave: Espaço público. Espaço privado. Cidadania política.
Abstract: This article aims to determine to what extent the Bertha Lutz rhetorical
strategies contributed to the political citizenship of women in Brazil. The
traditionally conservative and patriarchal Brazilian society suffers the hardships
of the female suffrage movement political agenda in Brazil that causes cracks
in the social roles of men and women and changes in the prime occupation of
political space by men motivating their occupation also by women.
Keywords: Public space. Private space. Political citizenship.
Sumário: Introdução: o estado da arte no que diz respeito à cidadania política
feminina. 1. A retórica material e o contexto do período após a Primeira Guer-
ra Mundial. 2. A retórica estratégica e os argumentos pelo voto feminino. 3. A
retórica analítica: a contribuição de Bertha Lutz para a conquista do direito de
voto das mulheres brasileiras. Referências.

Introdução: o estado da arte no que diz


respeito à cidadania política feminina

O ingresso das mulheres na trincheira masculina do espaço público correspon-


de a uma das transformações mais significativas na sociedade brasileira, resultan-
te da sincronia de um complexo de elementos relevantes, a partir dos expressivos
padrões de escolaridade, o importante decréscimo das taxas de fecundidade e, vi-
sivelmente, a alteração quanto ao comparecimento e à atividade das mulheres no
mercado de trabalho. A importância da cidadania política feminina na realidade bra-
sileira é avaliada a partir da compreensão da repercussão dessa participação firme
das mulheres no espaço público ao se confrontar obstinadamente ao espaço privado
das relações domésticas.
308

De outra forma, as distinções biológicas encontradas entre homens e mulheres


consagraram e naturalizaram as insulações dos papéis sociais desempenhados por
homens e mulheres constrangendo-se ao inexorável encarceramento da mulher ao
asilo privado das relações domésticas. Todavia, com a compreensão do artifício de
conversão da natureza em cultura manipulada pelos grupos sociais promovendo a
sua metamorfose de machos e fêmeas para homens e mulheres, adiante dos susten-
táculos nas condizentes sociedades alicerçados com base nas qualidades do mascu-
lino, bem como do feminino, desencadearam expressivas mudanças nos arcabou-
ços das composições sociais. Desse modo, com a introdução da categoria gênero,
viabilizou-se o discernimento a respeito da realidade social de que a delimitação das
responsabilidades e sentido do que seja masculino e feminino não são decorrências
de sua fatalidade biológica, mas, são as escolhas – social e cultural – que se fazem.
A reclusão da pessoa ao espaço privado provoca a sua invisibilidade porque
admite que não seja notada pelos outros potencializando a ausência de sua impor-
tância social. O encarceramento da mulher ao reduto privado justificado pela na-
turalização das dissonâncias das responsabilidades sociais assumidas por homens
e mulheres sob o pretexto das diferenças biológicas, acarreta a sua invisibilidade
diante das demais pessoas desvalorizando socialmente as questões femininas e exa-
cerbando as disparidades sociais persistentes entre homens e mulheres.
A compreensão de que o sistema patriarcal aguça as convergências de subju-
gação e de poder exercido pelo homem em face da mulher, intensificando os estere-
ótipos em relação à mesma, reprimindo e reforçando a sua inferioridade intelectual
e cognitiva, à sua submissão em relação ao homem, tanto emocional, quanto social
e, também econômica, o seu encarceramento ao espaço privado, à sua fatalidade
biológica reprodutiva e a sua agorafobia política.
Apesar da conquista do direito de voto das mulheres no Brasil ter ocorrido for-
malmente em 1932, com o decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, o discer-
nimento das mulheres como um sujeito coletivo que indaga a posição que preenche
na sociedade, que questiona a perspectiva de mundo, considerando a sujeição e sub-
jugação familiar aos homens e, como indivíduo, de fato, acontece com o surgimento
em âmbito internacional dos movimentos feministas a partir dos anos de 1970. Nes-
se sentido, os incisivos movimentos sociais e culturais promoveram alterações no
contexto do trabalho, na obtenção dos meios contraceptivos e na educação.
Nessa plataforma é que se pretende analisar as estratégias retóricas de Bertha
Lutz para viabilizar a conquista do direito de voto das mulheres no Brasil. Nossa
hipótese é a de que os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres não
poderiam colocar em risco a estabilidade do modelo familiar patriarcal da sociedade
brasileira. Para tanto, objetiva-se responder à seguinte indagação: em que medida as
estratégias retóricas de Bertha Lutz contribuíram para a conquista do direito de voto
das mulheres brasileiras?
A metodologia escolhida é a retórica que possibilita compreender as trajetórias
percorridas e as resistências superadas para a possibilidade do sufrágio feminino
no Brasil. A contribuição deste trabalho é no sentido de desvelar a árdua vereda
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 309

transitada pelas mulheres para a conquista da cidadania política no Brasil, com as


hostilidades encaradas pelas feministas dos homens e mulheres conservadoras, na-
quela conjuntura social e cultural.

1. A retórica material e o contexto do


período após a Primeira Guerra Mundial

Entendendo a retórica material como “o conjunto dos métodos vencedores,


os relatos escolhidos dentre os diversos caminhos possíveis e concorrentes em de-
terminada situação” (ADEODATO, 2013, p. 12), é por meio dela que se vislumbra
o panorama onde se situava a sociedade brasileira no início do século XX. Neste
aspecto, a Ciência legitimava e ditava os destinos sociais dos homens e das mulhe-
res na medida em que apartava cada qual em espaços restritos e intransponíveis,
com base em argumentos científicos de que a natureza feminina estava afeta à área
do cuidado, da emoção, enquanto que, para os homens, eram destinadas as ações
movidas pela racionalidade.
Pierre Bourdieu (2009, p. 20) reflete que a existência da diferenciação ana-
tômica entre os órgãos masculinos e femininos legitimou a naturalização “[...] da
diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente da divisão so-
cial do trabalho”. Por esta razão, as assimetrias anatômicas entre os órgãos sexuais
masculinos e femininos serviram para ratificar a naturalização das distinções dos
papéis sociais assumidos por homens e mulheres, constrangendo as mulheres ao
intransigente aprisionamento à esfera privada das relações domésticas.
A sociedade brasileira, no início do século XX, era regida pelo Código Civil
de 1916, assumidamente calcada na proteção patrimonialista, a partir de uma visão
androcêntrica, impedia a autonomia das mulheres porque suas vidas estavam con-
dicionadas à obediência ao pai, assumir o casamento, o cuidado do lar e dos filhos
e estrita obediência ao seu marido, implicando na responsabilidade pelo espaço pri-
vado das relações domésticas.
Tanto assim que o Código Civil de 1916 (BRASIL, 1916), na sua redação ori-
ginal, regulava que o homem era o chefe da sociedade conjugal48 e, como tal, tinha
a plena e absoluta gerência de sua família, não somente na sua representação legal,
na administração dos bens da família, como também no destino de sua mulher, no-
tadamente porque, com o casamento, a mulher49 tornava-se incapaz relativamente,
enquanto subsistir a sociedade conjugal.
Contudo, a sociedade brasileira, conservadora e patriarcal, com seus papéis
sociais hermeticamente definidos, apartando os homens aos espaços públicos e as
mulheres aos espaços privados das relações domésticas, sofreu os reflexos das con-
sequências da Primeira Guerra Mundial, pois, como as mulheres foram compelidas

48 Art. 233. O homem é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família; II. A administração
dos bens comuns e particulares da mulher [...]; III. O direito de fixar e mudar o domicílio da família: IV. O direito de
autorizar a profissão da mulher e sua residência fora do tecto conjugal [...]; V. Prover à manutenção da família
49 Art. 6º São incapazes, relativamente a certos atos (Art. 147, n. 1) ou à maneira de os exercer: I [...]; II. As mulheres
casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal; [...]
310

a assumirem os postos de trabalhos dos homens, enquanto os mesmos estiveram em


batalha, cuja percepção de necessidade de se trabalhar fora se acentuou como uma
forma de reconstrução da nação (PINSKY; PINSKY, 2010, p. 295). Este sentimento
de patriotismo exacerbado, apesar dessa necessidade de trabalhar constrangesse ho-
mens e mulheres, isso não representava qualquer alteração nos papéis sociais tradi-
cionalmente desempenhados por homens e mulheres e, principalmente nas questões
familiares. Dito de outra forma, a família patriarcal não era ameaçada apesar do
ingresso da mulher no mercado de trabalho.
O decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881 (BRASIL, 1881), denominada
Lei Saraiva dispunha, em seu artigo 2º que, para ser considerado eleitor, bastava
o cidadão brasileiro comprovar uma renda líquida anual, que corresponde ao voto
censitário, afastando o voto universal. Ora, nessa linha de raciocínio, com razão as
mulheres que pretenderam se candidatar à Assembleia Nacional Constituinte para
a elaboração da 1ª Constituição Republicana que, em tese, bastariam comprovar
a renda legal, para se habilitarem como eleitoras. A Constituição Republicana de
1891 deu fim ao voto censitário adotando o voto universal, mantendo, contudo, a
exclusão dos analfabetos, dos praças-de-pré, dos religiosos sujeitos à obediência
eclesiástica. No entanto, as mulheres não puderam participar da Assembleia Nacio-
nal Constituinte porque não havia previsão legal para o seu ingresso.
A Constituição Republicana de 1891 (BRASIL, 1891), que, em seu artigo 70,
previa que seriam eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, excluiu expressamente
os mendigos, os analfabetos, os praças-de-pré, os religiosos e os inelegíveis. Con-
tudo, àquela época entendia-se que, além dessas exclusões expressas no texto cons-
titucional também existia a exclusão das mulheres, uma vez que não foi aprovada
qualquer das emendas, durante a constituinte, que lhe atribuíam o direito de voto
político (PEDRA, 2012, p. 99).
A negação do direito de voto às mulheres na Constituição Republicana de
1891 traz, em seu bojo, a seguinte indagação: as mulheres não tinham o direito
do exercício da cidadania política, porque havia uma lacuna na Carta Constitucio-
nal? Nesse sentido, em caso de lacuna da lei há técnicas integrativas normativas, a
exemplo da aplicação da analogia. Carlos Maximiliano (1993, p. 208) pondera que
a analogia “[...] consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição
relativa a um caso semelhante”. Todavia, no caso da Constituição da República de
1891, o artigo 70 prevê expressamente a condição de eleitores aos cidadãos maiores
de 21 anos, bastando, no particular, a simples aplicação das regras gramaticais no
sentido de que a palavra cidadãos corresponde à cidadã + o + s = cidadãos, para
afastar a hipótese da existência de lacuna da lei e entender que contempla tanto aos
homens quanto às mulheres o direito à cidadania política.
Pondera Karl Larenz (1997, p. 525) sobre a necessidade de uma explicação
mais concreta quando se verifica a existência de uma “lacuna da lei”, ao distinguir
quando a lei “se mantém em silêncio” e quando há a hipótese de “silêncio
eloquente”. Verifica-se a incidência da lacuna “[...] só quando e sempre que a
lei [...] não contenha regra alguma para uma determinada configuração no caso,
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 311

quando, portanto, ‘se mantém em silêncio’” (LARENZ, 1997, p. 525). No silêncio


eloquente, contudo, não há uma lacuna da lei em “[...] sua formulação originária
[porque o legislador] [...] não quis admitir tal direito [...] que em princípio lhe não
era desconhecido, [...] e, por isso, intencionalmente não incluiu na lei disposições a
esse respeito” (LARENZ, 1997, p. 525).
Assim, a Constituição Republicana de 1891 adotou o silêncio eloquente quan-
to ao direito das mulheres porque entendia o legislador que, naquele contexto social
e cultural, os homens ocupavam o espaço público e as mulheres ocupavam o espaço
privado dada à “natureza” de seus papéis sociais. Ou seja, o legislador intencional-
mente não admitiu no texto constitucional prescrições a esse respeito.
Por outro lado, a Constituição Republicana de 1891, ao excluir expressamente
os analfabetos50, pondera José Murilo de Carvalho (2008, p. 39) que, como “[...]
somente 15% da população era alfabetizada, ou 20%, se considerarmos apenas a
população masculina”, trouxe como consequência direta, a exclusão de 80% da
população masculina do direito de voto. Compreende-se, então, a razão pela qual
o número de votantes tenha permanecido baixo, porque apartados ainda do proces-
so político as mulheres, os mendigos, os membros religiosos e os soldados. Nesse
sentido, “[...] na primeira eleição popular da Primeira República, em 1894, votaram
2,2% da população [e apenas] na eleição presidencial de 1945 é que compareceram
às urnas 13,4% dos brasileiros” (CARVALHO, 2009, 40).
Estes embates políticos com a ala conservadora não permitiam o avanço do
movimento sufragista feminino, pois ameaçavam a estabilidade das relações fami-
liares recalcada na dicotomia dos papéis sociais naturalizados dos homens na arena
política e as mulheres no reduto do espaço privados das relações domésticas. É, nes-
te panorama que ocorre a participação de Bertha Lutz para a conquista da cidadania
política das mulheres.

2. A retórica estratégica e os argumentos pelo voto feminino

A retórica estratégica, por sua vez, consiste no conjunto de estratégias que


visam interferir sobre a retórica material provocando a sua modificação para que se
atinja o objetivo escolhido (ADEODATO, 2013, p. 14), que, no caso de Bertha Lutz
era o de viabilizar o direito de voto das mulheres brasileiras.
Bertha Maria Júlia Lutz (1894-1976), paulista, filha do cientista Adolpho Lutz,
forma-se em 1918 em Ciências Naturais pela Faculdade de Ciências da Universida-
de de Paris (Sorbonne). Durante a Primeira Guerra Mundial viveu na capital france-
sa com a mãe, Amy Fowler Lutz e o irmão, Gualter Adolpho. Retornou ao Brasil em

50 Art. 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.
§ 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados:
1º) os mendigos;
2º) os analfabetos;
3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;
4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas
a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual.
312

1918, sendo contratada como tradutora no Instituto Oswaldo Cruz, onde auxilia seu
pai e, em 1919, é classificada em primeiro lugar em concurso para o cargo de Secre-
tária no Museu Nacional (SOIHET, 2006, p. 133). No período em que Bertha Lutz
esteve estudando na Europa teve oportunidade de conhecer o movimento feminista
na Inglaterra, antes da guerra, bem como na França, quando se radicou, conhecendo
naquele país Jerônima Mesquita, selando uma “[...] união de esforços no Brasil com
vistas a fazer qualquer coisa pelas mulheres” (SOIHET, 2006, 17).
O regresso de Bertha Lutz transformou radicalmente a trajetória do movimen-
to sufragista feminino no Brasil. Bertha Lutz tinha plena consciência que, naquele
contexto social, cultural e jurídico, a possibilidade de sucesso de sua empreitada
pelo direito de voto das mulheres no Brasil seria nula. Era preciso convencer os
políticos conservadores e a sociedade resistente a mudanças radicais que o fato da
mulher obter o direito de voto não representaria, em nenhuma hipótese, subversão
dos valores sociais, comprometendo os laços familiares. Muito ao contrário, a posi-
ção de moderação, de caminhar ao lado do homem, para o progresso da nação foram
estratégias retóricas utilizadas para persuadi-los.
A carta que Bertha Lutz escreve para a Revista da Semana, em 28 de dezem-
bro de 1918, traça as estratégias retóricas que norteiam a sua conduta na conquista
do direito de voto das mulheres. Assim, em primeiro lugar, critica o tratamento da
mulher em público como sendo penoso, embora nos meios cultivados e para com a
mulher de sua família ou de suas relações haver mais respeito, é apenas superficial,
não conseguindo ocultar “[...] a tolerância e a indulgência, como se se tratasse de
uma criança mimada” (LUTZ, 2006, p. 174). Bertha Lutz censura abertamente aos
homens pelo tratamento dispensado às mulheres sob o pretexto de respeitabilidade
aprisionam-nas em perpétuo estado de infantilização. Bertha Lutz aponta o atraso
do Brasil em relação à França, apesar dos esforços do progresso, reputando a maior
parte da responsabilidade aos homens “[...] em cujas mãos a legislação, a política,
todas as instituições repousam” (LUTZ, 2006, p. 174). Entretanto, nem as mulheres
são poupadas de sua crítica, por entender que as mulheres também têm sua parcela
de responsabilidade nessa situação (LUTZ, 2006, p. 174).
Bertha Lutz (2006, p. 175) compartilha a sua experiência na Europa durante a
guerra, na Inglaterra e na França atestando o esforço das mulheres como sendo he-
roico, pois, assumiram os lugares dos soldados, na maior simplicidade, realizando
os mais pesados trabalhos dos ausentes. Aponta, por sua vez, que essas tarefas, até
então, eram “[...] ignoradas ou julgadas impossíveis para a mulher, ela trouxe uma
inteligência viva e uma energia indomável” (LUTZ, 2006, p. 175). Como consequ-
ência, “[...] todos os argumentos sociais e políticos não puderam fazer, esse exemplo
heroico de abnegação e força de vontade o conseguiu. Hoje, colhem elas os frutos
de sua dedicação” (LUTZ, 2006, p. 175).
As mulheres brasileiras, apesar de não convocadas a dar as mesmas provas,
na percepção de Lutz (2006, p. 175), são dignas de ocupar a mesma posição, res-
tando, contudo, descobrir qual é este caminho. Para tanto, Bertha Lutz conclama as
mulheres para não se resignarem a serem “[...] as únicas subalternas num mundo ao
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 313

qual a liberdade sorri” (LUTZ, 2006, p. 175). As mulheres devem se tornar dignas
da posição que ambicionam, provando o seu valor de seu merecimento, embora
Bertha Lutz tenha discernimento para perceber que “[...] muito, em quase tudo no
estado atual, depende do homem. Mas uma das maiores forças de emancipação e de
progresso está em nosso poder: a educação da mulher e do homem” (LUTZ, 2006,
p. 175). Eis a chave do sucesso da empreitada de Bertha Lutz, a educação da mulher
possibilitando que ela “[...] seja intelectualmente igual e para que sua vontade se
discipline” (LUTZ, 2006, p. 175). Em contrapartida, através da educação o homem
se habitue “[...] a pensar que a mulher não é um brinquedo para o distrair; para que
olhando a sua esposa, suas irmãs, e lembrando-se de sua mãe, compreenda e se
compenetre da dignidade da mulher” (LUTZ, 2006, p. 175).
De fato, Bertha Lutz reivindica o direito da mulher de ser tratada como ser humano
e não a sua reificação e incapacidade para pensar. Bertha Lutz (2006, p. 176) alinhava o
caminho para o sucesso desse desafio no sentido de dar visibilidade à equivalência entre
homens e mulheres a partir do esforço individual e coletivo. Fica evidente a lucidez de
Bertha Lutz de que a conquista do direito de voto das mulheres não poderia ser obtida
a partir de vozes isoladas, era preciso unir as energias e conjugar os esforços de forma
coletiva, através da fundação de uma liga de mulheres brasileiras. Para tanto, funda em
1919 a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher que, em 1922 vem a ser substituída
pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, a FBPF.
Todavia, Bertha Lutz sinalizava, desde o início, que a sua proposta não se
identificava com as “sufragetes” britânicas e americanas, vinculadas ao ativismo
violento e combativo, na medida em que propõe não “[...] uma associação de “su-
fragetes” para quebrarem as vidraças da Avenida, mas uma sociedade de brasilei-
ras que compreendesse que a mulher não deve viver parasitariamente do seu sexo,
aproveitando os instintos animais do homem” (LUTZ, 2006, p. 176). Evidencia
Lutz a conciliação entre a atividade política com seus papéis sociais familiares,
demonstrando como a mulher pode ser útil, instruindo-se e instruindo a seus filhos,
tornando-se capaz “[...] de cumprir deveres políticos que o futuro não pode deixar
de repartir com ela” (LUTZ, 2006, p. 176).
Contudo, desvela-se a diretriz de Bertha Lutz em sentido diametralmente
oposto à dicotomia intangível das esferas entre homens e mulheres na proporção
em que valoriza “[...] o exercício do trabalho extradoméstico, mesmo para as mu-
lheres casadas, independentemente da condição do marido” (SOIHET, 2006, p. 30).
Assim, Bertha Lutz recomenda a independência da mulher por meio do trabalho,
ao invés “[...] do eterno sustento da mulher no casamento [que] corresponderia a
uma espécie de comércio sexual” (SOIHET, 2006, p. 30). Mas os argumentos mais
contundentes de Bertha Lutz de que essa atividade política feminina possibilitaria
que elas “[...] deixariam de ocupar sua posição social tão humilhante para elas como
nefasta para os homens, e deixariam de ser um dos pesados elos que atam o nosso
país do passado, para se tornarem instrumentos precisos ao progresso do Brasil”
(LUTZ, 2006, p. 176). Esta será a tônica constante dos argumentos retóricos de
Bertha Lutz no sentido de que todo o empenho feito pelo homem e pela mulher
314

objetiva alcançar o progresso da nação e, quanto maior a participação política da


mulher, maior será a sua colaboração para este progresso tão almejado pelo Brasil.
Desse modo, o espírito de iniciativa, o desempenho do trabalho e a educação, são os
componentes essenciais para a emancipação feminina, considerando que, através do
trabalho, possibilitaria romper com essa dependência ultrajante e a educação seria o
caminho certo para alcançar esse objetivo.
O alinhavo político articulado por Bertha Lutz foi no sentido de obter o sus-
tentáculo da NAWSA – National American Woman’s Suffrage Association, repu-
tada a maior associação americana na tutela do sufrágio feminino através de sua
líder americana Carrie Chapman Catt. Bertha Lutz solicita à Presidente da NAWSA
ajuda para a elaboração dos estatutos para a nova associação no Brasil, qual seja, a
Federação Brasileira para o Progresso Feminino – FBPF, substituindo a Liga pela
Emancipação Intelectual da Mulher fundada em 1919 (SOIHET, 2006, p. 33-34).
Esta estratégia deu um salto qualitativo de visibilidade nas esferas políticas da luta
pelo sufrágio feminino ao ponto de possibilitar à Bertha Lutz a sua integração na
Comissão Preparatória do Anteprojeto da Constituição de 1934 e, em 1936, de as-
sumiu uma cadeira como deputada federal.
A manutenção de um programa de rádio que promovia propagandas e con-
vocações às mulheres para os fóruns de discussões, bem como para a participação
ativa feminina nas sessões do Congresso foram as estratégias desenvolvidas por
Bertha Lutz que impulsionava um número cada vez maior de mulheres no Brasil. O
empenho de Bertha Lutz para dar visibilidade nacional e internacional ao movimen-
to sufragista feminino brasileiro possibilitou na sua participação no IX Congresso
da Aliança Sufragista Feminina Internacional, em 1923, em Roma, e como delegada
no Congresso Interamericano, de 1925, em Washington (HAHNER, 2003).
Em 1931, a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino articulou, no Rio de
Janeiro, o II Congresso Internacional Feminista para debater sobre as direções do
movimento. Os resultados foram conduzidos ao Presidente Getúlio Vargas, que, no
dia 24 de fevereiro de 1932 assinou o Decreto nº 21.076, concedendo às mulheres o
direito de votar e serem votadas.
Todavia, o decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932 (BRASIL, 1932), tra-
zia em seu bojo, um paradoxo na medida em que, a despeito da concessão do direito
ao voto das mulheres, a mulher casada era considerada relativamente incapaz, de
acordo com o artigo 6º do Código Civil de 1916,51 e dependia da autorização marital
para o exercício do direito ao voto. Embora o voto fosse obrigatório e secreto,52 a
situação jurídica da mulher casada obrigava que a mesma prestasse contas ao seu
marido quanto ao seu voto.

51 Código Civil de 1916 – “Art. 6 São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1) ou à maneira de o exercer [...]
I [...]; II – as mulheres casadas enquanto subsistir a sociedade conjugal”. A plena capacidade jurídica da mulher casada
somente foi atingida com a lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, com o Estatuto da mulher casada.
52 Art. 82. O sufrágio e universal e direto; o voto, obrigatório e secreto.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 315

Por outra perspectiva, reflete-se que, com a edição do decreto nº 21.076, de


24 de fevereiro de 1932 que dispôs sobre o Código Eleitoral, o voto das mulheres53
foi reconhecido por interpretação constitucional legislativa, sem qualquer alteração
da letra da Constituição de 1891. Nesse caso, na esteira de Anna Candida da Cunha
Ferraz (1986, p. 92), entende-se que é exemplo de mutação constitucional provoca-
da por interpretação constitucional legislativa porque, por via do decreto nº 21.076,
de 24 de fevereiro de 1932, foi modificado o alcance da disposição contida no artigo
70 da Constituição Republicana de 1891, sem alterar a letra da lei.
Essa concessão legal é integrada na Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934 (BRASIL, 1934), ou seja, o direito de voto
para homens e mulheres, maiores de 18 anos54 sem aquela ressalva que alcançava as
mulheres casadas, conservando, no entanto, a exclusão dos analfabetos ao exercício
da cidadania política. Contudo, a obrigatoriedade do direito de votar55 atinge os ho-
mens e especificamente as mulheres que exerçam função pública remunerada, evi-
denciando que o direito de voto das mulheres decorreu da vontade do Estado Social
brasileiro e não de processos de lutas por reconhecimento desse direito pelas mulhe-
res e pela sociedade. O voto da mulher era apenas facultativo. Porém, a manutenção
da exclusão56 dos que não sabem ler e escrever e dos mendigos vai preservar esse
insignificante percentual de exercício político de cidadania que se altera apenas na
eleição presidencial de 1945, quando ocorre o comparecimento às urnas de 13,4%
dos brasileiros (CARVALHO, 2009, 40).
Considerando o ambiente de uma sociedade hostil a qualquer possibilidade
de alteração dos tradicionais e conservadores papéis sociais desempenhados por
homens e mulheres para encarar a questão do direito de voto das mulheres é preciso
revelar as circunstâncias do cenário de abrangência da instrução e da profissionali-
zação das mulheres. Neste sentido, a primeira legislação a tratar sobre a educação
feminina foi a Lei de 15 de outubro de 1827 que regulou a criação das escolas pri-
márias para meninas que, ao contrário dos assuntos direcionados para a educação
dos meninos, estava confinada à instrução de aritmética, mas, apenas às quatro ope-
rações, enfatizando quanto às prendas que servem à economia doméstica.
Desse modo, em apertada síntese, os predicativos respeitáveis para a boa de-
senvoltura das tarefas como futuras donas-de casa resumiam-se, em saber ler o livro
de orações, compreender uma receita para bolos, interpretar um poema ou decodifi-
car as partituras para o piano.

53 Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, artigo 2º - É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo,
alistado na fórma deste Código. 
54 Art. 117 - São eleitores os brasileiros de um e de outro sexo, maiores de dezoito anos, que se alistarem na forma da lei.
Parágrafo único - Não podem alistar-se eleitores: a) os analfabetos;
55 Art. 109 - O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens e para as mulheres, quando estas exerçam função
pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar. 
56 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 – Art. 108 – [...]
Parágrafo único - Não se podem alistar eleitores: 
a) os que não saibam ler e escrever; 
b) [...]; 
c) [...]; 
d) [...]; 
316

Entretanto, o discurso do progresso da Nação exigia a conjugação de esforços


de todos na sociedade. Assim, como as esposas tinham agora a elevada missão de
agente moralizador da sociedade, para se tornarem aptas para tanto era imperioso
que as mesmas recebessem educação específica. Porém, devido à deficitária edu-
cação feminina, pela precariedade dos professores de letras compeliu o Estado a
criar escolas normais para a formação de professores do ensino primário. Naquele
contexto social, como as mulheres de boas famílias não exerciam nenhuma profis-
são porque cabia ao homem a condição de provedor da família, muitas mulheres
vislumbraram a possibilidade do magistério como uma profissão.
Portanto, no decorrer da década de oitenta do século XIX havia um contin-
gente relevante de mulheres professoras nas escolas normais e, até, em escolas
próprias, servindo como agente de mudança social, tanto em relação ao índice de
alfabetização das mulheres, como também representou um “[...] vetor consciente de
disseminação de novas ideias sobre os direitos e papéis das mulheres” (HAHNER,
2003, p. 82-83).
Neste panorama de progressos tecnológicos, como a invenção do telégrafo, o
desenvolvimento das estradas de ferro e a iluminação pública, entre outros melho-
ramentos, as relações sociais passaram a se estabelecer em novos padrões, intensifi-
cando a vida política proporcionada por reuniões formais e pelo consumo de lazer.
Ou seja, homens e mulheres fizeram-se presentes nas ruas, nos cafés, nos bailes, nos
teatros, em cujos eventos, as instruídas boas moças proporcionavam encantamento
para as audiências de piano, canto, leitura de poemas. Os reflexos da boa instrução
recebida pelas mulheres já podiam ser colhidos pelo crescente número de jornais e
revistas femininas que permitiam o compartilhamento das ideias de emancipação
política das mulheres provocando fissuras nos paradigmas tradicionais e conserva-
dores da sociedade brasileira daquele contexto.
No período de campanha republicana, algumas mulheres ousaram romper com
os tradicionais e conservadores papeis sociais assumidos pelos homens e pelas mu-
lheres, lutando pelo sufrágio feminino, buscando o espaço público da política e
rejeitando o aprisionamento da mulher ao espaço privado das relações domésticas.
Nísia Floresta (1989) é a pioneira na luta pela educação de base e universitária
para as mulheres. Procurou defender o direito das mulheres de terem as mesmas
oportunidades de estudos que os homens para uma atuação mais ampla na socieda-
de, obtendo licença para frequentarem faculdades no Brasil.
Apesar do espírito progressista conceber as mulheres como seres inferiores
de inteligência, “[...] nenhuma mudança social ocorre sem que a sociedade tenha já
caminhado no sentido de possibilitá-la” (ALVES, 1997, p. 97). Nesse sentido, na
superação dos óbices culturais, as mulheres nortearam-se nos argumentos empre-
gados pela própria retórica do patriotismo, ou seja, a participação das boas mães
na defesa do progresso. Apesar da insistência da incapacidade feminina para as
atividades científicas, fundamentada na inferioridade orgânica do cérebro feminino,
a lei da reforma educacional de 1879 abriu a primeira escola superior para o público
feminino no Brasil.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 317

Embora sofrendo hostilidades e preconceitos, algumas mulheres ingressaram


em carreiras como médicas, advogadas e professoras demandando pela igualdade
jurídica entre homens e mulheres que traz, em seu bojo, a vinculação ao direito do
voto, como direito humano.
Quando, em 1930, Getúlio Vargas assume o poder como novo presidente, a es-
trutura política do país é alterada e o governo promete, publicamente, reexaminar as
práticas políticas, incluindo uma reforma no Código Eleitoral. O pragmático presi-
dente provou desejar ouvir as minorias negligenciadas, tais como a classe operária e
a população pobre, mas o projeto das feministas parecia ser indiferente. Novamente a
FBPF serviria para dar ampla ressonância ao movimento, quando organiza o II Con-
gresso Internacional no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1931. Com representantes do
movimento de 15 estados do Brasil e de 8 países estrangeiros (HAHNER, 2003), o
movimento alcançou o grau de reconhecimento de luta que desejavam, pois, enfim,
o direito ao voto foi assegurado às mulheres em nível nacional com o novo Código
Eleitoral em 24.2.1932, pelo Decreto n. 21.076 (BRASIL, 1932), confirmado pela
Constituição de 1934. O Brasil tornou-se o quarto país do ocidente a garantir o sufrá-
gio feminino, atrás de Canadá, Estados Unidos e Equador. Carlota Pereira de Queiróz,
educadora e diplomada em medicina, foi a primeira mulher a conquistar uma vaga no
Congresso brasileiro, confirmada nas eleições de 1933, enquanto Bertha Lutz con-
quista uma suplência. Foram também eleitas deputadas estaduais em Minas Gerais,
São Paulo, Sergipe, Amazonas, Bahia e Alagoas (ALVES, 1980).

3. A retórica analítica: a contribuição de


Bertha Lutz para a conquista do direito de
voto das mulheres brasileiras

Finalmente, a retórica analítica, decorrente de sua aproximativa postura cien-


tífica, porque busca “[...] descrever, abstraindo-se de atitudes valorativas, como
funcionam tanto a retórica material como a retórica estratégica, tanto tipifican-
do-as isoladamente, quanto estudando-as em suas interrelações” (ADEODATO,
2013, p. 21), compreendendo-se por sua “[...] atitude descritiva e pela correspon-
dente tentativa de neutralidade” (ADEODATO, 2013, p. 21).
Nesse sentido, o movimento sufragista feminino brasileiro recebeu muitas crí-
ticas no sentido de seu discurso conservador, a exemplo de Besse (1999) e Hahner
(2003) que, no entanto, desvela-se uma estratégia relevante para a sobrevivência
desse movimento. Naquele contexto, a ciência legitimava confinar as mulheres no
espaço privado das relações domésticas na medida em que competia a elas a de-
voção ao lar e aos filhos, vez que “naturalmente” inaptas para o exercício político
e a subversão desses valores tradicionalmente considerados conduziria ao fim da
família. Desse modo, o discurso do movimento sufragista feminino não poderia, e
nem deveria ter, um tom de confronto à estrutura patriarcal sob pena de não cativar
o apoio dos legisladores estaduais e federais, bem como da própria população.
318

As críticas feitas por Besse (1999) e Hahner (2003) a Bertha Lutz devem ser
mitigadas porque ambas, apesar de renomadas pesquisadoras brazilianistas, não
deixaram de enxergar a realidade brasileira a partir do olhar de uma estrangeira,
tendo como pano de fundo a realidade dos Estados Unidos, qual seja, o movimento
sufragista feminino estadunidense. Contudo, o contexto do movimento sufragista
feminino no Brasil era bem diferente daquele pertencente àquelas brazilianistas por-
que o Brasil era absolutamente patrimonialista, patriarcal e o lugar da mulher, com
certeza, não era ocupar o espaço público “naturalmente” pertencente aos homens.
Por essa razão, reconhece-se o mérito de Bertha Lutz de, ao invés de desafiar e con-
frontar os homens políticos e a própria sociedade conservadora articulou estratégias
eficientes para a conquista do direito do sufrágio feminino no Brasil.
Bertha Lutz ponderava que a cidadania política das mulheres deveria ser obtida
a partir do reconhecimento de que a mulher é sujeito de direitos políticos, ou seja, de
sujeito de ação política a partir do direito de votar e de ser votado. No entanto, isto
não se aperfeiçoava sem que as mulheres tivessem acesso à educação, bem como
autonomia financeira pelo trabalho feminino. No contexto atual, as propostas de
Bertha Lutz correspondem à teoria de Nancy Fraser (2002; FRASER; HONNETH,
2003) quanto à sua política do reconhecimento, da redistribuição e da representação
política (FRASER, 2013). Contudo, a história do direito de voto das mulheres é
repleta de preconceitos e resistências na proporção em que a política tradicionalmente
era considerada como reduto privilegiado masculino e não se cogitava sobre a absurda
(!) hipótese de transgressão dessa regra moral, considerando que o sufrágio universal
e a igualdade de voto só foram conquistados nas décadas de 1910 e 1920.
Um aspecto a ser considerado quanto à pessoa de Berta Lutz: ela não se casou
e nem teve filhos, pode-se dedicar integralmente à sua carreira profissional e à car-
reira política, naquele contexto social e cultural onde o casamento ainda tinha tra-
dicionalmente importância, como também, o de ter filhos. Vários fatores exógenos
favoreceram a aprovação do direito de voto das mulheres, embora as mulheres, ainda
não estivessem suficientemente maduras para a compreensão e da dimensão da impor-
tância do voto, mas, de fato, há o oportunismo de Getúlio Vargas que, como o pai da
sociedade brasileira, concede, mas, mantendo o controle, assim, a filha fica feliz por-
que recebeu o direito de votar, mas, quem de fato manda é o pai, neste caso, o Estado.
Embora a conquista do voto feminino no Brasil não possa ser considerada
como um movimento exclusivamente da classe média, a proximidade das sufra-
gistas brasileiras com a elite política contribuiu, sensivelmente, para a conquista
do direito de voto das mulheres no Brasil muito tempo antes do que a maioria dos
países da América Latina.
Quais as estratégias alinhavadas para superar as barreiras de uma sociedade
tradicionalmente machista para permitir o avanço e a conquista do sufrágio femi-
nino? Com certeza o argumento de que o sufrágio feminino não tinha em mente
desapropriar o lugar do homem na política, apenas de caminhar ao lado dele. Este
argumento, de fato, contribuiu para que o direito de voto das mulheres sobrevivesse
a tantas resistências e pudesse, enfim, ser aprovado.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 319

No entanto, fica evidente que este argumento cristalizado nas mentes de ho-
mens e mulheres, traz, em seu bojo, consequências de difícil gerenciamento na me-
dida em que a participação feminina no jogo político ainda é muito tímida exata-
mente porque na mentalidade das mulheres a política é assunto dos homens. Esta
agorafobia política construída culturalmente é de difícil reversão. Como as mulhe-
res não tiveram muitas oportunidades de exercício da cidadania política ainda não
tem o traquejo suficiente para entender as regras do jogo político montada em um
gabarito masculino e para homens.
A conquista do direito de voto das mulheres decorreu do esforço mobilizado
de mulheres educadas da classe alta e média que, no entanto, não se identificava
com a maioria da população feminina. Em outras palavras, pouco efeito fez na vida
das mulheres pobres, sem acesso à educação básica. Esta maioria feminina pobre e
iletrada não se sentia reconhecida como igual àquelas sufragistas.
Bertha Lutz, de fato, contribuiu para a cidadania política das mulheres porque
soube articular nas diversas forças internas para a aprovação do direito ao voto das
mulheres por sua postura apaziguadora em não acirrar as oposições ao movimento
sufragista e por conviver com as relações de poder sem desafiá-lo ou contestá-lo
argumentando que o direito de voto das mulheres não ameaçava a família.
Críticos ao feminismo, como Antonio Austregésilo Lima, na mesma propor-
ção em que o aplaudia neutralizava seu significado, outros, por sua vez, implanta-
vam diversas estratégias antifeministas, sendo a mais eficaz, por certo, a “ridiculari-
zação e vulgarização do feminismo” (BESSE, 1999, p. 214). Nesta esteira, o aporte
teórico de Hannah Arendt (2003), guardadas as devidas proporções, contribui para
a compreensão da estratégia utilizada de banalização do feminismo.
A retórica de Bertha Lutz para a articulação do movimento sufragista femini-
no brasileiro procurou não ser comparado ao movimento sufragista americano ou
mesmo inglês, que se destacavam por seus atos mais incisivos e agressivos, ao pon-
derar que o feminismo brasileiro triunfará, mas que “seu triunfo não será devido às
militantes que procuram alcançá-lo pela violência, será antes a recompensa das que
se tornaram esforçadas pioneiras nas artes e nas ciências” (LÔBO, 2010, p. 108).
Por sua vez, Lúcia Avelar57 (2001, p. 29) esquadrinha a sub-representação po-
lítica das mulheres e julga que essa sub-representação social feminina deriva do
baixo status ocupacional. O Brasil, para restaurar essa sub-representação política
feminina, desenvolve um sistema de quotas lastreada na lei nº 9.504, de 30 de se-
tembro de 1997 (BRASIL 1997), que, em seu parágrafo 3º do seu artigo 10, com
a redação dada pela lei nº 12.304, de 29 de setembro de 2009 (BRASIL, 2009),
preceitua que cada partido ou coligação reserve o mínimo 30% (trinta por cento) e o
máximo de 70% (setenta por cento) do número de vagas para candidaturas de cada
sexo. Empenha-se alcançar a maior participação das mulheres na representação po-
lítica para inserir “elementos de mudança na qualidade do exercício da política”
(AVELAR, 2001, p. 23).

57 A autora aborda minuciosamente em sua obra Mulheres na elite política brasileira, a participação política da mulher, as
razões da baixa participação feminina da elite política e lições para o acesso ao poder.
320

A partir dos dados das eleições de 2012 publicados pelo Tribunal Superior
Eleitoral - TSE, constata-se o universo de 140.625.562 eleitores, sendo 67.365.003
homens e 73.260.559 mulheres que corresponde, respectivamente, a 47,861% e
52,048% do total de eleitores. Esses dados demonstram o expressivo contingente de
mulheres que exercem o direito de voto.
Contudo, as últimas eleições para prefeitos e vereadores, no entanto, revelam
um cenário muito emblemático porque, do total de 5.515 prefeitos eleitos, 4.858
são homens e 657 são mulheres, ou seja, menos de 12% dos prefeitos eleitos são
mulheres. No mesmo sentido, dos 57.402 vereadores eleitos, 49.748 são homens e
7.654 são mulheres, o que corresponde à menos de 14% da sua totalidade. A des-
peito dos dados sobre o grau de instrução dos eleitores brasileiros coletados pelo
TSE demonstrarem níveis de instrução das mulheres significativamente superior
aos homens, embora considerando o universo de analfabetos de 7.699.313, sendo
47,086% (3.630.053) homens e 52,784% (4.069.260) mulheres, é baixa a participa-
ção das mulheres no espaço público.
Entretanto, a mera variação do cenário da sub-representação política das mu-
lheres, com a eleição de mais mulheres, não se harmoniza com o propósito a ser
atingido, a da representação substantiva, com a apuração de mulheres com discer-
nimento da discriminação feminina, que, por essa razão, não desfrutam da mesma
igualdade em relação aos homens. Por conta disso, é imprescindível a seleção de
mulheres feministas que estejam comprometidas politicamente na elaboração de
identidades políticas femininas para orientar a ação política.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 321

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2013). Retórica analítica como metódica jurídica.


Argumenta UENP, nº 18, p. 11-29.
______ (2011). Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo.
São Paulo: Noeses.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta pelo voto no Brasil.
Petrópolis:Vozes, 1980.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Posfácio
de Celso Lafer. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
AUGUSTA, Nísia, Nísia Floresta Brasileira. Direitos das mulheres e injustiça dos
homens. São Paulo: Cortez, 1989.
AVELAR, Lúcia. Mulheres na elite política brasileira. São Paulo: UNESP, 2001.
BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de
gênero no Brasil: 1914-1940. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Edi-
tora da Universidade de São Paulo, 1999.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 6. ed. Tradução de Maria Helena
Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, de 24 de
fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 14 dez. 2013.
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de ju-
lho de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 14 dez. 2013.
______. Decreto nº 7.247, de 18 de abril de 1879. Dispõe sobre a reforma do
ensino primário e secundário no município da Corte e superior em todo o Impé-
rio. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decre-
to-7247-19-abril-1879-547933-publicacaooriginal-62862-pe.html>. Acesso em: 08
mar. 2014.
______. Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881. Disponível em: <http://www.
tse.jus.br/eleitor/glossario/termos/lei-saraiva>. Acesso em: 8 mar. 2014.
______. Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. Disponível em: <http://
legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=33626>. Acesso em: 14
dez. 2013.
______. Lei de 15 de outubro de 1827. Disponível em: <http://www.direitoshuma-
nos.usp.br/index.php/Educa%C3%A7%C3%A3o-no-Imp%C3%A9rio/lei-de-15-
-de-outubro-de-1827.html>. Acesso em: 08 mar. 2014.
______. Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916 - Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 14 dez. 2013.
______. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9504.htm>. Acesso em: 14 dez. 2013.
322

______. Lei nº 12.034, de 29 de setembro de 2009. Disponível em: <http://www.pla-


nalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12034.htm>. Acesso em: 14 dez. 2013.
­CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança na Cons-
tituição: mutações constitucionais e mutações inconstitucionais. 1. ed. São Paulo:
Max Limonad, 1986.
FRASER, Nancy. Justiça Anormal. Revista FDUSP, v. 108, p. 739-768, jan/dez 2013.
______. Justiça Social na era da política de identidade: reenquadrando a Justiça
num mundo globalizado. Lua Nova, 77, 11-39, 2009.
______. Políticas feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimen-
sional da justiça de gênero. In: BRUSCINI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra G. Gê-
nero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC: Ed. 34, 2002, p. 61-78.
FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A Politi-
cal-Philosophical Exchange. London: Verso, 2003.
HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher
no Brasil. 1850-1940. Tradução Eliane Tejera Lisboa. Sant Cruz do Sul, RS: Editora
Mulheres, 2003.
LÔBO, Yolanda. Bertha Lutz. Recife: Fundação Joaquim Nabuco: Editora Mas-
sangana, 2010 (Coleção Educadores).
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. ed. Tradução José Lame-
go. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
LUTZ, Bertha. Carta de Bertha Lutz à Revista da Semana. Revista da Semana. Se-
ção Cartas de Mulher, 28 de dezembro de 1918. In SOIHET, Rachel. O feminismo
tático de Bertha Lutz. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2006, p. 173-176.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 13. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993.
PEDRA, Adriano Sant’Ana. A Constituição viva: poder constituinte permanente e
cláusulas pétreas na democracia participativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2012.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, Estatística das eleições de 2012. Disponí-
vel em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas>. Acesso em 08 mar. 2014.
SOIHET, Rachel. O feminismo tático de Bertha Lutz. Florianópolis: Ed. Mulhe-
res; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.
ANÁLISE DA USURA A PARTIR DA
FUNÇÃO LEGITIMADORA DA RETÓRICA
NA CARTA DO OUVIDOR GONZAGA:
uma investigação da originalidade na aurora
do pensamento jusfilosófico brasileiro
Eduardo Constantino das Neves

Resumo: Este capítulo tem por objetivo estudar o pensamento jusfilosófico


de Tomás Antônio Gonzaga em sua obra Carta sobre a usura, a partir da pers-
pectiva retórica proposta por Ottmar Ballweg. Analisa o momento histórico
vivido por Gonzaga, bem como suas estratégias argumentativas, de forma a
saber se houve originalidade no seu pensamento. Aqui também se defende
que a postura retórica é a mais adequada para compreender o funcionamento
do mundo jurídico.
Palavras-chave: História das ideias jurídicas. Retórica. Tomás Antônio Gonzaga.
Abstract: This paper aims to study Tomas Antonio Gonzaga`s legal philosophy,
focusing on his work Carta sobre a usura, (Letter on Usury), applying the
rhetorical perspective proposed by Ottmar Ballweg. It analyzes the historical
moment Gonzaga lived in, as well as his argumentative strategies, in order to
know whether there was originality in Gonzaga`s thinking. It also advocates
that the rhetorical approach is the most suited to understand the legal world.
Keywords: History of legal ideas. Rhetoric. Tomas Antonio Gonzaga.
Sumário: Introdução: uma nova perspectiva jusfilosófica a partir da teoria da
tripartição retórica do mundo. 1. A construção da realidade de Gonzaga: jus-
naturalismos teológico e racional no Brasil - Colônia da segunda metade do
século XVIII. 2. O debate acerca da (re)significação do termo usura a partir
do parecer do Gonzaga Ouvidor. 2.1. O debate. 2.2. Argumentos acerca da
expressa repugnância ao direito natural. 2.3. Argumentos acerca da natureza
racional. 2.4. Argumentos acerca do Velho Testamento. 2.5. Argumento acer-
ca do Novo Testamento. 2.6. Argumentos acerca dos Concílios. 3. A retórica
da Carta sobre a usura e sua pragmática. 4. As imprecisões linguísticas do
termo usura e sua relação com a atual discussão jurídico-dogmática relativa
aos significantes e significados. 5. A questão da originalidade em Gonzaga e
sua contribuição para o pensamento jurídico brasileiro. Referências.
324

Introdução: uma nova perspectiva jusfilosófica a


partir da teoria da tripartição retórica do mundo

Tomás Antônio Gonzaga, nacionalmente conhecido como o inconfidente de


Minas e pelos seus versos de Marília de Dirceu, é um autor multifacetado. Porém
pouca atenção ainda foi dada a sua contribuição jurídica, suas ideias para a forma-
ção do pensamento nacional. Sua posição foi de encontro às ideias do seu tempo,
chegando a ser até um vanguardista, ou defendeu ele o pensamento dominante? Em
que medida houve originalidade em suas ideias, se é que houve? Ou até, se ele é
pouco falado na esfera jurídica, tem Gonzaga, então, pouca importância para esse
meio? Estes são alguns pontos que servem de motivo para uma pesquisa na área
jurídica acerca do autor. De antemão já se ressalva aqui que não se deve deixar ilu-
dir com a suposta resposta dessa última pergunta, pois não é porque a maioria não
costuma comentar acerca dele que seu trabalho não seja digno de estima, ou seja, é
uma falácia ad populum, que se caracteriza por uma tentativa de ganhar a concor-
dância para uma conclusão, despertando as paixões, evitando provas e argumentos
racionais. Assim, a concordância geral com uma opinião não prova que seja correta
(COPI, 1978, p. 80).
Poucos têm conhecimento de que Gonzaga, além de ter escrito o Tratado de
Direito Natural, é o autor também da Carta sobre a usura. Porém existe uma dis-
tância nas posturas das duas obras no que diz respeito às ideias defendidas, o que se
explica, sobretudo, pelo momento em que foram escritas: a primeira, com Gonzaga
ainda jovem, escrita quatro anos após sua saída da Universidade de Coimbra, na
intenção de obter a docência da recém-criada cadeira de direito natural; a segunda,
mais de dez anos após o Tratado, com Gonzaga ocupando o cargo de Ouvidor de
Vila Rica, Minas Gerais.
Aqui tomaremos por objeto de estudo o pensamento do jurista Tomás Antônio
Gonzaga a partir da sua obra Carta sobre a usura, sobre a qual faremos uma análise,
tentando mostrar a função legitimadora da retórica na prática da usura no Brasil de
1780. Assim o presente trabalho se insere na atual temática estudada pelo Grupo de
Pesquisa: “As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil: Originalidade e con-
tinuidade como questões de um pensamento periférico” sob orientação do professor
Dr. João Maurício Adeodato. O objetivo do Grupo de Pesquisa é estudar as ideias, no
âmbito dos autores do cenário nacional, que influíram no ambiente jurídico.
O Grupo de Pesquisa se edifica, sobretudo, a partir da dupla base Aristóte-
les e Ballweg: o primeiro como um ponto de partida tendo na sua obra Retórica
(ARISTÓTELES, 2007) as principais contribuições, tais como o estudo do ethos
(o caráter pessoal do orador, o que tornará o seu discurso digno de crença), pathos
(a capacidade do orador de despertar emoções nos ouvintes) e logos (a organização
lógica do raciocínio), no discurso persuasivo; o segundo como referência para pen-
sar e explicar o direito por meio de sua proposta inovadora de leitura do mundo a
partir da retórica analítica (BALLWEG, 1991, p 175-184). Para isso Ballweg separa
a retórica em três níveis: material, prática e analítica.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 325

Dessa forma aqui se pretende analisar as ideias jurídicas de Gonzaga no âmbi-


to da retórica. Essa análise inicialmente vai tentar reconstruir o momento histórico-
-cultural e seus acontecimentos ao tempo do autor escolhido para que se tenha em
mente o ambiente que o influenciou. Depois serão estudadas as próprias ideias do
autor, as quais tentaram, por sua vez, estrategicamente influenciar e interferir em seu
meio. A parte final consiste numa tentativa de análise, mostrando como as duas eta-
pas anteriores funcionam e se inter-relacionam. Deste modo se constituem algumas
das perguntas a que tentaremos responder: há alguma influência da reforma pomba-
lina na Carta? Se sim, qual o alcance da adesão dessas ideias por parte de Gonzaga?
Foi a defesa do jusnaturalismo racional, na Carta, apenas fruto da influência de
pombal? Qual o resultado prático da carta? Conseguiu os efeitos esperados?
A retórica carregou ao longo da história do ocidente uma conotação pejorativa.
Isso se deve, sobretudo, a uma confusão e a um uso limitado do seu significado.
Já advertia Aristóteles que aqueles que até o momento escreveram sobre retórica
ocuparam-se apenas de uma parte dessa arte (ARISTÓTELES, 1998, p. 44). Ou
seja, não é só nos estímulos de uma resposta emocional que se pauta a retórica. Tal
visão restrita conduziu constantemente à ideia de que a retórica é um vale-tudo para
a persuasão, que faz uso, se necessário, da enganação. Porém não é. A retórica não
é só engodo e ornamento e muito menos se reduz à persuasão, mas contém todas
essas estratégias.
É relevante apontar a íntima relação entre retórica e democracia no sentido de
que aquela corrobora com esta. A princípio, a retórica teve uma importância espe-
cial na democracia grega devido ao uso público que se faziam dos discursos, pelos
cidadãos, na defesa de suas causas. Com o declínio das democracias houve uma
restrição desse espaço reservado para a discussão e, paralelamente, um declínio da
retórica. Contemporaneamente a proposta retórica retoma força, dentre outros mo-
tivos, por mostrar-se pertinente ao projeto democrático das sociedades ocidentais.
Aqui se toma por base a ideia de que é a retórica a forma mais adequada de
tentar compreender o funcionamento do mundo jurídico. Isso porque, juntamen-
te com a grande complexidade das sociedades pós-modernas no seio do sistema
capitalista e sua forma de produção em massa, vem-se assistindo ao fenômeno do
esvaziamento de valores. Isso leva por sua vez a uma sobrecarga de demandas sobre
o direito. Daí o juiz, cujas convicções acabam por exercer parte importante no pro-
cesso de decisão, não dever deixar explícito esse caráter subjetivo, uma vez que está
inserido numa sociedade de direito dogmaticamente organizado (SOBOTA, 1996,
p 251-273). Além do mais, a estrutura da argumentação judicial se dá de forma
entimemática e não silogística, e se poderia dizer que esta última tem um caráter
altamente funcional, eficaz e legitimador (ADEODATO, 2009b, p. 330).
E mais, a retórica não se restringe a compreender o mundo jurídico, mas ela é
também uma forma de lidar com o ambiente em que vivemos, de “experimentar” o
mundo, é uma forma de ao mesmo tempo observar e estar no ambiente (ADEODATO,
2009a, p. 15).
326

Não é difícil perceber que a retórica não se enquadra, portanto, como uma filo-
sofia, se se entender por filosofia a busca da verdade. Mas, uma vez que não se toma
a verdade como norte da investigação filosófica, pode-se tomar a retórica como uma
espécie de filosofia, posição esta adotada pelo Grupo de Pesquisa.
As dominantes ontologias, epistemologicamente, partem do pressuposto de
que a linguagem é simplesmente uma ponte, um meio para se chegar à descoberta
da verdade e através dela coagir todos os seres humanos a aceitá-la. Ou seja, por trás
da linguagem existe uma verdade. Axiologicamente, a verdade reflete-se no justo e
correto (ADEODATO, 2009a, p. 17). Aqui o ser humano é tido como a espécie que
se jacta de dominar a natureza.
Já para os retóricos, a linguagem é o máximo de acordo possível, o qual, sendo
circunstancial, momentâneo e temporário, constitui nossa realidade tendo em vista
que a relação humana com a realidade é indireta, complexa, seletiva e metafórica
(ADEODATO, 2009c, p. 250). Ou seja, torna evidente o caráter autorreferente da
linguagem, a qual tira seu fundamento em si mesma, e está sujeita às regras publi-
camente controláveis. Daí a lucidez da afirmativa de que “A linguagem é retórica
porque deseja comunicar somente uma doxa (opinião), não uma episteme (conhe-
cimento)” (BALLWEG, 1991 p. 176). Isso porque os “fatos” são frutos dos relatos
acerca dos eventos. Nesse sentido a máxima: a história é escrita pelos vencedores.
Isso mostra como é mais modesta a postura heurística do mundo, que despreza o
apego a verdades válidas universalmente, ao invés da holística, que pretende uma
generalização dos fenômenos (ADEODATO, 2009c, p. 249).
Outro importante traço da postura retórica é ela ser norteada pelo ceticismo
pirrônico. Tal filosofia tem como fundamento a abstenção de juízos definitivos uma
vez que reconhece a acatalepsia e a isostenia o que leva à afasia e consequentemen-
te a uma ataraxia. O primeiro conceito significa que o ser humano carece de conhe-
cimento seguro em relação à essencial “natureza dos objetos”, o segundo significa
que os dois lados de uma questão têm igual força, o terceiro significa o silêncio
prudente diante das coisas, e o quarto é a imperturbabilidade, não no sentido de in-
diferença em relação ao mundo, mas sim de independência. Axiologicamente, o ce-
ticismo assume uma postura de tolerância e tenta manter-se longe de dogmatismos.
O ceticismo costuma receber a crítica de que seus argumentos são autorre-
futáveis, pois se nenhum tipo de conhecimento é possível, muito menos o é o seu
próprio. Porém o objetivo da investigação cética é procurar induzir o sujeito cog-
noscente a suspender juízos definitivos, não quaisquer juízos, o que leva a uma
visão de mundo e a um estado de espírito que os céticos consideram agradável
(ADEODATO, 2009b, p. 392).
Adeodato traz como fundamentos da retórica historicismo e humanismo, além
do próprio ceticismo. Historicismo na medida em que toma por base os relatos que,
por seu caráter circunstancial, variam com o tempo, incapacitando a sua objetiva-
ção, ao mesmo tempo em que se afasta de uma visão escatológica e etiológica, ou
causal. Por isso o historicismo da retórica é sisífico. Humanismo na medida em que
fornece o conteúdo material para a retórica, admitindo que o conhecimento ético só
é possível dentro da linguagem e do seu relativismo inerente.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 327

A tripartição da retórica proposta por Ballweg sugere a retórica como material,


estratégica e analítica. Adeodato propõe a identificação destes três níveis retóricos
com método, metodologia e metódica, respectivamente.
A retórica material está relacionada com o método, o qual pode ser traduzido
pelas maneiras através das quais efetivamente ocorre a comunicação no ambiente.
A retórica material é composta pelos relatos acerca dos eventos e constitui o primei-
ro plano de realidade. São as próprias relações humanas enquanto comunicação; é
o “fato linguístico” que constitui o consenso, o qual circunstancial, momentâneo,
está sujeito às regras publicamente controláveis. É a única condição ontológica da
antropologia: conhecer apenas relatos acerca do mundo. Dessa forma será abordado
aqui inicialmente o ambiente histórico de Gonzaga de forma descritiva: os “fatos”,
as controvérsias, os acontecimentos. Ou seja, a reforma universitária proposta por
Pombal em 1772, suas consequências políticas e também a disputa entre as ideias
jusnaturalistas teológico e racional, dentre outros.
A retórica estratégica ou prática está relacionada com a metodologia, que é
uma teoria dos métodos. A retórica estratégica é prescritiva, é uma meta-linguagem
e vai dizer como interferir e obter sucesso no meio, ou seja, toma por objeto a retóri-
ca material. Estuda o momento adequado de dizer e fazer acontecer (ADEODATO,
2009a, p. 37). Então, após a descrição do ambiente de Gonzaga será feito um estudo
para identificar quais foram os recursos usados por ele no sentido de influir estrate-
gicamente dentro do seu meio. Ou seja, quais foram as estratégias e os argumentos
de Gonzaga para defender a usura na Minas de 1780?
A retórica analítica está relacionada com a metódica a qual analisa a relação
entre como se processa a linguagem humana e como as pessoas acumulam experi-
ências e desenvolvem estratégias para utilizá-la de modo eficiente (ADEODATO,
2009a, p. 38). A retórica analítica é descritiva, procura ser isenta axiologicamente e
toma por objeto tanto a retórica material como a estratégica, pois vai tentar sistema-
tizar e compreender as relações entre ambas.

1. Aconstrução da realidade de Gonzaga:


jusnaturalismos teológico e racional no
Brasil-Colônia da segunda metade do Século XVIII

A estrutura jurídica do Brasil-Colônia está intimamente relacionada com a de


Portugal. De fato, o Direito vigente no Brasil-Colônia foi transferência da legisla-
ção portuguesa contida nas compilações de leis e costumes conhecidos como Or-
denações Reais, que englobavam as Ordenações Afonsinas (1446), as Ordenações
Manuelinas (1521) e as Ordenações Filipinas (1603) (WOLKMER, 2003, p. 47).
Ao final do século XVIII, a colônia já havia deixado para trás o regime
de capitanias hereditárias, mas seus hábitos e práticas políticas persistiam
(GONÇALVES, 1999, p. 96). Dessa forma havia um substrato que favorecia a troca
de favores e interesses. Em linhas gerais, o período do Brasil-Colônia tinha uma
estrutura econômica marcada por práticas mercantilistas e escravistas, bem como
328

por uma montagem político-administrativa semifeudal, patrimonialista e elitista


(WOLKMER, 2003, p. 57).
Em Minas o ciclo do ouro passa a entrar em decadência, causando o aumento
dos arrochos do fisco lusitano. Ainda assim, tal ciclo trouxe maior dinamismo e pro-
gresso da vida urbana, consequentemente despertando interesses intelectuais. Com
isso, houve uma maior tomada de consciência da situação em que se encontrava o
Brasil dentro do sistema mercantilista e começaram os atritos com Portugal com
vistas à independência.
Entretanto não havia ainda no Brasil centros culturais, o que só foi ocorrer
com a chegada de D. João VI. Além disso, as influências estrangeiras eram restritas,
o que fazia com que apenas as ideias portuguesas chegassem ao Brasil. As primeiras
foram a escolástica e o praxismo. Nesse tempo, a maioria da população brasileira
era analfabeta e tinha na promessa escatológica e maniqueísta cristã o alívio para os
sofrimentos desse mundo.
O século XVIII, também conhecido como o século das luzes, presenciou sig-
nificativas modificações nas bases sociopolíticas da época. É a experiência do ilu-
minismo que trazia novos ares e tinha no racionalismo e humanismo seus principais
traços. Começava a tomar forma o liberalismo e o Estado burguês que ao mesmo
tempo buscava ficar mais forte com a centralização do poder político não admitindo
mais as ingerências religiosas, o que fazia com que se acentuasse seu caráter laico.
Para isso, entretanto, era necessário legitimar essa nova forma de governar. A forma
encontrada foi através do jusnaturalismo moderno.
O jusnaturalismo defende, mesmo com toda a variação interna acerca da forma
de legitimação, em linhas gerais: a dualidade da existência de um direito positivo e
de um direito natural, em que este último tiraria sua validade em si mesmo e seria
também anterior ao direito positivo; a imutabilidade de seus princípios e valores; a
universalidade desses valores; e a superioridade do direito natural frente ao direito
positivo devendo prevalecer aquele em caso de conflito entre as normas.
Ao longo da história constatam-se três principais vertentes do jusnaturalismo.
A primeira apareceu na Grécia com Antígona e diz que a lei natural tem origem na
própria natureza das coisas, ou seja, existe um direito “justo por natureza”.
A segunda, chamada jusnaturalismo teológico, representada em grande par-
te pela escolástica, solidificou-se na Idade Média e sustenta que a lei natural tem
origem na vontade divina revelada ao homem. Tem como principal representante
Tomaz de Aquino, que afirma a existência de quatro leis: a lei eterna, lei divina, lei
natural e lei dos homens. A lei eterna é inacessível para o homem e a única forma de
se apreender os seus ditames é através da lei natural que por sua vez é a fonte da lei
humana. A lei divina, ou seja, aquela revelada pelas Sagradas Escrituras se constitui
no único meio capaz de estabelecer a ponte entre os homens e Deus. Portanto o di-
reito natural é um dado de forma objetiva apresentado pela ordem divina.
Tal postura é adotada por Gonzaga na sua primeira obra Tratado de direito
natural: Deus teria infundido no coração dos homens as leis que este poderia seguir
ou não (GONZAGA, 2004, p. 10). Sustenta que o direito natural, identificado com
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 329

Deus, rege as relações sociais. Keila Grinberg afirma que o propósito de Gonzaga
com esta obra era manter o funcionamento da sociedade baseado em Deus e no po-
der divino do monarca (GONZAGA, 2004, p. XI).
A terceira vertente do jusnaturalismo é denominada jusnaturalismo moderno.
Ao procurar se desligar da noção de fé e dos desígnios divinos, afirma que a lei
natural tem origem apenas na razão humana. Tem como principais representantes
Samuel Pufendorf e Hugo Grotius.
Em Portugal, é a partir da reforma do ensino jurídico, promovida pelo Mar-
quês de Pombal, que as ideias iluministas começam a ser introduzidas. A mudança
se deu, sobretudo, pela reforma das fontes do direito português por meio da Lei da
boa razão (1769) e a posterior instauração da cadeira de direito natural (1772). Não
mais seriam consultados, com a mesma primazia, os glosadores, também chamados
de ‘bartolistas’, nem mesmo seria utilizado o Direito Canônico. A partir da reforma
do ensino jurídico passa a ganhar importância o direito pátrio português, posto ago-
ra como fonte principal.
O Direito Romano só poderia ser utilizado se estivesse de acordo com a ‘boa
razão’, sobre o que, em última instância, quem decidia era o Rei, o que também se
aplicava aos costumes. Já quanto ao direito canônico, este passou a ser proibido,
inclusive como fonte subsidiária, uma vez que fora apontado como “erro manifes-
to”. Dessa forma o Rei conseguiu, amparado pelas ideias iluministas, centralizar o
poder, colocando em segundo plano o direito Romano e o Canônico.
Agora, com a lei da boa razão, o que se despachava para o Brasil não era
apenas escolástica, burocracia cultural, ou escolástica estatal: eram também novas
usanças e novas possibilidades, embora ainda remotas (SALDANHA, 2001, p. 58).
A reforma das mentes deveu-se também à atenção com que Pombal acompanha-
va o que se passava no resto da Europa. Trocava cartas com o jansenita Gabriel Du-
parc de Bellegarde, no clima reformista de Utrecht, ou fazia traduzir uma obra como a
do alemão Justinus Febronius, Do Estado da Igreja e do Poder Legítimo do Pontífice
Romano (Lisboa, 1770, 2 vols.). O Febronismo defendia a superioridade do Estado
sobre a Igreja, embora defendesse a permanência da religião (MOTA, 2006, p. 66).
Dos documentos portugueses oficiais da época, as Deduções Cronológicas e
Analíticas e o Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra (1771) já ressal-
tam a urgência de reformas nas fontes jurídicas e uma solução para a questão dos
jesuítas. Nas Deduções os jesuítas são acusados de conspirações, intrigas e revoltas
para tentar subordinar o Estado à Companhia de Jesus (MACHADO, 1968, p. 36).
O Compêndio Histórico, influenciado por Verney a partir da sua obra Verdadeiro
método de estudar, conclui por imputar aos jesuítas a responsabilidade sobre a situ-
ação de decadência da universidade de Coimbra, e também declara o índex romano
como um atentado à inteligência portuguesa, além de dizer que os jesuítas são os
‘inimigos da verdadeira cultura’.
Quanto aos novos Estatutos da Universidade de Coimbra, redigidos em
1772, eles fizeram referência direta à necessidade de lecionar as obras de Grotius e
Pufendorf na Universidade, instituíram a cadeira de direito natural e, pela primeira
vez, aconselhavam também a confecção de um compêndio pelos professores.
330

É nesse contexto que se encontrava o peralta Gonzaga (FRIEIRO, 1950, p. 21),


nascido a 11 de agosto de 1744 na Rua dos Cobertos, cidade do Porto. Gonzaga,
a exemplo de todos os poetas pré-românticos, teve formação clássica, o que é uma
característica do século XVIII. Todos foram filhos da retórica, disciplina que passou
a agonizar na segunda metade daquele século (GONÇALVES, 1999, p. 66). Seu pai,
João Bernardo Gonzaga, foi magistrado e seu avô, advogado. Perdeu sua mãe com
menos de nove meses de vida e, em 1747, passou a morar com tias, algumas das quais
freiras, e tios, os quais eram padres. Devido às promoções de João Bernardo, Gonzaga
fez algumas viagens, até se matricular na Universidade de Coimbra em 1762.
João Bernardo era homem de confiança de Pombal, o que foi decisivo para a
sua careira e a do seu filho, em uma sociedade do antigo regime (VALLE, 2005). O
pai de Gonzaga foi nomeado, dentre outros cargos de prestígio, desembargador da
Relação do Porto e desembargador da Casa da Suplicação. Já Gonzaga formou-se
em 1768 e em 1778 foi nomeado juiz de fora de Beja. Em 1782 é enviado ao Brasil e
indicado a ocupar o cargo de Ouvidor de Vila Rica (Ouro Preto). Em 1783, a pedido
de seu amigo Francisco Gregório Pires, redige a Carta sobre a usura em meio a uma
Minas baseada em fortes redes clientelares, tipo específico de rede de sociabilidade
baseada na amizade, que fundamentou a estrutura político-social do Brasil-Colônia.
Quanto à posição do Governo em relação às usuras, o regime da proibição
absoluta perdurou até as Afonsinas, as quais, atendendo, provavelmente, às exi-
gências da expansão comercial resultante inclusive da perspectiva promissora dos
descobrimentos, estabeleceram que a usura, embora condenada, podia ser admitida,
em alguns casos (Liv. IV, Tít. 67, 1). Caminhava-se, outra vez, para a liberalização
das taxas de juros (AZEVEDO, 2007, p. 166).

2. O debate acerca da (re)significação do
termo usura a partir do parecer do
Gonzaga ouvidor

Aqui vamos examinar a Carta para mostrar os elementos retóricos dos quais
fez uso Gonzaga. Para a análise do discurso é preciso, inicialmente, identificar alguns
elementos retóricos, quais sejam: quem? Quando? Contra o quê? Por quê? Como?
A Carta sobre a usura foi escrita por Tomás Antônio Gonzaga, quando ocu-
pava o cargo de Ouvidor, em 1783. Escrita contra aqueles que condenavam a usura
(os escolásticos) e contra a doutrina do jusnaturalismo teológico, pois se baseia em
um direito natural racionalista, tem como objetivo mostrar que a prática da usura
não é proibida, mas sim legítima. O autor da Carta se manifesta em primeira pessoa
(“vejo o que me pedis ora pergunto; creio que não”) (GONZAGA, 1957, p.155); e
por meio de esparsas citações em latim, o que é um meio de demonstrar erudição
e ganhar credibilidade para com seus leitores, ou seja, ressaltar o ethos do orador.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 331

Quanto ao auditório, já podemos identificar a apóstrofe, figura pelo qual o ora-


dor finge dirigir-se a outro auditório e não àquele ao qual efetivamente fala. Ora, a
Carta se destina a Francisco Gregório, um auditório particular. Porém o auditório real
é outro, bem mais amplo, pois várias cópias da obra circularam por toda a capitania
e chegaram a Coimbra (GONÇALVES, 1999, p. 124), o que evidencia o possível al-
cance prático da Carta. Quanto ao acordo prévio, premissa presumidamente admitida
pelos ouvintes (PERELMAN, 1996, p. 73), identificamos uma presunção ideológica:
o jusnaturalismo racional. “A lei natural é a fonte pura donde dimanam os demais
direitos [...] nem basta para se julgar qualquer ato ilícito que se lhe não veja a confor-
midade que ele tem com a natureza racional.” (GONZAGA, 1957, p. 156)
Tal postura mostra, portanto, um alinhamento de Gonzaga com as ideias da
reforma pombalina, a qual consistiu basicamente em duas medidas: primeiro, na re-
forma do ensino jurídico com a criação da cadeira de direito natural, acompanhada
de referência direta para lecionar Grotius e Pufendorf. Assim houve a introdução do
iluminismo e do pensamento jusnaturalista moderno em Portugal, expressos pela
Lei da boa razão, que coloca o direito pátrio acima do canônico, eminentemente
internacionalista. Segundo, com a criação do Compêndio histórico, o qual buscava
fortalecer ainda mais o Estado laico português.
No exórdio, parte que inicia o discurso, Gonzaga parece cumprir bem a fun-
ção de tornar o auditório dócil, atento e benevolente. Dócil quando expõe clara e
brevemente a questão. Atento quando diz que “esta matéria sempre foi a pedra de
escândalo entre teólogos e juristas” (GONZAGA, 1957, p. 155). O termo meta-
fórico “pedra de escândalo” serve de ênfase, para chamar a atenção do auditório
quanto à importância do assunto. Benevolente quando faz uso do cleuasmo, figura
que consiste na autodepreciação: “esta matéria tem sido tratada por homens muito
superiores a mim nos estudos e talentos; e tendo vós examinado os seus melhores
escritos, parece que injuriais a eles e a vós, querendo também ouvir-me, na errada
suposição de que ainda poderei ou dizer coisas novas, ou dar mais força às que estão
já ditas” (GONZAGA, 1957, p. 155). Tal figura tem importante função no ethos
do discurso, pois faz despertar no auditório confiança quanto ao caráter do orador.
De acordo com a classificação de Aristóteles, o gênero da Carta sobre a usura
se encaixa, sobretudo, no deliberativo (ou político). Deliberativo é aquele que nos
estimula a fazer ou não fazer algo (aconselhar ou desaconselhar) em relação ao tem-
po futuro, construído pelo argumento-tipo paradigmático (indução pelo exemplo)
e tendo como fim o conveniente ou prejudicial (útil ou nocivo) (ARISTÓTELES,
2008, p. 62-63). Tal classificação não impede, entretanto, que encontremos na obra
elementos outros além daqueles do gênero deliberativo.
A estrutura de construção do parecer de Gonzaga revela duas coisas: em pri-
meiro lugar a sua boa formação em dialética, pois o parecer se arranja de forma
silogística: inicialmente expõe o tema, a posição que pretende criticar, e depois
investiga o problema e finaliza com a conclusão de seu posicionamento (que em sua
opinião é o melhor, mais racional, mais sensato...); em segundo lugar, mostra a sua
educação religiosa clássica, pois Gonzaga faz sempre referências à Bíblia.
332

Podemos sintetizar o pensamento na Carta da seguinte forma: a tese que Gon-


zaga se propõe a rebater é aquela que “trata como públicos usurários a todos aque-
les que emprestam dinheiro a juros” (GONZAGA, 1957, p. 155). De acordo com
Gonzaga, para julgar se algum ato é ilícito é necessário comparar com a lei natural,
a qual se relaciona com a natureza racional, e a partir dessa análise descobrir a
expressa repugnância ao direito natural, porque todas as ações humanas se julgam
facultadas enquanto se não mostram proibidas. Essa última parte evidencia uma
premissa verossímil (endoxa) e poderia ser classificada ainda como uma falácia ad
ignorantiam, falácia que consiste em considerar uma proposição como verdadei-
ra simplesmente porque não foi provada sua falsidade, como por exemplo: devem
existir fantasmas, visto que ninguém foi ainda capaz de provar que não existem.
Assim Gonzaga vai argumentar em cinco pontos principais: a expressa re-
pugnância ao direito natural, a natureza racional, o Antigo Testamento, o Novo
Testamento e os Concílios.

2.1. Argumentos acerca da expressa repugnância ao direito natural

Os argumentos teológicos de que a usura repugna ao direito natural, que Gon-


zaga ataca, são: 1) tudo que está proibido nos preceitos do decágolo repugna ao
direito natural. É certo que as usuras são por natureza más, já que se configuram
como furto, pois assim o disseram o Mestre das Sentenças e a usura é a violenta
usurpação de coisa alheia; 2) quem empresta alguma coisa a usuras ou vende duas
vezes a mesma coisa, porque exige as usuras em atenção do empréstimo ou vende o
que não é seu, pois as exige em razão do uso.
Quanto ao primeiro argumento teológico escreve Gonzaga:

A primeira prova é toda de autoridade, que de nada serve [a]; a segunda care-
ce de outra que a confirme [b]. Para nós vermos que a usura não é usurpação
ilícita de coisa alheia para que se possa compreender na lei do furto, basta
somente repararmos no quanto difere uma da outra coisa. O furto é um fato
violento, como que tiro coisa alheia contra vontade de seu dono [c]; a usura é
um contrato pelo qual entrego o meu dinheiro a outro debaixo da lei, que ele
voluntariamente recebe, de me restituir outra quantia de igual valor com cer-
to lucro [d]. Onde se descobrem tão diversas circunstâncias não pode haver
identidade alguma [e] (GONZAGA, 1957, p. 156-157).

Em [a] Gonzaga usa um argumento ad hominem, falácia que consiste em ata-


car a pessoa que faz a afirmação e não o argumento. A figura correspondente é a
apodioxe, que consiste em uma negação pura e simples do argumento do adversá-
rio. Complementa com uma tapinose (quando Gonzaga diz “que de nada serve”),
figura que nos remete à hipérbole. Primeiramente, a hipérbole é a figura do exa-
gero, que aumenta ou diminui as coisas em excesso, apresentando-as bem acima
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 333

ou bem abaixo do que são. A tapinose corresponde a uma variação da hipérbole


quando usada em sentido negativo (REBOUL, 1998, p. 123), como, por exemplo,
na expressão “esse anão”.
Em [b] Gonzaga aponta uma petitio principii, falácia que consiste em argu-
mentar como se o auditório admitisse a tese que se está tentando levá-lo a admitir
(REBOUL, 1998, p. 167). É vício quanto ao acordo prévio. A função dessa falácia
apontada por Gonzaga é desqualificar o argumento adversário mostrando que ele
não se sustenta. Tal argumento, bem como todo o trecho selecionado ressalta o as-
pecto do logos do discurso.
Em [c] e [d] temos a definição descritiva a serviço de uma dissociação. De-
finição é, segundo Cícero, uma figura que abarca, de modo breve e completo, as ca-
racterísticas próprias de certa coisa e desempenha função de brevidade e claridade na
explicação da natureza e propriedade das coisas (CÍCERO, 2005, p. 251-253). Porém
pode-se obstar tal pretensão de abarcar a totalidade da coisa definida simplesmente
por não ser possível. Por isso que é uma definição do tipo descritiva, aquela que pre-
tende anunciar o uso do termo definido (REBOUL, 1998, p. 172). A própria descrição
já é um argumento, pois impõe certo sentido em detrimento de outro.
Dissociação é uma técnica de ruptura que consiste em separar determinadas
noções em pares hierarquizados, com função de dirimir incompatibilidades; manter
dissociado o que o adversário pretende unir. Onde se via uma realidade, surgem
duas, uma aparente e outra verdadeira (REBOUL, 1998, p. 189):

Termo 1: o furto é um fato violento, forçado


Termo 2: a usura é um contrato de origem voluntária

O par é força/voluntariedade. A dissociação fundamenta uma dupla hierar-


quia, que consiste em estabelecer uma escala de valores entre termos, vinculando
cada um deles aos de uma escala de valores já admitida (REBOUL, 1998, p. 178):

Argumento: Contrato, voluntariedade > fato violento, forçado


Logo: Usura > furto

Tal dissociação é reforçada por [e] que funciona como uma conclusão, breve
argumentação, que produz o que é necessário que se deduza a partir das coisas ditas
ou feitas anteriormente (CÍCERO, 2005, p. 261).
Quanto ao segundo argumento teológico a respeito da repugnância:

A sorte, ou o capital, é o que se estipula em razão do empréstimo. As usuras


não se levam em atenção da coisa, levam-se sim em razão do direito da
quantidade [a], que fica radicado na pessoa do mutuante, como logo mos-
trarei; daqui vem que se não pode dizer que se vende duas vezes a mesma
coisa, pois que estas duas pagas correspondem a direitos muito diversos
(GONZAGA, 1957, p. 157).
334

Em [a] temos novamente a dissociação:

Termo 1: o capital, que se estipula em razão do empréstimo.


Termo 2: a usura, que se leva em razão do direito da quantidade.

O par é: aparência/realidade, em que a aparência está nas usuras serem levadas


em razão do empréstimo e a realidade está em serem levadas em razão do direito
de quantidade.
Para mostrar que as usuras não se exigem em razão do uso e, portanto vende-se
o que já não tem, Gonzaga faz uso novamente da apodioxe, uma vez que já mostrou
o motivo de se exigirem as usuras:

Eu não nego que o uso da coisa mutuada fica próprio da pessoa a quem se em-
presta; nego [a] que as usuras se exijam em razão do uso que se acha radicado
na pessoa do acipiente (GONZAGA, 1957, p. 157).

Em [a] temos um zeugma, pois se omite um termo que já aparece antes:


“eu”; temos também uma epanalepse, figura que consiste na repetição da palavra
(REBOUL, 1998, p. 127), ou uma transposição, segundo Cícero, figura que permite
que usemos seguidamente a mesma palavra sem ferir o bom senso (CÍCERO,
2005, p. 229). A funcionalidade de tal figura está na agradabilidade, que é mais
fácil de apreciar com os ouvidos do que demonstrar com a repetição das palavras.
O fragmento em análise caracteriza também uma refutação pelo método, direta,
do tipo nego consequentiam, em que se admitem os fundamentos, mas se nega a
afirmação; ataca-se a consequência (SCHOPENHAUER, 1997, p 120).
Quanto à natureza do contrato de usura, recorre mais uma vez à definição [a]
[b] e à dissociação:

O rigoroso mútuo e as usuras são contratos entre si diversos. O mútuo é um


contrato pelo qual se entrega a outro certa coisa gratuitamente para este a
fazer sua debaixo da lei de restituir outra coisa de mesma espécie e de igual
valor [a]. A usura é um empréstimo também; mas com esta capital diferença –
que não se empresta gratuitamente a coisa, mas sim debaixo da expressa lei da
satisfação de certo prêmio além da sorte [b]. [...] quando as partes emprestam
certa quantidade sem contratarem prêmio, fazem um rigoroso mútuo. Quan-
do as partes declaram que não emprestam gratuitamente mas sim debaixo
da convenção de certo prêmio [c], então já não temos mútuo, pois as partes
quiseram dar diversa natureza: temos um rigoroso contrato inonimado, a que
alguns autores chamam feneratício, bem que as partes impropriamente o ape-
lidem mútuo (GONZAGA, 1957, p. 158).

Na dissociação temos:

Termo 1: rigoroso mútuo, gratuito.


Termo 2: usuras, prêmio.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 335

E o par é: gratuito/ prêmio. Em [c] temos uma litote, figura que consiste em
substituir um significado por outro menos forte. Gonzaga preferiu “prêmio” ao in-
vés de taxa, ou mesmo dinheiro.
A confusão de significados que há em relação à usura reside, então e sobretu-
do, na pseudotautologia que havia entre mútuo e usura. Ambos são diferentes,
mas foram tidos como sinônimos ao longo do tempo devido ao uso corrente. Antes
de Gonzaga: mútuo = rigoroso mútuo = usuras (o primeiro igual ao segundo devido
ao conceito, e igual ao terceiro por uso das partes). Com Gonzaga: mútuo e rigoroso
mútuo ≠ usuras.

2.2. Argumentos acerca da natureza racional

Na defesa de que as usuras não repugnam à natureza racional, partindo do pres-


suposto que aquele que empresta torna-se senhor do gênero e credor da quantidade e
aquele que recebe torna-se senhor da coisa, bem como passa a ter o domínio da mes-
ma, Gonzaga se questiona da razão de justiça na relação entre mutuante e acipiente.

A natureza não quer que o acipiente se ame mais do que quer que se ame o
mutuante [a]. Eis aqui pois a natural igualdade [b] do contrato das usuras. O
acipiente fica desobrigado de entregar a quantidade de que é devedor, ainda
que lha peçam, aumentando o patrimônio com os lucros dela. O mutuante fica
recebendo um certo prêmio equivalente ao direito de que cede, aos lucros de
que se priva e aos danos a que se expõe [c]; assim fica igual a convenção, não
recaindo todo o dano sobre quem empresta nem todo o cômodo sobre quem
recebe (GONZAGA, 1957, p. 160).

Em [a] temos um argumento de finalidade, que reside na ideia de que o valor


de uma coisa depende do fim cujo meio é ela; argumento que não exprime o porquê,
mas o para que (REBOUL, 1998, p. 174). É útil para atender às necessidades da
causa e como contra-argumento para mostrar que o valor invocado não passa de
meio. Também se constata uma personificação, ou prosopopeia, que consiste em
fazer falar uma coisa muda ou informe atribuindo-lhe ou forma e discurso ou uma
ação adequados a sua dignidade (CÍCERO, 2005, p. 307).

Em [b] há um argumento pela essência, que consiste em explicar um fato a


partir da essência cuja manifestação é ele (REBOUL, 1998, p. 176).
Em [c] aparece uma descrição, ornamento que contém uma exposição perspí-
cua e clara das graves das consequências das ações.
Complementando sua argumentação, Gonzaga escreve:

Temos visto quanto é necessário para reconhecermos que as usuras não re-
pugnam, antes se conformam com a natureza racional [a]. Agora vamos
examinar se repugnam ao direito divino, com que os teólogos há tantos
séculos deliram [b].
336

Em [a] temos uma transição, ornamento que mostra brevemente o que foi dito
e anuncia, com igual brevidade, o que se seguirá. A função desse ornamento está em
relembrar o que foi dito e preparar para o que se segue (CÍCERO, 2005, p. 253). Tal
ornamento aparece constantemente na Carta do Ouvidor, o que mostra a sua preo-
cupação em manter a memória do leitor sempre atenta. Também aqui, se destaca o
lado do logos do discurso.
Em [b] temos uma ironia, um argumento pelo riso, que procura levar a posi-
ção do adversário ao ridículo. Uma afirmação é ridícula quando entra em conflito,
sem justificação, com uma opinião aceita (PERELMAN, 1996, p. 233). A ironia
desempenha função no pathos do discurso, uma vez que, estimulando as emoções,
pretende deixar o auditório num estado de espírito tal que passe a ver os teólogos
com maus olhos. É também um argumento ad hominem, pois ataca a pessoa do
adversário e não seu argumento.

2.3. Argumentos acerca do Velho Testamento

Na abordagem do Velho Testamento Gonzaga argumenta:

É certo que [a] Deus proibiu as usuras no Testamento velho; mas também é
certo que só as proibiu aos israelitas [b], e isto como seu rei e legislador civil,
não porque as julgasse reprovadas por direito da Natureza, mas sim porque
não as achou conveniente com os interesse políticos [c] da sociedade que
fazia (GONZAGA, 1957, p. 162).

Em [a] temos uma expressão que vai expor um acordo prévio entre os interlo-
cutores, o qual revela uma presunção aplicável para um auditório católico do século
XVIII: presume-se que todos leram a Bíblia.
Em [b] temos um dissociação:

Termo 1: Deus proibiu as usuras;


Termo 2: mas só aos israelitas.

O par é universal/particular, em que o universal seria a proibição do primeiro


termo, imposta a todos, e particular a proibição apenas aos israelitas.
Em [c] temos uma petitio principii. Toma como aceita a tese que vai tentar
provar. O uso de termos com significados amplos e gerais ajuda na construção desse
argumento: conveniência, interesse político. O que seria conveniente aos interesses
políticos então?
Aqui também reside um entimema, no sentido de um silogismo incompleto,
que tem a premissa maior omitida, a qual se baseia em um indício simples: o que não
é conveniente para os interesses políticos de uma sociedade deve ser afastado dela.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 337

Quanto ao argumento do Velho Testamento, diz:

Nem Deus foi o único legislador civil que proibiu entre os nacionais a prática
das usuras [a]. Os romanos tiveram a mesma proibição por força da lei Genú-
cia [b] (GONZAGA, 1957, p. 164).

Em [a] temos o uso do lugar da quantidade em que o normal, o mais frequen-


te determina a norma, o preferível (REBOUL, 1998, p.166). No caso, Gonzaga quer
passar essa ideia de frequência, para mostrar que não é a primeira vez.
Em [b] temos um argumento paradigmático ou exemplar que vai do fato à
regra (REBOUL, 1998, p. 181). Esse tipo de argumento é característico do discurso
deliberativo, como já comentado, o que reforça nossa opinião quanto ao gênero.
Mais adiante afirma:

Se o levar usuras ao pobre é maior delito, e por isso recomenda Deus que não
se levem principalmente a este, também o furtar ao pobre há-de ser mais grave
culpa [a]. Pergunto agora: por que razão proibindo Deus os furtos tantas vezes,
nunca se lembrou de recomendar que se não fizessem principalmente ao pobre,
e proibindo só três vezes as usuras, em todas elas sempre cogitou dos pobres
e não das mais pessoas? [b] Deus quando proíbe alguma coisa, por ser de sua
natureza torpe, nunca se cansa a mostrar a maior torpeza que este ato recebe da
diversidade das pessoas com que ele se pratica [c]. Proíbe o juramento falso e
a mentira e não recomenda que nos abstenhamos mais destas culpas nos juízos.
Proíbe o furto e não o afeia, sendo feito ao pobre. Proíbe o homicídio e não
mostra a sua gravidade no pai, no imperante ou no senhor [d].

Em [a] encontramos uma argumento a fortiori, já encontrado em Ulpiano:


não deve ser proibido o menos a quem é lícito o mais. Representa a passagem de
uma proposição para a segunda, para a qual devem valer as mesmas razões da
primeira, e ainda com mais força (FERRAZ JR., 2003, p. 341). É encontrado no
dito popular: quem pode o mais, pode o menos. Também: se uma qualidade não
existe de fato onde é mais provável, fica claro que ela não existirá onde ela é menos
provável (se nem os deuses são oniscientes, certamente os seres humanos não o são)
(ARISTÓTELES, 2007, p. 130).
Em [b] temos um arrazoado: perguntamos a razão de cada coisa que dizemos
pedindo continuamente a nós mesmos a explicação de cada uma das partes. Cícero
cita como exemplo a seguinte passagem:

Bem estabeleceram os antepassados que nenhum rei capturado em combate


fosse privado da vida. Por que isso? Porque seria injusto empregar a facilida-
de que o acaso nos proporcionou para punir alguém que o mesmo acaso pou-
co antes colocara no mais alto posto. Mas e sobre ter conduzido um exército
contra nós? Prefiro esquecer. Como assim? Porque é próprio do homem cora-
joso considerar inimigos os que contra ele combatem pela vitória, mas depois
de vencidos, vê-los como homens, de modo que possa, com bravura, pôr fim
à guerra e, com humanidade, promover a paz [...] (CÍCERO, 2005, p. 231).
338

Em [c] temos um argumento de qualidade. É o oposto da quantidade. O pre-


ferível agora é o raro, o único, pois é original, distingue-se, por isso é digno de nota.
O valor do único pode exprimir-se por sua oposição ao comum, ao corriqueiro, ao
vulgar (PERELMAN, 1996, p. 102). Em caso, a prática de atos torpes por uma gran-
de diversidade de pessoas (quantidade) não os tornam preferíveis frente à proibição
da prática de atos de natureza torpe (qualidade).
Em [d] temos uma contenção, construção do discurso a partir de contrários
(CÍCERO, 2005, p. 229). Tem a função de ser a um só tempo grave e ornado. Temos
também uma anáfora, figura que se caracteriza pela repetição de uma mesma pala-
vra no início das frases: “proíbe”.
A sistematização de Gonzaga é marcante e fica clara na seguinte passagem:

Temos visto que as usuras não são proibidas absolutamente pelos textos do
Testamento Velho, mas sim quando são extorquidas aos irmãos necessitados.
Daqui se seguem várias conclusões: primeira que elas não são vedadas por
direito da Natureza; segunda, que são umas leis civis próprias do povo judai-
co; terceira, que elas não obrigavam nem aos outros povos que existiram no
tempo daquela sociedade; quarta, que estas mesmas leis se acham extintas
pela lei do Evangelho. Passemos ao exame do Testamento Novo.

O trecho é uma conclusão, uma breve argumentação, produz o que é necessá-


rio que se deduza a partir das coisas ditas ou feitas anteriormente. É também uma
transição, ornamento que mostra brevemente o que foi dito e anuncia, com igual
brevidade, o que se seguirá.

2.4. Argumento acerca do Novo Testamento

Na análise do Novo Testamento Gonzaga percebe uma contradição entre as


passagens do Evangelho de Mateus, capítulo 25, versículo 24 e o Evangelho de
Lucas, capítulo 6, versículo 35. Logo resolve, novamente, com uma dissociação:

As usuras têm duas acepções: uma lata, outra stricta. No sentido lato, com-
preendem todo o lucro que se tira de qualquer empréstimo, além da sorte; no
stricto, compreendem unicamente o lucro que se tira do rigoroso mútuo. A
usura lata não repugna ao Direito Natural, é um contrato inonimado, como
temos visto; e por isso não tem torpeza alguma. A usura stricta tem torpeza,
porque, assentado sobre o rigoroso mútuo, se destroe a natureza deste contra-
to, que deve ser gratuito (GONZAGA, 1957, p. 172).

Termo 1: sentido lato, não repugna o Direito Natural.


Termo 2: sentido stricto, repugna o Direito Natural.

O par é permitido/vicioso. Assim Gonzaga soluciona a contradição: identifica


a permissividade do Velho Testamento com o sentido lato e a proibição do Evange-
lho de Lucas com o sentido stricto.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 339

2.5. Argumentos acerca dos Concílios

Quanto aos Concílios, afirma que as usuras são proibidas por “infinitos con-
cílios” (amplificação por hipérbole) e cita alguns exemplos (GONZAGA, 1957,
p. 178). Argumenta:

Os concílios falam conforme o espírito da Escritura Santa [a]. Nesta não se


proíbem geralmente as usuras, pois no Testamento Velho só se proíbem quan-
do são levadas contra o ofício de caridade; e no Novo [b] ou quando laboram
neste mesmo defeito, ou quando são extorquidas do rigoroso mútuo. Daqui
se segue que não devemos entender que os sagrados Concílios as proíbam
geralmente, pois esta proibição fora perniciosa ao estabelecimento e conser-
vação da sociedade civil [c], para o que eles também atendem; proíbem sim as
usuras, mas são aquelas que reprovam a razão, e a que são tiradas do rigoroso
mútuo, ou as que são extorquidas contra o ofício da caridade cristã. Nem há
um só Concílio [d] que, quando fala em usuras, não as suponha provenientes
do mútuo, o que manifestamente prova que a proibição fala do mútuo no seu
rigoroso sentido (GONZAGA, 1957, p. 179).

Em [a] temos uma expressão de sentido metafórico. A metáfora é uma figura


que consiste na comparação de dois termos sem o uso de conectivo. No caso, o
“espírito” não está em sentido literal, mas sim no sentido de “o entendimento”. Sua
função é tentar mostrar que se trata da “melhor interpretação” acerca da Escritura.
Em [b] temos um zeugma, figura que consiste na omissão de um termo já
citado antes: Testamento.
Em [c] temos juntamente um argumento de finalidade e um argumento a
contrário sensu. O primeiro se baseia na ideia de que o valor de uma coisa depende
do fim cujo meio é ela, argumentos que não exprimem o porquê, mas o para quê
(REBOUL, 1998, p. 174). No caso em questão, a finalidade é o estabelecimento e a
conservação da sociedade civil. Argumento a contrário sensu é aquele pelo qual se
procura não aplicar uma opinião ou disposição a outra espécie do mesmo gênero.
Como por exemplo: “vejam o que X fez, foi um desastre”.
Em [d] temos uma tapinose, que corresponde a uma variação da hipérbole,
figura do exagero, quando usada em sentido negativo (REBOUL, 1998, p. 123),
como, por exemplo, na expressão “esse anão”.

3. A retórica da Carta sobre a Usura e sua pragmática

A retórica analítica vai se preocupar em analisar de forma descritiva a inter-


-relação entre as duas retóricas anteriores: a material e a estratégica. É o que fare-
mos agora.
Primeiramente, para compreender o escrito de Gonzaga, é preciso compreen-
der, a partir da forma como o autor argumenta (retórica estratégica) em meio ao seu
ambiente (retórica material), quais os fatores que, naquelas circunstâncias, atuaram
na produção da Carta e foram decisivos para que adotasse aquela posição e não
outra. Ao fazer isso, mostraremos que o posicionamento de Gonzaga foi fruto do
340

casuísmo e atendeu aos interesses circunstanciais dos personagens participantes.


Com essas conclusões pretendemos, portanto, expor como o discurso jurídico se
reveste de estratégias para ocultar, sob o manto de uma argumentação supostamente
racional, as relações sociais estabelecidas e seus efeitos, notadamente a existência
de uma rede de troca de favores.
E quais relações seriam essas? Bem, a Carta foi escrita em 1783, um ano depois
de tomar posse como Ouvidor. A situação de Gonzaga, porém, não era muito con-
fortável, pois era sabido que o Governador dom Rodrigo de Menezes não tinha boas
relações com os Ouvidores. Porém Gonzaga não queria entrar em confronto direto
com o Governador, de forma que “muitas vezes faria a defesa de dom Rodrigo e até
o apoiaria em investidas arbitrárias” (GONÇALVES, 1999, p. 93). Teria que cumprir
seu mandato de três anos e precisaria de muita habilidade política, se pretendia chegar
ao fim da missão. Como as suas atribuições de Ouvidor eram muito ligadas ao gover-
nador (decidia sobre as causas contenciosas da capitania relativas à Real Fazenda),
passou a atender com zelo aos interesses das forças econômicas que cercavam o go-
vernador dom Rodrigo, a quem haveria de definir como “o benigno chefe”.
Some-se a isso sua má condição financeira e o seu desengano: a ideia trazida
por Gonzaga de que Minas era uma terra extremamente rica não passava de um
mito. As necessidades de sobrevivência fizeram com que guardasse certa dependên-
cia econômica por João Rodrigues de Macedo, homem mais poderoso economica-
mente da capitania, a quem Gonzaga ao chegar ao Brasil, endividado, teria recorrido
várias vezes para escapar de apuros financeiros.
Ora, fazer ecoar por Minas um posicionamento seu contra a usura era muito
temerário, já que colocaria em cheque sua relação com João de Macedo e iria contra
os detentores das forças econômicas da região, os quais mais se beneficiavam com a
prática da usura, afetando com isso sua situação com o Governador. Mas não é só isso.
Nossa tese de que o posicionamento de Gonzaga tinha origens nas circunstân-
cias da época é reforçada quando se observa sua relação com os religiosos. Embora
tivesse escrito a Carta sobre a usura contra os escolásticos, com ataques afiados, o
Ouvidor não podia ser considerado anticlerical, pois manteria bom relacionamento
com os eclesiásticos até o fim de sua existência (GONÇALVES, 1999, p. 124).
Isso levanta suspeitas acerca das intenções sobre os efeitos que aparentemente
pretendia obter com as acusações, apontando e confirmando a hipótese de ser a
Carta uma forma interessada de expressão. É bom lembrar a paradoxal reação de
Gonzaga com a “Viradeira”, em 1777, na qual sobe ao trono D. Maria I, causando
contentamento em Gonzaga, o mesmo que escrevera o Tratado de direito natural,
dedicado ao Marquês de Pombal na intenção de obter a docência da recém-criada
cadeira de direito natural.
Afinal, qual o real porquê, então, da carta? Ora, além da influência da relação
de Gonzaga com dom Rodrigo e João de Macedo, a situação econômica da capitania
não era boa. Em 1781, muitos religiosos haviam-se rebelado contra o repasse dos
dízimos, cuja cobrança era feita pelo mesmo João Rodrigues de Macedo, também
amigo íntimo do governador, de tal forma que a rebeldia fora recebida por dom
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 341

Rodrigo como um desafio à ordem constituída (GONÇALVES, 1999, p. 125). A


Carta, então, foi ao mesmo tempo uma resposta tardia de João Rodrigues de Macedo
aos religiosos, que haviam excomungado Macedo sob acusação de usurário, e
uma maneira de Gonzaga mostrar ao Governo seu posicionamento no conflito, o
que não deixa de ser uma forma de se manter no cargo de Ouvidor e expressar sua
gratidão àquele que o ajudou nos apuros financeiros.
Para defender a prática da usura, Gonzaga se utilizou da imprecisão linguís-
tica do signo usura, especificamente sua porosidade (as modificações de sentido
que uma palavra sofre ao longo do tempo) e procurou atribuir um novo sentido que
melhor lhe conviesse. Isso se percebe quando tenta extirpar do termo usura a pejo-
rativa identidade que havia com o furto. Posteriormente, mostra que a usura pode
ser entendida em dois sentidos (lato e stricto) e, ao identificar o sentido lato com o
direito natural, fixa qual deve ser adotado como o sentido a ser seguido.
Essa é a razão por que inicia seu discurso com o cleuasmo, fundamental para
reforçar seu ethos, faz uso do argumento ad hominem, o qual influi no pathos, e em-
prega uma definição descritiva a serviço de uma dissociação ao atacar a identidade
entre a usura e o furto, reforçando seu logos.
Ressalte-se que no contexto de 1780, e levando em conta as reais pretensões
a que Gonzaga visava, era útil utilizar o jusnaturalismo racional como base para a
argumentação. Desde a Reforma de Pombal que a postura do Estado português em
relação à igreja mudou e, devido às influências do Iluminismo, o jusnaturalismo
racional passou a ser a forma de legitimar o Estado liberal burguês. Para Gonzaga,
mostrar-se alinhado com essas ideias simbolizava sua concordância com os interes-
ses do Poder estabelecido e servia para atacar os teólogos. Não devemos esquecer
que o cargo de Ouvidor era provido por indicação da Corte Real.

4. As imprecisões linguísticas do termo usura e


sua relação com a atual discussão jurídico-dogmática
relativa aos significantes e significados

O que observamos com a usura foi o fenômeno da porosidade, processo de


modificação do sentido de um termo em seu uso cotidiano. O emprego que se fez do
termo usura levou de um significado a outro, modificando o relato vencedor sobre
o sentido do significante “usura”.
A porosidade representa um elemento que aumenta a imprecisão da linguagem
juntamente com a ambiguidade e vagueza. Ambiguidade é a possibilidade de um
termo ter mais de um significado, como por exemplo, a palavra “banco”. A vagueza,
por sua vez, dá origem a casos de fronteira, pois há incerteza sobre o alcance da ex-
pressão, como por exemplo, “careca” (quantos cabelos alguém precisa não ter para
ser chamado de careca?). Os termos jurídicos estão também expostos às mesmas
limitações da comunicação.
342

A análise feita sobre a Carta, juntamente com o problema, encarado por Gonzaga,
sobre o sentido do signo “usura”, permite refletir sobre o atual debate dos significantes
e significados e seus efeitos no direito dogmático, notadamente em relação à norma ju-
rídica. Inicialmente, constata-se um problema jusfilosófico que vai fundamentar toda a
discussão: a linguagem humana descreve as coisas como são ou a relação da linguagem
com as coisas é fruto de convenção arbitrária formadas pelos homens?
Nossa tentativa de resposta parte do pressuposto da dicotomia antropológica
proposta por Arnold Gehlen, segundo a qual o ser humano pode ser visto como um
ser pleno (rico) ou um ser carente (pobre) quanto as suas relações com o meio.
Francisco Arthur de Siqueira Muniz sintetiza bem os termos:

O homem seria pleno, pois teria os critérios e o aparelho cognoscitivo aptos


a alcançar a realidade exterior e modificá-la, aproximando-se, com a lingua-
gem, de uma verdade preexistente e ansiosa em ser descoberta. Do outro lado,
o próprio uso da linguagem como meio imprescindível para a concretização
dos feitos humanos e para sua coordenação mais precisa, tornaria o ser ca-
rente, incapaz de perceber qualquer aspecto exterior sem esbarrar nos limites
do raciocínio e dos próprios órgãos sensitivos, sendo o homem refém de uma
realidade artificial – a da linguagem (MUNIZ, 2009).

Não parece proceder, portanto, a tese de que o ser humano seria pleno, visto o
caráter ambíguo, seletivo e metafórico da comunicação, pois a relação do homem
com o meio circundante e com os outros seres é intermediada pela linguagem, ou
seja, a linguagem é a única realidade com que podemos lidar. A relação dos signos
com as coisas, portanto, é atribuída pelos homens de forma arbitrária, de modo
que o significado de um significante modifica-se a depender do que se entenda por
aquele termo em determinado momento, ou seja, é o relato vencedor temporário.
A intenção dessa discussão jusfilosófica é mostrar que há uma dissociação entre o
significante (expressão linguística) e o significado.
Isso se reflete na dogmática jurídica na medida em que os textos da lei (signifi-
cantes), previamente fixados, não constituem a norma jurídica (significado), ou seja,
a norma jurídica não é previamente dada, mas sim construída no caso concreto após
um processo de interpretação. O texto da lei funciona como um ponto de partida, um
dado de entrada. A concretização normativa se dá no caso coreto.
Por isto a crítica feita pela retórica de que a decisão jurídica não se dá de for-
ma dedutiva/subsuntiva (silogística), como pregava a Escola da Exegese francesa.
Dito de outra forma, a norma geral seria a premissa maior, o caso concreto seria a
premissa menor e a decisão a conclusão do silogismo, em que só existiria uma única
decisão correta. A decisão jurídica, na linha do realismo jurídico, se dá de forma
indutiva e casuística em que a própria norma jurídica é produzida no caso concreto
e o texto geral da lei funciona apenas como um dado de entrada.
Segundo o realismo jurídico, toda norma jurídica é individual, pois só o apli-
cador do direito cria a norma jurídica. O legislador não cria norma jurídica, cria
apenas dados de entrada válidos (ADEODATO, 2009a, p. 162), ou seja, a norma
geral não é previamente dada, apenas o seu texto. Com isso, a decisão não decorre
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 343

da norma geral, visto que o julgador primeiro decide e depois procura no sistema
jurídico algum fundamento textual para sua decisão fazendo parecer que trabalhou
dedutivamente. Em síntese: o texto e a realidade estão em constante inter-relação e
essa inter-relação, seja mais seja menos eventualmente discrepante, é que vai cons-
tituir a norma jurídica (ADEODATO, 2009, p. 146).
Entretanto, assumir publicamente essa perspectiva retórica da dogmática é
disfuncional, visto que colocariam em risco as expectativas de segurança jurídica.
A crença de que as decisões são de forma silogística/dedutiva atua, portanto, como
um elemento funcional para a dogmática se legitimar evidenciando, mais uma vez,
o caráter retórico da dogmática jurídica.
O caráter retórico da dogmática também é constatado de outras perspectivas.
Note-se que no direito dogmaticamente organizado, as expressões e os princípios
com ambiguidade, vagueza e porosidade são úteis e funcionais, pois quanto mais
imprecisos os termos, mais flexíveis os textos e com isso mais aptos a neutralizarem
os conflitos nas sociedades cada vez mais complexas. Tais imprecisões linguísticas
são fundamentais para a funcionalidade do processo que leva à decisão concreta.
Por tudo o que foi dito, concluímos pela constatação de como a análise retóri-
ca, em seus três níveis (material, estratégica e analítica), dos textos jurídicos pode
contribuir para uma releitura da dogmática, na tentativa de melhor compreender o
funcionamento do direito em meio à crescente complexidade das sociedades.

5. A questão da originalidade em gonzaga e sua


contribuição para o pensamento jurídico brasileiro

Antes de tudo, Tomás Antônio Gonzaga merece atenção especial, pois iniciou
a tradição jusnaturalista no Brasil, a qual teve como defensores, principalmente,
Pedro Autran, João Silveira de Souza, Soriano de Souza, Estácio de Sá e João Teo-
doro Xavier de Mattos (MACHADO NETO, 1969, p. 15-42). A sociedade colonial
brasileira não propiciava, por certo, um dos ambientes culturais mais estimulantes,
o que se refletiu nas obras da maioria dos jusfilósofos brasileiros. Com Gonzaga não
foi diferente.
A intelectualidade brasileira estava ainda em formação, apresentava sinais de
imaturidade e tais elementos não podem ser desprezados na análise da originalidade
da obra do Ouvidor Gonzaga. Machado Neto, sobre o tema, afirma:

A emprêsa colonial, no início ao menos, feita num estilo assemelhado ao do


corsário e do flibusteiro, como uma pura emprêsa espoliativa de objetivos
nìtidamente comerciais, como se conservou até o fim, não tinha lugar para o
intelectual e a vida do espírito. [...]. Foi necessário esperar que madurassem
os primeiros núcleos urbanos para que a vida cultural produzisse aqui seus
primeiros frutos, e ainda assim êles não se situariam nunca no terreno mais
abstrato da filosofia, mas sempre naquele âmbito da cultura mais diretamente
irrigado pelo estuante sangue da vida cotidiana, que é o da literatura
(MACHADO NETO, p. 15).
344

A investigação da originalidade de Gonzaga, na Carta, pode ser melhor com-


preendida, sucintamente, a partir da análise da originalidade do próprio Gonzaga na
sua obra Tratado de Direito Natural: as circunstâncias históricas eram outras, pois
Gonzaga, recém-formado na Faculdade de Leis, almejou com o Tratado obter a
docência da cadeira de direito natural, a qual fora criada por Pombal ao promover a
reforma do ensino jurídico, sob a égide do jusnaturalismo racionalista.
Lourival Machado defende que Gonzaga foi original no Tratado, pois assumiu
posição à parte da escola de direito natural então dominante e que, dada a adesão do
pombalismo a essa última escola, sua posição acabou por se tornar particularíssima.
Em suas palavras:

Malgrado seu aparente caráter de complicação, o Tratado não só se mostra


armado de coerente estrutura sistemática, mas, ainda, nessa mesma estru-
tura sistemática se patenteia, de modo bastante claro, a originalidade da
concepção de Gonzaga. Acrescente-se que aludindo à originalidade, não
atribuímos à palavra o significado estrito de algo que se fez sem modelo,
porquanto, com o termo queremos significar que o Tratado possui caráter
próprio e, mais, que esse caráter não era dominante ao seu tempo e em seu
meio (MACHADO, 1968, p. 131).

Argumenta que entre Gonzaga e o pombalismo não se observam dissonâncias


políticas, mas sim rupturas doutrinárias. Se por um lado Gonzaga procurou defen-
der, assim como o despotismo iluminado de Pombal, o poder monárquico absoluto,
por outro lado observamos que o fundamento utilizado por Gonzaga para justificar
essa forma de governo foi o jusnaturalismo teológico, diferentemente do pombalis-
mo, que se utilizou do jusnaturalismo racionalista.
Para Sofia Valle o Tratado se apresenta

como um texto com nuances ilustradas, defesa do absolutismo monárquico e


apreço às teorias corporativas de poder próprias da Segunda Escolástica, con-
cepção de um direito natural de origem divina e crítica aos fundadores da Es-
cola Moderna de Direito Natural (por seu ateísmo), amparo à religião católica e
defesa da necessária submissão dos clérigos ao Estado (VALLE, 2005, p. 143).

Sofia Valle se aproxima de Lourival Machado quando afirma que, embora se


observem, no Tratado, visões aparentemente incoerentes, elas são dispostas por
Gonzaga de maneira conciliatória, dando indício de que a autora acena para uma
originalidade de Gonzaga.
Data venia, não podemos partilhar de suas posições. A originalidade afirmada
por Lourival Machado e aparentemente seguida por Sofia Valle baseia-se na singu-
laridade do arranjo doutrinário de que Gonzaga se valeu, em seu Tratado, tentando
conciliar, para o objetivo almejado, ideias contraditórias.
É duvidosa tal originalidade. Defender ideias ultrapassadas, com autores pou-
co conhecidos, não parece original, pois não basta defender uma ideia diferente da
vigente para ser original. No Tratado, Gonzaga se fundamenta em Heineccius, mas
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 345

para dar uma capa moderna ao seu estudo, cita Grotius e Pufendorf, sempre para
criticá-los. Cita-os mais como argumento de autoridade, pois seu Tratado é ampla-
mente tido como uma obra tomista.
Conforme Oliveiros S. Ferreira, o qual redigiu a introdução da obra de Louri-
val Machado, “Gonzaga, apoiando-se nos comentaristas menores do Direito Natural
e simulando uma concordância formal com os nomes aceitos na Coimbra pomba-
liana, dá um passo atrás na teoria do Direito Natural” (MACHADO, 1968, p. 13).
Daí já se percebe a intimidade e habilidade de Gonzaga para defender suas posições,
haja vista a formação retórica que recebeu quando jovem.
No mais, note-se que, embora o Tratado e o pombalismo compartilhassem ob-
jetivos comuns, como manter o poder absoluto do rei, os meios escolhidos são bem
diversos. Diante das mudanças promovidas por Pombal em Portugal, com base em
uma nova ideia (o jusnaturalismo racionalista), parece temerário Gonzaga pretender
obter êxito na aprovação da docência da cadeira de direito natural defendendo o
jusnaturalismo teológico, combatido por Pombal.
Feita essa digressão ao Tratado, voltemos à Carta. Como visto, a Carta não
foi redigida para fins acadêmicos, mas pelo contrário, resultou da práxis de um Gon-
zaga Ouvidor, mais experiente e pragmático. Por isso mesmo percebemos poucas
citações a autores de renome e o uso direto apenas das teses.
A influência do pombalismo na Carta é visível, pois Gonzaga finalmente in-
corporou o jusnaturalismo racionalista como fundamento para a sua argumentação.
Entendemos que a adoção, por Gonzaga, dessa forma de jusnaturalismo não se deu
apenas pela influência de Pombal. As circunstâncias concretas desempenharam,
também, papel significativo para tal posicionamento. Vejamos: defender a usura
a partir de uma doutrina que não fosse a oficial a essas alturas (ou seja, após o
malogro do Tratado, em que se utilizou de uma doutrina ultrapassada), parecia in-
sistir em um erro evitável. O direito natural desempenhava papel político de grande
importância na formulação do despotismo iluminista de Portugal e, caso Gonzaga
advogasse uma tese contrária, afetaria sua situação perante a Coroa, haja vista que,
ao redigir a Carta, Gonzaga ocupava um cargo oficial (o de Ouvidor) e, por isso,
esperava-se, naturalmente, um alinhamento doutrinário.
Registre-se que adotar a doutrina dominante e oficial não significa necessa-
riamente ausência de originalidade, pois é possível que o autor faça uma releitura,
proponha modificações, melhoramentos e faça algumas críticas, sem sair do âmbito
da doutrina inicialmente seguida. Entretanto, com Gonzaga não foi assim que acon-
teceu, é nossa tese aqui.
Tomando por base o escrito da Carta sobre a usura, não é possível afirmar que
há uma filosofia do direito brasileira ainda. Gonzaga não se defronta com a proble-
mática dos fundamentos doutrinários referente à teoria jusnaturalista racionalista,
seja criticando-a, seja propondo alterações. Não existe uma reflexão sobre a ideia
vinda do exterior, mas sim apenas o uso e aplicação direta, para fins de fundamento
de sua posição, no debate sobre a possibilidade ou não da usura.
346

O debate jusfilosófico foi abordado, na Carta, de forma superficial, o que se


explica, sobretudo, devido ao propósito pragmático do escrito e ao que estava em
jogo para o Gonzaga Ouvidor. Aprofundar o debate, com temas não muito comuns
ao público alvo da Carta, seria disfuncional para atingir o objetivo esperado.
O legado que Gonzaga deixou para o pensamento jusfilosófico brasileiro, com
a sua Carta, não está distante daquilo que se podia esperar para um precário ambien-
te cultural, embora deva ser reconhecido que ele foi o primeiro pensador a defender,
em solo brasileiro, o jusnaturalismo racionalista, ainda que de forma tímida.
Entendemos, portanto, que a defesa do jusnaturalismo racionalista por Gon-
zaga representou, sobretudo, um expediente utilizado para satisfazer seus interes-
ses pessoais, devido a uma preocupação constante com as necessidades imediatas.
Isso ficou evidenciado ao longo da pesquisa quando mostramos a inquietação de
Gonzaga em manter seu cargo, a partir de uma boa relação com o Governador dom
Rodrigo de Menezes, bem como quando mostramos como Gonzaga se empenhou
em defender João Rodrigues de Macedo, aquele de quem guardava dependência
financeira. Ou seja, a Carta de Tomás Antônio Gonzaga parece ser um exemplo de
como as circunstâncias de seu momento histórico foram fundamentais para influen-
ciar, de forma expressiva, o posicionamento do autor.
Assim, verificamos que Gonzaga, sem ser exatamente um vanguardista, repre-
sentou um personagem fruto de seu tempo, defensor das ideias comumente veicula-
das no seu ambiente, as quais foram suficientes para atender as suas necessidades.
Assim não podemos a rigor falar numa originalidade das ideias jurídicas defendidas
por Gonzaga na obra analisada.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 347

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2009a). A retórica constitucional. Sobre tolerância,


direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva.
______ (2009b). Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Pau-
lo: Saraiva.
______ (2009c). Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva.
ARISTÓTELES (2007). Retórica. Trad. Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel.
______ (1998). Retórica. Trad. Manuel Alexandre júnior, Pablo Farmhouse Alber-
to e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
AZEVEDO, Luiz Carlos (2007). Introdução à história do direito. 2ª ed. São Pau-
lo: Revista dos Tribunais.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito, trad. João Maurício Adeo-
dato. Revista Brasileira de Filosofia. Volume XXXIX, fascículo 163, julho-setem-
bro. São Paulo: IBF.
CÍCERO (2005). Retórica a Herênio. São Paulo: Hedra.
COPI, Irving M. (1978). Introdução à Lógica, trad. de Álvaro Cabral. 2ª ed. São
Paulo: Mestre Jou.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio (2003). Introdução ao estudo do direito. 4ª ed. São
Paulo: Atlas.
FRIEIRO, Eduardo (1950). Como era Gonzaga? Belo Horizonte: Secretaria da
Educação de Minas Gerais.
GONÇALVES, Adelto (1999). Gonzaga: um poeta do Iluminismo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
GONZAGA, Tomas Antônio (2004). Tratado de direito natural. São Paulo: Mar-
tins Fontes (Coleção Clássicos).
______ (1957). Tratado de direito natural: carta sobre a usura, minutas, corres-
pondência, documentos. Edições críticas de Manuel Rodrigues Lapa. Rio de Janei-
ro: MEC – INL (Obras completas de Tomás Antônio Gonzaga, v. II).
MACHADO, Lourival Gomes (1968). Tomás Antônio Gonzaga e o direito natu-
ral. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
MACHADO NETO, Antônio Luís (1969). História das ideias jurídicas no Brasil.
São Paulo: Grijalbo.
MOTA, Carlos Guilherme (coord.) (2006). Os juristas na formação do Estado-
-Nação Brasileiro: Século XVI a 1850. Vol. I. São Paulo: Quartier latin.
MUNIZ, Francisco Arthur de Siqueira (2012). A visão retórica do mundo e o di-
reito. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12165>. Acesso em: 26 de
janeiro de 2012.
PERELMAN, Chaïm (1996). Tratado de argumentação. Tradução de Maria Er-
mantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes.
REBUOL, Olivier (1998). Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes.
348

SALDANHA, Nelson Nogueira (2001). História das ideias políticas no Brasil.


Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial.
SCHOPENHAUER, Arthur (1997). Como vencer um debate sem precisar ter
razão: em 38 estratagemas (dialética erística). Tradução de Daniela Caldas e Olavo
de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks.
SOBOTA, Katharina (1996). Não mencione a norma!, trad. João Maurício Adeoda-
to. Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife. N. 7, Recife: UFPE.
VALLE, Sofia Alves (2005). As concepções jusnaturalistas de Thomas Antônio
Gonzaga (1744-1810) no Tratado de Direito Natural e na Carta sobre a Usura.
Tese de Mestrado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.
WOLKMER, Antônio Carlos (2003). História do direito no Brasil. 3ª ed. rev. e
ampl. Rio de Janeiro: Forense.
A RETÓRICA DE FORMA E CONTEÚDO
A PARTIR DO DISCURSO DE
BEVILÁQUA EM DEFESA DE SEU
PROJETO DE CÓDIGO CIVIL

Patrícia Camilo Caetano Silva

Resumo: Permeado pela busca de originalidade e continuidade na formação


do pensamento jurídico brasileiro, o presente artigo tem por objeto de estudo
as ideias e argumentos de Clóvis Beviláqua, desenvolvidos em defesa de seu
projeto de código civil. O código vigorou de 1916 a 2002. A observação de
tais ideias e argumentos é dividida em três estágios, cada um deles norteado
pela retórica em seus níveis material, estratégico e analítico. Inicialmente,
destaca-se o ambiente histórico do autor. Em seguida, enfatizam-se as pró-
prias estratégias argumentativas deste. Por fim, analisa-se a possível reutiliza-
ção dessas estratégias no cenário jurídico atual.
Palavras-chave: Originalidade. Continuidade. Retórica. Clóvis Beviláqua.
Abstract: Permeated by the search of originality and continuity in the
formation of Brazilian legal thought, this article has as its object of study the
ideas and arguments of Clóvis Beviláqua, developed in order to defend his
project of civil code. The code was in force from 1916 to 2002. The analysis of
such ideas and arguments is divided in three stages, each one corresponding to
rhetoric in its material, practical and analytical levels. Initially, the historical
environment of the author is highlighted. Secondly, his own argumentative
strategies are emphasized. Finally, the possible reutilization of these strategies
in the actual legal scenario is analyzed.
Keywords: Originality. Continuity. Rhetoric. Clóvis Beviláqua.
Sumário: Introdução: A retórica dos fatos, ideias e análises que cercam o
nome de Clóvis Beviláqua. 1. A Escola do Recife e demais acontecimen-
tos que impulsionaram a filosofia e a dogmática adotadas pelo Código Civil
Brasileiro de 1916. 2. Desconstruindo, a partir da retórica prática, o discur-
so bevilaquiano e identificando as estratégias argumentativas nele utilizadas.
2.1. A análise dos argumentos entimemáticos empregados por Beviláqua na
defesa de uma codificação civil brasileira. 2.2. O debate travado entre Bevilá-
qua e Rui Barbosa e os meios estratégicos utilizados por aquele na defesa do
seu projeto de código civil. 3. Da perspectiva forma versus conteúdo à atu-
al discussão significante versus significado da norma jurídica. 3.1. A análise
dos efeitos trazidos pela metodologia adotada por Beviláqua ao ambiente de
sua época. 3.2. A reutilização das ideias de Beviláqua no estudo das escolas
positivistas. 4. Conclusão: Equivalência valorativa entre o significante e o
significado da norma jurídica. Referências.
350

Introdução: a retórica dos fatos, ideias


e análises que cercam o nome de Clóvis Beviláqua

Professor catedrático de filosofia e legislação comparada da Faculdade de Di-


reito do Recife, historiador, promotor público, deputado pelo Ceará, consultor jurí-
dico do Ministério das Relações Exteriores, sócio fundador da Academia Brasileira
de Letras. Esses foram alguns dos muitos cargos ocupados por Clóvis Beviláqua,
criador do projeto do Código Civil Brasileiro de 1916, que regeu a criação, modi-
ficação e extinção de relações jurídicas existentes entre milhões de brasileiros por
mais de oito décadas.
Serão as ideias desse eminente jurista o objeto de estudo deste trabalho, fruto
do Grupo de Pesquisa “As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil: ori-
ginalidade e continuidade como questões de um pensamento periférico”, orientado
pelo Professor Dr. João Maurício Adeodato.
Um dos objetivos do Grupo de Pesquisa, e consequentemente do presente traba-
lho, é encontrar, descrever e analisar as ideias que inovaram no cenário jurídico nacional
e que contribuíram – e ainda contribuem – para o estudo mais aprofundado do Direito.
Tal objetivo é inovador, pois não se contenta apenas com a descrição de tais
ideias, ele vai além, busca a partir delas uma análise retórica. Análise esta primei-
ramente realizada a partir do ambiente e eventos históricos que influenciaram o
pensamento do autor e marcaram sua época. Após isso, o estudo se ocupará pri-
mordialmente das próprias ideias desse autor. E, finalmente, por meio de uma pers-
pectiva analítica e desconstrutivista, norteada pela tolerância axiológica, tentar-se-á
esclarecer tais ideias e reinterpretá-las de modo inovador e atual.
É, no entanto, antes de tudo, relevante observar que a postura retórica aqui
adotada não é aquela compreendida pelo senso comum, sobretudo ocidental, que
a confunde com “a arte de ganhar discussões a ferro e fogo, por meios limpos ou
sujos” (CARVALHO, 1997, p. 34). A retórica deve ser entendida como uma nova
forma de conhecer – de “experimentar o mundo” (ADEODATO, 2009a, p. 15) –
apartada das concepções aparentemente dominantes que se autodenominam “verda-
des”. Será, portanto, este princípio que norteará toda a pesquisa.
Para reforçar tal ideia, parte-se dos ensinamentos de Aristóteles, o qual com-
preendia a retórica como um bem coletivo, como um conjunto de conhecimentos
humanos que deveria compor a formação do cidadão (ADEODATO, 2002, p. 267).
Para ele, a retórica, como uma das quatro ciências do discurso, é composta por três
elementos determinantes da persuasão: o ethos, o pathos e o logos. O primeiro re-
ferente ao caráter pessoal do orador, o segundo, à provocação no auditório de deter-
minado estado de espírito a ele favorável, e o terceiro, aos argumentos e às provas,
fornecidas pelo próprio discurso. Devendo, dessa forma, o orador não só colocar
seus ouvintes num estado de espírito propício, mas também fazer com seu caráter
pareça correto e argumentar por meio de um discurso demonstrativo e confiável
(ARISTÓTELES, 2007, p. 23-29, 81, 147).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 351

Assim, firma-se o entendimento de que a retórica não deve ser resumida à arte
estratégica capaz de influir na conduta alheia, a qualquer custo, de qualquer modo. A
persuasão retórica não está relacionada apenas à sua capacidade de despertar emo-
ções nos ouvintes (pathos), mas também à argumentação (logos) e à ética (ethos).
Essa “ética”, como um dos aspectos fundamentais da retórica, etimologica-
mente traduz-se, ao mesmo tempo, no caráter humano tal como se apresenta no
meio social (linguagem-objeto) e no estudo desse caráter (meta-linguagem). Tal
estudo, por sua vez, possui uma dupla função: descrever os fins e os meios que
norteiam a conduta humana e prescrever como eles devem ser manipulados numa
dada situação concreta.
A partir desses sentidos da palavra ética, tem-se a tripartição da retórica
nos níveis material, prático e analítico (ADEODATO, 2009a, p. 32), conforme
abaixo esquematizado:

ÉTICA

{
Meta-Linguagem
(estudo do caráter
humano) { Retórica Analítica
(descrição)

Retórica Prática

{
(prescrição)
Linguagem-Objeto
(caráter humano tal como Retórica Material
se apresenta socialmente) (ação)

A partir desses níveis retóricos, material, prático e analítico, o objetivo traçado


pelo Grupo de Pesquisa é estudar as ideias do autor escolhido – aqui, Clóvis Beviláqua
– nos planos de método, metodologia e metódica (ADEODATO, 2009a, p. 32-39).
Dessa forma, buscar-se-á descrever primeiramente o ambiente histórico e
os fatos, entendidos como relatos intersubjetivos, que conduziram às crenças e às
ideias de Clóvis Beviláqua, conforme o primeiro nível da retórica, o nível material
– tornando-se possível, posteriormente, o estudo da retórica estratégica e analítica
desse mesmo autor. Será, aqui, objeto de estudo, por exemplo, a influência da Esco-
la do Recife, da filosofia positiva e das transformações políticas de então na forma-
ção das ideias adotadas por Beviláqua e recepcionadas pelo Código Civil de 1916.
Assim, a retórica material corresponderá ao método, à descrição dos eventos
constituídos mediante a comunicação entre os homens ao longo do tempo. Con-
forme tal dimensão retórica, tais eventos deverão ser interpretados como acordos
comunicativos circunstanciais, fatos linguísticos temporários, transmissíveis por
relatos que se adequaram às regras publicamente controláveis da época e assim se
tornaram “fatos”. Pois esse é o processo que compõe a retórica material: conden-
sar a linguagem comum em direção às linguagens de controle (BALLWEG, 1991,
p. 176), linguagens essas que se adaptam aos interesses sociais de então. Pois, já
que se parte da impossibilidade de haver uma “verdade objetiva” – em si mesma
–, entende-se aqui a linguagem consensual como o máximo de acordo possível
entre os homens (ADEODATO, 2005, p. 235-262).
352

A retórica prática estará ligada, por sua vez, à metodologia, a uma primeira re-
flexão sobre o método. A partir do ambiente e fatos descritos, serão analisadas, aqui,
as ideias, propriamente ditas, de Beviláqua, apresentando-as como um produto (uma
reflexão) de seu meio que surgiram estrategicamente para nele influir – otimizá-lo.
Dentre as suas diversas concepções inovadoras ao seu tempo, optou-se aqui
pelo estudo das defesas elaboradas por Beviláqua ao seu projeto e do debate travado
entre ele e Rui Barbosa, o seu crítico mais ferrenho. Nesse debate, Beviláqua, ao
distinguir valorativamente a forma e o conteúdo das expressões jurídicas adotadas
por seu projeto, defende a supremacia deste frente àquela, considerando uma incoe-
rência injustificável preterir o conteúdo pela forma (BEVILÁQUA, 1906, p. XI). E
a essa distinção será aplicada a retórica prática.
Por fim, por meio da retórica analítica e da metódica a ela vinculada, a análise
será realizada com um objetivo inovador. Aqui, não serão suficientes meras descri-
ções de relatos, nem se buscará nortear – prescrever – condutas. O que será feito
é um estudo que, apartado de preferências axiológicas, tem por escopo elucidar as
ideias de Beviláqua – elaboradas a partir de uma reflexão sobre seu ambiente – de
forma desconstrutivista, e analisar a influência exercida, hoje, por tais ideias den-
tro da perspectiva jurídica nacional. Em outras palavras, buscar-se-á uma reflexão
sobre a metodologia – que, por sua vez, representa uma reflexão sobre o método –
afim de (re)utilizá-la de modo eficaz na atualidade.
Nesse sentido, a partir do debate forma/conteúdo levantado por Beviláqua na
defesa de seu projeto de código civil, tentar-se-á (re)aplicá-lo à discussão contem-
porânea entre significante e significado da norma jurídica e à aporia existente entre
aqueles que creem numa “essência” do texto jurídico capaz de se autodeterminar
num dado caso concreto e aquelas correntes mais céticas que, aliadas à ideia de que
“o laço que une o significante ao significado é arbitrário” (SAUSSURE, 1995, p. 80-
81), defendem a tese de que toda norma jurídica é individual, “criada pela autorida-
de que a aplica, no momento em que a aplica, mediante a prática da interpretação”.

1. A escola do recife e demais acontecimentos


que impulsionaram a filosofia e dogmática
adotadas pelo Código Civil brasileiro de 1916

Diante dos objetivos anteriormente traçados, será agora realizada uma análise
sobre o ambiente histórico-cultural que contribuiu para a postura filosófica e dog-
mática de Beviláqua, transmitidas não só ao Código Civil de 1916, mas que também
influíram na originalidade das diversas ideias desse jusfilósofo. Ressalta-se, desde
já, que este ambiente não deve ser compreendido como um dado, mas sim como um
produto do sistema linguístico autorreferente (ADEODATO, 2005, p. 242) elabora-
do ao longo do tempo. Pois, como já defendido por Ballweg, “toda a linguagem é
retórica porque deseja comunicar somente uma doxa (opinião), não uma episteme
(conhecimento)” (BALLWEG, 1991, p. 176).
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 353

Desde sua independência, a sociedade brasileira convivia com a promessa de


uma codificação civil própria, genuinamente nacional, apartada das ordenações, leis
e jurisprudências portuguesas. No entanto, tal objetivo somente foi alcançado quase
um século após, ao ser aprovado, em 1916, o Código Civil Brasileiro, cujo projeto
teve por autor Clóvis Beviláqua.
Na Constituição de 1824, já havia a previsão de codificações genuinamente
pátrias nas áreas cíveis e penais. Concretizando esta previsão, em 1830, entrou em
vigor o Código Criminal, em 1832, o Código de Processo Criminal e, em 1850, o
Código Comercial. Não obstante o permissivo constitucional e a publicação dos
referidos códigos, no tocante ao direito civil, as Ordenações do Reino permaneciam
regendo a vida dos brasileiros.
Em 1859, o governo federal contratou o jurisconsulto Teixeira de Freitas para
a elaboração de um projeto de código civil brasileiro. Após quase doze anos de tra-
balho e um rico material com mais de quatro mil artigos, o contrato com o governo
foi rescindido e o projeto Teixeira de Freitas acabou inconcluso. A doutrina aponta
como principal motivo para tal rescisão o descompasso entre os objetivos do gover-
no imperial brasileiro e os anseios do autor (CHAVES, 1982, p. 187). Enquanto o
governo desejava uma codificação civil simples, sem qualquer conteúdo referente
ao direito comercial, Teixeira de Freitas, sonhando com a unificação do Direito
Privado, propunha a elaboração de um “código geral”, onde inexistisse a arbitrária
divisão entre o direito civil e o direito empresarial.
Após a frustração do projeto de Teixeira de Freitas, sucederam-se contratações
de diversos juristas com o mesmo árduo objetivo: elaborar o anteprojeto de código
civil brasileiro. Nomes como Nabuco de Araújo, Felício dos Santos, Cândido de
Oliveira e Coelho Rodrigues integram o rol de estudiosos que tentaram oferecer ao
país o projeto de sua primeira codificação civil, sem, contudo, lograrem êxito.
Em 1899, Epitácio Pessoa, ex-professor da Faculdade de Direito do Recife e
então Ministro da Justiça do governo Campos Sales, convidou Clóvis Beviláqua para
redigir o referido projeto de código civil. Embora jovem, Beviláqua conseguia conci-
liar às tradições e aos interesses das elites agrárias ainda dominantes as novas ideias
trazidas pela Escola do Recife. De fato, a codificação resultante do projeto Beviláqua
representou a consolidação prática das principais ideias desse movimento intelectu-
al, como, por exemplo, o germanismo e as dúvidas de Tobias, os estudos de Direito
nacional e positivo de Sílvio Romero e Martins Júnior, as análises objetivas do Brasil
de Sílvio e de Arthur Orlando, além de outras influências (CHACON, 1969, p. 140).
Como observado, a recepção das ideias oriundas da Escola do Recife na codifi-
cação civil de 1916 foi marcante, daí a necessidade de analisá-la e conhecê-la melhor.
Enquanto o Brasil, entre o final do século XIX e o início do século XX, sofria
uma profunda modificação em seu sistema político – passando de Império à Repú-
blica –, e adotava entusiasmadamente, por meio da juventude da elite instruída, a fi-
losofia positivista, ocorreu no Recife um “forte movimento filosófico jurídico, mais
tarde chamado de Escola do Recife, de ação poderosa [...] e que deixou impressão
inapagável na evolução mental desse país” (BEVILÁQUA, 1977, p. 378).
354

Estudiosos, atualmente, chegam a afirmar que, “na realidade, até o advento


da Escola do Recife, não havia qualquer originalidade no pensamento filosófico
nacional, profundamente marcado por visão conservadora, arisca às inovações”
(SCHUBSKY, 2010, p. 28-30).
Ao matricular-se, em 1878, na Faculdade de Direito do Recife, Beviláqua
ligou-se a esse grupo de jovens imbuídos das ideias mais modernas. Como ele pró-
prio advertia, tal movimento não era uma escola fechada, a tolerância entre seus
membros era predominante. Após essa constatação, torna-se difícil oferecer um úni-
co título capaz de “delimitar precisamente” a Escola do Recife, pois “nunca houve,
nem Tobias jamais pretendeu que houvesse, unidade dogmática entre seus discípu-
los” (CHACON, 1969, p. 184). Ao invés disso, ideias como as de Sílvio Romero,
Arthur Orlando, Gumercindo Bessa, Fausto Cardoso, Martins Júnior, Graça Aranha,
Clóvis Beviláqua, dentre outros, encontravam um ambiente propício para desenvol-
ver suas peculiaridades.
Não obstante essa característica, pode-se afirmar que a Escola do Recife pos-
suía uma “base comum” que, defendida por Tobias Barreto, fortemente influenciado
pela filosofia alemã, consistia em considerar o Direito um fenômeno social, fruto da
experiência humana, questionando assim o idealismo jusnaturalista ainda dominan-
te nos dois principais centros jurídicos do país, na época: Recife e São Paulo.
Assim como Jhering, Tobias defende em suas obras que “o direito não é um
filho do céu, é, simplesmente, um fenômeno histórico, um produto cultural da hu-
manidade” (BARRETO, 1926, p. 144). Seguindo e complementando tal orienta-
ção, Beviláqua afirma que, embora seja uma disciplina posta pela própria socieda-
de a si mesma, o Direito apresentaria certos elementos naturais, ele seria resultado
de uma necessidade natural dos homens para sua coexistência (BEVILÁQUA,
1977, p. 368). Ou seja, para sua convivência em sociedade (necessidade natural),
o homem procurou um mecanismo capaz de conter seus próprios egoísmos, capaz
de alcançar os fins sociais previamente postos, resultantes da herança e adaptação
da atividade humana à vida em grupo.
Juntamente com essa campanha contra a ideia de um direito “dado”, transcen-
dente ao homem, outras duas características, conforme defendia Beviláqua, prepon-
deravam dentro da filosofia adotada pela Escola do Recife: o monismo haeckeliano
e o evolucionismo de Spencer. Essas correntes opunham-se às tendências místicas e
religiosas e fizeram-se presentes, sobretudo, em “A filosofia positivista no Brasil”,
obra de Beviláqua, publicada em 1883.
Tais correntes ideológicas adequavam-se muito bem aos interesses da burguesia
agrária e comercial do país. Embora criticasse o conservadorismo próprio do idealis-
mo jusnaturalista, a nova filosofia positivista, defendida, dentre os muitos membros da
escola do Recife, por Clóvis Beviláqua, também não almejava mudanças radicais nas
estruturas sociais já consolidadas, nem transformações na ordem vigente.
Esses foram alguns dos motivos que levaram, em 1899, o então presidente
Campos Sales a convidar Beviláqua – à época, professor catedrático de filosofia e
legislação comparada da Faculdade de Direito do Recife – a elaborar o projeto de
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 355

código civil brasileiro. Convite este cercado de controvérsias e críticas, as quais


afirmavam não haver em Beviláqua o devido amadurecimento nem o devido conhe-
cimento acerca da língua e suas regras.
Entretanto, após diversas tentativas de elaboração da codificação em destaque,
o jovem professor cearense redigiu o projeto em apenas seis meses, submetendo-o à
Câmara dos Deputados já em novembro de 1900, a qual ofertou parecer favorável em
janeiro de 1902, com relatório de um velho conhecido de Beviláqua, Sílvio Romero.
Controvérsias, no entanto, surgiram quando o projeto chegou ao Senado.
Rui Barbosa, responsável por estudar e oferecer seu parecer ao projeto, criticou-o
duramente, sobretudo ao apontar diversas discordâncias gramaticais, dando início
a uma longa e memorável discussão filosófica, que será oportunamente analisada
ao longo do trabalho.
Após quase quinze anos de discussões e propostas de emendas, o projeto final-
mente foi sancionado em 1º de janeiro de 1916, entrando em vigor um ano mais tar-
de. Após tanta espera, diversos doutrinadores temiam que o código civil já “nasces-
se velho”, pois sabia-se que, devido à complexidade existente dentro das relações
privadas, o código, quando promulgado, poderia não mais ser capaz de abranger a
realidade social existente.
Nesse sentido, Wolkmer afirma que as características do Código de Beviláqua,
por reproduzirem em muito as condições socioeconômicas e o individualismo pre-
dominante no século XIX, tiveram suas raízes no velho direito metropolitano, de-
fendendo um excessivo pátrio poder e mantendo também inalterados os privilégios
jurídicos da burguesia (WOLKMER, 2003, p. 120-121).
Orlando Gomes, por sua vez, adverte que Beviláqua não desconhecia, ao
elaborar o projeto, esse descompasso entre sua codificação e a realidade político-
social do Brasil; no entanto, seu pensamento esclarecido estava limitado pelo
meio (GOMES, 1971, p. 84-86). Ou seja, por mais que conhecesse a realidade
de desigualdade social existente no país, “numa estrutura agrária [...] como
a brasileira, não havia lugar para o abrigo de concepções avançadas na esfera
do Direito Privado; a nova codificação aproximava-se muito mais do perfil
conservador do que do inovador, porque as condições históricas assim a exigiam”
(WOLKMER, 2003, p. 117; CHACON, 1969, p. 177).
Não obstante tais críticas, não se pode negar a relevância e contribuição do
projeto Beviláqua ao direito pátrio. O Código de 1916 adotou, sim, inovações úteis,
defendidas pela doutrina e jurisprudência da época, além da organizada distribuição
de suas matérias, graças à influência alemã. Ele representou, enfim, a concretização
de um sonho nacional de sedimentação das estruturas socioculturais brasileiras após
três séculos de domínio romano-lusitano. Ademais, historicamente, o projeto, con-
forme já afirmado, consolidou os ideais filosóficos de todo um movimento compos-
to por homens que defendiam a compreensão do direito como fenômeno cultural,
elaborado pela humanidade à humanidade.
356

2. Desconstruindo, a partir da retórica


prática, o discurso bevilaquiano e identificando
as estratégias argumentativas nele utilizadas

2.1. A análise dos argumentos entimemáticos empregados


por Beviláqua na defesa de uma codificação civil brasileira

Como visto anteriormente, o projeto de Código Civil elaborado por Beviláqua


enfrentou uma verdadeira via crucis, no tocante a sua aprovação pelo Congresso
Nacional, a qual levou quase quinze anos. Durante todo esse período, o projeto foi
alvo de diversas críticas não só por parte dos deputados e senadores, mas também
por vários juristas e pela imprensa nacional.
O objetivo principal da pesquisa, neste momento, será analisar os argumentos
utilizados por Beviláqua, na defesa de seu projeto, contra tais críticas. A partir da
observação, já realizada, dos fatos e do ambiente no qual o autor estava inserido,
torna-se possível a análise das estratégias utilizadas por Beviláqua para que seu
projeto lograsse êxito e seu objetivo fosse finalmente alcançado.
Essa análise será, aqui, norteada pela retórica prática, também chamada de
estratégica. Tal nível retórico, como já afirmado, constitui um reflexo da retórica
material. Ele observa o ambiente e sugere meios para modificá-lo, “aperfeiçoá-lo”.
Em outras palavras, ele filtra a linguagem comumente utilizada e interfere estrategi-
camente sobre esta (BALLWEG, 1991, p. 177). Por este motivo, a retórica prática
se vincula à metodologia: ela corresponde, de modo genérico, a um conjunto de
meios estrategicamente articulados, a partir dos métodos, a fim de obter sucesso
(ADEODATO, 2009a, p. 37).
Por meio desse nível retórico, buscar-se-ão, em alguns discursos de Beviláqua,
as estratégias e argumentos – muitas vezes falaciosos – que tinham por objetivo a
persuasão do ouvinte e, consequentemente, o êxito de seu autor. Serão, aqui, ob-
jeto de estudo as defesas elaboradas por Clóvis em favor de seu projeto, as quais
afirmavam a necessidade e impostergabilidade de uma codificação civil brasileira,
atenta às necessidades da época, e a fragilidade argumentativa de seu adversário
mais atuante, Rui Barbosa.
Seguindo os ensinamentos de Aristóteles, o qual já afirmava que a função da
retórica não é simplesmente ser bem-sucedida na persuasão, mas também descobrir
os meios de alcançar tal sucesso (ARISTÓTELES, 2007, p. 22), serão desconstruí-
dos alguns discursos de Beviláqua – todos contidos na obra “Em defesa do projeto
de código civil brasileiro”, de 1906 – e neles identificados argumentos entimemá-
ticos que tomam por fundamento os elementos já referidos da retórica aristotélica
(ethos, pathos e logos).
Muito embora haja grande dificuldade em se conceituar com precisão termos
antigos, pode-se de modo genérico afirmar que entimemas são silogismos retóricos
que, por possuírem certo grau de “imperfeição”, não são capazes de chegar a uma
verdade cabalmente elaborada, como os apofânticos.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 357

De acordo com Adeodato, esses entimemas podem ser classificados em grupos


(ADEODATO, 2002, p. 269-276). Beviláqua, como se verá, utiliza frequentemente
dois desses grupos: o primeiro se funda naquilo que é provável, contingente e ve-
rossímil, o segundo é fruto de generalizações, de induções. Fala-se, aqui, em topoi
e exemplos, respectivamente.
Ao analisar a obra de Beviláqua, facilmente se pode perceber a utilização pelo
autor de diversas estratégias argumentativas. Até mesmo no nebuloso “Caso Olga
Benário”, o discurso atribuído a Beviláqua, pelo jornalista Fernando Morais, encon-
tra-se repleto de topoi.
Segundo Morais, em 1936, pouco antes da deportação da Olga Benário, que se
encontrava grávida do brasileiro Luís Carlos Prestes, para a Alemanha nazista, Cló-
vis Beviláqua, antigo consultor jurídico do Itamaraty, teria dado a jornais brasileiros
declarações a favor da extradição da judia alemã (MORAIS, 1987, p. 195-196).
Consoante o autor, Beviláqua teria afirmado:

A questão foi estudada em todos os seus aspectos em face do Direito Civil.


É, porém, diverso o caso em debate. Estamos agora no terreno do Direito
Internacional com um caráter punitivo. Essa punição, no entanto, visando à
expulsanda, vai atingir o nascituro. Além disso, estamos em período de estado
de guerra, e a expulsão de que se cogita envolve o ponto de vista do interesse
público, que está acima de todos os demais interesses.

Percebe-se, por meio da atenta leitura ao discurso supra transcrito, a utilização


de um estratagema comum entre os publicistas: a supremacia do interesse público
sobre o interesse privado. Se tal discurso, de fato, tiver por autor Beviláqua, o arti-
fício argumentativo não causa estranheza em face da tamanha habilidade linguística
que possuía o jurisconsulto. No entanto, impende ressaltar, assim como Schubsky,
que a fonte do discurso, ora em análise, não é esclarecida por Fernando Morais, não
havendo, portanto, provas cabais acerca de sua autoria (SCHUBSKY, 2010, p. 70).
Em relação às defesas realizadas ao seu projeto de Código Civil, Beviláqua
constantemente se valia de entimemas retóricos ao tentar “provar” a necessidade de
uma codificação genuinamente brasileira; porque, assim, seu projeto – acreditava
ele – teria maiores chances de aceitação pelos destinatários de seu discurso.
Para esse fim, a primeira estratégia utilizada por Beviláqua foi rotular critica-
mente as Ordenações do Reino, naquela época ainda vigentes, pois, dessa forma, fica-
riam os leitores convencidos de que seu projeto era a solução mais rápida e eficaz de
combate àquela codificação civil – nas palavras dele – “incongruente e avelhantada”.
Beviláqua referia-se às Ordenações de forma impiedosa a fim de que seus ou-
vintes certos estivessem de que mudar era necessário. Costumava, para isso, afirmar
que aquela fonte principal do direito civil era, na verdade, “um defeituoso corpo de
leis de origem espúria, que se acha em frangalhos, mordidos há quase três séculos
pelas traças vorazes da decadência” (BEVILÁQUA, 1906, p. IX e 21).
358

A segunda estratégia identificada no discurso bevilaquiano, para demonstrar


a inevitabilidade de uma codificação civil brasileira, foi aquela que Adeodato cha-
ma de estratégia de falar por sujeito indefinido ou indefinível (ADEODATO,
2009b, p. X-Y). Beviláqua, como forma de “legitimar” seus argumentos, realizava
frequentemente referências ao “interesse nacional”, ao “pensar comum”, ao que o
“povo anseia”, ao “interesse das organizações sociais” etc.
Esse tipo de estratégia é utilizada como meio de autorizar e apoiar o discur-
so em algo que possui força persuasiva bastante para convencer o ouvinte de que
aquilo que se diz é “o melhor”, “o mais correto” ou “o mais justo”. Como exemplos
desse meio, pode-se analisar passagens das defesas de Beviláqua, como:

Poderá dizer: a nação, por seus órgãos legítimos, manifestando o desejo inten-
so de adquirir um aparelho jurídico mais em harmonia com o estado social.
[...] já cumpri, na medida das minhas faculdades, o dever de justificar e de-
fender a obra de interesse nacional que me fora confiada. (BEVILÁQUA,
1906, p. IX-XII).

Outra estratégia empregada por Beviláqua pode ser chamada de tomar o pos-
sível por certo. O autor, na defesa da necessidade de uma codificação nacional,
expôs possíveis vantagens trazidas por ela como se fossem acontecimentos futuros
inevitáveis. Ele afirmava que, por meio dessa codificação, haveria “um cerceamento
do arbítrio dos depositários”, “segurança dos interesses”, e que elas ainda “prove-
riam, por longo tempo, as necessidades sociais” (BEVILÁQUA, 1906, p. 13-21).
Esta “pré-visão” – ação de “profetizar” fatos futuros – é, sem dúvidas, uma
excelente estratégia persuasiva. Pois, dada a impossibilidade de se possuir fatica-
mente tal “antevisão”, ela serve como meio de convencimento, aos destinatários do
discurso, de que a ideia defendida – no caso, a adoção do projeto como codificação
brasileira – é “a mais adequada” por trazer “as melhores consequências”.
A estratégia de adotar argumentos vagos também é facilmente encontrada no
discurso de Beviláqua. Esse tipo de artifício é utilizado como meio estratégico geralmente
perante o auditório inculto e pode ainda ser comparado com o velho estratagema,
apontado por Schopenhauer, do “discurso incompreensível” (SCHOPENHAUER,
1997, p. 178-179). Exemplos desse tipo de falácia, em Beviláqua, são:

• Se há necessidade claramente acusada pela consciência jurídica entre


nós, é, creio eu, a da codificação das leis civis.
• Os códigos estereotipam eles a forma do pensamento jurídico em um
certo momento da civilização de um povo.
• Refocilam os espíritos, dominada a inquietação que os agitava, e as
atividades se desenvolvem livremente à sombra da lei.
• O fenômeno da codificação é um estado da evolução do direito.
• As codificações [...] são o produto da necessidade de simplificação, de
clareza, de segurança, vivamente sentida pela consciência coletiva dos
povos. (BEVILÁQUA, 1906, p. 13-21)
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 359

A estratégia da vagueza, como percebido, permite que se elaborem argumen-


tos que nada querem dizem. Porém, não obstante tal característica, eles possuem,
sim, força persuasiva, pois quem ousaria se opor a termos como, os supracitados,
“pensamento jurídico”, “evolução do direito” ou “consciência coletiva”?
Finalizando seu discurso em prol de uma codificação nacional, Beviláqua se
valia de uma estratégia, há muito já aconselhada por Aristóteles: exemplificar. Cló-
vis citou a Lei das doze tábuas em Roma, o Código da Prússia e o Código de Na-
poleão, como sendo – segundo ele – exemplos de que “as codificações surgem nas
épocas de maior expansão das forças nacionais”. Ele mencionou também os códigos
civis da Itália e da Alemanha para “provar” que elas só ocorrem “quando os povos
sentem necessidade de afirmar a sua unidade ou a sua soberania” (BEVILÁQUA,
1906, p. 18). Beviláqua, dessa forma, induzia o leitor a crer que se fosse aprovado
seu projeto e, consequentemente, houvesse a adoção de um código civil elaborado
por um brasileiro aos brasileiros, isso seria um vestígio de que a nação estaria afir-
mando sua unidade e soberania.

2.2. O debate travado entre Beviláqua e Rui Barbosa e os meios


estratégicos utilizados por aquele na defesa do seu projeto de código civil

Após argumentar em favor de uma codificação civil brasileira e expor os


motivos que a tornavam necessária à época, partiu Beviláqua às críticas feitas ao
seu projeto.
Na obra “Em defesa do projeto de código civil brasileiro”, ele respondeu a
boa parte dessas críticas, sempre de modo seguro e cortês. Analisaremos, aqui, em
especial, uma dessas repostas: trata-se daquela oferecida ao parecer e à réplica ela-
borados pelo então senador Rui Barbosa.
A escolha pelo debate travado entre Beviláqua e Barbosa deu-se, sobretudo,
por ele ter representado uma das principais causas da mora quanto à aprovação do
projeto pelo Congresso Nacional e por nele está contida uma velha discussão filosó-
fica acerca da forma e do conteúdo do discurso.
Considerando-se a persuasão como uma prática de comunicação “calculada”
em função do resultado e que ela, enquadrando-se no pensamento estratégico, leva
em conta as vulnerabilidades do outro, ao mesmo tempo em que pensa e administra
seu próprio arsenal de meios (BELLENGER, 1987, p. 8), buscar-se-á, mais uma
vez, no discurso elaborado por Beviláqua em resposta às críticas de Rui Barbosa,
identificar as estratégias por aquele trabalhadas.
Inicialmente, faz-se mister ressaltar que todas essas estratégias, além de obje-
tivarem o êxito de seu autor, possuem outro fim comum: restringir as críticas ao
mero campo da forma. Beviláqua tentou provar, ao longo de toda sua defesa, que
os argumentos de Ruy eram demasiadamente frágeis por serem resumíveis a questões
gramaticais. Pois, ao invés de fazer uso de lições jurídicas, segundo Beviláqua, o sena-
dor Barbosa estava mais preocupado em questionar a flexão de adjetivos e a utilização
de termos adversativos no final de frases (BEVILÁQUA, 1906, p. 449-478).
360

Beviláqua argumentava ainda que, por trás de códigos e expressões jurídicas,


existiam diversos princípios (o conteúdo) a serem analisados e não apenas a gra-
mática (a forma). Por isso, para ele, as objeções de Ruy, ao seu projeto, nada mais
eram que “um desvio da crítica”, “um grande esforço desviado do seu principal ob-
jetivo” – da observação da correspondência do projeto com os anseios doutrinários,
jurisprudenciais e sociais.
A partir daí, o jovem professor da Faculdade de Direito do Recife elaborou
sua primeira estratégia para desarticular tanto o parecer quanto a réplica do sena-
dor. Beviláqua, a exemplo do que fizera quando censurou as Ordenações do Reino,
ofereceu às objeções de Ruy rótulos críticos: ele as qualificou, por exemplo, como
inoportunas, clamorosamente injustas, incompletas, desusadamente causticantes e
ainda como frutos de uma operação secundária (BEVILÁQUA, 1906, p. X-XI e
449). Esta estratégia funcionava como um modo rápido de eliminar ou, ao menos,
de tornar suspeita as afirmações do senador Barbosa e, assim, colocar os leitores, de
antemão, contra este (SCHOPENHAUER, 1997, p. 174).
Quanto às criticas ao estilo e à gramática, Beviláqua se defendeu por meio de
duas estratégias já mencionadas. A primeira refere-se àquela de falar por sujeito
indefinido ou indefinível. Exemplo disso ocorreu quando ele afirmou que os códi-
gos deveriam adotar expressões simples, transparentes, em correspondência com as
novas formas da língua em contínua modificação e com o povo que a utiliza. Mais
uma vez, Beviláqua “legitimou” sua opinião ao se autotornar o “porta-voz autori-
zado do povo”, fato este que, como facilmente observável, não passa de um eficaz
meio persuasivo.
A segunda trata da estratégia de adotar argumentos vagos. Ele afirmou,
por exemplo, que essa era uma “contenda bizantina” e, ao citar Schoefle, disse
que “a língua é a capitalização simbólica do trabalho intelectual de um povo”
(BEVILÁQUA, 1906, p. X). Ambas as afirmações são compostas por termos que, de
fato, nada significam, mas que servem de importantes meios para o convencimento
do ouvinte ou leitor.
Interessante constatar ainda que, embora fizesse constantemente uso da lin-
guagem vaga, Beviláqua, ao identificar tal estratégia também no discurso de Rui
Barbosa, criticou-o duramente por isso. Quando Ruy declarou, por exemplo, que
para se elaborar um código era necessário o tempo suficiente para que “a nossa
consciência se sinta satisfeita”, Beviláqua afirmou: “esbarramos numa barreira in-
transponível” – a vagueza. E, em outro trecho de sua defesa, alegou que as decla-
mações de Barbosa nada significavam, chegando a acusá-lo – por assim agir – de
“retórico” (BEVILÁQUA, 1906, p. 454 e 472).
Percebe-se aqui que, ao assim rotular o senador, Beviláqua estava atrelado ao
preconceito, já descrito e superado, existente contra a retórica, o qual a identifica
como mero ornamento capaz de tornar o discurso mais persuasivo.
Outra estratégia comum no discurso bevilaquiano é o uso constante de iro-
nias, tanto quando se referia a Barbosa como “o ilustre contraditor” ou “o preclaro
censor” quanto quando realizava afirmações do tipo “para elaborar um código civil,
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 361

o saber jurídico é requisito secundário e subordinado; o essencial, o indispensável,


o soberano, a qualidade primaria é a casta correção do escrever” (BEVILÁQUA,
1906, p. 462 e 467-468). Dessa forma, Beviláqua tentava, ao mesmo tempo, con-
quistar a simpatia do público e diminuir as críticas a ele realizadas.
Já em resposta às críticas que Ruy realizara à adoção, pelo projeto, de termos
inovadores como “obrigado moroso”, Beviláqua também se defendeu estrategica-
mente, agora reutilizando exemplos e apontando para o desespero (nervosismo)
de seu adversário. O exemplo utilizado, aqui, por Beviláqua foi o do Código Civil
Português, no qual também se poderia encontrar a expressão “obrigado”, ao invés
de “devedor”. Após citar tal exemplo, Clóvis também fez questão de pôr em evidên-
cia a irritação contida na réplica do senador, mediante a análise de termos utilizados
por este ao referir-se à mencionada expressão “obrigado moroso”. Beviláqua con-
cluiu que afirmar que tal expressão é “ridícula” ou, ainda, “esdrúxula e desastrada”,
provava cabalmente o desequilíbrio emocional de Ruy e, consequentemente, o des-
vio ao objetivo central da discussão em que caíram suas objeções (BEVILÁQUA,
1906, p. 471-474).
Por fim, Beviláqua se valeu de uma demonstração exacerbada de humildade.
É comum, desde o início de suas defesas até o fim destas, o uso de frases, como:

• Eu sou uma insignificância, que não sei manejar a língua de que me sirvo.
• A minha personalidade literária é de si apagada e sem valia.
• [...] foi cumprido o meu dever. ‘Outros fariam ou farão melhor, eu fiz o
que pude’. (BEVILÁQUA, 1906, p. 451, 453 e 468)

O uso de expressões que transparecem a modéstia pode funcionar como uma


artimanha persuasiva, pois quem a utiliza costuma obter a simpatia do seu público
alvo. Pode-se afirmar que, ao se valer de tais expressões, o objetivo de Beviláqua
era não só cativar seus leitores, por meio de sua demonstrável “simplicidade”, mas,
também, opô-los ao seu adversário, Rui Barbosa.
Assim, conclui-se o objetivo inicialmente proposto: identificaram-se e anali-
saram-se as estratégias e os argumentos utilizados por Beviláqua em defesa de seu
projeto e pelo fim do domínio da jurisprudência e das leis lusitanas no direito civil
brasileiro. O próximo passo, adiante, será observar como esses argumentos e estra-
tégias podem, ainda hoje, ser reutilizados numa discussão doutrinária. Em outros
termos, tentar-se-á demonstrar como as ideias de Beviláqua, frutos de seu ambiente
e tão influentes em sua época, continuam aplicáveis na atualidade.
362

3. Da perspectiva forma versus conteúdo à atual


discussão significante versus significado da norma jurídica

3.1. A análise dos efeitos trazidos pela metodologia


adotada por Beviláqua ao ambiente de sua época

Agora que já obtidas as informações sobre o ambiente, enquanto consenso


linguístico e temporal, no qual vivia Beviláqua, e sobre as estratégias argumen-
tativas por este utilizadas, têm-se os elementos necessários para a aplicação da
retórica analítica.
Como inicialmente dito, por meio da retórica analítica far-se-á uma espécie de
descrição, o mais axiologicamente neutra possível, do quão relevantes foram os ar-
gumentos de Beviláqua sobre os fatos – enquanto relatos intersubjetivos – existentes
em sua época. Isso será feito a partir dos outros dois níveis retóricos anteriormente
trabalhados, o nível material e o estratégico. Ou seja, a partir de uma reflexão sobre
o ambiente e sobre as estratégias neste elaboradas, tentar-se-á observar e descrever
como essas últimas influenciaram aquele.
Por meio de uma metarreflexão ou “meta-metalinguagem” (ADEODATO,
2009a, p. 39), que constitui a metódica, a busca agora será pela identificação dos
efeitos que as estratégias argumentativas, adotadas por Beviláqua, tiveram sobre a
realidade de sua época.
Entretanto, a pesquisa não se resumirá apenas à descrição de tais efeitos, ela
irá além, tentando também relacionar o ambiente no qual vivia Beviláqua com o de
hoje, com o momento histórico atual. E, a partir daí, procurar-se-á evidenciar a re-
levância daquelas estratégias ainda hoje, através da reutilização destas em questões
jurídicas atuais. Tudo isso norteado pela busca de originalidade e continuidade das
ideias jurídicas no Brasil, a qual informa toda a pesquisa.
Difícil não admitir que as estratégias argumentativas, elaboradas por Bevi-
láqua, alcançaram seu principal objetivo, a persuasão, uma vez que seu projeto de
Código Civil, mesmo após quinze anos de sua elaboração, foi, enfim, aprovado.
Inicialmente, Beviláqua, ao se valer de topoi argumentativos e exemplos, ob-
teve o apoio de influentes homens da época, como o de Epitácio Pessoa, Campos
Salles, Oliveira Fonseca, Sylvio Romero e Solidonio Leite. Todos eles convencidos
por Beviláqua acerca da necessidade de uma codificação genuinamente brasileira,
elaborada por um brasileiro a todos os brasileiros, substitutiva das “incongruentes e
avelhantadas” Ordenações do Reino.
Beviláqua conseguiu importantes adeptos, por meio de seu discurso, para
defesa de seu projeto. Entretanto, como visto, este permanecia como centro de
inúmeros debates no Congresso Nacional, graças, sobretudo, aos ataques de Rui
Barbosa. Ruy, valendo-se de todo seu conhecimento jurídico e também gramati-
cal, elaborou críticas de toda ordem ao projeto de Beviláqua, impedindo que este
fosse facilmente aceito.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 363

Após muita espera e diversas críticas, Beviláqua reagiu e realizou defesas ao


seu projeto. Ele combateu as oposições de diversos contendores, porém, ocupou-se
com um adversário de modo específico. Beviláqua percebeu que, dentre as muitas
objeções feitas ao seu projeto, as de Ruy representavam a causa principal da não
aprovação definitiva de seu trabalho, e assim elaborou uma estratégia especial para
derrotá-las. Trata-se da estratégia de restringir as críticas de Rui Barbosa ao mero
campo da forma.
Por meio de um discurso valorativo, Beviláqua defendia que o conteúdo deveria
prevalecer diante da forma. Sendo, portanto, segundo ele, um “desvio da crítica” o
que fazia Barbosa. Consoante Clóvis, as objeções de Ruy não passavam de questões
de gramática e estilo, devendo assim ser consideradas como uma operação secundá-
ria. Não mais se poderia, portanto, retardar a aceitação do projeto, continuava Bevi-
láqua, por causa de críticas meramente sobre o campo da forma; pois estas, concluía,
deveriam ser relevantemente consideradas apenas numa etapa posterior à aprovação
do projeto, na sua simples revisão gramatical (BEVILÁQUA, 1906, p. X-XI).
Ao assim estrategicamente agir, diminuindo as críticas de Barbosa ao
campo do formalismo exacerbado, Beviláqua conseguiu convencer boa parte
dos destinatários de seu discurso de que tais críticas eram, como ele mesmo
rotulava, “evidentemente inoportunas, clamorosamente injustas e desusadamente
causticantes” (BEVILÁQUA, 1906, p. 479). Por meio de tal discurso, Beviláqua
conseguiu, pouco tempo depois, finalmente concretizar seu sonho e ver aprovado
por ambas as casas do Congresso Nacional seu projeto de Código Civil Brasileiro.
Dessa forma, como já afirmado, inegável não reconhecer o sucesso alcan-
çado pela metodologia adotada por Beviláqua – pela sua principal estratégia ar-
gumentativa –, que punha em combate a forma versus o conteúdo de seu projeto,
defendendo a prevalência desse último frente àquela. Diz-se inegável, pois tal
estratégia alcançou o efeito pretendido previamente por Beviláqua, despertou nos
juristas e congressistas o sentimento de que as críticas de Barbosa tratavam ape-
nas sobre questões triviais e, não obstante tal característica, tais objeções estavam
impedido a concretização de um “sonho nacional”, a aprovação de um legítimo
Código Civil Brasileiro.

3.2. A reutilização das ideias de Beviláqua


no estudo das escolas positivistas

Como inicialmente já defendido, a reflexão sobre a metodologia, no momento


elaborada, não deve se limitar à descrição acerca da força persuasiva do discurso de
Beviláqua. A retórica analítica deve ir além e, sendo assim, tentar-se-á agora eviden-
ciar a importância prática que o principal argumento de Beviláqua – preponderância
do conteúdo sobre a forma – pode ter atualmente. Pois, mediante a reutilização de
tal argumento, acredita-se aqui que ele possa auxiliar no debate que hoje se trava
sobre o significante e o significado da norma jurídica.
364

Como visto anteriormente, Beviláqua afirmava, na defesa de seu projeto e em


combate às críticas de Rui Barbosa, que o conteúdo de todo e qualquer texto deveria
prevalecer sobre sua forma, muito embora esta também tenha alguma importância.
Isso se assemelha ao que atualmente defende o realismo jurídico, o qual, diferente-
mente do que acreditavam os primeiros legalistas, acredita numa distinção entre o
texto normativo legal e a norma jurídica.
O realismo surge em combate à mentalidade silogística de que toda decisão
jurídica deriva de uma regra geral prévia. Katharina Sobota, um dos principais ex-
poentes de tal corrente, defende que o silogismo não é um método de decisão, mas
sim um estilo de apresentação legal desta, uma espécie de “fachada normativa” al-
tamente funcional, eficaz e legitimadora, desenvolvida pelos aplicadores do direito.
Ainda consoante Sobota, a norma jurídica (decisão) não guarda relação real com os
textos normativos, pois sua fonte, mesmo que racionalmente desconhecida, está na
intersubjetividade do intérprete (SOBOTA, 1995, p. 251-257).
Partindo de tal pensamento, conclui-se que, ao invés do que costumeiramente
defendido, a interpretação e aplicação do direito não se dão de modo dedutivo (si-
logístico), mas sim indutivo: primeiro decide-se, cria-se a norma, depois se funda-
menta em textos legais (ADEODATO, 2009a, p. 161-163).
Contrariando esse raciocínio, existem as tradicionais correntes legalista e nor-
mativista. A primeira, inicialmente defendida pelos exegetas franceses, identifica o
texto legal com a própria norma jurídica. Tal identificação decorre de um simples
motivo: o legalismo dispensa, para a concretização da norma e efetiva aplicação
do direito, a interpretação do texto normativo pelo julgador – “boca da lei”. Daí a
confusão entre o significante e o significado da norma jurídica.
Esse posicionamento, ao menos no Brasil, parece hoje superado. Diz-se isso
porque é aparentemente uníssono, não só entre os estudiosos, mas também entre os
chamados “operadores do direito”, a defesa por uma efetiva interpretação do texto
legal. Pois, por mais claro que esse aparente ser, concordam os juristas que não se
pode dispensar uma análise mais apurada do caso concreto nem desconsiderar as
demais fontes informadoras do direito; daí a necessidade de se interpretar.
O próprio Kelsen já defendia, em sua “Teoria Pura do Direito”, a indispensa-
bilidade da interpretação do direito pelo órgão que o aplica, muito embora limite
tal ato a uma espécie de “quadro” ou “moldura”. Kelsen critica a tese da “única
interpretação correta”, defendida pelo legalismo exegético, afirmando que essa é
apenas “uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o
ideal de segurança jurídica”. Para ele, não haveria apenas uma decisão correta, mas
sim várias possíveis e, da mesma forma, acertadas dentro dos limites impostos pela
moldura da norma geral (KELSEN, 2003, p. 387-397).
O normativismo kelseniano passa a ofertar à decisão judicial o status de norma
jurídica individual devido à reconhecida importância dada à interpretação. Entretan-
to, à semelhança do que defendia a Escola da Exegese, este normativismo perma-
nece dedutivista. Ou seja, assim como os legalistas, os normativistas também acre-
ditam numa dependência lógica entre o texto previamente dado e a norma jurídica.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 365

Não obstante isso, enquanto o método dedutivista próprio das correntes lega-
listas é apofântico, o dos normativistas é dialético, dependente, portanto, de uma
análise “científica” prévia entre o fato e o texto legal. Diferentemente dos legalis-
tas, como já ressaltado, o normativismo kelseniano defende a obrigatoriedade da
interpretação do texto normativo, em todo e qualquer caso concreto, pelos órgãos
julgadores. Dessa forma, percebe-se que, muito embora já haja uma diferenciação
entre a norma individual e a norma geral, o normativismo, ao contrário do realismo,
ainda não distingui a norma de seu texto, o significado de seu significante.
Em última análise, como bem sintetiza Norberto Bobbio, o que diferencia as
correntes positivistas, acima mencionadas, parece, de fato, ser o modo diverso de
individualizar a fonte do direito (BOBBIO, 2006, p. 143). Enquanto as correntes
legalistas e normativistas defendem como principal fonte do direito a regra genérica
previamente posta, o realismo acredita que toda decisão é fruto da intersubjetivida-
de do julgador, sendo toda norma jurídica, portanto, individualmente criada diante
do caso concreto.
Ao analisar tais correntes jurídicas – o legalismo, o normativismo e o realismo
– e o que cada uma delas entende por norma jurídica, pode-se constatar um retorno
à velha discussão, já oportunamente analisada e tratada estrategicamente por Bevi-
láqua, entre a forma e o conteúdo da linguagem.
O legalismo e, de certa forma, o normativismo não conseguem diferenciar a
norma jurídica de sua expressão linguística – de seu significante –, que pode repre-
sentar simbolicamente aquela por meio de leis, jurisprudências, decretos etc. Já o
realismo vem propor uma distinção entre a forma (o significante) e o conteúdo (o
significado) da norma jurídica, na qual a forma seria apenas uma ferramenta de jus-
tificação (legitimação) da norma.
Mas, será que dentro da “praxe decisionista” essa distinção valorativa entre a
forma e conteúdo da norma jurídica, tão acentuada pelas escolas realistas, mostra-se,
de fato aconselhável? Será que essa diferenciação – em outros tempos já defendida
por Beviláqua, não em relação à norma, mas, sim, à linguagem em geral – pode ser
adotada “com segurança” pelos “operadores do direito”? É o que se analisará adiante.

4. Conclusão: equivalência valorativa entre o


significante e o significado da norma jurídica

Ao longo de toda a pesquisa, tentou-se evidenciar a relevância do estudo da


retórica e a sua capacidade de transmitir e gerar conhecimento. Para isso, foram
pesquisadas e trabalhadas as ideias de Clóvis Beviláqua em três níveis retóricos:
material, estratégico e analítico.
Por meio do primeiro nível retórico, foi pesquisada a “realidade”, enquanto
relato circunstancial e intersubjetivo, em que estava inserido Beviláqua. Lançando-se
mão da retórica estratégica, observaram-se os argumentos e artimanhas linguísticas
utilizadas pelo autor com objetivo de influenciar seu ambiente. Neste segundo
nível retórico, deu-se foco à distinção, tão defendida por Beviláqua, da forma e do
366

conteúdo da linguagem. A partir de tal distinção, já no terceiro nível retórico, foi


possível constatar a aplicabilidade das ideias de Clóvis no debate travado entre as
escolas positivistas acerca do significante e do significado da norma jurídica.
Agora, após o estudo retórico do pensamento de Clóvis Beviláqua em três ní-
veis, propõe-se, diferentemente do que fez o autor em estudo, não a preponderância
do conteúdo frente à forma, mas sim uma equivalência valorativa entre esses dois
elementos da norma jurídica.
Explica-se. Tendo como escopo a “controlabilidade social”, defender-se-á
adiante uma equivalência valorativa entre o significante e o significado da norma
jurídica. Ou seja, acredita-se aqui que, em nome da efetividade do direito, enquanto
instrumento de ordenação social, sobrepor o significado da norma jurídica ao seu
significante não seja o caminho mais indicado.
Dentro da “praxe decisionista”, evidencia-se que a efetividade do direito é
dependente de várias crenças, dentre as quais se destaca a da “certeza” de que toda
a decisão tem por embasamento uma regra previamente posta. Ao abrir mão de tais
crenças, desafia-se a segurança e o controle social. Diz-se isso porque para ser so-
cialmente aceito, o direito deve-se mostrar objetivo e, até certo ponto, “científico”.
Entretanto, este não parece ter sido o raciocínio adotado pelo então minis-
tro Eros Grau ao declarar, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº
390.840-5, em meio ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, que:

Em verdade a Constituição nada diz; ela diz o que esta Corte, seu último
intérprete, diz que ela diz. E assim é porque as normas resultam da interpre-
tação e o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de
interpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das disposições (textos,
enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilida-
des de interpretação, um conjunto de normas potenciais.

Percebe-se que o referido ministro, seguindo a doutrina pregada pelo atual


realismo jurídico, defende que o texto normativo não representa a norma, mas sim
o significante desta. Ela, a norma jurídica, somente poderia ser alcançada posterior-
mente, a partir da interpretação e aplicação do texto ao caso concreto em particular.
Contudo, a exposição pública de tal raciocínio parece ser uma afronta ao tão
festejado princípio da segurança jurídica. O direito, como já defendido, é fundado em
crenças, as quais se mostram vitais para sua legitimação. Em outros termos, o direito
possui uma necessidade atávica da ilusão de certeza, mesmo que numa esfera de in-
certeza (SOBOTA, 1995, p. 271). Para “funcionar”, para ser efetivo no meio social,
o direito deve parecer seguro, certo e objetivo (CASTRO JÚNIOR, 2009). Portanto,
afirmar, numa decisão judicial, que a Constituição somente diz o que a mais alta Corte
julgadora do país diz que ela diz, parece, no mínimo, desafiador à “ordem social”.
Não se discute aqui a certeza ou incerteza de qualquer que seja a corrente
doutrinária, muito menos se pretende retornar à antiga e inocente crença exegética
na tese da única decisão correta. Busca-se, sim, um equilíbrio entre a forma e o con-
teúdo da norma jurídica, entre o significante e o significado desta.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 367

Diferentemente do que propunha Beviláqua, quando se trata de norma jurí-


dica, não parece recomendável sobrepor valorativamente o conteúdo à forma, o
significante ao significado. Se parece inviável o formalismo legalista, mostra-se da
mesma forma exacerbado o ceticismo realista.
A crença na subsunção quase que objetiva entre o texto legal e a norma jurí-
dica, em toda e qualquer decisão, parece, de fato, indispensável à efetividade do
direito. Daí a necessidade de se tentar conciliar, mesmo que a posteriori, o texto
normativo e a norma jurídica.
Por meio de tal conclusão e de todo o exposto ao longo do trabalho, confir-
ma-se aqui, portanto, a existência de originalidade e continuidade no pensamento
jurídico brasileiro. Por meio da análise retórica – que, como exaustivamente já res-
saltado, não se limita à mera estratégia argumentativa ou ornamento linguístico –,
constatou-se a originalidade das ideias de Beviláqua, sobretudo daquelas referentes
à distinção da forma e do conteúdo da linguagem, e a continuidade de tais ideias no
desenvolvimento da doutrina jurídica nacional, em particular, na discussão acerca
do significante e significado da norma jurídica.
368

REFERÊNCIAS

ADEODATO, João Maurício (2009a). A retórica constitucional (sobre tolerância,


direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva.
______ (2009b). As retóricas na história das ideias jurídicas no Brasil – originalidade
continuidade como questões de um pensamento periférico. Revista da ESMAPE,
Recife, n. 30.
______ (2005). Filosofia do direito: Uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3.
ed. São Paulo: Saraiva.
______ (2002). Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São
Paulo: Saraiva.
ARISTÓTELES (2007). Retórica, trad. Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Ri-
deel, 2007.
BALLWEG, Ottmar (1991). Retórica analítica e direito, trad. João Maurício Ade-
odato. Revista brasileira de filosofia, São Paulo, volume XXXIX, fascículo 163,
jul./set. 1991.
BARRETO, Tobias (1926). Questões vigentes. Obras completas editadas pelo Es-
tado de Sergipe.
BELLENGER, Lionel (1987). A persuasão e suas técnicas. Trad. Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
BEVILÁQUA, Clóvis (1906). Em defeza do projecto de codigo civil brazileiro.
Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves.
______ (1977). História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: INL,
Conselho Federal de Cultura.
BOBBIO, Norberto (2006). O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito.
Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos Rodrigues. São Paulo: Ícone.
CASTRO JÚNIOR, Torquato da Silva (2009). A pragmática das nulidades e a
teoria do ato jurídico inexistente: reflexões sobre metáforas e paradoxos da dog-
mática privatista. São Paulo: Noeses.
CHACON, Vamireh (1969). Da escola do Recife ao Código Civil (Arthur Orlando
e sua geração). Organização Simões.
CHAVES, Antônio (1982). Tratado de direito civil. Parte Geral. Tomo I. São Pau-
lo: Revista dos Tribunais.
GOMES, Orlando (1971). Introdução ao direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense.
KELSEN, Hans (2003). Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes.
MORAIS, Fernando (1987). Olga. 14. ed. São Paulo: Alfa-Ômega.
SAUSSURE, Ferdinand de (1995). Curso de linguística geral. 20. ed. Trad. Antô-
nio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix.
SCHOPENHAUER, Arthur (1997). Como vencer um debate sem precisar ter
razão: em 38 estratagemas: (dialética erística). Introdução, notas e comentários de
Olavo de Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 369

SCHUBSKY, Cássio (2010). Clóvis Beviláqua: um senhor brasileiro. São Paulo:


Lettera.doc.
SOBOTA, Katharina (1995). Não mencione a norma!, trad. João Maurício Adeoda-
to. Anuário dos cursos de pós-graduação em direito, Recife, n. 7.
WOLKMER, Antônio Carlos (2003). História do direito no Brasil. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense.
A RETÓRICA DA HISTÓRIA DO ESTUDO
DA RETÓRICA PARA O DIREITO
PORTUGUÊS E BRASILEIRO
Lourenço Torres

Resumo: Este capítulo descreve a importância do estudo da retórica ao longo


da formação intelectual luso-brasileira até o século XIX. Com o objetivo de
observar eventos diretamente ligados à história do ensino brasileiro do direi-
to, pesquisa as raízes da retórica como fundamento do direito. Conclui que
vários fatos históricos podem ser interpretados como estratégias políticas de
dominação vestidas de um discurso de emancipação e legitimidade.
Palavras-chave: Direito. História das ideias. Estudo da retórica.
Abstract: This paper describes the importance of the study of rhetoric
throughout the Portuguese and Brazilian intellectual formation until the XIX
century. It observes that some events are directly related to the history of the
Brazilian law education and that rhetoric is one of its bases. It concludes that
some historical facts can be interpreted as political strategies of domination
covered with a speech of emancipation and legitimacy.
Keywords: Law. History of ideas. Study of rhetoric.
Sumário: Introdução: A retórica nos primórdios de uma formação intelectu-
al e jurídica: de Portugal para o Brasil. 1. A influência religiosa jesuíta nos
centros culturais lusitanos e as origens do ensino da retórica. 2. A reforma
pombalina do ensino e do estudo da retórica portuguesa como estratégia de al-
teração do instrumento de dominação jesuíta. 3. Os reflexos da reforma pom-
balina sobre o ensino brasileiro até sua fase pré-republicana. 4. As aquisições
filosóficas e a nova produção bibliográfica para a retórica nos primeiros cur-
sos jurídicos no Brasil como estratégias legitimadoras do processo de eman-
cipação nacional. 5. Conclusão – As estratégias de dominação construíram a
história da retórica brasileira. Referências.

Introdução: a retórica nos primórdios de uma formação


intelectual e jurídica: de Portugal para o Brasil

Este capítulo tem por objeto de investigação a história da retórica, e esta, asso-
ciada ao estudo do Direito. O objetivo é entender como e por que a retórica foi uma
estratégia de dominação das elites de poder ao longo da História. Com esse objetivo,
outras questões relevantes serão abordadas, como: qual a formação dos bacharéis
brasileiros em relação à retórica e a outras matérias jurídicas; quais os conteúdos
disciplinares de fundo filosófico nas primeiras escolas jurídicas brasileiras, em par-
ticular, a Faculdade de Direito do Recife; quais os primeiros tomos adquiridos pelas
bibliotecas sobre o assunto; e, que circunstâncias influenciaram o espaço político ou
372

cultural daquele período. Muitas são as respostas a essas perguntas, mas algumas
respostas, como se perceberá ao longo deste estudo, ao menos, fornecerão alguns
dados interessantes.
Interpretar a vida intelectual de um país como o Brasil é tarefa complexa, prin-
cipalmente quando a formação intelectual é resultado de um processo de dominação
colonial de longa duração. Essa mazela não foi uma particularidade brasileira, pois
o Brasil não está isolado. O que é particular e, até certo ponto, une o Brasil a outros
países ibero-americanos, são pelo menos duas características. A primeira, a diferen-
ça desse grupo ibero-americano dos outros países gerados pela expansão europeia;
ou seja, o Brasil foi alvo de uma propagação controlada pelo Estado metropolitano
colonizador. Nisso se destacou o domínio do sistema educacional, exercido, ora
pelo Estado, ora pela Igreja; a exemplo das ex-colônias espanholas cuja educação
superior tinha mais divulgação, porém, também sob um rigoroso controle de currí-
culos, compêndios, ideias e métodos didáticos. O caso português foi mais acentu-
ado. Em seus domínios até as universidades e escolas superiores foram proibidas.
Os nascidos na colônia só encontravam tal educação na metrópole europeia. A se-
gunda característica é que os países colonizados pela península Ibérica se tornaram
diferentes do “mundo” anglo-saxão no campo das ideias, dos valores, das visões de
mundo, e naquilo que mais interessa a este estudo, o campo da linguagem, os estilos
de pensar, os modos de discurso e as práticas retóricas.
O estudo da retórica teve grande peso na vida lusitana e brasileira. Remonta
à tradição escolástica portuguesa que se destacou na Universidade de Coimbra por
onde passaram muitos membros da sua elite política e intelectual na primeira meta-
de do século XIX. A retórica foi ensinada pelos jesuítas no período que foi chamado
de a segunda escolástica portuguesa. Depois, durante a reforma pombalina, a retó-
rica não foi extinta, mas o teor de seu ensino foi modificado para “dignificar-lhe” o
conteúdo e ampliar seu alcance. Ela deveria permear a vida de todos e não só fazer
parte da vida de políticos, clérigos e advogados, pensavam.
Portanto, ao longo da História portuguesa a retórica foi apresentada e ensi-
nada de formas variadas. Com a finalidade de servir na admissão às Universidades
de Coimbra e Évora, seu estudo e aprovação foi exigência obrigatória entre outras
disciplinas. Assim, foram criadas escolas preparatórias, na metrópole e na colônia
brasileira, estabelecendo um vínculo estreito com o estudo do Direito. Pode ser dito
que, qualquer pessoa em Portugal e no Brasil que tivesse estudado acima da alfa-
betização elementar, no início do século XIX, teria alguma formação em retórica.
Isso nos leva a constatar que o estudo da retórica fez parte da formação intelectual e
jurídica nos domínios portugueses e que as influências que se iniciaram em Portugal
tiveram reflexos também no Brasil. Mas, quais foram essas influências, quais foram
os grupos que fizeram essa influência predominar, e, por que o ensino (aí incluído
o estudo da retórica) foi tão importante na formação e estabelecimento da cultura
jurídica nacional até o final daquele século?
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 373

1. A influência religiosa jesuíta nos centros culturais


lusitanos e as origens do ensino da retórica

A religião modelou fortemente o ensino lusitano e com ela também veio todo o
peso do estudo da (sua) retórica. Mesmo antes da reforma de Pombal, Portugal, in-
ternamente, manteve uma união teológico-política com o cristianismo como forma
de refutação das crenças mouras cujo território havia sido reconquistado. Quando
se iniciou a expansão ultramarina lusitana do século XVI, esta se manteve associada
também à expansão da “fé”. Porém, o século seguinte foi marcado por um acirra-
mento da escolástica e da mística religiosa, apesar da cientificidade e do progresso
tecnológico ter se difundido e multiplicado durante a expansão colonial que, para-
doxalmente, também conduzia os jesuítas e suas recomendações.
Por causa das intervenções da Reforma protestante e sua atitude científica na
Europa, a censura e o controle do ensino acirrou-se nos locais onde o catolicismo
“imperava”, incluindo Portugal e seus domínios. Uma estratégica censura literária
impediuUma estratégica censura literária impediu os portugueses de terem acesso a
qualquer obra que contrariasse o credo ideologicamente dominante.
O principal centro cultural de Portugal ficava em Coimbra. Ali estavam au-
tonomamente, tanto o Real Colégio das Artes e Humanidades que, como escola
preparatória, tinha o objetivo de preparar os futuros estudantes universitários das
artes liberais, como a Universidade de Coimbra. Era no Colégio das Artes onde se
faziam os “estudos menores”, o que incluía a retórica. Quem desejasse ingressar
nos cursos universitários passaria necessariamente por ele e teria que estudar retó-
rica. Em 1561 passou a ser obrigatória uma certidão do Colégio para a matrícula
nas faculdades da Universidade de Coimbra. A partir de 1639 o controle do ensino
tornou-se ainda mais rígido quando seus diretores deixaram de apresentar apenas
recomendações e introduziram a Ratio Studiorum. Dirigidas pelos jesuítas, essas
instituições de ensino irradiavam seu poder na esfera educacional e na pedagogia
das outras escolas, incluídas aí as Universidades. O ambiente que se vivia com a
implantação da Inquisição, as atividade do Santo Ofício e a adoção das medidas do
Concílio de Trento, isolou a ação do Colégio das Artes que passou a ter dificuldades
em manter a continuidade de projetos culturais mais avançados.
Sob a direção dos Jesuítas, até 1772, a Universidade de Coimbra subdividia o
ensino jurídico em duas faculdades, a de Leis e a de Cânones, que se concentravam,
respectivamente, nos estudos de Direito Romano (Corpus Iuris civilis) e no Direito
Canônico (Corpus Iuris canonici), época em que as reflexões filosóficas sobre o Di-
reito não estavam a cargo de jurisconsultos, mas de teólogos. O que leva a concluir
que, a religião sempre se atrelava às questões da esfera temporal. Foi a época áurea
do jusnaturalismo escolástico, que subordinou, nas Universidades, a Ética e o Di-
reito à Teologia (SILVA, 2009, p. 81). A partir de 1772, com a reforma pombalina,
passaram a vigorar os Novos Estatutos. Em 1836 foi criado o curso de Direito em
Portugal, deixando de existir a divisão entre Leis e Cânones.
374

Porém, o contraste entre a esfera religiosa, ainda dominante, e a visão racio-


nalista pautada na lógica, gerava uma inquietação nos que observavam o embate
entre a “fé” e a “ciência”. O chamado “iluminismo português” recebeu influências
de nomes como Dom Luís da Cunha, Luiz Antônio Verney e Sebastião José de Car-
valho e Melo, o marquês de Pombal, homens que exerceram funções diplomáticas.
Outros, como Antônio Nunes Ribeiro Sanches, apesar de trazerem novas ideias de
base empirista e utilitarista, por serem acusados de judaizantes, foram perseguidos
pela Santa Inquisição, destacando um choque de interesses (SAVIANI, 2008, p. 77).
Os argumentos para isso foram retoricamente eficientes, pois, não bastaram acusa-
ções de “estrangeirados”, em vista de vínculos com outros países europeus, como
Inglaterra, Itália ou França, mas foi importante consternar as emoções populares
para tentar impedir a modernização “das luzes”. Para a população cristã católica
e principalmente para o clero daquela época, ser “reformista” ou “judaizante”, ou
mesmo ser apenas um simpatizante, era uma séria acusação que resultava em opres-
são e até a morte. A insatisfação queria se materializar em mudanças.

2. A reforma pombalina do ensino e do estudo


da retórica portuguesa como estratégia de alteração
do instrumento de dominação jesuíta

Vez que os centros do saber, nomeadamente Coimbra, se fechavam ao pen-


samento moderno, as academias e as associações de intelectuais e letrados de
Portugal buscaram renovação do pensamento. Por pensamento “moderno” en-
tenda-se aquele sentido proposto por Verney, isto é, o Direito desvinculado da
Teologia como uma consequência da Ética, como fundamento do próprio Direito
(VERNEY, 1746, passim). Postura que fazia parte do processo de secularização
de autores jusracionalistas que separavam a Ética da Teologia e a faziam derivar
da Filosofia (SILVA, 2009, p. 89).
Pombal iniciou uma série de ações reformuladoras conhecidas como “des-
potismo esclarecido” (GOMES, 2007, p. 60-61) instituindo um Novo Estado, um
regime que subordinou os organismos políticos e sociais ao poder central e que
incluiu, antes mesmo da expulsão dos jesuítas, o fechamento de todos os colégios
jesuítas e introduziu as “aulas régias”, que foram custeadas pela Coroa Portugue-
sa. “A censura continuou a manter rigoroso controle sobre a publicação de livros
e periódicos”. O que antes estava nas mãos da Igreja e da Inquisição, passou para
as mãos do Estado. “Nenhuma obra poderia ser publicada ou vendida sem passar
previamente pelo crivo da Real Casa Censória, cujos membros eram indicados
pelo governo.” (GOMES, 2007, p. 60-61)
A base da reforma pedagógica liderada por Pombal e que atingiu fortemente o
Colégio das Artes e a Universidade, afetando ambos os estudos menores e os maiores,
foi a obra de Verney e seu polêmico método, o Verdadeiro Método de Estudar, de
1746, do qual procedeu a filosofia e os planos para aquela reforma. Com o discurso
de recolocar Portugal numa posição digna do mundo civilizado, Pombal introduziu
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 375

novas matérias na Universidade: a matemática e a filosofia (como faculdades), a física


e a química. Nos “estudos menores” predominou a reforma do método de ensino do
latim e de uma “nova concepção” da retórica.
Verney, que orientava a reforma pombalina do ensino, sem querer extinguir
a retórica buscou, antes, modificar-lhe o conteúdo, “ampliando” seu alcance e re-
forçando sua importância. A retórica jesuítica estava reduzida “à inteligência dos
tropos e das figuras de linguagem”, o que nos Estatutos era considerado “sua mí-
nima parte ou a que merece bem pouca consideração”. Na verdade, os portugueses
praticavam um só aspecto da retórica barroca. O barroco português enfatizava o
delectare, enquanto que as orientações de Verney eram para que a ênfase residisse
no movere (CARVALHO, 2000, p. 132). Nas cartas 5 e 6 do Verdadeiro Método
de Estudar, dedicadas à retórica, ele fez uma forte crítica ao mau gosto da oratória
portuguesa, ao excesso de ornamentos estilísticos, à afetação e ao abuso de tropos
de linguagem; em sua crítica utilizou de uma abundância de exemplos tirados de
sermões, discursos e outros tipos de escrita para demonstrar o vazio e o ridículo dos
oradores e autores. Com respeito ao logos, ele dá um exemplo do seu mau uso ao
ridicularizar o excesso de citações de frases e autores, de citações fora de propósito,
de repetições inúteis, a exibição fútil de erudição, os títulos estrambóticos e obscu-
ros atribuídos a autoridades e até mesmo a imperícia na elocução. Assim, pensava,
era necessário que a retórica fosse colocada adequadamente de volta ao seu devido
lugar. Na verdade, tropos e figuras de linguagem são os andaimes do edifício dos
discursos e, sem eles, é impossível construir, mas esses andaimes não devem apare-
cer depois de pronta a obra (CARVALHO, 2000, p. 132-133).
A partir dessas observações conclui-se que o problema não estava na retórica,
mas em certa ignorância do que fosse a retórica. A partir de sua utilização pelos portu-
gueses e de toda uma tradição que se seguiu, o mau uso se deveu, ora por não a estu-
darem, ora por a estudarem em péssimos manuais, como os produzidos pelos jesuítas.
Quem não a estudava nada sabia, quem estudava, sabia menos ainda. O despropério se
mantinha. O Alvará régio de 1759, bem como seu anexo, seguindo o mesmo espírito
de Verney, muito elogiou a retórica. O parágrafo 16, com o subtítulo Dos Professores
da Retórica, iniciava com a afirmação: “o estudo da Retórica, sendo tão necessário em
todas as ciências [...]”, e, mandou que fossem providenciadas as Instruções. Nelas, a
retórica passou dos tropos e figuras, para outro meio retórico, a persuasão.

Não há estudo mais útil que o da retórica e da eloquência, muito diferente do


estudo da gramática [...]. A retórica ensina a falar bem, supondo já a ciência
das palavras, dos termos e das frases; ordena os pensamentos, a sua distribui-
ção e ornato. E, com isto, ensina todos os meios e artifícios para persuadir os
ânimos e atrair as vontades (ANDRADE, 1981, p. 92, grifo nosso).

O Alvará também determinou que a retórica devesse ser complementada pela


poética. Porém, nem tudo o que foi determinado no Alvará da reforma pombalina
veio a existir na prática. Foi o caso do hebraico, também incluído nas determinações,
que ao que parece nunca foi implantado. Na colônia foi pequeno o número de “aulas
376

régias” criadas a expensas do Estado. A educação elementar sempre teve a iniciativa


de alguns indivíduos ou de religiosos. Mas, a intenção centralizadora e controladora
da Metrópole sempre teve outras motivações, nem sempre tão ocultas. Na verdade,
a reforma pombalina do ensino e do estudo da retórica portuguesa parece ter sido o
primeiro passo de uma estratégia de alteração de outro instrumento de dominação:
a maneira de ensinar e conduzir o ensino pelos jesuítas.

3. Os reflexos da reforma pombalina sobre o


ensino brasileiro até sua fase pré-republicana

Apesar de tudo, foram os jesuítas que, com o descobrimento e a colonização


da terra Brasilis, vieram e disseminaram a instrução entre os nativos e criaram colé-
gios de letras na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco. Ali se lecionava a
matemática elementar, a gramática latina, a filosofia e a teologia, da forma controla-
da e restrita já mencionada. Contudo, o governo da Metrópole impedia a introdução
no território da colônia de:

[...] meios destinados ao referido desenvolvimento, tanto assim que proibiu


até a importação de livros, e chegou ao ponto de mandar sequestrar e remeter
para Portugal, pela carta régia de 06 de junho de 1747, uma pequena tipo-
grafia que tinha sido estabelecida no Rio de Janeiro (TRIPOLI, 1936, p. 19).

Assim, quando os jesuítas foram expulsos não só de Portugal através do dis-


curso do interesse da libertação da ortodoxia religiosa e sufocante do escolasticismo
que se irradiava até nos assuntos seculares, eles o foram igualmente na colônia,
mas com a finalidade de prejudicar essa parca instrução (MEIRA, 1979, p. 52),
que, tornou o que era “ruim” na colônia, ainda pior. Com a finalidade de justificar
desmandos dos jesuítas, Pombal foi a Roma e, lá, os argumentos foram dos mais
variados e incluíam, até, acusações de causarem fortes problemas nas colônias. Par-
te dos argumentos era de natureza temporal e política, outros, de caráter espiritual
e místico. Alegou atritos com colonos no Maranhão do Brasil, a exploração de mão
de obra indígena de forma sangrenta, a prática de comércio ilegal e a participação
e patrocínio deles em várias revoltas. Usou da superstição popular para acusar os
jesuítas por todos os males advindos a Portugal: o grande terremoto de Lisboa e até
um ferimento “inexplicável” em D. José. E, para a manipulação dessas emoções
(pathos) populares, usou os mesmos instrumentos de controle dos religiosos: a In-
quisição, prisões, masmorras e suplícios públicos.
O lugar dos jesuítas foi ocupado pelos franciscanos que ensinavam apenas
línguas, filosofia e religião. Quem quisesse estudar Direito precisava atravessar o
Atlântico e buscar as universidades, ou de Coimbra, ou da França e Itália. Foi de
Coimbra que o direito português e as fontes romanas se irradiaram para as terras
brasileiras. Logo, o Brasil não possuía uma cultura jurídica própria. Mas, a retórica
era ensinada aos que pudessem ir para a Europa.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 377

Em São Paulo, no ano de 1776, os frades franciscanos criaram uma escola agre-
gada ao seu convento. Por causa do ensino da teologia, da moral, da retórica e do
latim, houve a vinda de um número significativo de estudantes. Anos depois, ali surgiu
a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (CHACON, 2008, p. 169-170).
Porém, devido à vontade de estudar, outros cursos foram criados no Brasil.
Em Minas Gerais, o poeta e também advogado, Manuel Inácio da Silva Alvarenga,
foi professor régio de uma aula de retórica e poética, que fundou solenemente em
1782. Anos depois, também sob seus auspícios, restaurou, em 1786, com a denomi-
nação agora de “Sociedade Literária”, a sociedade científica.
No ano de 1800 também foi inaugurado em Olinda, Pernambuco, um desses
cursos pelo bispo de Olinda, Azeredo Coutinho, o Seminário de Olinda que:

[...] tinha uma estrutura escolar propriamente dita, em que as matérias apre-
sentavam uma sequência lógica, os cursos tinham uma duração determinada
e os estudantes eram reunidos em classe e trabalhavam de acordo com um
plano de ensino previamente estabelecido (PILETTI, 1996, p. 37).

Era reconhecido como um seminário modelar onde se estudava latim, gre-


go, francês, retórica, história universal, filosofia, desenho, história eclesiástica,
teologia dogmática e moral, matemática, física, química, mineralogia e botânica
(BEVILÁQUA, 1927, p. 1). Nessa escola se destacou o frei Caneca, que em 1803
foi professor de retórica e geometria no Convento de Nossa Senhora do Carmo,
de Olinda. Caneca também ensinou geografia e música (CANECA apud VEIGA,
1980, p. 233). Resumindo as impressões do historiador Capistrano de Abreu, sem
essa escola “não surgiria a geração idealista de 1817” (ABREU, 1998. p. 226).
Há notícia da criação, no Rio de Janeiro, de um curso de estudos literários e
teológicos em julho de 1776. Depois da criação dos cursos jurídicos, em 1827, foi
fundado o Colégio de Pedro II, em 1838. Não é muita pretensão afirmar que era
equivalente ao Colégio Das Artes de Coimbra. Nele, as cadeiras eram preenchidas
por concurso, inclusive as de retórica e poética, e foram muitas vezes ocupadas por
figuras eminentes da cultura nacional (CARVALHO, 2000, p. 133).
Com a chegada da corte do príncipe D. João ao Brasil, em 1808, novos cursos
de filosofia e retórica começaram a surgir, bem como, novos compêndios de retórica.
378

4. As aquisições filosóficas e a nova produção bibliográfica


para a retórica nos primeiros cursos jurídicos no Brasil como
estratégias legitimadoras do processo de emancipação nacional

4.1. A “nova” literatura a respeito da retórica como possível estratégia,


segundo a tradição lusitana, de supressão dos conteúdos rivais

Um novo gabinete de governo foi estabelecido após a morte do rei D. José


I, em 1777. Sucedeu-lhe D. Maria que realizou algumas mudanças no ensino. A
ênfase foi o ensino das “primeiras letras” em detrimento das “humanidades”. O pen-
samento escolástico não se desentranhou do interior da Academia, principalmente,
nas escolas da colônia, mais distantes do centro cultural que continuava resistindo
à modernização. O ensino das humanidades era mais facilmente encontrado nos
conventos do que nas “aulas régias” por todo o reino. Ainda assim, apesar da pouca
importância em relação às outras matérias ministradas, a retórica continuou indis-
pensável nos exames obrigatórios para ingresso nos cursos jurídicos e demandou
novas produções literárias “atualizadas” para não incorrer no “antigo” estudo retóri-
co jesuíta, a exemplo da Arte de Rhetórica de Manoel Pacheco de Sampayo Vallada-
res, de 1750; e do Ensaio de Rhetórica do frei Sebastião de Santo Antonio, de 1779,
ou, das muitas “cópias”, mais e menos, servis às Institutas Oratórias de Quintiliano.
Com o bloqueio continental decretado por Napoleão a corte lusitana de D.
João VI zarpou em direção ao Brasil. Em 1811 chegaram ao Rio de Janeiro os livros
da biblioteca real lusa (GOMES, 2007, p. 76). Poucas eram as bibliotecas no Brasil
que, ou eram particulares, ou estavam confinadas em instituições religiosas. Logo,
ou por falta de livros, ou pela falta de uma bibliografia específica para o estudo da
retórica, se tornou indispensável que se produzissem novos livros.
Diante dessa imprescindibilidade, vários professores se empenharam em pro-
mover e divulgar a retórica. Um desses professores foi Bento Rodrigo Pereira de
Soto-Maior e Menezes que, em 1794, escreveu e publicou um compêndio intitulado
Compêndio Rhetórico ou Arte Completa de Rhetórica, título que se complementava
com a frase: um método fácil para toda pessoa curiosa, sem frequentar as aulas,
saber a arte da eloquência. Certamente o autor acreditava haver um certo número
de “curiosos” fora dos círculos acadêmicos e de sua “popularidade”. Existe de há
muito uma certa contestação de sua autoria, por alguns atribuída a um padre de
nome Antonio das Neves Pereira (SILVA, 1867, p. 353).
Uma segunda obra que merece ser citada foi a redigida pelo Conselheiro da
corte de D. João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, que abriu no Rio de Janeiro um cur-
so de filosofia e de teoria do discurso e da linguagem. Na verdade, foi uma série de
conferências ou preleções filosóficas ministradas por ele na sala do Real Colégio de
São Joaquim, no Rio de Janeiro, em 1813, que tinham por tema a teoria do discurso
e da linguagem, o tratado das paixões e o sistema do mundo, e abrangia o estudo da
lógica, da gramática, da retórica, da estética, ética, direito natural, ontologia, ciências
matemáticas, astronômicas e físicas, e da teologia natural (PAIM, 1979, p. 120). Por
não encontrar um manual adequado escreveu, ele mesmo, um compêndio intitulado
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 379

Prelecções philosóphicas sobre a theoria do discurso e da linguagem, publicado


entre os anos de 1813 a 1820. É também de Silvestre Ferreira um manual de onto-
logias denominado Noções Elementares de Philosophia Geral e applicada às sci-
ências moraes e políticas (FERREIRA, 1839, p. V), onde afirma ter publicado em
1813 as Prelecções. Nas Prelecções, ele inseriu uma tradução e seus comentários
das Categorias de Aristóteles. Para o autor das Prelecções, a retórica não devia
separar-se da lógica e da gramática; a teoria do raciocínio não devia separar-se da
teoria da linguagem. A retórica não devia ser enfeite, mas instrumento cotidiano de
argumentação e persuasão (CARVALHO, 2000, p. 134).
Anos depois, o padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, também conhecido
como Padre Carapuceiro, que fora professor de retórica do Seminário de Olinda,
Pernambuco, em 1817, e também no Liceu do Recife, bem como diretor da Faculdade
de Direito do Recife, em 1840, foi ao Rio de Janeiro durante seus mandatos parla-
mentares, para o recém-criado Colégio de Pedro II, e em 1846 publicou um vasto
compêndio com o título Lições de Eloquência Nacional como parte de seu projeto de
um curso completo de Princípios de Litteratura Nacional (GAMA, 1846, p. 11-14).
Finalizando estes exemplos de publicações brasileiras, são dignas de relato as
obras do Frei Caneca, Tratado da Eloquência e as Táboas Sinópticas do Sistema
Rhetórico de Fábio Quintiliano. Frei Joaquim do Amor Divino Rabello Caneca,
seu nome de batismo, foi um religioso carmelita, ordenado sacerdote pelo Seminá-
rio de Olinda, que, como visto, se dedicou ao magistério da retórica e da gramáti-
ca, período em que elaborou alguns compêndios, inclusive os acima mencionados
(CANECA, 1972, passim).

4.2. O surgimento dos cursos jurídicos no Brasil e suas aquisições


de livros de filosofia como estratégia legitimadora do
processo de emancipação nacional

Em 1827 foram criados os primeiros cursos jurídicos no Brasil em São Paulo


e Olinda. O Brasil já havia proclamado sua independência de Portugal cinco anos
antes e necessitava de “independência” em todos os demais sentidos, incluindo a
educação. Mais do que um momento pontual na educação brasileira, para alguns,
constituiu um momento marcante na História nacional. Silvio Meira afirmou que do
mesmo modo que a independência política foi conquistada em 1822, a independên-
cia intelectual começou a se esboçar em 1827 (MEIRA, 1979, p. 52).
Com a libertação política e administrativa, o “novo” país não devia mais (leia-
-se: podia) formar seu corpo técnico em Coimbra. Portanto, o ensino do Direito no
Brasil necessitava ser criado a fim de, também, legitimar o processo de independên-
cia e da ampliação do corpo técnico-administrativo, fundamental para a organização
do Estado burocrático (SILVA, 1867, p. 181). Claro, tudo parte de uma estratégia
necessária. O poder constituído percebeu que deveria haver um “avanço” no proces-
so educacional brasileiro, progredindo do ensino das primeiras letras para o ensino
universitário, como forma de demonstrar a autonomia na nova nação formada.
380

Todavia, para formar pessoas, além de professores, eram necessários livros e


livros acessíveis nas escolas, em suas bibliotecas: mais um problema. Se para con-
trolar o “pensamento” a estratégia foi fazer evitar que as pessoas tivessem acesso
aos livros, uma nova estratégia era necessária para “controlar” essa elite burocrática
nacional. Em São Paulo só havia uma Biblioteca para os estudantes, que, em 1825,
já com acervo reunido de longa data pelos frades franciscanos, tornou-se a primeira
biblioteca pública de São Paulo, antes mesmo da inauguração da Faculdade, o que
leva à conclusão de que o autodidatismo era uma característica dos primeiros anos.
Os alunos das primeiras turmas aprenderam por si mesmo o que mostraram saber mais
tarde. “O autodidatismo continuou por mais de um século no Brasil, e ainda perdura”
(SILVA, 1867, p. 47). “Podemos afirmar, sem exagero, que quase todos os grandes
homens deste País foram autodidatas”, afirmaria Meira (1979, p. 54-55), que também
descreve que nas escolas de Direito o ensino se focava em matérias “dogmáticas”
e “positivadas” pelas novas codificações que surgiam. Contudo, os interessados em
se inscrever nesses cursos jurídicos ainda deveriam ser aprovados previamente na
“língua francesa, na gramática latina, na retórica, na filosofia racional e moral, e na
geometria” (MEIRA, 1979, p. 55, grifo nosso). Para tal, também o Governo criou nas
cidades de São Paulo e Olinda estudos preparatórios dessas cadeiras.
Sem muita diferença do largo de São Francisco, o curso jurídico em Olinda,
enfrentou dificuldades gerais. Mas, foram esses cursos que orientaram e forneceram
oxigênio para as mentes que por lá passaram. Foi uma árvore prolífica que soltou
suas sementes para muito longe. No Recife, em época de efervescência abolicio-
nista, com as atividades de José Mariano, Tobias Barreto integrou o corpo docente
da Faculdade em 14 de agosto de 1882, desenvolvendo o estudo das ideias germâ-
nicas, notadamente a obra de Ruldof Von Ihering, abrindo espaço para a realidade
científica. Num período em que imperava a dogmática clássica, baseada ainda na
filosofia escolástica, a Faculdade contou com as presenças de Tobias Barreto, Joa-
quim Nabuco, Castro Alves, Rui Barbosa, Sylvio Romero e muitas outras persona-
lidades. Tobias internalizava novos conceitos de filosofia em seus Ensaios e estudos
de filosofia (1875), Estudos alemães (1883) e Questões vigentes de filosofia e direito
(1888). Em São Paulo, o pensamento de Kant apareceu pela primeira vez no Brasil
por meio do padre Diogo Antonio Feijó, quando professor do Seminário de Itu, mas
quando este se afastou para a política, a meditação filosófica também mudou. A
Teoria transcendental do direito (1867) do professor João Jorge Teodoro Xavier de
Matos e, Noções de filosofia (1877) de Carlos Mariano Galvão Bueno são exemplos
da expansão krausista, sob pressão dos tomistas, a partir do Largo de São Francisco.
Joaquim Nabuco, em suas memórias, recorda que, mesmo antes de ingressar
na Academia, era “ávido de impressões novas, fazendo os meus primeiros conhe-
cimentos com os grandes autores, com os livros de prestígio, com ideias livres,
tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por igual”
(NABUCO, 2004, p. 19).
Retomando o pensamento anterior, foi observado que as bibliotecas e livrarias
ofertavam poucos e raros exemplares. Na verdade, no caso do curso jurídico de
Olinda, não existia uma Biblioteca, embora tivesse sido grande a disputa pelo cargo
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 381

de bibliotecário. Lourenço Ribeiro solicitou a criação de uma “Livraria Pública”


em 1828, mas a biblioteca só chegaria dois anos depois. Havia, sim, a biblioteca
do Convento de São Bento e bibliotecas particulares de pessoas ricas como as de
Cabugá e do Pe. João Ribeiro, como relatado por Tollenare (1818, p. 451, 461). Em
7 de dezembro de 1830, a biblioteca pública de Olinda foi criada com a finalidade
específica de atender ao curso jurídico, mas os livros foram instalados no Convento
de São Francisco de Olinda, embora a lei tivesse determinado que ela fosse localiza-
da no Convento de São Bento ou no Palácio dos Governadores. Os livros adquiridos
pela Comissão só foram entregues ao curso jurídico na biblioteca da Congregação
da Madre de Deus (oratorianos) (COSTA, s/d, p. 79-86). Embora a existência de
bibliotecas ou livrarias públicas fosse um requisito apreciável para a instalação dos
cursos jurídicos, mas pouco atendido (VEIGA, 1980, p. 244), percebe-se que, tanto
a aquisição como a guarda de livros, configurava uma disputa de interesses, incluin-
do a Igreja, mais uma vez, e uma estratégia de controle do saber seguindo a “velha”
tradição de dominação.
Dentre os volumes inventariados por Veiga, que relata um início de 89 obras
que depois se somaram à Biblioteca dos Oratorianos e que, segundo Pereira da
Costa citado também por Veiga, tinha entre quatro a cinco mil volumes, listaram-se
apenas para este estudo: dentre os livros de teologia, uma Opera Omnia de Heine-
cio (ou Herêncio), em dois volumes; uma Philosophia Rationalis de Verney; uma
Philosophia Rationalis de Storchenau; e a Instrução Pastoral do Frei Manuel do
Cenáculo. Dentre as obras de Direito que incluíam princípios de filosofia e teoria:
Le Droit des Gens ou Principes de la Loi Naturelle ed. 1758 de Vattel; Principes Du
Droit Naturel, 1747, de Burlamaqui; e os Essais Politiques, Economiques et Philo-
sophiques, 1799, do Conde de Rumford, Sir Benjamim Thompson.
Em Recife, depois dos meados do século XIX, as lojas de livros se tornaram
bastante especializadas, enquanto que as bibliotecas dos vários conventos foram de-
vastadas e deterioradas pelos idos de 1886, nas palavras de Pereira da Costa (apud
VEIGA, 1980, p. 245). Joaquim Nabuco lembra com nostalgia no ano de 1869, das
“novidades” da livraria Lailhacar, no Recife (NABUCO, 2004, p. 21).
Logo, com relação à uma produção bibliográfica específica para o estudo da
retórica, constata-se que, pelo menos, nos primórdios da escola de Olinda/Recife,
apesar do ensino no mosteiro de São Bento incluir a filosofia racional e moral em
seu currículo, e que a retórica fosse pré-requisito para o ingresso nos cursos jurídi-
cos, o ensino acadêmico propriamente não enfatizava essas disciplinas curricular-
mente nos primeiros anos de funcionamento. Era a velha tradição coimbrã, em que
filosofia era mais atinente ao estudo dos teólogos do que aos juristas.
382

5. Conclusão – as estratégias de dominação:


artífices da história da retórica brasileira

Estudar, observar e analisar a retórica é algo implexo e envolve ainda outras


complexidades. Mais do que um conceito, a retórica é um conjunto de práticas
voltadas para resultados e foi construída ao longo de milênios e, por isso, envolve
sérias consequências. Logo, não se deve acercar a ela de forma ingênua ou de
somenos. Aqui, não foi nosso objetivo conhecer o teor da disciplina retórica ou do
conteúdo dos compêndios usados para seu aprendizado. Procuramos entender o seu
uso em outro nível.
Primeiro, do pouco que vimos dos conteúdos, entendemos que o ensino da
retórica nos séculos XVIII e XIX, especificamente, seguiu de perto a tradição
latina de sistematização do discurso, descrevendo os componentes e as figuras
de linguagem que o compõe, embora tentasse afirmar seu afastamento dela.
Essa estratégia de ensino também tentou incluir a tradição grega aristotélica,
voltada para a persuasão e desenvolvida na Antiguidade. Nela, Aristóteles teve
uma percepção privilegiada da prática do ensino da retórica. Ensino disseminado
por tratados pedagógicos. Aristóteles percebeu que “a maioria dos tratados” de
retórica de sua época se dedicava a “elaborar apenas uma pequena parte dessa
arte” (1354a) (ARISTÓTELES, 2007, p. 19), parte, que considerou como coisas
“insignificantes” (1355a19) (ARISTÓTELES, 2007, p. 21), entendendo ele que
ela (a retórica) era algo além de figuras de linguagem e ornamento discursivo. Ele
definiu a retórica não apenas como os meios de persuasão. Os meios de persuasão
têm vários desdobramentos. Aristóteles subdividiu os recursos persuasivos
em meios técnicos e retóricos. Essa subdivisão originou duas tradições dentro
da tradição retórica (mais detalhes a respeito dos meios de persuasão ver
ADEODATO, 2009, p. 337-344). Aristóteles também percebeu que a retórica
não era apenas “o uso persuasivo da linguagem em si”, como comumente se
entende “quando se refere essa arte para o treinamento de oradores” (FERREIRA,
2004, p. 1751). Para ele “a retórica pode ser definida como uma faculdade de
observar os meios de persuasão” (1355b25) (ARISTÓTELES, 2007, p. 23). Note-
se que ele usa os termos “faculdade de observar” e “poder de observar”. Uma
coisa são os meios de persuasão, outra coisa é a observação dos relatos dos fatos
ou, como diz outra tradução: “faculdade de descobrir especulativamente”, (La
rhétorique est la faculté de decouvrir spéculativement [...], ARISTOTE, 1960,
p. 76). E não só isso, em outra passagem ele desvendou que a retórica é também
uma “faculdade de demonstrar argumentos” (1356a33) (ARISTÓTELES, 2007,
p. 24). Portanto, o uso de meios de persuasão está em um nível e a observação e a
demonstração deles está em outro nível. Talvez, os teóricos, os professores e seus
compêndios oitocentistas não estavam nesse nível de percepção, mas a prática não
ignorou a aplicação dos meios técnicos retóricos na construção de argumentos
que justificassem, ou não, seu ensino como uma prática também de controle e
dominação. Contudo, não afirmamos que a retórica tenha sido manipulada.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 383

Outra conclusão a que chegamos é que, tanto a luta dos franciscanos e jesuítas
pelo monopólio do ensino (e não só do ensino da retórica) era uma estratégia de po-
der, assim como o apoio governamental que recebiam, e estava vinculado vinculado
às diretrizes de ensino que ditavam como meio de dominação. A cada período, quem
detinha o poder, suprimia seu antecessor e todo o seu complexo de ações apregoando
um discurso renovador. Vimos que a “renovação” se dava mais na substituição de
pessoas e instituições que do conteúdo informado no discurso. Isso também é retó-
rico: se proclama que o conteúdo da filosofia e da retórica (aqui observados como
objeto) vai mudar, mas, de fato, esse discurso apenas justifica a retirada, às vezes nada
pacífica, de pessoas e instituições, do poder. Tanto na Europa como no Brasil, isso
ocorreu repetidamente, e alcançou a adesão de grandes massas populares. Ou seja, in-
dependentemente de quem estivesse no poder, Igreja ou Estado, ao divulgar diretrizes
educacionais “renovadoras” ou “modernizadoras”, tal discurso alcançou adesão tanto
de populações de letrados como de indoutos. Retoricamente, não importa aqui se a
adesão está apoiada por alguma ética ou moral, se é “certo” ou “errado”. Nem mesmo
a “coerência” das argumentações é avaliada. Se for incoerente que se inibisse vee-
mentemente qualquer pensamento que se afastasse da filosofia aristotélica por meio
de uma censura ostensiva e, ao mesmo tempo, essa mesma filosofia pudesse ser tão
profunda em libertar os pensamentos de poucas amarras formais do estilo da língua e
do ornamento, não cabe à retórica (esta metódica) julgar. Ela apenas revela, pois nada
melhor para reconhecer os indícios da passagem da retórica que a própria retórica.
Nessa busca pelo poder, ou pela manutenção nele, o Estado nunca esteve só.
Afora seus benefícios e vantagens, a religião esteve muito ligada ao poder político
e, em determinados momentos, por ele foi instrumentalizada para controlar as “mas-
sas”. Vimos que isso ocorreu naquele período, e não tem sido diferentes ao longo de
outras épocas, mesmo as mais recentes. “Religião”, “defesa de direitos”, “defesa de
grupos minoritários” e “compensações sociais”, sem que pesem os benefícios para
uns poucos, enquanto discursos, são mantos poderosos que cobrem motivos escusos
e são manipulados estrategicamente pelos interesses do poder. Talvez o estudo da
retórica, como o de outras disciplinas, entrou no currículo dessa estratégia de forma
aleatória. Contudo, como sempre esteve conectada ao poder, sua manipulação é
mais que provável.
Mesmo a produção literária a respeito da retórica e para seu ensino foi uma es-
tratégia de imposição, sobre conteúdos rivais. Por que o estudo da retórica e da filo-
sofia não foi ministrado nas primeiras escolas jurídicas como disciplina curricular e
apenas nas escolas preparatórias? É possível identificar outra estratégia descentrali-
zadora. Talvez assim fosse mais fácil de controlar seu conteúdo, ou, distrair os estu-
dantes mais jovens e inexperientes. Os relatos históricos tem mostrado que, tanto a
retórica foi ensinada em cursos preparatórios, tendo seu conteúdo controlado, como
a filosofia era ensinada nos centros religiosos, mosteiros e seminários, onde seu
conteúdo também era enclausurado, e, a cultura jurídica se concentrava no estudo
de uma evanescente legislação posta. Contudo, isso é algo que certamente mudou
com o passar dos anos. Não necessariamente para libertar o espírito do estudioso
384

ou do povo, mas é porque as estratégias de controle é que mudaram. A construção


da História do ensino jurídico luso-brasileiro sempre atendeu a interesses: para isso,
foram utilizadas táticas de exclusão, ou a exacerbação. Isto é, ou conteúdos impor-
tantes ficavam “de fora”, ou se enfatizava a necessidade em outras disciplinas ou
“assuntos” mais “importantes” e prolixos.
Ainda, os artífices da história também estenderam suas estratégias à mate-
rialidade da produção bibliográfica. Não fosse o conteúdo produzido para a língua
portuguesa já “controlada” e “censurada”, com base nas informações dos acervos
das primeiras bibliotecas públicas e que serviam as faculdades de Direito, o estudo
da retórica e o pensamento filosófico estariam ainda mais limitados e restritos aos
poucos compêndios e raros exemplares disponíveis. O resultado foi um crescente
desinteresse pelo estudo da retórica que ficou cada vez mais excluída dos currículos
escolares de qualquer nível, e, o abarcamento de uma tradição filosófica que mais
e mais depreciou a retórica e lhe deu uma conotação pejorativa. A consequência
histórica, além do desinteresse dos alunos, foi a redução de professores e a vertigi-
nosa queda do prestígio de se ensinar essa arte, principalmente na formação e para
a prática do jurista. A história é uma sucessão de estratégias.
O estudo da retórica pode ser libertador. Ele pode, ao menos, “iluminar” a
mente a fim de que uma pessoa não seja “marionetizada” em suas convicções. Em
adição a isso, se o “direito” também aspira dirimir e controlar conflitos dentro de
uma sociedade complexa, além do “bem” e do “mal”, o estudo apropriado de disci-
plinas zetéticas pode suprir a necessidade da emancipação do Direito em relação à
política, à religião e a outras ordens normativas. Essa é uma das lições que fica da
observação do fluxo da retórica da história da retórica.
CONTINUIDADE E ORIGINALIDADE NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO:
análises retóricas 385

REFERÊNCIAS

ABREU, J. Capistrano (1998). Capítulos de história colonial. Brasília: Senado Federal.


ADEODATO, João Maurício (2009). Ética e retórica: para uma teoria da dogmáti-
ca jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva.
ANDRADE, Antonio Alberto Banha de (1981). A reforma pombalina dos estudos
secundários (1759-1771). v. 2. Coimbra: Por Ordem da Universidade.
ARISTOTE (1960). Rhétorique. Tome Premier. Trad. Médéric Dufour. 11. ed. Pa-
ris: Société d’Édition Les Belles Lettres.
ARISTÓTELES (2007). Retórica. Trad. Marcelo Silvano Madeira. São Paulo: Rideel.
BEVILÁQUA, Clóvis (1927). História da Faculdade de Direito do Recife. Rio
de Janeiro: Francisco Alves.
CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino (1972). Obras políticas e literárias de
frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Org. Antonio Joaquim de Melo. Recife:
Assembleia Legislativa de Pernambuco.
CARVALHO, José Murilo de (2000). História intelectual no Brasil: a retórica como
chave de leitura. Topoi. Revista de História, v. 1. n. 1. p. 123-152, jan./dez. Rio de
Janeiro: UFRJ.
CHACON, Vamireh (2008). Formação das ciências sociais no Brasil. 2. ed. Bra-
sília: Paralelo 15; Brasília: LGE Editora; São Paulo: Fundação Editora da Unesp.
COSTA, Pereira da (s/d). Anais. vol. IX. In: Revista Acadêmica. vol. XXX. p. 79-86.
FERREIRA, Silvestre Pinheiro (1839). Noções Elementares de Philosophia Ge-
ral e applicada às sciências moraes e políticas. Ontologia, Psichologia, Ideologia.
Paris: Bravier et Aillaud.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda (2004). Novo Dicionário Aurélio da lín-
gua portuguesa. 3. ed. Curitiba: positivo.
GAMA, Miguel do Sacramento Lopes (1846). Lições de eloquência nacional. Rio
de Janeiro: Paula Brito.
GOMES, Laurentino (2007). 1808. 2. ed. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil.
MEIRA, Silvio (1979). Teixeira de Freitas: o jurisconsulto do império. Rio de
Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL.
NABUCO, Joaquim (2004). Minha formação. São Paulo: Martin Claret.
PAIM, Antônio (1979). Introdução. In: FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Ensaios filo-
sóficos. Coleção Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro, vol. III. Rio de Janeiro:
PUC/Rio, coedição Conselho Federal de Cultura e Editora Documentário, p. 115-128.
PILETTI, Nelson (1996). História da Educação no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ática.
SAVIANI, Dermeval (2008). História das ideias pedagógicas no Brasil. 2. ed. rev.
e ampl. Campinas, SP: Autores Associados.
SILVA, Innocencio Francisco da (1867). Diccionario Bibliographico Portuguez.
Tomo 8. Lisboa: Imprensa Nacional. Disponível em: <http://books.google.com.
br/ books?id=N6Faub62VOQC&pg=PA376&lpg=PA376&dq=Bento+Rodrigo+Pe
reira+de+SotoMaior+e+Menezes&source=bl&ots=GgIOx8K_KN&sig=sCNBEO
386

HOCZzZeyOnAJjKLfPvGeM&hl=pt&sa=X&ei=NNBHUfDxEqm70QHr5oDoC
Q&ved=0CDgQ6AEwBDgK#v=onepage&q=Bento%20Rodrigo%20Pereira%20
de%20SotoMaior%20e%20Menezes&f=false>. Acesso em: 18 mar. 2013.
SILVA, Mozart Linhares da (2009). O império dos bacharéis: o pensamento jurí-
dico e a organização do Estado-Nação no Brasil. Curitiba: Juruá.
TOLLENARE, L. I. (1818) Notes Dominicales Prise Pendant um Voyage em Por-
tugal et au Brésil em 1816, 1817 et 1818. vol. II. notas de Léon Bourdon. Paris: P.U.F.
TRIPOLI, César (1936). História do Direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais.
VEIGA, Gláucio (1980). História das ideias da Faculdade de Direito do Recife.
v. 1. Recife: UFPE.
VERNEY, Luís Antônio (1949-1953). O verdadeiro método de estudar para ser
útil à República e à Igreja: proporcionado ao estilo e necessidade de Portugal.
Valença: Antonio Balle, 1746. In: VERNEY, Luís Antônio. Edição organizada por
Antonio Salgado Junior. Lisboa: Sá da Costa.
SOBRE O LIVRO
Tiragem: 100
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12 X 19 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

Potrebbero piacerti anche