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Índice
Editorial 3
Resenha
Antoine no Brasil: Ecos de uma polêmica 118
Edelcio Mostaço
PERIÓDICOS EM ARTES
CÊNICAS NO BRASIL
ABRACE
Associação Brasileira de Pesquisa
e Pós Graduação em Artes Cênicas
www.udesc.br/abrace
Editorial
5
Duvignaud, Jean. El juego del juego. p.54.
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estabeleceu como regra que as ruas cumprem uma série de funções específicas,
e aquelas atividades que extrapolam estes limites entram numa zona de conflito,
pois, questionam não somente o uso da rua, senão o poder de controle sobre o
espaço cidadão.
O jogo, enquanto experiência lúdica, é em essência questionador.
Subverte a ordem que propicia tranqüilidade, e a desequilibra. É esta a
característica que define o jogo como um elemento perigoso que deve ser
enquadrado como um fenômeno temporário para seu controle. Jean Duvign-
aud fazendo referência ao jogo com relação às festas como acontecimentos
únicos diz: “Durante esta explosão súbita e momentânea das relações humanas
estabelecidas, se rompe o consenso, se apagam os modelos culturais trans-
mitidos de geração em geração, não por uma transgressão qualquer, senão
porque o ser descobre, às vezes com violência, uma plenitude ou uma super
abundância proibida na vida cotidiana...lógico, a festa não dura. É perecível
no seu próprio princípio”.5 No carnaval, as mais amplas liberdades estão
contidas em quatro dias.
As manifestações políticas de rua não controladas por aparelhos
políticos, quando alcançam o grau de revolucionárias, isto é, quando põe em
risco o sistema de dominação sócio-político, atingem a mesma liberdade do
carnaval, pois as regras desaparecem e a criatividade se faz livre. Neste caso,
independente dos objetivos específicos da manifestação, aparece uma enorme
variedade de reações que estão muito mais relacionadas com a possibilidade
de jogar; já seja o papel de transformador da realidade ou simplesmente pôr
para fora uma energia por muito tempo contida.
É esta característica de ruptura, própria do comportamento oriundo
do jogo, que provoca que o espaço da rua seja considerado estratégico pelos
organismos encarregados de manter a ordem social. Por isso o teatro de rua,
ainda que não possa alcançar a dimensão do descontrole do carnaval ou a força
avassaladora das grandes manifestações sindicais, explicita a possibilidade de
ruptura ao provocar o jogo e ao convidar aos transeuntes a participar da criação
- ainda que momentânea - de uma nova ordem.
Isso ganha importância por se tratrar de um fenômeno instalado em
um espaço de vivência cotidiana - que diferentemente das salas teatrais - não
enclausura os espectadores, senão que, ao ser totalmente aberto, estreita a
Vetor no sentido explicitado por Marco de Marinis: força dramática que opera na
6
se incorpora a esse marco cultural. Então seria possível pensar que mesmo o
espetáculo mais experimental viria a compor parte da cultura popular, ou mais
especificamente da cultura híbrida das ruas.
Referências Bibliográficas
2
Os integrantes brasileiros deste intercâmbio foram: Beatriz Cabral (coordenadora - UDESC/
UFSC), André Carreira (UDESC), Gilka Girardello (UFSC), Ida Mara Freire (UFSC), Márcia
Pompêo Nogueira (UDESC). Os integrantes da equipe inglesa foram: John Somers (coordenador),
Geoff Fox, Linda Rolfe, Steve Cockett, e William Stanton, todos da Universidade de Exeter
.3 Esta forma teatral vem sendo por nós desenvolvida a partir de 1998, quando montamos “Plan-
tas da Ilha - a História de Marina”, ao longo de uma trilha no distrito da Lagoa da Conceição,
Florianópolis (Cabral, 1998). Foram realisadas mais duas trilhas (Cabral, 1999), e cinco trânsitos
(Cabral, 2000 e 2001), nomenclatura que adotamos a partir de 1999.
4
Fizeram parte desta equipe no príodo 2000-2001: Beatriz Cabral (coordenadora), Célida Salume
Mendonça, Maria Aparecida de Souza, Maria de Fátima Moretti, Zélia Sabino. A aluna Cláudia
Regina Telles participou das reuniões de pesquisa referentes ao trabalho em Santo Antônio de
Lisboa.
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6
Deixaram de participar da pesquisa por motivo de capacitação, Maris Viana e Nara Micaela
Wedekin; passaram a integrar a equipe no último ano, Célida Salume Mendonça e Maria Apa-
recida de Souza.
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... ele então se enterrou em seus livros e passou noites lendo do en-
tardecer ao amanhecer, e dias, do amanhecer ao anoitecer (...) e ele
penetrou tão profundamente em sua imaginação que acreditou
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que toda a fantasia lida era realidade, e ... decidiu ... tornar-se cavaleiro
errante e viajar ao redor do mundo ...
Don Quixote de la Mancha
Método de Investigação
imaginativa e emocionalmente.
Curtume
Sobrado
Engenho
Sineira
Intendência
Bibliografia
Portanto, para Aristóteles, o homem deve controlar suas emoções. Diderot pro-
põe este controle das emoções no teatro com seu conceito de desdobramento do
ator. O ator deve ser aquele que age, enquanto que o homem sensível, por ser
paciente do afeto, é mais passivo. A partir de Diderot, como este mecanismo
repercute no trabalho destes diferentes pesquisadores do teatro? Há
um denominador comum na obra de Stanislavski e na de Grotowski, que é o
fato de que ambos têm um foco muito concreto no ator, como elemento princi-
pal da cena. Para Stanislavski, o diretor, o dramaturgo e o cenógrafo, estavam
presentes, trabalhando para auxiliar o ator na sua criação, na sua caracterização.
Já no Teatro Pobre de Grotowski, até mesmo os meios materiais de encenação
podem ser descartados, exceto a presença do ator em cena, comunicando-se
com uma platéia.
Brecht, apesar de querer um determinado tipo de interpretação, para a
qual criou o distanciamento, não centrou seu trabalho na problemática do ator
propriamente, mas a presença deste era essencial para que as idéias revolucio-
nárias, do homem e dramaturgo Brecht, pudessem ganhar corpo e partir para
a transformação dos homens, seu primordial objetivo. A transformação dos
homens, implicava, para Brecht, na transformação de seus atores.
Porém, apesar desta diferença na abordagem da atuação tanto em
Stanislavski, quanto em Brecht e em Grotowski, a emoção do ator no palco,
representando um personagem, não deve ser semelhante à de uma pessoa no
dia-a-dia.
Ainda que Grotowski enfatize que, em sua técnica, o objetivo do ator
é chegar ao desnudamento, mostrando ao público o que lhe é mais íntimo, esta
exposição psíquica do ator recorre a uma linguagem metafórica. Conseqüente-
mente, sua abordagem requer um rigor técnico enorme. As associações evocadas
no psiquismo da platéia devem ser fruto dos ideogramas construídos pelo ator
em sua partitura, e não por uma descarga emocional próxima à histeria.
No método de Grotowski, o ator não busca determinada emoção,
para um determinado personagem de literatura ficcional, num determinado
momento do espetáculo, como no teatro de Stanislavski e de Brecht. No en-
tanto, Grotowski também se propunha a guiar o intérprete pelos meandros da
“vida interior” do ser humano. E isto, aproxima os três pensadores novamente,
porque a busca de seus fundamentos está na observação da natureza humana,
cuja complexidade tem por objetivo reproduzi-la de maneira estética.
No teatro de Stanislavski e de Brecht, o que ocorre é o encontro da
pessoa do ator com um personagem de ficção. O ator acredita nas palavras do
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seu papel e na sua imagem. Porém, por maior que seja a atração que a imagem
desse outro lhe provoque, o ator continua ciente da sua própria identidade, não
se perdendo na máscara que assume. Em Grotowski, o ator usa a composição da
partitura, construindo a forma e objetivando a expressão dos símbolos que, por
um processo involuntário, ativará seu fluxo interno psico-físico, para construir
a seqüência de ações que o guiará no momento da representação. Por isso, já
por princípio, não há identificação com o personagem.
Dentro da idéia de que o fenômeno básico do teatro é a metamorfose
do ator em personagem, Anatol Rosenfeld, estudioso da estética teatral, em
sua obra O Fenômeno Teatral (1969), reforça a idéia de que esta metamorfose
nunca ultrapassa os limitesda representação, pois, se o “desempenho é real,
a ação desempenhada é irreal” (Rosenfeld,1969:30) - a situação do ator, em
cena, cumprindo seu ofício faz parte da realidade desse ator, os espectadores
comparecem no teatro para vê-lo, portanto é real; as suas ações no palco são
ficcionais, portanto irreais. Isto quer dizer que existe o convívio entre uma
irrealidade imaginária (do personagem) e uma realidade sensível (do ator).
A metamorfose, base do fenômeno teatral, portanto, não é real, pois
não ultrapassa o domínio do imaginário, permanecendo no limite do apenas
simbólico. Com isso, Rosenfeld defende a concepção de que, na gênese do
papel, prevalece o intencional (postura ativa) e não o involuntário (passivo). A
representação teatral não poderia ser uma exibição de emoções reais, sob pena
de perder sua dimensão estética, porque se aceitamos o jogo de que as ações
são irreais, ao exibirmos emoções reais estaríamos quebramos o pacto.
Neste ponto, no entanto, pode surgir a seguinte questão: com a expo-
sição de emoções reais, deixamos de ter o espetacular? Sim, no sentido que
fala Rosenfeld. A exibição de sentimentos pessoais, que podem aflorar durante
o processo de criação - o ator emocionar-se durante os ensaios, o que é até
bastante comum, ou já nas apresentações – reflete certa instabilidade à qual o
ator não deve ficar à mercê. Neste sentido, o palco não pode ser visto como um
lugar terapêutico, onde o objetivo seja experimentar emoções reais e analisar
os complexos e os traumas pessoais deste ator.
Por outro lado, é claro que a emoção real é espetacular. Basta observar a
quantidade de gente que se junta para observar um acidente de automóvel, uma
briga, alguém passando mal. Todos os programas sensacionalistas da televisão,
por exemplo, exploraram justamente isto, com sucesso garantido.
A emoção do ator sendo intencional, no teatro ocidental, estabelece
que o desempenho do mesmo não deve ultrapassar o limite do plano imaginá-
rio. A garantia do respeito a essa regra está no fenômeno do desdobramento,
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2
. Há que se considerar que a utilização do termo subconsciente em detrimento à in-
consciente na obra de Stanislavski pode ser um problema de tradução para o português.
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Bibliografia :
As origens
Numa entrevista a mim concedida em 1993, Maria Clara Machado confirma
que o nome da publicação é inspirado no dos periódicos que Chancerel publi-
cou de 1945 a 1950, intitulados Cahiers d’Art Dramatique [Cadernos de Arte
Dramática]. Sua fundadora tomou conhecimento deles durante a sua primeira
permanência na França. Tendo lido esses cadernos, sentiu vontade de fazer
publicações periódicas no mesmo espírito:
1
Situado no número 98 do Boulevard Kellermann, Paris 13e, o Centro Dramático foi a residên-
cia e o local de trabalho de Léon Chancerel desde seu regresso de Toulouse, em 1945, após o
término da Segunda Guerra Mundial, até sua morte, em 1965. Aí desenvolveu as atividades da
Associação Centro Dramático, por ele fundada. Hoje em dia esse prédio de dois andares e um
porão continua a abrigar a biblioteca Léon Chancerel e as sedes da Société d’Histoire du Théâtre
[Sociedade de História do Teatro] e da Association Internationale de Théâtre pour l’Enfance et la
Jeunesse/ASSITEJ [Associação Internacional de Teatro para a Infância e a Juventude], ambassob
o impulso de Rose-Marie Maudouès, colaboradora de Chancerel. Localiza-se muito próximo à
Cidade Universitária Internacional, que foi um dos lugares onde viveu Maria Clara Machado
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na capital francesa, durante sua temporada parisiense de 1949-1950. Na carta de “Paris, 1.2.50”,
Maria Clara conta ao pai, o escritor Aníbal Machado, que se instalou na Cidade Universitária,
num quarto amplo com um parque visto da janela, compartilhado com Sílvia Moscovici, “uma
pessoa muito silenciosa”... Na carta parisiense datada de 25.3.50, endereçada a toda a família,
sacia a curiosidade do pai, escrevendo que, de trem (pela linha de Sceaux), chega em quinze
minutos ao “curso Barrault”, no Boulevard Raspail. Terá levado ainda menos tempo, a pé, para
ir ao Centro Dramático de Chancerel: o Boulevard Jourdan, que passa em frente à Cidade Uni-
versitária Internacional de Paris, é a continuação do Boulevard Kellermann.
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auxiliaram a começar.
Já foi dito que tanto Maria Clara Machado quanto Léon Chancerel
tiveram objetivos semelhantes: formar uma equipe e preparar movimentos
ligados à juventude para um trabalho especificamente teatral. Chancerel e sua
equipe consignaram no Bulletin des Comédiens Routiers (1932-1935), em Art
Dramatique (1935-1938), nos Cahiers d´Art Dramatique (1945-1950), e tam-
bém no modesto Bulletin d’Information et Liaison (1955-1956), um testemunho
rico de seu trabalho, que pode ainda servir aos leitores em busca de formação
teatral. É oportuno recordar aqui algumas idéias obtidas em sua leitura.
5
Tendo muito viajado e muito observado, Georges Hébert criou o “hebertismo”, método global
que ensina a treinar o corpo pela execução dos “dez exercícios naturais”: caminhar, correr, saltar,
praticar a quadrupedia, trepar, levantar-carregar, lançar, atacar-defender, equilibrar-se, nadar.
Tal método permite a aquisição de grande resistência física, muito necessária ao ator (BAYEN,
1945:23). Seu método foi utilizado no Teatro e na Escola do Vieux-Colombier. Portanto, Jean
Dasté, Marie-Hélène Dasté, Etienne Decroux, Charles Dullin e Louis Jouvet, entre outros, to-
maram conhecimento de seus princípios e praticaram tais exercícios.
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sentido do grupo, os participantes têm a tarefa de inventar, por sua vez, exer-
cícios, jogos, temas, cuja expressão se encarregarão de aprofundar cada vez
mais: Dominar o corpo para torná-lo um instrumento perfeito. Flexibilidade,
equilíbrio, fôlego e ritmo são as qualidades fundamentais. Depois, começa-se
a dramatizar os exercícios de escola. Estuda-se o gesto augusto do semeador,
as inúmeras maneiras de caminhar (...) Entrar no mar num lugar levemente
inclinado. Nada de anedota, nada de arrepio se a água estiver muito gelada. O
essencial: a música do corpo... O corpo pode também tornar-se árvore, rochedo,
animal pré-histórico (HUSSENOT, 1978: 44).
Em cena, o mais importante não é saber falar: é saber calar. Em cena, o
jogo do ator consiste em falar e ouvir. Ele não pode falar sem representar mas
pode representar sem falar. A reação corporal ao meio ambiente, a aquisição da
maleabilidade, o sentido do ritmo e da observação são os objetivos procurados
pelo trabalho e reiterados nas publicações de Chancerel.
A partir do treinamento corporal em grupo, forma-se pouco a pouco o
espírito coletivo, de equipe, a formação coral, “orquéstica”6.
Quanto à voz, os periódicos franceses aludidos não apresentam muitos
exemplos de treinamento. Há exemplificação de certos exercícios simples de
pronúncia ou dicção, ou de canto seguindo um ritmo, como na “Marcha para o
Suplício” (BULLETIN DES COMÉDIENS ROUTIERS D´ÎLE DE FRANCE
1933:134-36). Há também interesse pela onomatopéia, arte estudada pelos alu-
nos da Escola do Vieux-Colombier (1920-1924) e batizada como “grommelot”
[gromelô].
Os exercícios vocais, como os corporais, contribuem para a formação
do coro e, por isso mesmo, para a formação de todos os membros da equipe. Às
vezes movimento e voz são trabalhados conjuntamente, como nas caminhadas
concomitantes com a emissão de um som coincidente com o ritmo do andar.
Na execução dos exercícios, deve-se evitar a caricatura, o excesso,
o que desvio da economia, e sobretudo procurar a expressão do corpo, sua
“música”, “o jogo perfeito dos músculos, a continuidade e o encadeamento
O termo ορχηστικοσ, η, ον [orkhestikós, -é, -ón] significa “relativo à dança” segundo o filósofo
6
Platão de Atenas (430-348 a.C.), Leis 816 a. Para o filósofo e biógrafo Plutarco de Queronéia
(205-270 d.C.), Marius 27 b, 67 b, trata-se de “quem se entrega à dança”. - O substantivo η
[τηχνη] ορχστικη [hé (tékhne) orkhestiké] é “a arte da dança”, para o sofista Luciano de Sa-
mosata (c.120-200 d.C.), Salt. 65, 71 [Da Arte da Dança]. – “Os ‘jogos dramáticos’, praticados
desde a infância, são o caminho que se deve trilhar para estabelecer essa orquéstica de que já se
podem entrever as conseqüências magníficas, na obra de reconstrução a que estamos atrelados”
(CHANCEREL, [1936]: 10).
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atividades de
“teatro no colégio” e afirma, no item 2, que “durante as sessões de estudo, o trabalho era dividido
da seguinte maneira: 20 minutos de exercícios de formação coral segundo a técnica proposta pelo
boletim dos Comédiens Routiers [Atores Itinerantes] (...) » (GARRONE, 1938:82-94.)
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9
Personalidade forte, Maria Clara Machado sempre soube muito bem o que deseja ver publicado
pelos Cadernos de Teatro. É elogiável, porém, que ela tenha sempre tido em conta a equipe
com que trabalha. É sintomático que as publicações de Chancerel contivessem a menção de que
ele era o seu fundador e diretor. Já ao pensar nos Cadernos de Teatro, embora creditando à sua
fundadora todo o seu valor, vem logo à lembrança de que se trata de uma publicação do grupo
teatral O Tablado. Tal atitude foi projetada por ela, por ela arquitetada e obtida. Afirmando a
importância de sua participação, a clareza e força de seus princípios, Maria Clara Machado
sempre valorizou o espírito coletivo no teatro e particularmente no periódico em que pôs nele
o seu grande entusiasmo. Com ele começou a construir, ao longo dos últimos quarenta e cinco
anos, uma parte (considerável) da obra — convivendo, como no poema de Carlos Drummond
de Andrade, na praça de convites.
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Bibliografia:
1
Trabalho orientado pelo prof. José Ronaldo Faleiro
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ações, não deixar-se levar pelos modismos da cena. A primeira condição para
ser sincero seria só interpretar textos que se admira. Só assim o ator poderia
trabalhar apropriando-se desse texto, tornando-o seu); ter disciplina; acompa-
nhar o crescimento do trabalho do colega; amar o teatro.
Copeau defendia que a palavra, em cena, deveria ser o resultado de um
pensamento sentido pelo ator em todo o seu ser ( 1993:308). Para isso, o ator
deveria admirar o texto e repassar pelo caminho do autor. Ao abordar a questão
do corpo em movimento, Copeau prescrevia que o ator tivesse consciência da
expressão do próprio corpo e uma boa técnica corporal.
A escola do Vieux-Colombier
Jacques Lecoq
Dentre outros, Lecoq estudou com Jean Dasté (que foi aluno de Cope-
au), com quem aprendeu o trabalho sobre a máscara neutra. Desenvolveu uma
escola em Paris, para a formação de atores, na qual a prática com a máscara
neutra é um dos pilares pedagógicos. Segundo Lecoq, o corpo na neutralidade
está em estado de alerta, de suspensão. Estar na neutralidade é se apresentaràs
situações nas quais a gente se encontra em estado de calma, sem conflitos pre-
liminares, nem idéias à priori. Estar disponível ao acontecimento, um pouco
espantado, olhar de uma maneira ingênua, pronto para descobrir. O estado
neutro suscita economia de movimentos (LECOQ, 1988 ).
Uma das regras ensinada por Lecoq é não deixar a máscara virada com
o nariz para o chão, tocando no chão. Diz que essa posição é sinal de morte
(LECOQ, 1988 ). Nota-se aqui uma sacralização da máscara, um respeito a algo
misterioso escondido nesse objeto .
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Eldredge/ Huston
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A noção de percepção.
Feito esse esclarecimento, fica evidente que não é possível uma pessoa,
com sua personalidade estruturada, perceber (as coisas e os outros), sem pensar,
durante os vários minutos que pode durar um exercício com a máscara neutra
e tendo que organizar seus movimentos de acordo com regras precisas, como
por exemplo: não ficar mais que três segundos em relação com o objeto. Ter
que respeitar regras já é pensar. esse trabalho com a máscara neutra, podemos
ter momentos de percepção sem reflexão, mas esses momentos são curtos
visto que temos que estar atentos às regras que estamos aprendendo. O que
seria possível é estar em relação com o objeto sem o posicionamento do eu
para a consciência. Nesse caso, estaremos em uma relação espontânea com os
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objetos, o que não significa que não exista reflexão. O nome científico desse
tipo de relação é consciência reflexiva espontânea. Constatei que essa questão
está presente na pedagogia de Copeau: ele aborda o martírio do ator quando
esse se ouve falar, se vê atuando, se julga.
O que é possível no trabalho com a máscara neutra, portanto, é construir
uma figura neutra, que se relaciona com os objetos “como se” não tivesse nem
passado nem futuro, “como se” não tivesse cultura. Essa figura neutra é uma
construção a partir de uma idéia de neutro, de um padrão de movimento que
buscamos e que chamamos de neutro. Com relação ao que foi ensinado no curso
em Londrina, seria somente depois de o aluno dominar essa forma particular
de se movimentar que ele poderia trabalhar sem o posicionamento do eu para
a consciência, pois só depois de dominada uma técnica é que conseguimos nos
mover na espontaneidade.
A avaliação do aluno
Considerações finais
Bibliografia
1
Doutorado feito na Universidade de Exeter e concluído em junho de 2002.
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2. Identificação do conteúdo
4. Dramatizando os problemas
comunidades. Entretanto, olhando sob outro ponto de vista, não estaria o teatro
dialógico assumindo uma forma muito discursiva?
Para discutir esta questão, gostaria de apresentar, enquanto paralelo,
uma prática teatral que desenvolvi na comunidade de Ratones, sul do Brasil.
Observar as semelhanças e as diferenças entre as duas práticas é parte de uma
avaliação pessoal necessária para a definição de meu trabalho futuro, mas que
espero possa também trazer novas idéias para a prática na área.
Nosso teatro em comunidade surgiu como resposta a um grupo de
jovens de Ratones que veio para a universidade para fazer uma apresentação
teatral. Ficamos encantados pela vitalidade e coragem do grupo de se apre-
sentar por conta própria para uma audiência universitária, mas chocados pelo
fato de que a apresentação se limitava a cópias de programas humorísticos da
televisão. Em conjunto com um grupo de alunos da universidade, fizemos um
projeto para trabalhar com este grupo, objetivando a facilitação de uma prática
teatral baseada em histórias próximas da realidade e cultura da comunidade.
Esta prática se tornou, entre 1991 e 1998, um campo de estágio para diversos
alunos da Universidade do Estado de Santa Catarina e, para mim, um campo
de trabalho que me energizou e me ensinou muitíssimo.
Ratones é uma pequena comunidade que fica no interior da ilha de Santa
Catarina, em Florianópolis. Até uns cinqüenta anos atrás, era uma comunidade
rural, auto-suficiente, que tinha uma clara identidade cultural. Neste tempo, para
ir à ao centro de Florianópolis se tomava um dia inteiro. Não existiam escolas
em Ratones. Hoje, a produção agrícola sofre duramente com a concorrência da
agricultura industrializada e da falta de terras para se plantar, já que a maioria
das terras foi vendida, às vezes para se comprar apenas uma geladeira. A maio-
ria dos habitantes deixa a comunidade diariamente para trabalhar na cidade.
Ratones está hoje conectada ao centro de Florianópolis por uma linha regular
de ônibus. Existe uma escola municipal de primeiro grau, local onde nosso
trabalho costumava acontecer, muitas igrejas, lojinhas e bares. A identidade
cultural se enfraqueceu.
O grupo de jovens com quem trabalhamos costumava reclamar que:
‘nada acontece em Ratones!’ Talvez por causa disto nós tenhamos conseguido
manter o trabalho de teatro por oito anos, sempre com um alto nível de energia
e comprometimento dos adolescentes que costumavam esperar ansiosamente
pelo nosso workshop semanal, mesmo que nossos encontros acontecessem na
hora das novelas mais populares da televisão.
Urdimento 4 / 2002 75
Nosso grupo, Sonho de Criança, era formado por cerca de trinta pessoas
com idades variando entre quatro e vinte anos. Juntos criamos três peças que
resultaram de processos longos de um ano e meio cada, incluindo as apresen-
tações.
País dos Urubus foi criada em 1991 como parte de nosso processo de
2
sua cultura poluidora, os urubus necessitavam água bem limpa para beber. Para
garantir que os representantes do poder tivessem estoque de carniça suficiente,
costumavam raptar a prender os idosos. A peça se desenvolveu em torno da
história de uma criança com poderes mágicos, que tentava salvar seus avós
de serem capturados e presos pela polícia, de forma a virar comida da elite de
urubus.
A segunda peça criada coletivamente foi História do Não Sei . Não Sei
5
2
Sobre o processo de criação de País dos Urubus ver Nogueira, M.P. “Teatro na Edu-
cação: uma Proposta de Superação da Dicotomia entre Processo e Produto”.
3 Esta proposta de desenho dos caminhos da comunidade é parte do método de trabalho
de Ili Krugli, veja Nogueira, 1993.
4 Do texo ‘País dos Urubus’. Criado a partir da gravação de apresentações improvisadas.
5
Ver Nogueira, M.P. ‘Community Theatre in Florianópolis’.
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pantes que dessem forma ao Não Sei usando folhas de jornal, e para desenvolver
seu mapa da vida , feito a partir de desenhos da vida do personagem antes de
7
nascer, seu presente - incluindo seus sonhos - e seu futuro. Muitos aspectos deste
personagem vieram à tona. Para alguns, ser Não Sei significava não saber quem
eram seus pais, não saber o que a escola queria que eles soubessem, apesar de
saberem que aqueles que sabem exploram os que não sabem. A forma dada ao
Não Sei, pelo grupo de Ratones, era um boneco que tinha seios, rabo e pênis,
Não Sei não sabia se era um menino ou uma menina.
A história criada unia as dúvidas das crianças das três comunidades, mas como
somente a comunidade de Ratones criou o espetáculo, focamos a história do
Não Sei na questão de gênero, numa tentativa de responder às necessidades
expressas pela criação do boneco andrógino.
Na história criada, nosso personagem pesquisou sua identidade na
comunidade em que foi adotado(a), já que não sabia quem eram seus pais. A
revelação surgiu através de uma viagem pra dentro de seu corpo, quando Não
Sei descobriu que era homem. Após esta descoberta, decidiu enterrar seu lado
feminino, do qual nasceu uma árvore. O fruto dessa árvore foi transformado
numa mulher de quem Não Sei se apaixonou.
Esta história cresceu passo a passo durante nossos workshops com o
grupo de Ratones, que era na sua maioria composto por participantes de doze
anos. Todas as soluções encontradas para o desenvolvimento da história vieram
do grupo; nosso método de criação tinha como base responder às perguntas dos
participantes com outras perguntas . Desenhar e improvisar uma viagem dentro
8
do corpo foi inicialmente desenvolvido enquanto uma busca pessoal feita por
todos os participantes. O segundo passo foi imaginar nosso personagem fazendo
a mesma pesquisa em seu corpo. Que órgãos ele pode encontrar?
Esta atividade aumentou o entendimento a respeito do processo de
6 As três comunidades eram: Morro do Mocotó, uma favela próxima do centro de Flo-
rianópolis formada em sua maioria por moradores negros; Coloninha, uma comunidade
mais recente feita de pessoas que vieram para capital fugindo do campo por causa dos
efeitos da mecanização do campo; e Ratones.
7
O Mapa da vida é uma atividade que integra o método de Ilo Krugli. Ilo Krugli é
um diretor teatral que influenciou profundamente meu trabalho. Seu trabalho foi o
foco de minha dissertação de mestrado: Teatro com Meninos de Rua. Este mestrado
foi concluído na Escola de Comunicações e Artes da USP.
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com uma manifestação cultural que acontece de norte a sul no Brasil, sobre a
morte e ressurreição de um boi. Em Florianópolis esta manifestação se chama
Boi de Mamão. Ela é brincada na maioria dos bairros de Florianópolis, mas não
em Ratones. Isto nos intrigou: por que esta manifestação cultural não era mais
viva em Ratones que, por causa de sua localização no interior da Ilha de Santa
Catarina, é mais preservada da invasão turística do que outras comunidades de
Florianópolis? Enquanto o coordenador de dança e música do projeto, Reonaldo
Gonçalves, entrevistava informalmente pessoas da comunidade, ouviu que eles
pararam de brincar o Boi de Mamão depois do assassinato, durante uma apre-
sentação, do homem que dançava o boi. Esta informação virou o tema central
de nosso processo teatral. Descobrimos que o assassinato, o qual não tínhamos
certeza de que tenha realmente acontecido, era uma representação simbólica
da morte da identidade cultural da comunidade.
O processo teatral começou com a criação de uma comunidade fictícia
onde este assassinato aconteceu. Organizados em torno de famílias, cada parti-
cipante foi requisitado a criar o seu personagem baseado em pessoas que eles
conhecessem do passado e presente de Ratones. A escolha de integrar pessoas
8
Este método foi influenciado pelo método de Catherine Dasté, que criava históriaspara
serem encenadas por seu grupo profissional de teatro infantil, a partir de uma interação
com grupos de crianças. Veja Dasté, C.; Jenger, Y.; Voluzan, J. El Niño, el teatro y la
Escuela, Madrid: Villalar, 1978.
9
Veja Nogueira, m. p. ‘Theatre and Cultural Renewal’.
78 Urdimento 4 / 2002
O conceito de codificação
- Porque somos os Estados Unidos e não podemos ter isso aí. - E, com
o dedo indicador apontava a foto.
Depois de um silêncio maior um outro falou e disse, com dificuldade
e dor, mas como se tirasse de si um grande peso:
- É preciso reconhecer que esta é a nossa rua. Moramos aqui (Freire
1992: 55-56).
11
Alguns estudantes de música e teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado
de Santa Catarina compunham junto comigo o grupo de facilitadores que se encontra-
va semanalmente para avaliar o trabalho. Mais adiante no processo, alguns jovens de
Ratones também tomaram parte nesses encontros.
12
O joker (coringa) é proposto por Boal como intermediário que facilita processos de
participação dos espectadores nos processos teatrais como o do teatro forum.
86 Urdimento 4 / 2002
13
Natanael e Gabriela são membros do grupo. Esta entrevista fez parte do projeto
despedida, antes de eu ir para a Inglaterra para fazer o doutorado, em 1998.
Urdimento 4 / 2002 87
eram aspectos da realidade concreta, Não Sei era um personagem fictício, mas
exatamente porque era imaginário, ele nos deu uma distância para explorar
questões íntimas relacionada com a realidade do grupo.
Olhando criticamente para o nosso trabalho em Ratones, reconheço que
nossa análise freqüentemente não atingia o nível das ‘estruturas profundas’,
identificando as causas dos problemas analisados. Em País dos Urubus, por
exemplo, permanecemos num nível intuitivo de análise, perdendo algumas pon-
tes concretas entre a intuição do grupo sobre a corrupção no Brasil e o contexto
brasileiro real. Em História do Não Sei nossa análise limitou-se ao contexto da
comunidade, enquanto parte da exploração do tema. Também falhamos ao não
estabelecer vínculos com organizações da comunidade que teriam ampliado o
potencial transformativo de nosso trabalho teatral.
Sob outro ponto de vista, o trabalho de Ratones gerou formas imagi-
nativas de se criar uma codificação. Poderia uma representação simbólica da
realidade contribuir para o modelo dialógico de teatro para o desenvolvimento?
Poderia contribuir para o entendimento da realidade? Elementos fantásticos
poderiam contribuir para melhorar nosso entendimento da realidade? Qual o
papel da imaginação no processo de compreensão e transformação do mundo?
Como vimos em Freire, uma boa codificação não pode ser nem muito
explícita nem muito enigmática. O objetivo não é a propaganda de algum ponto
de vista. Entretanto, na abordagem dialógica a codificação teatral é freqüente-
mente limitada à improvisação de problemas identificados e selecionados pelas
pessoas da comunidade. Apesar de usar uma abordagem bastante democrática
para dar voz a diferentes setores da comunidade para selecionar uma codifi-
cação, a forma de se criar uma codificação é freqüentemente muito explícita,
caindo muitas vezes em cenas que não vão além de uma discussão mediada.
Seria o conteúdo político de uma peça limitado a seu discurso? Poderia uma
forma teatral contribuir para o conteúdo, ou seria ela uma mera distração?
Sob meu ponto de vista, enquanto artistas, podemos levar adiante o
conceito de codificação, no sentido de incluir abordagens fantásticas e imagina-
tivas que possam contribuir para aprofundar nosso entendimento da realidade.
88 Urdimento 4 / 2002
Bibliografia
1
. Determinada pose do balé criada pelo italiano Carlo Blasis, em meados do século XIX, inspirada
na estátua de Mercúrio, de Jean Bologne. Posição em que o bailarino(a), apoiado numa perna
só, eleva a outra para trás com o joelho dobrado num ângulo de noventa graus (Rosay,1985:40).
Urdimento 4 / 2002 91
2. Uma das posições básicas do balé, a terminologia arabesque origina-se de uma forma de
ornamento mourisco. A posição do corpo consiste em se estar apoiado numa só perna (flexionada
ou esticada), enquanto a outra está estendida para trás em um ângulo reto em relação à perna
apoiada no solo (Rosay,1985:32).
3. A terminologia tribhangi significa “três arcos”, e remonta à dança clássica hindu Odissi. Um
S sob a forma de uma serpentina, atravessa o corpo do bailarino, abrangendo a cabeça, tronco e
pernas (Barba,1989:46).
92 Urdimento 4 / 2002
torne-se cada vez mais dinâmico no corpo do ator, a ponto de transmitir este
conflito elementar ao espectador, a sua musculatura deverá estar trabalhada.
Para Barba, o ator que não conhece estes equilíbrios precários e dinâmicos
“carece de vida, conserva a estática cotidiana do homem, mas como ator, es-
támorto” (Barba,1989:72).
Trabalhar com este tipo de treinamento, que produz instabilidade e
imprevisibilidade em corpos que, por questões de sobrevivência cotidiana,
tendem a procurar o equilíbrio e a perpetuar sua estabilidade, tem sido matéria
de interesse de muitos diretores de atores, com o intuito de colocar o organismo
do ator em estado de atenção constante, percebendo e reagindo de forma menos
convencional às situações que a experiência do jogo teatral demandar.
O diretor russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940), em relação ao
sistema de treinamento corporal que formulou, ocupava-se das questões do
equilíbrio: “cada movimento da biomecânica deve reconstruir conscientemente
o dinamismo implícito na reação automática que mantém o equilíbrio não de
maneira estática, mas perdendo-o e recobrando-o com uma série de ajustes su-
cessivos” (Apud Barba,1994:39). A tensão entre o equilíbrio e o desequilíbrio,
queda e recuperação do eixo corporal igualmente norteou a dança no século
XX e toda a tradição da mímica moderna. O mímico francês Etienne Decroux
fundamenta a dilatação da presença cênica através do déséquilibre:“sem expor
aqui todos os mandamentos de nossa estética, se pode dizer que quase sempre
a obediência a estes últimos requer a faculdade de se manter em equilíbrio
instável” (Apud Burnier, 1994:123).
Antunes Filho se encontra entre os diretores de atores, no Brasil, que
se utiliza exercícios de alteração do equilíbrio cotidiano. Em sua metodologia,
há uma desestruturação através dos exercícios de desequilíbrio que carrega
outras intenções do diretor no tratamento do corpo. Antunes busca eliminar
alguns traços maniqueístas do ator para revitalizá-lo para novas situações,
quebrando-lhe as “velhas” convicções e posturas através do desequilíbrio:
“o ator luta contra o condicionamento físico, as articulações passam por uma
severa ‘análise crítica’ e vão, aos poucos, deixando de constituir impedimentos
ao pleno uso do corpo humano como matéria expressiva” (Milaré,1994:270).
Em 1992, o diretor brasileiro assim descreveu seu processo de trabalho com o
ator em relação aos exercícios de desequilíbrio:
Através de algo chamado desequilíbrio fui entendendo o corpo humano.
Porque necessitava quebrar as couraças dos atores. Eles trazem todo-
Urdimento 4 / 2002 93
sos seus complexos, seus traumas por todo o orpo. E a primeira coisa
a fazer era desequilibrar, no sentido de tentar retirar, romper com isto.
(Carreira,1992:62).
O princípio sobre o qual Doris Humphrey (1895-1958) constitui a sua
teoria de dança, o fall-recovering, descreve a trajetória do corpo que luta para
manter-se em equilíbrio, vindo a sistematizar as questões do desequilíbrio
na dança moderna. Para a coreógrafa americana, vida e dança existem entre
o ajustamento do corpo entre a posição vertical, resistência máxima à força
gravitacional, e a sua queda para a horizontalidade. O passo humano, movi-
mento mais elementar, como aponta Humphrey, é o próprio modelo de queda
e recuperação de equilíbrio: “começa-se a caminhar caindo, a fase seguinte é
sustentar o peso que cai” (Humphrey,1977). Para a coreógrafa,este “arco entre
duas mortes”, a queda e recuperação do equilíbrio, tem sua gênese na força da
gravidade, e permite ao bailarino ricas possibilidades de trabalhar ritmicamente
estas mudanças de peso e eixo do corpo (Humphrey,1977:106). A questão da
gravidade, na dança moderna, é mais do que um esforço físico e estético para
manter o corpo em equilíbrio ou fora dele. Para Humphrey, reflete o próprio
fluxo da vida, visto que o ser humano está sempre resistindo ou se entregando,
caindo e se recuperando de situações diversas, e a dança só especializa estas
relações.
É perceptível uma ampliação destas questões do equilíbrio e desequilí-
brio nas produções da dança contemporânea a partir da década de 80 do século
XX. Passando a gravitar em torno do risco, os corpos não só se permitem cair
“naturalmente” em direção ao solo, mas provocam uma nova relação com a
gravidade provocando quedas abruptas e lançando-se no espaço de forma mais
radical. Da companhia canadense “La, la Human Steps”, que praticamente in-
augurou na década de 80 novos entendimentos sobre o equilíbrio, desequilíbrio
e situações de risco na dança, ao explorar formas do corpo se portar fora do
seu eixo central, ao grupo catarinense Cena 11 Cia de Dança, hoje referencia
nacional nestas questões, inúmeros criadores e intérpretes têm refletido sobre
(Grotowski) o tema. O que Barba denominou de equilíbrio precário ou des-
equilíbrio ao olhar para a dança clássica e moderna, pode ser atualizada, em
muitas das estéticasda dança contemporânea na atualidade, enquanto uma
investigação para fora do equilíbrio.
94 Urdimento 4 / 2002
4
. Ainda na década de 40, o meio acadêmico recebeu com hostilidade as primeiras comunicações
de Prigogine sobre processos de irreversibilidade do tempo e das estruturas fora do equilíbrio.
Os processos de não equilíbrio e irreversíveis eram considerados meramente transitórios, as leis
da natureza eram ainda vistas como regidas pelo equilíbrio, como descrevia a física clássica.
Urdimento 4 / 2002 95
5
. O contato do ator Carlos Simioni com a atriz Iben Nagel Rasmussen emaparente equilíbrio,
em estado de estabilidade e de continuidade. Embora busquemos o equilíbrio como forma de
Humphrey é neste “arco entre duas mortes”, na perda e na recuperação do equilíbrio, que a vida
evolui na natureza. permanecer, de nos assegurar, é pelo desequilíbrio que nossa permanência
e sobrevivência é mantida. Nosso organismo evolui e se organiza não no equilíbrio, mas em
desequilíbrio, num dinamismo estabilizado, ou numa “unidade em movimento”. Para que uma
nova ordem possa emergir, torna-se necessário a passagem por algum estado entrópico. Tal qual
poetizava Doris
98 Urdimento 4 / 2002
Bibliografia
Introdução
1
Em “Sobre o Teatro de Marionetes”, Herick Von Kleist apresenta um texto polêmico por defender
que o belo está no artificial e no autômato. Maeterlinck, escreveu nove peças para marionetes
na perspectiva de uma estética simbolista. No estudo “Menus Propus - Le Théâtre” propôe a
supressão do ser humano da cena e em seu lugar a presença de sombras, reflexos, formas sim-
bólicas com ¬aparência de vida, sem ter vida. Jarry, ao fazer a estréia de “Ubu Rei” em Paris
Urdimento 4 / 2002 101
Na Rússia do princípio do século, este fenômeno também ganha vi-
sibilidade seja no interior da obra dos cubo-futuristas através da linguagem
Zaun2, como também em diversas expressões artísticas que recorrem às mani-
festações da cultura popular local. O teatro, e especial o teatro de Maiakóvski,
recria diferentes expressões da cultura popular russa, dentre elas o teatro de
bonecos conhecido como Petruchka, bastante vivo nas feiras e periferias das
grandes cidades.
As publicações a respeito das encenações das suas peças quase todas
dirigidas por Meyerhold3, sugerem que o uso da linguagem do teatro de ani-
mação aí contido é tão rico e instigante quanto o que se apresenta nos textos
dramáticos. Porém, os registros fotográficos e descrições sobre tais encenações
são escassos no ocidente e não são relativos a todos os textos escritos. Por isso,
os textos dramáticos são a maior referência para o presente estudo.
A análise dos textos dramáticos de Maiakóvski, sob a ótica da linguagem
do teatro de animação evidencia três aspectos fundamentais:
a) a presença de “nomes falantes” na denominação de personagens
de algumas peças, que remetem, assim, às formas de arte popular,
notadamente ao circo e ao teatro de bonecos;
b) o boneco com alegoria, onde o poeta faz hipérbole e ridicularização
de comportamentos sociais e simultaneamente sintetiza o sentimento
popular sobre personalidades russas;
c) a “humanização” dos objetos, quando realça a possível vida existente
nos objetos e a inumanidade dos homens.
em 1896 como atores usando máscaras apresenta personagens marionetizadas, e os atores com
gestualidade próxima ao do boneco. Craig, em “Da Arte do Teatro”, em 1906, propõe a substi-
tuição do ator e sua interpretação realista/naturalista pela Supermarionete: o ator inteiramente
coberto pela máscara, apresentaria a personagem sem deixar transparecer ou revelar traços da
sua própria personal idade de ator.
2
Linguagem Zaun ou Transmental, utilizada pelos artistas russos conhecidos como cubo-futuristas
que desarticula o significante do significado, que faz o desmembramento do sentido e signifi-
cado. Maiakówski, no princípio de suas atividades artísticas estava vinculado a este movimento.
3
Vsiévolod Meyerhold (1874-1940) Diretor, ator e teórico de teatro russo. Fez parte do Teatro
de Arte de Moscou onde trabalhou com Stanislavski. Em 1917, entusiasmado com a Revolução
proclama Outubro Teatral, propondo a revolução artística e política no teatro. Nesse período
organizou os famosos espetáculos de massa. Foi o grande companheiro de Maiakóvski, dirigindo
seus textos e tendo-o como diretor assistente. Em 1937, sob as ordens de Stalin, a polícia fecha
seu teatro. É preso em 1939 e fuzilado no dia 02 de fevereiro de 1940 (Hormigon, 1992, p.21-36).
102 Urdimento 4 / 2002
Teatro de animação
Os nomes falantes
4
Renata Pallottini, em seu livro, “Dramaturgia: a construção da personagem”, dedica um capítulo
ao estudo das diversas formas de caracterização da personagem dramática.
104 Urdimento 4 / 2002
5
O teatro de bonecos popular do Brasil, mais conhecido como Mamulengo, refere-se à manifestação
na região do Estado do Pernambuco. Já no Rio Grande do Norte é chamado Calunga, no Ceará é
conhecido como Babau ou Mané gostoso. No Maranhão e Paraíba é João Redondo. Existem de-
nominações diversas para essa expressão dramática popular que mantém características similares.
Urdimento 4 / 2002 105
6 Em muitos países ainda existe um teatro de bonecos popular, conhecido pelo nome da sua per-
sonagem central: VASILACHE, herói popular do teatro de bonecos Romeno, KARAGOZ, figura
central do teatro de sombras popular da Turquia e Grécia. PUNCH e JUDY, casal, personagens
centrais do teatro de bonecos inglês que aparece em Londres pela primeira vez em 1662, com o
nome de Pulcinella. TCHANTCI-IES, herói popular do teatro de marionetes da região de Liége,
Bélgica. KASPEREK, herói popular do teatro de marionetes da República Tcheca. PULCINE-
LLA, pai da maioria dos heróis populares, remanescente da commédia dell’arte. Napolitano de
origem, sabe-se que provém das farsas atelanas. KASPERLE, herói popular do teatro de bonecos
alemão, parente próximo do Pulcinclla italiano e do Punch inglês, muito popular no início do
século XIX. POLlSZYNEL, herói popular do teatro de bonecos francês, atuante desde 1630.
A partir da revolução francesa não se tem mais notícias de suas atuações. Reaparece nas ruas
e feiras de Lion e Paris a partir do século XIX substituído pelo GUIGNOL. JAN KLASSEN,
herói popular do teatro de marionetes holandês, conhecido já a partir da segunda metade do sé-
culo XVII. (Extraído de textos de Marek Wazkliel publicados nas revistas da UNIMA Espanha,
TITEREANDO, números 50 a 63).
106 Urdimento 4 / 2002
7
“Os Banhos: uma poética em cena”, a leitura desta tese é fundamental para a compreensão do
teatral de Maiakóvski. Sua importância não reside somente no fato de apresentar uma análise
exaustiva _ peça “Os Banhos”, também faz ampla contextualização do período vivido pelo poeta,
além _ trabalhar sua obra como conjunto, indissociando teatro e literatura. Destaca-se ainda a
documentação fotográfica das encenações das peças de Maiakóvski dirigidas por Meyerhold.
Urdimento 4 / 2002 107
CAMPONÊS
O trator semeava e ceifava.
Os resultados eram muito bons
[para Kulak: Seu boca-mole, não gaste suas forças. Afogue¬se.
O Kulak afoga. Balões emergem como um conjunto de bolhas. Sapado-
res jovens pescam. Eles apanham um boneco - o Kulak. Eles dilaceram
o boneco e ensacam os pedaços. Outra sapador apanha refugos de
cerca e algumas garrafas e cruzes com sua linha de pesca.
Noutro momento uma rubrica descreve a cena: “... Das vitrinas descem
e saem marchando os melhores objetos, conduzidos pela foice e martelo, o pão
e o sal, que encabeçam a comitiva, cercando-se dos portões”.
Na seqüência os objetos manifestam-se dialogando:
“...De repente,
todos os objetos fugiram,
rasgando a voz,
despojando-se de trapos de nomes obsoletos.
As janelas das casas de vinho,
como se incitadas por Satanás,
salpicaram o fundo das garrafas.
As calças fugiram
de um alfaiate desmaiado
e foram passear
sozinhas,
sem fundilhos humanos.
Uma cômoda bêbada,
de pança boquiaberta
tropeçam dormitório afora.
Espartilhos temerosos de cair
dos anúncios “Robes et Modes “, choravam.
As galochas estavam severas e apertadas.
As meias, feito putas,
flertavam com os olhos.
Eu voei feito um palavrão.
Minha outra perna ainda tenta me alcançar:
está a um quarteirão”
Urdimento 4 / 2002 115
Reflexões finais
9
Tradução de Boris Schnaiderman e Nelson Ascher.
116 Urdimento 4 / 2002
Referências bibliográficas
Resenha
ANTOINE, ANDRÉ. Conversas Sobre a Encenação. Tradução, introdução e
notas de Walter Lima Torres. Editora 7 Letras, Rio, 2001.
Edelcio Mostaço
Crítico teatral e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina
palavras do autor e sua onisciente presença - que, quando mortos, era invocada
em espírito; assim como às normas de representação dos atores, bem vigia-
das pelo Conservatório ou transmitidas de geração em geração pelo recurso
mimético do metièr; isso tudo embalado em cenários falsos, à base de telões
pintados e decorados de papier-maché, sem a menor consciência daquilo que,
na modernidade, será denominado lugar cênico. O palco era, sempre, o tablado,
uma plataforma para dois atores e uma paixão, necessário para garantir a visão
das filas mais detrás.
Desde que tais convenções foram conformadas nos séculos XVII e
XVIII, encontram amplo lastro na centúria seguinte, incorporadas e redimen-
sionadas pelos estilos vigentes, em que pesem as transformações introduzidas
pelo drama romântico e realista. De modo que, mesmo no final do século,
recorda Antoine: “lembrem-se ainda do ‘endomingamento’ das nossas atrizes.
Elas se vestem menos para determinar suas personagens do que para servir de
manequins vivos aos costureiros, às modistas” (p. 27). Uma senhora, ao assistir
a uma pantomima, comenta com o marido: “eles não estão falando porque hoje
é o ensaio geral!”, grifa o encenador, retratando não apenas o despreparo das
platéias como, sobretudo, sua desconsideração e desconhecimento em relação
ao que lhes era apresentado (p. 29).
Após esclarecer seus ouvintes de que um árduo trabalho torna-se im-
perioso, envolvendo farta equipe técnica e artística, ultimando ínfimos detalhes
do produto final antes que a cortina seja aberta, é destacada a importância do
regente de todo este processo: o encenador. Para a platéia, quanto mais perfeito
o resultado final, menos perceptível é sua figura; escamoteada nas mil e uma
soluções com que o artefato final se reveste. Mas sem ele, nada de verdadeira-
mente artístico se produz no palco.
Distinguindo o ensaiador do encenador, e este do dono de companhia,
Antoine finalmente assenta que sua tarefa possui dois planos distintos: um intei-
ramente material (a constituição do espaço cênico servindo de meio para a ação,
a marcação dos atores e o agrupamento das personagens) e uma outra imaterial
(a interpretação e o movimento do diálogo). Esta segunda, ainda menos detec-
tada pelo público, implica na orientação ideológica da montagem. É ela quem
organizará os signos, dar-lhes-á significados, executará a invisível partitura
que combina e coordena todos os ingredientes do espetáculo, conferindo-lhes
rumo e forma específica e sintética.
É esta consciência - mas principalmente o exercício desta arte - que alça
120 Urdimento 4 / 2002
No Brasil
estribada num sistema mercantil que visava quer a bilheteria quanto o conser-
vadorismo de temas, enredos e golpes de teatro que, garantidos pelo hábito,
auferissem ampla receptividade. Nosso Sarcey dos trópicos, ao defender esta
dramaturgia, apenas corroborava um gosto estético passadista e de calculados
resultados, também ele um profissional tão comprometido com a bilheteria
quanto os elencos que lhe encomendavam textos.
Trata-se menos de estética o fundo desta discussão, do que de resulta-
dos sonantes. A renovação naturalista, exatamente em sentido contrário, visava
libertar o palco das antigas normas de mimese, introduzindo narrativas ao modo
da tranche de vie, apenas pedaços de vidas comuns enredadas em situações co-
muns, cotidianas, destituídas de qualquer heroísmo ou efeito outro que não suas
angústias, mazelas, obsessões. O proletariado, o homem pobre dos mercados, as
lavadeiras, os ceifadores de trigo, contam entre suas personagens de destaque.
Compreender isto é compreender o nascimento do teatro moderno, trazido por
este drama que efetua um corte experimental na sociedade, golpe certo contra
algumas das mais estabilizadas características do aristotelismo cênico.
Esta situação torna-se ainda mais clara quando Azevedo, para defen-
der a prata da casa, cita tudo aquilo que não via em nossos palcos - o meio,
o ambiente, a educação, o estímulo, os recursos e sobretudo a disciplina -,
exatamente as marcas de trabalho do encenador francês. Ora, tudo isso é fruto
da encenação, a materialização do sentido de leitura da obra, inteiramente
evaporada na apreensão de nosso crítico a vapor.
Perdeu ele a chance de enxergar exatamente o novo, para onde apontava
a renovação cênica naturalista. E, finalmente, ao ver no Antoine ator apenas
uma repetição de si mesmo, quando não interpretava papéis elaborados “sob
composição”, Azevedo deixa de perceber outra de suas decisivas frentes de
trabalho, a desmontagem da interpretação tipificada, paradigma que sustentava
o medíocre modo de apresentação dos atores correntes.
Foi contra esta declamação exteriorizada, cheia de esgares e trejeitos,
em busca dos efeitos fáceis e repetitivos, “solicitando a todo custo a aprovação
do público por meio de macetes e truques de mètier”, que o encenador colocou-
se contra; almejando um novo intérprete em que “todo seu físico faz parte de
cada personagem representado e que, em certos momentos da ação, suas mãos,
suas costas, seus pés podem ser mais eloqüentes do que um longo monólogo;
que a cada vez que o ator é percebido sob o personagem, a fábula dramática é
interrompida” (p. 39).
Urdimento 4 / 2002 123