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http://dx.doi.org/10.1590/1982-3703001312014
Artigo
Resumo: A inclusão dos alunos com deficiência no ensino regular tem sido cada vez mais
discutida. O objetivo do presente ensaio é problematizar as relações entre escola e família,
partindo da educação especial, sob a perspectiva da educação inclusiva, isto é, para todos,
independentemente de quaisquer particularidades. Para tal, partimos da reflexão sobre alguns
aspectos históricos em relação às pessoas com deficiência e seus processos de escolarização.
Em um segundo momento, refletimos sobre a complexa dinâmica do preconceito e dos
estereótipos no jogo de constituição da subjetividade, para, a seguir, pensar nos pressupostos
básicos da educação inclusiva e nos entraves entre família e escola, perpassados pelas políticas
públicas educacionais. Concluímos que a diversidade presente na educação inclusiva não é
um favor aos grupos historicamente excluídos, mas uma luta pela humanização de todos nós.
Luta essa que necessariamente passa pela assunção e superação de preconceitos e estereótipos
de todos os envolvidos, uma vez que o convívio com a diferença é um esforço coletivo.
Palavras-chave: Educação Inclusiva. Educação Especial. Preconceito. Família.
Abstract: Because the trend toward including students with disabilities in regular education
has increased, this essay discusses relationships between school and family, starting from
special education, within the perspective of inclusive education, that is, for everyone,
regardless of any particularities. Therefore, we begin by reflecting on some historical aspects
of the schooling process for people with disabilities. Thereafter, we reflect on the complex
dynamics of prejudices and stereotypes in the constitution of subjectivity, considering
inclusive education’s basic assumptions and barriers between family and school within public
educational policies. We conclude that the diversity of inclusive education is not a favor
to historically excluded groups but a struggle for the humanization of us all. This struggle
necessarily involves overcoming the prejudices and stereotypes of all concerned because
living with differences is a collective effort.
Keywords: School Inclusion. Education, Special. Prejudice. Family.
da história, o tratamento dado às pessoas com que contribuíram para a educação institu-
deficiência sofreu a influência de questões cionalizada dos alunos com deficiência, nas
culturais e religiosas. Desde a Bíblia, temos primeiras décadas do século XX (Antunes,
referências a cegos e leprosos como pedintes 2003). As duas grandes guerras mundiais
ou rejeitados pela comunidade. Na literatura também produziram enorme contingente
antiga, para as pessoas com deficiência inte- de mutilados. Além disso, segundo Araújo
lectual, a única ocupação era a de bobo da (2010), na Segunda Guerra Mundial, projetos
corte ou a de palhaço, para diversão dos baseados no ideal de eugenia justificaram o
senhores e de seus hóspedes (Oliveira, 2004). programa denominado de Operação Euta-
násia que resultou na morte de mais de 200
Segundo Fonseca (2000), na Antiguidade, mil cidadãos alemães com deficiência.
entre os povos primitivos, o tratamento desti-
nado às pessoas com deficiência assumiu dois De acordo com o mesmo autor, as primeiras
aspectos básicos: alguns os exterminavam normas de proteção aos deficientes, defen-
por considerá-los grave empecilho à sobre- dendo a sua reabilitação, capacitação e inclu-
vivência do grupo e outros os protegiam e são social foram ditadas pela Organização
os sustentavam para buscar a simpatia dos Internacional do Trabalho (OIT), fundada
deuses ou por gratidão pelos esforços dos após a Primeira Guerra Mundial, através das
que se mutilavam nas guerras. Recomendações no 99 de 1955 e no 168 de
1983, e da Convenção no 159 de 1983. O
Na antiguidade, assim como através dos grande número de pessoas mutiladas nas duas
séculos da era cristã (como na Inquisição e guerras mundiais, associado à necessidade
na luta eugenista), as pessoas com deficiência de mão de obra para ocupar as vagas de
foram objeto de eliminação direta ou indireta, trabalho, ante o grande número de mortes
ora em função de sua “inutilidade funcional”, ocorrido, fizeram com que se chamasse a
ora porque eram consideradas manifestação atenção para o tratamento que era reservado
do demônio ou de castigo divino (Araújo, para as pessoas com deficiência. Surge,
2010). Por outro lado, com o passar do tempo, nesse momento, o interesse na reabilitação
os povos das mais diversas nações passaram profissional das mesmas. A interferência da
a praticar o assistencialismo ou a promover Organização das Nações Unidos (ONU),
a readaptação da pessoa com deficiência. O instituição criada por 51 países após o fim
Cristianismo, ainda na Idade Média, interferiu da Segunda Guerra Mundial, impôs políticas
na forma de tratamento dessas pessoas, as sociais para os países-membros, no tratamento
quais passaram a ser amparadas em casas de diferenciado às pessoas com deficiência.
assistência mantidas pelos senhores feudais.
Em relação à educação, Mendes (2006)
No que diz respeito aos direitos da pessoa lembra que, em virtude da necessidade de
com deficiência, a partir da Revolução reabilitar os mutilados das duas guerras mun-
Industrial, em razão do grande número de diais, apareceu uma resposta mais ampla para
acidentes do trabalho, começam a surgir leis a questão da educação das crianças, jovens
que protegem os trabalhadores e garantem e adultos com deficiência. Essa educação
a seguridade social através de atividades especial era um sistema paralelo ao sistema
assistenciais, como atendimento à saúde e educacional geral. No mundo do trabalho, é
a reabilitação aos acidentados. nesse contexto histórico que nasceu a men-
cionada Declaração dos Direitos Humanos e
No início do século XX, estudos médicos e o também chamado Paradigma de Serviços,
psicológicos contribuíram para o surgimento que levou à concessão de algumas vagas
de novas teorias a respeito da capacidade e de serviços públicos para as pessoas com
inteligência das pessoas, bem como de uma deficiência (Araújo, 2010).
nova visão sobre como tratar as pessoas com
deficiência. Helena Antipoff e Ulysses Per- No decorrer do século XX, a partir da insti-
nambucano, por exemplo, são dois brasileiros tucionalização da escolaridade obrigatória
Especificamente sobre a convivência com mas tão inteligente, tão sensível, um rosto
pessoas com deficiência, vale lembrar a tão lindo...’” (p. 46). A tendência parece
ênfase dada a essa condição, ofuscando outras ser a de minimizar, às vezes, a de negar o
características, praticamente desconsiderando aspecto errado, diferente ou “anormal”. A
o sujeito. Para além da deficiência há um noção de “ser humano normal”, segundo
sujeito com desejos, vitórias, medos, limita- Goffman (2008), pode ter sua origem na
ções, com concepções ideológicas, fazeres, abordagem médica da humanidade, ou nas
gostos, vontades que não devem ser negli- tendências das organizações burocráticas
genciados em generalizações. Exaltar apenas em grande escala, de tratar todos os seus
essa característica desmerece as conquistas, membros como iguais em alguns aspectos.
as capacidades, a própria singularidade do Independentemente da origem, a polarização
sujeito. Amaral (2004) traz argumentos que entre dois agrupamentos, em que se distin-
vão ao encontro dessa perspectiva de que o gue quem tem legitimidade para ser visto
olhar do outro para a pessoa com deficiência como sujeito dos direitos – o normal – e
muitas vezes é limitador: “O que conta é o quem ocupa o lugar de, no máximo, alvo
pressuposto básico na cabeça do outro, de da concessão de favores – o anormal, tem
1 Os termos que se refe- que o deficiente1 é sua deficiência, vive em sido a maneira como historicamente tem se
rem à pessoa com defici- função dela: se magoa, se irrita, se fracassa, é construído as perguntas a respeito da diver-
ência foram se alterando porque é complexado; se sobressai é porque sidade humana (Angelucci, 2009).
ao longo da história. precisa compensar” (p. 90). Todas as ações
Neste trabalho, serão uti-
são justificadas em função da deficiência,
lizadas as designações de Se essas concepções tão estereotipadas
acordo com os autores,
praticamente se elimina o sujeito para que
sobre a pessoa com deficiência ainda estão
como por exemplo: defi- ela sobressaia. Na educação, o enfoque na
presentes nos discursos sociais, como fica
ciente, pessoas com ne- deficiência também se faz presente, o que
a inserção dos alunos com deficiência na
cessidades educacionais fica claro nas palavras de Skliar (1997):
escola? Muitas vezes, os professores afirmam:
especiais, pessoa com
diferença significativa. Se o critério para afirmar a singulari- “Eu tenho dois casos de inclusão” ou “Eu
dade educativa desses sujeitos é uma tenho um especial na minha sala”. Vemos
caracterização excludente a partir da claramente que a inclusão aí não tem lugar,
deficiência que possui, então não se uma vez que os alunos em questão são trata-
está falando de educação, mas de uma dos de forma tão diferenciadas que não fazem
intervenção hermenêutica; se se acre- parte do grupo “alunos” simplesmente. Não
dita que a deficiência, por si mesma, é
se quer, com isso, esquecer as diferenças e,
o eixo que define e domina toda a vida
pessoal e social dos sujeitos, então não
muito menos, tratar todas as diferenças de
se estará construindo um verdadeiro forma igual. Partimos do pressuposto de que
processo educativo, mas um vulgar existem diferenças significativas. Ou seja,
processo clínico (p. 06). usar óculos não é o mesmo que ter uma
deficiência visual. Porque com os óculos
Processo clínico é entendido pelo autor qualquer pessoa tem as mesmas condições
como uma prática que busca reduzir ou que outra pessoa que enxerga bem. Porém,
eliminar a deficiência, comparando-a com o deficiente visual, seja cego ou portador
um adoecimento. Também é chamada de de baixa visão, tem, com todos os recursos
“intervenção hermenêutica”, porque impõe possíveis, pouco acesso às informações
valores e interpretações antes de conceber o visuais e, portanto, sua necessidade especial
aluno como sujeito, de modo a ver a defici- é ter disponível outras fontes adaptadas de
ência como fator central do aluno. informação para que o conteúdo acessível
a ele seja o mesmo daqueles que enxergam.
Outro aspecto comum na convivência com
a pessoa com deficiência é a negação. Mas Assim, o debate do que são as diferenças
o incômodo com a diferença reaparece nos significativas e de qual espaço social elas têm
discursos que ressaltam o aspecto “normal” nos ajudarão a tirar a educação inclusiva do
valorizado, como cita Amaral (2004) “é o limbo. Por que limbo? É que se adotarmos
famoso: ‘feia, mas tão simpática’, ‘aleijada, o conceito de educação democrática não
da experiência no capitalismo tardio é cada o que pensar sobre eles. A essa distância já
vez menor. Entendemos capitalismo tardio definida pelo pensamento estereotipado,
como define Imbrizi (2005): nenhuma identificação é possível porque a
caracterização do outro como alguém ruim
É capitalismo porque a dominação entre fortalece a ideia do eu como bom. Dessa
e sobre os seres humanos tem suas bases forma, as condições sociais que permitiram
na estrutura econômica da sociedade de o surgimento do estereótipo são ignoradas e,
classes, só que a especificidade de tal
com o olhar direcionado apenas para o grupo
opressão é que ela se tornou anônima.
Todos os homens sofrem com o controle
em questão, o sujeito se sente, ilusoriamente,
que, por não saberem de onde vem, menos inseguro em uma cultura ameaçadora.
transforma-se em destino. E é capita- Mas como essa ilusão é, no fundo, conhecida
lismo tardio porque ‘os homens conti- pelo sujeito, ele sabe que o judeu hoje pode
nuam como apêndice da maquinaria’, representá-lo amanhã. Isto é, os grupos per-
não só os trabalhadores, pois todo o seguidos são, como já disseram Horkheimer
comportamento do indivíduo em suas e Adorno (1986), “intercambiáveis entre si”,
mais íntimas emoções submetem-se ao pois não se trata simplesmente do problema
mecanismo social e suas necessidades com um grupo X, com uma característica
transformam-se em funções do aparelho
peculiar não aceita, mas da própria ordem
de produção (p. 42).
social que é estabelecida de modo a constituir
subjetividades desumanizadas e, por isso, se à
Isso quer dizer que toda a distinção feita vítima de hoje é dado poder suficiente em uma
até aqui entre pessoas preconceituosas e cultura ainda tão desumana, amanhã, muito
não preconceituosas tem mais um objetivo provavelmente, ela se tornará algoz também.
didático do que de polarização de dois tipos Em relação às pessoas com deficiência, a his-
idealizados. Se podemos entender o precon- tória mostra oscilações: ora o deficiente deve
ceito apenas na interface entre indivíduo e ser eliminado, ora ele pode funcionar como
cultura, faz-se necessário pensar que a cultura um oráculo – ambas visões estereotipadas. No
é que permite a formação de pessoas precon- entanto, na maioria das vezes, o estereótipo
ceituosas. Para tal, partiremos do conceito de esteve mais voltado para as limitações na vida
estereótipo, como “ponte” mais facilmente da pessoa com deficiência e sua exclusão das
identificável entre o preconceito e a cultura. oportunidades de vida em sociedade.
com o inesperado, a novidade que está no com todo e qualquer surdo. É que os surdos
outro, lembremos da dinâmica explicada não são todos iguais. Eles se diferenciam
acima sobre o preconceito: no encontro como todos nós: classe social, gênero,
com o outro há algo que aprendo que é idade, opção político-partidário, profissão,
novo, se isso não acontece, é porque estou religião, gosto pela arte etc. Além disso,
preso ao meu preconceito. E a educação, na existem diferenças da própria deficiência:
perspectiva que estamos adotando, como momento da perda auditiva, grau da perda,
experiência formativa e direito ao saber, reação da família, apoio institucional das
precisa justamente desse encontro, sem áreas de educação, saúde, assistência social
regras pedagógicas controladoras. etc. Isso nos leva a desconfiar de frases como:
“Todo surdo é irritado”, “Toda pessoa com
Nesse sentido, compartilhamos com Voltolini síndrome de Down é afetuosa”, “Todo cego
(2009) a perspectiva de que o encontro com tem dons artísticos” etc. Nesse “todo” que
o outro é necessário para a educação ocorrer: busca homogenizar o que é impossível de
ser generalizável, vemos uma “violência”.
O encontro comporta o imprevisível, É a violência do estereótipo.
mas também o criativo, a solução em
cima da hora, aquela que leva em con-
Também a família sofre com o estereótipo.
sideração uma série de elementos e
não apenas a pergunta organizada de A família é um grupo social atravessado por
um aluno transmitida a posteriori pelo todas as questões sociais a que todos estamos
recurso tecnológico. sujeitos. Ou seja, se vivemos ainda em um
mundo com diferentes tipos de preconceitos
O encontro é o maior indicativo da pre- aos grupos estigmatizados, então, a família
sença, já que alguém se move, ri da minha não está imune aos preconceitos, estigmas
piada, faz uma expressão com o rosto que e estereótipos. No entanto, as famílias têm
inclina meu modo de pensar em outra
diferentes reações às diferenças. Foquemos
direção, enfim, sinais de uma riqueza que
o contato contém e que me permitem
no caso da deficiência. Há familiares que
desviar da rota pelo encontro (Voltolini, estimulam seu ente com alguma limitação
2009, p. 135, destaques do autor). física de forma bastante próxima ao que se
cobra dos outros membros da família. Quando
Na citação acima, o autor aborda os proble- isso acontece, costumamos ver pessoas mais
mas concernentes ao ensino a distância, que inseridas socialmente do que nas famílias em
ele afirma não se tratar de educação, por não que há insegurança ou superproteção que
permitir esse encontro. Para nossa discussão, influencia a criança ou adulto com deficiência.
vale lembrar que o valor das informações
sobre os diferentes tipos de deficiência e as É nesse sentido que o “estar preparado” pode
formas de acessibilidade que garantem ao ser perigoso pois dependendo do preparo, o
máximo o direito aos mesmos conhecimentos, olhar para o diferente será mais “recheado”
bem como as reflexões sobre as minorias (não de preconceitos e estereótipos do que um
de número, mas de poder), suas histórias, olhar ingênuo ou “despreparado”, que aposta
dados sobre sua pouca representatividade na capacidade do outro, sem focar exclu-
etc. é inegável e tem caráter formativo, mas sivamente nas suas limitações. Além disso,
não necessariamente “preparatórios”. seguindo a mesma lógica que Angelucci (2002)
apresenta sobre a atenção que a educação
Para entender essa inviabilidade do “preparar” inclusiva chama para os problemas já existen-
precisamos nos lembrar de que as pessoas tes na educação, podemos pensar as antigas
pertencentes a determinado grupo estigma- e conflituosas relações entre família e escola.
tizado, como nos diz Goffman (2008), não
são todas iguais. Isso significa que, por mais Patto (1992), há mais de 20 anos, já mostrou
que eu estude a surdez e a Língua Brasileira os desencontros entre as famílias pobres e
de Sinais (Libras), por exemplo, isso não me os professores de escola pública. Falas pre-
garante a fórmula perfeita para me relacionar conceituosas de professoras sobre o descaso
da família são contrapostas com as falas de leitura e escrita. A título de exemplo, ouça-
dedicação dos pais. Mas trata-se de uma mos o caso de Daniela, que no momento
dedicação não visível ao observador mais da pesquisa tinha 8 anos e 4 meses. Para
desatento. Porque para essas pessoas, a escola todas as crianças avaliadas, a autora faz um
nem sempre é um espaço familiar. Muitos resumo sobre a fala da professora, da mãe
pais não tiveram boas experiências na escola, ou pai, da própria criança e, para finalizar,
evadiram muito cedo, tiveram que trabalhar sua fala de médica:
e parar de estudar. São frutos de um sistema
escolar seletivo. Mas não é isso que desejam A professora
para os filhos. Expressam sua angústia pelas
dificuldades do filho e todos são unânimes É muito magrinha, muito enjoada,
nunca come a merenda. Acho que é
em valorizar a escola.
subnutrida. Ah! É sim, o caso dela é
gritante... De desnutrição, de relaxo
Além de denunciar uma ilusão dos profissio- da mãe. É assim mesmo, a gente vê
nais de educação de que é possível conhecer muito, não sabe a alimentação que a
o cotidiano de uma família por pequenos criança precisa comer, dá porcaria, aí
“sinais” que se observa na aula, nas reuniões, fica desnutrido. O médico já explicou
na entrada e saída da escola, a atualidade isso várias vezes, ele vinha aqui exami-
do texto pode ser vista na citação de uma nava e dizia: “desnutrição, a criança
quer aprender, mas não aprende”. Mas
professora: “Se é bem alimentada, se tem
não adianta, as mães não se interessam,
carinho de pai e mãe e atenção do pai, alguém não levam no postinho, a mãe acho que
que olhe o caderninho dela, não tem por nunca levou no médico.
onde ser reprovada” (p. 113). Essa professora
mostra com essa frase uma concepção de que A mãe
o sistema educacional está imune a críticas,
mas a família, não. Esta deve fazer aquilo Ela nasceu bem, de nove meses, no hos-
que a escola não consegue fazer. pital. Pesou três duzentos e cinquenta.
Teve alta no segundo dia. Nunca teve
nenhum problema. Sempre acompa-
Enfim, podemos perceber um fogo cruzado nhei no Centro de Saúde. O médico
entre escola e família. Fogo cruzado sem sempre dizia que ela estava crescendo
vencedores. É importante assumirmos que, bem, gordinha sempre.
muitas vezes, profissionais da educação e
família são representantes de classes sociais Entrou na escola com seis anos e meio,
diferentes e suas falas e atitudes denunciam, queria muito ir, mas não aprendeu a
ainda, um abismo de comunicação, em que ler, foi reprovada. Não sei por quê, a
cada parte espera que a outra faça aquilo professora nunca falou nada, nunca me
que não conseguiu realizar. chamou pra nada.
Daniela
Moysés (2001) também mostra essas
discrepâncias em seu interessante livro Eu? Quando crescer quero trabalhar.
“A institucionalização invisível: crianças De vender doce, é um bom trabalho,
que-não-aprendem-na-escola”. Partindo de todo mundo compra.
uma visão crítica de avaliações padronizadas
tipo teste psicológico, já presente em artigo Eu repeti porque não aprendi. {Por que
anterior (Moysés & Collares, 1997), a autora, você não aprendeu?} Por que? Não sei...
que é médica, avalia crianças apontadas
A médica
pelos professores como futuros repetentes
logo no início do ano. E seu método de A mãe tem o cartão com a evolução
avaliação visa superar a artificialidade dos de peso e altura nos dois primeiros
testes e, em uma via contrária, parte do anos de vida: normal. Nunca teve
que a criança gosta de fazer para avaliar o qualquer doença nutricional. Teve um
seu desenvolvimento e conhecimentos de acompanhamento modelo na saúde,
trazendo para a consulta de hoje comunidade etc. Para tal, não fechamos com
todos os cartões, de agendamento, receitas prontas, mas justamente com a reflexão
de vacinação e de medidas. sobre a abertura para o outro diferente: o que ele
está trazendo de diferente que pode me levar a
Criança normal. Desenvolvimento nor-
novas reflexões e aprendizado? O que os pais
mal. Estado nutricional normal (Moy-
sés, 2001, p. 173/174).
têm para contar sobre a experiência de esco-
larização dos seus filhos? Será que o aparente
desinteresse dos pais não esconde a vergonha
Essa longa citação mostra que a fala da
de estarem presente em um lugar que lhe foi
professora e da família parece não dizer da
traumático e com pessoas que são consideradas
mesma criança. Ainda vivemos isso dentro
“superiores”? E os familiares excessivamente
da escola: a impressão é de que trata-se de
inseguros: será que não estão atualizando as
mundos paralelos. É preciso construir pontes
dificuldades que eles mesmos já viveram na
para superar esses abismos de comunicação.
escola? Só poderemos responder essas per-
A educação inclusiva não fica imune a essa
guntas no diálogo. Lembrando que dialogar
lógica que compõe a estrutura da escola há
não significa falar a mesma língua e concordar
décadas. No entanto, há possibilidades de pon-
sempre. Ao contrário. Talvez tenhamos que
tes entre esses dois mundos: escola e família.
descobrir na fala do outro o espelho do mal
Celio Sobrinho e Alves (2013), por exemplo,
do nosso próprio preconceito. E, assim, com
relatam uma pesquisa-ação realizada em uma
mais conhecimento sobre nós mesmos, buscar
escola pública de Vitória, no Espírito Santo.
alternativas para superar nosso pensamento,
Buscando superar esse hiato de comunicação
fala e ação, muitas vezes, preconceituosos.
entre família e escola, foi organizado por pais
e profissionais da referida escola encontros
sistemáticos mensais de pais de alunos com A diversidade presente na educação inclusiva
deficiência e professores. Os encontros foram não é um favor aos grupos historicamente
marcados também pela organização de fóruns excluídos, mas uma luta pela humanização de
para a comunidade fora da escola: outros todos nós. Quando não conseguimos lidar com
professores de outras escolas etc. as diferenças que nos rodeiam perdemos uma
oportunidade de caminhar na nossa própria
evolução. Assim, quando privamos os alunos
A pesquisa mostrou que os encontros mobi-
de conviverem com outras crianças com difi-
lizaram a assimetria notada entre familiares
culdades visuais, motoras, auditivas, intelectuais
e especialistas. Com espaço de diálogo e
ou com outras diferenças marcantes tais como
formação, pais e professores, puderam assu-
classe social, lugar de origem, religião, opção
mir conflitos, construir novas possibilidades
sexual etc., falhamos na sua formação, porque,
e com isso, colocaram “[...] em movimento
quando adultas, talvez terão menor facilidade
a balança do poder da relação família e
de lidar com essas mesmas pessoas.
escola” (Celio Sobrinho & Alves, 2013, p.
337, destaques dos autores).
Enfim, assim como pensamos que uma
rampa é uma melhor forma de locomoção
À guisa de conclusão tanto para pessoas com mobilidade reduzida
quanto para quem tem uma mobilidade
Professores e demais profissionais da educação comum, o mesmo raciocínio se entende
são destituídos de poder ao se verem reféns no convívio com a diferença permitido na
das políticas educacionais impostas de forma escola: conhecendo diferentes modos de
tão pouco democrática. Por outro lado, esse ser, facilitamos a nossa própria vida, pois
poder subtraído não desfaz as antigas relações flexibilizamos nosso olhar para o mundo e
desiguais entre escola pública e familiares dos podemos superar a lógica do preconceito
alunos, talvez, justamente potencialize tais que tanto conhecemos. Porém, esse conví-
relações de poder. Entretanto, a ponte que vio com a diferença é um esforço coletivo:
pudermos criar entre família e escola serão família, escola, poder público, comunidade,
benéficas para todos: alunos, pais, professores, todos precisam dar sua contribuição.
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