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1

URI – UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS


MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

GRASIELA LOURENZON DE LIMA

LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA:


O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM
DO ANO

Prof. Dr. MARCELO MARINHO

Frederico Westphalen, RS, Brasil


Agosto de 2011
2

GRASIELA LOURENZON DE LIMA

LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA:


O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM
DO ANO

Dissertação apresentada como requisito


parcial para obtenção do Título de Mestre
em Letras na Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões –
URI, campus de Frederico Westphalen.
Área de concentração: Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Marinho

Frederico Westphalen, RS, Brasil

Agosto de 2011
3

URI- UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS


MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

A Comissão Examinadora, abaixo assinada,


aprova a Dissertação de Mestrado

LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA:


O TEMA DA VIOLÊNCIA URBANA EM O MATADOR E O HOMEM
DO ANO

Elaborada por
GRASIELA LOURENZON DE LIMA

como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA:

____________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Marinho – URI
(Presidente/Orientador)

_____________________________________________
Profa. Dr. Cássio dos Santos Tomaim – UFSM
(1º arguidor)

____________________________________________
Prof. Dr. Lizandro Carlos Calegari – URI
(2º arguidor)

Frederico Westphalen, 19 de agosto de 2011


4

“Traduzir é repensar a configuração de escolhas do original, transmutando-as


em uma outra configuração seletiva e sintética”.
(Julio Plaza)
5

Para Helena, Érica, Heloísa e Jean Pierre.


6

AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas contribuíram para a materialização de mais um sonho e


uma etapa acadêmica. Quero manifestar meu agradecimento à coordenadora e
professora Denise de Almeida e Silva e a todo o corpo docente do curso de Pós-
Graduação – Mestrado em Letras: concentração Literatura, da URI, pela
oportunidade, dedicação e carinho.
Em especial, agradeço ao professor Marcelo Marinho pelas orientações
precisas, pelo apoio, incentivo e afeto. Seu jeito tranquilo e sereno de ser sempre
acalmaram minhas angústias e revigoraram forças para que eu acreditasse
sempre em minhas potencialidades. Obrigada de coração.
Um agradecimento especial para o professor Lizandro Carlos Calegari, que
sempre soube ouvir, orientar pacientemente minhas dúvidas. Além de professor,
mostrou-se sempre um amigo.
À Magali, pela disponibilidade e gentileza com que sempre realizou os
favores solicitados.
À colega e amiga do programa de mestrado Viviani, pela presença
constante, amizade e companheirismo.
Aos demais colegas Adriana, Karine, Fábio, Sandra e Solange, pelas trocas
teóricas, desabafos e descontrações.
Ao meu marido Jean Pierre, pela cumplicidade, apoio e, principalmente,
pela compreensão nos momentos de ausência. Seu incentivo foi valioso e
essencial. Obrigada por compartilhar esse momento comigo.
A todos meus familiares que torceram para que esse trabalho chegasse ao
êxito: ao apoio incondicional de Iara, Ori e Jacques que por diversas vezes me
substituíram em minhas tarefas de mãe. A meus pais, que me ensinaram a ser
responsável e humilde.
Agradeço a todos por acreditarem e participarem de cada conquista minha,
que também é de vocês.
7

RESUMO

Estudos dedicados à relação entre literatura e cinema são uma eficaz


ferramenta para analisar as articulações entre distintos sistemas sígnicos, tais
como o verbal e o sonoro-visual. Em sua condição de tradução intersemiótica,
a adaptação fílmica é um privilegiado objeto para investigações científicas no
âmbito da literatura comparada. Nessa perspectiva, o presente trabalho resulta
de um estudo comparativo entre o livro O matador (1995, de autoria de
Patrícia Melo) e o filme O homem do ano (2003, dirigido por José Henrique
Fonseca). Em estreita correspondência com o contexto sócio-histórico em que
ambas as obras são produzidas (o crescimento vertiginoso da violência a partir
da chamada “década perdida”), o estudo centra-se nos aspectos que decorrem
da representação estética da violência, sobretudo no que se refere à tradução
da expressividade literária para o âmbito da linguagem cinematográfica. A
pesquisa dedica-se a analisar certos elementos temáticos e estilísticos da obra
literária, assim como as estratégias específicas utilizadas para traduzi-los em
imagens fílmicas, por meio da linguagem própria ao cinema. O fulcro último é a
análise das articulações entre produção artística, expressividade estética e
contexto social.

Palavras-chave: Tradução intersemiótica. Linguagem literária. Linguagem


cinematográfica. Representação estética. Representação social. Violência
urbana.
8

ABSTRACT

Studies focused on the relation between literature and cinema can be an


efficient tool to analyze the articulations amongst different systems of signs,
such as the verbal and the sonorous-visual ones. Through its condition of
intersemiotic translation, a movie literary adaptation is a privileged object for
scientific inquiries within the frame of Comparative Literature. Thus, the present
work is a comparative study on the book O matador (1995, written by Patricia
Melo) and its movie adaptation O homem do ano (2003, directed by Jose
Enrique Fonseca). In close correspondence with the socio-historical context in
which both artistic works were produced (i.e., the vertiginous raising of social
violence from the so-called “década perdida”), the study is focused on issues
related to the aesthetic representation of the violence, particularly with regard to
the translation of literary expressiveness into cinematographic language. The
research is aimed to analyze some thematic and stylistic elements of the literary
work, as well as the specific strategies used to translate those elements into film
images. The main scope is to analyze the articulations amongst artistic
production, aesthetic expressiveness and social context.

Keywords: Intersemiotic translation. Literary language. Cinematographic


language. Aesthetic representation. Social representation. Urban violence.
9

SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS....................................................................... 10

1- Literatura Comparada e tradução intersemiótica ............................. 14


1.1 Tradução intersemiótica .............................................................. 18
1.2 Da linguagem literária a linguagem cinematográfica................... 22
1.3 Adaptação cinematográfica: fidelidade ou liberdade
criativa?........................................................................................ 28

2- A violência urbana na literatura e no cinema brasileiros (1990-2010) 36


2.1 A violência na literatura ............................................................... 44
2.2 A violência no cinema .................................................................. 49

3- Tradução intersemiótica: a estética da violência em O matador e O


homem do ano ............................................................................................ 62
3.1 Violência e corrupção ................................................................... 66
3.2 Violência e exclusão social .......................................................... 77
3.3 Violência e fatalismo .................................................................... 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 96


REFERÊNCIAS.............................................................................................. 100
GLOSSÁRIO ............................................................................................... 106

FIGURA 1 E 2 ............................................................................................. 18
FIGURA 3 E 4 ............................................................................................. 40
FIGURA 5 .................................................................................................. 76
FIGURA 6, 7 E 8 ........................................................................................ 80
FIGURA 9 .................................................................................................. 87
FIGURA 10 E 11........................................................................................ 88
FIGURA 12 .............................................................................................. 89
FIGURA 13, 14 E 15 ................................................................................ 92
10

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Entre os graves problemas que afetam a vida cotidiana no espaço


urbano brasileiro, talvez a violência difusa e intensa seja um dos mais
preocupantes. No último quartel do século XX e neste início de século XXI, a
violência urbana aumentou vertiginosamente no Brasil, chegando a níveis
altíssimos. Estudos e pesquisas revelam que a violência disseminou-se
amplamente pelo tecido social a partir da década de 1980, em razão dos
problemas sociais e econômicos da chamada “década perdida”. A partir de
então, a sensação dos moradores em grandes cidades é a de insegurança e
medo generalizados, em função dos elevados índices de homicídios, assaltos,
sequestros, tráfico de drogas e armas, para além dos constantes escândalos
em torno da corrupção política e policial.
Ora, as inquietações da sociedade brasileira com a violência são
representadas, sob forma especular, no conjunto das produções artísticas
contemporâneas. A proposta do presente trabalho é a de analisar a
representação da violência urbana nas artes, por meio da leitura comparativa
de dois textos que pertencem a campos semióticos distintos: o thriller
romanesco O matador (1995), de Patrícia Melo, e sua adaptação fílmica O
homem do ano (2003), de José Henrique Fonseca.
São antigas e muito produtivas as relações entre literatura e cinema: já
“nos primeiros passos do cinema produzido no Brasil, no início do século XX, a
literatura de ficção fora logo aproveitada como matéria-prima para produções
ainda artesanais, em busca do público que a aceitasse”1. Na busca do prestígio
social que reveste as demais linguagens artísticas (como o teatro, a música, a
dança, a pintura e a literatura), o cinema inspira-se abertamente de romances
clássicos: surge a adaptação (ou transposição) fílmica, em pleno vigor ainda
nos dias de hoje.

1
DANTAS, Geyson Bezerra. De O matador a O homem do ano: civilização e barbárie nos
(des)caminhos da adaptação da literatura para o cinema brasileiro. 2007. 178f. Dissertação
(Mestrado em Letras) - Universidade Federal da Paraíba: João Pessoa, 2007, p. 55.
11

A representação ficcional da violência incide, de maneira reiterada,


sobre algumas de nossas mais expressivas manifestações artísticas, pois o
estado atual da violência em nosso país torna difícil ignorar a existência desse
flagelo social. Por meio da literatura, muitos escritores brasileiros têm buscado
estabelecer com o leitor um diálogo sobre os problemas e os conflitos que
desestruturam o país. Patrícia Melo faz parte de uma geração de escritores que
surge na década de 1990 e se mostra disposta a representar o mundo paralelo
das periferias suburbanas e das favelas brasileiras, trazendo à ribalta a história
de personagens que vivem à margem da sociedade. Ao estilo de Rubem
Fonseca, a escritora paulista busca retratar a mente de criminosos, por meio de
instantâneos fragmentários e contundentes. Em sua ficção, percebe-se a
influência do “realismo feroz” dos anos 1960/70, da estética daqueles autores
cuja leitura “agride pela violência, não apenas dos temas, mas dos recursos
técnicos”.2
Assim, o presente trabalho busca contribuir para os estudos
relacionados à representação da violência e do crime na literatura e no cinema
brasileiros, com um olhar atento e inquiridor ao contexto social em que o livro O
matador e o filme O homem do ano foram produzidos. A transposição da
representação literária dessa violência em adaptações cinematográficas
também permite desenvolver uma produtiva reflexão sobre essa questão.
Embora sirvam-se de linguagens distintas, ambas as artes articulam uma
estrutura narrativa que coloca o leitor e o espectador diante de uma verdade
inabalável: a violência distribui-se parcimoniosamente entre todas as classes
sociais. Por esse viés, a violência pode ser tomada como um filtro por cujo
intermédio é possível refletir sobre certos aspectos do universo
contemporâneo, sobre certas características da sociedade moderna e das
relações sociais que se inscrevem num contexto de desestruturação gradual.
Para levar a termo uma tal reflexão, o método de análise adotado é o
comparativo. Ambos os textos pertencem a sistemas semióticos distintos,
razão pela qual é necessário retomar diferentes conceitos de tradução, em
contextos e circunstâncias de adaptação cinematográfica de uma obra literária

2
CANDIDO, Antônio. A nova narrativa. In:____. Educação pela noite e outros ensaios. 2. ed.
São Paulo: Ática, 1989, p. 211.
12

– também chamada de “tradução intersemiótica”. Esses conceitos e certas


reflexões sobre a profícua relação entre literatura e cinema, bem como a
especificidade da linguagem de cada uma das artes, são apresentados na
primeira parte do trabalho, intitulada “Literatura comparada e tradução
intersemiótica”.
Na segunda parte, “A violência urbana na literatura e no cinema
brasileiros (1990-2010)”, com base em estudos e pesquisas relacionadas à
violência urbana no Brasil, analisam-se dados sobre a escalada da violência na
sociedade brasileira, bem como o consequente reflexo desse aspecto na arte
literária e cinematográfica. No primeiro tópico, realiza-se uma breve
recapitulação histórica da produção literária que, a partir dos anos 1960/1970,
investe na criação de enredos narrativos que tem como cenário o espaço
urbano e seus problemas – entre os quais a violência ocupa lugar de destaque.
No segundo tópico, é apresentada a representação dessa temática no cinema
brasileiro, sobretudo naquilo que se convencionou chamar de “Cinema da
Retomada”, período da história cinematográfica que amiúde remete ao tema da
violência urbana. No que se refere à estetização da violência e por intermédio
de um panorama da produção literária e cinematográfica do período 1990-
2010, busca-se analisar a violência representada nas artes, em sua condição
de fator articulador da dinâmica social e cultural brasileira.
A terceira parte, intitulada “Tradução Intersemiótica: a estética da
violência em O matador e O homem do ano”, é dedicada à análise da
tradução do livro de Patrícia Melo para o filme de José Henrique Fonseca,
segundo três tópicos temáticos: violência e corrupção; violência e exclusão
social; violência e fatalismo. Tais fatores estão intrinsecamente relacionados
com o desenvolvimento da narrativa. Por intermédio da análise comparatista,
busca-se analisar o modelo de estetização da violência tanto no livro quanto no
filme, assim como as estratégias utilizadas pelo realizador e pela equipe
cinematográfica para transpor em imagens as frases do texto literário. Dessa
forma, apresentam-se algumas significativas passagens literárias selecionadas
em função dos três tópicos temáticos, para em seguida analisar certos
aspectos da tradução intersemiótica. Destaca-se que ao final do trabalho
consta um glossário com vocábulos explicativos, especialmente no que se
refere à linguagem cinematográfica.
13

Para além das meras relações entre literatura e cinema, esta pesquisa
leva em conta aspectos teóricos e críticos que contemplam aspectos sociais da
época de produção das obras. Entre os autores que embasam teórica e
metodologicamente a pesquisa, destacam-se: Antonio Candido, Daniel-Henri
Pageaux, Fábio Messa, Ismail Xavier, Julio Plaza, Karl Erik Schøllhammer, Luiz
Zanin Oricchio, Randal Johnson e Tânia Pelegrini, em estreita articulação com
dados estatísticos referentes ao período histórico-social estudado.
14

1. LITERATURA COMPARADA E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

Em Literatura Comparada [...] há apenas, de fato, conclusões


provisórias que levam a novas leituras e novas investigações “por
mares nunca dantes navegados”...
(Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux,
Da literatura comparada à teoria da literatura, p. 196)

A Literatura Comparada é um amplo e fecundo campo de estudo nos


tempos modernos. Da mesma forma que a cultura e a literatura possuem um
caráter corrediço, a Literatura Comparada também tem uma natureza móvel,
em razão da multiplicidade de definições teóricas e metodológicas que decorre
da “vastidão de seu campo e pluralidade de seus métodos”3.
Entre os diversos conceitos propostos para a Literatura Comparada ao
longo de sua trajetória histórica, o de Henry H. H. Remak, retomado por
Carvalhal, revela-se adequado para o propósito desta pesquisa. O estudioso
entende a Literatura Comparada como

o estudo da literatura além das fronteiras de um país em particular, e


o estudo da relações entre literatura de um lado e outras áreas do
conhecimento e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura,
música), a filosofia, a história, as ciências sociais (política, economia,
sociologia), as ciências, as religiões, etc., de outro. Em suma é a
comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação
4
da literatura com outras esferas da expressão humana .

A partir dessa definição, o comparativismo, para além do confronto entre


obras e autores, passa também a explorar o imbricamento da literatura com
outras formas de expressão artística e outras formas de conhecimento – como
as relações interdisciplinares como literatura e filosofia, literatura e psicanálise,
literatura e história e o diálogo entre literatura e outras formas de artes, como a
música, a pintura, a escultura e o cinema tornam-se objeto de estudo regulares
e tem ampliado o campo de investigação dos estudos comparados.

3
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 91.
4
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 74.
15

Esse diálogo da literatura com outras esferas do conhecimento surge do


fato de que, a partir do momento em que os problemas levantados pelo
investigador comparativista “exigem uma pesquisa mais ampla (por exemplo,
reflexão sobre um mito literário), o estudo comparativista [...] ultrapassa o
quadro estreito das relações binárias e alarga forçosamente o campo de
investigação”5 (grifo meu). Forçosamente, porque a literatura, mesmo em
terreno ficcional, não se desvincula do contexto no qual está inserida e
acompanha as transformações históricas. Tal condição sugere que o resultado
de suas investigações será sempre provisório, pois sempre vêm à luz novas
descobertas, novas leituras e novas investigações. Os caminhos da Literatura
Comparada, portanto, são abertos.
É natural que aconteça esse alargamento nas fronteiras da Literatura
Comparada uma vez que, como sublinha Carvalhal, “comparar é um
procedimento que faz parte da estrutura do pensamento do homem e da
organização da cultura”6. Quando, por exemplo, lemos um determinado livro
escrito em um tempo distante do nosso, automaticamente somos levados a
comparar o contexto histórico no qual ele foi escrito com aquele no qual
estamos inseridos. Assim, a obra literária estaria migrando da tradição original
em que surgiu para incluir-se em outro contexto cultural. Certamente, uma
investigação aprofundada de tal livro obrigaria o leitor a decifrar com outros
olhos seu sentido conotativo.
Essa ideia fica ainda mais evidente quando se tem como centro de
análise ou investigação um estudo comparativista entre sistemas de signos
diferentes. Segundo os teóricos da Literatura Comparada Álvaro Machado e
Daniel-Henri Pageaux, o texto (literário ou não) “é um sistema de signos que
colaboram com outros signos, musicais, pictóricos, icônicos. E assim se afirma
a necessidade de uma análise em que se conjuguem análise textual e
semiologia”7. Nesse sentido, cada vez mais se percebe a proximidade da

5
MACHADO, Álvaro Manuel, PAGEAUX, Daniel-Henry. Da literatura comparada à teoria da
literatura. Portugal: Edições 70, 1988, p. 141.
6
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 6.
7
MACHADO, Álvaro Manuel, PAGEAUX, Daniel-Henry. Da literatura comparada à teoria da
literatura. Portugal: Edições 70, 1988, p. 147.
16

literatura com outras artes, uma vez que esta relação “constitui uma orientação
dinâmica, fértil, com grande futuro no domínio geral da Literatura Comparada”8.
O cruzamento entre literatura e cinema data do século XIX. Na busca de
ser prestigiado como linguagem artística (como eram o teatro, a pintura e a
literatura), o cinema passa a utilizar-se de romances clássicos para construir
suas histórias. Nessa perspectiva, foram adaptadas para a linguagem
cinematográfica obras de renomados autores como os franceses Honoré de
Balzac (por exemplo, a adaptação de La grande Bretèche, 1881, pelo cineasta
André Calmettes, em 1909, fase em que o cinema ainda era mudo) e Gustave
Flaubert (entre as várias adaptações do livro Madame Bovary, tem-se a
realizada pelo cineasta Claude Chabrol, em 1991), os russos Fiodor
Dostoievsky (O idiota, 1868, adaptado para o filme homônimo, em 1951, pelo
cineasta japonês Akira Kurosawa), Leon Tolstói (por exemplo, entre as diversas
adaptações do romance Ana Karenina, 1877, tem-se a de Julien Duvivier, em
1948), o espanhol Miguel de Cervantes (Dom Quixote, 1605, adaptado para o
filme homônimo em 1992, pelo renomado cineasta Orson Welles), entre outros.
Entre autores modernos que tiveram suas obras adaptadas destaca-se Ernest
Hemingway (o filme Ilhas da corrente, 1975, dirigido por Frankin F. Schaffner,
baseado no livro homônimo, 1970), Franz Kafka (a adaptação do livro O
processo, 1925, para o filme homônimo, em 1962, dirigido por Orson Welles),
Jack London (Caninos brancos, 1991, direção de Randal Kleiser, baseado no
livro homônimo, 1906) e William Faulkner (A fúria do destino, 1959, direção
de Martin Ritt, baseado em O som e a fúria, 1929).
Esses exemplos mostram que o cinema tem buscado inspiração com a
literatura, pois nela os cineastas encontraram “modelos de construção de
enredo, métodos de delinear personagens, modos de apresentar processos de
pensamento e meios de lidar com o espaço e o tempo”9. Nas palavras da
professora e pesquisadora sobre estudos intermídias Thaís Flores Nogueira
Diniz, foi o próprio Sergéi Eisenstein – cineasta reconhecido pelas inovações
na técnica da montagem que deram consolidação ao cinema como meio
artístico – “que há quarenta anos afirmou que os romances contêm

8
Id. Ibid.
9
DINIZ, Thais Flores Nogueira. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de
Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3,1998, p. 317.
17

equivalentes de fades, dissolvências, close-ups, métodos de composição e


edição”10. Em uma descrição detalhada, por exemplo, pode-se dizer que os
escritores conseguem “fotografar” o objeto, o espaço ou um detalhe do
personagem que se quer transmitir ao leitor. A literatura, ao articular
procedimentos verbais para contar suas histórias, oferece ao cinema exemplos
para fazer o mesmo, no entanto, neste último caso, com recursos visuais.
No entendimento do cineasta Jorge Furtado, esse aprendizado do
cinema através da literatura se materializa porque, além de o cinema filmar as
histórias criadas pela literatura, também reproduz seus procedimentos
narrativos11. Dessa forma, a sétima arte pode ser considerada, de acordo com
um dos mais importantes cineastas soviéticos, o russo Eisenstein, “uma
expansión de la dicción estricta, hermoseada por la poesia y la prosa, en um
nuevo reino en el cual la imagem deseada se materializa directamente en
percepciones auditivas e visuales”.12
Segundo Flávio Aguiar13, o desenvolvimento do cinema no século XX
implicou o surgimento de grande número de produções calcadas em enredos e
personagens consolidadas inicialmente na literatura, pois adaptar obras
consagradas, além de trazer segurança, também facilita granjear prestígio e
aprovação do público. No Brasil, dentre os inúmeros filmes baseados em textos
literários já consagrados destacam-se: Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro
de Andrade, inspirado no romance homônimo de Mario de Andrade; A hora da
estrela (1985), de Suzana Amaral, que tem como origem o romance de mesmo
nome da escritora Clarice Lispector; Memórias póstumas de Brás Cubas
(2001), de André Klotzel, baseado na obra homônima de Machado de Assis;
Lavoura arcaica (2001), de Luís Fernando Carvalho, inspirado na obra de
Raduan Nassar; Cidade de Deus (2002), de Fernando Meireles, a partir do

10
Id. Ibid.
11
FURTADO, Jorge apud SILVA, Ângela Maria Lessa. Do texto literário ao filme: diálogos
intersemióticos em “A hora da estrela”. 2006. 190f. Dissertação (Mestrado em Literatura
Brasileira) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2006, p. 34.
12
EISENSTEIN, 1959, p. 202 apud GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto.
Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 218. Tradução da autora: “uma expansão da
dicção exata, formada pela poesia e pela prosa, em um novo universo no qual a imagem
desenhada se materializa diretamente em percepções auditivas e visuais”.
13
AGUIAR, Flavio. Literatura, cinema e televisão. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura,
cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 119.
18

romance de Paulo Lins; sem falar numa série de outros textos levados à
televisão, por meio de novelas e minisséries.

FIGURA 1 – Filme A hora da estrela FIGURA 2 – Filme Cidade de Deus

Esse processo através do qual uma obra literária tem seus elementos
considerados constitutivos transpostos para uma narrativa fílmica é chamado
de adaptação cinematográfica. Em outros termos, consiste em uma forma de
tradução, pois tradução, do latim traductio, significa “ação de transferir de uma
ordem a outra; versão de uma língua para outra; ato ou efeito de traduzir; meio
pelo qual se converte uma linguagem para outra”14. O interpositivo do verbo
traduco, etimologia latina da palavra traduzir, é –duz – que significa levar,
transportar, conduzir, fazer passar15. Nesse sentido, quando um diretor opta
por produzir um filme baseado em um texto já existente, ele estará conduzindo,
transferindo, transportando este texto para um outro lugar – para uma nova
linguagem, para um outro campo semiótico – o cinematográfico.

1.1 Tradução intersemiótica

Segundo o teórico em tradução intersemiótica Julio Plaza, foi o linguísta


russo Roman Jakobson o primeiro a discriminar e definir os tipos de tradução: a
interlingual (que ocorre entre línguas diferentes – a tradução propriamente

14
HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2008, p. 2745. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em sua versão
integral, traz a origem e o significado etimológicos de certos vocábulos que representam
conceitos de extrema valia para o presente estudo. Por tal razão, faremos frequente alusão à
etimologia do léxico aqui utilizado, tal qual se desenvolve nesse conceituado dicionário.
15
Id. Ibid., p. 1092.
19

dita), a intralingual (que acontece no âmbito da mesma língua de origem) e a


intersemiótica. Esta última foi definida por Jakobson em 1959 como um tipo de
tradução que “consiste na interpretação dos signos verbais por meio de
sistemas de signos não verbais, ou de um sistema de signos para outro, por
exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura”16.
Dessa forma, ao distinguir os tipos de tradução, Jakobson descentraliza o
conceito dado ao termo – pois até então a maioria dos teóricos tratava o
processo da tradução como algo relacionado somente a signos verbais – e
amplia seu campo de atuação.
É esse último tipo de tradução – a intersemiótica – que interessa para o
presente estudo, uma vez que se têm dois textos – um literário e outro fílmico –
“que se apresentam como icônicos um do outro, isto é, são signos numa
mesma cadeia semiótica, podemos dizer que um pode ser considerado uma
transformação, ou tradução, do outro, uma tradução intersemiótica”17. De
acordo com as ideias de Diniz, cada atividade semiótica18 tem seu próprio
sistema de sentido, e o modo como cada signo representa outro – neste
estudo, como o filme representa o livro – e a relação que existe entre eles é o
objeto de estudo da tradução intersemiótica.
Além dessas considerações, a definição de tradução intersemiótica
elaborada por Julio Plaza colabora para melhor esclarecemos os estudos que
enfocam sistemas de signos diferentes:

Tradução como prática crítico-criativa na historicidade dos meios de


produção e re-produção como leitura, como metacriação, como ação
sobre estruturas eventos, como diálogo de signos, como síntese e
reescritura da história. Quer dizer: como pensamento em signos,
como trânsito dos sentidos, como transcriação de formas na
19
historicidade .

16
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. X (apresentação
do livro).
17
DINIZ, Thais. Flores Nogueira. A tradução intersemiótica e o conceito de equivalência. In: IV
Congresso da ABRALIC, 1995, São Paulo. Literatura e Diferença: IV Congresso da
ABRALIC. São Paulo: Bartira Editora Gráfica, 1999, p. 1002.
18
A autora exemplifica algumas atividades semióticas que expressam sentido: acenar
bandeiras, colocar sinais ou linhas nas estradas, construir edifícios, fazer um filme, escrever um
romance, uma peça de teatro ou poemas, pintar, esculpir, modelar ou bordar. Para ela, “cada
uma dessas práticas têm seu próprio sistema de sentido e não são como „linguagens‟ em seu
meio de expressão, mas procedimentos que permitem especificar seus processos e práticas
semióticas distintas”. Id. Ibid., p. 1001.
19
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 14.
20

Ao defender a tradução intersemiótica como uma prática crítico-criativa,


Plaza deixa evidente a influência do poeta e tradutor brasileiro Haroldo de
Campos em seus estudos. Segundo Plaza, foi esse crítico que o introduziu,
com rigor e sensibilidade, na teoria da “operação tradutora” intra e interlingual
de cunho poético. Para Haroldo de Campos, toda tradução é uma recriação,
pois é uma forma privilegiada de leitura crítica. A informação estética pode ser
codificada unicamente pela forma em que foi transmitida pelo artista. Assim, o
crítico assegura que é impossível uma codificação estética na prática tradutora,
porque “a fragilidade da informação estética é, portanto, máxima”20. Na terceira
parte desta pesquisa, analisa-se de que forma alguns elementos estéticos do
livro O matador foram traduzidos para a linguagem cinematográfica de O
homem do ano e se verifica que, por pertencerem a campos semióticos
distintos, a recriação torna-se inevitável. A mudança de título na obra traduzida,
por exemplo, já aponta para uma recriação. No livro O matador há uma
passagem em que Máiquel, protagonista da história, recebe o “Prêmio Cidadão
do Ano” pelos serviços prestados à comunidade (é contratado por pessoas
bem sucedidas para eliminar bandidos). Aproveitando-se da expressão que
homenageia Máiquel, roteirista e cineasta recriam o nome do filme, o qual,
valoriza a figura do matador apresentado na obra de Patrícia Melo. A crítica ao
ineficiente sistema policial do país, assim como à classe médio-alta brasileira, é
evidenciada de forma mais contundente no título do filme do que no do livro,
pois há uma parcela da sociedade que homenageia/enobrece pessoas que
disseminam a violência para, na verdade, beneficiarem-se com a situação. No
filme, o cidadão do ano, do livro, passa a ser o homem do ano, possibilitando
uma reflexão mais crítica sobre a estrutura social brasileira: no Brasil, é
frequente assistirmos bandidos e corruptos não serem punidos pelos seus
crimes.
Além disso, ao definir a tradução “como transcriação de formas na
historicidade”, Plaza refere-se ao fato de que numa tradução intersemiótica é
preciso levar em consideração o contexto histórico-social em que os signos
foram produzidos, pois a “arte não se produz no vazio” e “a história, mais do
que simples sucessão de estados reais, é parte integrante da realidade

20
CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In:____. Metalinguagem e
outras metas: ensaios e crítica literária. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 33.
21

humana”21. Portanto, ao considerarmos a transposição de um signo literário


para signo cinematográfico – no presente estudo, do romance O matador
(1995) para o filme O homem do ano (2003) –, essas informações precisam
ser levadas em consideração, uma vez que ambas as artes refletem problemas
da sociedade contemporânea.
Se em tradução intersemiótica há um “diálogo entre os signos”, uma
“prática crítico-criativa”, uma “reescritura da história”, como afirma Plaza,
haverá também, no seu entendimento, uma tendência dos signos em “formar
novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua
própria característica diferencial, tendem a se desvincular do original”22. Tal é o
que ocorre nas traduções de obras literárias para o cinema. Ao passar
elementos linguísticos de um romance para as imagens de um filme, será
necessário realizar escolhas que podem manter, suprimir ou acrescentar
significados ao original.
Em um estudo esclarecedor, Linda Catarina Gualda retoma certas ideias
do escritor João Batista de Brito e afirma que, “na era da interdisciplinaridade,
nada mais saudável do que tentar ver a verbalidade da literatura pelo viés do
cinema, e a iconicidade do cinema pelo viés da literatura”23. Isso mostra a
existência de uma profícua relação entre as duas artes, pois, assim como o
cinema tem aprendido com a literatura, o caminho inverso também tem
ocorrido. O romance contemporâneo tem abandonado estruturas narrativas
convencionais e procurado renovar-se, “introduzindo clima e ação
cinematográficos” da mesma forma que se vê “um cinema narrativo totalmente
vinculado às peculiaridades literárias”24. O signo linguístico e icônico estão
mais do que nunca imbricados, e um auxilia na leitura do outro.

21
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 2.
22
Id. Ibid., p. 30.
23
GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2,
jan./jul. 2010, p. 202.
24
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 204.
22

1.2 Da linguagem literária à linguagem cinematográfica

Pela profícua relação entre literatura e cinema, o estudo das adaptações


cinematográficas torna-se de grande interesse tanto para críticos de literatura
como de cinema, pois “a passagem de um texto de romance para a sinopse de
um filme [...] pode levar a importantes conclusões sobre a escrita, sobre a
imagem e sua cristalização da palavra, sobre a relativa autonomia de um texto
literário, etc”25. A transposição de um romance para a linguagem fílmica pode
levar o espectador/leitor a constatar, por exemplo, que muitas das escolhas
realizadas pelo tradutor estão relacionadas à ordem quantitativa, ou seja,
“quase sempre o que é pequeno em um filme (um único plano, por exemplo)
corresponde algo de muito grande no texto literário (uma frase ou trecho
longo), e vice-versa, ao que é grande no cinema, pode equivaler um elemento
diminuto – como a palavra – na literatura”26.
Embora pertencendo a campos semióticos distintos – um verbal e outro
sonoro-visual –, literatura e cinema possuem a estrutura narrativa como
elemento comum. A narrativa do cinema se assemelha ao romance, pois “sua
existência gesta-se na narração, no encadeamento de ideias, no
entrelaçamento de temas”27.
Essa narração, no entanto, para se concretizar em linguagem
cinematográfica, passa por procedimentos, muitos deles próprios da arte
cinematográfica. Enquanto a narrativa literária utiliza-se de diferentes tipos de
narrador para contar suas histórias (narrador-personagem, narrador-
observador, narrador-onisciente...), no cinema, essa função é exercida pela
câmera28: focaliza, recorta, aproxima, expõe e descreve através do close-up,
do travelling ou da panorâmica.
Para a professora e pesquisadora sobre estudos de cinema Anelise
Reich Corseuil, a presença do narrador em um texto literário é evidente para o

25
Id. Ibid., p.146.
26
GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2,
jan./jul. 2010, p. 211.
27
Id. Ibid., p. 206.
28
Através do recurso da câmera, o cinema deu um salto maior que a fotografia – deu
movimento aos seres/personagens. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e
televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 32.
23

leitor, ao passo que no cinema, “o fato de as palavras serem substituídas por


imagens, como se a plateia estivesse vendo a ação sem interferência de um
narrador ou de sua voz, produz a impressão de que não há narração, mas
apenas um processo de mostrar”29. No entanto, ao retomar as análises do
crítico de cinema e de literatura Seymour Chatman, a autora sustenta que “a
presença do narrador no cinema se dá pela edição de imagens, reveladora da
interferência do narrador na organização dos eventos da história”30. A
montagem, segundo ela, aponta para existência de um narrador, que seria um
mediador, quem organiza os eventos da história no tempo e no espaço.
Além da montagem, técnicas cinematográficas como a focalização, a
mise-en-scène e a trilha sonora também apontam para a presença de um
narrador. De acordo com Corseuil, “o focalizador tem sido definido de uma
maneira geral como o agente que vê e sente as ações”31, é pela sua
sensibilidade que os espectadores de um filme podem “entender as emoções
dos personagens e a visão que eles têm do mundo ficcional sem que a
manipulação do narrador se torne visível”. E, para melhor esclarecer, a autora
afirma: “enquanto que no romance o pensamento e as ações dos personagens
são intermediados pelo discurso direto ou indireto do narrador, no cinema
ocorre um apagamento dessa intermediação através da focalização dos
eventos pelo próprio personagem, sem a aparente intermediação do
narrador”32.
Com base no dicionário de termos cinematográficos do escritor Edmund
Penney, Thais Flores Diniz relembra que mise-en-scène é um termo utilizado
na linguagem cinematográfica para definir “aquilo que comprime todos os
sistemas de signos que criam sentido no espaço, isto é, o que é oferecido para
ser filmado, a imagem da ação total, criada por elementos como os atores, a
cenografia, o vestuário, a iluminação e os adereços”33. A partir de reflexões
sobre um filme de Martin Scorsese (A época da Inocência, adaptação da obra
literária de Edith Wharton), Anelise Corseuil acrescenta que a mise-en-scène
29
CORSEUIL, Anelise Reich. Literatura e cinema. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lucia Osana
(Org.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3 ed. Maringá:
Eduem, 2009, p. 374.
30
Id. Ibid.
31
Id. Ibid., p. 375.
32
Id. Ibid.
33
DINIZ, Thais Flores Nogueira. Tradução Intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de
Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3, 1998, p. 335.
24

favorece a interpretação da crítica social que o filme busca transmitir. No filme


citado pela autora, “as mesas ricamente decoradas, com o brilho dos cristais e
da prataria e as especiarias gastronômicas, ricas em detalhes, forma[m] um
espetáculo revelador do excesso de rituais sociais que fazem parte da ordem
vigente”. E ainda esclarece: “os detalhes da mise-en-scène, enfatizados pela
edição de imagens e pelos closes da prataria, da beleza dos arranjos
ornamentais de centros de mesa, revelam o luxo do espetáculo mantenedor da
ordem”. Dessa forma, percebe-se que os efeitos da mise-en-scène contribuem
para uma crítica social.
Vale destacar que, tanto na narrativa fílmica como na literária, o tempo
pode desenrolar-se cronológica ou aleatoriamente. O que difere em ambas as
formas de narrar são os recursos utilizados para marcar a temporalidade. Para
narrar uma situação de lembrança que passa pela mente de um determinado
personagem, por exemplo,

os filmes podem seguir uma sequência com saltos ou lapsos de um


tempo para outro ou então valerem-se das técnicas literárias do
flashback ou do flashward, mas precisará de algum efeito na tela
(mudança de cor – geralmente as lembranças aparecem para o
espectador em preto e branco ou com coloração pálida, envelhecida
– velocidade das chamadas, ausência de ação ou mesmo de falas
etc.) enquanto que na literatura essas mudanças podem ser
facilmente representadas por meio de um marcador temporal –
34
advérbio ou tempo de verbo .

Isso leva a concluir que o tempo, no romance, manifesta-se


linguisticamente, ao passo que, no filme, ele se apresenta com imagens de
ações concretas. Como no filme nota-se a predominância da ação e do
movimento, o tempo aparece invisível, subjacente ao espaço, o que no
romance não acontece, pois nele tempo e espaço estão associados – não há
tempo sem espaço e vice-versa. Assim, Linda Catarina Gualda, ao desenvolver
as ideias de João Batista de Brito, esclarece que o espaço aparece sempre no
romance, que é eminentemente conceitual e mediatizante, como se
temporalizado, enquanto que no filme, eminentemente espetáculo atualizante,
presentificador, o tempo aparece como que espacializado35. Constata-se,
assim, que o tempo e o espaço são elementos que se fundem para dar
34
GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2,
jan./jul. 2010, p. 212.
35
Id. Ibid., p. 212.
25

condição à narrativa, seja ela verbal (como o conto, a lenda, o romance) ou


visual (como o cinema e a televisão).
Ao passo que a literatura trabalha com a diferença entre o tempo do
leitor e o tempo da narrativa, o cinema pode “dispor dos acontecimentos em
qualquer ordem temporal, embora valorizando o impacto imediato; enfoca o
passado e mesmo o futuro como se tratassem do tempo presente”36. O modo
como utiliza a câmera, de forma lenta ou acelerada, por exemplo, pode
representar o passado ou o futuro, no entanto, o espectador tem a impressão
de que as ações se desenrolam no presente. Isso porque, segundo Metz37, o
espectador percebe sempre o movimento, a imagem, como atual.
Teorias cinematográficas como a do francês Christian Metz, por
exemplo, retomado em um brilhante estudo por Randal Jonhson38, e a do
francês naturalizado brasileiro Jean-Claude Bernardet, definem o plano39 como
a unidade elementar do discurso fílmico, como o equivalente a uma palavra na
linguagem verbal. Da mesma forma que as palavras se combinam em frases,
os planos se combinam em sequências. Os planos influenciam muito na
dramaticidade de uma cena, na capacidade de emocionar o espectador. Por
isso, eles estão relacionados aos movimentos de câmera, uma vez que, ao
aproximar ou distanciar a câmera de um objeto que está sendo filmado,
consequentemente, se estará escolhendo por este ou aquele plano, e, por fim,
pelo melhor enquadramento da imagem. É o cinema na busca de sua
“gramática”, como declara Bernardet40.
Ainda em relação a distinção entre a forma fílmica e a literária,
o historiador e crítico de cinema Paulo Emilio Sales Gomes assim compreende
a liberdade de interpretação que seria, segundo esse pesquisador, maior nos
livros do que nos filmes: “A Capitu de uma fita de cinema nunca seria

36
LAWSON, 1967, p. 267, apud GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto.
Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2, jan./jul. 2010, p. 213.
37
METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 32.
38
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao
cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 13-15.
39
“Um dos conceitos mais básicos ao se realizar um trabalho com a câmera é buscar
determinar qual é o melhor enquadramento a ser utilizado, ou qual o olhar que se deseja obter.
Em outras palavras, trata-se de buscar determinar o que será enquadrado na tela que será
vista pelos espectadores” – é a busca do plano mais adequado para representar a cena. In:
MODRO, Nielson Ribeiro. Nas entrelinhas do cinema. Joinville: UNIVILLE, 2008, p. 25. Neste
mesmo livro encontramos a definição dos seguintes planos: plano geral, plano de conjunto,
plano americano, plano médio, primeiro plano, primeiríssimo plano, plano de detalhe/close.
40
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.37-38.
26

essencialmente olhos e cabelos, e nos imporia necessariamente tudo o mais,


inclusive pés e cotovelos. Essa definição física completa imposta pelo cinema
reduz a quase nada a liberdade do espectador nesse terreno”41. O livro
solicitaria em maior grau a imaginação, as imagens fílmicas oferecem ao olhar
e aos ouvidos um certo imediatismo detalhativo que, por vezes, poderia
submergir a função imaginativa do espectador. Comparado ao livro, o filme
poderia exigir menos trabalho intelectual para ser entendido – ler “ele entrou na
sala” possibilita diferentes formas de se imaginar essa situação, ao passo que
ver “ele entrando na sala” encerra o olhar no quadro representado na tela. No
entanto, inúmeros filmes exigem de seus espectadores uma intensa
capacidade imaginativa e analítica, sobretudo no caso do cinema autoral; por
vezes, a exigência é superior àquela que se manifesta na leitura de obras
literárias complexas, como no caso de textos em versos poéticos.
Por outro lado, o cinema, ao limitar o olhar, pode sugerir, a partir das
cenas criadas para equivaler as palavras do texto literário, imagens que o
espectador, enquanto leitor do livro, jamais imaginara. Em outros termos, “as
imagens podem mostrar aquilo que as palavras não conseguem exprimir. Elas
podem esclarecer e amparar a mensagem verbal”42. Assim, percebe-se mais
uma vez que literatura e cinema, ao mesmo tempo em que se afastam,
também se complementam.
Outro aspecto que precisa ser destacado na relação entre literatura e
cinema diz respeito à capacidade de significação dessas formas de arte. Para
Randal Johnson, estudioso e crítico das relações entre literatura e cinema,
tanto filme como romance significam basicamente com a mesma capacidade,
porém fazendo uso de forma diferente: “Os dois meios usam e distorcem o
tempo e o espaço, e ambos tendem a usar a linguagem figurativa ou
metafórica”43.
A metáfora em um filme pode ser alcançada, por exemplo, pela
justaposição de dois ou mais planos. No entanto, no entendimento de Johnson,

41 GOMES, Paulo Emilio Sales. A personagem cinematográfica. In: CANDIDO, Antônio et al. A
personagem de ficção. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 111.
42
PETTIT, 2009, p. 50 apud ORGADO, Gisele T. M. Redondo. A tradução de metáforas do
filme japonês A viagem de Chihiro. 2010. 112f. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Tradução) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010, p. 52.
43
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao
cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 29.
27

é preciso que esta justaposição acrescente um significado adicional ao objeto


filmado. Entre os vários tipos de metáforas utilizadas no cinema, exemplifica
metáfora interplano44 utilizada em um filme brasileiro: “Nelson Pereira dos
Santos, em seu clássico Vidas secas, usa o som estridente de uma roda de
carro de boi como uma metáfora do infindável desespero dos camponeses
brasileiros presos num círculo de miséria causado por secas cíclicas e pela má
distribuição da terra”45. Com esse exemplo (e outros que apresenta), o crítico
quer esclarecer que o cineasta, pela montagem, busca um equivalente
cinematográfico para o tropo46 literário, ou seja, busca elementos
cinematográficos que consigam transpor em imagens o emprego figurado de
uma palavra ou expressão literária. Assim, da mesma forma como as
metáforas que estão nos textos literários escondem significações, provocam
emoções e pensamentos, as criadas pelos recursos cinematográficos também
procuram fazê-lo. Dessa forma, pode-se afirmar que “a arte das palavras e a
arte das imagens [...] se encontram no mesmo nível semiológico; são vizinhos
no andar da conotação”47.
Com esse exemplo dado por Johnson, é possível constatar, ainda, que o
material de expressão do sistema cinematográfico vai além das imagens: é
constituído também de palavras, signos impressos, música e ruídos. Estes
últimos muito contribuem para a carga dramática e emocional do filme e, se
utilizados adequadamente, podem garantir grande parte do sucesso de um
filme. A música, por exemplo, aliada às imagens e à temática, pode contribuir
muito na representação dos sentimentos dos personagens, o que a torna peça
imprescindível, garantindo que o filme, muita vezes, seja premiado nesse
quesito. Ressalta-se, ainda, que “a trilha sonora serve como auxílio inclusive na

44
Além da metáfora interplano (aquela que usa a técnica cinematográfica ou a composição
figurativamente dentro de um só plano), o autor define e exemplifica a montagem metafórica, a
montagem poética, a montagem alegórica e as metáforas literárias, que Bela Balzás chama de
montagem intelectual. In: JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do
modernismo na literatura ao cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T.
A. Queiroz, 1982, p. 30.
45
Id. Ibid., p. 31.
46
O termo tropo, do grego trópos significa “direção (de um duto, canal etc.), atitude, modo,
maneira, tom, estilo, figura de palavras, hábito, caráter, sentimentos”. Neste presente estudo,
está relacionado ao emprego figurado de palavras ou locuções. In: HOUAISS, Antônio. Grande
dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2008, p. 2777.
47
METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 99.
28

percepção do ritmo das cenas por parte do espectador, auxiliando no processo


de recepção e de criação de empatia com o assunto focado”48.

1.3 Adaptação cinematográfica: fidelidade ou liberdade criativa?

Pelo o que até aqui foi exposto, pode-se afirmar que, do ponto de vista
estético, literatura e cinema têm suas características próprias, no que diz
respeito à natureza de suas linguagens (uma verbal e outra imagética) e
procedimentos narrativos. No entanto, em se tratando de adaptação
cinematográfica, as discussões nem sempre são pacíficas. A questão da
fidelidade do texto cinematográfico em relação ao texto original tem sido motivo
de divergências entre críticos da literatura e do cinema. Alguns argumentam a
respeito da distância semiótica entre as duas artes e condenam a falta de
fidelidade. Outros, por sua vez, argumentam que deve existir liberdade em
qualquer trabalho de criação.
Entre tantos que apoiam a adaptação cinematográfica estão os críticos
franceses Philippe Durand e André Bazin. O primeiro aconselha a adaptação
de textos literários por acreditar que romance e filme possuem a mesma
vocação (contar histórias). O segundo se apoia em dois argumentos: um de
cunho histórico – o cinema se tornou uma arte popular atingindo todas as
camadas sociais – e outro social – ao adaptar as grandes obras, o cinema
proporciona maior acesso aos clássicos, uma vez que depois da exibição dos
filmes, a venda das obras originais cresce consideravelmente49.
A respeito da noção de fidelidade, Julio Plaza afirma:

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a


ver com a fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação
fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre
passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento
50
de transformação de estruturas e eventos .

48
MODRO, Nielson Ribeiro. Nas entrelinhas do cinema. Joinville: UNIVILLE, 2008, p.41.
49
GUALDA, Linda Catarina. Literatura cinema: elo e confronto. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 2,
jan./jul. 2010, p. 214.
50
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 1.
29

Julio Plaza, em seus estudos sobre tradução intersemiótica, alerta para


o fato de que é necessário levar em consideração a questão da atualização da
obra traduzida no contexto histórico-social ao qual faz parte a tradução – aqui
estendida à adaptação. E para complementar, o crítico parafraseia Karl Marx:
“os artistas não operam de maneira arbitrária, em circunstâncias escolhidas por
eles mesmos, mas nas circunstâncias com que se encontram na sua época,
determinadas pelos fatos e as tradições”51. Portanto, artista e sua arte estão
num constante enfrentamento com a história, com a época em que vivem.
Nesse sentido, quando há filmes baseados em clássicos da literatura criados
em uma época muito distante da atual, é necessário atualizar a obra traduzida,
adequá-la ao contexto e ao gosto de um novo público.
Além disso, quando Plaza se refere à tradução como uma relação
fortemente tramada entre passado-presento-futuro, o crítico quer ressaltar que
uma tradução pode fazer “reviver” algo que estava acabado. Em outros termos,
a obra literária que será adaptada (o texto original) seria um “passado” (um livro
já lido e teoricamente esquecido) que pelo processo tradutor (a adaptação) se
firmaria como realidade no “presente” (se atualizaria), traçando possíveis
leituras para o “futuro” (trazendo novas leituras, novos olhares sobre o livro).
Portanto, a adaptação cinematográfica, sendo entendida como processo de
tradução criativa, é um processo de criação em aberto, uma vez que
acompanha a história que também se mostra inacabada. Por essas razões, a
pretensa fidelidade da obra traduzida em relação ao original cede lugar à
criatividade da equipe de produção do filme.
Em conformidade com essas ideias, Johnson afirma que “dizer que a
mesma história pode ser narrada por meios diferentes não significa dizer que a
mesma estrutura tem que ser mantida no caso de uma tradução fílmica de um
romance”52. Isso porque, segundo o autor, o discurso narrativo é “uma camada
autônoma de significação com uma estrutura que pode ser isolada da
linguagem específica que o transmite”53. Logo, a mesma história, ou narrativa,
pode ser narrada em diferentes meios (livro, filme, teatro, quadrinhos) sem
modificar sua estrutura, mas, dependendo dos meios utilizados, alterar

51
Id. Ibid., p. 5.
52
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao
cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 23.
53
Id. Ibid.
30

significações. E, ao alterar significações, “uma obra artística, seja ela romance,


conto, poema, filme, escultura ou pintura, tem de ser julgada em relação aos
valores de outro campo”54.
Nesse contexto, o campo literário e o cinematográfico possuem
diferenças e dinâmicas essenciais nas suas produções. Ao passo que o
escritor tem à sua disposição a linguagem verbal com toda sua riqueza
metafórica e figurativa, um cineasta trabalha, segundo Johnson, com pelo
menos “cinco matérias de expressão diferentes: imagens visuais, a linguagem
verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e
efeitos sonoros), música e a própria língua escrita (créditos, títulos e outras
escritas)”55. Por isso, alerta o estudioso, a diferença entre as duas artes não
pode ficar na simples distinção entre linguagem escrita e visual, como se
costuma considerar.
Além disso, o ensaísta, crítico e professor de cinema, Ismail Xavier,
ressalta que “haverá um modo de fazer certas coisas próprias ao cinema, que é
análogo ao modo como se obtêm certos efeitos no livro, „modo de fazer‟ que
diz respeito exatamente à esfera do estilo”56. Isso quer dizer que, no processo
de tradução intersemiótica, em que o cinema busca equivalências entre o signo
fílmico e o literário, uma mesma informação será expressa de maneira diversa,
ou melhor, com estilo diferente.
Esse aspecto do estilo, do “modo de fazer” que é próprio a cada arte,
está relacionado ao que afirma Fábio Messa:

Na adaptação de obras literárias para o cinema ocorrem esforços no


sentido de ajustar procedimentos cinematográficos às indicações da
narrativa, para que sejam obtidos determinados efeitos. Como
resultado dessa operação, há tanto um aproveitamento quanto uma
transformação da linguagem literária de modo a agir enquanto técnica
57
cinematográfica .

54
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In:
PELLEGRINI, Tânia l. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo e
Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 44.
55
Id. Ibid., p. 42.
56
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In:
PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São
Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 63.
57
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 202-203.
31

Para agir enquanto técnica cinematográfica, para instaurar estilo em


suas produções, o cinema necessita, segundo Messa, aproveitar e transformar
a linguagem literária. Percebe-se subjacente a essa afirmação a noção de
tradução como recriação proposta por Haroldo de Campos e retomada por
Plaza, já mencionada anteriormente. Na busca do recurso cinematográfico
mais adequado para equivaler ao signo literário, o cineasta vê-se constrangido
a projetar na obra recriada sua interpretação.
Numa perspectiva claramente antagônica àquela sustentada por Haroldo
de Campos no tocante à tradução intersemiótica, Randal Johnson alerta para o
fato de que na tradução de um texto literário para o cinema, “a autonomia total
é com certeza impossível; o texto literário funciona inevitavelmente como uma
„forma-prisão‟”58. Ao mesmo tempo em que o cineasta tem a liberdade de
desviar do modelo (texto original) ele precisa permanecer dentro do seu espaço
semântico geral. Observa-se, portanto, que o cineasta encontra-se em
permamente movimento pendular entre a liberdade total e a constrição formal.
Muitas vezes, alerta Johnson, o modelo original é reduzido a um
“subcódigo do filme, isto é, um léxico comum a certos grupos de falantes de
uma língua, porém não a todos”. O livro, para os espectadores que o leram,
funcionará como um subcódigo que auxiliará no entendimento do filme e,
também, na verificação das alterações ou transformações que foram
realizadas. Certamente, uma discussão do filme adaptado entre espectadores
que leram o livro será mais produtiva do que entre os que não o conhecem.
Entre essas discussões, principalmente entre pessoas leigas no assunto
adaptação de romance para filme, é comum haver a comparação entre os dois
campos resultando na prevalência do livro sobre o filme. Ao julgar
erroneamente a adaptação - pensar que o filme deve ser fiel ao livro - grande
parte dos telespectadores não aprova o filme porque suas expectativas
acabam sendo frustradas. A esse respeito, Hélio Guimarães tece comentários
sobre a adaptação de livros para programas televisivos que são perfeitamente
aplicáveis ao cinema. Para ele, a visão de que

58
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao
cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982, p. 10.
32

quanto mais fiel ao texto literário, melhor será o programa de TV,


[e]stá subsumido [...] que a obra literária é sempre boa, ou pelo
menos sempre melhor que o programa de TV [...] supõe existir uma
leitura “correta” e “única” para o texto literário, cabendo ao adaptador
descobrir o verdadeiro sentido do texto e transferi-lo para uma nova
linguagem e um novo veículo. Essa visão nega a própria natureza do
texto literário, que é a possibilidade de suscitar interpretações
diversas e ganhar novos sentidos com o passar do tempo e a
mudança das circunstâncias. Levada ao limite, a ideia de fidelidade
supõe que o programa de TV fiel ao texto literário de alguma forma
59
possa substituí-lo .

Como já se afirmou páginas acima, a linguagem literária e a


cinematográfica devem ser respeitadas e apreciadas de acordo com suas
peculiaridades, ou melhor, de acordo com o seu campo de valores. Portanto, a
nada levaria comparar uma obra literária com a fílmica no sentido de classificá-
las em “melhor” ou “pior”. Trabalhando com a noção de tradução como ato
criativo, é preciso respeitar a liberdade criativa do cineasta, aquele que
estabelece ligação entre o roteiro de um filme e a montagem.
O roteiro, “diferente de um texto literário, possui algumas características
textuais próprias, pois terá como objetivo demonstrar o que deverá ser
transformado em imagens”60. Por isso, em consonância com o que Hélio
Guimarães afirma acima, precisa-se entender que um escritor, ao criar suas
histórias, não está pensando em um roteiro para um filme. O roteirista, ao
apropriar-se de uma obra literária, irá alterar, suprimir ou incluir informações,
ações, dados, para melhor representar o signo verbal. O cineasta, por sua vez,
ao receber o roteiro, poderá também alterá-lo, conforme suas impressões do
texto original e suas interpretações a respeito dos recursos cinematográficos de
que dispõe. Portanto, escritor, roteirista e cineasta têm sensibilidades e
propósitos diferentes, por isso, um filme não pode substituir o livro.
Além disso, como alerta Geyson Bezerra Dantas, precisa-se considerar
que o roteiro:

é encarado mais enquanto item técnico da “linha de montagem”


audiovisual do que propriamente criação artística, ele é o

59
GUIMARÃES, Hélio. O romance do século XIX na televisão: adaptação de Os Maias. In:
PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São
Paulo e Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 94-95.
60
MODRO, Nielson Ribeiro. Nas entrelinhas do cinema. Joinville: UNIVILLE, 2008, p. 48.
Normalmente, segundo o autor, os principais elementos encontrados em um roteiro são os
seguintes: a divisão das cenas, a narração, o diálogo e a rubrica.
33

intermediário indispensável na passagem da “literariedade” do livro


para a “iconicidade” da imagem; lugar onde se dá o “ponto de
viragem sígnico”: o roteiro dá condição ao signo de se integrar a um
61
novo médium .

Retomando as ideias de Syd Field, autor de manual de roteiros de


grande tiragem, Dantas esclarece que, ao criar um roteiro que tem como
partida um texto já existente, será necessário ao roteirista fazer adequações e
ajustes de informações, de episódios ou diálogos contidos no texto literário.
Dessa forma, o roteiro surge como um texto novo, como texto original: “uma
adaptação deve ser vista como um roteiro original. Ela apenas começa no
romance, livro, peça, artigo ou canção. Essas são as fontes, o ponto de
partida”62.
No entanto, baseado nas informações de Di Moretti, roteirista brasileiro
com experiência em adaptação do teatro para o cinema, Dantas alerta que o
roteiro tem que respeitar o texto que toma como base, ou seja, não deve “trair”
sua ideia original. O diretor precisa também ter essas ideias esclarecidas, pois
sua liberdade de intervenção no roteiro precisa ser cautelosa. Há muitos casos
de roteiros adaptados muito bem escritos que acabam arruinados devido às
inadequadas intervenções do diretor e vice-versa. O trabalho de intervenção do
diretor no roteiro torna-se, então, “desdobramento necessário da adaptação
roteirizada, sendo no ponto final o lugar onde na maioria das vezes o filme se
resolve”63.
Assim, é por meio da montagem que esses caminhos (texto original –
roteiro – filme) irão se concretizar. O roteiro final de um filme está intimamente
relacionado à montagem, que, no entender de Fábio Messa, ao retomar o
cineasta e roteirista russo Vsevolod Pudovkin, é:

o fundamento da arte cinematográfica, um atributo essencial do


cinema, que consiste em organizar e reunir uma série de fragmentos,
sendo eles planos, sons e cores, de forma a adquirirem valor estético.
A montagem é, então, um método para mostrar pontos de vista

61
DANTAS, Geyson Bezerra. De O matador a O homem do ano: civilização e barbárie nos
(des)caminhos da adaptação da literatura para o cinema brasileiro. 2007. 178f. Dissertação
(Mestrado em Letras). Universidade Federal da Paraíba: João Pessoa, 2007, p. 99.
62
Id. Ibid., p.101.
63
Id. Ibid., p.103.
34

compostos ou diversos sobre um mesmo tema, enfim, para mostrar


64
multiplicidade .

Assim como o cinema utiliza-se da montagem para combinar as


sequências das imagens/cenas filmadas, diversos textos literários
contemporâneos têm utilizado este recurso. É possível, baseados no elemento
montagem e na temática da violência (no caso desta pesquisa), verificar o
cruzamento entre literatura e cinema, o diálogo entre linguagens que se
afastam e se influenciam ao mesmo tempo. No livro O matador, por exemplo,
verifica-se a presença da fragmentação e justaposição de imagens
(característica da montagem fílmica) na descrição das cenas, entre outros
aspectos da linguagem cinematográfica. Essas características têm marcado a
escrita de Patrícia Melo, assim como de vários outros escritores
contemporâneos.
Além disso, “é devido à montagem, que a arte fílmica rompe com a
narrativa linear e impõe mudanças no modo de cortar e montar um texto-filme,
criando novos ritmos e novos índices temporais”65. Os pensamentos, a
inconsistência dos padrões de tempo e a descontinuidade do enredo do
romance, equivalem aos cortes e as dissoluções das imagens do filme. Ainda,
por meio da montagem, acontecimentos podem ser justapostos para marcar a
simultaneidade dos fatos, da mesma forma que pode auxiliar na representação
de ocorrências temporais distintas.
Essas questões permitem considerarmos que em uma adaptação
cinematográfica a figura do tradutor se potencializa. Uma produção fílmica
exige mais do que somente a intervenção do cineasta ou realizador do filme.
Roteirista, figurinista, fotógrafo, cenarista entre outros componentes da
produção fílmica possuem papel importante na execução do filme. Em O
homem do ano, por exemplo, Rubem Fonseca assina o roteiro e José
Henrique Fonseca assina a direção; Dado Villas-Lobos é o responsável pela
trilha sonora; Sérgio Mekler contribui com José Henrique na execução da
montagem e Michael Semanick auxilia na mixagem. Dessa forma, podemos
considerar que, no cinema, o tradutor é dúplice ou coletivo.

64
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 203.
65
Id. Ibid., p. 204.
35

Assim, percebe-se que num processo de tradução intersemiótica, livro e


filme são obras independentes, mas intimamente relacionadas. “Como
resultado do processo transformacional [a adaptação] surge como uma
estrutura nova. No entanto, não pode ser julgada se tomada apenas como
transformação. É preciso entender que ele [o texto-novo – adaptação] surge
como seu interpretante”66. Como afirma a pesquisadora em estudos
intersemióticos Thais Flores Diniz, não basta apenas verificar as
transformações, as mudanças que ocorreram na adaptação de um livro para o
filme – apenas constatar que um personagem negro, no romance, foi
representado por um ator de pele branca no filme, por exemplo. O fundamental
é interpretar o que essas mudanças acarretam, por que razão elas foram
realizadas, com que intenções.

66
DINIZ, Thais. Flores Nogueira. A Tradução intersemiótica e o conceito de equivalência. In: IV
Congresso da ABRALIC, 1995, São Paulo. Literatura e Diferença: IV Congresso da
ABRALIC. São Paulo: Bartira Editora Gráfica, 1994, p. 1003.
36

2. A VIOLÊNCIA URBANA NA LITERATURA E NO CINEMA BRASILEIROS


(1990-2010)

Dependendo das condições de tempo e lugar, o trabalho artístico,


subjetivo, está inserido em uma determinada cultura, que define
certos recursos, certa sensibilidade e certas formas particulares de
representação.
(XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico, 2005, p. 56)

A violência é e sempre será um assunto polêmico, inquietante, que induz


o ser humano a mergulhar imaginariamente em situações que implicam medo,
agressividade, sofrimento, injustiça, tragédia, conflito. Sem dúvida, é um tema
importante para se pensar o mundo. Segundo Carlos Alberto Pereira, a
violência “sempre esteve presente em qualquer coletividade, pois a luta e a
disputa são o fundamento de qualquer relação social”67. Por tal razão, é
possível considerá-la como uma das peças fundamentais na dinâmica das
sociedades, uma vez que é uma forma de “linguagem/comunicação, estando
relacionada às diferenças, à heterogeneidade presente em cada sociedade”68.
Mas como definir “violência”, um vocábulo tão abrangente e complexo?
Derivada do latim violentia, a palavra “violência” implica “arrebatamento,
caráter violento, ferocidade, rigor, severidade”69. Dessa forma, pode ser
definida como “qualidade ou efeito do que é violento; ação ou efeito de
violentar, de empregar força física contra (alguém ou algo) ou intimidação
moral contra (alguém); ato violento, crueldade, força”70.
Como se percebe, a violência pode se manifestar de diferentes formas,
abrindo um grande leque de possibilidades de classificação: violência física e
psicológica, violência sexual, violência doméstica, violência contra crianças e
adolescentes, violência contra a mulher, violência contra o idoso, violência no

67
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 22.
68
HERSCHAMANN, Micael. Imagens das galeras funk na imprensa. In: PEREIRA, Carlos
Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 169.
69
HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2008, p. 2866.
70
Id. Ibid.,
37

trabalho e violência no trânsito, por exemplo. Nessa perspectiva, inclui-se


nessa classificação a violência urbana, objeto de particular interesse no
presente estudo, uma vez que é por intermédio dessa temática que se busca
analisar o processo de transcriação do livro O matador para o filme O homem
do ano.
Embora a violência urbana, de certa maneira, abarque muitas das
formas anteriormente mencionadas, ela traz algumas características que a
diferenciam das demais – manifesta-se no alto índice de criminalidade e na
infração dos códigos elementares de convívio no espaço urbano. Entende-se
como violência urbana o fenômeno social que se traduz por um comportamento
deliberadamente transgressor e agressivo decorrente do convívio no espaço
urbano. Ela é determinada por valores sociais, culturais, econômicos, políticos
e morais de uma sociedade.71
Estudos e pesquisas revelam que as manifestações mais extremadas da
violência urbana ocorrem em sociedades nas quais há uma tradição cultural de
violência e acentuada divisões étnicas, sociais e econômicas. Um país como o
Brasil pode ser tomado como exemplo, uma vez que, historicamente, suas
relações sociais são marcadas pela violência, desigualdade e exclusão da
grande maioria da população.72 Desde a sua colonização, o Brasil foi marcado
por violentas disputas de poder, jugo e dominação, por lutas intestinas,
conflitos e discriminação, afetando todas as camadas sociais. O último quartel
do século XX marca-se pelo crescimento vertiginoso da violência no país,
resultado de um processo histórico iniciado com o extermínio dos indígenas
quando da chegada dos colonizadores europeus.
Além disso, em nosso país, os mecanismos de controle social, político e
jurídico funcionam apenas parcialmente; inevitavelmente, colaboram para o
rápido crescimento da violência urbana. Essa realidade afeta, principalmente,
os grandes centros urbanos, onde se percebem muitos dos atos criminosos de
maior gravidade, como assassinatos, linchamentos, assaltos, tráfico de drogas,
disputas armadas entre quadrilhas rivais. E, para completar, a fragilidade das

71
Informação veiculada pelo projeto Renasce Brasil, baseado no livro Renasce Brasil, do autor
Valvim M. Dutra. Disponível em: <http://www. renascebrasil. com.br/f_violencia2. htm>.
72
OLIVEIRA, Dinis de; NOGUEIRA, Silas (Org.). Mídia, cultura e violência: leituras do real e
da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 37.
38

instituições empresariais e/ou governamentais brasileiras permite que a


corrupção alimente, desmedidamente, as ações criminosas ou violentas.
No entanto, é preciso ressaltar, conforme um esclarecedor estudo da
professora e pesquisadora Marcia Regina da Costa, que a “crueldade, a frieza
e a indiferença pela vida não são próprias da sociedade brasileira, mas uma
possibilidade presente em todas ou em quase todas as sociedades de nosso
planeta no fim do século XX”73 e nesse início de século. O processo de
globalização trouxe profundas mudanças no sistema mundial. “A própria
redefinição do papel do Estado e de suas atribuições tradicionais estaria
relacionada às transformações decorrentes desse processo. Além da
economia, também o crime se globalizou. Exemplo são os cartéis de drogas e
armas que atuam em escala planetária”74.
No Brasil, o tema da violência urbana torna-se, cada vez mais, objeto de
preocupação nacional. Críticos e estudiosos a respeito do assunto no país,
entre eles Carlos Alberto Pereira75, analisam a violência como uma dimensão
bastante explícita do cotidiano social, e também um dado de fundamental
importância para o entendimento da dinâmica cultural brasileira. Se nos
reportarmos ao passado, veremos que cidades como o Rio de Janeiro e São
Paulo, em fins da década de 60 e 70, tornam-se manchetes de notícias de
jornais que atribuem especial atenção a crimes urbanos. Como se não
bastasse a violência policial e política do governo ditatorial, a população sofre
com o auge do “esquadrão da morte”76. Os anos 70 veem crimes graves como
assaltos brutais, tráfico de drogas e de armas, extermínios, homicídios e
chacinas, praticados por policiais, bandidos ou pessoas comuns, multiplicarem-
se assustadoramente. Mesmo com o fim do regime ditatorial e com a
consolidação do processo democrático, a década de 1980 (a célebre “década

73
COSTA, Márcia Regina da. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? São
Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 4, n. 13, 1999, p. 11.
74
Id. Ibid., p. 8.
75
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 121.
76
O “esquadrão da morte” surgiu em fins dos anos 50, no Rio de Janeiro. Seus integrantes
eram policiais da polícia civil que, no início, tentaram justificar sua ação homicida como uma
verdadeira missão de limpeza da sociedade de criminosos indesejáveis. No entanto, aos
poucos, os membros do esquadrão envolveram-se com quadrilhas de criminosos, grupos de
extermínio e delitos de todos os tipos. Em 1968, o esquadrão da morte passou a atuar em São
Paulo”. In: COSTA, Márcia Regina da. A violência urbana é particularidade da sociedade
brasileira? São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 4, n. 13, 1999, p. 11.
39

perdida”) perdeu a oportunidade de atenuar essa situação; na verdade, a


violência permaneceu em patamares mais que preocupantes.
Nesse contexto, na década de 1990, “o sentimento das pessoas que
vivem nas cidades brasileiras é de medo e perplexidade diante da brutalidade
de muitos crimes, assaltos e homicídios. Mas o grande espanto é com a
aparente frieza e ausência de limites de muitos criminosos que praticam tais
atos”77. Como exemplo, Márcia Regina da Costa cita o fato extremo que
aconteceu em Brasília, no ano de 1999, quando jovens de classe média alta
atearam fogo ao corpo de um indígena Pataxó que dormia nas ruas da cidade.
Também menciona a situação das pessoas que vivem em bairros populares
das cidades brasileiras, como o caso dos moradores da periferia de São Paulo
que, nos anos 80, viram suas vidas transformadas pelo aumento indiscriminado
da violência. Um dos eventos que traduz bem essa situação, afirma a autora:

é a história das gangues do “Bronx” e dos “Ninjas”, que atuaram entre


1993 e 1998, no Jardim Ângela, na zona sul da cidade de São Paulo.
Em 1992, um ex-policial militar do bairro resolveu formar uma
“guarda-mirim” reunindo adolescentes, e os ensinou a atirar para que
defendessem a população da região, tentando mantê-los afastados
dos traficantes de drogas. Entretanto, acabou sendo assassinado por
um dos integrantes da guarda, que se transformou na gangue do
Bronx, nome inspirado nos filmes norte-americanos vistos pelos
garotos. Especializados em tráfico de drogas e cobrança de pedágio
de moradores e comerciantes da região, os membros da gangue
mataram, entre 1993 a 1997, segundo levantamento oficial da polícia,
136 pessoas. Com a prisão de suas principais lideranças, um outro
grupo, também formado por adolescentes e jovens, ocupou seu lugar,
passando a disputar à bala os pontos de venda de drogas da região.
Apenas em 1998, os Ninjas mataram 22 pessoas78.

A década de 1990 foi marcada pelo recrudescimento da violência. O Rio


de Janeiro, carinhosamente chamado de “cidade maravilhosa”, torna-se palco
de chacinas como a de Acari, Vigário Geral e Candelária, dos “arrastões” nas
praias e do sequestro ao ônibus 174, em 2000. A beleza da cidade ofusca-se,
enquanto o medo e a insegurança, mais do que nunca, apoderam-se do
cotidiano das pessoas.

77
COSTA, Márcia Regina da. A violência urbana é particularidade da sociedade brasileira? São
Paulo em Perspectiva, São Paulo, vol. 4, n. 13, 1999, p. 3.
78
Id. Ibid.
40

FIGURA 3 – Chacina da Candelária FIGURA 4 – Chacina de Vigário Geral

Além desses, muitos outros episódios poderiam ser citados como


exemplos para retratar o quadro assustador da violência que, como uma
epidemia, tem maltratado a população brasileira. São assustadores os
resultados das pesquisas destinadas a verificar os índices de violência entre os
anos de 1980 a 2000. Nesse período, conforme a Síntese de Indicadores
Sociais, documento preparado para a Câmara dos Deputados e divulgado em
abril de 2004, 600 mil brasileiros foram assassinados79.
Os homicídios, na década de 1990, assumiram o primeiro lugar entre as
mortes resultantes de causas externas (ou fatores externos ao organismo
humano: lesões, envenenamentos, acidentes e violência física) – quase 40%.
Segundo estudos de Luciana da Silva Teixeira, entre 1990 e 2000, os
homicídios foram responsáveis por 401.090 óbitos no Brasil e são a principal
causa de morte para jovens entre 15 e 19 anos, sobretudo entre homens. Vale
sublinhar que, entre 1992 e 1998, a proporção de mortes por causas violentas
(homicídios, suicídios e acidentes de trânsito) entre adolescentes e jovens,
nessa mesma faixa etária, subiu de 63% para 68%. Em 1998, as maiores taxas
foram registradas em São Paulo (77,4%), Pernambuco (74,7%), Distrito
Federal (74,0%), Rio de Janeiro (73,7%) e Espírito Santo (73,3%)80, revelando

79
TEIXEIRA, Luciana da Silva. Determinantes da violência no Brasil. Consultoria Legislativa,
Brasília, nov. 2004. Disponível em:
<http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1221/determinantes_violencia_teixeira.
pdf?sequence=1>.
80
Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através do texto
Brasil termina o século com mudanças sociais, como síntese dos indicadores sociais,
41

que é nos grandes centros urbanos que os moradores ficam mais expostos a
ataques violentos81.
Para complementar, pode-se citar o mapa da violência divulgado pelo
Ministério da Justiça, a partir de um levantamento feito pelo Instituto Sangari, o
qual revela que a taxa de homicídios entre os jovens de 15 a 24 anos cresceu
de 30 para 52,9 por 100 mil habitantes entre 1980 e 2008. Esse aumento nas
mortes por homicídio, suicídio e acidentes de trânsito entre adolescentes,
desde a década de 1980, é chamado pelo sociólogo Julio Jacobo Wailselfisz,
coordenador do estudo, de “novo padrão de mortalidade juvenil”82. E ainda, de
acordo com Edinilza Ramos Souza e Maria Luiza Carvalho, dados do Ministério
da Saúde informam que o Brasil passou de 59,0 mortes por causa externas por
100 mil habitantes na década de 1980, para 72,5 em 2002. Somente em 2001,
foram registrados 46. 685 homicídios, a maior parte causada pelo uso de
armas de fogo (71,5%). Desse total, 89% ocorreram na faixa etária de 15 a 49
anos. “Em 2003, 51. 043 brasileiros foram assassinados. Foram quase 140
mortes por dia!”83, relatam as pesquisadoras. Essas estatísticas mostram “que
as taxas de mortes, por causas violentas nos principais centros urbanos
brasileiros, estão entre as mais altas do continente americano, expressando
uma tendência de crescimento que desde a década de 1980 vem se
acentuando”84.
Mas quais são os fatores que contribuem para a escalada da violência
ao longo das últimas décadas? Segundo Luciana da Silva Teixeira, uma
pesquisa (realizada em março de 2004 para a Datafolha) revelou que, para
metade dos brasileiros, o desemprego é o principal problema do país, seguido
da miséria e da violência. No mesmo ano, o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) constatou que, “quanto maior o grau de desestruturação social,

elaborado pelo departamento de Comunicação Social, em 4 de abril de 2001. Disponível em:


<htttp://www. ibge. gov.br/home/presidencia/noticias/0404sintese. shtm>.
81
TEIXEIRA, Luciana da Silva. Determinantes da violência no Brasil. Consultoria Legislativa,
Brasília, nov. 2004, p. 5.
82
CUNHA, Diógenes Marques. Mapa da violência no Brasil. Primeiro Jornal, 24 fev. 2011.
Disponível em: <http://noticias. primeirojornal. com.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=1235%3Amapa-da-violencia-no-
brasil&Itemid=153&catid=150%3Ahomicidios>.
83
SOUZA, Edimilsa Ramos de; LIMA, Maria Luiza Carvalho. Panorama da violência urbana no
Brasil e suas capitais. Ciência & Saúde Coletiva, n. Sup., vol. 11, 2007, p. 1212.
84
Id. Ibid.,
42

menor o valor atribuído à vida, o que resulta em uma taxa de homicídios maior
para uma certa região”85.
O desemprego seria uma das consequências dessa desestruturação
social; mas, por si só, ele não basta para justificar a criminalidade. Estudos
revelam que outros fatores como desigualdade de renda, o tamanho dos
municípios e sua localização espacial (proximidade a localidades violentas),
podem também explicar a violência.
Por outro lado, de acordo com Edimilsa Ramos de Souza e Maria Luiza
Carvalho, “a desestruturação familiar, o sentimento de frustração e uma busca
desenfreada de padrões sociais apresentados como possíveis em um mundo
de consumo se acirram principalmente nos grandes centros urbanos e
contribuem para a delinquência e a violência”86.
Como se percebe, cada vez mais a violência difusa provém dos mais
inesperados lugares e surpreende os indivíduos, pois, conforme Carlos Alberto
Pereira, alcança todos os segmentos sociais e manifesta-se em praticamente
qualquer contexto, ganhando assim “um ar um tanto assustador”87. Ela afeta a
população de modo assimétrico, gerando riscos que incidem de forma desigual
em função de gênero, idade, renda, grupo étnico, local de residência ou
trabalho.
A aceitação ou acomodação social diante da violação constante das
normas jurídicas e do desrespeito à cidadania são comportamentos que
também contribuem para a escalada da violência. É comum, na sociedade
brasileira, a aceitação passiva tanto da violência dos agentes do Estado contra
as pessoas mais pobres quanto o descompromisso do indivíduo com as regras
de convívio. Ficam impunes, por exemplo, o uso da tortura pela polícia como
método de investigação, a incompetência administrativa, os crimes do
chamado “colarinho branco”, as infrações de trânsito e a imperícia profissional.
Pelo descrédito dos órgãos de segurança e administração do país, é natural a
população aprovar uma punição violenta sem chances de julgamento. Não se
pode esquecer ainda outro grande vilão que faz parte desta lista de fatores que

85
TEIXEIRA, Luciana da Silva. Determinantes da violência no Brasil. Consultoria Legislativa,
Brasília, nov. 2004, p. 6.
86
SOUZA, Edimilsa Ramos de; LIMA, Maria Luiza Carvalho. Panorama da violência urbana no
Brasil e suas capitais. Ciência & Saúde Coletiva, n. Sup., vol. 11, 2007, p. 1221.
87
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 121.
43

contribuem para o aumento da criminalidade: a corrupção, fator que inúmeras


vezes tem sido manchete de notícias que divulgam ou denunciam ações ilegais
praticadas por políticos, policiais, funcionários de órgãos públicos, empresários,
entre outras pessoas.
Dessa forma, a insegurança, o medo, a desconfiança, são sensações
comuns no cotidiano de cada indivíduo, à mercê de perigos visíveis e invisíveis
que permeiam essa “selva urbana” em que se vive. Mais do que nunca, a
violência tornou-se um tema de debate nacional, um problema de saúde
pública. Assim, “a importância que o fenômeno da violência tem na dinâmica
cultural contemporânea se reflete nas artes – literatura, cinema e assim por
diante, – na mídia e no cotidiano mais amplo dos agentes sociais onde sua
presença é frequente e bastante expressiva”88. Consolida-se uma literatura que
podemos qualificar como factualista, ou seja, uma literatura que busca
representar – tanto quanto possível, com relativa fidelidade – fatos do universo
cotidiano. Dessa forma, no presente estudo, consideramos a noção de
“realismo” como sinônimo de “factualismo”, evitando assim, a ambiguidade que
o termo “realismo” pode provocar, em função do seu emprego na história da
literatura e na crítica cinematográfica.
Se, como afirmamos no início deste capítulo, a violência está presente
em qualquer sociedade e faz parte de sua dinâmica, é inegável, conforme
sublinha Pelegrini, que a “violência surge como constitutiva da cultura
brasileira, como um elemento fundador a partir do qual se organiza a própria
ordem social e, como consequência, a experiência criativa e a expressão
simbólica”89. Compartilhando das mesmas ideias, Pereira argumenta que no
plano da linguagem e das representações – neste estudo, literatura e cinema –
a violência revela-se como enunciação genuína e às vezes legítima de conflitos
vivenciados no dia a dia da vida social”90. Em outras palavras, os desequilíbrios
e instabilidades sociais, a opressão física e psicológica do cotidiano, o
exercício invasivo de qualquer poder, o (sub)mundo da marginalidade, a fúria
que explode em todos os tipos de relações, são temas que seduzem escritores

88
Id. Ibid., p. 15.
89
PELEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. In: Crítica
marxista, Rio de Janeiro, n. 21, 2005, p. 134.
90
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 15-16.
44

e cineastas. No mais das vezes, esses artistas entregam-se a uma abordagem


direta, crua e simbolicamente agressiva das consequências da violência.

2.1 A violência na literatura

Uma investigação sobre a forma de expressão da violência na arte


literária, tanto em prosa como em poesia, revela diferentes ramificações para o
tema: a conquista, a ocupação e a colonização do território; o extermínio dos
indígenas; a escravidão; as lutas pela independência; os levantes regionais; a
formação das cidades e dos latifúndios; os conturbados processos de
industrialização; o imperialismo; a ditadura... Por esse viés, a literatura
representa e denuncia o seu tempo.
Esses temas distribuem-se conforme a já clássica nomenclatura
“literatura urbana” e “literatura regional”, que sempre estiveram presentes
desde a formação da literatura brasileira e que, segundo Tânia Pellegrini 91, em
decorrência da industrialização do país, a partir da década de 1960, têm se
enfraquecido, abrindo espaço para diversas temáticas de cunho urbano. Assim,
ao longo da história da literatura brasileira, o cenário para o tema da violência
foi inicialmente o interior, o campo, o sertão; e, mais recentemente, transferiu-
se para o espaço urbano.
Com a industrialização e a expansão das cidades, o êxodo rural
sobrecarrega o espaço urbano, faveliza as periferias, produz legiões de
excluídos que rapidamente se tornam marginais. A população rural, atraída
pelas cidades, vê, assim, seus valores, usos e costumes sendo enfraquecidos
por outros que a eles se sobrepõem. Isso vai dar força à ficção centrada na
vida dos grandes centros urbanos, que populacionalmente crescem e se
deterioram. Consequentemente, “aos poucos vão ficando raros os temas
ligados à terra, à natureza, ao misticismo, ao clã familiar, ao sincretismo
religioso”92. A violência, constitutiva do espaço urbano, a partir do anos 1960,

91
PELLEGRINI, Tânia. A ficção brasileira hoje: os caminhos da cidade. Revista de Filología
Románica, Madrid, n. 19, p. 355-370, 2002.
92
Id. Ibid., p. 358.
45

começa a ser simbolizada por autores como João Antônio, Dalton Trevisan e
Rubem Fonseca. Enquanto o primeiro tematiza e mapeia a marginalidade das
ruas de São Paulo, o segundo escreve sobre Curitiba e o terceiro sobre o Rio
de Janeiro.
Para o crítico literário Antonio Candido, o escritor João Antônio (estreia
em 1963, com a coletânea Malagueta, perus e bacanaço) e Rubem Fonseca
(estreia em 1963, com Os prisioneiros) foram os propulsores do que ele
chama de “realismo feroz”. Para Candido, esses escritores:

agride[m] o leitor pela violência, não apenas dos temas, mas dos
recursos técnicos – fundindo ser e ato na eficácia de uma fala
magistral em primeira pessoa, propondo soluções alternativas na
sequência da narração, avançando as fronteiras da literatura no rumo
duma espécie de notícia crua da vida93.

Esse “realismo feroz”, segundo o crítico, revela-se mais intenso nas


narrativas em primeira pessoa, quando a “brutalidade da situação é transmitida
pela brutalidade do seu agente (personagem)”94. Dominante na ficção brasileira
atual, a narrativa em primeira pessoa é uma estratégia utilizada para impor
força, vigor ao texto e apagar a distância entre o escritor e a matéria narrada,
ambientada em espaço popular. Para tanto, o escritor renuncia ao realismo
tradicional e à narração em terceira pessoa.
Mestre do conto, Rubem Fonseca continua sendo o grande
representante dessa vertente brutalista95, tematizando a violência que atinge as
diferentes camadas da pirâmide social. Bandidos, mendigos, prostitutas e
policiais corruptos povoam as narrativas de Fonseca que, com uma linguagem
enxuta, direta, comunicativa, e muitas vezes, chocante, retrata o submundo
carioca com suas tragédias cotidianas. No entanto, destaca Erik
Schøllhammer, a tendência brutalista na literatura brasileira não possui
intenção de legitimar a crua realidade dos submundos cariocas. “Ao contrário,
[...] ao representar uma realidade inaceitável, do ponto de vista ético ou

93
CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: ____. Educação pela noite e outros ensaios. 2.
ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 211.
94
Id. Ibid., p. 212.
95
Termo usado por Alfredo Bosi no texto “Situação e formas do contemporâneo”, citado por
SCHØLLHAMMER , Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 243.
46

político, abre um diálogo com seu conteúdo desarticulado, permitindo assim


enxergar uma procura de comunicação abafada culturalmente”96.
São muitos os escritores que seguiram os passos de Rubem Fonseca e
que procuram, cada um a seu modo, explorar os marginalizados da sociedade.
Nos anos 1990, surgem muitos escritores dispostos a retratar ou desnudar a
“crueza humana”, a trazer para sua prosa temas do cotidiano, demonstrando
que seus textos buscam revelar novas facetas do universo cotidiano. Marçal
Aquino (O invasor, 2002), Fernando Bonassi (Um céu de estrelas, 1991) e
Patrícia Melo (O matador, 1995) revelam a tragédia da violência urbana; André
Sant‟Anna (A amor e outras histórias, 2001) e Marcelo Mirisola (O herói
devolvido, 2000) desvelam o cinismo e a hipocrisia da sociedade; Nelson de
Oliveira (Naquela época tínhamos um gato, 1998), o inverossímil da
realidade e Luiz Ruffato (Histórias de remorsos e rancores, 1998), os dramas
dos personagens que vivem na miséria atual97. E não se pode esquecer ainda
de Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), Dráuzio Varela (Estação Carandiru,
1999), Luiz Alberto Mendes (Memórias de um sobrevivente, 2001) e
Reginaldo Ferreira da Silva – Férrez – (Capão pecado, 2005), escritores que
em suas obras também trazem recortes extremos da torpeza humana98.
Embora todos esses escritores exponham em seus textos “marcas
demasiadamente cruéis da nossa cultura, tais como a violência, a fome e o
desemprego”99, Schøllhammer e Levy sublinham que há diferenças
significativas entre as suas propostas estéticas. Enquanto alguns buscam o
que os autores denominam de “realismo representativo”, outros procuram um
“realismo afetivo”. O primeiro, relacionado ao realismo histórico, tradicional,
está vinculado à mimesis, à criação da imagem verossímil, a uma estética do
efeito. “Nesse caso, a ideia subjacente é que a arte, ao se colocar de forma
mais objetiva possível, é capaz de representar o real „tal qual é‟ e de assim
criar a ilusão da realidade”100. O segundo, por outro lado, “ao invés de constituir

96
SCHØLLHAMMER , Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 257.
97
Id. Ibid., p. 18
98
DIAS, Ângela. Cruéis paisagens: literatura brasileira e cultura contemporânea. Niterói:
Editora da Universidade Federal Fluminense, 2007, p. 15.
99
LEVY, Tatiana Salem; SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Os novos realismos da cultura do
espetáculo. ECO-PÓS, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2002, p. 16.
100
Id. Ibid., p. 16-17.
47

um retrato que se quer fiel ao mundo extratextual, acentua a realidade do


próprio texto literário, criando uma experiência afetiva da realidade aludida e
indicada”. No “realismo afetivo”, a realidade não está na verossimilhança da
descrição, mas no efeito estético da leitura, que envolve o leitor afetivamente
na realidade da narrativa.
Buscando estratégias diferenciadas no modo de trabalhar com a
linguagem, muitos dos escritores acima referidos têm inovado na maneira de
representar o mundo – suas estratégias de realismo acentuam a experiência
sensível/ emotiva do mundo factual. Nas análises de Schøllhammer e Levy, tais
autores “evidenciam o lado cruel do real, não pelo excesso de descrições, mas,
ao contrário, por sua escassez”101. Em outras palavras, pode-se afirmar que há
uma transformação das formas representativas do universo cotidiano e das
técnicas modernas do efeito chocante, do grotesco e do escândalo. O desafio
literário se coloca em termos de uma estética do afeto – o surgimento de um
estímulo imaginativo que liga a ética diretamente à estética102. Para além da
questão “o que é isso?”, em relação ao que está sendo representado, outra
surge: “como me porto em relação a isso?” – e é esta última que, de fato,
mostra-se como um desafio ao leitor, como um estímulo para que possa
entregar-se ao desconhecido, a um mundo que, ao poucos, vai sendo
descoberto de maneira nova, nunca antes pensada ou analisada – e, de certa
forma, desafiando-o a pensar sobre sua ação existencial.
A questão da violência urbana vem alinhavada a um reconhecimento
das diferenças e desigualdades sociais e, nesse sentido, a escritora paulista
Patrícia Melo tem se destacado no cenário nacional e internacional por
conseguir traduzir a velocidade dos acontecimentos e a violência das grandes
metrópoles em arte; e, ainda, por dedicar seus livros a desvelar a situação dos
indivíduos marginalizados socialmente. Ao estilo de Rubem Fonseca, espécie
de mentor intelectual da escritora, Patrícia Melo estreou em ficção no ano de
1994 (com Aqua toffana) e demonstra um grande domínio da linguagem
literária, numa prosa ágil, irônica e marcada pelo humor ácido, principalmente
no que tange ao assunto polêmico da violência. Entre seus livros, destacam-se
O matador (1995), Inferno (2000, Prêmio Jabuti de Literatura, no ano de

101
Id. Ibid., p. 18.
102
Id. Ibid., p. 15-16.
48

2001), Mundo perdido (2006); e o mais recente, Jonas, o copromanta


(2008). Com obras traduzidas para diversas línguas, a autora é também
roteirista de cinema, teatro e televisão. Seu livro O matador foi adaptado para
o cinema, em 2003, com roteiro de Rubem Fonseca, tendo como título O
homem do ano.
Vale ressaltar que o texto de Patrícia Melo revela-se como uma possível
exceção ao convencionalismo. Geralmente, a escrita feminina apresenta
aquela preocupação quase exclusiva com temáticas memorialistas e
autobiográficas, tais como corpo, casa, maternidade, infância – enfim,
elementos que se inscrevem no universo do lar e do eu. No caso de Patrícia
Melo, encontramos um universo totalmente diferente, permeado por uma
linguagem corrosiva, agressiva, despudorada. Chama a atenção do leitor a
habilidade que a escritora demonstra em seus eficazes retratos do universo
masculino.
Nessa perspectiva, é importante atentar para o fato de que “a cadência
da linguagem na narrativa contemporânea, composta, muitas vezes, de frases
curtas e incisivas, faz com que os ficcionistas incorporem ao próprio modo de
narrar a tensão e o horror do que se narra”103. Em função da sua comunicação
literária, é possível perceber que a prosa de Patrícia Melo é um meio eficiente
de apreensão ficcional “demasiadamente humana” da violência, e também
como uma reelaboração dessa realidade – como é também a prosa de
Fonseca, seu mestre.
Segundo Fábio Messa, como a temática de Rubem Fonseca e Patrícia
Melo geralmente se atém ao crime, os valores neles evidenciados referem-se à
transgressão de regras e valores compartilhados pela sociedade. Em outras
palavras, a linguagem violenta empregada pelos escritores – oscilando entre o
penumbrismo e a objetividade – é também reflexiva:

Rubem Fonseca, assim como Patrícia Melo, não vivem o crime, a


transgressão, mas são historiadores do crime, do homicídio.
Violência, prazer e aventura aparecem „historiados‟ em sua obra,
pressupondo um intervalo entre o relato e experiência de vida,
mesmo que o narrador tente camuflar essa distância 104.

103
Id. Ibid., p. 16.
104
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 92.
49

Nesse sentido, vale destacar as ideias de Schøllhamer, quando afirma


que “comunicar a violência é uma maneira não de divulgar a violência, mas de
ressimbolizá-la”105. Certamente, muitos dos leitores dos textos de Melo e
Fonseca, se tornarão seres humanos mais sensibilizados com relação ao
universo do subúrbio, aos indivíduos a quem a sociedade negou dignidade.
Esses artistas, a partir de seu imaginário e por meios estéticos, articulam um
novo espaço comunicativo para a compreensão da violência. Como não causar
estranheza o fato de um pai de família ser um assassino compulsivo? (como é
o caso do protagonista do conto “Passeio noturno”, de Rubem Fonseca) Ou
um dentista, como o Dr. Carvalho, de O matador, contratar um assassino de
aluguel para “limpar a sujeira” da sociedade? Como se percebe, nem sempre
os criminosos vivem na pobreza ou à margem da sociedade; muitas vezes,
estão confortavelmente instalados em consultórios, condomínios de luxo ou
famílias bem estruturadas. Enfim, ressimbolizar e historiografar a violência
(tarefa a que se comprometem Melo, Fonseca e tantos outros escritores da
atualidade) é proporcionar ao leitor a possibilidade de pensar a violência sob
novas perspectivas, enxergar aspectos até então excluídos, “superar o silêncio
da não-comunicação violenta”106.
Para tanto, escritores valem-se de recursos estéticos para comunicar a
violência narrativa do texto. Entre eles podemos destacar a narração em
primeira pessoa, a escolha de vocábulos que fazem parte de um mesmo
campo semântico e cuja sonoridade é cadenciada pelo uso de aliterações e
assonâncias; a fragmentação dos períodos e das cenas descritas (linguagem
cinematográfica); a construção de capítulos curtos.

2.2 A violência no cinema

Assim como a literatura, o cinema, em sua diversidade expressiva,


desvela novos universos e contribui para que o ser humano abrigue-se diante
da crueldade da vida. Por esse viés, vale retomar as palavras do crítico de
cinema Luiz Zanin Oricchio:

105
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 252.
106
Id. Ibid.
50

O crime é uma suposta regra do funcionamento normal da sociedade.


E, como se sabe, muitas vezes o estudo da exceção é o melhor
caminho para compreensão da norma. O cinema não seria, nesse
ponto, diferente da literatura, e filmes sobre crimes despertaram
interesse desde os primórdios da arte cinematográfica107.

Conforme Daniel Caetano, crítico cinematográfico, roteirista e cineasta,


“é sempre problemático tentar achar a unidade, tentar definir os contornos de
um fenômeno tão abrangente quanto o cinema feito em um país ao longo de
uma década”108. Considerando-se que esta pesquisa procura investigar a
produção cinematográfica dos anos 1990-2010, especialmente no que tange à
temática da violência urbana, a asserção de Caetano revela-se bastante
produtiva.
Ao revisar a produção cinematográfica do período proposto,
inevitavelmente somos levados a buscar compreender o que é o “Cinema da
Retomada”. Ao tomar posse em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello
extinguiu alguns órgãos fomentadores da produção e distribuição de filmes
brasileiros, como a Embrafilme109, o Concine e a Fundação do Cinema
Brasileiro. Segundo o crítico cinematográfico Luiz Zanin Oricchio, nada foi
criado para suprir a função dos órgãos extintos, e o cinema nacional acabou
ficando “ao sabor do mercado, conforme rezava os dogmas das políticas

107
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 28.
108
CAETANO, Daniel (Org.). Cinema brasileiro 1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de
Janeiro: Azougue, 2005, p. 38.
109
“A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A) foi criada pela Ditadura Militar, em 1969,
como órgão de cooperação do Instituto Nacional de Cinema (INC) com objetivo de distribuir e
promover filmes nacionais no exterior. Em 1975, a empresa sofreu um redirecionamento,
tornando-se mais ágil para a disputa no mercado cinematográfico, começando a produzir e
distribuir filmes brasileiros. Durante os anos seguintes seu sucesso foi expressivo, tendo
conquistado cerca de 40% do mercado, incomodando as companhias norte-americanas a
ponto delas recorrerem a pressões diplomáticas a fim de pressionar o governo brasileiro a
abrandar o perfil protecionista da política cinematográfica adotada [...]. A crise econômica dos
anos 80 e a incapacidade do Estado em ampliar os investimentos na Embrafilme foram, aos
poucos, tornando a empresa incapaz de competir e regular o mercado cinematográfico. Além
disso, setores da sociedade civil estavam incomodados com a interferência do Estado na
economia e a imprensa, influenciada pela ideologia neoliberal, criticava as ações do governo
na cultura, considerando-as protecionistas”. Aos poucos então, a Embrafilme foi enfraquecendo
e Fernando Collor de Mello, ao extingui-la, no início de seu mandato, acabou com um processo
que já há tempo estava em curso. Informação disponível no blog intitulado Caleidoscópio, de
autoria da jornalista e professora Larissa Herbst, da PUC-SP e suas alunas Cyntia Calhado e
Camila Fink. Entre seus comentários sobre cinema está o texto: “Os anos 90 e o modelo de
incentivo cultural pós-Embrafilme”. Disponível em: <http://www. cinecaleidoscopio.
com.br/anos_90_modelo_de_incentivo_cultural. html>.
51

neoliberais, na época no apogeu do seu prestígio”110. Dessa forma, cinema e


cultura assumem o papel de mercadorias como outras quaisquer, e encerrou-
se um ciclo da história cinematográfica brasileira:

Um dos principais efeitos do desmonte da estrutura institucional do


cinema brasileiro, em 1990, foi a paralisação quase total da produção
de filmes nacionais de longa-metragem, pela inexistência de
mecanismos oficiais de fomento e financiamento aos produtores e
realizadores. Para ter dimensão do que significou esta medida
governamental, basta comparar a produção dos anos 70, de 100
filmes por ano, chegando a alcançar 35% do mercado interno da
década seguinte. Já em 1992, a produção foi de apenas 2 filmes111.

No entanto, no governo de Itamar Franco, a Lei do Audiovisual (1993)


cria mecanismos de captação de recursos por meio da renúncia fiscal,
estimulando a criação de leis municipais e estaduais de incentivo à cultura. Os
cineastas têm suas esperanças renovadas e o cinema nacional, que estava
sumido do horizonte cultural brasileiro, começa a reabilitar-se. A partir do ano
de 1995, a produção cinematográfica avança, e Carlota Joaquina, de Carla
Camurati, “funciona como espécie de marco zero da Retomada do cinema
brasileiro”112, pelo sucesso de público que alcançou. Foi o primeiro filme da
Retomada a passar a barreira do milhão de espectadores – chega a 1.286.000
de espectadores. E o mais importante, segundo Oricchio, é que – como no
tempo do Cinema Novo113 – esse filme voltou a falar sobre fatos da história
brasileira.
Posteriormente, produções de Renato Aragão e Xuxa alcançaram
semelhante sucesso, assim como outros que, embora com menor sucesso de
bilheteria, alcançaram reconhecimento por sua contribuição artística, vindo até
a ganhar prêmios em festivais. Destacam-se Baile perfumado (1996), de

110
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 25.
111
Informação disponível no blog intitulado Caleidoscópio, de autoria da jornalista e professora
Larissa Herbst, da PUC-SP e suas alunas Cyntia Calhado e Camila Fink. Entre seus
comentários sobre cinema está o texto: “Os anos 90 e o modelo de incentivo cultural pós-
Embrafilme”. Disponível em: http://www. cinecaleidoscopio.
com.br/anos_90_modelo_de_incentivo_cultural. html.
112
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 26.
113
O Cinema Novo surgiu nos anos 60. Esse movimento cinematográfico brasileiro pretendia
lutar contra a dominação estrangeira do mercado cinematográfico brasileiro que resultava na
alienação do povo brasileiro da sua própria realidade. Com propostas nacionalistas e
libertadoras, isto é, com uma visão crítica da realidade brasileira, teve como principais
representantes os cineastas Glauber Rocha, Cacá Diegues e Nelson Pereira dos Santos.
52

Paulo Caldas e Lírio Ferreira e Um céu de estrelas (1996), de Tata Amaral. “A


produção cresceu e se estabilizou em torno de 20 a 30 títulos por ano. Entre
1995 e 2001, o país produziu 167 longas-metragens, contra 30 nos primeiros
anos da década anterior”114. Além disso, “60 novos diretores surgiram e o
público de filmes brasileiros saltou de menos de 400 mil espectadores, de 1990
a 1994, para 25 milhões, entre 1995 e 2000”115.
Embora tenha conseguido “reviver das cinzas” e produzir muitos filmes,
alguns críticos afirmam que o Cinema da Retomada não conseguiu consolidar
uma imagem definida, uma cinematografia sólida. Prova está na variedade de
temas e gêneros divulgados: “há comédias, filmes políticos, obras de denúncia,
de entretenimento puro, filmes destinados ao público infantil, [...] policiais,
épicos, etc.”116. O lado positivo dessa Retomada consiste na satisfação de
gostos e expectativas de – acostumados aos produtos atrativos nas gôndolas
do supermercado ou nas vitrinas de shoppings, ou mesmo a uma produção
televisiva de crescente qualidade, o espectador torna-se cada vez mais
exigente.
Luiz Oricchio afirma que essa variedade de oferta de filmes (tanto no
plano dos gêneros quanto no dos estilos) pode ser também um reflexo da
“típica fragmentação mental do homem dos anos 1990. De uma maneira
deliciosamente livre e confusa, o criador pode optar entre expressar seus
fantasmas pessoais, divertir o público ou preocupar-se com a questão social do
país”117.
Dessa forma, o filme a que este estudo dedica-se – O homem do ano –
enquadra-se na produção cinematográfica da Retomada e reflete sobre o tema
da violência, estabelecendo direta conexão com o perfil dramático da
experiência social. Filmes que abordam a temática da violência permeiam o

114
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 27.
115
Informação disponível no blog intitulado Caleidoscópio, de autoria da jornalista e professora
Larissa Herbst, da PUC-SP e suas alunas Cyntia Calhado e Camila Fink. Entre seus
comentários sobre cinema está o texto: “Os anos 90 e o modelo de incentivo cultural pós-
Embrafilme”. Disponível em: <http://www. cinecaleidoscopio.
com.br/anos_90_modelo_de_incentivo_cultural. html>.
116
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 29-30.
117
Id. Ibid., p. 30.
53

elenco das melhores obras da Retomada, tanto a nível estético como


mercadológico.
Interessante destacar que Rubem Fonseca, o mais conhecido autor do
gênero noir118 no Brasil, influenciou diversos cineastas. Dois filmes do gênero –
A grande arte (1991), de Walter Salles e Bufo & Spalanzani (2000), de Flávio
Tambellini – são adaptações de obras suas. O filme Bellini e a esfinge (2001),
de Roberto Santicci, versão para o cinema de um romance de Toni Belloto,
também pode ser tomado como exemplo do gênero noir.
Além desses, podem ser citados muitos outros filmes brasileiros
consagrados ao universo temático do crime: A hora marcada (2001), de
Marcelo Taranto, Minha vida em suas mãos (2001), de José Antônio Garcia e
Condenado à liberdade (2000) – segundo Oricchio, esses são projetos
ostensivamente comerciais (termo que não é aqui utilizado em seu sentido
pejorativo), ou seja, restringem-se aos objetivos modestos desse tipo de
produto. Cada cineasta, à sua maneira, tenta conferir até que ponto vai a
resistência do público brasileiro ao filme policial feito no país. Em outras
palavras, até que ponto os espectadores conseguem desprender-se da
tradição dos modelos norte-americanos, da comparação do filme policial
brasileiro com o hollywoodiano. Muitas vezes, de acordo com Oricchio, um
filme policial brasileiro não é bem aceito porque o espectador espera que o
filme “fale inglês”, ou seja, que crie “todo um clima, um cenário que pede Nova
Iorque ou Chicago, uma mise-en-scène particular, um mood inimitável”119.
Com relação aos filmes produzidos ao longo do período 1990-2010, para
além da aceitação por parte do público ou da crítica especializada, o presente
estudo dedica-se a títulos que se debruçam ostensivamente sobre a
criminalidade e a violência urbana.
Nesse aspecto, são vários os filmes da Retomada que, assim como a
literatura desse período, apresentam uma eficaz crítica social. Títulos como O

118
A narrativa de Rubem Fonseca tem influência do gênero noir norte-americano. Fonseca
divulga no Brasil o escritor de clássicos do gênero Raymond Chandler, autor que muito
influenciou na sua escrita. No Brasil, o chamado gênero noir é conhecido como gênero policial
que tem como principais características a existência de um crime, a apresentação da
perspectiva dos criminosos – não da polícia, o uso de uma visão invertida das tradicionais
“autoridades” (como a corrupção policial), o retrato de alianças e lealdades instáveis, a
demonstração da violência bruta e pura e a manifestação de comportamentos bizarros.
119
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 190-191.
54

invasor (2001), de Beto Brant, diretor já premiado no Festival de Gramado com


o seu primeiro longa-metragem Os matadores (1997); O homem do ano
(2003), de Rubem Fonseca; O rap do pequeno príncipe contra as almas
sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna e o curta-metragem Onde
São Paulo acaba (1995), de Andreia Seligmann, mostram o que seria a grande
matriz da violência social do país: “o abismo das classes sociais, uma das
piores distribuição de renda do planeta, a indiferença das elites, o caráter
predatório do capitalismo à brasileira”120.
Segundo Walter Benjamim, “o cinema é a forma de arte correspondente
aos perigos existentes mais intensos com os quais se confronta o homem
contemporâneo”121. Nesse sentido, muitos dos filmes do período aqui estudado
podem ser tomados como exemplo. Um deles é O invasor, um dos mais
importantes filmes da Retomada, pois é um filme que aponta para outras
leituras a respeito da sociedade brasileira. Em O invasor – e, de certa forma,
em O homem do ano também – “a violência passou a ser uma espécie de
moeda comum, que atravessa e une todos os estratos sociais. Passou a ser
um denominador comum nacional”122. De forma complementar, Lúcia Nagib
relembra que esse filme “mostra que, no Brasil, ricos e pobres cheiram o
mesmo pó e se beijam na boca”123; ou seja, é um dos poucos, senão o primeiro
filme brasileiro que, ao trabalhar a temática criminal, estabelece o cruzamento
entre os espaços da periferia e do centro urbano, mostrando o choque que
essa relação pode causar ou denunciar, em termos de desagregação do tecido
social no conjunto do país.
Nessa perspectiva, filmes como O invasor, Ônibus 174 (2002) e O
homem do ano “nos colocam diante de nós mesmos, dessa sociedade de
classes esgarçada, que fomenta a violência e depois se pergunta, perplexa,
porque ela acontece”124. A temática da violência ocupa um espaço central no

120
Id. Ibid., p. 180.
121
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. In:____ et al. Obras Escolhidas. Trad.
Sérgio Paulo Rouanet et al, vol. I. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 192.
122
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 179.
123
NAGIB, Lúcia, 2002, p. 12-13 apud GANDIER, Ângela. O invasor de Marçal Aquino: quando
os manos e os bacanas cheiram o mesmo pó. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula
(Org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 135.
124
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 184.
55

cinema da Retomada porque, ao retratá-la, roteiristas e cineastas desvendam


as máscaras que ocultam a corrupção, a desigualdade, o preconceito, a
indiferença pelo próximo – entre tantos outros males que assolam a população
brasileira, cada vez mais submersa nessa violência incontrolável que irrompe
de todas as partes da intrincada malha do tecido social.
Nesse sentido, seria oportuno destacar que umas das características de
muitas produções fílmicas do período 1990-2010 são as narrações em off, que
correspondem à narração literária em primeira pessoa. Por meio dessa
estratégia cinematográfica, a visão dos fatos articula-se por meio da voz do
próprio personagem que conta e interpreta sua história, diferente das narrativas
em terceira pessoa que, por se basearem exclusivamente em diálogos,
descrições e ações, revelam os personagens por intermédio daquilo que estes
fazem ou dizem. Na narrativa em primeira pessoa, ampliam-se as
possibilidades expressivas, pois os personagens revelam-se por intermédio
também daquilo que pensam.
Uma das possíveis explicações para a recorrência da narrativa em voz
off (primeira pessoa) pode se encontrar no contexto violento em que vivemos.
A criminalidade – em forma de assaltos, roubos, sequestros ou homicídios –
está cada vez mais próxima, acuando as pessoas de todas as classes sociais.
Dessa forma, ao assistir a um filme que retrata a violência e utiliza a narração
em voz off, o espectador certamente sente-se envolvido ou próximo do
personagem e da história que está sendo narrada – é como se o relato do
personagem fosse endereçado a alguém íntimo (no caso, nós). Sendo esse
personagem o próprio agente da criminalidade – como Máiquel de O homem
do ano – ou alguém que testemunha os fatos – no exemplo de Buscapé, de
Cidade de Deus – a narrativa envolve o espectador de tal forma que as
emoções podem alcançar expressões como o choque repulsivo, a emoção
condoída ou a cumplicidade comparsa.
O documentário Ônibus 174, de acordo com Luiz Oricchio, é um dos
mais importantes documentários da Retomada, e talvez o mais impactante; é
também um exemplo de que o cinema – como a literatura ou outra forma de
expressão artística – está intimamente relacionado com o seu tempo. O
documentário é baseado no famoso sequestro do ônibus da linha 174, ocorrido
56

no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000, em que um jovem assaltou o


ônibus e tomou os passageiros como reféns.
Na época, o sequestro foi amplamente documentado e divulgado pelas
câmeras televisivas, durante as cinco horas em que o drama transcorreu. O
documentário possibilita uma reflexão: porque esse sequestro teve tanta
notoriedade nacional em um país em que sequestros a ônibus ou carros
acontecem a todo instante? Pois a resposta está na própria divulgação dada
pela televisão, veículo que consegue exercer o seu poder diante das emoções
e da consciência das pessoas.
A televisão tem sido um meio, ou uma espécie de subtema explorado
tanto por escritores como cineastas para estabelecer uma crítica social. O
sequestrador de Ônibus 174, assim como as crianças do morro, Japa e
Branquinha, personagens do filme Como nascem os anjos (1995), de Murilo
Salles, veem na televisão uma forma de conseguir desfrutar minutos ou horas
de fama. Por exemplo, no conto “O cobrador”, de Rubem Fonseca, o
protagonista da história busca na televisão um estímulo para matar – em sua
condição de excluído, ele irrita-se ao ver nos comerciais televisivos produtos de
que jamais poderá usufruir, e termina por culpabilizar o restante da sociedade
por seu inesgotável infortúnio. No mesmo sentido, Perfume de gardênia
(1995), de Guilherme de Almeida Prado, conta a história do taxista que, nutrido
diariamente pelos programas policiais que escuta ininterruptamente no rádio do
carro, torna-se obcecado pela violência urbana em suas diversas
125
manifestações.
Sem dúvida, a televisão tem exercido o seu grande poder de persuasão
e, em tempos de globalização, tem se revelado um instrumento eficaz de
informação e entretenimento. No entanto, as denúncias feitas pela mídia
parecem inócuas quando se trata de combater o aumento da violência no país,
talvez pelo fato de que a mídia contribua para espetacularizar e rentabilizar
financeiramente o fenômeno, muito mais do que para atacá-lo de forma eficaz.
Habituadas a ver diariamente uma prodigiosa quantidade de notícias sobre
eventos trágicos e violentos (notícias permeadas de atraentes anúncios de

125
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 203.
57

produtos comerciais), as pessoas acabam minimizando ou simplificando o


problema. Nesse sentido, Nogueira afirma:

As reduções e simplificações dos fenômenos sociais facilitam que


suas representações – midiáticas, artísticas ou jornalísticas – sejam
mais facilmente transformadas em mercadoria, em produtos de fácil
consumo, em espetáculo126.

Dessa forma, muitos filmes (assim como obras literárias) têm dedicado
espaço para a discussão e reflexão da interferência televisiva na vida das
pessoas e, por conseguinte, da sua influência no consumismo através das
propagandas que a televisão veicula. Ademais, esse meio de comunicação
solicita uma profunda reflexão sobre a atual constituição identitária da
sociedade contemporânea. No livro e na adaptação fílmica O homem do ano,
é possível perceber a interferência da televisão e dos comerciais na vida de
Máiquel, personagem central da trama. É em estilhaços, em fragmentos
esparsos, que o jovem matador fica “informado” sobre os fatos cotidianos. As
cenas do filme que mostram Máiquel com o controle remoto em mãos, trocando
de canal a todo instante, retratam esse aspecto: ao ser humano
contemporâneo, soterrado por uma miríade de informações, falta-lhe tempo
para absorvê-las. E Máiquel, devido à sua condição marginal (jovem
desempregado, parcos estudos, morador da favela), ignora como servir-se
delas, da mesma forma que ignora o porquê da sua existência. Ele é um sujeito
em constante crise identitária, pois ora quer ser matador, ora não.
Esses exemplos ilustram o fato de que alguns realizadores de filmes no
Brasil têm optado por fazer um trabalho em que a crítica social desdobra-se
num constante diálogo com as linguagens contemporâneas, tais como a da
publicidade, a do clipe ou da televisão, mas também dos videojogos, da
internet ou das histórias em quadrinhos. Realizadores como Beto Brant, Tata
Amaral, Fernando Meirelles, Jorge Furtado, Murilo Salles, são expoentes desse
novíssimo cinema que se faz no Brasil. Ao mesmo tempo em que fazem um
cinema que se quer veículo de denúncia social, também estabelecem o diálogo

NOGUEIRA, Silas (Org.). Comunicação, cultura e violência, fascismo, tortura e o filme “Tropa
126

de elite”. In: Mídia, cultura e violência: leituras do real e da representação na sociedade


midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 37.
58

com outras linguagens, o qual, para Luiz Oricchio, é “inevitável em um mundo


de trocas culturais mais fáceis e rápidas”127.
Vale ressaltar que essa hibridização do cinema brasileiro – em seu
diálogo com a publicidade e a televisão – ocorre pelo fato de que alguns dos
mais criativos diretores em atividade (tais como Beto Brant, Murilo Salles e Lírio
Ferreira) “dedicam-se regularmente à publicidade como forma de
sobrevivência”128. Para além desse aspecto, tanto no plano nacional quanto no
internacional, é amplamente reconhecida a força da linguagem publicitária e da
televisão brasileira129, força que, transposta para um cinema, resulta em melhor
aceitação pelo público e pelo mercado da cultura, fator essencial para a
consolidação do cinema brasileiro.
Nessa perspectiva, Orichio afirma que Cidade de Deus “funciona como
ponto de inflexão – não apenas na história do cinema da Retomada, mas do
próprio tipo de crítica que venha a ser praticada no Brasil”. Com forte
divulgação por parte da mídia e recordista de público da Retomada – 3,2
milhões de espectadores, deixando para trás produtos ostensivamente
comerciais como os de Xuxa, Angélica e Renato Aragão –, Cidade de Deus
conquistou o gosto do público. Para a crítica (tanto do filme como do livro
homônimo), faltou-lhe contextualização social e histórica – é como se aquela
favela onde tudo acontece nascesse de si mesma e não dependesse do
restante da estrutura social para permanecer em seu estado de existência
vegetativa. Em defesa de seu livro, Paulo Lins esclarece que se trata de “um
ponto de vista interior”. Críticas à parte, a verdade é que “não se podem negar
a ele a agilidade da filmagem, a fluência, o trabalho de atores, a competência
da montagem e a qualidade da música”130, fatores cuja soma resulta num
conjunto de fruição prazerosa.
No estilo do realizador de Cidade de Deus, percebe-se a influência do
cinema norte-americano. Expoentes da cinematografia como Quentin

127
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 233.
128
Id. Ibid., p. 226.
129
Vale sublinhar que novelas brasileiras são exportadas para muitos países e fazem grande
sucesso, interferindo em alguns casos nas culturas locais; a publicidade brasileira é
reconhecida como uma das mais criativas do mundo, acumulando prêmios em festivais
internacionais.
130
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 157.
59

Tarantino, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, conhecidos pela forma


crua com que representam a violência e/ou o crime, pela excelente técnica com
que trabalham a linguagem e pela inserção incidental de doses de humor em
situações violentas (especialmente Tarantino), são retomados e tornam-se
marcas patentes no estilo de Fernando Meirelles.
A atitude “espetacularizada” de Cidade de Deus talvez tenha nascido
desse conjunto de fatores: “da busca do que há de estético na destruição, na
guerra, na morte, anulando, por sua transformação em show, tudo aquilo que
essas situações possam ter de insuportável”131. No filme de Fernando
Meirelles, a violência (ou a morte) é “espetacularizada” porque ela é
“neutralizada”, isto é, à medida que o morticínio vai se desdobrando no
decorrer da história, o espectador acaba por não sofrer ou chocar-se com o
que vê na tela. E, as técnicas de filmagem, os recursos de linguagem e tudo o
que impõe o estilo do realizador faz com que se amenize qualquer desprazer
ou choque.
Cada cineasta tem o seu estilo próprio e cabe a ele escolher, dentro de
um amplo leque, as opções mais adequadas para representar assuntos tão
inquietantes e traumáticos como a violência, o crime ou a morte. Enquanto
alguns encaram a morte com pitadas de humor, como é o caso de Tarantino,
outros, como Scorsese, podem abordá-la de forma bastante incômoda, ou
ainda, de forma neutralizada ou espetacularizada, como é o caso de Fernando
Meirelles, em Cidade de Deus.
Representante, resumo ou emblema de toda uma tendência que se
esboça no cinema brasileiro, Cidade de Deus é o exemplo de um filme que
opera dentro de uma lógica de mercado, incorporando imagens e estilos de
circulação internacional. Para muitos críticos, principalmente os apegados aos
modelos do Cinema Novo, isso é motivo de crítica, uma vez que deve ser
evitado a todo custo. No entanto, o que precisa ser considerado é que assim
como os cineastas cinemanovistas, os de hoje continuam querendo “desenhar
a cara” do Brasil. Ao mesmo tempo em que o cineasta incorpora imagens e
estilos de circulação internacional, ele se vê pressionado, como artista, pelas

131
ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo:
Estação Liberdade, 2003, p. 158.
60

necessidades de posicionamento dentro da urgência da tragédia social


brasileira. 132
É claro que a maneira de representar ou simbolizar essa realidade torna-
se diferente, pois vivemos em outro contexto histórico-social, em um tempo em
que o maquineísmo se acentua e as pessoas tornam-se gradativamente mais
individualistas e fragmentárias. Dessa forma, o cinema de agora também se
torna fragmentário, sem atenuar sua intensidade expressiva. Assim, o cinema
de hoje não nega a tradição, o passado; ao contrário, busca nele inspiração,
dando continuidade ao trabalho iniciado por Glauber Rocha em 1960. Esse
cinema mais aberto, disposto a dialogar com as linguagens que estão
disponíveis é chamado por Luiz Zanin Oricchio de “cinema impuro”. Um cinema
que fertiliza linguagens e que está em busca de marcar a sua tão problemática
singularidade.
O cinema brasileiro contemporâneo pertence a uma “sociedade marcada
pela forte divisão de classes, pela violência exercida sobre os mais pobres que
são sistematicamente excluídos da cidadania, [e] tem um papel simbólico-
político importante a cumprir”133. Recentes filmes como Tropa de elite (2007) e
Tropa de elite 2 – o inimigo agora é outro (2010), de José Padilha,
evidenciam bem esse aspecto. Com enfoque diferente de produções como
Cidade de Deus e Carandiru (2003, de Hector Babenco), apresentam uma
espécie de naturalismo cruel ou uma espetacularização da violência. Com
estratégias bem definidas e exploradas conseguem levar a intensidade
dramática ao limite da agressão ao espectador.
A série Tropa de elite deixa claro que a “dimensão cruel do cinema
brasileiro contemporâneo embute uma agressividade às instituições e ao
Estado brasileiro (em particular) ou ao Brasil e ao „brasileiro‟ em geral”134.
Tropa de elite, assim como O invasor e O homem do ano – para citar
somente alguns exemplos – são filmes que, a partir da temática da violência,
buscam abrir “a possibilidade de negociação, de redefinição do entendimento

132
PELLEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Crítica
marxista, Rio de Janeiro, n. 21, 2005, p. 146.
133
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Violência e cinema: um olhar sobre o caso brasileiro hoje.
Comunicação e Cultura, Lisboa, n. 5, 2008, p. 105.
134
RAMOS, Fernão Pessoa, 2003, apud VILLAÇA, Zízia. Estética da crueldade e do luxo na
comunicação contemporânea. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula (Org.). Estéticas da
crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 65.
61

da realidade, permitindo, em última instância, construir um novo conceito sobre


dada realidade”135. São produções que tangem questões cuja formulação é
recente. Muitos títulos cinematográficos e literários – embora sob a forma
aparente de simples e tradicional representação sociológica do Brasil –
rompem o silêncio e partem ao ataque dos criminosos de “colarinho-branco” e
dos setores da classe média que transitam no universo do crime – eis aí grupos
que fomentam a criminalidade em todas as esferas da vida social no Brasil. Por
esse viés, a sétima arte também tem contemplado espaços socialmente
desvalorizados, como as periferias dos grandes centros urbanos e o interior
dos enclaves murados das prisões. Em consequência, o cinema cria
oportunidades para a expressão de um sujeito social até então sem voz: o
pobre ou o favelado.
Vale registrar que filmes como Cidade de Deus, Carandiru e Tropa de
elite são adaptações literárias: grande parte do seu reconhecimento e sucesso
de público decorre do fato de lançarem-se na esteira comercial de êxitos
editoriais. Na primeira parte deste trabalho, enfatizamos que, desde os seus
primórdios, o cinema sempre se inspirou na literatura: hoje, em pleno século
XXI, essa relação de simbiose está mais intensa do que nunca, e são inúmeros
os filmes brasileiros que traduzem para a grande tela histórias consagradas
pela literatura. A literatura e o cinema estão sempre adiante do seu tempo e
suas linguagens dialogam também com outras linguagens contemporâneas,
como a da publicidade, do videoclipe e da televisão. Se as sociedades e os
seres humanos se transformam e aprendem novas técnicas de sobrevivência,
a literatura e o cinema precisam adaptar-se às novas formas de articulação
social para alcançarem sua efetiva expressividade simbólica.

135
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al (Org.). Linguagens da violência. Rio de Janeiro,
2000, p. 21.
62

3. TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA: A ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA EM O


MATADOR E O HOMEM DO ANO

Se o cinema de um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades


dominantes sobre a nossa vida, consegue, de outro, abrir imenso
campo de ação do qual não suspeitávamos.
(Walter Benjamin. Textos escolhidos, 1980, p. 28)

Toda arte é marcada por sua função estética. De acordo com


Houaiss, a estética (do grego aisthetós, que significa “perceptível pelos
sentidos, sensível”) é “a parte da filosofia voltada para a reflexão a respeito
da beleza sensível e do fenômeno artístico. [...] é o estudo dos juízos por
meio dos quais os seres humanos afirmam que determinado objeto artístico
ou natural desperta universalmente um sentimento de beleza ou
sublimidade”136.
Nessa perspectiva, algumas indagações emergem de si próprias: como
é possível tirar prazer estético do inopinado, de tragédias ou do horror de
alguns fatos modernos? Por que sentimos prazer em ler um livro ou assistir a
um filme que explora cenas violentas? O que há de belo nesse construto
artístico?
Ora, o caráter estético de um livro ou de um filme assenta-se, quase
exclusivamente, para além do tema tratado – naturalmente, a violência urbana
escapa ao conceito de “belo” –, pois resulta precisamente do meticuloso
trabalho do artista sobre a linguagem. Assim, a autonomia e a expressividade
estética decorrem da forma como o escritor ou o cineasta exploram os recursos
criativos. Já em seu clássico Poética, Aristóteles (Séc. IV a.C.) analisa os
princípios da poesia trágica e cômica, afirmando que a imitação é uma atitude
congênita ao ser humano. Conforme o filósofo, “contemplamos com prazer as
imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância,

136
HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008, p. 1253.
63

por exemplo, as reproduções dos bichos mais desprezíveis e de cadáveres” 137.


Em outras palavras, do prazer da imitação decorreria o prazer da contemplação
do horrível, do trágico, do violento, pois o abalo sensitivo provocado pela
representação imitativa de cenas inicialmente chocantes (capazes de provocar
sentimento de pena e ou de medo) pode resultar no aprendizado de elementos
interpretativos sobre a existência humana.
Ademais, ao perceber ou captar aspectos da sociedade que inquietam
ou incomodam – no caso desta pesquisa, a violência urbana –, o artista traduz
para o livro ou filme sua interpretação dessa realidade. Dessa forma, escritor e
cineasta estão cumprindo também outra função da arte: uma função social, isto
é, possibilitar que os receptores de sua arte reflitam sobre o contexto em que
vivem, sobre sentimentos e ideias já existentes, sobre a cultura em estado de
mutação, a fim de influenciar modos e atitudes num constante interagir entre as
pessoas e a sociedade. Assim, podemos entender a estética da violência como
um veículo para a expressão ou comunicação de sentimentos intuídos pelo
artista e compartilhados pela sociedade, veículo para a provocação,
simbolização ou catarse desses sentimentos.
Com respeito ao livro O matador e ao filme O homem do ano, são
muitos os trechos ou cenas que podem ser analisados para evidenciar a
múltiplas formas da expressão de uma estética da violência. No plano da
linguagem literária e cinematográfica, Patrícia Melo e José Henrique Fonseca
servem-se de recursos estratégicos para intensificar a representação estética
dessa violência. Um primeiro exemplo pode ser encontrado na narração do
episódio do assassinato de Cledir, estrangulada por Máiquel, seu marido e
personagem central do livro:

Fiquei tão desesperado, comecei a correr, correr, vou correr até


morrer, pensei, até explodir, até voar, e corri, e cheguei em casa e me
tranquei no quarto e cheirei, a Cledir começou a bater na porta, abra,
coloquei a cômoda para bloquear a entrada, abra, abra a porta, abra
essa porta, abra essa porta, abra essa porta, abra essa porta, abri,
ela começou a berrar comigo, eu ouvia tudo, entendia tudo, ela
estava assustada, o ódio começou mesmo na boca e explodiu nas
minhas mãos e eu apertei o pescoço de Cledir, apertei, apertei,
apertei e só parei quando ouvi o osso do pescoço se partir138.

137
ARISTÓTELES. Poética. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1994, p. 243.
138
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 117.
64

No momento em que se inicia a narração desse episódio, verifica-se


que, além da repetição de alguns termos ou frases que enfatizam a ira de
Máiquel, há todo um encadeamento verbal que explora “uma violência narrativa
que vai tomando corpo gradativamente, até culminar no desejo do ódio, no
assassinato banalizado de mais uma de suas vítimas”139. Ao passo que o
personagem-narrador fala de suas preocupações, sua decepção por ter
perdido Érica, sua amante, até a descrição do assassinato da própria esposa, o
leitor sente-se envolvido por uma narração veloz, sem espaço para tomada de
fôlego. Observe-se a longa frase (um inteiro parágrafo) ininterrupta, cuja
sonoridade é cadenciada e fragmentada pela forte recorrência das consoantes
plosivas “p”, “t”, “b”, assim como da consoante vibrante “r” (em “correr”, “voar”,
“abra”, “porta”, “apertei”, por exemplo), pelas vírgulas que quase se sobrepõem
e por palavras que se repetem (como “correr”, “abra”, “porta”, “apertei”). Esses
recursos expressivos são internalizados pelo leitor como se fossem a
estilhaçada imagem sensitiva de uma mesma ideia que se alonga e se
fragmenta, como num delírio.
Para além desse aspecto, o leitor mergulha numa ambiência mental
negativa criada pela justaposição de palavras que expressam ideias
desagradáveis, tais como “desesperado”, “morrer”, “explodir”, “tranquei”,
“bater”, “bloquear”, “berrar”, “assustada”, “ódio”, “apertei”, que culminam com o
verbo “partir” – tal como se houvesse uma progressão gradativa que se encerra
com a morte de Cledir.
Esses elementos estéticos e linguísticos aproximam o leitor do
personagem, numa espécie de superposição identitária: assim como o leitor
recebe as informações sem tempo para refletir sobre elas, numa espécie de
frenesi, a Máiquel também faltam tempo e fôlego para pensar antes de agir. A
rapidez da narração – evidenciada pelos vocábulos curtos, pelo longo período
cadenciado por vírgulas, por exemplo – reflete o ato incontido do personagem.
Na transposição desse texto para a linguagem fílmica, percebe-se que
os artifícios expressivos do cinema mantêm a tensão dramática materializada
no livro. Apesar de Máiquel não estar sob efeito das drogas, como no livro,

139
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 240.
65

outras estratégias específicas da linguagem cinematográfica conseguem


representar a perturbação e o conflito emocional do protagonista. Um desses
recursos é a sonoridade: os gritos de Cledir reforçam a imagem de Máiquel
sentado na cama, visivelmente tenso e nervoso, e traduzem a explosão
emocional do jovem que vai culminar no assassinato da esposa. Quando
Máiquel sai subitamente do quarto e estrangula Cledir, silencia-se o som de
gritos em forma de eco – e o silêncio representa a falta de ar provocada pelo
estrangulamento da moça – logo se ouvindo o estalo da batida da cabeça na
parede. Toda essa cena, numa expressiva combinação de imagem e som,
insere o espectador na ação representada, permite a ele perceber, assim como
o leitor do livro, a violência narrativa, ou seja, o ódio que, progressivamente
alimentado, pode acabar em um assassinato brutal.
O som incidental contribui para a expressividade da cena: a batida da
porta do quarto, ao se fechar; os socos de Cledir na porta; os passos de
Máiquel ao agarrá-la, empurrando-a contra a parede; o som abafado da batida
da cabeça da vítima, encerrando-se com a imagem de seus olhos arregalados.
Os recursos sonoros revelam-se agressivos aos ouvidos do espectador, tanto
quanto as consoantes plosivas e vibrantes que transformam o texto de Patrícia
Melo em uma melodia desagradável ao ouvido do leitor. Enquanto o texto
literário serve-se de estratégias linguísticas para representar a progressão de
sentimentos negativos que culminam no assassinato, a narrativa fílmica, por
seu lado, recorre à sonoridade, às cores intensas matizadas pelo jogo do claro-
escuro, à expressão facial dos atores, à posição da câmera, para sugerir o
mesmo sentimento de desconforto, angústia e dor.
Após o estrangulamento de Cledir, o rosto de Máiquel é focalizado em
close cerrado, muito próximo à câmera. Aspectos como o movimento mecânico
do personagem, o gesto de colocar desamparadamente a mão na cabeça, o
gradual ofuscamento da claridade que vem da janela em plano de fundo,
traduzem ao espectador a perturbação do jovem matador. Além disso, a cor
escura do quarto reforça a ambiência emotiva. A claridade que vem da janela
divide o quarto segundo um expressivo jogo de claro-escuro: uma tonalidade
mais escura, outra mais clara. Quando Máiquel está sentado na cama, seu
corpo projeta uma sombra que reflete áreas sombrias do quarto, sugerindo ao
espectador que o personagem oscila entre sua parte “clara” (valores positivos)
66

e seu lado “escuro” (valores negativos). Por outro viés, a câmera em ângulo de
contra-plongée (o rosto de Máiquel é focalizado de baixo para cima) sugere um
estado de superioridade do personagem diante da situação: seu ódio é superior
naquele momento, sua força é irrepresável. São estratégias apropriadamente
exploradas pela equipe de produção do filme (realizador, fotógrafo, cenarista,
figurinista etc.) para transpor em imagens fílmicas a carga dramática emocional
que se manifesta na articulação de palavras e sonoridades no texto de Patrícia
Melo.
São muitos os fatores que podem ser levados em consideração para que
se possa compreender o comportamento violento de Máiquel no enredo das
obras. Tanto no livro como no filme, a violência é apresentada como
decorrência de três fatores que tomaremos como os mais impactantes do ponto
de vista social, para fins de análise no presente estudo: violência e corrupção;
violência e exclusão social; e, por fim, violência e fatalismo. Veremos de que
forma esses fatores emergem na obra de Patrícia Melo e de que recursos ou
estratégias se vale José Henrique Fonseca para transpô-los para a linguagem
cinematográfica.

3.1 Violência e corrupção

Em um esclarecedor estudo sobre a violência urbana, o sociólogo Álvaro


Gullo propõe algumas conclusões a respeito das articulações entre práticas
culturais e violência social (usada por esse estudioso como sinônimo de
“violência urbana”):

1. A violência é um fenômeno social inerente a qualquer tipo de


sociedade;
2. A forma sob a qual se manifesta reflete o tipo de sociedade e
mostra o seu significado nessa sociedade;
3. A violência depende, portanto, de estímulos provenientes da
própria sociedade140.

140
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social:
revista de sociologia da USP, São Paulo, vol. 10, n. 1, mai. 1998, p. 106.
67

No que se refere especialmente ao terceiro aspecto, é possível


considerar que, entre tantos estímulos à violência alimentados pela sociedade,
a corrupção é um dos fatores mais efetivos. Para Houaiss, a corrupção é
definida como “ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa
própria ou alheia, geralmente com oferecimento de dinheiro” ou “disposição
apresentada por funcionário público de agir em interesse próprio ou de outrem,
não cumprindo com suas funções”141.
No Brasil, os escândalos envolvendo casos de corrupção são divulgados
quase diariamente, e seus protagonistas são empresários bem sucedidos ou
agentes do estado (políticos, magistrados, policiais, administradores públicos,
pequenos funcionários etc.), mas também cidadãos comuns. Desde o ano de
1995, quando foi divulgado o seu primeiro relatório, a ONG Transparência,
Consciência e Cidadania (TCC-Brasil)142 vem divulgando anualmente os
índices de percepção de corrupção no Brasil. Numa escala de zero a dez – em
que dez indica que os servidores são percebidos pela população como pouco
corruptos e zero corresponde à percepção de corrupção disseminada – os
índices de 1995 a 1999 foram os seguintes: 2,7 (1995), 2,96 (1996), 3,56
(1997), 4 (1998) e 4,1 (1999). Apesar de esses números mostrarem uma
evolução positiva, a percepção de corrupção no Brasil permanece em nível por
demais preocupante143.
As pesquisas divulgadas nos anos subsequentes mostram que a
primeira década de 2000 segue pelo mesmo caminho. O relatório da ONG
Transparência Internacional, divulgado em outubro de 2010, indica que nesse
ano o Brasil obteve a 69ª posição no ranking de percepção de corrupção. A
pontuação dada ao país no relatório permaneceu a mesma de 2009: 3,7144.
Os brasileiros têm assistido, perplexos, a imagens e a notícias de
policiais envolvidos em atividades criminosas, tais como formação de quadrilha,

141
HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008, p. 848.
142
Transparência, Consciência & Cidadania – TCC-Brasil é uma entidade não governamental,
apartidária, independente, sem fins lucrativos, fundada em fevereiro de 1996 e sediada em
Brasília. Está afiliada à Transparency Internacional (Berlim, Alemanha).
143
GASPAR, Malu. China lidera o ranking de “corruptores”. Folha de São Paulo, São Paulo, 27
out. 1999, p. 12.
144
IDOETA, Paula Adamo. Brasil ocupa a 69ª posição em ranking de percepção de
corrupção da Transparência Internacional. Out. 2010. Disponível em:<http://noticias. uol.
com.br/bbc/2010/10/26/brasil-ocupa-a-69-posicao-em-ranking-de-percepcao-de-corrupcao-da-
transparencia-internacional. jhtm>.
68

associação ao tráfico (drogas e armas), extorsão e corrupção sistemática.


Segundo James Carvalho, diretor da ONG Justiça Global e professor da
Universidade de Harvard, o primeiro passo para baixar o índice de
criminalidade no Brasil é o combate à corrupção policial, que facilita outras
práticas criminosas e é tão nociva quanto a corrupção política, uma vez que
impede o ataque frontal à criminalidade145.
O romance O matador denuncia essa realidade. Sua obra adaptada – o
filme O homem do ano – mantém o mesmo eixo narrativo do texto literário: a
ascensão (e decadência) de um jovem de periferia por meio do crime. A
narrativa começa quando Máiquel, para pagar uma aposta que havia perdido,
pinta o cabelo de loiro e não mais reconhece o perdedor que enxergava no
espelho polido, sente-se agora outra pessoa, superior a si mesmo: “Aquela
tinta tingiu alguma coisa muito profunda dentro de mim. Tingiu a minha
autoconfiança, o meu amor-próprio. Foi a primeira vez em vinte e dois anos,
que olhei no espelho e não tive vontade de quebrá-lo comum murro”146.
A partir de então, ao sabor do acaso e desconhecendo os porquês,
Máiquel acaba se envolvendo em uma série de acontecimentos que o levarão a
cometer crimes dos mais violentos. Após propor o duelo com Suel, por
exemplo, Máiquel sente-se arrependido e amedrontado: “No dia seguinte,
acordei com dor de dente e não fui trabalhar. Estava arrependido de ter
proposto o duelo [...] Senti medo, eu nunca tinha pego numa arma”147. Portanto,
o simples pagamento da aposta perdida para Suel é o estopim para atos que
nem ele próprio compreende.
Livro e filme denunciam a degradação da malha social no Brasil: ao
assassinar Suel, Máiquel obtém respeito e admiração das pessoas humildes da
comunidade em que vive, assim como daquelas de classes mais abastadas.
Suel era conhecido assaltante, elemento nocivo para a comunidade; por isso,
ao eliminá-lo, Máiquel é recompensado com presentes de natureza diversa,
estranhando essa situação num primeiro momento, mas logo se habituando
com a ideia de ser admirado. Assim, a fragilidade do sistema judiciário no Brasil

145
Informação retirada da notícia intitulada Fim da corrupção é o primeiro passo, diz o
diretor da Justiça Global, divulgada no site do programa Brasil Urgente, da emissora de
televisão SBT, em 9 jul. 2008. Disponível em: <http://brasilurgente. multiply. com/journal>.
146
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 11.
147
Id. Ibid., p. 14.
69

e a distribuição assimétrica de justiça fazem com que a comunidade aceite e


incentive o surgimento de justiceiros privados, instituição que se transforma em
grupos de extermínio no plano da realidade nacional, grupos conhecidos como
“esquadrão da morte”. Esse é o contexto em que o livro e o filme denunciam a
decomposição social em nosso país.
No entanto, Máiquel só se torna um reconhecido matador profissional
porque é incentivado a tanto por pessoas que o motivam a escolher o crime
como meio de facilmente obter dinheiro e prestígio social. O doutor Carvalho e
o delegado Santana são seus principais instigadores. O primeiro, ao constatar
que Máiquel necessita realizar um tratamento dentário, aproveita o fato de o
jovem não possuir recursos financeiros para tal e propõe-lhe um acordo: ele
terá dentes bons em troca da prestação de serviços ao dentista – matar o
possível estuprador de sua filha. O delegado usa de suas atribuições oficiais e
de sua rede de influências para ocultar os atos criminosos de Máiquel, numa
clara referência à corrupção policial que vigora no país.
Vale destacar que o protagonista da história, mesmo contra sua própria
vontade e sentindo-se desconfortável diante da situação, aceita realizar o
serviço por sentir dores e por ter vergonha do mau estado de seus dentes:
“Não achava nada boa a ideia de ter que matar outro cara. Mas meu dente doía
pra caralho”148; “Fiquei com vergonha de abrir minha boca, meus dentes todos
fodidos”149 (essa frase é retomada em voz off no filme). Aos poucos, graças ao
crime, “o mundo do consumo [...] aparecerá ao indivíduo [Máiquel] como um
mundo de liberdade, espaço real e imaginário no qual ele se sentirá
reumanizado”150.
No entanto, para sentir-se incluído socialmente, para alcançar seus
objetivos, o protagonista deixa de ser sujeito da ação (como no início do livro,
quando mata Suel) para tornar-se parte de uma engrenagem social, de uma
rede de contatos que financia e sustenta a criminalidade, que lucra com atos
ilícitos. Assim, Máiquel torna-se sócio da empresa de fachada criada pelo

148
Id. Ibid., p. 33.
149
Id. Ibid., p. 30.
150
NOGUEIRA, Silas, 1998, p. 40-41 apud FIRMIANO, Frederico Daia. Da atomização do
indivíduo aos movimentos sociais contemporâneos: notas sobre o complexo midiático, a
política e a formação cultural. In: OLIVEIRA, Dinis de; NOGUEIRA, Silas (Org.). Mídia, cultura
e violência: leituras do real e da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac,
2009, p. 225.
70

doutor Carvalho e pelo delegado Santana para prestar serviços a empresários


e autoridades públicas (mas também para extorqui-los). As execuções são
realizadas por Máiquel juntamente com seus comparsas – Marcão, Inoque,
Robson, Pereba, Zé Galinha, entre outros.
A violência, sob a forma de assassinatos encobertos por autoridades, é
apresentada como mercadoria, como negócio lucrativo, sustentado por uma
extensa rede de corrupção que alcança a esfera dos poderes executivo,
legislativo e judiciário. Por esse viés, ao denunciar a corrupção policial no
Brasil, Patrícia Melo também enfatiza a participação da classe média em
práticas criminosas. Para muitos espectadores (principalmente os que não
conhecem o texto literário), o grande mérito da adaptação fílmica talvez seja o
de inverter a ordem de se perceber a realidade em que vivemos, transpondo a
classe média do seu habitual papel de vítima ao papel de algoz de si mesma.
Assim, O matador e O homem do ano aproximam-se e dialogam por meio de
um único e mesmo viés: a violência, a corrupção e o crime permeiam todas as
camadas da sociedade.
Vejamos como José Henrique Fonseca traduz para a linguagem
cinematográfica alguns episódios do livro que tratam da corrupção.
Comecemos pelo episódio em que Máiquel chega ao bar do Gonzaga e lá se
encontra com policiais que o cumprimentam pelo fato de ele ter assassinado o
bandido Suel, ao invés de detê-lo por homicídio (o personagem pensa
inicialmente ser vítima de uma emboscada). No livro, o acontecimento é assim
narrado:

Eram quatro horas da madrugada, eu estava deixando São Paulo.


Ficaria um mês, dois meses, o tempo necessário para que as coisas
se acalmassem. [...] pensei em parar no Gonzaga para tomar um
café. De lá, eu pegaria a estrada. [...] Uma viatura parou diante do bar
[...]. Senti meu corpo se transformar em um iceberg. Uma
emboscada, eu pensei, O PM caminhava na minha direção [...] e
Gozaga falou bem alto, olhando para o policial, foi ele, foi ele mesmo
quem matou Suel. Fiquei cego, por um instante, esse Gonzaga é um
filho da puta, um imbecil completo e minha pernas não respondiam, e
antes dessas frases se formarem na minha cabeça, [...] o PM já
estava dando um tapinha nas minhas costas e dizendo que admirava
os homens corajosos. Ele falou isso e alguma coisa se quebrou
dentro de mim. Iceberg. O policial pegou empadas e Cocas em latas
e saiu [...] avançando e entrando na viatura onde outros cinco
policiais esperavam, todos me acenando as mãos, sem de fato
acenar, acenando com os olhos, um jeito que tradicionalmente os
71

homens usam para se cumprimentarem quando não se conhecem e


se admiram.
Eu também comi empadas e bebi Coca-Cola, tudo de graça. Entrei no
carro e disse para mim mesmo: eu sou forte. Eu sou bom. Eu sou
inocente. Não tenho motivos para fugir. 151

Ao traduzir em imagens esse conjunto de frases, o roteirista Rubem


Fonseca e o realizador José Herique Fonseca introduzem algumas mudanças
que vão incindir sobre o modo de o telespectador apropriar-se das
informações. Enquanto no livro o encontro com os policiais ocorre no período
da madrugada, o filme faz tudo acontecer durante o dia, e o próprio policial
enuncia sua sentença emblemática: “Valeu aí, ajudou a tirar o lixo da rua”. O
que tais mudanças implicam, qual seria o efeito da alteração?
Certamente, ao mostrar um policial cumprimentando amistosamente
(dando um “tapinha” nas costas) um assassino em plena luz do dia, o filme
intensifica ou reforça a expressão estética da corrupção que permeia todas as
camadas da sociedade no Brasil. No livro, o fato poderia ter sido testemunhado
por poucas pessoas, pois a frequentação de bares populares é maior durante o
dia. Transcriar esse episódio do livro e optar por situar a cena durante o dia
possibilita apresentar ao espectador a ideia de que a corrupção faz parte do dia
a dia das pessoas, realiza-se sem necessidade de ocultamento. No filme, por
esse mesmo viés, a frase proferida pelo policial resulta em maior impacto sobre
o espectador, uma vez que retoma e exterioriza a posição intolerante de muitas
pessoas com relação ao falho sistema judiciário brasileiro, no que tange à
punição de bandidos ou criminosos.
No entanto, é importante atentar para o fato de que o verbo “admirar”,
presente na frase proferida pelo policial no texto original, é traduzido por meio
de gestos e imagens na cena fílmica: na cordialidade do “tapinha” às costas e
na expressão facial do dono do bar ao dizer para os policiais que Máiquel é o
assassino de Suel. É nítido o orgulho e admiração do comerciante pela
coragem de Máiquel, que terminou por executar friamente um bandido que há
tempos ameaçava a tranquilidade e a segurança do seu bairro e de seu
estabelecimento comercial.
No texto literário, as frases curtas concatenadas por vírgulas expressam
a tensão emocional que marca o personagem naquele momento. O efeito é

151
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 20.
72

reforçado por palavras que expressam valores negativos, tais como “deixando”,
“parar”, “viatura”, “emboscada”, “iceberg”, “filho da puta”, “imbecil”, “matou”,
“cego” e “não”, utilizadas pela autora para descrever o episódio até o momento
em que os policiais chegam ao bar. Depois que o policial lança sua sentença
redentora, o texto passa a construir-se com palavras que expressam valores
positivos, tais como “admirava”, “corajosos”, “avançando”, “entrando”,
“acenado”, “cumprimentarem”, “comi”, “bebi”, “graça”, “forte”, “bom” e
“inocente”. O eficaz artifício linguístico tem a função de expressar o
atenuamento do medo e da tensão do jovem matador, condição para sua
decisão de não mais fugir.
No filme, essa ambiência emocional é traduzida ao espectador pela
expressão facial do protagonista, detalhada pela proximidade da câmera com
relação ao rosto de Máiquel. O enquadramento da imagem, em primeiro plano,
facilita o registo de detalhes importantes que expressam a situação de
inferiorioridade em que se encontra o personagem, até que os cumprimentos
recebidos do policial invertam sua posição. A voz baixa de Máiquel (“vou tomar
só uma coca-cola sem gelo”) e seu gesto de baixar a cabeça (como se
quisesse esconder-se) traduzem a preocupação do jovem com a possibilidade
de ser preso. O som incidental do “tapinha” nas costas e a expressão de
Máiquel ao olhar para os policiais traduzem a surpresa do rapaz ao ser
cumprimentado por eliminar o “lixo da rua”.
Nesse episódio, ainda que apenas implícita, a violência é apresentada
como decorrência da corrupção e de outros aspectos sociais que contribuem
diretamente para sua reprodução no tecido da sociedade. A violência é
estetizada por tanger questões que afetam diretamente a vida dos
telespectadores e dos leitores.
Por outro lado, é preciso analisar o envolvimento de Máiquel com o
corrupto delegado Santana, personagem dissimulado e inescrupuloso, que
procura por Máiquel para propor-lhe sociedade numa empresa de segurança e
vigilânica patrimonial – em verdade, um conluio para praticar a extorsão e o
achaque em meio à população local:

Daríamos segurança para o bairro: desde os favelados, faça as


contas, se cada barraco pagar cinco dólares, ele disse, o preço tem
que ser em dólar, verdade seja dita, o dólar é a nossa moeda, se
73

cada barraco pagar cinco dólares, quinhentos barracos, dois mil e


quinhentos dólares, isso não é nada, é merreca, porque tem os
pequenos comerciantes, os grandes comerciantes, os industriais, as
multinacionais, os milionários, [...] os deputados, os inimigos dos
deputados [...] tem tudo isso e todo mundo vai querer o nosso
serviço, ele disse [...].
Santana entraria com o escritório, as secretárias, o telefone, a placa
da firma, o advogado, e, claro, ele disse, com o poder, as influências,
a cobertura. Eu entraria comigo mesmo, com a minha equipe, com o
que eu sabia fazer, ele disse. O meu nome não vai aparecer no
contrato social, ele disse, você sabe, eu sou delegado 152.

Como se percebe, o crime é apresentado como um negócio lucrativo,


como uma mercadoria facilmente vendável no âmbito da cultura brasileira.
Essa evidência claramente exposta no livro é mantida na produção fílmica. Nos
primeiros instantes do encontro do delegado com Máiquel, a expressão facial
mostra a tensão do jovem, ao mesmo tempo em que o delegado mostra-se
sério e arrogante, demonstrando o poder que lhe advém de seu círculo de
contatos. Dentro do carro, tranquiliza gradativamente Máiquel, e diz: “Quem me
deu seu endereço foi o doutor Carvalho, eu tenho acompanhado aí o teu
serviço, o pessoal aqui do bairro está todo do seu lado, até os comerciantes te
respeitam. Eu tenho uma proposta para te fazer”. 153
Nota-se que o filme traduziu em imagens certas frases essenciais para a
construção da ideia de que a polícia corrupta, ao invés de combater a
criminalidade, contribui para reproduzi-la. O espectador fica sabendo da
proposta do delegado a Máiquel por meio da voz off, que corresponde à
narração em primeira pessoa do livro. No texto, enquanto propõe sociedade ao
jovem assassino, o delegado recebe um prato de carne mal passada
especialmente preparada a seu pedido. Máiquel compara tais hábitos
alimentares com os do dentista Carvalho: “[...] o dr. Carvalho também era
assim, carne todo dia, carne para mim, dizia o dr. Carvalho, carne para mim
tem que ser sangrando, [...] a carne do delegado também sangrava, ficava uma
poça de sangue no prato”154.
No filme, o delegado explica o funcionamento da empresa de segurança
enquanto saboreia seu prato de carne mal passada. Aqui, a enfase é dada ao
gesto, à forma como o delegado saboreia o alimento: com ganas e rapidez de

152
Id. Ibid., p. 123.
153
FONSECA, Rubem. O homem do ano (Roteiro). p. 59. Disponível em: <http://www.
roteirodecinema. com.br/roteiros/longas. htm#fghi>.
154
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 123.
74

quem está com muita fome. Essa atitude leva o telespectador a refletir: como
uma pessoa pode realizar uma refeição com tanta naturalidade, propondo um
négocio em que o lucro se baseia na eliminação de vidas? Talvez a resposta
esteja nas conclusões de Eric Hobsbawm sobre uma das grandes lições do
século XX: os seres humanos aprenderem que podem “viver nas condições
mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis”155. No filme, a imagem de
Santana alimentando-se de carne é intensamente expressiva e violenta no que
tange ao descaso para com a vida humana, no que se refere às articulações
entre o crime e o derramamento de sangue expostos no livro. No contexto da
narrativa literária, percebe-se um clima emocional negativo a partir da palavra
“sangue”, que se intensifica pela associação a outras expressões, tais como,
“carne”, “todo dia”, “sangrando” e “poça de sangue”; esses elementos
linguísticos induzem o leitor a imaginar situações também negativas, tais como
“crime”, “ilegalidade”, “corrupção”, “agressão” e “morte”, fatores que serão
materializados por meio do funcionamento da empresa de segurança.
Observa-se que a adaptação preserva frases essenciais da obra literária
e, através dos gestos e expressões facias dos personagens, procura manter a
matéria narrada na obra literária. Toda a cena do diálogo entre o delegado e
Máiquel foi enquadrada utilizando o primeiro plano, ideal para aproximar o
espectador dos fatos narrados. Destaca-se a imagem em que os dois
personagens estão conversando dentro do carro. A câmera projeta a imagem,
de tal forma, que o espectador sente-se participante da ação, como se
estivesse no banco de trás do carro, como caroneiro, cúmplice da conversa.
Enquadrando a imagem em primeiro plano, destacam-se alguns
detalhes que chamam a atenção do espectador e que traduzem a ambiência
emocional do texto literário. Na cena em que os personagens estão no
restaurante, o enquadramento no rosto do delegado valoriza o ato de saborear
o alimento. A carne, neste momento, é claramente colocada em evidência.
Além disso, a claridade refletida pelas luzes do abajur que está sobre a mesa,
assim como de outros dispostos pelo ambiente, sobrepõe-se à cor escura, num
jogo de claro-escuro, evidenciando os pensamentos do protagonista que

155
HOBSBAWM, Eric (1995, p. 22), apud ALMEIDA, Suely Souza de. Violência urbana e
constituição de sujeitos políticos. In: PEREIRA, Carlos Alberto et al. Linguagens da violência.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000p. 98.
75

precisa decidir se vai assumir ou renunciar a uma vida criminosa. Dessa forma,
novamente, temos uma cena em que o jogo de luzes é muito expressivo, pois a
tonalidade clara e escura do ambiente traduz a escolha de Máiquel: o escuro
estaria relacionada à aceitação da proposta, isto é, tornar-se matador
profissional, algo negativo; o claro, relacionado a fatores positivos, remete à
eventual vida correta que Máiquel poderia escolher trilhar.
Para reforçar ainda mais a ideia de que a corrupção policial contribui
para a proliferação da violência ou para a disseminação da ideia de que o
crime pode ser lucrativo, um meio fácil de ascensão social, o filme apresenta
uma cena muito interessante cortada pela seguinte declaração de Máiquel
(idêntica ao livro), em voz off: “Até matar o primeiro cara a gente pensa que
existe essa história de aprender a matar. Aprender a matar é igual a aprender a
morrer, uma dia a gente morre e pronto, acaba, se você tem uma arma na mão,
é isso, você já sabe tudo”156.
Durante essa fala e com fundo sonoro musical (a música intitulada
Matador, interpretada pelo grupo musical argentino Los Fabulosos Cadillacs),
aparecem cenas superpostas de Máiquel e sua “equipe” cometendo
assassinatos e assaltando empresas, a fim de forçá-las a contratarem os
serviços da empresa de segurança. Logo, surge a imagem do jovem
comprando roupas, carro e casa, agora feliz e deslumbrado com sua nova
condição social. A música, neste caso, torna-se elemento indispensável, pois
cria uma espécie de energia muscular para a imagem filmada obter vida.
Observa-se que “a música não é um elemento subordinado à imagem, mas
forma com ela um todo integrado, proporcionando-lhe uma dimensão vital”157. O
estilo rock latino158 empregado pela música contribui para transmitir o clima
emocional descrito no livro, mimetiza a euforia, a alegria, o entusiamo de
Máiquel por usufruir de bens materiais que jamais pensava obter tão

156
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 93.
157
DIAS, Claudia Rodrigues. Análise intersemiótica: cinema e literatura. Academos – Revista
Eletrônica da FIA. São Paulo, v. III, n. 3, jul./dez. 2007, p. 6.
158
O rock latino é o termo utilizado para referir-se a um gênero musical de alcance internacional,
característico da América Latina, das Caraíbas e das comunidades latino-americanas e
caribenhas dos Estados Unidos, que se distingue usualmente pela fusão da música rock com
os ritmos latino-americanos e caribenhos (como o merengue, a salsa, o chá-chá-chá, a cumbia)
e pelo uso de idiomas e dialetos correspondentes a essas regiões e comunidades. Fez grande
sucesso nos anos de 1990. Os principais representantes encontram-se no México, Chile,
Argentina e Colômbia. Disponível em: <http://pt. encydia. com/es/Rock_latino>.
76

rapidamente. As imagens abaixo, que fazem parte de toda essa cena,


traduzem uma das críticas sociais que o livro O matador busca denunciar, por
meio de palavras:

FIGURA 5 – Corrupção e classe médio-alta financiam o crime e a violência

Constata-se que uma imagem ou uma cena numa sequência bem


organizada pode resumir o que, no livro, foi preciso páginas para descrever.
Isso exemplifica uma das diferenças entre linguagem literária e cinematográfica
desenvolvidas na primeira parte deste estudo: o que é extenso em um livro
pode ser condensado em um filme, e vice-versa.
Com a imagem de arma de um lado e dinheiro de outro, o telespectador
percebe, talvez, o grande mérito do filme: revelar a hipocrisia que existe na
sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em que O matador e O homem do
ano mostram os comerciantes, donos de empresas, médicos, executivos, ou
seja, a classe médio-alta, o topo social – representada no personagem doutor
Carvalho e sua rede de relações – condenando os pobres, os favelados, os
mulatos, perpetuando a ideia de que estes são os grandes culpados pela
violência descontrolada que se enraizou na sociedade, também a apresenta
como produtora, financiadora da violência. Por outro lado, não se pode deixar
de analisar, conforme alerta a pesquisadora e estudiosa Maria Luiza Belloni,
que “a corrupção, a cooptação e a violência sempre foram armas usadas pelas
77

elites na manutenção do sistema de dominação”159. Ao mesmo tempo em que


lucram com o crime, a elite e os policiais corruptos mantêm a ordem e o
controle do bairro em que vivem e trabalham, conforme são representados nas
duas obras. Sem dúvida é uma acusativa visão da classe médio-alta brasileira,
pouco explorada pelas artes até então.

3.2 Violência e exclusão social

Para Anthony Pahnke, no cinema brasileiro contemporâneo, “o sujeito da


narração é „democratizado‟ no sentido que o poder de narrar agora está nas
mãos do sujeito que experimenta a violência. O sujeito não precisa de uma
elite, ou de alguém fora, para relatar sua experiência”160. Essa mudança da
narração, com sua ênfase contemporânea na primeira pessoa, valoriza,
segundo o autor, a perspectiva do lado dos sujeitos que vêm do mesmo lugar
onde tem origem a violência. Dessa forma, o personagem que relata sua
história nos reapresenta a realidade através de seus olhos. “O que é chave é
que o narrador nesses filmes não é onipotente, mas um participante no
mundo”161.
Assim como para o cinema, essa consideração vale também para a
literatura brasileira contemporânea que, desde a década 70, com influência de
Rubem Fonseca, tem dado voz aos marginalizados, mais especificamente, aos
assassinos e delinquentes. Patrícia Melo, com a mesma veia crítica do mestre,
tem se destacado no cenário nacional como escritora pela capacidade de
desvendar a mente de criminosos. No caso do livro em estudo – O matador –,
o discurso do narrador-personagem Máiquel está dentro da perspectiva da
consciência e da confissão. “É um narrador que envolve o leitor, que faz com

159
BELLONI, Maria Luiza. Estética da violência. Comunicação & Educação, São Paulo, vol. 4,
n. 12, mai./ago. 1998, p. 47.
160
PAHNKE, Anthony. A representação da violência autoritária no cinema brasileiro. Literatura
e Autoritarismo. Dossiê “Cultura brasileira Moderna e Contemporânea”, dez. 2009, s/p.
161
Id. Ibid.
78

que este último acabe tomando partido de seus atos, absolvendo-o ou


condenando-o e, por fim, entendendo-o”162.
No filme, percebe-se que essas características permanecem, matendo a
essência do personagem. Através da voz off emprestada a Máiquel (uma das
características marcantes do cinema da Retomada e contemporâneo), o
roteirista e realizador conseguem transpor para a linguagem cinematográfica o
narrador em primeira pessoa do livro. Assim, buscam um maior envolvimento
do telespectador com as confissões, os pensamentos e atitudes do
personagem – preservando uma característica marcante da escritora Patrícia
Melo e da sua ficção.
Máiquel representa as pessoas que fazem parte da parcela pobre da
população brasileira que, devido a sua condição social, são excluídas
socialmente. Segundo estudos do professor e doutor em Ciênias Sociais José
Rogério Lopes, a exclusão social se caracteriza:

por um conjunto de fenômenos que se configuram no campo alargado


das relações sociais contemporâneas: o desemprego estrutural, a
precarização do trabalho, a desqualificação social, a desagregação
identitária, a desumanização do outro, a anulação da alteridade, a
população de rua, a fome, a violência, a falta de acesso a bens e
serviços, à segurança, à justiça e à cidadania, entre outras. 163

Embora muitos fatores estejam associados à exclusão social,


geralmente é à pobreza e à desigualdade econômica que ela converge. Entre
os fatores citados por Lopes, muitos estão presentes na constituição da
personalidade criminal de Máiquel. O desemprego, a falta de acesso a bens e a
serviços, como escola e saúde, marcam a sua vida e influenciam no seu modo
de ser e pensar.
No entanto, nem sempre exclusão social gera violência. “A hipótese de
que a pobreza e a desigualdade aumentam a violência se fundamenta em
teorias que se referem basicamente aos autores de crimes, não às vítimas”.
Retomando Monteiro e Zaluar, Sérgio Adorno esclarece:

162
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 17.
163
LOPES, José Rogério. “Exclusão social” e controle social: estratégias contemporâneas de
redução da sujeiticidade. Psicologia &Sociedade, vol. 18, n. 2, mai./ago. 2006, p. 01.
79

Monteiro e Zaluar (1998), observando estimativas de mortalidade


indireta, a partir de dados do censo de 1991, concluíram que o risco
de ser vítima de violência letal entre crianças e adolescentes de 5 a
20 anos dobra quando a mãe pertence a uma família cuja renda per
capita é inferior a um salário mínimo. O risco é também maior para
mães que vivem em favelas, comparativamente ao resto da
população164.

Ou seja, a maioria das vítimas da violência e homicídios não são os


ricos, mas os pobres e excluídos. Os privilegiados economicamente podem
contratar seguranças particulares, encerrar-se em condomínios de luxo,
protegidos das vicissitudes por eles próprios alimentadas.
Em O matador e O homem do ano, as impressões do leitor e
espectador a respeito de Máiquel podem variar entre a “condenação” e a
“absolvição”. O fato é que o jovem protagonista tem muitos motivos para tornar-
se criminoso, motivos provocados pela própria sociedade ao negar o acesso a
direitos essenciais e a uma vida digna. Máiquel representa os grupos de
pessoas que atacam, roubam e matam, caracterizando “um tipo de
marginalidade que reflete uma forma de resposta às contradições da sociedade
urbana”165.
É pelas marcas textuais e pelas descrições dos ambientes frequentados
pelo personagem que o leitor do livro é informado da condição social em que
transcorre a ação. No filme, essa informação é dada pelo aspecto visual, ou
seja, pelas roupas que o protagonista usa, pelos móveis de sua casa, pelo
modo de ele se expressar. Quando Máiquel caminha pela rua, cujos muros,
paredes e outdoors trazem anúncios publicitários, o espectador pode
contextualizar o espaço de ação do personagem (subúrbio e favela).

164
ZALUAR, Alba; MONTEIRO, Mario (1998) apud ADORNO, Sérgio. Exclusão
socioeconômica e violência urbana. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, n. 8, jul./dez. 2002, p.
27.
165
GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. Tempo Social:
revista de sociologia da USP, São Paulo, vol. 10, n. 1, mai. 1998, p. 108.
80

Figuras 6-7-8 – O cenário retrata a classe social de Máiquel: o subúrbio, a favela.

No livro, Patrícia Melo cria uma simbologia bem peculiar para


demonstrar a classe social a qual pertence o personagem: os sapatos e os
dentes. Na parte inicial da narrativa é dada grande ênfase à dor de dente
sentida pelo protagonista. De certa forma, esse fator foi decisivo para Máiquel
aceitar a oferta do dentista Carvalho: matar Ezequiel em troca de um
tratamento odontológico.
Por meio de algumas estratégias cinematográficas, a adaptação fílmica
intensifica a expressão da dor sentida por Máiquel: uma delas é mostrar o
protagonista automedicando-se, em plano de detalhe a câmera enquadra a
imagem do medicamento pingando no copo. A imagem projetada em ângulo de
contra-plongée (o medicamento é focalizada de baixo para cima) intensifica a
impressão de dor. Associada a essa imagem, escuta-se, em off, a voz de
Máiquel, o que contribui para claramente expressar a tensão emocional do
jovem – naquele momento ele confessa estar arrependido por ter proposto o
duelo com Suel.
Na cena em que está dançando com Cledir, a dor de dente impede que
ambos se beijem e Máiquel é aconselhado a procurar um dentista. Ambos
dançam ao som de uma música cuja letra espelha o que se passa na vida do
personagem naquele momento166. As “dores do mundo” de que trata a letra da
música remetem à “dor de dente” e à “dor de estar no mundo” que corresponde
aos múltiplos problemas da existência humana, sobretudo quando são
acentuados pela condição de pertencer às camadas socialmente excluídas. A
autoestima é intensamente afetada pela privação de dinheiro, estudos formais,
família, saúde, cultura, lazer, emprego, entre outros. O ritmo lento da canção é

166
A música tocada chama-se “As dores do mundo”, do cantor, violinista e compositor baiano
do gênero soul music, Hyldon de Souza e Silva.
81

perfeito para mimetizar a ambiência emocional do momento, pois o romantismo


do casal é pontilhado pela “dor de dente” e “pelas dores do mundo”.
Para acentuar a força expressiva do refrão da música (“eu quero
esquecer de tudo, das dores do mundo”), a cena subsequente do filme mostra
Máiquel no consultório do dentista Carvalho, local em que o futuro assassino
de aluguel encontra a possibilidade de eliminar uma dessas “dores” – a do
dente. Na sequência, seduzido pela proposta do dentista e do delegado
Santana, o jovem tem a oportunidade de ilusoriamente eliminar as dores
restantes, principalmente aquelas que decorrem da privação de bens materiais.
No primeiro encontro com o dentista Carvalho, é pela voz off que
Máiquel expressa o sentimento de vergonha provocado pelo estado de seus
dentes. Nesse contexto, em panorama circular do consultório, a câmera
registra e detalha a decoração e o ambiente, como se os olhos de Máiquel
assimilassem as imagens estampadas nos cartazes: dentes sadios, sorrisos
perfeitos, um universo inacessível. As imagens traduzem as frases do livro que
expressam os desejos e o desconforto do jovem naquele ambiente estranho,
impenetrável, incomum ao universo cotidiano dos excluídos. Gradativamente, a
história contada e visualizada envolve o espectador e anuncia a dura decisão
que o jovem precisará tomar.
Os sapatos gastos consistem na demonstração mais evidente da
vergonha que o protagonista experimenta por seu estado de pobreza material e
de exclusão social. No romance, há muitas passagens que fazem dos sapatos
um índice da condição social de Máiquel, que se sente humilhado e
constrangido por trazer sapatos em tão pífio estado:

A mulher do dr. Carvalho foi mais fria, mas também agradeceu.


Experimente esse cigarro americano. Percebi que ela notou o meu
sapato todo fodido [...]. Meus sapatos eram feios para caralho. [...] Os
meus sapatos sobre o tapete cor de creme ficaram mais fodidos
ainda, a fofura do tapete realçava a feiura do meu sapato. Enfiei
meus pés embaixo da mesa de centro, não deu certo, eu atrapalharia
o caminho e não tive opção, fiquei com eles à mostra, de vez em
quando o dr. Carvalho e o dr. Sílvio olhavam, mas o que eu podia
fazer?167

167
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 61-62.
82

Na adaptação fílmica, constata-se a ausência de qualquer menção aos


sapatos (peça do vestuário que se encontra até mesmo na capa do livro, haja
vista sua importância na caracterização do personagem). Uma vez que a dor
de dentes encontra-se no mesmo nível de associação simbólica que os
sapatos de Máiquel – indicam sua classe social –, é possível que, por uma
questão de escolha e interpretação do roteirista e do realizador, e também em
razão da duração da versão final do filme, optou-se por não traduzir a relação
do protagonista com os seus sapatos. Para alguns críticos, como Marcelo
Hessel168, essa opção pode ter prejudicado a tradução da construção da
personalidade do protagonista por meio de ícones e índices textuais. No
entanto, outros elementos imagéticos expressivos são acrescentados ao que
se lê no texto literário e, no filme, marcam a condição material e social de
Máiquel, tais como sua vestimenta, as ruas do bairro onde mora, os móveis e
utensílios de sua casa, as cores das paredes e muros, a música de sua
preferência, suas refeições.
Segundo o crítico de cinema Pablo Villaça, no filme, a voz do
protagonista (interpretado por Murilo Benício) é de “tom baixo e rouco, fazendo
com que Máiquel soe „apagado‟ diante dos demais personagens – uma opção
perigosa (já que ele é o centro da história), mas que acaba funcionando”169.
Funciona porque essa voz, “rouca e baixa”, traduz a condição social do
personagem que não vê perspectiva de ascensão social. Além disso, traduz a
vida medíocre de Máiquel, um desconhecido no seu próprio bairro, alguém sem
importância, sem brilho próprio – até o episódio em que assassina Suel. No
livro, o personagem declara: “sou um homem cinza”170. No filme, a voz “rouca e
baixa” do jovem, suas vestimentas, sua “cara de coitado”171, sua dor de dente,
sua residência precária, entre outros fatores, traduzem ou transcriam em
imagens o texto literário.

168
HESSEL, Marcelo. O homem do ano. (Crítica). Disponível em: <http://www. omelete.
com.br/cinema/io-homem-do-anoi/>.
169
VILLAÇA, Pablo. O homem do ano. (Crítica). Disponível em: <http://www. cinemaemcena.
com.br/Ficha_filme. aspx?id_critica=6311&id_filme=2484&aba=critica>.
170
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 79.
171
Expressão usada pelo diretor José Henrique Fonseca, ao se referir à escolha do ator Murilo
Benício como protagonista da história, em entrevista cedida ao jornalista Renato Silveira, na
pré-estréia do filme, em Belo Horizonte. Disponível em: <http//www. cinemaemcena.
com.br/Entrevista_Detalhe. aspx?ID_ENTREVISTA=18>.
83

Dessa forma, a adaptação fílmica suprime algumas informações do livro,


mas, por meio de recursos cinematográficos, representa expressivamente a
estreita relação existente entre a exclusão social e a violência. Mais expostos à
violência, os deserdados e desesperançosos (como no caso de Máiquel)
acabam encontrando nas atividades ilícitas uma oportunidade para a realização
de seus desejos materiais. Em O homem do ano e em O matador, percebe-se
que “a violência só existe quando há uma práxis corrente de negação da
alteridade, principalmente, na negação do direito da sua existência enquanto
possibilidade de humano”172.

3.3 Violência e fatalismo

Para o realizador José Henrique Fonseca, o que chamou mais a atenção


no livro O matador foi a força dos acontecimentos que levaram Máiquel ao
mundo do crime, conforme aponta: “o que me fascinou foi a ideia de fazer um
filme que mostrasse um homem comum fadado pelo destino. Em sua
ingenuidade, ele não consegue ver que é influenciado pelo ambiente que o
cerca”173. E completa: “O filme tenta compreender o porquê desse cara
[Máiquel] ter virado um matador. Por isso, deixei a violência um pouco de lado”.
Essas declarações do cineasta justificam a amenização da violência presente
na adaptação, obtida pela omissão de trechos detalhadamente descritivos
apresentados na obra literária.
Além de caracterizar muito bem o ambiente social do qual Máiquel faz
parte – o subúrbio, a favela – e a sua fragilidade para o crime (pois está mais
exposto à violência do que as pessoas de classe médio-alta), Fonseca deixa
transparecer a questão do destino na vida do personagem. Percebem-se na
adaptação fílmica detalhes que marcam muito bem a crença do protagonista no
fatalismo, presente no texto original.

172
OLIVEIRA, Dennis de; NOGUEIRA, Silas (Org.). Mídia, cultura e violência: leituras do real
e da representação na sociedade midiatizada. São Paulo: Cellac, 2009, p. 25.
173
FONSECA, José Henrique. O homem do ano. 25 jul. 2003. Entrevista concedida a Renato
Silveira. Disponível em: <http://www. cinemaemcena. com.br/Entrevista_Detalhe.
aspx?ID_ENTREVISTA=18>.
84

O dicionário Houaiss define o fatalismo como “doutrina segundo a qual


os acontecimentos são fixados com antecedência pelo destino. Atitude moral
ou intelectual segundo a qual tudo acontece porque tem que acontecer, sem
que nada possa modificar o rumo dos acontecimentos”174.
A cultura brasileira é marcada pelo fatalismo, que interfere nas formas
de agir e pensar da população. Em função dos problemas sociais, econômicos
e culturais que afetam nosso país, muitas pessoas buscam explicação para os
fatos e para sua existência na crença de que há um destino que rege suas
vidas. As diferentes religiões praticadas no Brasil consolidam a ideia de que
existe um agente sobrenatural, responsável por causas e significados para a
vida e o universo, um agente sobrenatural capaz de controlar o destino das
pessoas.
Num país com nível elevado de criminalidade como é o Brasil, é comum
as pessoas buscarem explicações numa pretensa fatalidade que conduziria o
destino coletivo e individual. Se uma pessoa sai ilesa de um assalto ou
sequestro, por exemplo, é corriqueiro ouvirmos a expressão: “escapou dessa
porque não era a sua hora” (como se “alguém, talvez Deus”, como afirma
Máiquel, determinasse a hora e as condições da morte que nos aguarda a
todos). Por outro lado, quando se vê notícias de jovens que cometem crimes, é
comum a conclusão fatalista: “sabendo de onde ele (criminoso) vem, só
poderia dar nisso!”. Provérbios populares, muito arraigados na cultura popular
brasileira, como “filho de peixe, peixinho é” e “a fruta nunca cai longe do pé”,
também representam o fatalismo e o determinismo com que se buscam
justificar fatos de natureza aleatória ou episódica. Assim, nas páginas iniciais
de O matador, o leitor é informado sobre as crenças de Máiquel:

Antes da gente nascer, alguém, sei lá quem, talvez Deus, Deus


define direitinho como é que vai foder com a sua vida. É isso. Era a
minha teoria. Deus só pensa no homem quando tem que decidir
como é que vai destruí-lo. Quando não tem tempo, faz uma guerra,
um furacão e mata um monte, sem ter que pensar em nada. Em mim
ele pensou175.

174
HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2008, p. 1312.
175
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 15.
85

O filme preserva, com pouquíssimas alterações, essa confissão do


protagonista que é proferida em voz off, enquanto o jovem observa-se no
espelho. No final do filme, essa imagem inicial (Máiquel com os cabelos ainda
pretos) é retomada no momento em que o personagem tinge os cabelos para
fugir da polícia, após ter matado o dentista Carvalho e o delegado Santana. A
cor dos cabelos indica o retorno à condição social inicial e sugere a inexistência
de perspectivas para os excluídos: o destino é inevitável, têm mesmo razão os
fatalistas.
Numa análise comparativa, por vezes, o filme rompe com a sequência
narrativa do livro, e os acontecimentos seguem distintos ordenamentos em
ambas as obras. Por exemplo, o final do filme apresenta a fuga de Máiquel:
nesse momento, o personagem expressa um pensamento que é apresentado
na primeira parte do livro. Certamente, essa quebra da sequência literária em
relação à fílmica ocorreu devido a impossibilidade da linguagem
cinematográfica traduzir todos os trechos descritos no texto original. Além
disso, o filme se tornaria repetitivo e por vezes cansativo se procurasse atender
com a mesma proporcionalidade do texto literário os aspectos relacionados à
mente confusa de Máiquel, detalhadamente descritos no livro. Ao optar por
uma sequência linear dos fatos, a equipe de produção do filme aproxima o
enredo da história ao gosto do público e facilita a venda do produto.
É preciso considerar que a tradução intersemiótica “determina escolhas
dentro de um sistema de signos que é estranho ao sistema original”176. Tal é o
que se verifica na adaptação, por meio de recursos como a justaposição de
imagens, a voz off, o flashback, a posição das câmeras focalizando diferentes
planos, o close para marcar detalhes, a música espelhando a tensão dramática
ou emocional do episódio. A equipe de produção do filme refaz habilmente a
história apresentada no romance.
Segundo Fábio Messa, Máiquel é parecido com o típico herói
fonsequiano, pois “imerso num mundo de fantasias e equívocos, um azarado
que ao tentar livrar sua cara das irregularidades, consegue entrar ainda mais
pelo cano”. E, para justificar ou consolar-se diante dos fatos ele se apega na
crença de que é Deus quem quis assim. Nos momentos iniciais da narrativa

176
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 30.
86

literária, o jovem confessa ao ver no espelho o resultado da tintura que o


deixou com nova aparência (loiro): “Havia uma luz na minha face, e não era
uma luz artificial de refletores. Era aquela luz que a gente vê em imagens
religiosas, luz de quem é iluminado por Deus. Foi assim que eu me senti,
próximo de Deus”177.
Esse pensamento de Máiquel está relacionado ao episódio em que ele
está no consultório do doutor Carvalho e ouve o dentista justificar a violência
usando como argumento um fato bíblico:

Pilatos, quando estava interrogando Cristo, irritado porque Cristo não


respondia suas perguntas, disse: sabes que teu destino está em
minhas mãos? A resposta de Cristo foi: Deus te deu esse poder. Ou
seja, Cristo, o próprio Cristo admitia que não só Deus, mas o homem
também, sob o comando de Deus, o homem poderia matar. Pilatos
tinha esse poder, Cristo admitiu [...]. Portanto, essa história de não
matarás vale até a página 3. O próprio Tomás de Aquino diz isso,
matarás, se necessário, matarás em nome da lei. [...] O que ele quer
dizer é que quem mata em nome da justiça não é um criminoso
178
porque isso não é crime, deu para entender?

Diante dos argumentos do dentista e acreditando que o seu destino era


comandado por Deus, Máiquel deixa-se, aos poucos, ser tragado por um
mundo de fantasias e equívocos. Ilude-se com a ideia de que o seu trabalho é
higiênico, pois ajuda atirar o “lixo da rua”. No texto literário, essa ideia é
reforçada a partir da sequência dada por Patrícia Melo às palavras “destino”,
“Deus”, “poder”, “matar”, “lei”, “justiça”. Essas palavras facilitam o entendimento
da relação existente entre violência e fatalismo, uma vez que é pela
ingenuidade e propensão de Máiquel para o crime, que o dentista vai
convencê-lo a tornar-se um matador de aluguel.
Essa marca do destino, da fatalidade como resposta aos descaminhos
do protagonista pela vida criminal, está presente de forma bastante expressiva
na adaptação fílmica. O recurso da voz off é utilizado duas vezes para registrar
claramente a crença de Máiquel no destino: no início e no final do filme. No
entanto, muitas imagens relacionadas à religião e em extensão a Deus ou a
Jesus Cristo aparecem durante a narrativa fílmica. O que chama a atenção é
que essas imagens estão, na maioria das vezes, presentes no ambiente de

177
Id. Ibid., p. 10.
178
Id. Ibid., p. 31.
87

grande tensão dramática, sempre associadas aos crimes protagonizados por


Máiquel.
Antes mesmo de iniciar a narrativa fílmica, durante a apresentação dos
participantes da produção fílmica e do nome do filme, constata-se que uma
imagem inicialmente nebulosa e desfigurada vai se transformando na figura de
Máiquel (representado pelo ator Murilo Benício). Esse artifício muito
criativamente utilizado, representa a mente do protagonista que assim como no
livro, mostra-se confuso, sem identidade definida, deixando-se levar “como um
rio”179. Chama a atenção a palavra “Deus” que aparece escrita na testa do
jovem matador repetidas vezes:

FIGURA 9 – Imagem desfigurada do protagonista

Nas cenas em que Máiquel está esperando Suel, no duelo, percebemos


ao fundo da imagem a presença da Igreja:

179
Id. Ibid., p. 65.
88

FIGURA 10 – Máiquel à espera do duelo

No momento em que ele está no quarto, prestes a assassinar Cledir,


num súbito de raiva, o rosário na parede também reafirma a relação entre
violência e fatalismo:

FIGURA 11 – Máiquel prestes a assassinar Cledir

Outro exemplo é a imagem de Máiquel vendo Bil (o porco) servido na


bandeja, na mesma noite em que fica sabendo que seu primo Robinson fora
assassinado por Neno, um bandido que ele deveria ter matado. Na parede da
sala, visualiza-se um quadro com a imagem de Jesus Cristo:
89

FIGURA 12 – No aniversário de Máiquel, o porco é servido na bandeja

Essas imagens de símbolos religiosos reforçam a aproximação entre


violência e fatalismo, uma vez que permitem estabelecer uma relação de causa
e consequência. Ou seja, à medida que os índices de casos de homicídios,
roubos, sequestros, corrupção policial entre outros crimes crescem, as
possibilidades das pessoas justificarem os acontecimentos trágicos no
fatalismo se potencializam. Diante do estado de violência e periculosidade em
que se encontra a sociedade brasileira, as pessoas que saírem incólume aos
riscos diários oferecidos pela vida citadina sentem-se protegidas por um poder
divino ou sobrenatural, por vezes inexplicável. Por outro lado, quem se deixar
atacar pelos perigos relacionados à criminalidade, justificará que, diante das
circunstâncias e das oportunidades oferecidas pela sociedade, não há muito o
que se fazer, a não ser deixar-se levar pela engrenagem que move a
proliferação da violência. De outra forma, podemos afirmar que numa
sociedade em que

a experiência do homem se revela a cada dia de maneira


intensamente violenta e o seu olhar fica fora de órbita dada a rapidez
e a velocidade da circulação das informações [...] a realidade se torna
incompreensível e racionalmente não explicamos o desenvolvimento
90

dos fatos cotidianos. [...] A vida nos leva simplesmente como num
barco à deriva180.

Outro elemento muito bem explorado pela produção fílmica é a figura do


porco. Qual a relação desse animal com a vida de Máiquel, com sua trajetória
rumo à ascensão e depois ao declínio social? Entende-se a fatalidade como
fator de aproximação e identificação entre o jovem e o animal.
Inicialmente, Máiquel estranha ganhar de presente um porco e até irrita-
se com o animal por ele ter mastigado seu tênis. No livro, confessa achar
humilhante ter um animal como aquele: “aquilo me incomodou, mostrar o
porco, ter um porco em casa, que coisa mais humilhante”181; fato traduzido no
filme, na cena em que Cledir vai visitá-lo sem saber da existência do animal.
Os dois conversam:

Cledir: Ih, O que aconteceu com aquele tênis?


Máiquel: Ah, foi o Bil!
Cledir: Cachorro?
Máiquel: Não, o porco.
Cledir: Porco? Você arranjou um porco? Que engraçado. Cadê ele?
Máiquel: Está lá no banheiro. É um leitãozinho... pra comer. Pra que
182
você acha que eu ia ter um porco dentro de casa?

Quando Máiquel responde “Não, um porco”, em tom baixo, evidencia-se


claramente a vergonha e certa humilhação que sente. Para disfarçar seu
constrangimento, justifica-se declarando que o animal só está ali para ser
comido.
Ser comido. Eis o destino do porco. Eis o fator que permite Máiquel
perceber a sua condição de marginalizado na presença do animal. No livro, de
forma mais intensa, o jovem deixa transparecer uma visão fatalista das coisas,
“resquícios de consciência, pois como matara, sabe que está se encaminhando
para a própria morte, isto é, o narrador pressente que algo ruim ainda irá
acontecer”. Através do porco e das imagens religiosas anteriormente referidas,
o filme busca traduzir esse “pressentimento” do jovem e marcar que sua vida
está fadada ao fracasso, a um destino trágico, assim como o do animal. O

180
MAIA, João. O cruel: cinema e criatividade. In: DIAS, Ângela Maria; GLENADEL, Paula
(Org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004, p. 129.
181
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 28.
182
FONSECA, Rubem. O homem do ano. (Roteiro), p. 13. Disponível em: <http://www.
roteirodecinema. com.br/roteiros/longas. htm#fghi>.
91

porco Bil nasceu para ser comido, assim como Máiquel nasceu na favela para
ser marginalizado. E quanto a isso, nada podem fazer.
As palavras “foder”, “destruí-lo”, “guerra”, “furacão” e “mata”, presentes
no trecho literário e traduzido em voz off no filme nos momentos iniciais das
duas narrativas, relacionam o “pressentimento” do personagem com sua
crença na fatalidade dos acontecimentos. Ao mesmo tempo em que essas
palavras podem ser associadas diretamente aos crimes e assassinatos que
Máiquel viria a cometer, também expressam a negatividade, o pessimismo e a
descrença do jovem diante da vida. Para ele, é Deus quem permite que sua
vida seja fadada ao fracasso. Embora tenha tentado superar as dificuldades
socioeconômicas, não consegue livrar-se das amarras de uma sociedade que
exclui, discrimina e corrompe.
Máiquel torna-se um objeto manipulável na mão dos poderosos. Só
consegue dinheiro e fama porque se deixa corromper. Na narrativa literária,
antes de receber o “Prêmio Cidadão do Ano” (fator que, recriado, dá título ao
filme) Érica, sua amante, tenta alertá-lo sobre essa situação e convencê-lo de
que ele se tornara uma espécie de cachorro adestrado:

Você pode perguntar para qualquer policial, ela disse, desses que
treinam cachorros, diga a eles, eu tenho um cãozinho inútil numa
matilha e imediatamente você terá um leão. Sim, na matilha, matilha
é essa merda que vai juntando, e vai crescendo, e vai quebrando
vidros, e dando porrada no adversário, e arrebentando vitrines, e
saqueando, e estuprando. Foi isso que aconteceu com você, ela
disse, e é por isso que você vai ganhar uma medalha. Eles estão
orgulhosos porque te ensinaram isso, o ódio, a lama, e você ama
esse ódio, essa lama, essa porcaria toda, você ama, ama como um
cãozinho medroso ama matilha, essa lama, e sabe por quê? Não é
porque você é um leão, não é nada disso. É porque no ódio você se
sente igual àqueles caras que vão estar lá no baile e que se deram
bem na vida consertando coisas quebradas, vendendo, alugando,
plantando, construindo, operando, comprando, roubando,
administrando, mentindo e te contratando, e por isso você vai ganhar
uma medalha, ela disse183.

Algumas frases do trecho acima são preservadas na tradução fílmica e


outras, como a questão de Máiquel ser comparado a um “cão adestrado”, são
traduzidas em forma de imagem. Observa-se que a maneira como Máiquel
cuida de Bil está muito próxima ao tratamento que as pessoas costumam dar a
animais de estimação, mais especificamente, a cachorros – o jovem dá banho
183
MELO, Patrícia. O matador. 2. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2005, p. 165.
92

no animal, conversa com ele, lhe dá um nome, serve ração em um prato, em


alguns momentos permite que o animal circule livremente pela casa e, em
outros, o leva pela coleira para caminhar na rua. As imagens abaixo
evidenciam essa questão:

FIGURA 13-14-15 – Máiquel cuida do porco como um animal de estimação

É através da imagem do porco que o filme consegue traduzir a condição


de animal/objeto manipulável em que Máiquel se transformou nas mãos dos
poderosos. O apego do jovem ao animal, evidenciado a partir dos cuidados a
ele dedicados, comprovam que Máiquel via no porco a sua própria condição
social que é tão fatalista quanto a do animal.
Prova está no momento em que Máiquel descobre que se tornara um
“revólver”184 nas mãos dos poderosos. Apesar de ter conseguido tudo o que
sempre sonhou, não conseguiu livrar-se de sua condição “porcina”, ou seja, da
condição de ser “devorado” por uma sociedade desigual, corrupta e excludente.
O seu destino estava traçado. O tratamento afetuoso que o jovem dedica ao
animal é aquele que gostaria de receber da sociedade.
Além disso, tanto a narrativa fílmica quanto a literária deixam evidente a
progressão do ódio na vida de Máiquel. No trecho literário, Patrícia Melo utiliza
estratégicas linguísticas interessantes para representar essa questão. Observa-
se que a rede de relações pessoais de Máiquel é comparada a uma “matilha” –
o protagonista encontra-se na mesma condição daqueles cachorros que são
cercados e atacados por outros, em bando (vê-se acuado, sem saída). As
palavras “quebrando”, “porrada”, “arrebentando”, “saqueando”, e “estuprando”
são colocadas no mesmo campo semântico para marcar a destruição que a
criminalidade causou na vida do jovem matador.

184
Id. Ibid., p. 195.
93

Na metade final do trecho percebe-se que a crítica social formulada por


Patrícia Melo se intensifica. Há uma associação entre crime/violência e
medalha/prêmio (Máiquel recebe um prêmio por assassinar pessoas). O
caráter contraditório dessa associação expõe com precisão a hipocrisia, a
corrupção e a impunidade presente no Brasil, materializada pelo uso de
metáforas e pela escolha lexical. O encadeamento de verbos empregados na
forma nominal do gerúndio, tais como “vendendo”, “alugando”, “plantando”,
“construindo”, “operando”, “comprando”, “roubando”, “administrando”,
“mentindo” e “contratando”, que encerram o trecho, imprimem sonoridade à
escrita e levam o leitor a perceber que a situação metaforizada por Patrícia
Melo parece incontrolável. O gerúndio indica uma ação em andamento, um
processo verbal ainda não finalizado, o que permite ao leitor perceber a
violência como um fenômeno de duração ininterrupta que, numa progressão
sem fim, atinge todas as classes sociais. Mais uma vez, ao utilizar uma
linguagem que agride o leitor, a escritora aproxima a violência narrada da
violência por ele percebida no seu universo cotidiano.
A palavra “lama”, que aparece três vezes no texto, numa combinação
com o vocábulo “ama”, imprime um jogo de significados muito bem explorados
e recriados na narrativa fílmica. Ao mesmo tempo que a palavra “lama”
associa-se diretamente à vida criminal e desregrada optada por Máiquel, reitera
a sua identificação com o porco (animal que no seu habitat natural vive em
meio a lama). Mais uma vez, confirma-se a constatação fatalista de que
Máiquel e o porco Bil possuem condições existenciais semelhantes. Ao
transpor a palavra “lama” para o campo semântico figurado, a escritora permite
associarmos a vida de Máquel à vida de um porco. Ou seja, da mesma forma
que o animal vive em meio a sujeira e sente-se bem nessa condição, Máiquel
sente-se confortável sendo um matador profissional a partir do momento que
percebe que essa “profissão” lhe rende dinheiro e fama. No entanto, após
ambos serem bem tratados, acabam prejudicados: o porco será comido e
Máiquel “descartado”, excluído pela classe social que o impulsionou para a
criminalidade.
No entanto, Érica alerta o jovem sobre seu estado de manipulação
diante dos poderosos, o que permite uma outra possível associação: assim
como o destino do porco é viver em meio a sujeira, o destino de Máiquel
94

também o é. A sujeira, nesse caso, tem seu sentido ampliado: simboliza o


estado de degradação a que chegou o jovem a partir do momento em que se
deixa manipular e/ou condicionar. Interessante destacar que a palavra “lama” é
empregada no texto literário em um contexto semântico que compara Máiquel a
um cachorro adestrado. O filme reinterpreta essa passagem e a aglutina na
imagem do porco, especialmente ao apresentar semelhanças do
comportamento do animal ao comportamento de um cachorro (conforme já
explicitado).
Vale ressaltar que, ainda na primeira parte da narrativa, quando
Máiquel era tomado pela dúvida em aceitar ou não ser um matador de aluguel,
ele pensa:

Enquanto caminhava e olhava para os meus sapatos fodidos, eu


pensava que a vida é uma coisa engraçada. Ela vai sozinha, como
um rio, se você deixar. Você também pode botar um cabresto, fazer
da vida o seu cavalo. A gente faz da vida o que quer. Cada um
escolhe a sua sina, cavalo ou rio185.

Mais uma vez, percebe-se que a sequência narrativa é alterada na


tradução fílmica, uma vez que busca recriar o texto original adequando-o a uma
nova linguagem. Usando da criatividade e da autonomia estética, roteirista e
realizador optaram por colocar esse trecho de O matador, com pouquíssimas
alterações, nos instantes finais do filme. Na versão literária, observa-se que o
princípio motivador do pensamento ou reflexão do jovem é a associação que
faz entre a sua vida medíocre e o seu sapato. Logo, aceitar ser um matador de
aluguel poderia proporcionar-lhe uma vida melhor, com mais dignidade, neste
caso, representada por sapatos novos.
Essa passagem em que Máiquel compara a vida com um rio ou cavalo é
traduzida em voz off na narrativa fílmica. A declaração acontece logo após o
protagonista pintar o cabelo de preto, num posto de gasolina, prestes a fugir da
polícia. Esta imagem está associada à outra que havia aparecido no início do
filme, quando ele também confirmava a crença de que é Deus quem comanda
o destino das pessoas. Dessa forma, traduz a escolha de Máiquel em ser “rio”,
ou seja, acreditar que o destino está traçado – para o rio, não importa o
percurso realizado, seu destino sempre será o oceano. Embora fosse tarde
185
Id. Ibid., p. 65
95

para isso, o protagonista percebe que ele pode comandar seus atos (ser
“cavalo”), pois nesse momento de sua trajetória rumo à ascensão social, já
havia percebido sua condição de “objeto”, de “animal adestrado” que fora nas
mãos dos poderosos.
No final da película, a cena de Máiquel olhando-se no espelho numa
espécie de autoavaliação retoma a imagem inicial do filme em que o
protagonista pinta o cabelo de loiro e passa a sentir-se diferente, revigorado,
com uma força que ele não sabe de onde vem. Essa cena traduz uma frase
que está nos instantes finais da narrativa literária: “queria deixar tudo para
trás”186. Ao voltar ter a aparência inicial (cabelos pretos) é como se o jovem
voltasse a ter a identidade que o insere na mediocridade e na pobreza. Elimina
de sua vida a possibilidade de sonhar com uma vida digna e confortável ao
mesmo tempo que reforça a ideia já traduzida pela imagem do porco e dos
símbolos religiosos: na condição de marginalizado, Máiquel não escapa da
fatalidade dos acontecimentos. Imerso num mundo de violência, ou tenta
através dela buscar ascensão social, ou deixa-se marginalizar ainda mais.
Assim como o oceano é o destino do “rio”, a marginalidade é o destino de
Máiquel.

186
Id. Ibid., p. 204.
96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo comparatista de O matador e O homem do ano abre


questões que exigem continuidade de estudos. A temática da violência urbana,
foco deste estudo comparativo, pode ser analisada a partir de outros tópicos,
uma vez que muitas outras estratégias podem ser exploradas e interpretadas
quando da tradução do texto literário para o fílmico.
Três caminhos foram percorridos para alcançar o objetivo proposto pela
pesquisa. O primeiro concentrou-se na compreensão da abrangência dos
estudos literários comparados, da sua relação com outras áreas do
conhecimento e outras artes. A partir do diálogo da literatura com o cinema,
surge a adaptação fílmica, entendida como tradução intersemiótica.
Em uma tradução intersemiótica, é preciso considerar as especificidades
de cada signo que está sendo analisado. Como este estudo concentra-se na
análise de signos pertencentes a diferentes sistemas sígnicos – um verbal e
outro sonoro-visual –, foi preciso investigar as características próprias da
linguagem literária e da linguagem cinematográfica, pois, na tradução entre
diferentes sistemas de signos, tornam-se relevantes as relações entre os
sentidos, meios e códigos187. Constatou-se que, embora sendo muito diferentes
na maneira de expressar ou representar as percepções do artista frente ao
mundo factual, os signos aproximam-se pela narratividade. Em outras palavras,
“existe entre romance e cinema um parentesco psicológico, sociológico e
estético, porque ambos se configuram como narrativas”188. Tanto livro quanto
filme contam histórias, representam as inquietações do ser humano diante da
vida; para isso cada signo busca estratégias específicas. Elementos como
espaço, tempo, narrador, personagens, que no texto literário são apresentados
ao leitor através de marcas linguísticas, de figuras de linguagem ou de
pontuações bem marcadas, por exemplo, no texto cinematográfico, são
apresentados por meio de recursos como voz off, o flashback, a justaposição

187
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 45.
188
MESSA, Fabio. O gozo estético do crime: dicção homicida na ficção contemporânea.
Tubarão: Unisul, 2008, p. 203.
97

de imagens, o posicionamento da câmera em planos distintos, a sonoridade, as


cores, o vestuário, entre outros recursos.
Pensar sobre a adaptação fílmica e, por conseguinte, na comparação
entre o livro e o filme, levou-nos a adentrar em questões importantes e
necessárias ao investigador comparatista. Entre elas está a fidelidade do filme
ao texto original, motivo de divergências entre críticos da literatura e do cinema.
Muitos deles entendem que todo tradutor possui liberdade criativa e que,
portanto, não precisa ser fiel ao texto original. O filme nem sempre irá
conseguir traduzir todos os elementos presentes no texto literário – cada signo
possui dinâmicas e diferenças essenciais à sua produção, conforme alerta
Randal Jonhson189. Nesse sentido, para adaptar a linguagem literária à
cinematográfica, o cineasta (e toda sua equipe de produção fílmica: como
vimos, o tradutor é coletivo) vai imprimir estilo próprio ao novo texto traduzindo
o que “considera importante dentro de um projeto criativo, aquilo que nele
suscita empatia ou simpatia como primeira qualidade de sentimento”190.
O segundo caminho em que se desdobra a pesquisa corresponde a uma
análise da produção literária e cinematográfica desenvolvida nos anos 1990-
2010, especialmente no que refere à representação da violência urbana. Em
consequência, fomos levados a investigar e compreender o contexto histórico-
social do Brasil nesse período. Diversos estudos demonstram que, na década
de 1980, o Brasil foi tomado pela violência em níveis assustadores. A década
subsequente segue testemunhando fenômenos sociais violentos como
homicídios, assaltos, sequestros e chacinas, chegando a registrar índices
elevadíssimos: entre os anos 1980 e 2004, 600 mil brasileiros foram
assassinados.
Em consequência, diversas manifestações artísticas passam a tematizar
tal fenômeno em seu universo cotidiano, e cumprem sua função social. Autores
da chamada geração de 1990, como Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Luiz
Ruffato, André Sant‟Anna, Paulo Lins e Patrícia Melo, cada qual ao seu estilo,
buscam interpretar o universo urbano. Patrícia Melo dedica seus livros a
desvelar a mente de criminosos, retratando o universo factual em que esses

189
JOHNSON, Randal. Literatura e cinema – Macunaíma: do modernismo na literatura ao
cinema novo. Trad. Aparecida de Godoy Johnson. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982.
190
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 34.
98

sujeitos vivem – a favela. Em O matador, dá voz a um personagem


marginalizado que narra sua trajetória de ascensão e declínio social por meio
do crime. Com uma linguagem corrosiva, violenta, despudorada, a autora cria
uma narrativa que agride o leitor; as frases curtas, cadenciadas por uma
pontuação gráfica fragmentadora e por palavras que imprimem tensão e
violência narrativa, exprimem uma interpretação da violência urbana no Brasil.
Na terceira parte do presente estudo, é feita uma análise comparativa
entre o livro e o filme, no tocante às formas de estetização da violência numa
perspectiva intersemiótica. Constatou-se que o filme de José Henrique
Fonseca mantém o eixo norteador do livro O matador: a violência como meio
de ascensão social. O processo de adaptação ressignifica esteticamente a
fonte original e reforça sua crítica social. A maneira como cada artista denuncia
a corrupção e a exclusão social existente na sociedade brasileira está
relacionada com a particularidade de cada linguagem sígnica analisada.
Através de técnicas específicas, utilizando de particular maestria, Patrícia Melo
utiliza o signo linguístico para aproximar o leitor das ações narradas e da
ambiência emocional em que transcorrem as ações empreendidas por Máiquel.
Optar por um narrador em primeira pessoa, que protagoniza os fatos e que
está numa perspectiva da consciência e da confissão, possibilita um maior
envolvimento do leitor com a história contada. Além disso, a violência narrativa
do texto de Melo é traduzida através de frases curtas, encadeadas por vírgulas
e por palavras ou expressões que, pela expressividade semântico ou sonora,
incorporam um clima tenso e negativo ao que se está narrando, compatível
com situações violentas ou relacionadas à criminalidade.
Percebe-se que essa ambiência emocional presente no romance O
matador foi traduzida para o filme O homem do ano através de recursos como
a voz off, que possibilita ao cineasta manter a característica do fluxo de
consciência que é apresenta no texto literário; da focalização da câmera com
close no rosto do personagem capturando detalhes ou em ângulos plongée e
contra-plongée; da justaposição de imagens; da trilha sonora; das cores e
iluminação empregadas nas cenas. Também, tornam-se importantes a escolha
e disposição dos objetos em uma cena, como no caso dos símbolos religiosos
que, no filme, aparecem várias vezes para traduzir a crença de Máiquel no
destino ou na fatalidade dos acontecimentos.
99

Ainda, destaca-se o fato de que nem todos os elementos e episódios


presentes na fonte original precisam ser traduzidos. Exemplo são os sapatos
do protagonista, que, na obra literária obteve grande destaque para marcar a
classe social a que pertence Máiquel. Apesar de suprimir esse elemento da
narrativa fílmica, constatou-se que outros como os dentes cariados, o vestuário
e o espaço onde os fatos acontecem foram aproveitados para traduzir a
exclusão social do jovem matador.
A expressão estética da violência urbana analisada nas duas obras está
alavancada por uma crítica feroz à classe médio-alta brasileira e ao sistema
policial brasileiro, que, por ser corrupto e negligente, auxilia na manutenção ou
no agravamento da criminalidade do país.
A estética da violência se consolida na ficção de Patrícia Melo e de José
Henrique Fonseca porque, além de estabelecer uma crítica ou denúncia social,
cada artista, ao seu estilo, buscou alternativas para capturar a violência do
mundo factual e traduzi-la para o universo fictício. O filme O homem do ano
aproveita muitos elementos do texto literário e mantém o que possa vir a ser o
grande mérito do livro de Melo: inverter a ordem como percebemos os fatos,
isto é, possibilitar ao leitor/espectador compreender ou sensibilizar-se com a
vida das pessoas que são marginalizadas e entender que a violência não se
restringe a uma classe social específica. Portanto, ao serem produzidas, essas
obras assumiram um compromisso social e estético com o seu tempo.
100

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Tambellini e Leonardo Monteiro de Barros. Roteiro: Rubem Fonseca a partir do
romance O matador, de Patrícia Melo. Intérpretes: Murilo Benício, Cláudia
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106

GLOSSÁRIO

Cenarista ou cenógrafo: é o profissional responsável pelos cenários onde são


realizadas as filmagens, trabalhando sob orientação do diretor ou realizador
(quando não acumula essas funções). É de sua responsabilidade procurar
locações adequadas, adaptá-las ou, quando necessário, criar e supervisionar a
montagem de cenários.
Contra-plongée: posição da câmera com o olhar de baixo para cima. Também
é chamada de “câmera baixa”.
Diretor e realizador: principal responsável pela execução do filme, liderando a
equipe de filmagem e transformando o roteiro em imagem. Coordena e controla
todas as etapas criativas de um filme. Sua responsabilidade vai além do que
será focado pelas câmeras, pois define o filme antes de começarem as
captações de imagens como, por exemplo, na escolha de atores e locais onde
as cenas serão desenvolvidas. Enquanto o diretor possui liberdade de escolhas
e criação artística, pois realiza uma produção independente (cinema de autor),
o realizador deve ter sempre uma preocupação constante em adequar suas
possibilidades com o orçamento e cronograma previamente estipulados pelo
produtor do filme (cinema comercial), limitando, por vezes sua liberdade de
criação.
Enquadramento: limites laterais, superior e inferior da cena filmada. É a
imagem que aparece no visor da câmara.
Figurinista: sob a orientação do diretor ou realizador é o responsável pelo
vestuário usado pelos atores. É ele quem escolhe roupas, calçados e
acessórios condizentes com a situação a ser filmada.
Focalização: segundo Jacques Aumont, esse termo óptico que significa
“concentração em um ponto” foi proposto por Genette para traduzir a
expressão americana focus of narration – que designa o “foco narrativo”, ou
seja, o ponto de onde a narrativa é relatada a cada instante (pelo narrador, por
uma personagem etc.).
107

Maquiador: é o profissional responsável pela preparação da pele dos atores


para que pareça o mais natural possível durante a filmagem. Seu trabalho pode
variar entre realizar uma maquiagem aparentemente natural e a maquiagem
caracterizadora, utilizada principalmente em efeitos especiais (embelezar ou
rejuvenescer uma pessoa, por exemplo).
Mímesis: palavra grega que significa “imitação”. Designa a ação ou faculdade
de imitar; cópia, reprodução ou representação da natureza, o que constitui, na
filosofia aristotélica, o fundamento de toda a arte. Os conceitos de mímesis e
poeisis são nucleares na filosofia de Platão, na poética de Aristóteles e no
pensamento teórico posterior sobre estética, referindo-se à criação da obra de
arte. Em artes tão autônomas e ao mesmo tempo tão próximas entre si como a
literatura, a música, o teatro e o cinema, o artista se destaca pela forma como
consegue imitar a realidade.
Mixagem: É processo de armazenamento de áudio/ sonoridade do filme; é a
atividade pela qual várias fontes sonoras são combinadas. As fontes podem ter
sido gravadas ao vivo ou em estúdio e podem ser de diferentes instrumentos,
vozes, seções de orquestra, ruídos, sons incidentais, entre outros. O dispositivo
utilizado para mixagem é conhecido como mixer, mesa de som ou console de
mixagem.
Panorâmica: câmera que se move de um lado para outro dando uma visão
geral do ambiente. Rotação da câmera em torno de um eixo fixo.
Plano: corresponde a um determinado ponto de vista em relação ao objeto
filmado (quando a relação câmera-objeto é fixa); sugere, segundo Ismail
Xavier, um segundo sentido para este termo que passa a designar a posição
particular da câmera (distância e ângulo) em relação ao objeto.
Plano Americano: trata-se de um enquadramento que realiza um corte na
altura dos joelhos ou coxa da personagem. Muito utilizados nos westerns e
bang-bangs , principalmente nas cenas de duelo, em que o elemento principal
a ser focado, quando se mostravam os dois adversários frente a frente, era o
movimento das mãos sacando a arma.
Plano de Conjunto: emprega-se esse tipo de enquadramento quando se
deseja apresentar o corpo inteiro de um indivíduo, ou mesmo um grupo,
revelando fisicamente suas características físicas, bem como as do ambiente.
108

Plano de detalhe/close: enriquece algum elemento fundamental em algum


momento da ação. São elementos vistos com detalhes, como expressões
faciais, uma lágrima escorrendo no rosto ou um determinado objeto, por
exemplo.
Plano Geral: apresenta todos os elementos que compõem a cena sem
priorizar nenhum deles (os personagens não podem ser identificados).
Normalmente se aplica esse tipo de plano quando se deseja apresentar o
ambiente no qual irá ocorrer a ação.
Plano Médio: enquadra o personagem da cintura para cima. O foco de atenção
é o personagem, eliminando quase que por completo a maior parte do cenário.
Plongée: posição da câmera com o olhar de cima para baixo. Também é
chamada de “ câmera alta”.
Primeiro Plano: utiliza-se quando se tem por objetivo principal destacar
diálogos entre personagens. O corte é realizado da metade do tórax para cima.
Trata-se de um dos planos mais comumente utilizado, pois possibilita trabalhar
com detalhes que queiram ser destacados no contexto.
Primeiríssimo plano: o rosto do personagem ocupa praticamente toda a
totalidade da tela, eliminando o ambiente. A intenção ao utilizar esse
enquadramento é intensificar a carga dramática da cena.
Produtor: é basicamente o responsável por pagar pelos custos da produção
fílmica. Normalmente espera, ao final, obter lucro financeiro ou algum outro tipo
de compensação pelo capital investido. O mais comum no Brasil são
produções realizadas por uma pessoa jurídica, muitas vezes em parceria, ou
mesmo financiando pessoas físicas de algum programa de patrocínio ou
mercado.
Roteirista: a partir de um argumento, ideia ou concepção sobre uma
possibilidade de filmagem, inicia o trabalho do roteirista. É ele quem cria o texto
que contém a sequência a ser produzida, a sequência de falas dos
personagens e/ou narrador, desenvolvida em uma linguagem específica.
Travelling: ou “carrinho”; movimento de translação da câmera ao longo de uma
direção determinada. A câmera em movimento acompanhando, por exemplo, o
andar dos atores, na mesma velocidade.
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Voz off: voz proferida por alguém que não aparece visualmente em cena.
Muito utilizada para marcar a narração em primeira pessoa ou destacar
pensamentos dos personagens.

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