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RESUMO: Este trabalho tem por objetivo discutir o ser da filosofia relativo ao ser linguagem. A filosofia
especula uma ordem para o mundo, utilizando-se da língua. Discute-se a relação entre pensamento e
linguagem. Parte-se do princípio de que é impossível para o ser humano pensar sem o uso da língua. Em forma
de comparação, esboçam-se as formas de pensar no Português e no Tupi antigo. Apresenta-se a noção
saussuriana de signo, onde um significante materialmente posto relaciona-se a um significado idealmente
constituído. A partir da concepção dialética materialista, observa-se certa contradição na ideia de signo, em
que um objeto material é representado como ideia. Com a hipótese de que o sujeito está dividido pela utilização
do signo, faz-se uma incursão na psicanálise. Expõe-se a condição do Eu, aqui e agora para ilustrar a
constituição subjetiva da linguagem. Para concluir, apresenta-se a condição essencial do verbo ser no
Português Brasileiro (BAGNO, 2011).
1. Introdução
Este trabalho tem por objetivo discutir a questão do ser na filosofia, em relação ao
ser da linguagem. A filosofia especula a realidade, buscando uma ordem para o mundo,
enquanto a língua é a ferramenta que o filósofo utiliza para fazer a especulação e a
generalização sobre os dados do mundo. Nesse sentido, pensar os objetos do mundo como
possibilidade de conhecimento somente se torna possível pelo uso da língua, a partir dos
nomes para localizar os objetos no mundo e dos conceitos para categorizá-los como Ideia.
Discute-se, então, a relação entre pensamento e linguagem. Parte-se do princípio
de que é impossível para o ser humano pensar sem o uso de uma determinada linguagem.
Linguagem e pensamento estão necessariamente relacionados (VIGOTSKI, 1999/2003).
Utiliza-se a filosofia da linguagem para balizar essa discussão. Em forma de comparação,
esboçam-se as formas de pensar no Português Brasileiro e no Tupi antigo, a partir das flexões
verbais no Português e nominais no Tupi (BAGNO, 2011).
Apresenta-se a língua a partir da noção saussuriana de signo, onde um significante
materialmente posto relaciona-se a um significado idealmente constituído. Pela concepção
dialética em filosofia (HEGEL; MARX; LÊNIN; TSE-TUNG etc.), observa-se uma
contradição geral na ideia de signo linguístico, em que um determinado objeto material é
representado por um signo como ideia. A partir dessa contradição geral, desenvolvem-se duas
contradições secundárias: a primeira diz respeito ao signo estar dividido entre um significado
e um significante; significante é a base material do signo e o significado é sua base ideal. A
outra contradição particular está ligada à condição de que signos geram signos e se
relacionam com outros signos. Ou seja, a partir dos dados matérias produzem-se as ideias e
essas ideias geram outras ideias.
Com a hipótese de que o sujeito está dividido a partir da utilização do signo, faz-
se uma incursão na psicanálise (LACAN, 1970 e outros). Aqui, percebe-se que a condição
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Este artigo é parte de um capítulo da tese em elaboração para o Curso de Doutorado em Ciências da Linguagem
da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL.
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O autor é Doutorando Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. O
pesquisador é bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de Santa Catarina – FAPESC. Email:
mathiasmtf@gmail.com.
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2. Relação pensamento/linguagem
[...] considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos
nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso
que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam
entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões dos meus sonhos.
Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era
falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando
esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos não seria capazes de a abalar, julguei que
podia aceitá-la, sem escrúpulo com o primeiro princípio da filosofia que procurava.
(DESCARTES, 1983. p.43, grifo nosso).
Descartes tem como ponto inicial de reflexão sua própria natureza: sua existência
e sua relação com o mundo exterior, a partir da faculdade de pensar. Parte de existência e
chega à razão. Sartre parte da consciência e chega à existência. Nesse caso, Sartre analisa a
relação, Descartes o mundo do eu como sujeito e objeto do pensamento. Sartre afirma que “a
essência do ser é não ser”. Descartes estabelece que o pensar faz aparecer o ser. Seu cogito
reflexivo estabelece: “Penso, logo existo.” Descarte é conhecido como racionalista.
Hume (s/d) se opõe ao racionalismo cartesiano, pensa diferente de Descartes. Por
isso, é considerado empirista.
O mundo de Hume é o mundo das relações brutas entre as coisas. Segundo esse
filósofo, somente podemos aprender o que entra diretamente em nossa experiência sensível.
Mas Hume não discute como as coisas do mundo entram efetivamente em nossos sentidos.
O filósofo Immanuel Kant é famoso pela elaboração do denominado idealismo
transcendental. Para esse filósofo, todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles
que vêm antes da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam, de
outra forma, impossíveis de determinar. As filosofias puras, racionalista e empirista, são
criticadas por Kant, que busca constituir uma unificação entre a experiência e a razão,
produzindo o chamado Entendimento (Vernunft). A filosofia da natureza e da natureza
humana de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes do relativismo
conceptual que dominou a vida intelectual do século XX. (GRANGER, 1955). Kant busca
estabelecer relações entre as ideias de Descartes e de Hume. Descartes estabelecia o mundo
pelo pensar, a partir das ideias sobre as coisas do mundo. Hume estabelecia que o pensar
somente poderia se tornar possível por meio das sensações diretas, a partir das relações com
os objetos do mundo, pela experiência humana. Para Descartes o mundo se aflora do interior
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para o exterior, do pensamento subjetivo ao mundo objetivo. Para Hume, ocorre o inverso. A
experiência objetiva internaliza-se no sujeito e o sujeito captura as estruturas do mundo
internamente, a partir das relações entre os objetos do mundo externo. Duas ideias
radicalmente opostas em relação ao entendimento do mundo, que Kant busca unificar pela
intuição do “sensível e do supra-sensível”.
Para Kant (1995, p. 87) o supra-sensível é “[...] algo que é simples ideia e não
pode ser objeto da experiência, mas que, no entanto, possui realidade objetiva, válida, porém,
só do ponto de vista prático.” O supra-sensível é uma ideia constituída puramente por
conceitos, “é o soberano bem metafísico”, que é sintetizado na ideia de Deus. Assim, para
Kant, a metafísica é a ciência que permite “avançar do conhecimento do sensível para o do
supra-sensível.” (KANT, 1995, p. 95). Kant entende como sensível o que pode ser objeto da
experiência e que toda experiência sensível é apenas fenômeno e não objeto.
A fenomenologia kantiana é extremante teórica. Ao tentar unificar o mundo pelo
entendimento, Kant defende a existência de dois mundos: o numeno e o fenomeno. Um
teoricamente estabelecido no plano do real, a partir da captação do sensível, e o outro
teoricamente estabelecido no plano das ideias, a partir da elaboração do conceito, ou do
supra-sensível.
O racionalismo sustenta que o conhecimento tem procedência no sujeito,
enquanto o empirista afirma que o conhecimento somente pode se tornar possível a partir do
objeto. Segundo Kant, como o objeto somente pode fornecer a novidade e o sujeito somente a
universalidade, a ciência torna-se impossível. A filosofia kantiana, em contrapartida, busca
resolver os problemas postulados pelos racionalistas e empiristas, pela saída metafísica, a
partir dos entes transcendentais. Por isso, para Kant, a verdade é incognoscível.
Hegel é um filosofo idealista, que busca as essências das coisas a partir das ideias
e percebe a inessência exatamente na percepção das coisas imediatas. As coisas do mundo
mudam o tempo todo, permanecem apenas nos conceitos que são constituídos pela abstração
da linguagem. Talvez a filosofia e a ciência pudessem ser mais “inteligíveis” se discutissem
com mais seriedade os problemas linguísticos.
Sartre (1997) busca estabelecer o ser da consciência, como coisa concreta. Mas
falar do ser da consciência como coisa concreta é um problema insolúvel do ponto de vista
filosófico mesmo. É um conceito abstrato definido por outros conceitos abstratos, sem
nenhuma relação com o mundo concreto. Aliás, a consciência somente pode ser definida
como uma relação. Uma relação entre um sujeito consciente (ou não) e um objeto da
consciência. O problema de Sartre, ao tentar abordar o ser da consciência, é perceber que
“tudo que há de intenção na minha consciência atual acha-se voltado para fora, para o
mundo.” (SARTRE, 1997, 24). Ora, não pode existir no mundo um ser de uma relação: as
relações são estabelecidas pelo uso da língua, como elemento de ligação do homem com as
coisas do mundo. Somente a língua pode assumir a materialidade de um ser da relação, o ser
da abstração, um ser da ideia.
É a partir dessa percepção que Sartre afirma que o “Para-si é abstrador”. O ser,
para Sartre é constituído do abstrato ao concreto. A abstração define o ser (que não é) na
relação entre os seres.
Sartre não chega neste ponto, mas entende-se que o ser abstrato é o ser da língua,
que é sempre exterioridade essencial do ser. Paradoxalmente, aqui essencial significa não
interioridade, não essência interna, mas externa. Conforme Sartre, “a relação originária entre
isto e aquilo é uma relação externa. Aquilo aparece como sendo isto. E a negação externa
desvela ao Para-si como um transcendente, está fora, é Em-si.” (SARTRE, 1997, p. 253). A
abstração é uma operação linguística, que se situa “fora” do ser em-si e da coisa sensível.
Operação realizada pela língua e na língua. Por isso a língua apresenta-se como exterioridade
transcendente, está fora do mundo real. “O abstrato é uma estrutura do mundo necessária ao
surgimento do concreto, e o concreto é concreto na medida que ruma ao seu abstrato e se faz
anunciar, pelo abstrato, aquilo que é: o Para-si é revelador-abstrativo em seu ser.” (SARTRE,
1997, p. 258).
Por não fazer uma reflexão sobre a linguagem na filosofia, Sartre chega a esta
conclusão: “o ser do objeto é puro não-ser. Define-se como falta. É aquilo que se esconde e,
por princípio, jamais será dado, aquilo que dá-se por perfis fugazes e sucessivos. [...] a
consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é.” (SARTRE, 1997, 33-34).
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Ybyrá – árvore
Ybyrá-rama – a futura árvore (p. ex., uma muda ou um arbusto);
Ybyra-puera – a árvore que não existe mais (p. ex., um tronco seco caído);
Ybyra-rambuera – o que poderia ter sido uma árvore, mas não foi (p. ex., um
arbusto que alguém cortou antes que se tornasse uma árvore);
Ybyra-puerama – o que terá sido uma árvore (uso pouco freqüente).
Nessa língua, então, filosofar sobre o ser da árvore seria nomear os diversos
estados substanciais do ser árvore que permanece inalterado numa ideia geral de árvore em-
si: ser permanente. Nessa língua, o ser permanece como ideia sem nome geral. Já que cada
particularidade é nomeada: ybyrá – árvore que está aqui na minha frente, como ser concreto.
Filosofar aqui é perceber o estático, a permanência do ser, abstratamente, no ser concreto.
Muda-se de situação, muda-se o nome da coisa, desestabiliza o ser como ideia. Muda-se o
nome, mas permanece a ideia da coisa concreta, a árvore num deslizar no tempo pancrônico1,
a partir da flexão pelo substantivo. O ser concreto está no presente, passado e futuro, desliza
no tempo com um nome próprio em cada tempo pensado. O ser como ideia é unificado em
vários seres-árvores concretos diferentes.
Já na nossa língua, no entanto, filosofar é perceber a mudança do ser. O ser árvore
aparece como pronto e acabado. Ser árvore é estático, num nome único, universal, a árvore. O
nome árvore permanece no tempo e no espaço, é mais abstrato: a árvore é, foi e será..., pela
flexão verbal. A dificuldade é perceber o ser concreto que é dado imediatamente pelo
abstrato, a palavra, a essência do ser. Talvez seja por esse motivo que Sartre afirma que o
abstrato restitui o concreto. As qualificações vão estabelecer a constituição concreta do ser
arvore. O ser é constituído sincronicamente, num determinado recorte do tempo, com um
nome geral “árvore”, separado de sua história. É preciso “filosofar” para chegar a ideia de ser
concreto que permanece no abstrato. As sementes e os arbustos são árvores? A árvore que
está na minha frente, permanecerá árvore depois de seca? E aquela árvore que ainda não é,
será? E aquela que foi, é? Filosoficamente, temos que fazer o desdobramento do ser em-si em
ser para-si (Hegel, 2005), para poder constituir um entendimento sobre o ser.
Em Tupi o ser está no nome estendido pelo tempo, portanto o ser como ideia
permanece. Em português, o ser árvore é recortado em outros seres/nomes: semente, arbusto,
árvore, madeira etc. precisamos juntar estes nomes numa ideia geral de árvore, relativo à sua
história.
Mas, em todas as línguas, as possibilidades do ser são estabilizadas pelos nomes
que cada língua particular dá aos seres e às suas relações. As flexões de tempo, pelo
substantivo, como no Tupi, ou pelo verbo, como no Português, são apenas formas
representacionais que as coisas assumem na língua para o ser humano, que nunca pode
apreender diretamente as coisas do mundo.
A árvore é “um ser concreto” que se torna ser Em-si, abstrato, universal, pela
língua. A primeira forma que o ser árvore aparece para o ser humano, como fenômeno,
1
Adjetivo referente a o próprio de todos os tempos. O que é diacrônico e também sincrônico, isto é, o que é
passado e presente. "As línguas são, essencialmente, pancrônicas. " (Prof. Mário Eduardo Viaro). Disponível em:
http://www.dicionarioinformal.com.br/pancr%C3%B4nico/. Acesso em 28 de out. de 2013.
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inclusive para o filósofo, é na forma da língua. Para o homem, a palavra é anterior ao objeto
concreto. O objeto precisa de um nome para vir ao mundo dos homens. Sem nome, o objeto
não é pensado, não é “visto”. É impossível filosofar (pensar geral) sem o nome das coisas
particulares. A palavra árvore estabiliza um complexo de muitas “árvores diferentes”, numa
abstração linguística/mental geral e, ao mesmo temo, isola uma árvore particular da realidade
como um todo (VIGOTSKI, 2003).
Martin Heidegger, no livro Sobre La Cuestión del Ser, (1958, p. 44), afirma que
“la cuestión de la esencia del ser fenece si no abandona el lenguaje de la metafísica, porque el
representar metafísico impide pensar la cuestión de la esencia del ser.” Porém, a filosofia não
tem como abandonar o representar metafísico, já que a língua, que constitui a essência do
pensamento humano, está essencialmente além da física, é metafísica por natureza. A língua é
este elemento que possibilita ao pensamento humano ultrapassar “a linha” entre o ser e o
nada. Ou, e mais especificamente, falar e pensar sobre o ser e o nada. Como diz Kant (1995),
“passar do sensível ao supra-sensível”. O ente da filosofia que permanece no caos do mundo
é a língua, a palavra. As palavras eu, aqui e agora, por exemplo, são entes que constroem e
fazem permanecer um ser que está em constante transformação, se desfazendo, se refazendo.
É importante constatar que Heidegger, para expressar o problema da linguagem na
filosofia e na ciência, chegue a essa conclusão:
Segundo Saussure, o signo linguístico pode ser comparado a uma folha de papel
com seus componentes inseparáveis: o significante e o significado. Assim, “o pensamento é a
frente e o som é o verso: não se pode cortar um lado sem cortar o outro, assim tampouco na
língua se poderia isolar o som do pensamento, nem o pensamento do som; a tal separação
somente se chegaria por uma abstração e o resultado seria fazer psicologia pura ou fonologia
pura.” (SASSURE, 1945,p. 193, tradução nossa). Portanto, o som como materialidade
significante da fala não pode ser separada do pensamento como idealidade da significação. O
mesmo se pode dizer da escrita. O signo, falado ou escrito, é, nesse sentido, um elemento
contraditório entre uma determinada matéria e uma ideia. O signo produz imagens acústicas,
que referem ideias às coisas (SAUSSURE, 1945). Imagens que constituem os sentidos da
língua, estabelecido na relação contraditória entre um significante e um significado, que se
unificam no signo.
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inconsciente, intensão, desejo etc., a não ser pelo sentido linguístico do signo, estabelecido na
própria ideia que o nome da coisa possibilita.
Faz-se aqui uma incursão na psicanálise para afirmar que o sujeito é dividido. Que
o sujeito não se confunde com o indivíduo e é instituído pelo significante. A psicanálise
lacaniana estabelece a função da linguagem como possibilidade de conhecimento do mundo e,
ao mesmo tempo, negação da realidade mundana. Segundo Jan Miel (LACAN, 1970, p. 34,
tradução nossa),
A natureza abstrativa da linguagem, que de fato torna possível todo conhecimento
humano, implica uma similar negação da realidade. A imposição de formas ou
termos singulares à diversa variedade do que experimentamos é o que nos capacita
para conhecer e controlar nosso meio, e é essencial para o desenvolvimento
intelectual. Com tudo, esta função tão essencial da linguagem, quando não é parte de
um diálogo humano e, portanto, não se acha subordinada às leis habituais do
discurso humano e do pensamento dialético, pode aplicar todos seus poderes de
deslocamento, condensação, transferência, a uma negação da realidade inteiramente
regida por o princípio do prazer.
correndo atrás dos significados deslizantes dos significantes. Para Lacan, mundo nos aparece
como significante.
Expõe-se, aqui, uma introdução ao signo Eu, para discutir o ser da filosofia em
relação ao ser da linguagem. Quem Eu sou? Quando falo Eu, falo com quem, ou de quem
falo? Como pode alguém falar consigo mesmo?
O filósofo Immanuel Kant (1995, p. 27) afirma: “[...] em relação ao sentido
interno, o duplo eu na consciência de mim mesmo, a saber, o da intuição sensível interna e o
sujeito pensante, parece a muitos pressupor dois sujeitos numa pessoa.” Kant estranha essa
situação em que um Eu, como sujeito, possa referir a si mesmo apenas como objeto.
[...] o que é mais estranho e surpreendente é que eu, enquanto objeto do sentido
interno, isto é, considerado como alma, posso conhecer-me a mim mesmo
unicamente como fenômeno, e não segundo o que eu sou enquanto coisa em si [...].
‘Sou consciente de mim mesmo’ é um pensamento que contém já um duplo eu, o eu
como sujeito e o eu como objeto (Objekt). (KANT, 1995, p. 29-30).
Kant não admite uma dupla personalidade. Separa, assim, o Eu*** sujeito, “que
pensa e intui”, do eu objeto pensado pelo sujeito. Como o Eu sujeito não entra diretamente
nos objetos do mundo externo, o eu objeto não é penetrado pelo Eu sujeito. Segundo Kant,
“não se tenciona afirmar uma dupla personalidade; apenas o Eu, que pensa e intui, é a pessoa;
mas o eu do objeto (Objekt), que por mim é intuído, é, analogamente aos outros objetos fora
de mim, a coisa.” (KANT, 1995, p. 30). O que expõe Kant é que o eu objeto não pode ser
conhecido pelo Eu sujeito. A alma, não pode conhecer o corpo. Constitui-se, assim, a
dicotomia corpo/alma.
Do ponto de vista da enunciação, na conversa consigo mesmo, para um possível
diálogo interior, somente poderiam existir dois seres interiores. Talvez por isso que Freud
percebeu uma espécie de homúnculo tentando saltar fora do indivíduo como atividade
inconsciente (YALOM, 2000). No nosso entendimento, isso somente se torna possível pela
língua como estrutura externa ao indivíduo. A palavra eu é uma estrutura linguística abstrata
que possibilita ao falante agir reflexivamente. Falar de si mesmo, consigo mesmo, sobre
algum elemento/interesse de si mesmo, dar conselho a si mesmo etc., somente se torna
possível por uma entidade linguística designada por eu. Ao mesmo tempo em que a palavra eu
me divide em indivíduo (objeto) corpóreo e sujeito linguístico, ela me puxa para um
determinado centro do Eu. Tenho que ser alguma coisa. Essa palavra força a necessidade de
***
Daqui em diante, sempre que estiver escrita em maiúsculo, Eu refere-se ao sujeito em contrapartida do eu
objeto, em minúsculo. Quando tratar da palavra, signo eu, estará sempre minúsculo.
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um indivíduo centrado no Eu. Quem sou Eu? Nietzsche diz que “eu sou muitos eus”. Na vida
sócio-material corpórea Eu sou homem, sou pai, sou filho, sou funcionário público, sou
professor, sou aluno, sou poeta, sou filósofo, sou um monte de outras coisas... Mas, no mundo
abstrato da língua Eu só posso ser Eu. Um Eu conceito, supra-sensível, vazio de toda
experiência possível (KANT, 1995). A simbologia do eu, como signo, me divide porque está
fora de mim como sujeito da língua que possibilita o meu pensamento sobre o próprio eu
objeto. Ao mesmo tempo em que me divide, o signo me unifica num Eu abstrato. Nesse
sentido é que Lacan observa que o “significante extrapola os significados”. Ou seja, é o
significante que dá a ordem para o significado. O eu em que Eu busco uma significância é
inatingível, “está sempre em falta.” É uma abstração fora de mim mesmo, que me divide e me
unifica.
Poder-se-ia dizer que é a partir das palavras eu aqui e agora que a língua toca o
real. Pelo menos o meu real, que se refere a um recorte espaço-temporal em que me situo. Ou
melhor, a língua resvala no real. Quando Eu penso em mim aqui e agora, exatamente em
frente ao computador, dentro do meu quarto às 8 horas e 20 minutos da manhã, Eu sou um eu
concreto dentro de uma realidade concreta. Essa realidade é tocada imediatamente pela língua
nas palavras eu, aqui e agora. Mas, daqui a pouco isso já é outra realidade completamente
diferente. O que permanece dessa realidade dinâmica são os conceitos abstratos das palavras
eu, aqui e agora, que tem uma referência precária na dinâmica do mundo. Se eu viro a cabeça
e olho pela janela, o aqui não é mais o mesmo (HEGEL, 1999). Na realidade imediata, o
agora que eu falo não é o agora que eu falo depois. Como realidade linguística, o agora é
apenas um recorte imediato que faço na fluidez do tempo. Assim, Eu capturo a fluidez do
tempo com a palavra agora, a expansão do espaço com a palavra aqui e a multidão vozes
(BAKHTIN, 1997/2003) com a palavra eu. Essas palavras permanecem como instrumento de
recorte do espaço/tempo real de um eu social, constituído historicamente pela língua utilizada.
Segundo Benveniste (2005), pela linguagem é que o homem se constitui como sujeito, pois
somente a linguagem fundamenta sua realidade de ser, a partir do conceito de ‘ego’.
Para Benveniste (2005, p. 278), “Eu só pode definir-se no plano da ‘locução’, não
em termos de objetos, como signo nominal. Eu significa a ‘pessoa que enuncia a presente
instância de discurso que contém eu’.” Benveniste (2005), qualifica como deíxis os elementos
linguísticos que se estabelece no plano “real” da enunciação. Esses elementos indicam os
objetos que não se referem à instância do discurso, “mas aos objetos ‘reais’, aos tempos e aos
lugares históricos.” (Idem, p. 280). O Eu e Tu da enunciação estão vinculados a um plano de
realidade estabelecido pelos advérbios de temo e de lugar: aqui, agora, lá, ontem, hoje,
amanhã etc. Esses elementos linguísticos indicam uma “realidade de discurso” que contém os
sujeitos Eu e Tu da enunciação.
O estudo das frases de verbo ‘ser’ é obscurecido pela dificuldade, realmente pela
impossibilidade, de propor uma definição satisfatória da natureza e das funções do
verbo ‘ser’. Em primeiro lugar, ‘ser’ é verbo? Se é, por que falta tão
frequentemente? E se não é verbo, de onde vem o fato de que lhe assume o status e
as formas, mesmo permanecendo aquilo a que se chama ‘verbo-substantivo’?
(BENVENISTE, 2005, p. 204).
A predicação perdida por esses verbos se transferiu para o sintagma à sua direita,
razão porque esse sintagma recebe o nome de predicativo, pois ele é que confere
atributos aos outros argumentos da sentença. O esvaziamento dos verbos de ligação
se comprova, por exemplo, no fato de não existirem verbos copulativos na maioria
das línguas do mundo. Nelas, a ligação entre os nomes e seus predicativos se faz por
simples justaposição [...] (BAGNO, 2011, p. 614).
REFERÊNCIAS