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As festas do Divino,
dossiê
o tambor de mina e o regime patrimonial
João Leal*
* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa - NOVA (Lisboa/
PT). E-mail: joao.leal@fcsh.unl.pt
1. Essa abertura ao catolicismo tem sido tematizada sobretudo a partir do conceito de sincretismo (FER-
RETTI, 1995). Tive ocasião de exprimir as minhas reservas em relação a esse conceito no respeitante à
cooptação das festas do Divino pelos terreiros de tambor de mina. Em alternativa propus a expressão “mo-
dos de articulação” (LEAL, 2017).
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ção. Esta deve ser vista não tanto como um Pentecostes, a maioria realiza-se ao longo
processo de ressignificação radical das festas do ano e homenageia simultaneamente o
– como acontece com muitas expressões cul- Espírito Santo e um santo (ou santa, ou in-
turais objetificadas –, mas como um processo vocação de Nossa Senhora)3.
de adição de um novo significado “cultural” No quadro das festas, o Espírito Santo
aos significados religiosos e sociais que con- é usualmente representado – em conjunto
tinuam a caracterizá-las. Argumentarei tam- com um pombo de madeira e com a ban-
bém que a objetificação das festas pode ser deira do Espírito Santo –, por intermédio de
vista em termos equivalentes aos processos uma coroa em latão (ou mais raramente em
de patrimonialização das religiões afro-brasi- prata), encimada por uma pomba e acom-
leiras que, noutros contextos – como na Bah- panhada de um cetro. Estes símbolos são
ia –, surgem associados à sua reafricanização instalados na tribuna, um altar ricamente
(SANTOS, J., 2005; SANSI, 2007). Não só o decorado, onde se centra parte importante
seu efeito é similar – contribuir para inscrever dos festejos. Como em muitas outras festas
o tambor de mina no regime patrimonial –, populares brasileiras, a festa do Divino sur-
como faz sentido que, nas condições de uma ge associada a um mastro, que, para além
religião que tem na abertura ao catolicismo de assinalar o lugar e o tempo da festa,
uma das suas características importantes, esse simboliza também o Espírito Santo.
efeito possa ser conseguido por intermédio de Nas festas têm um papel de grande im-
uma festa de matriz católica2. portância os impérios: crianças e pré-ado-
lescentes de ambos os sexos, que envergam
1. As festas do Divino em São Luís trajes de gala inspirados em trajes de corte
e desempenham os cargos de imperador e
A importância das festas do Divino no imperatriz, mordomo e mordoma régio(a)
Maranhão, onde terão sido introduzidas e mordomo e mordoma mor. Estes cargos
por colonos açorianos na primeira metade são bancados – isto é, patrocinados e pagos
do século XVII, tem sido sublinhada por di- – por adultos, geralmente pais ou outros
versos autores (EDUARDO, 1948; FERRET- parentes próximos dos meninos e meninas.
TI, 1995; LEAL, 2017). No estado, existem A par dos impérios, o outro grupo de
mais de 200 festas recenseadas (GONÇAL- protagonistas mais importante das festas é
VES; LEAL, 2016), cerca de 80 das quais constituído pelas caixeiras: agrupamentos de
se realizam na cidade de São Luís. Embora oito ou mais mulheres – dirigidas por uma
algumas delas tenham lugar no domingo de caixeira régia –, que, por intermédio de cânti-
2. O trabalho de campo que se encontra na base do presente artigo foi realizado no âmbito de uma pes-
quisa mais vasta – sobre as festas do Divino em terreiros de tambor de mina –, realizada entre 2011 e 2104,
num total de nove meses (LEAL, 2017). Para a realização desse trabalho de campo beneficiei do apoio fi-
nanceiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal (através do projecto PTDC/CS
-ANT/100037/2008) e da FAPEMA (através de uma bolsa de professor/ pesquisador convidado). Agrade-
ço aos dois pareceristas anônimos deste artigo os seus comentários e sugestões.
3. Uma apresentação mais detalhada das festas do Divino em São Luís, pode ser encontrada em Ferretti
(1995; 1999) e em Leal (2017). A descrição mais sintetizada que apresento neste artigo resulta de observa-
ções realizadas em vários terreiros, onde, apesar de algumas variações, as festas apresentam um script ri-
tual dotado de alguma constância.
4. Os dados apresentados resultam da consulta do cadastro das festas do Divino existente no Centro de
Cultura Popular Domingos Vieira Filho (LEAL, 2012). Este cadastro serve de base à política de financia-
mento das festas seguida por esse organismo da Secretaria Estadual da Cultura do Maranhão, que será
analisada mais à frente.
5. Esta salva consta da realização de toques de caixa junto ao altar católico da casa ou junto a um peque-
no altar erguido expressamente para o Divino.
8. Para um tratamento mais detalhado das narrativas de origem das festas do Divino no Maranhão, ver Le-
al (2017, p. 234-246).
9. A Casa Fanti-Ashanti, a Casa de Iemanjá e o terreiro Jardim da Encantaria terão sido, segundo Pai Cle-
mente Filho (pai de santo do terreiro Jardim da Encantaria), as primeiras beneficiárias desse alargamento,
que depois se foi estendendo a outros terreiros. A breve síntese histórica dos apoios financeiros às festas
do Divino que apresentei baseia-se na consulta ao arquivo dos convites para as festas existente no Centro
de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. O carácter lacunar do arquivo apenas possibilita a indicação de
algumas tendências gerais.
10. A informação sobre estes dois eventos foi-me transmitida pela própria Ester Marques, em entrevista
realizada em 2011. A entrevista foi complementada com cópias dos dossiês relativos aos dois eventos, que
fazem parte do seu arquivo pessoal.
11. Fátima Sopas Rocha é uma professora da UFMA cuja pesquisa tem incidido sobre as festas do Divino
(ROCHA, 2010). Quanto ao Padre Hélder Fonseca Mendes, foi vigário geral da diocese dos Açores e é tam-
bém o autor de um livro – de cunho teológico e pastoral – sobre as festas do Espírito Santo, com particu-
lar ênfase nos Açores (MENDES, 2006).
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