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Nogueira, Maria Luísa Magalhães; Barros, Vanessa Andrade de; Araujo, Adriana Dias Gomide; Pimenta,
Denise Aparecida Oliveira. O método de história de vida: a exigência de um encontro em tempos de
aceleração

O método de história de vida: a exigência de um encontro em tempos


de aceleração

Life-history method: in need of a encounter in accelerated times

Maria Luísa Magalhães Nogueira1

Vanessa Andrade de Barros2

Adriana Dias Gomide Araujo3

Denise Aparecida Oliveira Pimenta4

Resumo

Este texto toma o método de História de vida visando produzir uma reflexão atualizada sobre
esse instrumento. Para tal, retraçaremos seu histórico, buscando identificar filiações teóricas e
interfaces, no intuito de refinar as possibilidades e os limites que carrega. Nesse sentido, são
apresentadas considerações sobre o tempo, o processo e a interlocução construída no
recolhimento da história de vida, de modo a aprofundar reflexões sobre a importância da relação
estabelecida entre pesquisador e aquele que narra sua vida, sobre como é delicado trabalhar com
a memória e, ainda, sobre como é importante ponderar sobre os lugares de onde se fala. Por fim,
concluímos que são três os laços que dialogam no contar da vida – as condições objetivas, as
experiências vividas e a maneira como são narradas – elementos que devem constar no processo
de investigação de cada pesquisador.

Palavras-chave: História de vida. Memória. Lugar.

Abstract

This article takes life-history method in order to produce an updated reflection on this
instrument. Thus, we present its history, seeking to identify theoretical affiliations and
interfaces, aiming to refine its possibilities and limits. Seeking to deepen into the relationship
between the researcher and the one who tells his life, some considerations on the motion-time of
life-history are presented. We also discuss about how memory work is a delicate task and how it
1
Mestre em Psicologia Social (UFMG). Doutora em Geografia (UFMG). Professora do Departamento de
Psicologia da UFMG. Integrante do Laboratório de Estudo e Extensão em Autismo e Desenvolvimento.
E-mail: marilummn@yahoo.com.br
2
Doutorado em Sociologia, Université Paris 7 – França. Professora Associada do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre
Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos da UFMG. E-mail: vanessa.abarros@gmail.com
3
Mestre em Psicologia Social. Doutora em Educação – Universidade Estadual de Campinas. Professora
da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais e do Centro Universitário UMA. E-mail:
adriana.gomide@yahoo.com.br
4
Psicóloga Formada pela UFMG. Especialista em Intervenção Psicossocial no Contexto das Políticas
Públicas – Centro Universitário UMA. E-mail: daop2007@yahoo.com.br

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is important to take considerations about the place from where we speak. The conclusions
highlight three ties in the telling of a life – the objective conditions, the way they are lived, the
way they are narrated – points that should be included in the research process of each
researcher.

Keywords: Life-history. Memory. Place.

Resumen

Este artículo toma el método de la Historia de vida con el objetivo de producir una reflexión
actualizada sobre ese instrumento. Para ello, trazamos su historial, buscando identificar
filiaciones teóricas e interfaces, con el fin de refinar sus posibilidades y límites. En este sentido,
se presentan consideraciones sobre el tiempo, el proceso y la interlocución que se construye
durante la recogida de la historia de vida, de manera a profundizar reflexiones sobre la
importancia de la relación establecida entre el que investiga y el que narra, sobre cómo es
delicado trabajar con la memoria y, además, sobre cómo es importante ponderar sobre los
lugares desde donde se habla. Finalmente, concluimos que son tres los lazos que dialogan en el
contar de la vida – las condiciones objetivas, las experiencias vividas y la manera como son
narradas – elementos que deben constar en el proceso de investigación de cada investigador.

Palabras clave: Historia de vida. Memória. Lugar.

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Introdução 2015; Nogueira, 2004; Gomide, 2006;


Amaral, 2014) com vistas a produzir
Diferentemente de Newton e de uma reflexão mais contemporânea sobre
Schopenhauer, seu antepassado não o seu uso. Para tal, retraçaremos seu
acreditava num tempo uniforme,
absoluto. Acreditava em infinitas séries
histórico, buscando identificar filiações
de tempos, numa rede crescente e ideológicas e interfaces, no intuito de
vertiginosa de tempos divergentes, refinar as possibilidades e os limites que
convergentes e paralelos. Essa trama de carrega.
tempos que se aproximam, se bifurcam,
se cortam ou que secularmente se
ignoram, abrange todas as História de vida como ferramenta de
possibilidades. (Borges, 2007, p. 92) historicidade e de ressignificações

Como são construídas as Em termos gerais, o método de


metodologias qualitativas na ciência história de vida participa da
moderna? Elas são filhas de momentos metodologia qualitativa biográfica na
históricos, da forma como a ciência qual o pesquisador escuta, por meio de
move-se ideologicamente, das perguntas várias entrevistas não diretivas,
e do espírito de cada época e, ainda, do gravadas ou não, o relato da história de
uso que, a cada vez, é feito delas. vida de alguém que a ele se conta.
Assim, cada método se constitui e Nesse processo, a relação entre
reconstitui sustentado na tríade pesquisador e aquele que narra sua
pesquisador-caminho-mundo. O história é um ponto essencial e só
percurso metodológico que cada acontece na presença de um vínculo de
pesquisador trilha em sua pesquisa deve confiança mútua que é construído ao
possibilitar o deslocamento do longo de um processo. Ao fim da
pensamento, abrir possibilidades de ver escuta, todo o material é transcrito e
os vários mundos no recorte de mundo discutido entre o sujeito participante e o
que se deseja compreender. Nesse pesquisador, que, a partir de então, fará
sentido, cabe sublinhar que toda um mergulho analítico para buscar
metodologia foi e é reinventada. identificar naquele material as pistas
A pesquisa com histórias de vida que o ajudarão a tentar responder suas
é, assim, um processo de construção de questões de pesquisa. “É retomar a
conhecimento a partir da relação reflexão de outrem como matéria-prima
específica entre dois atores: pesquisador para o trabalho de nossa própria
e sujeito pesquisador – pelo reflexão” (Chauí, 1987, p. XXI).
pesquisador, como método que Narrar a vida é dela se re-
pressupõe a existência de vínculo; pelo apropriar, refazendo os caminhos
sujeito, participante da pesquisa que percorridos, o que é mais do que
narra sua história, num dado momento “revivê-los”, (Bosi, 1987 p. 55). A
de sua vida. André Lévy (2001) é exato autora sugere que a história narrada
na sua descrição do método: “[...] um “[...] não é feita para ser arquivada ou
encontro único entre um pesquisador e guardada numa gaveta como coisa, mas
uma pessoa que aceita se confiar a ele – existe para transformar a cidade onde
encontro que, também ele, tem sua ela floresceu” (Bosi, 2003, p. 69). Trata-
história própria” (Lévy, 2001, p. 93). se, portanto, de ampliar a possibilidade
Esse texto toma o método de História de de inventar novos modos de ser no
vida, após seu uso em diversas mundo, a partir do vivido e do encontro
pesquisas (Barros; Silva, 2004; Silva, com o outro; de incorporar o vivido, o

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passado que se faz presente. importância da elucidação do lugar


A esse respeito Vincent de onde o pesquisador é colocado pelo
Gaulejac (1996) afirma que as histórias sujeito, pois, segundo ela, dependendo
de vida são ferramentas de historicidade desse lugar os discursos serão
que permitem ao sujeito “trabalhar sua radicalmente diferentes (Favret-Saada,
vida” ao contá-la, jogar com o tempo da 1977, p. 36). Do ponto de vista da
vida. Possibilitam reconstruir o passado antropologia, ao colocar no mesmo
restaurando-o e fazendo sua vinculação plano a etnografia e a feitiçaria,
com a história para reencontrar o traçando uma reflexão sobre o que se
“tempo perdido”, reabilitando o que chama de princípio de simetria, a autora
havia sido invalidado; possibilitam põe em foco o processo de
também ao sujeito sustentar o presente transformação que os pesquisadores
pela história incorporada, pela maneira vivem inelutavelmente ao se
que ela age sobre ele hoje, envolverem, reciprocamente, com os
compreendendo em que a história é contextos de pesquisa que buscam
presente nele, o que lhe permite projetar compreender. Daí a importância de
um futuro situando-o em relação a esse entendermos os endereçamentos e
passado (Gaulejac, 1996, p. 15). Assim, pertencimentos presentes no ato da
as histórias de vida podem possibilitar a pesquisa.
abertura de novas interpretações e O tempo-movimento de
elaborações do vivido. recolhimento da história de vida, em sua
Há um caráter terapêutico nesse condição de atividade e de experiência,
método e ético; uma dimensão possibilita a abertura de um intervalo
interventiva, inscrita na escuta oferecida temporal e afetivo entre eu e o outro,
pelo pesquisador e no fato de que contar conexão que fornecerá as condições
a história é recriá-la, é produzir uma para que o narrador possa aproveitar
leitura sobre as experiências vividas, desse momento e, a partir dele, produzir
produzir ressignificações e produzir novas elaborações sobre o vivido,
uma escrita. O sujeito narrador da enquanto o pesquisador, por sua vez,
história não se limita, assim, a ser um também poderá elaborar suas questões
“objeto” de pesquisa. teóricas e pessoais a partir daquela
Leituras e escritas, falas e escuta. Essa conexão se sustenta na
escutas – processos indissociáveis. história social e no universo simbólico,
Afinal, ao lermos um texto, lemos o desse modo o processo de narrativa das
mundo (Hissa, 2013). Ler é escrever o histórias se localiza numa esfera que
texto lido, tornando-o outro, o que nos privilegia os aspectos simbólicos e
remete ao pesquisador, à relação de subjetivos, em sua conexão
interlocução estabelecida no contar a indissociável ao material. Afinal, é
vida. “As formas e os conteúdos de uma preciso reconhecer que a
história de vida variam de acordo com o vivência/experiência narrada se
interlocutor; dependem da interação que corporifica em fatos diversos, mas sua
representa o campo social da tessitura simbólica é fundamental. Nela,
comunicação, situando-se no interior de no mundo simbólico, é que tais fatos
uma reciprocidade relacional” sociais efetivamente se inscrevem.
(Ferraroti, 1990, p. 52). Em sua célebre E por que narramos nossas
pesquisa sobre a feitiçaria, apresentada vidas? “Contamos histórias porque
na obra Les mots, la mort, les sorts, finalmente as vidas humanas necessitam
Jeanne Favret-Saada (1977) insiste na e merecem ser contadas” (Ricoeur,

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1983, p. 19) Embora Émile Benveniste Ainda segundo essa autora, “Os
afirme que “[...] nunca recuperamos métodos biográficos, os relatos de vida,
nossa infância nem o ontem tão as entrevistas em profundidade
próximo nem o instante fugidio” (1980, delineiam um território bem
p. 73) podemos voltar atrás; “[...] talvez reconhecido, uma cartografia da
seja esse precisamente o trabalho da trajetória – individual – em busca de
narração: a recuperação de algo seus acentos coletivos” (Arfuch, 2002,
impossível sob uma forma que lhe dá p. 17). Nesse sentido, as narrativas de
sentido e permanência, forma de vida traduzem um modo narrativo
estruturação da vida e, portanto, da próprio do autor (de seus saberes,
identidade” (Arfuch, 2002, p. 138). A influências, inspirações, determinações)
ilusão do tempo recobrado. A narrativa em seu tempo e espaço vividos.
é parte “de um presente ávido pelo É possível falar de uma vida
passado, cuja percepção é a apropriação humana como se uma história em estado
veemente do que nós sabemos que não nascente – pergunta Ricoeur (1983, p.
nos pertence mais” (Bosi, 2003, p. 20). 141) – “se não existe experiência que
E, como Eric Hobsbawm (2002, p. 11) não seja mediada por sistemas
ressalta “[...] o que busco é o simbólicos e entre eles os relatos, se não
entendimento da história, e não temos nenhuma possibilidade de acesso
concordância, aprovação ou aos dramas temporais da existência fora
comiseração”. Contudo, o entendimento das histórias contadas a este respeito por
da história só se dá na ação de ir a seu outros ou por nós mesmos?”.
encontro, o que é possibilitado pela O discurso biográfico, nessa
força da narrativa, na escuta perspectiva, carrega uma riqueza ímpar
comprometida. e de complexo tratamento analítico, na
Assim, como dimensão da medida em que mora no plano do que
experiência, a narrativa postula uma não é verificável, transcendendo a
relação possível entre o tempo do esfera da ciência tradicional. Ele é
mundo da vida, o do relato e o da tramado na relação com o interlocutor e
leitura, conforma explica Leonor Arfuch traz os elementos da história coletiva,
(2002, p. 87). como já se sabe, mas está ainda em
conexão com elementos da ordem dos
[…é] relação de incoincidência, distância jogos de poder e da linguagem, do
irredutível que vai do relato ao imaginário, da subjetividade.
acontecimento vivencial, mas,
simultaneamente, uma comprovação
É preciso marcar, ainda, não
radical e, em certo sentido, paradoxal: o apenas a impossibilidade de acesso aos
tempo mesmo se torna humano na fatos fora dos dramas, mas, antes, a
medida em que é articulado sobre um importância que a compreensão do
modo narrativo. drama em si mesmo carrega. Ou seja,
importa entrar em contato, por meio da
E daí que temos os laços entre a escuta da história narrada, com a
linguagem, vida e a mútua implicação dimensão subjetiva, pois ela carrega
entre narração e experiência. riquezas importantes: a maneira como
Poderíamos entender a narrativa da os sujeitos, inseridos em uma sociedade,
própria vida como uma objetivação da são e foram marcados pelos regimes de
experiência – estando nela inserida – da verdade de cada época, tal como
qual participa um outro, uma estudou Michel Foucault (2007), pelas
coletividade, um tempo, um lugar. formas de reprodução social e seus

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dispositivos sociais. Desse modo, epistemológicas, seus desvios e limites


vemos que não é em vão que os e, ainda, o modo como foi recriado, seu
métodos biográficos favoreçam a processo de avanço, sua transformação
inserção da psicologia nos campos da – fruto mesmo dos movimentos
teoria social crítica; certamente, a paradigmáticos que se passam no
psicologia deve dar conta da produção contexto das ciências humanas. O
sócio-histórica, em qualquer de seus pesquisador Howard Becker (1996), em
campos epistemológicos, reconhecendo conferência proferida no Programa de
na esfera psicológica os Pós-Graduação em Antropologia Social
atravessamentos sociais. É justamente do Museu Nacional/UFRJ, em 1990,
no contexto vivido, nas singularidades sobre a Escola de Chicago, afirma:
expressas nas experiências subjetivas
dos sujeitos sociais que os poderes, as Uma delas [histórias da sociologia que
ideologias e os afetos, enfim, os fatos precisam ser contadas] é a história da
prática da sociologia, dos métodos de
sócio-históricos se inscrevem, ficando pesquisa e das pesquisas realizadas,
ali disponíveis para serem lidos, porque não se deve tomar como óbvio
reconhecidos e – em alguma medida – que as idéias foram as forças motrizes ou
transformados. a principal realização de qualquer escola
Há que se acrescentar aqui outro sociológica. (s/p)
fator fundamental: o tempo. Maria Rita
Kehl (2009) sugere uma metáfora A influência e a importância das
interessante, ao pensar a relação do pesquisas desenvolvidas na
sujeito contemporâneo com o tempo: o Universidade de Chicago 5 , sobretudo
atropelamento. A velocidade da vida nos anos 1920/1930, para um viés
passou a ter uma face mortífera ao se qualitativo de pesquisa, são evidentes.
resumir a um só tempo, o da aceleração, No entanto, parece ser importante
numa sociedade competitiva que nos salientar que havia um caráter eclético
atropela. Contudo, é preciso abrir nos métodos usados nas pesquisas,
espaço na pesquisa para que o tempo da podendo acomodar recursos qualitativos
narrativa não encontre barreiras e outros quantitativos simultaneamente,
intransponíveis; o recolhimento da como é o caso de muitos trabalhos de
história de vida não pode ser feito na Robert Park. O movimento da Escola de
aceleração. Ele exige o tempo do Chicago obviamente não apresenta
encontro; o tempo da delicadeza em homogeneidade, mas tem grande
que, ainda segundo a psicanalista, é sintonia em seus direcionamentos
possível amar o transitório. E recolher metodológicos e conceitos
uma história de vida é cartografar o fundamentais – o que lhe confere a
transitório, tal como qualquer incursão unidade necessária à impressão que
pelo mundo da literatura exige; trata-se causou na sociologia e nas ciências
de registrar o movimento da humanas de forma geral –, garantindo-
experiência. 5
A expressão Escola de Chicago resume em si
um movimento que tem, muito significado para
Escola de Chicago e desdobramentos a Sociologia e para a Psicologia Social,
recentes compreendendo um conjunto de trabalhos de
pesquisa sociológica, desenvolvidos entre
Importante lembrar aqui um (aproximadamente) 1915 e 1940, por
pouco da própria história do método, professores e estudantes da “recém” criada
Universidade de Chicago –que foi fundada em
buscando nela suas marcas 1890. (Coulon, 1995).

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lhe um espaço particular na sociologia Contudo, não é apenas para os métodos


americana. É especialmente pela biográficos e para a percepção de outras
preocupação em otimizar a pesquisa e fontes de dados que a escola de Chicago
objetivá-la de forma a tratar de é carregada de valor. É preciso ainda
conhecimentos próximos da realidade marcar a relevância do reconhecimento
social concreta, “[...] marcada pela daqueles pesquisadores sobre a cidade
insistência dos investigadores em como objeto de pesquisa, sobre a
produzir conhecimentos úteis para a importância do desenvolvimento de
solução de problemas sociais concretos” uma abordagem social compreensiva da
(Coulon, 1995, p. 8), que a Escola de cidade, bem como o que tal herança
Chicago emerge. representa, como riqueza que não deve
Elementos que hoje se mostram ser perdida, mas, também, como
básicos em qualquer pesquisa de cunho dificuldades e impasses que ainda se
qualitativo – tal como reconhecer o apresentam no cotidiano de nossas
ponto de vista de quem vivencia pesquisas.
situações que se quer estudar – foram O estatuto principal de tal
efetivamente percebidos e considerados, herança repousa no esforço de
com clareza e rigor, pelo que se privilegiar a dimensão da cultura, no
convencionou chamar de Escola de contexto do pensamento e da pesquisa
Chicago. O método de história de vida é sociológica e econômica. Os
tributário dos avanços de pesquisa que pesquisadores de Chicago abrem espaço
ali foram desenvolvidos entre as no pensamento e na prática da pesquisa
décadas de 1920 e 1930. O livro para uma aproximação consistente com
intitulado A escola de Chicago, de Alan as comunidades, reconhecendo-as no
Coulon (1995), é esclarecedor nesse contexto histórico em que estão imersas.
sentido, resgatando as pesquisas de Há que se sublinhar que foi a cidade de
Thomas e Znaniecki (1927); Park e Chicago o maior convite a tal
Burgess (1969); Thrasher (1963); Shaw movimento. Como se sabe, a cidade
(1966); Sutherland (1937) e nelas vivia naquele período um boom
marcando os avanços para as ciências populacional, gerado por ondas de
humanas, especialmente no que diz imigração internas e externas ao cenário
respeito à inovação metodológica que americano, além de ter passado pelo
contêm, a saber: a importância do ponto incêndio histórico de 1871, que
de vista do sujeito, seu modo particular impulsionou o pensamento urbanista
de vida; o uso de documentos pouco daquele período, reconstruindo a cidade
convencionais (para a época) como nos moldes modernos em que a
fonte importante de dados, como cartas, reconhecemos hoje, em aço e concreto.
diários, etc.; o trabalho de campo como Segundo Remy e Voyê (1976), a cidade
fundamento da boa pesquisa sociológica passou de 112.000 habitantes em 1840,
(sair da biblioteca e, efetivamente, para 1.700.000 em 1910 e, já em 1920,
encaminhar-se à pesquisa de campo) 6 . contava com 2.700.000. Alan Coulon
(1995) apresenta dados semelhantes e
6
Trata-se do reconhecimento da importância chega a apontar 3 milhões e meio de
empírica; é bom registrar que o estudo de caso, moradores na Chicago de 1930. Esse
como proposto em Chicago, não chega a ser aumento populacional impressionante
desenvolvido, como se pode confundir, nos gerou importantes impactos na vida
moldes da observação participante (ainda que, cotidiana da cidade, que produziram
por exemplo, Park tenha trocado
correspondências com Malinowski). diversas demandas de pesquisa, já o

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tecido urbano recebeu novas Sociological Association) e a partir da


justaposições de diferentes usos, Segunda Guerra Mundial, trazendo
gerando uma aglomeração urbana nova. então outras contribuições à ciência,
É interessante observar que os mas gerando, enfim, um afastamento do
estudos ali desenvolvidos versavam que era, até então, a virada trazida por
sobre questões que na atualidade aquele grupo de pesquisadores.
parecem apresentar impasses aos Por um lado, a Escola de
cientistas sociais, tais como a violência, Chicago soube produzir uma abordagem
a segregação e a criminalidade no cultural significativa, que teve como
contexto urbano. Ainda hoje, parece que produto importante e original o avanço
esbarramos em dificuldades qualitativo, gerado pela forte
semelhantes, por exemplo: como dar preocupação empírica e pela coerência
conta do ponto de vista daquele que temática das pesquisas, que tomavam a
vive tal situação; o lugar do imigrante cidade como objeto e campo
que sofre o choque cultural, que se vê (exatamente do modo como Albion
impossibilitado de participar dos jogos Small sugeriu, na função do primeiro
sociais valorizados (consumo, poder); diretor daquela instituição). Tal
como compreender aquele que comete o processo teve influência direta dos
ato violento ou criminoso, trabalhos de Georges Simmel, com
reconhecendo-o como sujeito social, quem diversos pesquisadores
não lhe destituindo saberes e, ainda, estabeleceram contato, inclusive Small,
implicando os outros atores sociais (nós Thomas e Park 8 . Nesse sentido, cabe
mesmos) no processo de produção da marcar também a relevância da
violência? Os pesquisadores de Chicago percepção da importância de outras
avançaram muito teórica e fontes documentais (como na célebre
metodologicamente, mas esbarraram em pesquisa de Thomas e Znanieck 9 ,
obstáculos moralistas 7 e estavam
marcados pelo viés positivista e, de 8
Outro marco da Escola de Chicago é o
certo modo, naturalizante. Assim, interacionismo simbólico de Mead; contudo, sua
apesar da perspectiva qualitativa ter referência não foi Simmel, mas sim Wundt
encontrado em Chicago um importante (Velho, 2005, p. 61). O mesmo vale para os
trabalhos, no campo da educação, desenvolvidos
momento de fôlego e produção, o viés pelo pragmatismo de Dewey, por sua vez, uma
quantitativo viria a suplantá-la, forte influência sobre Mead.
ganhando força crescente no cenário 9
Thomas publicou, após intenso trabalho de
americano pós 1935 (data da ruptura na campo em conjunto com Znannieck, a obra
American Sociological Society para a “The polish peasant in Europe and America;
então denominada American Monograph of an immigrant group” (University
of Chicago’s Press (1818/1820), cujo tema
central é o processo de desorganização –
7
Um exemplo interessante, relatado por organização e reorganização – que sofre um
Howard Becker (BECKER, 1996) em sua grupo ao se inserir numa nova sociedade, como
conferência e citado em outros materiais sobre a exemplo o caso dos poloneses ao se integrarem
Escola de Chicago, envolve justamente a à cultura americana. Os autores estudaram a
aposentadoria de Park. O pesquisador estava vida social de camponeses poloneses na Polônia
fazendo entrevistas, em 1919, dentro de um e camponeses poloneses emigrados nos Estados
quarto de hotel, desenvolvendo um trabalho Unidos, através do recolhimento de relatos
com as prostitutas, quando houve uma batida biográficos, além da análise de documentos e
policial. O acontecido foi noticiado no jornal e, análise documental de cartas, que segundo eles
então, “[...] a universidade achou conveniente permitem a compreensão e a interpretação
pedir que ele se aposentasse” (BECKER, 1996, desses emigrantes a partir da significação
s/p). subjetiva que eles mesmos denotam às suas

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desenvolvida com os imigrantes do modo de produção do espaço


poloneses) e do valor da escuta do (Lefebvre, 2008), seja no que diz
sujeito. Contudo, diversos respeito à preponderância da população
pesquisadores – como não poderia ser urbana à rural (Davis, 2006). Em sua
diferente, se reconhecermos o momento vasta produção, Park consegue se
histórico da ciência moderna – seguiam contrapor à aceitação comum na época
em busca de critérios de “verdade”, sobre a necessidade de uma
buscando verificar as informações e homogeneidade étnica para o país
traçar, assim, explicações (Coulon, 1995), fato que o protege de
excessivamente generalizantes, o que qualquer movimento de descarte.
gera algumas contradições que Sabemos, ainda, que o autor assume
destacamos neste texto. Assim, ainda uma posição que valoriza, a todo o
que o estudo de Thomas seja tempo, um esforço em reconhecer os
reconhecido pela tentativa da produção aspectos materiais dos contextos em que
dos conceitos explicativos de atitude e estão as questões de pesquisa.
de desorganização social (Coulon, Entretanto, uma aproximação da
1995), sua grande marca é o esforço em vertente urbana de tais estudos
compreender do interior os processos evidencia suas contradições, pois Park
vividos pelos migrantes, isto é, “[...] chega a desenvolver o conceito de área
levar em conta o significado da ação natural, buscando a compreensão da
para os indivíduos” (Coulon, 1995, p. ocupação do ambiente urbano por uma
81), mostrando a importância das explicação meramente adaptativa,
transformações sociais para aqueles esvaziada, desse modo, tal como nos
sujeitos. trabalhos de Burgess, de uma leitura
Por outro lado, é patente em política. Nesse sentido, a estrutura
diversos estudos, mesmo os de Park, ecológica da cidade de Chicago seria,
uma vertente ecológica e naturalista, para Park:
referenciada no darwinismo, o que,
possivelmente, explica o futuro [...] um mosaico de zonas caracterizadas
deslocamento da vertente qualitativa pelo fato de que cada uma delas está
dominada por um certo tipo de
para a forte produção quantitativa. E, o população ou de funções; um mosaico de
mais importante, a ausência de reflexão zonas que, ademais, se perpetuam por
de cunho político. Porém, não meio do duplo processo de seleção dos
desconhecemos a importância e o valor habitantes e de socialização dos mesmos,
dos trabalhos de Park. Ele afirma, sem que isso queira dizer que nos
encontramos frente a um fenômeno
inclusive, que estudando a cidade estático. (p. 214 – tradução nossa)
poderemos compreender o mundo, já
que nela moramos ou estamos e a ela A tentativa de produzir um
nos dirigimos – tese quase profética se modelo universal que desse conta de
pensarmos que vivemos, atualmente, explicar e prever a distribuição dos
numa sociedade urbana, seja em termos grupos sociais nas áreas urbanas, tal
como trabalhou Burgess, é emblemático
ações. Foram explorados documentos coletados e evidentemente criticável10. Para Remy
na Polônia e, ainda, outros existentes nos
Estados Unidos que tratavam sobre os poloneses
que lá estavam, além da coleta do longo relato 10
5 zonas concêntricas que vão desde o CBD
de um polonês chamado Wladek Wiszniewski. (Central Business Disctrict) até as moradias,
afastadas do centro, da classe alta – onde os
indivíduos com melhores qualidades

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Nogueira, Maria Luísa Magalhães; Barros, Vanessa Andrade de; Araujo, Adriana Dias Gomide; Pimenta,
Denise Aparecida Oliveira. O método de história de vida: a exigência de um encontro em tempos de
aceleração

e Voyê (1976, p. 216), “a Escola de possui, portanto, uma vantagem inegável


Chicago considera a cidade como em face de outras ferramentas, visto que
ele mobiliza o indivíduo e exige dele o
resultado de movimentos espontâneos e que outras abordagens não lhe solicitam.
quase naturais, o que exclui uma análise Desse modo, a questão não está na
da dimensão política dela mesma”, “verdade”, mas no “sentido”, e é preciso
diferentemente da escola francesa de deportar a perspectiva da verificação ou
pensamento urbano, em que a cidade é da qualificação dos fatos, certamente útil,
porém insuficiente e necessariamente
“um objeto de estratégias políticas e de inacabada, para a análise do sentido do
conflitos de poder”. relato, daquilo que ele quer dizer para o
Todavia, ao fazermos essas autor.
ressalvas, nos aproximamos ainda mais
das qualidades da produção inovadora Como insiste Lejeune (2008, p.
que a metodologia desenvolvida nesse 51), o interesse da narrativa reside no
contexto carrega. Somos fato de que o autor nos conta o que
reencaminhados a pensar no método apenas ele pode nos dizer, cabendo ao
biográfico, que emerge dos esforços pesquisador “construir um objeto que
metodológicos dos pesquisadores dessa seria, na verdade, apenas um dos
escola. Porém há aqui, também, outro objetos possíveis a serem construídos”.
ponto a ser considerado: todas aquelas
pesquisas que trabalharam, no âmbito O lugar da memória nas histórias de
da Escola de Chicago, no viés vida
biográfico apresentaram uma
preocupação que se mostra, no contexto José Saramago (2001) conta uma
contemporâneo, descartável: checar os história simples, por ele lembrada em
dados trazidos pelas histórias Janela da Alma: diz que costumava
recolhidas. Esses dados eram frequentar o Teatro da Ópera de Lisboa,
comparados às cartas, aos jornais da onde havia uma coroa dourada enorme
época, aos diários e cotejados com que formava o camarote real. Essa
entrevistas suplementares, feitas com coroa era vista assim, bela e imponente,
outros atores envolvidos em cada pela plateia, mas de onde ele,
problema de pesquisa tratado. Tal Saramago, assistia ao espetáculo, numa
contradição já conseguimos superar, posição desprivilegiada, era possível ver
concordando com Bouilloud (2009, p. muito mais do que a coroa.
47) que afirma:
Eu ia muito à ópera, no São Carlos, no
O relato autobiográfico é, portanto, teatro da ópera de Lisboa. E ia sempre lá
incompleto; ele é como todo instrumento pro galinheiro, lá pra parte de cima, onde
de coleta de dados em ciências sociais. via uma coroa, quer dizer, o camarote
Olhemos mais longe ainda: ele é real. Começava embaixo, ia até lá em
incompleto nos dados, como toda cima e fechava com uma coroa, uma
ferramenta de coleta, mas não no plano coroa dourada enorme. Coroa essa que
da significação, contrariamente a muitas vista do lado da platéia e do lado dos
outras abordagens. De fato, a camarotes era uma coroa magnífica. Do
necessidade de que o relato “faça lado em que nós estávamos não era,
sentido” obriga a fechar o texto nele porque a coroa só estava feita entre as
mesmo, a torná-lo coerente ou autônomo quartas partes. E dentro, e era oca, e
ou a lhe fornecer uma lógica ou uma tinha teias de aranha, e tinha pó. Isso foi
“ordem”. O relato de tipo autobiográfico uma lição que eu nunca esqueci. Nunca
esqueci essa lição: é que para conhecer
as coisas há que dar-lhes a volta. Dar-
adaptativas conseguem chegar. lhes a volta toda. (s/p.)

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reconstruída, inventada, podemos dizer.


O galinheiro, esse lugar Ela não é feita de virtudes impecáveis, é
desvalorizado, inferior e desprovido do criada, cultivada, transformada –
status que o camarote real comportava, sempre.
possibilitava outras miradas, de lá se via A memória, onde navegam as
mais. Vale repetir a leitura que o escritor histórias de vida narradas, é um
faz daquela experiência: é que para engenho delicado para todos. Ela é e
conhecer as coisas há que dar-lhes a precisa ser imprecisa e inventiva, pois
volta. Dar-lhes a volta toda. Sua muito da plasticidade da existência cabe
lembrança carrega não apenas a a ela. As memórias jamais devem se
importante lição trazida ao presente enrijecer, sob pena de perder os códigos
pelo escritor e multiplicada em suas que conformam seu funcionamento.
palavras, mas, ainda, o lugar da imagem Seus mecanismos rejeitam a rigidez,
e a pertinência da alteridade, eixo colocam em suspensão o que é
fundamental de nossas experiências, de repetitivo e perseguem a invenção. A
suas vivências. Ainda segundo fruição da memória faz eco aos fluxos e
Saramago (2001), há que se pensar no ao imponderável da vida, ofuscando o
que vemos e que convencionamos que é convencionado, individual ou
chamar de realidade: socialmente. O que importa ao sujeito é
a forma como a coisa foi vivida, ou seja,
Nós não temos, por exemplo, os olhos como determinada vivência pregressa
como os têm a águia ou o falcão. Nós compõe com os fatos e elementos
vivemos dentro d’uma possibilidade de
ver, que é nossa, que nem vê – supondo
afetivos atuais.
que os nossos olhos são olhos sãos, A memória é fazer constante,
normais – que nem vê nem de menos, movente. Para Ecléa Bosi (1987, p. 17),
nem demais. E para tornar isso claro, eu “A memória não é sonho, é trabalho [...]
digo que se o Romeu da história tivesse lembrar não é reviver, é refazer,
os olhos de um falcão, provavelmente
não se apaixonaria pela Julieta, porque os
reconstruir, repensar com ideias de hoje,
olhos dele veriam uma pele que, enfim, as experiências do passado”. Lembrar
veriam uma pele que provavelmente não não é viver de novo, é construir –
seria agradável de ver; porque a acuidade sempre de outro jeito – o vivido, que se
visual do falcão, cujos olhos o Romeu torna novo, nosso. A memória não é um
teria, não mostraria a pele humana tal
como nós a vemos. Portanto, saber o que
estado de coisas, uma bagagem, não é
é realidade, bom, se eu acreditar que segura, confiável ou blindada (como
deus fez os meus olhos para que eu visse costumamos pensar). A memória é
a realidade tal como ela [é], então, processo: deslocamento (Bosi, 1987). É
estupendo. Mas como nós sabemos que justamente a memória que possibilitará
não é assim, não vale a pena estarmos a
perder tempo com isso. (s/p)
o novo. Por isso, a memória inteira é
insuportável; ela só cabe em nós por sua
Nossos olhos não veem a condição de incompletude, tal como
realidade tal como ela é, tampouco relata o personagem Funes, o
nossa memória acessa o vivido memorioso, de Jorge Luis Borges (2007,
objetivamente. Ao contrário, parece que p. 96):
tal relação perfeita e precisa com o
Com efeito, Funes não recordava
passado seria, de fato, insuportável. somente cada folha de cada árvore, de
Nessa medida, sabemos que a memória cada monte, como também cada uma das
é sempre instável. É construída e vezes que a tinha percebido ou
imaginado. [...] [Era] solitário e lúcido

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espectador de um mundo multiforme, Em suas palavras:


instantâneo e quase intoleravelmente
exato. O tempo imaginário escapa à
contingência cronológica. Além disso, o
Milton Santos afirma: “no lugar que vivemos a posteriori conduz a
novo o passado não está; é mister ‘reescrever’, a ‘reconstruir’, a reelaborar
encarar o futuro: perplexidade primeiro, de outra maneira o que foi vivido antes e,
então, viver de uma outra maneira. É
mas, em seguida, necessidade de nesse sentido que podemos dizer que o
orientação. Para os migrantes, a presente muda o passado.
memória é inútil” (2008, p. 328). Evidentemente, não é o passado que
Porém, o passado nunca está nos muda, mas a relação que um sujeito
lugares como passado. Sempre se faz estabelece com a sua história passada. (p.
18, tradução nossa)
presente, pois a memória parte sempre
do presente. A memória (o passado),
A psicanálise ensina como as
talvez não seja – rigorosamente –
experiências são feitas de hoje, uma vez
“inútil”, como sugere Milton Santos;
que no mundo sensível, presente,
seja apenas insuficiente. É o próprio
lembrança e sonho se confundem. Desse
autor quem continua a discussão:
modo, não devemos nos preocupar com
Para os migrantes, a memória é inútil.
a cronologia dos acontecimentos,
Trazem consigo todo um cabedal de justamente porque necessariamente ela
lembranças e experiências criado em nos escapa. Não é preciso reconstruir a
função de outro meio, e de que pouco trajetória linear das histórias de vida;
lhes serve para a luta cotidiana. Precisam elas não são feitas nem vividas na
criar uma terceira via de entendimento da
cidade. Suas experiências vividas
linearidade.
ficaram para trás e nova residência A neurologia também reconhece
obriga a novas experiências. (p. 328) a volatilidade da memória. Segundo
Oliver Sacks (2013), o cérebro não
Se entendemos que a memória distingue uma experiência vivida e um
se faz entre a lembrança e o sonho, uma memória vivida ou a
esquecimento, tal ideia de “inutilidade” lembrança de um relato de outrem.
se torna mais clara: a memória não está
no passado (aí residiria sua inutilidade, Parece que não existe, nem na mente
na permanência no passado), mas ao nem no cérebro, nenhum mecanismo
para garantir a verdade de nossas
contrário, no presente, ela é geradora do recordações, ou pelo menos o caráter
futuro (Bosi, 2003, p. 66) ao reinventar verídico delas. Não temos acesso direto à
o passado. E na nova cidade é onde os verdade histórica, e aquilo que sentimos
saberes serão cultivados e o novo ou afirmamos como sendo verdadeiro
surgirá. E no novo, a memória convoca [...] depende tanto de nossa imaginação
quanto de nossos sentidos.Não existe um
o passado no presente. modo pelo qual os acontecimentos do
A memória acontece na relação mundo possam ser transmitidos ou
com o outro, com o grupo, com a gravados diretamente em nossa mente;
produção de uma identificação (ainda eles são experimentados e construídos de
que esta seja pela via da oposição ou da modo altamente subjetivo, que é
diferente em cada indivíduo, para
resistência), quando amalgamamos ao começar, e reinterpretado ou revivido
passado o presente. Segundo Vicent de diferentemente a cada vez que são
Gaulejac, (1996) certos acontecimentos recordados. [...] Com frequência nossa
do passado são vividos como se fossem única verdade é a verdade narrativa, as
hoje; o presente é a trama da memória. histórias que contamos uns aos outros e a

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nós mesmos – histórias que singular, inscrita num universo de


reclassificamos e refinamos sem cessar. relações sociais, de classe, de poder, que
Essa subjetividade está embutida na
própria natureza da memória e decorre
reenvia às condições sociais de
de seus mecanismos e bases no cérebro. existência (Lévy, 2001). O sentido é o
(s/p) que faz sentido para as pessoas; ele não
está na própria história nem mesmo em
A conclusão do neurologista sua narrativa, mas é
aponta para a importância do outro e é apreendido/construído na retomada
bastante pertinente a afirmação de que posterior do que foi narrado, no
só existe a verdade narrativa. Outro movimento de pensamento no qual é
ponto importante, que o autor sublinha, representado (Favret-Saada, 1977).
é justamente a construção subjetiva e Como explica Lévy (2001, p. 27):
plural na forma como os
acontecimentos do mundo são [...] não no próprio passado, mas no ato
processados. No entanto, a relação que que o reitera – como em uma fuga de
Bach, na qual o mesmo tema, retomado
o senso comum e mesmo que a ciência em suas diferentes variantes, adquire sua
estabelecem, geralmente, com a significação dinâmica; na qual a
memória reporta, novamente, a dimensão do tempo é, pois, primordial,
princípios presentes no projeto na medida em que faz existir
moderno, como a ideia de controle. Mas concretamente o desvio irreprimível e a
tensão que dele resulta, entre o passado
o conteúdo da memória, por sua vez, definitivamente perdido, ultra-passado e
não é matéria sujeita ao o que dele pode ser pensado e dito, a
disciplinamento. A memória é rebelde e respeito dele, no presente. Desse hiato,
é sempre mais potente do que uma dessa contradição e dessa tensão entre o
atividade de repetição. Nesse ponto, esclarecimento de um passado findo e o
presente vivo e enigmático, resulta o
cabe lembrar a leitura que a Psicanálise efeito de sentido, que não é uma
traça sobre o caráter mortífero da resposta, mas uma pergunta, que cria as
repetição, o que nos encaminha a pensar condições de um devir possível.
sobre a importância dos processos de
elaboração que a memória convida – Essa dimensão se sustenta assim,
reclassificações e refinamentos pelo trabalho da memória, na
constantes – que, então, segundo Oliver possibilidade reiterada do sujeito de se
Sacks (2013) está presente nos próprios reapropriar de sua história, de mobilizá-
meandros neurológicos, na conexão la – na relação com a esfera social –
indissociável corpo-subjetivação. posicionando-se no presente. Repousa
Processos de elaboração que são aqui, na produção de sentido, a força do
indissociáveis da produção de sentido método, na forma como se estabelece
que o sujeito realiza, a posteriori, como com o sujeito de pesquisa uma relação
veremos, nos processos narrativos de de não assujeitamento, oferecendo a ele,
sua vida. portanto, um produto dessa experiência.
Trata-se de não reafirmar a
A busca de sentido(s) e a força do relação de objeto que tantas vezes a
lugar universidade, como espaço privilegiado
da ciência moderna, produziu, mas, ao
O método de história de vida contrário: o sujeito que narra sua
possui uma dupla dimensão: a descrição história é um coautor do trabalho,
de fatos e a busca de sentido. Os fatos participante ativo (e reconhecido) do
fazem parte de uma experiência de vida conhecimento produzido, no encontro

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com o pesquisador. Além de ter, no fim na qual o pesquisador se transforma em


das sessões de recolhimento da história, sujeito e objeto de pesquisa e a relação
o registro completo de sua fala (o livro entre ele e o sujeito que narra se situa
de sua vida), ele pode, no processo, no mesmo pé de igualdade. O
experimentar o viés terapêutico pesquisador estará dessa forma em
oferecido pelo método, em que a condições de refletir igualmente sobre si
palavra é um eixo central; na escuta mesmo, o que transforma a investigação
comprometida que o pesquisador em uma ocasião para seu
oferece, a fala fica carregada de autodesenvolvimento: “eu não posso
potência. Esse é, inclusive, um ponto compreender a situação de classe de
para verificação do processo vivido uma pessoa ou de um grupo familiar se
como História de Vida. Afinal, uma eu não me interrogo primeiro sobre
série de entrevistas biográficas ou minha própria posição de classe”
mesmo narrativas não se constitui, (Ferraroti,1984, p. 92). Os
necessariamente, como História de Vida entrevistados, por sua vez, não são
– ainda que possam, de modo distinto, informadores, mas participantes
produzir dados relevantes para a engajados na pesquisa. Desse modo,
produção de uma pesquisa. Entretanto, é quando a história de vida acontece, nos
preciso registrar que o método possui termos mencionados, ela faz acontecer;
determinados elementos constitutivos mobilizando entrevistado e
que o definem em sua identidade e entrevistador, movendo, na história de
proposta, sendo a experiência da vida, a história social. E, para isso, é
construção de sentido um de seus fundamental refletir também sobre a
pilares fundamentais. O outro elemento dimensão epistemológica que participa
diz respeito ao lugar do participante da do estudo, pois tal relação só poderá
pesquisa que, como veremos, deverá assim se estabelecer se o pesquisador
também produzir sentido a partir estiver implicado em abandonar sua
daquele encontro, tal como propõe posição de poder (instalada pela ciência
Ferraroti (1984). moderna) e se estiver aberto e
O recolhimento de histórias de interessado em refletir sobre os aspectos
vida produz uma relação em que ideológicos presentes no conteúdo
vínculos recíprocos de confiança e social e cultural a ser encontrado.
afinidades vão se formar com o tempo, Por isso, a lembrança trazida por
não sendo, simplesmente, uma busca de Saramago é, aqui, mais uma vez,
informação sobre o outro. É pertinente, pois é preciso “dar a volta
imprescindível o comprometimento dos toda” (Saramago, 2001, s/p). O segredo
sujeitos, como ressalta Bosi (2003, p. está justamente no movimento de ir até
61). o que se deseja conhecer – no risco de
se sujar11 e de ser afetado pela busca –,
Narrador e ouvinte irão participar de uma
aventura comum e provarão, no final, um
sentimento de gratidão pelo que ocorreu: 11
Por ocasião de uma pesquisa (NOGUEIRA,
o ouvinte, pelo que aprendeu; o narrador, 2004) fizemos uma entrevista com o Padre
pelo justo orgulho de ter um passado tão Mauro, pároco do Aglomerado Santa Lúcia em
digno de rememorar quanto o das Belo Horizonte. Padre Mauro havia se mudado
pessoas ditas importantes. para essa favela recentemente e nos relata, de
um modo delicado, que vinha refletindo sobre
Podemos entendê-la como uma como essa mudança, já que ele é de Belo
relação de interlocução (Ferraroti, 1984) Horizonte, mas de outra parte da cidade. Assim,
como objeto de sua reflexão sobre a ida para

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aí repousa a possibilidade de construção no livro Breves Notas sobre Ciência:


de algum certo saber sobre alguma “Tu não usas uma metodologia. Tu és a
coisa. É, ainda, nesse movimento, tanto metodologia que usas” (2006, p. 62).
para o pesquisador quanto para o sujeito No caso do método que discutimos, essa
que conta sua história, que habita a formulação é particularmente forte. Na
possibilidade de ruptura com olhares mesma linha, a reflexão de Eduardo
hegemônicos, com dualismos e Mendieta (2008) nos encaminha à
dicotomias. Aí mora a produção de relação tempo-espaço, colocando em
sentido, tal como ensina Levy (2001). É questão o lugar e o endereçamento
na invenção, na imaginação do que há sempre presente em nossas reflexões de
por vir, na representação do que se viu pesquisa:
que alcançamos um pouco da vida,
vivendo-a e refazendo-a nas lembranças Simultaneamente, quando pensamos
contadas ao outro. sobre a América Latina, nós temos que
perceber que pensamos a partir de um
Todo esse processo é refeito a lócus particular, como faço agora, por
cada história recolhida. Lembramos exemplo, na costa leste dos Estados
aqui das palavras de Gonçalo Tavares Unidos, de dentro do sistema
universitário estatal de Nova York.
Pensar no tempo exige que pensemos o
uma favela, ele relata a história de um cachorro
espaço do nosso tempo, o tornar-se
poodle branco que chegara recentemente
espaço do tempo. (p. 287)12
também àquela localidade. Ele afirma: “[...] e aí
eu vi uma moça carregando um cachorro poodle
branco e eu sempre fui muito cismado com É bonita e importante a reflexão
esses cachorro branco [...] quer dizer, manter um do pesquisado sobre o tornar-se espaço
cachorro branco é o negócio mais difícil do do tempo. Parece ser esse o conteúdo
mundo, não só financeiramente, mas, quer dizer, comum das narrativas singulares que o
cê tem que gastar muito tempo com um
cachorro branco. [...] Aí ela me narrou que a método possibilita. A cada encontro, o
patroa dela tinha viajado pra fora do país, pra método é refeito. O caminho
morar fora e ela tinha sido demitida e uma das metodológico é adaptado e
coisas é que ela ficou com o cachorro da mulher transformado em cada pesquisa, a partir
como herança, [...] eu fiquei curioso pra ver da consideração do sentido, produzido
como é que ia ser um cachorro branco numa
favela, né? Aí de fato, cê acredita que esse no processo de narrativa, nos lugares
cachorro ele virou – eu acompanhei por muito em que a narrativa acontece. O encontro
tempo – ele acabou virando um vira-lata? Ele (quem narra; quem escuta) faz toda a
foi ficando bege, foi ficando marrom, foi diferença, bem como o lugar em que ele
ficando imundo, ele era, ela não tinha tempo de toma corpo – o lugar é um conceito que
ficar com ele, cuidar talvez. Aí ele virou um
cachorro de favela mesmo assim, e isso é real, carrega indissociavelmente o material e
né? Não é suposição não. E eu comecei a pensar o simbólico na sua especial capacidade
na minha própria vida se ia acontecer comigo de servir como um desenho quase
também. Se eu também ia me deixar sujar, no
sentido positivo assim, me deixar envolver tanto
12
pela realidade da favela a ponto de me tornar “Simultaneously, when we think about Latin
um favelado mesmo, eu acho que o cachorro America, we must realize that we think from a
teve um bom resultado, acho que ele, ele ficou particular locus, as I do now, for instance, on the
mais agradável aos olhos, não ficou feio não. eastern coast of the United States, from within
Foi interessante ver ele dentro da realidade: ele New York´s state-university system. Thinking in
não tinha mais o corte que tinha pelo salão de time requires that we think the space of our
cachorro.” (NOGUEIRA, 2004, p. 7. grifos timing, the becoming space of time.”
nossos). (MENDIETA, 2008, p. 287).

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preciso do tempo. Para Milton Santos natureza global têm um papel


(2008) o lugar é o espaço local. fundamental” (Santos, 2008, p. 225).
Podemos entender a especificidade do Para Milton Santos (2008), o lugar
conceito imaginando que ele emerge ocupa uma posição central no processo
quando a escala geográfica toma a de globalização e no jogo das forças
forma do vivido. produtivas – o que não é de forma
É no lugar que mora a memória alguma desprezível em termos políticos.
e a experiência, pois é onde a vida Para entendermos os lugares
acontece e, assim, é onde o sentido e os como políticos, é preciso recorrermos,
significados se inscrevem; ficando ali inicialmente, a uma definição mais
registrados para serem recriados. No ampla do conceito de política, afinal, a
lugar, nas ligações que oferece entre política pode ser entendida a partir de
mundo e indivíduo, entre tempo e diversas ópticas. Inspirados no
espaço, entre materialidade e pensamento de Jacques Rancière
imaterialidade, as mediações (1996), pensamos que a política não
simbólicas, fundamentais à vida pode ser tratada como um fato
cotidiana, se fazem existir (Santos, circunscrito. Portanto, vamos entender a
1996). Precisamos sempre partir de um política como espaço de negociação, a
lugar: “o homem não vê o universo a partir do dissenso.
partir do universo, o homem vê o A importância da política e sua
universo a partir de um lugar” (Santos, permanência na definição e uso da
1987, p. 81). É justamente nos lugares categoria lugar é evidente, afinal é
que a experiência subjetiva acontece justamente onde esse encontro de
como produção de sentido, movimento coletividades se manifesta na
e diferenciação. Portanto, é importante experiência de cada um. Tal como
refletir também sobre o lugar em que a sugere Jorge Luis Borges (2010, p. 111)
narrativa se dá. O lugar é ação, “o espaço pode ser parcelado em varas,
“intermédio entre o Mundo e o em jardas ou em quilômetros; o tempo
Indivíduo” (Santos, 2008, 251), e sua da vida não se ajusta a medidas
força nos convoca à percepção do análogas”. Os lugares nos permitem
cotidiano, esse tecido histórico que entrever, sem, contudo, apagar as
sustenta os fatos. Lugar e cotidiano se contradições do nosso encontro com o
ligam por serem feitos, ambos, de ação, mundo (a dialética social), o processo
investido de uma dimensão política, de diferenciação e a negociação que daí
esse aspecto perene da vida social. decorre – registro da esfera política. Do
Para Henri Lefebvre (2008, p. mesmo modo, é também no lugar onde
61), o espaço é político, ideológico e estão guardadas as memórias, como
estratégico, não apenas por integrar as num palimpsesto, possibilitando a
novas raridades, mas essencialmente emergência do novo, de outros tempos,
por ser um produto social, desde do possível (a que se refere Lefebvre,
sempre. O espaço é político, ainda, por 2008), pois o lugar é tecido de
carregar o tempo do vivido, a história, a cotidiano, de existência, de invenção da
produção do espaço. Por sua vez, o vida.
lugar não está desconectado da
produção do espaço, pois “cada lugar é, Considerações finais
[...] a cada instante, objeto de um
processo de desvalorização e A palavra histaur, em grego,
revalorização, onde as exigências de significa aquele que sabe, conhece e que

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pode então, contar, produzir um relato. Chauí, (1987, p. XXI). Contudo, o


Como Franco Ferraroti (1990, p. 81) reconhecimento dessa dialética e sua
destaca, não contamos nossa vida a um pertinência não é sempre garantido no
gravador e sim a “uma outra âmbito da ciência moderna disciplinar,
consciência”. De fato, uma história que ainda, narcisista, se considera capaz
indica a potência de alguém de produzir de esgotar perguntas e achar a verdade.
um relato, de estar dentro do jogo de Desconhece que, “As memórias só são
linguagem que nos liga ao outro, nos faz sinceras pela metade, por maior que seja
reconhecíveis nas relações de alteridade. a preocupação com a verdade: tudo é
Uma história pode ser contada de várias sempre mais complicado do que o
formas, versões, com distintos dizemos” como nos ensina André Gide
aprofundamentos e ramificações dos (apud Lejeune, 2008, p. 42), o que nos
fios que a conformam. A cada vez que remete à reflexão sobre o tempo,
convidamos alguém a ouvir nossa essencial, na medida em que é o cenário
história (que aceitamos o convite para onde as histórias de vida são
contar nossa história) estamos dando as construídas, contadas e escutadas.
mãos e seguindo juntos pelos Refletir sobre o tempo da vida é
enraizamentos diversos que uma tão difícil quanto sobre a morte. Mas é
vivência produziu em nós e, assim, ela, a ideia da morte, que confere
podemos cultivar diferentes frutos, da espessura ao tempo presente, segundo a
mesma raiz. A relação com o outro é Psicanálise. A morte está entre a
fundamental, conforme anunciou Ecléa supressão e a continuidade do que
Bosi (2003), o afeto está presente na fizemos vazar de nós, sujeitos,
pesquisa. sociedade. Tempo, tecido invisível em
A escrita feita de memórias e que a vida escorre. Maria Rita Kehl, a
afetos nos revela a importância do outro partir de Antonio Candido, reconhece
na produção da experiência subjetiva e, que a vida é confeccionada na
ao contrário do que poderia parecer o transitoriedade do tempo, ainda que
triunfo do individualismo, as histórias hoje o Capitalismo seja seu senhor: “O
de vida recolocam o ser humano, em tempo é o tecido da nossa vida”
sua dimensão concreta – aquela da (Candido apud Kehl, 2009a, p. 454).
experiência –, no centro da cena, o que Tecido tramado em memórias, objetos,
significa colocá-lo diante de seu próprio espaço. É invisível, não imaterial.
desdobramento especular, que é relato A importância dos
de todos. O campo da subjetividade acontecimentos e a produção de seus
com seu caráter individual, singular, de sentidos têm uma relação direta com sua
unicidade, construído concretamente origem, ou seja, com o movimento
nas experiências do coletivo, que, por imprevisível da vida. A riqueza da vida
sua vez, se manifesta por meio do relato está nos significados que atribuímos ao
e nele se reconstrói – alteridade. vivido – nunca controlável – e que fica
Encontramos assim os três laços que depositado em nós, que vai
dialogam no contar da vida: as significando-nos, de maneira
condições objetivas, as experiências impermanente. Os significados das
vividas, a maneira como são narradas. vivências mudam, mudamos. Afinal, há
Dialética entre realidade material e uma característica plástica das
realidade subjetiva em “um trabalho da impressões da vivência do tempo em
reflexão sobre a matéria da nós, impossível de se ajustar a medidas
experiência”, como aponta Marilena e antecipações, por isso mesmo

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aceleração

atingíveis à posteriori, nos processos arttext.


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lembranças nesse processo não são Lembranças de Velhos. São Paulo:
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Denise Aparecida Oliveira. O método de história de vida: a exigência de um encontro em tempos de
aceleração

Belo Horizonte/Rio de Janeiro:


UFMG/Iuperj.

Recebido em 21/05/2015

Aprovado em 12/06/2017

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