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RELIGIÃO COMO CULTURA?

As festas do Divino,

dossiê
o tambor de mina e o regime patrimonial

RELIGION AS CULTURE? Holy Ghost feasts,


tambor de mina and the heritage regime

João Leal*

Introdução são das festas: a sua gradual inscrição no


“regime patrimonial” (HAFSTEIN, 2004).
Vários autores têm destacado a abertura De facto, particularmente desde os anos
ao catolicismo que caracteriza o tambor de 1990, as festas do Divino têm sido incorpo-
mina (EDUARDO, 1948; FERRETTI, 1995; radas nas políticas e práticas de objetifica-
LEAL 2017). Uma das expressões dessa ção (HANDLER, 1988) da cultura popular
abertura prende-se com a cooptação das no estado do Maranhão, conduzidas por
festas do Divino Espírito Santo (ou festas organismos e por ativistas culturais. Esses
do Divino) pelos terreiros de tambor de processos de objetificação impactaram no
mina1. Esta cooptação tem sido trabalhada modo como as festas são tematizadas a
a partir de vários pontos de vista, que vão partir das casas de tambor de mina.
desde a exploração dos modos de articula- Este artigo visa proceder ao exame des-
ção entre as festas e o culto dos encanta- sas políticas e práticas e dos seus efeitos nos
dos (FERRETTI, 1995; LEAL, 2017) até à sua terreiros. Um deles foi a culturalização das
análise como “festas maiores” dos terreiros festas, isto é, a sua tematização em torno de
de tambor de mina (LEAL, 2014). O objetivo ideias sobre cultura, raízes e tradição. Exa-
deste artigo é examinar uma outra dimen- minarei também os termos dessa culturaliza-

* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa - NOVA (Lisboa/
PT). E-mail: joao.leal@fcsh.unl.pt
1. Essa abertura ao catolicismo tem sido tematizada sobretudo a partir do conceito de sincretismo (FER-
RETTI, 1995). Tive ocasião de exprimir as minhas reservas em relação a esse conceito no respeitante à
cooptação das festas do Divino pelos terreiros de tambor de mina. Em alternativa propus a expressão “mo-
dos de articulação” (LEAL, 2017).

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ção. Esta deve ser vista não tanto como um Pentecostes, a maioria realiza-se ao longo
processo de ressignificação radical das festas do ano e homenageia simultaneamente o
– como acontece com muitas expressões cul- Espírito Santo e um santo (ou santa, ou in-
turais objetificadas –, mas como um processo vocação de Nossa Senhora)3.
de adição de um novo significado “cultural” No quadro das festas, o Espírito Santo
aos significados religiosos e sociais que con- é usualmente representado – em conjunto
tinuam a caracterizá-las. Argumentarei tam- com um pombo de madeira e com a ban-
bém que a objetificação das festas pode ser deira do Espírito Santo –, por intermédio de
vista em termos equivalentes aos processos uma coroa em latão (ou mais raramente em
de patrimonialização das religiões afro-brasi- prata), encimada por uma pomba e acom-
leiras que, noutros contextos – como na Bah- panhada de um cetro. Estes símbolos são
ia –, surgem associados à sua reafricanização instalados na tribuna, um altar ricamente
(SANTOS, J., 2005; SANSI, 2007). Não só o decorado, onde se centra parte importante
seu efeito é similar – contribuir para inscrever dos festejos. Como em muitas outras festas
o tambor de mina no regime patrimonial –, populares brasileiras, a festa do Divino sur-
como faz sentido que, nas condições de uma ge associada a um mastro, que, para além
religião que tem na abertura ao catolicismo de assinalar o lugar e o tempo da festa,
uma das suas características importantes, esse simboliza também o Espírito Santo.
efeito possa ser conseguido por intermédio de Nas festas têm um papel de grande im-
uma festa de matriz católica2. portância os impérios: crianças e pré-ado-
lescentes de ambos os sexos, que envergam
1. As festas do Divino em São Luís trajes de gala inspirados em trajes de corte
e desempenham os cargos de imperador e
A importância das festas do Divino no imperatriz, mordomo e mordoma régio(a)
Maranhão, onde terão sido introduzidas e mordomo e mordoma mor. Estes cargos
por colonos açorianos na primeira metade são bancados – isto é, patrocinados e pagos
do século XVII, tem sido sublinhada por di- – por adultos, geralmente pais ou outros
versos autores (EDUARDO, 1948; FERRET- parentes próximos dos meninos e meninas.
TI, 1995; LEAL, 2017). No estado, existem A par dos impérios, o outro grupo de
mais de 200 festas recenseadas (GONÇAL- protagonistas mais importante das festas é
VES; LEAL, 2016), cerca de 80 das quais constituído pelas caixeiras: agrupamentos de
se realizam na cidade de São Luís. Embora oito ou mais mulheres – dirigidas por uma
algumas delas tenham lugar no domingo de caixeira régia –, que, por intermédio de cânti-

2. O trabalho de campo que se encontra na base do presente artigo foi realizado no âmbito de uma pes-
quisa mais vasta – sobre as festas do Divino em terreiros de tambor de mina –, realizada entre 2011 e 2104,
num total de nove meses (LEAL, 2017). Para a realização desse trabalho de campo beneficiei do apoio fi-
nanceiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal (através do projecto PTDC/CS
-ANT/100037/2008) e da FAPEMA (através de uma bolsa de professor/ pesquisador convidado). Agrade-
ço aos dois pareceristas anônimos deste artigo os seus comentários e sugestões.
3. Uma apresentação mais detalhada das festas do Divino em São Luís, pode ser encontrada em Ferretti
(1995; 1999) e em Leal (2017). A descrição mais sintetizada que apresento neste artigo resulta de observa-
ções realizadas em vários terreiros, onde, apesar de algumas variações, as festas apresentam um script ri-
tual dotado de alguma constância.

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cos acompanhados pelas caixas, asseguram a tem lugar uma radiola de reggae que pode ser
direção musical dos festejos e se encarregam acompanhada pela realização de outras ati-
de louvar o Espírito Santo e a santa (ou san- vidades festivas, como o tambor de crioula.
to ou invocação de Nossa Senhora) celebrada No dia seguinte ao dia da festa, faz-se o
em conjunto com o Divino (GOUVEIA, 2001; derrubamento do mastro que, tal como o seu
PACHECO; GOUVEIA; ABREU, 2005; BAR- buscamento e levantamento, decorre num
BOSA, 2006). Se a articulação das festas do registo de folguedo e excesso. Realiza-se de-
Divino com esse tipo de agrupamentos musi- pois o repasse das posses (designação dada
cais (geralmente conhecidas pela designação aos trajes e outros adereços cerimoniais) en-
de folias) é recorrente no Brasil, é exclusiva tre as crianças dos impérios, acompanhado
do Maranhão esta solução de feminização da sua investidura nos cargos que desempe-
deste desempenho ritual. nharão no ano seguinte. Uma vez concluído
A sequência das festas apresenta uma o repasse das posses, ocorre o encerramento
certa regularidade. O seu início é assinala- da tribuna, no decurso do qual a festa é dada
do pela abertura da tribuna. Esta é seguida, por terminada e o Espírito Santo – depois de
algum tempo depois, – pelo buscamento e o se ter feito presente durante todo o período
levantamento do mastro, rituais que decor- da festa –, regressa à sua morada divina. Por
rem num ambiente de folguedo e excesso fim, no dia seguinte, pode realizar-se o ca-
que contrasta com a solenidade que carac- rimbó das caixeiras, caracterizado, tal como
teriza outros segmentos das festas. os segmentos relacionados com o mastro,
O dia da festa compreende um conjunto por uma atmosfera de brincadeira e excesso.
diversificado de rituais. Entre eles destaca-se As festas do Divino têm uma articulação
a ida à missa dos impérios, geralmente se- privilegiada com o tambor de mina. Assim,
guida de um cortejo. Uma vez de regresso ao de um total de 79 festas existentes em São
recinto da festa, os impérios são sentados na Luís, 61 – isto é, mais de 2/3 – têm lugar em
tribuna onde recebem as homenagens das terreiros de tambor de mina (51) ou de um-
caixeiras e, terminado esse ritual, tem lugar banda (10)4. Dado que o número estimado
um almoço para os impérios, para as cai- de terreiros de tambor de mina em São Luís
xeiras e para todos os convidados e outras é de 120, aproximadamente, isto quer dizer
pessoas que queiram participar nos festejos. que metade deles realiza festas do Divino.
Esse almoço é muito concorrido, pode juntar Entre esses terreiros estão muitos dos mais
centenas de pessoas, e é um dos segmentos importantes de São Luís; deve também ser
rituais mais dispendiosos e também mais im- sublinhado que muitas casas que não rea-
portantes no prestígio e na reputação de uma lizam a festa promovem de qualquer forma
festa. Durante a tarde, enquanto as caixeiras uma salva ao Divino Espírito Santo por oca-
vão entoando vários cânticos junto à tribuna, sião do seu festejo principal5.

4. Os dados apresentados resultam da consulta do cadastro das festas do Divino existente no Centro de
Cultura Popular Domingos Vieira Filho (LEAL, 2012). Este cadastro serve de base à política de financia-
mento das festas seguida por esse organismo da Secretaria Estadual da Cultura do Maranhão, que será
analisada mais à frente.
5. Esta salva consta da realização de toques de caixa junto ao altar católico da casa ou junto a um peque-
no altar erguido expressamente para o Divino.

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A história dessa relação entre festas do festa. Os adultos que bancam os impérios
Divino e tambor de mina remonta ao século também o fazem tanto em resultado de uma
XIX. As primeiras festas de terreiro teriam promessa ao Espírito Santo como de um
sido fundadas entre finais do século XIX (na pedido de um encantado. Em consequência,
Casa das Minas) e as primeiras décadas do as entidades espirituais do tambor de mina
século XX (na Casa de Nagô). Depois, o nú- – voduns, orixás, gentis, caboclos, prin-
mero de festas em terreiros parece ter conti- cesas – têm uma presença importante nas
nuado a crescer, de tal forma que nos anos festas. Elas podem, por exemplo, associar-
1940 o antropólogo Otávio Eduardo (1948) se à definição de alguns dos seus aspectos
deu como adquirida a sua realização na organizativos. Muitos segmentos rituais
maioria dos terreiros que então recenseou. das festas contam também com a presença
dessas entidades. Por exemplo, os caboclos,
Gráfico 1 – Décadas de fundação das Festas do Divino em particular os caboclos farristas, têm
uma participação relevante nos segmentos
relacionados com o buscamento, o levan-
tamento e o derrubamento do mastro e a
receção da coroa e dos impérios. A seguir à
missa do dia da festa está geralmente a car-
go de um dos principais encantados do pai
ou mãe de santo. Em muitas casas, a aber-
tura e o encerramento da tribuna envolvem
também a participação de entidades espiri-
tuais do tambor de mina.
As festas do Divino fazem, geralmente,
parte de um conjunto festivo mais vasto
que engloba vários toques em homenagem
a entidades espirituais da mina. Esses to-
ques realizam-se diante da tribuna do Divi-
Terá sido, todavia, a partir dos anos no, que se mantém montada por mais sete
1970 que o número de festas de terreiro dias após o encerramento formal da festa,
conheceu um aumento mais significativo. e prevêem modos variáveis de integração
De facto, das 79 festas atualmente existen- ritual entre tambor de mina e culto ao Es-
tes, quarenta foram criadas a partir dessa pírito Santo. Nalguns casos, o regresso da
década. Essa tendência, que prosseguiu nos coroa ao altar da casa é realizado por meio
anos 1980, atingiu o pico nos anos 1990 e de um ritual que tem lugar no final do úl-
prolongou-se pelos anos 2000 (Gráfico 1). timo toque de tambor de mina. No decurso
Nos terreiros, as festas do Divino articu- de alguns toques podem também ser can-
lam-se de vários modos com o tambor de tadas doutrinas com referências ao Divino
mina. A sua realização tanto pode resultar Espírito Santo, e nalgumas casas durante
de uma promessa ou de uma devoção do um toque de tambor de mina dedicado es-
pai ou mãe de santo, como do pedido ou, pecialmente às princesas, as crianças dos
nalguns casos, da devoção de um dos seus impérios sentam-se na tribuna e assistem à
encantados, que solicita a realização da parte inicial do ritual.

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2. Objetificações da cultura trabalho de tematização etnográfica (e/ou
antropológica) das diferentes expressões
Caracterizadas pelos traços gerais que das culturas populares do Maranhão. En-
passamos em revista, as festas do Divino têm volveram, em segundo lugar, a adoção de
sido objeto de um conjunto de políticas e políticas culturais da responsabilidade de
práticas de objetificação da cultura. Este con- organismos estaduais direcionadas à cul-
ceito foi proposto por Richard Handler e visa tura popular. Finalmente, assentaram num
designar o modo como determinados traços conjunto de iniciativas desenvolvidas por
da cultura (dança, arquitetura popular, etc.) ativistas e associações culturais.
Na tematização etnográfica da cultura
são transformados em coisas discretas que popular do Maranhão – em particular no
devem ser estudadas, catalogadas e exibidas. campo dos rituais e dos chamados “fol-
Isso envolve seleção e reinterpretação. O ob- guedos” – é geralmente destacada a im-
jetificador olha para um meio que lhe é fa- portância do trabalho de pesquisa e divul-
miliar e descobre que é composto de traços gação de Domingos Vieira Filho. Ligado
tradicionais, coisas que ele retira de um con- à Sub-Comissão Maranhense de Folclore
texto adquirido e transforma em espécimens entre 1948 e 1950, publicou regularmen-
típicos (HANDLER, 1988, p. 77). te sobre o folclore maranhense entre as
décadas de 1940 a 1970 (BRAGA, 2000).
Com similitudes a abordagens propostas Em 1980 refundou a Sub-Comissão Mara-
por outros autores – por exemplo, Kirshen- nhense de Folclore – renomeada Comissão
blatt-Gimblett (1998) e Carneiro da Cunha Maranhense de Folclore – que se mantém
(2009) –, as ideias de Handler acerca da ativa até aos nossos dias. Embora outros
objetificação da cultura visam sublinhar o autores tivessem acompanhado Domin-
modo como determinados aspetos – funda- gos Vieira Filho no seu interesse inicial
mentalmente locais – da cultura são trans- pelas culturas populares do Maranhão,
formados em signos identitários usados à foi sobretudo a partir dos anos 1970 que
escala local regional e/ou nacional por eli- esse interesse ganhou novos protagonis-
tes intelectuais e políticas. tas. Entre esses protagonistas, para além
No caso de São Luís, estas políticas e de Carlos de Lima (1988 [1972]), conta-se
práticas objetificadoras, que envolveram sobretudo Sérgio Ferretti, que atuou como
folcloristas, antropólogos, organismos es- uma espécie de braço direito de Domingos
taduais, ativistas e associações culturais, Vieira Filho na Comissão Maranhense de
inserem-se no quadro mais vasto dos pro- Folclore. Antes de ter orientado sua pes-
cessos de patrimonialização da cultura po- quisa para o estudo da Casa das Minas,
pular que se desenvolveram no Maranhão, Ferretti conduziu pesquisas sobre a Dança
ao longo do século XX. Como sublinhou do Lelê (FERRETTI, 1977) e sobre o Tam-
Antonio Evaldo Barros (2007, p. 17), al- bor de Crioula (FERRETTI, 2002 [1979]). A
guns deles iniciaram-se a partir dos anos partir da morte de Domingos Vieira Filho,
1930. Mas foi sobretudo a partir dos anos em 1982, foi ele que assumiu a direção da
1960 que ganharam uma expressão mais Comissão Maranhense de Folclore que, a
efetiva (ALBERNAZ, 2004; PARODI, 2011). partir de 1993, iniciou a publicação, que
Eles passaram, em primeiro lugar, por um se mantém até hoje, do Boletim da Co-

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missão Maranhense de Folclore. Contan- que, a partir dos governos de Sarney, este-
do com a colaboração de um diversifica- ve ligada a diversos organismos estaduais
do grupo de folcloristas e antropólogos, o orientados para o turismo.
Boletim desempenhou um papel de grande Continuadas ao longo da década de
importância na expansão e consolidação 1980, estas políticas de objetificação da
do trabalho de tematização etnográfica cultura ganharam um novo ímpeto a par-
das culturas populares do Maranhão. tir dos anos 1990, por iniciativa dos go-
Esse trabalho foi acompanhado, a par- vernos de Roseana Sarney (1995-2002,
tir da segunda metade dos anos 1960, por 2009-2010, 2011-2014). Filha e herdeira
um crescente envolvimento de organismos política de José Sarney, Roseana Sarney
municipais e estaduais na esfera das cul- “abraçou e investiu na cultura, elegendo
turas populares. Como sublinhou António essa área como uma de suas prioridades”
Evaldo Barros, embora com antecedentes (LIMA, 2006, p. 304). Objeto de apreciações
em décadas anteriores, foi sobretudo nes- contraditórias (e.g. CARDOSO, 2008), este
sa década que esse envolvimento se tra- envolvimento dos governos de Roseana
duziu – sobretudo a partir dos governos Sarney com a cultura popular deu um novo
estaduais de José Sarney (1966-1971) –, impulso às políticas iniciadas na segunda
na “implementação de políticas estatais metade dos anos 1960 e estabilizadas nas
regionais” (BARROS, 2007. p. 20) dotadas décadas seguintes.
de estabilidade e de meios administrativos Simultaneamente às políticas estaduais
e financeiros. Nesse trabalho foi mais uma que passámos em revista, os processos de
vez decisiva a figura de Domingos Viei- objetificação da cultura popular assenta-
ra Filho, que exerceu funções de direção ram também – especialmente a partir dos
nos principais organismos estaduais cria- anos 1970 – num conjunto de iniciativas
dos para dar corpo a essas políticas. Entre de ativistas e associações culturais, ligadas
1961 e 1970 foi ele o diretor do Departa- a propostas artísticas alternativas. Entre
mento Estadual de Cultura e, entre 1975 e essas associações conta-se o Laborarte um
1979, o Presidente da FUNC, que substi- laboratório de artes que nasceu em 1972.
tuiu esse Departamento. Durante um pe- Inicialmente dirigido por Tácio Borralho, o
ríodo mais curto, que teve início em 1962, Laborarte passou a ser dirigido, entre 1978
dirigiu também o organismo estadual res- e 2001, por Nelson Brito e, segundo a an-
ponsável pelo turismo, sector que que des- tropóloga Lady Selma Albernaz, procurava
de cedo se associou às políticas culturais
direcionadas para a cultura popular. Foi produzir novas formas de expressões artís-
graças à sua ação que foi criado em 1971 ticas que reunissem teatro, música e dança
o Museu (inaugurado em 1982) que hoje com cultura popular, sendo um grupo mar-
leva o seu nome, dedicado exclusivamente cante, e atuante até hoje em São Luís. (…) O
às culturas populares do Maranhão. Ou- objetivo do Laborarte era fazer um trabalho
tra pessoa relevante na implementação de artístico para preencher um vazio ideológi-
políticas voltadas para a cultura popular co, contrapor-se ao regime militar de 1964
foi Zelinda Lima – esposa do folclorista e à censura, portanto um teatro de resistên-
Carlos de Lima – que começou por traba- cia e contestação. O grupo integrava artistas
lhar com elas na prefeitura de São Luís e de distintos gêneros de arte, que usavam a

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linguagem da cultura popular (ALBERNAZ, A segunda inicia-se nos anos 1980 e carac-
2004, p. 144)6. teriza-se pelo gradual desenvolvimento de
iniciativas dinamizadas por ativistas cultu-
Outros grupos foram também impor- rais e pela adoção, a partir dos anos 1990,
tantes. Entre eles conta-se o Grupo do Pai de políticas culturais mais efetivas em rela-
Simão – ativo nos anos 1970 e depois ex- ção às festas.
tinto –, e sobretudo a Companhia Barrica A primeira fase é marcada pelas pesqui-
(ALBERNAZ, 2004; PARODI, 2011), que se sas de Domingos Vieira Filho (2005 [1954];
mantém atuante até hoje e que influenciou 1982; 1977) e, mais tarde, de Carlos de
a criação de outros grupos parafolcóricos, Lima (1988 [1972]) sobre as festas. Recebeu
como o Boi Pirilampo. Dando grande relevo depois um novo ímpeto, a partir do final
ao bumba meu boi, dos anos 1980, com os trabalhos de Sérgio
Ferretti e de outros antropólogos. Por seu
a Companhia Barrica é um grupo de intermédio, as festas do Divino passaram a
artistas formado em 1985 (…) que revigora ser vistas – em conjunto com outras ma-
e evidencia a tradição dos folguedos e das nifestações culturais – como expressões da
festas populares do Maranhão, apresentando cultura e da identidade do Maranhão. Al-
em ruas e praças e palcos da vida a gumas linhas de força destacam-se nessas
diversidade de ritmos e danças peculiares dos tematizações. A primeira prende-se com a
festejos juninos e carnavalescos da cultura importância atribuída às festas do Divino
maranhense (https://pt.wikipedia.org/wiki/ de Alcântara, encaradas como uma espécie
Companhia_Barrica. Acesso em 7 jan. 2018). de modelo originário – e o “mais autêntico”
– das festas do Divino em todo o estado.
É no interior deste quadro que acabei Os escritos de Carlos de Lima (1988 [1972])
de esboçar, que é possível entender os pro- foram particularmente importantes a esse
cessos de objetificação cultural das festas respeito, mas deve ser também destacado o
do Divino7. De facto, embora o lado mais trabalho de Pedro Braga Santos (1980). A
visível, e estudado, desses processos tenha segunda linha de força tem que ver com a
passado pelo bumba meu boi (ALBERNAZ, valorização das origens portuguesas e, mais
2004; NUNES, 2011; PARODI, 2011), eles especificamente, açorianas, das festas do
incidiram também sobre as festas. Divino. Este é um tema que aparece desde
Nesses processos podemos distinguir cedo nos escritos de Domingos Vieira Filho,
duas fases. A primeira inicia-se nos anos que sublinhou as origens portuguesas das
1950 e consolida-se nos anos 1970. É mar- festas (VIEIRA FILHO, 1977), mas que, a
cada pela tematização etnográfica das fes- partir de 2002, será reformatado por Carlos
tas, sem que esta dê todavia lugar a desdo- de Lima (2002a; 2002b) que defenderá as
bramentos relevantes em termos políticos. origens mais especificamente açorianas do

6. Sobre o Laborarte ver também Parodi (2011, p. 178-186).


7. Para a elaboração deste quadro genérico sobre processos de patrimonialização da cultura popular no
Maranhão, apoiei-me nos estudos de Ana Socorro Braga (2000) Lady Selma Albernaz (2004) António
Evaldo Barros (2007) e Michele Parodi (2011). Aí poderão ser encontrados os detalhes de processos que
acabei de resumir de uma forma necessariamente simplificadora.

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culto do Divino no Maranhão8. Outra linha ca, definida e dirigida por organismos cultu-
de força na tematização das festas do Divi- rais estaduais, de apoio às festas do Divino.
no é mais tardia e passou pela identificação Esta assentou em dois pilares principais: a
das caixeiras – e da “música do Divino” – implementação de um programa de apoio fi-
como um dos principais motivos de singu- nanceiro às festas e a organização de even-
laridade das festas (PACHECO; GOUVEIA; tos e programas de ação orientados para a
ABREU, 2005; BARBOSA, 2006). Uma últi- sua visibilização no espaço público.
ma linha de força assentou na tematização A implementação dos apoios financeiros
das articulações entre as festas e os terrei- remonta ao final dos anos 1980 (ou ao iní-
ros de tambor de mina. Esse era ainda um cio dos anos 1990) e teve inicialmente um
tópico ausente dos trabalhos de Domingos âmbito limitado, uma vez que contemplava
Vieira Filho e de Carlos de Lima, mas a par- exclusivamente a festa do Divino de Alcân-
tir do final dos anos 1980, sobretudo por tara. Posteriormente, alargou-se e passou a
intermédio das pesquisas de Sérgio Ferretti englobar outras festas. Numa fase inicial,
(1995, 1999), passou a assumir um papel de esse alargamento parece ter sido seletivo,
maior relevo na argumentação culturalista beneficiando sobretudo as casas de tambor
da importância das festas. de mina de São Luís mais antigas e presti-
Uma vez iniciado, este processo de te- giadas: a Casa das Minas e a Casa de Nagô.
matização etnográfica não se traduziu ime- No entanto, no decurso dos anos 1990 e
diatamente em políticas culturais efetivas dos anos 2000, outras festas foram englo-
– ao contrário do que sucedeu com o bum- badas pelos financiamentos estaduais9. Em
ba meu boi. É certo que, a partir dos anos consequência, em 2014, perto de 200 festas
1980, com a inauguração do museu do em todo o estado, 79 das quais em São Luís,
Centro de Cultura Popular Domingos Vieira eram apoiadas pela Secretaria Estadual da
Filho, as festas do Divino, em conjunto com Cultura. Esses apoios eram variáveis, e se
o bumba meu boi e com o tambor de mina, nalguns casos podiam atingir valores mais
foram integradas na narrativa museológi- significativos, noutros casos não iam além
ca autorizada sobre as particularidades das de R$500,00 por festa.
culturas populares do Maranhão. Mas pas- Quanto à organização de eventos, tem
sos mais decisivos no sentido do transporte envolvido um conjunto de iniciativas, ge-
da erudição etnográfica e/ou antropológica ralmente promovidas pelo Centro de Cultura
para a esfera das políticas culturais tiveram Popular Domingos Vieira Filho, centradas
que esperar pelos anos 1990. no culto do Divino Espírito Santo. Algumas
Foi a partir dessa década que tomou cor- dessas iniciativas decorrem no quadro do
po e se desenvolveu uma política sistemáti- Projeto Divino Maranhão. Embora se tenha

8. Para um tratamento mais detalhado das narrativas de origem das festas do Divino no Maranhão, ver Le-
al (2017, p. 234-246).
9. A Casa Fanti-Ashanti, a Casa de Iemanjá e o terreiro Jardim da Encantaria terão sido, segundo Pai Cle-
mente Filho (pai de santo do terreiro Jardim da Encantaria), as primeiras beneficiárias desse alargamento,
que depois se foi estendendo a outros terreiros. A breve síntese histórica dos apoios financeiros às festas
do Divino que apresentei baseia-se na consulta ao arquivo dos convites para as festas existente no Centro
de Cultura Popular Domingos Vieira Filho. O carácter lacunar do arquivo apenas possibilita a indicação de
algumas tendências gerais.

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mantido até hoje, este projeto foi particu- partir dos anos 1980, processos de objeti-
larmente importante nas décadas de 1990 e ficação cultural das festas conduzidos por
2000 e constava de um conjunto de eventos ativistas e associações culturais. Entre essas
que se realizavam geralmente em maio. Es- associações, ocupa mais uma vez lugar de
ses eventos envolviam desde a montagem de relevo o Laborarte. De facto, no trabalho
uma tribuna do Divino no Centro de Cultura desenvolvido por este grupo as festas do
Popular Domingos Vieira Filho até à orga- Divino tiveram um lugar importante, so-
nização de cortejos alusivos às festas, que bretudo a partir do momento que Dona Teté
percorriam o centro da cidade e integravam – falecida, mas que durante muito tempo
grupos de caixeiras e impérios de várias fes- foi uma figura destacada na cena cultural
tas do Divino (PARODI, 2011). Simultanea- de São Luís –, começou a trabalhar com ele.
mente, generalizaram-se iniciativas como Segundo Rosa Reis, uma consagrada artista
a organização regular de oficinas de caixa, local e atual diretora do Laborarte,
espetáculos com grupos de caixeiras ou o
lançamento de livros e CDs centrados na quando ela [Dona Teté] veio pra cá traba-
música do Divino. A presença de grupos de lhar no Laborarte, em 1980 (…) ela começou
caixeiras em eventos culturais fora de São a trabalhar com a gente com a festa do Divi-
Luís também se tornou importante. no, ela era caixeira também do Divino, cai-
Na adoção dessas políticas, foi crucial o xeira, rezadeira. E ela começou por ensinar o
papel de Maria Michol Carvalho que, depois toque de caixa pro espetáculo que ia aconte-
de ter assegurado vários cargos de assesso- cer aqui no Laborarte.
ra na Secretaria Estadual da Cultura, este-
ve à frente do Centro de Cultura Popular Foi a partir dessa primeira experiência
Domingos Vieira Filho entre 1996 e 2009. que Dona Teté criou, em 1986, um grupo
Falecida em 2012, Maria Michol Carvalho de cacuriá, com uma ligação também forte
desenvolveu um trabalho relevante de pes- à “música do Divino”:
quisa – a sua dissertação de mestrado inci-
diu sobre o bumba meu boi (CARVALHO, Desde quando Dona Teté estava aqui ela sem-
1988) –, foi presidente da Comissão Mara- pre falava pra gente conversando que o cacu-
nhense de Folclore, teve um papel central riá tem toda essa história, a partir da festa do
na organização – em São Luís – do X Con- Divino Espírito Santo, que é no final da festa,
gresso Brasileiro de Folclore. Publicou tam- quando depois da derrubada do mastro, as cai-
bém sobre festas do Divino (CARVALHO, xeiras vão serrar o mastro, e tem todas aquelas
2010a; 2010b), e quando faleceu trabalha- musiquinhas, né? serra, serra, serrador, siriri, e
va numa tese de doutoramento sobre as tem aquela brincadeira, que a gente vê na Ca-
festas. Mas era sobretudo, como escreveu sa das Minas. Então, as músicas do cacuriá (…)
Sérgio Ferretti (2012b. p. 20), “uma pessoa tem essa raiz na festa do Divino Espírito Santo
de ação” que, para além do papel central no carimbó de caixeiras, tanto que as músicas,
que teve na implementação de políticas de as letras das músicas, a melodia, tudo você vai
estímulo e apoio á cultura popular, as abriu ver vem do carimbó.
para as festas do Divino.
A par dessas políticas desenvolvidas a A partir do exemplo do Laborarte, foram
partir de cima, tiveram também lugar, a criados vários outros grupos de cacuriá em

Religião como cultura? 99


São Luís. Quanto ao Laborarte – para além Mendes (este último dos Açores) –, a progra-
do seu próprio grupo – continua assumindo mação incluiu a apresentação de um grupo
outras iniciativas relacionadas com o Divi- de caixeiras do Divino e a participação dos
no, como a organização de espetáculos e conferencistas e convidados na festa do Di-
a realização regular de oficinas de caixa. vino de Alcântara11.
Simultaneamente, Rosa Reis mantém uma Posteriormente, o Governo dos Açores
ligação forte com a música do Divino. Para não mostrou interesse no prolongamento
além de tocar caixa na festa do Divino da da colaboração iniciada em 2006 (LEAL,
Casa das Minas, incorporou também refe- 2017), mas isso não impediu que Ester Mar-
rências à música do Divino no seu repertó- ques viesse a organizar em 2007 um novo
rio musical. evento, desta vez centrado exclusivamente
É neste quadro, de crescente visibilidade nas festas do Divino. Promovido no âmbi-
das festas do Divino nos discursos e práti- to do SESC, o evento intitulado “O Divino,
cas sobre cultura popular do Maranhão, que Ontem, Hoje e Amanhã” incluiu um vasto
é possível entender a realização, em 2006 leque de atividades: conferências, debates,
e em 2007, de dois grandes eventos rela- exposições, atuações de grupos de caixeiras,
cionados com as festas do Divino, em cuja visitas a terreiros, assistência a cerimônias
organização Ester Marques – professora da relacionadas com a festa do Divino na Casa
UFMA com uma ligação forte às políticas das Minas e na Casa de Nagô, etc. Entre os
culturais do estado –, desempenhou um pa- conferencistas convidados estavam Sérgio
pel de relevo10. O primeiro evento foi o I En- Ferretti, Carlos de Lima, Michol Carvalho,
contro Luso-Maranhense sobre a Memória Ananias Martins, mas também pessoas liga-
Açoriana do Estado. Realizado no âmbito da das a terreiros, tais como: Pai Euclides (fa-
UFMA e contando com o apoio do governo lecido, pai de santo da Casa Fanti-Ashanti);
estadual, o Encontro resultou de contactos Pai José Itaparandi (que dirige o terreiro da
estabelecidos entre o Governo Regional dos Pedra Encantada); Celeste Santos (também
Açores e ativistas culturais maranhenses – já falecida, foi responsável pela festa do Di-
com destaque para Ester Marques –, e visava vino na Casa das Minas); Sebastião Cardoso
resgatar a memória da colonização açoriana (ligado à Casa de Nagô e à Casa de Ieman-
do estado. Tendo contado com a participa- já). Embora o governo do Açores se tivesse
ção de uma numerosa delegação dos Açores, alheado da iniciativa, esta contou de novo
o Encontro deu grande relevo às festas do com a presença do Padre Hélder Fonseca
Divino. Além de conferências sobre o tema Mendes assim como de ativistas culturais
– designadamente de Carlos de Lima, Fáti- ligados às festas do Espírito Santo entre a
ma Sopas Rocha e do Padre Hélder Fonseca diáspora açoriana na América do Norte.

10. A informação sobre estes dois eventos foi-me transmitida pela própria Ester Marques, em entrevista
realizada em 2011. A entrevista foi complementada com cópias dos dossiês relativos aos dois eventos, que
fazem parte do seu arquivo pessoal.
11. Fátima Sopas Rocha é uma professora da UFMA cuja pesquisa tem incidido sobre as festas do Divino
(ROCHA, 2010). Quanto ao Padre Hélder Fonseca Mendes, foi vigário geral da diocese dos Açores e é tam-
bém o autor de um livro – de cunho teológico e pastoral – sobre as festas do Espírito Santo, com particu-
lar ênfase nos Açores (MENDES, 2006).

100 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


A importância desses dois eventos deve riormente, esses processos não colocaram
ser sublinhada. Tendo sido promovidos as festas no mesmo patamar em que se en-
num período em que já estavam implanta- contra por exemplo o bumba meu boi, mas
das as políticas estaduais de apoio às fes- incluíram-nas no pacote cultural por inter-
tas do Divino, eles foram centrais para o médio do qual se torna possível discursar a
processo de culturalização das festas. Por identidade cultural do Maranhão. As festas
um lado, por intermédio de conferências e do Divino, que já eram cultura (sem aspas),
debates, deram grande visibilidade a tema- passaram assim a tornar-se “cultura” (com
tizações etnográficas sobre as festas dispo- aspas) (CUNHA, 2009). Passaram dessa for-
níveis desde os anos 1950, mas até então ma a integrar o “regime patrimonial” (HA-
circunscritas a artigos e livros que não ti- FSTEIN, 2007) vigente em São Luís.
nham necessariamente uma circulação am-
pliada. Por outro lado, o facto de ambos os 3. Os impactos da culturalização
eventos, particularmente o evento de 2007,
se basearem numa lógica de interface entre Como referi anteriormente, os anos 1990
eruditos e pessoas ligadas diretamente às e 2000 foram marcados por uma expansão
festas – pais de santo, caixeiras, etc. – ga- significativa no número de festas do Divino
rantiu uma maior eficácia a esse processo de terreiro: 19 novas festas foram criadas
de circulação ampliada das narrativas et- na década de 1990 e 12 na década de 2000.
nográficas sobre as festas. Ideias como a Isto é, do total de 79 festas existentes em
origem açoriana das festas, a importância 2009 em São Luís, cerca de 1/3 foi criada
das caixeiras e da música do Divino como nessas duas décadas (Gráfico 1).
fator da sua individualização em São Luís, Para muitas pessoas, essa expansão de-
ou a relação – também ela exclusiva de São corre diretamente da adoção das políticas
Luís – entre festas do Divino e terreiros de e práticas de objetificação das festas que
tambor de mina, puderam assim reforçar o passei em revista. Os impactos destas são,
seu peso na tematização das festas. O facto entretanto, objeto de avaliações contraditó-
de as duas iniciativas terem contado com a rias. Algumas pessoas, na sua grande maio-
participação de oradores de origem açoria- ria exteriores aos terreiros, adotam a esse
na ou portuguesa foi também importante respeito uma interpretação utilitarista, cen-
para a legitimação da importância cultural trada na importância do “dinheiro da cul-
das festas: não era mais só a partir de den- tura” na expansão recente das festas. Como
tro (e do seu presente), mas também a partir me disse uma delas, foi com “o dinheiro da
de fora (e das suas raízes), que as festas do cultura” que “começou esse bando de fes-
Divino de São Luís eram “prestigiadas”. tas surgindo, porque o povo achava que era
Em resumo: tanto por intermédio de muito dinheiro”.
políticas implementadas a nível estadual, A maioria dos pais e mães de santo, to-
como a partir de iniciativas promovidas por davia, não se reconhece nesta interpretação
ativistas culturais, desenvolveu-se a partir e sublinha o contributo marginal desse di-
dos anos 1990 um conjunto de processos nheiro para as despesas da festa. De acordo
de objetificação das festas do Divino que com Pai Wender (pai de santo da casa Ilê
ajudaram a tornar visível o seu valor cul- Ashé Obá Izô), “eu tenho certeza que não é
tural e identitário. Como foi referido ante- por esse dinheiro, que esse dinheiro mal dá

Religião como cultura? 101


pra fazer meia hora da festa (…). Quem fala tido importância na sua expansão recente.
isso, nunca fez uma festa do Divino. Que, Examinada mais de perto, a expressão “di-
se fizesse ia ver que não tem porquê fazer nheiro da cultura” fornece um bom pon-
por fazer”. Também para Pai Euclides muita to de partida para a análise desses impac-
gente “diz que é por causa do dinheiro que tos. De facto, nas explicações utilitaristas
a cultura dá. O dinheiro que a cultura dá, prevalecentes entre pessoas exteriores aos
não dá pra bancar uma festa, já ajuda, mas terreiros, o acento é colocado no facto do
não dá pra bancar uma festa desse porte”. “dinheiro [da cultura]” ser “dinheiro”. Para
Pai Edmilson – pai de santo da Tenda Um- os pais e mães de santo e outras pessoas
bandista Santo Onofre (Igaraú) – é ainda mais diretamente envolvidas com a reali-
mais categórico: “o dinheiro que vem (…) zação das festas, esse “dinheiro” também
nem dá pra gente fazer o almoço da festa! é “dinheiro”, mas é sobretudo “[dinheiro]
(…) Minha gente, é loucura, quem [é que] da cultura”. O que importa é o facto de ele
tá botando festa por causa da cultura? É traduzir, em conjunto com as restantes po-
loucura! Eu vou-lhe dizer: eu, quando eu líticas e práticas de objetificação adotadas
comecei, eu comecei sem a cultura!” por organismos estaduais ou por ativistas
O modo enfático como muitos pais de culturais, um reconhecimento do valor cul-
santo sublinham o carácter marginal do tural das festas.
“dinheiro da cultura” na expansão recen- Foi justamente esse reconhecimento que
te das festas do Divino de terreiro deve ser impactou nos terreiros. Ele acrescentou uma
levada em linha de conta. Até pode ser que nova dimensão a festas que já se realizavam
nalguns casos a expectativa desse dinheiro há muitos anos e eventualmente favoreceu
tenha facilitado a cooptação das festas. Por a adoção das festas por outros terreiros. Por
um lado, muitos dos terreiros que recebem seu intermédio, as festas viram acrescenta-
apoios financeiros mais robustos já reali- das aos valores – religiosos, sociais – que já
zavam as festas do Divino antes da imple- eram seus, uma mais-valia cultural.
mentação das políticas de apoio financeiro Essa culturalização das festas teve im-
às festas. E, por outro lado, a maioria dos pactos diferenciados. Nalguns terreiros que
terreiros, entre os quais aqueles que come- estudei, ela assumia formas mais difusas,
çaram a realizar as festas nos anos 1990 traduzidas na ideia genérica que as festas
e 2000, recebe um apoio financeiro muito do Divino seriam – a par de outras mani-
limitado, situado, como vimos, na faixa dos festações culturais, com destaque para o
R$500,00. Esse dinheiro pode, eventual- bumba meu boi – uma das expressões das
mente, contribuir para uma maior largueza culturas populares negras de São Luís ou,
de gastos, mas é uma contribuição margi- de uma forma mais geral, da identidade
nal para as despesas – geralmente situadas cultural do Maranhão. A expressão mais
entre os R$10.000 e os R$15.000 – envol- usada a esse respeito era “tradição”: as
vidas nas festas do Divino. festas seriam uma “tradição”, reconhecida
Isto não quer dizer, todavia, que a atri- como tal pelos organismos estaduais, por
buição de subsídios por organismos cultu- ativistas culturais e pela sociedade em ge-
rais estaduais, combinada com outras po- ral. A consciência de que os terreiros eram
líticas de objetificação cultural, não tenha os principais depositários dessa “tradição”
impactado nas festas de terreiro e não tenha era também generalizada. Quanto à expres-

102 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


são “cultura” era usada num sentido mais tornaram-se importantes no cenário cultural
preciso e aplicava-se sobretudo ao reco- maranhense e importante mecanismo de re-
nhecimento do valor cultural das festas pe- sistência, reprodução social e valorização das
los organismos estaduais. mulheres, pois são as chamadas Cacheiras do
Esta tematização mais difusa das festas Divino que conduzem a festa mostrando tra-
como “tradição” é partilhada por muitos ços de liderança e da importância das mu-
promesseiros do Divino – designadamente lheres nas casas de culto afro-tradicional [os
por aqueles que bancam os impérios – e itálicos são meus].
por muitas pessoas que frequentam as fes-
tas. Para elas, também as festas situam-se O que há a relevar nesse texto é, por
na esfera das práticas e expressões culturais um lado, o recurso à expressão “cultura”
ligadas a ideias genéricas sobre “raízes”, (ou “cultural”) como forma de definição das
“tradição” e “identidade” no Maranhão. festas e, por outro lado, o modo como essa
A par dessas expressões mais difusas, culturalização das festas é respaldada por
o impacto do discurso culturalista sobre dois argumentos principais: a antiguidade
as festas nos terreiros apresenta também das festas, que no Maranhão remontariam
expressões mais precisas, sobretudo na- ao século XVII e à colonização açoriana do
queles que são dirigidos por pais e mães estado, e a importância da música do Di-
de santo letrados. vino – objeto de uma interpretação que a
Uma delas passa pela cooptação do dis- coloca no universo “afro-tradicional”.
curso culturalista nos convites – geralmen- Estes argumentos são usados frequente-
te folders em formato A5 – que visam asse- mente por outros pais e mães de santo. O
gurar a divulgação das festas e a captação argumento da antiguidade das festas, sob a
de donativos para a sua realização. Se em forma de uma narrativa de origem mais ou
muitos casos, os convites contêm apenas menos partilhada, é particularmente impor-
a programação das festas, nalguns casos tante no modo como as festas de terreiro de
passaram a integrar pequenos textos intro- hoje são vistas, isto é como a continuação
dutórios, que põem justamente em relevo de uma tradição enraizada na longa dura-
a dimensão “cultural” das festas. É o que ção prestigiada da história e da cultura do
faz a casa Ilê Ashé Obá Izô, que, pelo me- Maranhão e das suas raízes, simultanea-
nos desde 2012, divulga a festa do Divino mente europeias e africanas.
através de um folder em que ocupa lugar de Por exemplo, para Pai Clemente Filho,
destaque o seguinte texto: pai de santo do terreiro Jardim da Encanta-
ria, a festa do Divino
A homenagem ao Divino Espírito Santo é
grande referência na cultura popular, tendo É uma promessa que foi da rainha Isabel, de
destaque no Maranhão, Nela, se preserva a Portugal. Devido a uma enfermidade que o
tradição de cultuar as entidades católicas e marido dela teve (…) ela se pegou com Espí-
as homenagens aos grandes impérios euro- rito Santo. Que se ele ficasse bom, ela fazia a
peus. No Maranhão, as homenagens ao Di- [festa]. Então ela montou uma festa do Divi-
vino Espírito Santo ocorrem desde o sécu- no como se fosse a corte que existia (…) lá na
lo XVII, período que culminou na inserção época. E ai ela veio pra cá. (…) Uns dizem que
dos açorianos no Maranhão. Tais celebrações os negros fizeram um protesto em Alcântara

Religião como cultura? 103


(…). Então eles vestiram negros de [reis]. For- Portanto, tal como nos modos de tema-
maram uma corte, e fizeram a festa. tização erudita das festas que se iniciam
nos anos 1950, a culturalização das festas
Já a versão do mito de origem das festas pelos terreiros faz-se também por intermé-
contada por Pai Euclides é mais longa: dio do seu enraizamento na longa duração
de uma tradição que testemunha da sua im-
O que eu sei do passado, por pessoas anti- portância histórica e cultural.
gas (…) é que a festa do Espírito Santo (…), Quanto à música do Divino, ela surge
dizem que começou em Portugal, através também em muitos terreiros como um dos
da D. Isabel de Aragão. Por algum moti- registos onde é argumentada a importân-
vo, ela fez a promessa com o Divino Espí- cia “cultural” das festas do Divino. É o que
rito Santo e achou que deveria no dia de se passa com a Casa de Iemanjá, que tem
Pentecostes dar comida aos pobres, aque- organizado regularmente oficinas de caixa,
las pessoas que trabalhavam em agricultu- associando-se assim diretamente às políti-
ra, plantio, de coisas de alimento, de feijão cas de objetificação da música do Divino,
e milho (…). Então ela achou por bem fa- estimuladas pela “cultura” e por ativistas
zer essa graça pro povo, pra dar essas es- culturais. Mas é na Casa Fanti-Ashanti que
molas e tudo. (…) Então ela começou a fa- os processos de emblematização da música
zer essa festa, (…) e por sinal dizem que foi do Divino são mais importantes. Este ter-
ela que mandou construir a Igreja do Divi- reiro, diferentemente do que se passa com
no Espírito Santo na cidade de Alenquer, a esmagadora maioria dos terreiros de tam-
isto em Portugal. (…) Então, de lá, a fes- bor de mina de São Luís, que recorrem a
ta veio com os portugueses. Dizem que al- grupos de caixeiras que circulam por di-
guns portugueses que saíram da cidade, de ferentes festas, tem o seu próprio grupo
Lisboa, (…) muitos deles que eram oficiais, de caixeiras, que era dirigido até 2014 por
eu não lembro assim do nome, mas eram Dona Kabeca (que, depois do falecimento
pessoas de posses e tudo, porque eram lá de Pai Euclides, se tornou na mãe de santo
do palácio de Belém, do castelo de Belém, do terreiro). O grupo participa regularmente
da Torre de Belém (…). Esse pessoal, eles ti- nalgumas apresentações públicas de caixei-
nham vindo com um povo que era açoria- ras e gravou dois CDs, numa coprodução
no e os açorianos então vieram juntos tra- com a associação cultural Cachuera, basea-
zendo esse folguedo para o Brasil. E aqui da em São Paulo. O segundo desses CDs foi
no Brasil eles se espalharam. Cada um fi- lançado no Centro de Cultura Popular Do-
cou com um lugar e povoou vários estados mingos Vieira Filho em 2011. No folder de
brasileiros. Esses que ficaram em Alcântara divulgação deste CD a casa Fanti Ashanti
encontraram já lá uma quantidade de ne- era apresentada como “guardiã de muitas
gros e os negros que lá estavam começaram manifestações da cultura maranhense [os
a se interessar por aquele tipo de folguedo, itálicos são meus]” e a tematização cultura-
de diversão, e terminaram tomando de con- lista das festas ocupava um lugar de relevo:
ta. Porque depois os portugueses morreram,
outros retornaram (…) e ficou aquela turma A Festa do Divino Espírito Santo é uma an-
dando continuidade na festa do Divino Es- tiga tradição luso-brasileira do catolicismo
pírito Santo. popular. No Maranhão (…) é uma das mais

104 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


importantes manifestações culturais e reli- o antropólogo Sérgio Ferretti classificou
giosas do estado, mobilizando milhares de com recurso à expressão “suicídio cultural”
devotos. Este festejo chegou ao Maranhão no (Ferretti 2012b). O número de dançantes é
início do século XVIII na cidade de Alcântara residual, não se realizam iniciações e mui-
e de lá se espalhou por todo o estado [os itá- tos dos rituais do tambor de mina já não
licos são meus]. têm lugar. Em consequência, a atividade
das duas casas está hoje muito centrada na
O trabalho conjunto da Casa Fanti realização de rituais católicos, com desta-
Ashanti com a associação Cachuera es- que para a festa do Divino, que assumiram
tende-se a outras atividades centradas nas entretanto um valor cultural. Como escreve
festas do Divino e dele nasceu, nomeada- Ferretti,
mente, a promoção regular da festa em São
Paulo, com a colaboração destacada de fa- constata-se uma tendência da realização de
miliares de Pai Euclides aí residentes. festas da cultura popular nestas duas Casas
É também corrente entre muitos pais e tradicionais que talvez se transformem nu-
mães de santo, o reconhecimento da impor- ma espécie de centro ou de polo de cultura
tância da atividade de Michol Carvalho na popular. Aproveita-se o prestígio das Casas
divulgação e valorização das festas do Di- antigas e o local torna-se um polo de atra-
vino. Para Pai Clemente Filho, por exemplo, ção cultural, pois costuma receber visitas de
pessoas de fora que querem conhecer o lu-
A Michol foi a grande (…) idealizadora, ela gar. Autoridades locais acabam dando algum
foi a que lutou e trouxe esse incentivo né? apoio aos organizadores destas manifesta-
(…) Ela fazia a abertura, com tribuna arma- ções (2012b, p. 8).
da, no centro de cultura, nas praças, ela fazia
cortejos, ela fazia salva lá na casa do Divino Presente em plano de relevo, no modo
lá naquele prédio, tinha várias [iniciativas]. É como muitos pais e mães de santo tema-
o mês todinho de Maio, né? Tudo isso ela fa- tizam as festas do Divino, a culturalização
zia e tinha esse cachê. das festas é também muito forte entre as
caixeiras. Envolvidas nas festas de terreiro,
De igual modo são muitos os pais e elas estão também diretamente envolvidas
mães de santo que se recordam dos eventos nas iniciativas – oficinas de caixa, partici-
organizados por Ester Marques e do modo pação em espetáculos em São Luís e fora
como, por seu intermédio, tomaram conhe- de São Luís –, por intermédio das quais é
cimento da narrativa açorianista sobre as sublinhada a dimensão cultural das fes-
origens das festas. tas e, em particular, a importância da sua
Em certos casos, o discurso culturalis- música. Para muitas delas, principalmente
ta que rodeia as festas assume expressões para as caixeiras régias Dona Luzia e Dona
ainda mais evidentes, como na Casa das Jaci, são elas – e não tanto os terreiros – as
Minas e na Casa de Nagô. Estas duas ca- verdadeiras guardiãs das festas; e a cultu-
sas de tambor de mina são as casas mais ralização recente das festas deve-se sobre-
emblemáticas e mais antigas de São Luís. tudo à música que comanda as festas, de
Todavia, ambas se encontram num estado que elas são as especialistas e sem a qual as
de declínio que parece ser irreversível e que festas não se poderiam realizar.

Religião como cultura? 105


Considerações finais: as festas como cultura? à festa de San Juan em Curiepe (Venezuela)
ou do estudo de Paulo Raposo (2011) sobre
Em resumo, as políticas e práticas de festas de mascarados no norte de Portugal.
objetificação das festas do Divino tiveram No primeiro caso, Guss mostra como a festa
como principal efeito acrescentar uma di- de San Juan deixou de ser “uma celebração
mensão cultural, sancionada pelas políticas íntima, organizada por indivíduos devo-
estaduais e pelo interesse de ativistas e asso- tos que pagavam as suas promessas a um
ciações, às festas que têm lugar nos terreiros. santo milagreiro” para se transformar, num
Os termos exatos dessa culturalização primeiro momento, em um “evento públi-
merecem alguns comentários adicionais. De co organizado pela comunidade e aberto a
facto, uma parte da literatura antropológica todos” (GUSS, 2000, p. 37) e, num segundo
sobre os impactos dos processos de objetifi- momento, se transformar em um espetácu-
cação da cultura tem sublinhado o seu ca- lo turístico que acabou por afastar a pró-
rácter transformador. Depois de objetifica- pria população local, que começou a passar
das, as expressões e práticas culturais seriam o período da festa “abrigada em suas ca-
ressignificadas. A sua inscrição no regime sas” (GUSS, 2000). Quanto a Paulo Raposo,
patrimonial mudaria a sua natureza. É esse, mostrou como os processos de objetificação
desde logo, um dos argumentos principais e turistificação das festas de mascarados no
de Richard Handler no seu estudo sobre os norte de Portugal estão associadas a pro-
processos de objetificação nacionalista da cessos através dos quais “a ‘cultura local’
cultura popular do Québec (1988), quando é simultaneamente inventada, modificada,
mostra que estes retroagiram sobre o modo e revitalizada para os turistas e para os mí-
como as comunidades passaram a represen- dia, mas também para as próprias comuni-
tar e a praticar expressões objetificadas da dades” (RAPOSO, 2011, p. 135).
sua cultura. Como escreve Handler, “parado- Este tipo de argumentação recebeu um
xalmente, a tentativa de preservar tradições novo influxo com o crescimento recente da
através da sua objetificação produz mudan- literatura antropológica sobre patrimônio
ça” (1988, p. 77). Um argumento idêntico cultural imaterial. Para Valdimar Hafstein,
foi desenvolvido por Barbara Kirshenblatt- por exemplo, as políticas de patrimônio
Gimblett (1995; 1998), através da sua defi- cultural imaterial desenvolvidas pela Unes-
nição do patrimônio como “segunda vida”. co (ou à sombra da Unesco)
Segundo a autora, o patrimônio poderia ser
visto como um modo de produção cultural são sobre a mudança – [essas políticas] inter-
que dá às expressões culturais patrimona- vêm nos processos sociais para os modificar
lizadas uma segunda vida como “exibição (…). O património cultural imaterial – como
de si mesmas” (KIRSHENBLATT-GIMBLETT, conceito e como instrumento de mudança –
1995, p. 370), distinta da “primeira vida” que transforma o modo como as comunidades se
elas tinham previamente à sua objetificação. relacionam com as suas práticas, incorpo-
Este argumento transformador tem tam- rando-as no regime patrimonial. E em últi-
bém inspirado alguns estudos sobre festas ma instância, o património cultual imaterial
e rituais, como é o caso, por exemplo, da também transforma as próprias comunidades
pesquisa que David Guss (2000) consagrou (HAFSTEIN, 2007, p. 81).

106 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


No caso de São Luís, os argumentos tem algum [motivo mais forte]. Fé, devo-
transformadores foram sobretudo retoma- ção, algum pedido do Divino ali à mistura.
dos a propósito do bumba meu boi. O dos- [Ou] obrigação da casa (…), alguma entidade
siê de candidatura deste ritual a patrimônio que pediu (…) alguma coisa relacionada a is-
cultural do Brasil, elaborada por Izaurina so (…). Então, creio eu que ninguém ia fazer
Nunes, sublinhou algumas dessas transfor- uma festa (…) dentro dessas questões que eles
mações, decorrentes da espectacularização levantaram aí fora. Creio eu que seja por de-
da brincadeira resultante das políticas es- voção e amor do Espírito Santo ou da (…) en-
taduais e municipais orientadas para a sua tidade que pediu essa festa.
patrimonialização e turistificação. Entre es-
sas transformações contam-se: a crescente De facto, o motor principal para a rea-
proliferação de bumbas meu boi de sotaque lização das festas do Divino continua a ter
de orquestra, supostamente mais apelativo, que ver com motivos onde se cruzam a de-
em detrimento de brincadeiras de outros voção católica e a obrigação afro-religiosa.
sotaques; o recuo de aspetos tradicionais É porque as pessoas – pais e mães de san-
do bumba meu boi como as comédias ou to, filhos e filhas de santo, promesseiros ou
o auto de Mãe Catarina e de Pai Francisco; simples devotos – querem garantir a ajuda
e a tendência para a esteticização genera- do Divino Espírito Santo ou pretendem sa-
lizada da maioria dos bois (NUNES, 2011). tisfazer o pedido, ou a devoção, de algum
Isto é, neste caso, tal como no caso da fes- encantado que as festas têm lugar. Nesse
ta de San Juan estudada por David Guss, sentido, as festas são, antes de tudo, uma
a objetificação não só fez entrar o bumba peça importante do sistema de trocas sim-
meu boi pela porta grande do regime patri- bólicas que liga os homens e as mulheres
monial e da turistificação, como essa entra- aos deuses e aos encantados.
da teve efeitos na própria estruturação do Para além desta sua dimensão religio-
script da brincadeira. sa reiteradamente explorada na literatura
Esse tipo de argumentação não parece, sobre as festas de terreiro (FERRETI, 1995;
todavia, aplicável aos impactos dos pro- LEAL, 2017), as festas do Divino têm tam-
cessos de objetificação das festas do Di- bém uma importante dimensão social. Elas
vino realizadas em terreiros de tambor de são a “festa maior dos terreiros”, isto é, a
mina. Retomando a terminologia proposta festa que mais abre os terreiros de tambor
por Barbara Kirshenblatt-Gimblett, a cul- de mina para fora do seu círculo de fre-
turalização das festas do Divino abriu cer- quentadores habituais, conectando-os com
tamente uma segunda vida – culturalizada redes sociais mais alargadas e projetando
– às festas do Divino de terreiro, mas esta -os na esfera pública (LEAL, 2014; 2017).
segunda vida não se substituiu à sua pri- Ao seu valor religioso soma-se nessa medi-
meira vida, isto é, não colocou em causa da um valor social, estreitamente associado
as principais dimensões que continuam a ao modo como elas são instrumentais na
caracterizar as festas. visibilização do tambor de mina.
Essas dimensões são, antes de tudo, re- Aquilo que a culturalização faz é acres-
ligiosas. Pai Wender, por exemplo, ao mes- centar a essas duas dimensões das festas
mo tempo que reconhece o valor cultural uma dimensão suplementar, de natureza
das festas, dizia-me que “cultural”. Essa dimensão deve ser vista

Religião como cultura? 107


como uma adição e não como uma subs- religiões afro-brasileiras na esfera pública.
tituição (ou como uma secundarização) de No caso do candomblé da Bahia, essa cul-
algo que já estava lá antes e que continua turalização, como sublinhou Roger Sansi
a estar depois. (2007), tem operado em conjunto com pro-
Os termos dessa adição devem ser tam- cessos de reafricanização e dessincretiza-
bém sublinhados. Ela não se traduziu, como ção dos terreiros. Do sincretismo afro-ca-
acontece em muitos dos casos estudados tólico passa-se àquilo que Sansi designou
pela literatura antropológica, em qualquer como o “sincretismo da cultura” (SANSI,
alteração ao script ritual das festas. A fre- 2007, p. 3).
quência turística das festas é também irrele- Em São Luís, a inscrição do tambor de
vante. Por outro lado, a adição dessa mais- mina no espaço dos discursos e práticas
valia cultural inscreve-se numa lógica de sobre cultura não deixa de ter alguma re-
abertura que já estava previamente inscrita levância. Nos anos 1960, o governador es-
nas festas do Divino de terreiro. Essa aber- tadual José Sarney não só mantinha uma
tura era, e continua a ser, religiosa, operan- relação pessoal forte com Pai Jorge Itaci
do em direção ao catolicismo. Mas era, e (o então pai de santo da Casa de Iemanjá),
continua a ser, social, uma vez que as festas como estendeu as suas políticas de reco-
conectam os terreiros com círculos sociais nhecimento e valorização da cultura popu-
mais amplos e projetam-nos na esfera pú- lar do Maranhão ao tambor de mina. Foi
blica. Com a culturalização das festas, essa então que se iniciou a participação de dan-
abertura passou também a fazer-se em di- çantes de tambor de mina em espetáculos
reção aos discursos e práticas sobre cultura públicos (que se mantém até hoje). Mais
e patrimônio no Maranhão. Nesse sentido, tarde, com a inauguração, em 1982, do Mu-
os impactos da culturalização das festas do seu Domingos Vieira Filho, não foram só o
Divino podem ser definidos não tanto como bumba meu boi e as festas do Divino que
transformativos, mas como supletivos. Não entraram no espaço museológico, mas tam-
transformam conteúdos pré-existentes em bém o tambor de mina. E em 2002, o tom-
novos conteúdos, mas suplementam os ve- bamento da Casa das Minas pelo IPHAN
lhos conteúdos, que continuam a ser de- reforçou a inscrição do tambor de mina
terminantes, como um novo conteúdo que no regime patrimonial. Mas, comparati-
acrescenta valor “cultural” às festas. vamente à Bahia, assim como por relação
Embora tenham esse carácter supletivo, a outras expressões da cultura popular do
os impactos da objetificação cultural das Maranhão, o perfil patrimonial do tambor
festas, ao encostarem os terreiros às práti- de mina é menos vincado. É nesse quadro
cas e discursos sobre cultura e patrimônio, que pode ser entendida a cooptação pelos
devem ser vistos no quadro da tendência terreiros dos discursos culturalistas sobre
mais geral para a inscrição das religiões as festas do Divino: por seu intermédio, é
afro-brasileiras no regime patrimonial. a inscrição do tambor de mina no regime
Efetivamente, como sublinharam os antro- patrimonial que sai reforçada.
pólogos Jocélio Teles dos Santos (2005) e O facto desse reforço do efeito patrimo-
Roger Sansi (2007), a linguagem do patri- nial assentar sobre as festas e não – como
mônio tornou-se importante para negociar na Bahia – sobre a reclamação da fidelida-
as condições de inserção e visibilidade das de à África, deve também ser sublinhado.

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De facto, em contraste com a Bahia, em São CARVALHO, M. M. P. Matracas que desafiam o
Luís é menor a importância dos processos tempo: é o bumba meu boi do Maranhão. Um es-
de reafricanização dos terreiros. A maioria tudo de tradição/ modernidade na cultura popular.
dos terreiros – mesmo aqueles, como a Casa 1988. Dissertação (Mestrado) – Universidade Fede-
ral do Rio de Janeiro/UFRJ, Rio de Janeiro, 1988.
das Minas e a Casa Fanti-Ashanti, em que o
discurso africanista é mais enfático –, man- ______. O Divino maranhense no espaço sagrado
tém também um vínculo importante com das casas de culto afro I. Boletim da Comissão
o catolicismo, expresso designadamente na Maranhense de Folclore, n. 46, p. 9-12, 2010a.
continuada cooptação das festas do Divino. ______. O Divino maranhense no espaço sagrado
Faz portanto algum sentido que seja sobre das casas de culto afro II, Boletim da Comissão
as festas do Divino que recaia parte impor- Maranhense de Folclore, n 47, p. 9-12, 2010b.
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Religião como cultura? 111


Resumo Abstract
Este artigo visa proceder ao exame das po- This paper examines the politics and prac-
líticas e práticas de objetificação das festas tices of cultural objectification related to
do Divino de São Luís (Maranhão) e dos Holy Ghost feasts in São Luís (Maranhão)
seus impactos nos terreiros de tambor de and their impact in tambor de mina cult
mina, onde se realiza a maioria das festas. houses – where most feasts take place. It
Defende que um dos efeitos dessas políticas argues that one of the impacts of the objec-
e práticas foi a culturalização das festas, tification of the feasts has been their the-
isto é, a sua tematização em torno de ideias matization around topics such as “culture”,
sobre cultura, raízes e tradição. Examina “roots” and “tradition”. It also argues that
também os termos dessa culturalização. the inclusion of the feasts in the “heritage
Esta deve ser vista não tanto como um pro- regime” should not be seen – as in other
cesso de ressignificação radical das festas, cases – as a radical shift in their contents
mas como um processo de adição de um and meanings, but rather as a process of
novo significado – cultural – aos significa- addition of a new “cultural” meaning to the
dos – religiosos e sociais – que continuam religious and social meanings that continue
a caracterizar as festas. to define the feasts.

Palavras-chave Key words


Religião; patrimônio, festa, tambor de Religion heritage, feast, tambor de mina,
mina, religiões afro-brasileiras. Afro-Brazilian religions.

Recebido em: 15.01.18


Aprovado em: 13.06.18

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