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Educação Inclusiva: Entre


a História, os Preconceitos,
a Escola e a Família

Inclusive Education: History, Prejudices, and School and Family

Educación Inclusiva: Entre la Historia, los


Prejuicios,la Escuela y la Familia

Sylvia da Silveira Nunes


Universidade Federal de Alfenas

Ana Lucia Saia & Rosana


Elizete Tavares
Universidade Federal de Itajubá

http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001312014
Artigo

PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2015, 35(4), 1106-1119


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PSICOLOGIA:
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
2015, 35(4), 1106-1119 Sylvia da Silveira Nunes, Ana Lucia Saia & Rosana Elizete Tavares

Resumo: A inclusão dos alunos com deficiência no ensino regular tem sido cada vez mais
discutida. O objetivo do presente ensaio é problematizar as relações entre escola e família,
partindo da educação especial, sob a perspectiva da educação inclusiva, isto é, para todos,
independentemente de quaisquer particularidades. Para tal, partimos da reflexão sobre alguns
aspectos históricos em relação às pessoas com deficiência e seus processos de escolarização.
Em um segundo momento, refletimos sobre a complexa dinâmica do preconceito e dos
estereótipos no jogo de constituição da subjetividade, para, a seguir, pensar nos pressupostos
básicos da educação inclusiva e nos entraves entre família e escola, perpassados pelas políticas
públicas educacionais. Concluímos que a diversidade presente na educação inclusiva não é
um favor aos grupos historicamente excluídos, mas uma luta pela humanização de todos nós.
Luta essa que necessariamente passa pela assunção e superação de preconceitos e estereótipos
de todos os envolvidos, uma vez que o convívio com a diferença é um esforço coletivo.
Palavras-chave: Educação Inclusiva. Educação Especial. Preconceito. Família.

Abstract: Because the trend toward including students with disabilities in regular education
has increased, this essay discusses relationships between school and family, starting from
special education, within the perspective of inclusive education, that is, for everyone,
regardless of any particularities. Therefore, we begin by reflecting on some historical aspects
of the schooling process for people with disabilities. Thereafter, we reflect on the complex
dynamics of prejudices and stereotypes in the constitution of subjectivity, considering
inclusive education’s basic assumptions and barriers between family and school within public
educational policies. We conclude that the diversity of inclusive education is not a favor
to historically excluded groups but a struggle for the humanization of us all. This struggle
necessarily involves overcoming the prejudices and stereotypes of all concerned because
living with differences is a collective effort.
Keywords: School Inclusion. Education, Special. Prejudice. Family.

Resumen: La inclusión de los alumnos con deficiencia en la enseñanza  regular ha sido


discutida más de forma recurrente. El objetivo del presente ensayo es problematizar las
relaciones entre escuela y familia, partiendo de la educación especial, bajo la perspectiva de
la educación inclusiva, es decir, para todos, independientemente de cualquier particularidad.
Para ello, partimos de la reflexión sobre algunos aspectos históricos con relación a personas
con deficiencia y sus procesos de escolaridad. En un segundo momento, reflexionamos sobre
la compleja dinámica del prejuicio y de los estereotipos en el juego de la constitución de
la subjetividad, para, a seguir, pensar en las suposiciones básicas de la educación inclusiva
y en los obstáculos entre familia y escuela, a través de las políticas públicas educativas.
Concluimos que la diversidad presente en la educación inclusiva no es un favor para los
grupos históricamente excluidos, sino una lucha por la humanización de todos nosotros. Una
lucha que necesariamente pasa por la asunción y superación de prejuicios  y estereotipos de
todos los involucrados, ya que convivir con las diferencias es un esfuerzo colectivo.
Palabras claves: Inclusion Escolar. Educación Especial. Prejuicio. Família.

Relembrando um pouco da iniciamos o presente artigo com alguns pontos


históricos sobre a deficiência, para, a partir
história da deficiência e sua das reflexões sobre o preconceito, buscar
escolarização os resquícios, ou a continuidade, de alguns
desses fatos históricos.
Tendo como base a ideia de Hobsbawm (1995)
que a história se configura por um amplo A cobrança pela perfeição física está presente
processo de continuidade e descontinuidade, em praticamente todos os tempos. No curso

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da história, o tratamento dado às pessoas com que contribuíram para a educação institu-
deficiência sofreu a influência de questões cionalizada dos alunos com deficiência, nas
culturais e religiosas. Desde a Bíblia, temos primeiras décadas do século XX (Antunes,
referências a cegos e leprosos como pedintes 2003). As duas grandes guerras mundiais
ou rejeitados pela comunidade. Na literatura também produziram enorme contingente
antiga, para as pessoas com deficiência inte- de mutilados. Além disso, segundo Araújo
lectual, a única ocupação era a de bobo da (2010), na Segunda Guerra Mundial, projetos
corte ou a de palhaço, para diversão dos baseados no ideal de eugenia justificaram o
senhores e de seus hóspedes (Oliveira, 2004). programa denominado de Operação Euta-
násia que resultou na morte de mais de 200
Segundo Fonseca (2000), na Antiguidade, mil cidadãos alemães com deficiência.
entre os povos primitivos, o tratamento desti-
nado às pessoas com deficiência assumiu dois De acordo com o mesmo autor, as primeiras
aspectos básicos: alguns os exterminavam normas de proteção aos deficientes, defen-
por considerá-los grave empecilho à sobre- dendo a sua reabilitação, capacitação e inclu-
vivência do grupo e outros os protegiam e são social foram ditadas pela Organização
os sustentavam para buscar a simpatia dos Internacional do Trabalho (OIT), fundada
deuses ou por gratidão pelos esforços dos após a Primeira Guerra Mundial, através das
que se mutilavam nas guerras. Recomendações no 99 de 1955 e no 168 de
1983, e da Convenção no 159 de 1983. O
Na antiguidade, assim como através dos grande número de pessoas mutiladas nas duas
séculos da era cristã (como na Inquisição e guerras mundiais, associado à necessidade
na luta eugenista), as pessoas com deficiência de mão de obra para ocupar as vagas de
foram objeto de eliminação direta ou indireta, trabalho, ante o grande número de mortes
ora em função de sua “inutilidade funcional”, ocorrido, fizeram com que se chamasse a
ora porque eram consideradas manifestação atenção para o tratamento que era reservado
do demônio ou de castigo divino (Araújo, para as pessoas com deficiência. Surge,
2010). Por outro lado, com o passar do tempo, nesse momento, o interesse na reabilitação
os povos das mais diversas nações passaram profissional das mesmas. A interferência da
a praticar o assistencialismo ou a promover Organização das Nações Unidos (ONU),
a readaptação da pessoa com deficiência. O instituição criada por 51 países após o fim
Cristianismo, ainda na Idade Média, interferiu da Segunda Guerra Mundial, impôs políticas
na forma de tratamento dessas pessoas, as sociais para os países-membros, no tratamento
quais passaram a ser amparadas em casas de diferenciado às pessoas com deficiência.
assistência mantidas pelos senhores feudais.
Em relação à educação, Mendes (2006)
No que diz respeito aos direitos da pessoa lembra que, em virtude da necessidade de
com deficiência, a partir da Revolução reabilitar os mutilados das duas guerras mun-
Industrial, em razão do grande número de diais, apareceu uma resposta mais ampla para
acidentes do trabalho, começam a surgir leis a questão da educação das crianças, jovens
que protegem os trabalhadores e garantem e adultos com deficiência. Essa educação
a seguridade social através de atividades especial era um sistema paralelo ao sistema
assistenciais, como atendimento à saúde e educacional geral. No mundo do trabalho, é
a reabilitação aos acidentados. nesse contexto histórico que nasceu a men-
cionada Declaração dos Direitos Humanos e
No início do século XX, estudos médicos e o também chamado Paradigma de Serviços,
psicológicos contribuíram para o surgimento que levou à concessão de algumas vagas
de novas teorias a respeito da capacidade e de serviços públicos para as pessoas com
inteligência das pessoas, bem como de uma deficiência (Araújo, 2010).
nova visão sobre como tratar as pessoas com
deficiência. Helena Antipoff e Ulysses Per- No decorrer do século XX, a partir da insti-
nambucano, por exemplo, são dois brasileiros tucionalização da escolaridade obrigatória

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e do reconhecimento de incapacidade da marcantes na mudança de paradigma que


escola de responder pelo aprendizado de baliza a educação inclusiva. Na primeira, a
todos os alunos, criaram-se, então, as salas educação aparece como preocupação mun-
especiais dentro de escolas regulares, para dial. Na segunda foi aprovada declaração
onde os alunos considerados com dificuldade tendo como objetivos: o reconhecimento das
de aprendizado eram encaminhados. Sobre- diferenças, o atendimento às necessidades
tudo após as duas guerras mundiais, houve de cada um, a promoção da aprendizagem,
a proliferação das salas e escolas especiais. o reconhecimento da importância da “escola
para todos” e a formação de professores. A
Entre 1950 e 1980, teve início o movi- proposta desses instrumentos é que todos
mento contra a política de segregação, os alunos, inclusive os com deficiência,
defendendo-se a ideia de integração das estivessem matriculados em escolas regu-
pessoas com deficiência, cabendo a elas o lares, defendendo a urgência da reforma
máximo esforço para reverter o quadro de educacional para que a educação estivesse
deficiência e conseguir sua adaptação ao ao alcance de todos.
meio social (Chaveiro & Barbosa, 2005). Essa
é a lógica da integração, que mais tarde será Educação especial e educação
contraposta à concepção de inclusão. Na
integração, a pessoa com deficiência deve inclusiva
se adaptar às instituições sociais, buscando
se equiparar aos chamados normais. Já na O conceito de educação inclusiva não subs-
proposta da inclusão, são as instituições e titui simplesmente a educação especial. A
demais espaços sociais que devem se adaptar educação inclusiva parte das lutas e bandeiras
e buscar, de fato, atender e se adaptar às da educação especial, mas retoma a educação
pessoas com deficiência. democrática para todos.

Um conjunto de fatores contribuiu para a A Declaração de Salamanca ajudou a expan-


mudança de pensamento na questão da edu- dir o conceito de necessidades educativas
cação das pessoas com deficiência, podendo especiais para todo aquele que precisasse da
ser destacados os seguintes: a) intensifica- adaptação da escola para que suas necessi-
ção dos movimentos sociais na década de dades fossem atendidas e a escolarização,
1960, que alertavam sobre os prejuízos da assim, pudesse se encaminhar. Nesse sentido,
segregação e da marginalização, alicerçando a educação inclusiva nos lembra que não
uma base moral que resultou na proposta de apenas os alunos com deficiência têm sofrido
integração escolar, combatendo a segregação; dificuldades de inserção nos espaços esco-
b) as pesquisas científicas sobre a descoberta lares. É a partir desse marco que a educação
de formas de ensinar pessoas que, por muito inclusiva vai se popularizando, partindo sim
tempo, foram consideradas incapazes de da educação especial, mas vislumbrando
aprendizado. Somaram-se, ainda, a esses uma nova concepção de educação: a escola
fatores, a organização de vários grupos de precisa incluir não apenas os “especiais”,
pessoas com deficiência, pais e profissionais, mas todos os alunos.
que passaram a cobrar políticas para fins de
garantir direitos e combater discriminações Assim, a educação especial continua sendo
(Mendes, 2006). importante para tratar das particularidades da
escolarização das pessoas com deficiência.
A Conferência Mundial de Educação para Utilizamos nesse texto, uma concepção de
Todos, em Jointiem, na Tailândia, em 1990 educação especial na perspectiva da educa-
e a Conferência Mundial Sobre Necessida- ção inclusiva, o que significa dizer que as
des Educativas Especiais, que aconteceu particularidades que envolvem os alunos com
em Salamanca, na Espanha, em 1994, deficiência serão constantemente articuladas
que resultou na chamada Declaração de com a escolarização dos alunos que não
Salamanca, são dois momentos históricos têm deficiência.

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Especificamente sobre a convivência com mas tão inteligente, tão sensível, um rosto
pessoas com deficiência, vale lembrar a tão lindo...’” (p. 46). A tendência parece
ênfase dada a essa condição, ofuscando outras ser a de minimizar, às vezes, a de negar o
características, praticamente desconsiderando aspecto errado, diferente ou “anormal”. A
o sujeito. Para além da deficiência há um noção de “ser humano normal”, segundo
sujeito com desejos, vitórias, medos, limita- Goffman (2008), pode ter sua origem na
ções, com concepções ideológicas, fazeres, abordagem médica da humanidade, ou nas
gostos, vontades que não devem ser negli- tendências das organizações burocráticas
genciados em generalizações. Exaltar apenas em grande escala, de tratar todos os seus
essa característica desmerece as conquistas, membros como iguais em alguns aspectos.
as capacidades, a própria singularidade do Independentemente da origem, a polarização
sujeito. Amaral (2004) traz argumentos que entre dois agrupamentos, em que se distin-
vão ao encontro dessa perspectiva de que o gue quem tem legitimidade para ser visto
olhar do outro para a pessoa com deficiência como sujeito dos direitos – o normal – e
muitas vezes é limitador: “O que conta é o quem ocupa o lugar de, no máximo, alvo
pressuposto básico na cabeça do outro, de da concessão de favores – o anormal, tem
1 Os termos que se refe- que o deficiente1 é sua deficiência, vive em sido a maneira como historicamente tem se
rem à pessoa com defici- função dela: se magoa, se irrita, se fracassa, é construído as perguntas a respeito da diver-
ência foram se alterando porque é complexado; se sobressai é porque sidade humana (Angelucci, 2009).
ao longo da história. precisa compensar” (p. 90). Todas as ações
Neste trabalho, serão uti-
são justificadas em função da deficiência,
lizadas as designações de Se essas concepções tão estereotipadas
acordo com os autores,
praticamente se elimina o sujeito para que
sobre a pessoa com deficiência ainda estão
como por exemplo: defi- ela sobressaia. Na educação, o enfoque na
presentes nos discursos sociais, como fica
ciente, pessoas com ne- deficiência também se faz presente, o que
a inserção dos alunos com deficiência na
cessidades educacionais fica claro nas palavras de Skliar (1997):
escola? Muitas vezes, os professores afirmam:
especiais, pessoa com
diferença significativa. Se o critério para afirmar a singulari- “Eu tenho dois casos de inclusão” ou “Eu
dade educativa desses sujeitos é uma tenho um especial na minha sala”. Vemos
caracterização excludente a partir da claramente que a inclusão aí não tem lugar,
deficiência que possui, então não se uma vez que os alunos em questão são trata-
está falando de educação, mas de uma dos de forma tão diferenciadas que não fazem
intervenção hermenêutica; se se acre- parte do grupo “alunos” simplesmente. Não
dita que a deficiência, por si mesma, é
se quer, com isso, esquecer as diferenças e,
o eixo que define e domina toda a vida
pessoal e social dos sujeitos, então não
muito menos, tratar todas as diferenças de
se estará construindo um verdadeiro forma igual. Partimos do pressuposto de que
processo educativo, mas um vulgar existem diferenças significativas. Ou seja,
processo clínico (p. 06). usar óculos não é o mesmo que ter uma
deficiência visual. Porque com os óculos
Processo clínico é entendido pelo autor qualquer pessoa tem as mesmas condições
como uma prática que busca reduzir ou que outra pessoa que enxerga bem. Porém,
eliminar a deficiência, comparando-a com o deficiente visual, seja cego ou portador
um adoecimento. Também é chamada de de baixa visão, tem, com todos os recursos
“intervenção hermenêutica”, porque impõe possíveis, pouco acesso às informações
valores e interpretações antes de conceber o visuais e, portanto, sua necessidade especial
aluno como sujeito, de modo a ver a defici- é ter disponível outras fontes adaptadas de
ência como fator central do aluno. informação para que o conteúdo acessível
a ele seja o mesmo daqueles que enxergam.
Outro aspecto comum na convivência com
a pessoa com deficiência é a negação. Mas Assim, o debate do que são as diferenças
o incômodo com a diferença reaparece nos significativas e de qual espaço social elas têm
discursos que ressaltam o aspecto “normal” nos ajudarão a tirar a educação inclusiva do
valorizado, como cita Amaral (2004) “é o limbo. Por que limbo? É que se adotarmos
famoso: ‘feia, mas tão simpática’, ‘aleijada, o conceito de educação democrática não

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precisaremos mais da menção à inclusão, já quando a relação sujeito-objeto não se refere


que será para todos. A educação inclusiva mais a um processo contínuo de troca mútua.
seria então, um lugar de passagem, um
paliativo. Algo como as ações afirmativas do Outra forma de pensar essa troca contínua
tipo cotas universitárias. Elas são necessárias entre sujeito e objeto está nos conceitos de
agora. No momento em que tivermos nas projeção e falsa projeção. Horkheimer e
salas de aula das universidades tantos negros, Adorno (1986) partem do pressuposto que
índios, população de baixa renda, alunos da perceber é projetar. Isto é, para percebermos
zona rural e outros grupos historicamente dis- o mundo a nossa volta, temos de lançar mão
criminados, quantos a população local tem, de nossos órgãos do sentido em direção
não precisaremos mais das cotas. No entanto, aos estímulos sensoriais, projetando sobre
ainda estamos no meio da caminhada. A o objeto aquilo que pensamos que ele é.
importância de debater a educação inclusiva Mas a projeção é só o primeiro passo do
é justamente a forma de nos prepararmos e conhecimento. Na relação com o objeto é
construirmos essa escola para todos. Cada possível reconhecer nele o que foi projetado
passo dado na reflexão e na experiência com e o que é próprio do objeto, marcando a
a diferença é um tijolo a mais nessa escola diferença entre mundo interno e externo.
ideal que buscamos. É o que os autores chamam de controle da
projeção. Em suas palavras: “[...] o indiví-
A contribuição que pretendemos dar a essa duo precisa de um controle crescente da
discussão é a partir de três temas, bastante projeção; ele tem de aprender ao mesmo
problemáticos e complexos: preconceitos, tempo a aprimorá-la e inibi-la” (Horkheimer
escola e família. & Adorno, 1986, p. 154).

É essa reflexão que falta ao sujeito precon-


Pensando o preconceito ceituoso, que acaba percebendo o objeto a
partir de uma falsa projeção. Tal falsidade
É importante diferenciar pré-conceito de está na incapacidade do sujeito de perceber
preconceito. As ideias pré-concebidas ou o que é seu e o que é do objeto. Não tendo
pré-conceitos fazem parte da relação do essa clareza, ele credita tudo ao objeto. É
homem com o mundo. Isso significa dizer por isso que os autores dizem que, nessas
que o conhecimento não seria possível sem condições, o sujeito... “[...] incha e atrofia
alguma informação anterior sobre o objeto ao mesmo tempo” (Horkheimer & Adorno,
que se pretende conhecer porque é neces- 1986, p. 156). É dizer: o sujeito incha porque
sário algum ponto de partida para a relação está cheio de informações do mundo externo,
com ele. Assim, a relação sujeito-objeto no sejam morais, intelectuais, religiosas etc.;
momento do conhecimento envolve um porém, ele atrofia e se esvazia ao mesmo
caminho duplo: o sujeito parte de algo tempo porque, sem conseguir refletir sobre
conhecido para começar a entender o objeto o conteúdo dessas informações, nada conse-
desconhecido e o objeto deixa alguma marca gue acrescentar a si mesmo e se torna, tanto
nova no sujeito, permitindo que algo novo mais sem consciência, massa de manobra
seja acrescentado a ele. Essa dinâmica ideal dos discursos preconceituosos e totalitários.
não diz respeito aos preconceitos. Nesse processo, o sujeito não se dá conta de
que aquilo que ele defende como sua opinião
Mas quando, por um lado, o sujeito se fecha nada mais é do que repetição do que já está
para conhecer o objeto, preso unicamente pronto nos discursos sociais.
aos seus conhecimentos prévios, ou quando,
por outro lado, o sujeito se abre exagera- A dinâmica do preconceito é complexa e seu
damente ao objeto, sem sobre ele refletir estudo mostra que o preconceito depende e
a partir das suas próprias opiniões, temos independe de sua vítima. Ou seja, o precon-
então a dinâmica do preconceito (Crochík, ceito depende do objeto porque existe algo
2006). Enfim, podemos falar em preconceito neste que desperta no preconceituoso o seu

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preconceito. O objeto deve ser de alguma de forma estereotipada, ou seja, aprisionada


forma um representante da fragilidade, da pela repetição. Por exemplo, para um racista,
felicidade sem poder. Segundo Horkheimer qualquer coisa boa feita por um negro pode
e Adorno (1986): “A noção de uma felici- ser justificada como arrogância ou vontade
dade sem poder é intolerável pois só ela de aparecer e qualquer coisa ruim como a
seria a felicidade pura e simples” (p. 143). certeza de que “se não faz na entrada, faz na
Porém, o alvo do preconceito informa algo saída”. Fechando o objeto do seu preconceito
sobre o próprio preconceituoso, ou seja, o em um círculo vicioso constante, o precon-
preconceito independe do objeto. Neste ceituoso não tem de lidar com conteúdos
sentido, pesquisas mostraram que pessoas psíquicos seus. A insegurança constante
preconceituosas apresentaram uma tendência que vive, devido à forma como as pessoas
a ter preconceito contra diferentes grupos e coisas do mundo lhe foram apresentadas
(por exemplo, Adorno, Frenkel-Brunswik, e da consequente relação que conseguiu
Levinson & Sanford, 1965; Crochík, 2006). estabelecer com o mundo, é disfarçada em
O que significa que há algo no preconceituoso uma falsa fortaleza. Embora a fortaleza seja
que o faz focalizar seu ódio em grupos, de falsa, a frieza com que lida com as pessoas
alguma forma, vistos como frágeis. A vítima é verdadeira e demonstra sua dificuldade
escolhida pelo preconceituoso não precisa ser com os sentimentos.
sempre a mesma. Hoje, o ódio é direcionado
às pessoas com deficiência. Amanhã, a outro É nesse sentido que Horkheimer e Adorno
grupo. Não se trata do grupo em questão (1986) afirmam: “O comportamento anti-
apenas. Mas da forma como o preconceituoso semita é desencadeado em situações em
vive a irracionalidade da ordem vigente, que os indivíduos obcecados e privados de
como fica claro nas palavras de Horkheimer sua subjetividade se veem soltos enquanto
e Adorno (1986): sujeitos” (p. 141). Isto é, o vazio em que o
preconceituoso vive, porque não pode viver
A cólera é descarregada sobre os nem o prazer, nem a reflexão, é preenchido
desamparados que chamam a atenção.
pelo ódio a determinados grupos que pela
E como as vítimas são intercambiáveis
segundo a conjuntura: vagabundos, fragilidade exposta, lembram a sua própria
judeus, protestantes, católicos, cada fragilidade. Fragilidade essa que o precon-
uma delas pode tomar o lugar do assas- ceituoso não consegue admitir, nem lidar.
sino, na mesma volúpia cega do homi-
cídio, tão logo se converta na norma e Se o preconceito tem sua origem no fecha-
se sinta poderosa enquanto tal (p. 142). mento à experiência, esta poderia ser, então,
um antídoto contra aquele. Porém, sabemos
Com isso, queremos enfatizar que aquilo que não basta colocar juntos dois grupos,
que suscita o preconceito no preconceituoso sendo um discriminado e outro preconcei-
não é o que o discriminado efetivamente é. tuoso, para que o preconceito desapareça.
Mas o que ele representa, principalmente, no Sobre isso, Horkheimer e Adorno (1986)
que diz respeito a sua história. Por exemplo, dizem: “[...] ficou provado que as chances
em relação às pessoas com deficiência, o do anti-semitismo são tão grandes nas regiões
espanto causado pela competência delas sem judeus como até mesmo em Hollywood”
mostra claramente a baixa expectativa em (p. 165). Isso porque existem mais razões no
relação ao seu desenvolvimento. preconceituoso do que no seu alvo para a
cristalização da relação que não permite a
A partir de uma relação (ou ausência de uma experiência e a identificação com o outro.
relação) sujeito-objeto que não permite a A possibilidade de experienciar e de se abrir
abertura ao novo, o preconceituoso deseja para o outro envolve relativizar o previamente
eliminar tudo o que não lhe é familiar. Dessa pensado. Ou seja, aquilo que já era esperado
forma, a angústia do desconhecido despertada pelo sujeito na sua relação com o outro deve
pela fragilidade do discriminado é paralisada ser de alguma forma transformado pelo que o
pelo esforço constante em perceber o objeto objeto traz de seu. Entretanto, a possibilidade

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da experiência no capitalismo tardio é cada o que pensar sobre eles. A essa distância já
vez menor. Entendemos capitalismo tardio definida pelo pensamento estereotipado,
como define Imbrizi (2005): nenhuma identificação é possível porque a
caracterização do outro como alguém ruim
É capitalismo porque a dominação entre fortalece a ideia do eu como bom. Dessa
e sobre os seres humanos tem suas bases forma, as condições sociais que permitiram
na estrutura econômica da sociedade de o surgimento do estereótipo são ignoradas e,
classes, só que a especificidade de tal
com o olhar direcionado apenas para o grupo
opressão é que ela se tornou anônima.
Todos os homens sofrem com o controle
em questão, o sujeito se sente, ilusoriamente,
que, por não saberem de onde vem, menos inseguro em uma cultura ameaçadora.
transforma-se em destino. E é capita- Mas como essa ilusão é, no fundo, conhecida
lismo tardio porque ‘os homens conti- pelo sujeito, ele sabe que o judeu hoje pode
nuam como apêndice da maquinaria’, representá-lo amanhã. Isto é, os grupos per-
não só os trabalhadores, pois todo o seguidos são, como já disseram Horkheimer
comportamento do indivíduo em suas e Adorno (1986), “intercambiáveis entre si”,
mais íntimas emoções submetem-se ao pois não se trata simplesmente do problema
mecanismo social e suas necessidades com um grupo X, com uma característica
transformam-se em funções do aparelho
peculiar não aceita, mas da própria ordem
de produção (p. 42).
social que é estabelecida de modo a constituir
subjetividades desumanizadas e, por isso, se à
Isso quer dizer que toda a distinção feita vítima de hoje é dado poder suficiente em uma
até aqui entre pessoas preconceituosas e cultura ainda tão desumana, amanhã, muito
não preconceituosas tem mais um objetivo provavelmente, ela se tornará algoz também.
didático do que de polarização de dois tipos Em relação às pessoas com deficiência, a his-
idealizados. Se podemos entender o precon- tória mostra oscilações: ora o deficiente deve
ceito apenas na interface entre indivíduo e ser eliminado, ora ele pode funcionar como
cultura, faz-se necessário pensar que a cultura um oráculo – ambas visões estereotipadas. No
é que permite a formação de pessoas precon- entanto, na maioria das vezes, o estereótipo
ceituosas. Para tal, partiremos do conceito de esteve mais voltado para as limitações na vida
estereótipo, como “ponte” mais facilmente da pessoa com deficiência e sua exclusão das
identificável entre o preconceito e a cultura. oportunidades de vida em sociedade.

Os estereótipos são apresentados pela cultura Dado que o estereótipo e o fechamento à


e têm a clara função de justificativa da domi- experiência impedem a identificação com
nação. Por um lado, o estereótipo, como a o outro, o sujeito preconceituoso tende
definição precisa de um determinado grupo, à repetição. Fazendo sempre o mesmo,
por exemplo, funciona como uma forma de fechado às novas experiências, o sujeito
orientação da realidade, dado que esta é não reflete e tende a seguir cada vez mais
complexa e ameaçadora. Por outro, ao se e de forma automática, o que a cultura diz
apropriar do estereótipo, o sujeito encontra a para ele ser, fazer, desejar. A isso podemos
explicação na cultura para o seu preconceito. chamar de heteronomia, pois, fechado nas
Não há, dessa forma, espaço para a dúvida, normas sociais e sem a consciência da influ-
nem para a reflexão sobre si ou sobre o outro. ência delas na formação de si e do outro,
Como uma resposta rápida e pedindo por uma ele não consegue se perceber ao mesmo
estabilidade no pensamento, que não admite tempo como sujeito e objeto da realidade
mudanças, o estereótipo serve para manter que vive. E essa é a tendência que mais se
as coisas como estão e o sujeito incólume a observa na atualidade, pois cada vez mais as
qualquer alteração na sua forma de pensar. pessoas são responsabilizadas unicamente
pelo que são, sentem e fazem. Entretanto,
O pensamento estereotipado utiliza a rigidez cada vez menos há espaço para reflexão
de seu conteúdo inalterável. Por exemplo, o e escolha. Se só é possível pensar em um
estereótipo dos judeus serve para que o sujeito indivíduo autônomo em uma sociedade justa
saiba como lidar com eles, como tratá-los, e humana (Horkheimer & Adorno, 1973), o

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sujeito, fruto da sociedade atual, caminha Escola e família: alguns


para longe dessa possibilidade.
impasses e reflexões
Para que o sujeito se transformasse em indiví-
Angelucci (2002) nos lembra de que a edu-
duo, seria necessário um espaço de reflexão
cação inclusiva lança luz sobre os problemas
que o permitisse perceber a determinação
da escola já existentes antes das políticas de
social, bem como “[...] conscientizar-se de
inserção de alunos com deficiência no ensino
que sua autopreservação depende da preser-
regular. Como já dissemos, nossa concepção
vação da natureza e da coletividade” (Imbrizi, de educação inclusiva parte das questões
2005, p. 80). Ou seja, a natureza social do levantadas pela deficiência, mas não se limita
homem que lhe permite se individuar por a elas, porque é a própria escola que precisa
meio da cultura significa estabelecer com ela ser repensada como escola para todos.
uma relação de proximidade e distância, de
modo que seja possível a reflexão sobre o As políticas públicas educacionais referentes
que a cultura é sem, contudo, negá-la e sem à educação inclusiva não diferiram quanto a
estar de acordo com ela em tudo. No entanto, outras políticas públicas para a escola, pois os
como o indivíduo só pode se constituir pela atores sociais mais importantes no processo
cultura, é ela que possibilita ou não a sua estiveram fora das decisões: professores, alunos
individuação. E quanto menos ela o permite, e suas famílias. Assim, é compreensível que
mais os preconceitos se apresentam como professores tenham sentido seus saberes des-
defesa do sujeito. considerados e isso é uma violência simbólica
a sua experiência e dedicação à escola. No
A partir dessa breve exposição, percebe- entanto, também não nos cabe estacionar
mos que a lógica do preconceito não é na ideia: “A escola não está preparada para
simplesmente racional. O que equivale a a educação inclusiva”. A pesquisa de Celio
dizer que somente as ações informativas Sobrinho e Alves (2013) mostra que alguns dos
não são suficientes para combatê-lo. Com professores que afirmaram esse despreparo não
a divulgação cada vez mais forte dos valores quiseram participar das iniciativas de debate na
democráticos, em que se diz que todas as escola sobre o tema. Tal fato pode nos ajudar
pessoas são iguais e se valoriza o respeito a pensar, apesar da desconsideração do Estado
à diferença, o preconceituoso sabe que pelo saber docente ao impor de “cima para
qualquer sentimento discriminatório contra baixo” a obrigatoriedade da educação inclu-
siva, será que muitos de nós não estaríamos nos
qualquer grupo é mal visto socialmente. Ao
escondendo atrás desse despreparo para não
admitirmos a irracionalidade do preconceito,
enfrentar os desafios da educação inclusiva?
podemos nos perguntar sobre a possibilidade
Desafios esses que já estão presentes na escola
de estudá-lo por meio racionais. Pressupo-
regular, pois ouvimos também dos professores:
mos, entretanto, que:
como lidar com o aluno mentiroso? E com o
aluno manipulador? O que sofreu uma perda
[...] se o preconceito é algo irracional,
a forma de expressá-lo nem sempre o
na família? E com o aluno tímido? Nenhum
é, e, assim, devemos nos ater, inicial- curso de formação de professores consegue
mente, tanto às explicações psicanalí- oferecer uma “receita” de preparo a todo e
ticas sobre as modificações a que todos qualquer tipo de aluno. As possibilidades de
os indivíduos devem se submeter para formação da educação estão nas relações
poder pensar, quanto ao invólucro pre- estabelecidas dentro da escola, partindo de
tensamente racional que os precon- sua estrutura educacional e das pessoas que
ceituosos dão às suas teses” (Crochík, compõem esse dia a dia.
2006, p. 30).
Além disso, a ideia de estar “preparado”
É esse invólucro racional que pretendemos carrega um equívoco: de que é possível
abordar nos impasses entre a escola e a família nos “preparar” para o encontro com o
no que se refere à educação inclusiva. outro. As relações humanas são o encontro

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com o inesperado, a novidade que está no com todo e qualquer surdo. É que os surdos
outro, lembremos da dinâmica explicada não são todos iguais. Eles se diferenciam
acima sobre o preconceito: no encontro como todos nós: classe social, gênero,
com o outro há algo que aprendo que é idade, opção político-partidário, profissão,
novo, se isso não acontece, é porque estou religião, gosto pela arte etc. Além disso,
preso ao meu preconceito. E a educação, na existem diferenças da própria deficiência:
perspectiva que estamos adotando, como momento da perda auditiva, grau da perda,
experiência formativa e direito ao saber, reação da família, apoio institucional das
precisa justamente desse encontro, sem áreas de educação, saúde, assistência social
regras pedagógicas controladoras. etc. Isso nos leva a desconfiar de frases como:
“Todo surdo é irritado”, “Toda pessoa com
Nesse sentido, compartilhamos com Voltolini síndrome de Down é afetuosa”, “Todo cego
(2009) a perspectiva de que o encontro com tem dons artísticos” etc. Nesse “todo” que
o outro é necessário para a educação ocorrer: busca homogenizar o que é impossível de
ser generalizável, vemos uma “violência”.
O encontro comporta o imprevisível, É a violência do estereótipo.
mas também o criativo, a solução em
cima da hora, aquela que leva em con-
Também a família sofre com o estereótipo.
sideração uma série de elementos e
não apenas a pergunta organizada de A família é um grupo social atravessado por
um aluno transmitida a posteriori pelo todas as questões sociais a que todos estamos
recurso tecnológico. sujeitos. Ou seja, se vivemos ainda em um
mundo com diferentes tipos de preconceitos
O encontro é o maior indicativo da pre- aos grupos estigmatizados, então, a família
sença, já que alguém se move, ri da minha não está imune aos preconceitos, estigmas
piada, faz uma expressão com o rosto que e estereótipos. No entanto, as famílias têm
inclina meu modo de pensar em outra
diferentes reações às diferenças. Foquemos
direção, enfim, sinais de uma riqueza que
o contato contém e que me permitem
no caso da deficiência. Há familiares que
desviar da rota pelo encontro (Voltolini, estimulam seu ente com alguma limitação
2009, p. 135, destaques do autor). física de forma bastante próxima ao que se
cobra dos outros membros da família. Quando
Na citação acima, o autor aborda os proble- isso acontece, costumamos ver pessoas mais
mas concernentes ao ensino a distância, que inseridas socialmente do que nas famílias em
ele afirma não se tratar de educação, por não que há insegurança ou superproteção que
permitir esse encontro. Para nossa discussão, influencia a criança ou adulto com deficiência.
vale lembrar que o valor das informações
sobre os diferentes tipos de deficiência e as É nesse sentido que o “estar preparado” pode
formas de acessibilidade que garantem ao ser perigoso pois dependendo do preparo, o
máximo o direito aos mesmos conhecimentos, olhar para o diferente será mais “recheado”
bem como as reflexões sobre as minorias (não de preconceitos e estereótipos do que um
de número, mas de poder), suas histórias, olhar ingênuo ou “despreparado”, que aposta
dados sobre sua pouca representatividade na capacidade do outro, sem focar exclu-
etc. é inegável e tem caráter formativo, mas sivamente nas suas limitações. Além disso,
não necessariamente “preparatórios”. seguindo a mesma lógica que Angelucci (2002)
apresenta sobre a atenção que a educação
Para entender essa inviabilidade do “preparar” inclusiva chama para os problemas já existen-
precisamos nos lembrar de que as pessoas tes na educação, podemos pensar as antigas
pertencentes a determinado grupo estigma- e conflituosas relações entre família e escola.
tizado, como nos diz Goffman (2008), não
são todas iguais. Isso significa que, por mais Patto (1992), há mais de 20 anos, já mostrou
que eu estude a surdez e a Língua Brasileira os desencontros entre as famílias pobres e
de Sinais (Libras), por exemplo, isso não me os professores de escola pública. Falas pre-
garante a fórmula perfeita para me relacionar conceituosas de professoras sobre o descaso

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da família são contrapostas com as falas de leitura e escrita. A título de exemplo, ouça-
dedicação dos pais. Mas trata-se de uma mos o caso de Daniela, que no momento
dedicação não visível ao observador mais da pesquisa tinha 8 anos e 4 meses. Para
desatento. Porque para essas pessoas, a escola todas as crianças avaliadas, a autora faz um
nem sempre é um espaço familiar. Muitos resumo sobre a fala da professora, da mãe
pais não tiveram boas experiências na escola, ou pai, da própria criança e, para finalizar,
evadiram muito cedo, tiveram que trabalhar sua fala de médica:
e parar de estudar. São frutos de um sistema
escolar seletivo. Mas não é isso que desejam A professora
para os filhos. Expressam sua angústia pelas
dificuldades do filho e todos são unânimes É muito magrinha, muito enjoada,
nunca come a merenda. Acho que é
em valorizar a escola.
subnutrida. Ah! É sim, o caso dela é
gritante... De desnutrição, de relaxo
Além de denunciar uma ilusão dos profissio- da mãe. É assim mesmo, a gente vê
nais de educação de que é possível conhecer muito, não sabe a alimentação que a
o cotidiano de uma família por pequenos criança precisa comer, dá porcaria, aí
“sinais” que se observa na aula, nas reuniões, fica desnutrido. O médico já explicou
na entrada e saída da escola, a atualidade isso várias vezes, ele vinha aqui exami-
do texto pode ser vista na citação de uma nava e dizia: “desnutrição, a criança
quer aprender, mas não aprende”. Mas
professora: “Se é bem alimentada, se tem
não adianta, as mães não se interessam,
carinho de pai e mãe e atenção do pai, alguém não levam no postinho, a mãe acho que
que olhe o caderninho dela, não tem por nunca levou no médico.
onde ser reprovada” (p. 113). Essa professora
mostra com essa frase uma concepção de que A mãe
o sistema educacional está imune a críticas,
mas a família, não. Esta deve fazer aquilo Ela nasceu bem, de nove meses, no hos-
que a escola não consegue fazer. pital. Pesou três duzentos e cinquenta.
Teve alta no segundo dia. Nunca teve
nenhum problema. Sempre acompa-
Enfim, podemos perceber um fogo cruzado nhei no Centro de Saúde. O médico
entre escola e família. Fogo cruzado sem sempre dizia que ela estava crescendo
vencedores. É importante assumirmos que, bem, gordinha sempre.
muitas vezes, profissionais da educação e
família são representantes de classes sociais Entrou na escola com seis anos e meio,
diferentes e suas falas e atitudes denunciam, queria muito ir, mas não aprendeu a
ainda, um abismo de comunicação, em que ler, foi reprovada. Não sei por quê, a
cada parte espera que a outra faça aquilo professora nunca falou nada, nunca me
que não conseguiu realizar. chamou pra nada.

Daniela
Moysés (2001) também mostra essas
discrepâncias em seu interessante livro Eu? Quando crescer quero trabalhar.
“A institucionalização invisível: crianças De vender doce, é um bom trabalho,
que-não-aprendem-na-escola”. Partindo de todo mundo compra.
uma visão crítica de avaliações padronizadas
tipo teste psicológico, já presente em artigo Eu repeti porque não aprendi. {Por que
anterior (Moysés & Collares, 1997), a autora, você não aprendeu?} Por que? Não sei...
que é médica, avalia crianças apontadas
A médica
pelos professores como futuros repetentes
logo no início do ano. E seu método de A mãe tem o cartão com a evolução
avaliação visa superar a artificialidade dos de peso e altura nos dois primeiros
testes e, em uma via contrária, parte do anos de vida: normal. Nunca teve
que a criança gosta de fazer para avaliar o qualquer doença nutricional. Teve um
seu desenvolvimento e conhecimentos de acompanhamento modelo na saúde,

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trazendo para a consulta de hoje comunidade etc. Para tal, não fechamos com
todos os cartões, de agendamento, receitas prontas, mas justamente com a reflexão
de vacinação e de medidas. sobre a abertura para o outro diferente: o que ele
está trazendo de diferente que pode me levar a
Criança normal. Desenvolvimento nor-
novas reflexões e aprendizado? O que os pais
mal. Estado nutricional normal (Moy-
sés, 2001, p. 173/174).
têm para contar sobre a experiência de esco-
larização dos seus filhos? Será que o aparente
desinteresse dos pais não esconde a vergonha
Essa longa citação mostra que a fala da
de estarem presente em um lugar que lhe foi
professora e da família parece não dizer da
traumático e com pessoas que são consideradas
mesma criança. Ainda vivemos isso dentro
“superiores”? E os familiares excessivamente
da escola: a impressão é de que trata-se de
inseguros: será que não estão atualizando as
mundos paralelos. É preciso construir pontes
dificuldades que eles mesmos já viveram na
para superar esses abismos de comunicação.
escola? Só poderemos responder essas per-
A educação inclusiva não fica imune a essa
guntas no diálogo. Lembrando que dialogar
lógica que compõe a estrutura da escola há
não significa falar a mesma língua e concordar
décadas. No entanto, há possibilidades de pon-
sempre. Ao contrário. Talvez tenhamos que
tes entre esses dois mundos: escola e família.
descobrir na fala do outro o espelho do mal
Celio Sobrinho e Alves (2013), por exemplo,
do nosso próprio preconceito. E, assim, com
relatam uma pesquisa-ação realizada em uma
mais conhecimento sobre nós mesmos, buscar
escola pública de Vitória, no Espírito Santo.
alternativas para superar nosso pensamento,
Buscando superar esse hiato de comunicação
fala e ação, muitas vezes, preconceituosos.
entre família e escola, foi organizado por pais
e profissionais da referida escola encontros
sistemáticos mensais de pais de alunos com A diversidade presente na educação inclusiva
deficiência e professores. Os encontros foram não é um favor aos grupos historicamente
marcados também pela organização de fóruns excluídos, mas uma luta pela humanização de
para a comunidade fora da escola: outros todos nós. Quando não conseguimos lidar com
professores de outras escolas etc. as diferenças que nos rodeiam perdemos uma
oportunidade de caminhar na nossa própria
evolução. Assim, quando privamos os alunos
A pesquisa mostrou que os encontros mobi-
de conviverem com outras crianças com difi-
lizaram a assimetria notada entre familiares
culdades visuais, motoras, auditivas, intelectuais
e especialistas. Com espaço de diálogo e
ou com outras diferenças marcantes tais como
formação, pais e professores, puderam assu-
classe social, lugar de origem, religião, opção
mir conflitos, construir novas possibilidades
sexual etc., falhamos na sua formação, porque,
e com isso, colocaram “[...] em movimento
quando adultas, talvez terão menor facilidade
a balança do poder da relação família e
de lidar com essas mesmas pessoas.
escola” (Celio Sobrinho & Alves, 2013, p.
337, destaques dos autores).
Enfim, assim como pensamos que uma
rampa é uma melhor forma de locomoção
À guisa de conclusão tanto para pessoas com mobilidade reduzida
quanto para quem tem uma mobilidade
Professores e demais profissionais da educação comum, o mesmo raciocínio se entende
são destituídos de poder ao se verem reféns no convívio com a diferença permitido na
das políticas educacionais impostas de forma escola: conhecendo diferentes modos de
tão pouco democrática. Por outro lado, esse ser, facilitamos a nossa própria vida, pois
poder subtraído não desfaz as antigas relações flexibilizamos nosso olhar para o mundo e
desiguais entre escola pública e familiares dos podemos superar a lógica do preconceito
alunos, talvez, justamente potencialize tais que tanto conhecemos. Porém, esse conví-
relações de poder. Entretanto, a ponte que vio com a diferença é um esforço coletivo:
pudermos criar entre família e escola serão família, escola, poder público, comunidade,
benéficas para todos: alunos, pais, professores, todos precisam dar sua contribuição.

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Sylvia da Silveira Nunes


Universidade Federal de Alfenas, Alfenas – MG. Brasil.
E-mail: sylviasnunes@yahoo.com.br

Ana Lucia Saia


Mestre pela pela Universidade Federal de Itajubá, Itajubá – MG.
Email: anasaia@projesom.com.br

Rosana Elizete Tavares


Mestranda pela Universidade Federal de Itajubá, Itajubá – MG. Brasil.
E-mail: rosanatavares@unifei.edu.br

Endereço para envio de correspondência:


Universidade Federal de Alfenas, Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, Instituto
de Ciências Humanas e Letras. Rua Gabriel Monteiro da Silva, 700. Centro.
CEP: 37130-000. Alfenas – MG. Brasil.

Recebido: 12/09/2014, 1ª Reformulação: 02/10/2015, Aprovado: 27/10/2015.

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