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A ARTE DE CRONICAR EM ANA PAULA TAVARES

por

Fernanda Antunes Gomes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Letras Vernáculas,
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Letras
Vernáculas (na especialidade de Literaturas
Portuguesa e Africanas).

Orientadora: Professora Doutora Carmen Lucia Tindó


Ribeiro Secco

Rio de Janeiro
2007
2

GOMES, Fernanda Antunes. A arte de cronicar em Ana


Paula Tavares. Dissertação de Mestrado em Letras
Vernáculas (na especialidade de Literaturas Portuguesa
e Africanas) 4 Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007, 109 p.

Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco 4 UFRJ

Professora Doutora Rita de Cássia Natal Chaves 4 USP

Professora Doutora Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva 4 UFRJ

Professor Doutor Wellington de Almeida Santos 4 UFRJ

Professora Doutora Dalva Maria Calvão da Silva 4 UFF

Resultado: Aprovada.

Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2007.


3

A Nilson Costa, por me mostrar o Amor para além


das palavras...

À Ilma de Jesus e à Maria de Fátima Antunes,


mulheres da minha vida, por me ensinarem a lutar
pelos meus sonhos.
4

AGRADECIMENTOS

A Deus, luz e proteção em minha vida.

À Professora Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, pela dedicada

orientação, desde a Graduação, pelo constante incentivo e por me guiar pelas mágicas

linhas das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Às Professoras Rita Chaves e Teresa Salgado, por aceitarem o convite para

integrarem a banca avaliadora desta dissertação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, por incentivar

a pesquisa em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

À FAPERJ, pela concessão da bolsa de Iniciação Científica, em 2003, dando início

a um grande sonho, agora realidade.

À Renata Souza, irmã escolhida pelo meu coração e que, com certeza, enxergará

seu carinho e fé por entre as linhas desta dissertação.

À Cristiane Suzart, amiga e confidente, por todas as palavras de conforto durante

as tempestades.

À Cíntia Machado de Campos Almeida, por ser um exemplo de determinação e,

acima de tudo, de poesia.

A todos os amigos que fizeram e fazem parte da minha história!

MUITO OBRIGADA!
5

SINOPSE

Estudo dos livros de crônicas O sangue da buganvília


(1998) e A cabeça de Salomé (2004), da escritora
angolana Ana Paula Tavares. Análise das características
do gênero crônica. História, memória e tradição como
marcas principais dos textos narrativos desta poeta-
cronista.
6

Quem tem um sonho não dança

Cazuza∗

O testemunho poético nos revela outro mundo dentro deste, o


mundo outro que é este mundo.

Octavio Paz∗∗


Verso da canção “Bete Balanço”. Cazuza. O poeta está vivo. São Paulo: Som Livre, 2005.
∗∗
PAZ, 1994, p. 11.
7

GOMES, Fernanda Antunes. A arte de cronicar em Ana


Paula Tavares. Dissertação de Mestrado em Letras
Vernáculas (na especialidade de Literaturas Portuguesa
e Africanas) — Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007, 109 p.

RESUMO

Nesta dissertação estudam-se os livros de crônica de Ana Paula Tavares, escritora


angolana, cuja produção poética é de grande importância para as literaturas africanas de
língua portuguesa. O trabalho se concentra na análise de O sangue da buganvília (1998) e A
cabeça de Salomé (2004), observando as características do gênero crônica nos textos da
autora. Um dos principais objetivos do estudo é indagar de que modo a linguagem, para
além de palavras poéticas, pode também criar imagens inundadas de lirismo. É intenção da
pesquisa verificar como as crônicas “flagram” os instantes históricos de Angola e como
seus textos percorrem as trilhas da memória, da tradição e da arte de contar histórias. A
leitura se apóia teoricamente em ensaios sobre memória e história, com base em Todorov,
Benjamin e Le Goff; em estudo de Hampâté Bâ sobre a tradição oral; em obras de Roland
Barthes sobre a relação entre língua, linguagem, palavra, texto e poesia, além de citar
alguns ensaios de Lúcia Castello Branco, Ruth Silviano Brandão, Rita Chaves, Laura
Cavalcante Padilha, Carmen Lucia Tindó, entre outros.
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GOMES, Fernanda Antunes. A arte de cronicar em Ana


Paula Tavares. Dissertação de Mestrado em Letras
Vernáculas (na especialidade de Literaturas Portuguesa
e Africanas) — Faculdade de Letras, Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007, 109 p.

ABSTRACT

This dissertation presents the study of chronicle books written by Ana Paula
Tavares — an Angola writer whose poetic production has a great value to both African
literature. Considering the characteristics of the genre within the author’s work, the paper
focuses on the analysis of O sangue da buganvília (1998) and A cabeça de Salomé (2004).
One of the main goals of this study is to question how the language, beyond poetic words,
can also create images drenched in lyricism. It is the research’s intention to verify how the
chronicles catch Angola’s historical moments and how the texts travel across the memory
trails, the tradition and the art of telling stories. The reading is theoretically grounded on
essays on memory and story, bases on Todorov, Benjamin and Le Goff; on Hampaté Bâ
studies on oral tradition; and on Roland Barthes’s work, which relates idiom, language,
word, text and poetry. It also mentions some essays written by Lúcia Castello Branco, Ruth
Silviano Brandão, Rita Chaves, Laura Cavalcante Padilha, Carmen Lucia Tindó, among
others.
9

ABREVIATURAS

(SB) — O sangue da buganvília

(CS) — A cabeça de Salomé


10

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...............................................................................................................11

2. CRÔNICA: UM GÊNERO “ENTRE”..........................................................................15

3. O SALTAR DAS PALAVRAS.......................................................................................37

4. TRILHAS CARREGADAS DE SENTIDO: História, Memória, Tradição..............49

4.1. O Tempo da História e a Palavra da Memória.............................................................49

4.2. O Colorir da Poesia e a Arte de Contar e Cronicar Histórias.....................................73

5. CONCLUSÃO...............................................................................................................101

6. REFERÊNCIAS...........................................................................................................105
11

1 INTRODUÇÃO

Autora angolana, reconhecida principalmente pelo valor estético de sua poesia, Ana

Paula Tavares também se entregou ao exercício da crônica em dois livros que serão corpus

desta dissertação: O sangue da buganvília, publicado em 1998, e A cabeça de Salomé,

editado em 2004.

Ao pensarmos na justificativa para a escolha de Ana Paula Tavares, vêm à tona

versos “fresquinhos” do seu último livro de poesias, Manual para amantes desesperados,

publicado em 2007:

Das duas de mim só percebeste


A louca
A voz de íntima nudez
O grito surdo da fêmea

Das duas de mim


Só percebestes a outra
A dos ventos soltos
Cabaças no ventre
E um demônio
Nos cabelos

Das duas de mim


Só percebestes a sombra
A embriaguez do vinho
O brilho da palavra
O sonho

Agora que um mapa estranho


Traçou na face os caminhos da santa
O sonho apareceu despido
Ainda voltas
De vez em quando
Com palavras da louca 1
1
TAVARES, Paula. Manual para amantes desesperados: poemas. Luanda: Editora Nzila, 2007, p. 24.
12

Há no poema um discurso pela busca da “face outra”, ou melhor, para que o outro

encontre, perceba as duas mulheres que contracenam nesse corpo de possibilidades. Assim,

é também a nossa busca por essa “outra” maneira de ler Ana Paula Tavares: desejamos

descobrir a cronista sob a face de poeta e a poeta escondida nas palavras da cronista. Suas

poesias, estudadas por tantos, inclusive por nós, em pesquisas acadêmicas da graduação, já

nos haviam seduzido. O jogo de imagens e palavras, a procura pela voz feminina do desejo,

o erotismo da linguagem e da tradição: tudo isso encanta todos que estudam a poesia da

autora.

Resolvemos, então, enveredar por caminho outro, o da cronista. Interessamo-nos em

saber como Paula Tavares estabelece uma relação com esse gênero que também se quer

outro ao ser “entre”. Buscaremos respostas às seguintes perguntas: Quais as trilhas

perseguidas pela cronista? Quais as características dessa cronista que sempre percorreu o

território poético? Nessa aventura de linguagem, nossa intenção é investigar as relações da

poesia com as crônicas de Paula e indagar de que modo a linguagem, para além de palavras

poéticas, pode também criar imagens inundadas de lirismo.

Analisaremos como a crônica “flagra” acontecimentos históricos ocorridos em

Angola e como a cronista “repassa” esses instantes flagrados para seus leitores.

Estudaremos o viés da memória não só como meio de “revisitar” o passado, mas como

forma de narrar as lembranças, as experiências, a tradição e as histórias oriundas de outras

histórias, leituras de outras leituras e do ouvir atento da cronista.

Investigaremos como as marcas da crônica se apresentam nas narrações da autora

que também experimenta o caráter “entre” desse gênero, explorando tanto as virtualidades

dessa forma de narração, como suas possibilidades de aproximação com o leitor.


13

Nosso tecer teórico contemplará leituras de Todorov, Le Goff, Benjamin, que

refletem acerca do tempo, da história, da memória. Adauto Novaes, Ecléa Bosi, Alfredo

Bosi também enveredaram pelos caminhos mnemônicos e históricos, mostrando-se

necessários ao nosso estudo.

Recorreremos também a Roland Barthes sobre a relação entre língua, linguagem,

palavra, texto e poesia, sendo impossível deixarmos de lado as importantes reflexões de

Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão acerca do corpo do texto.

Os escritos de Amadou Hampâté Bâ, sobre a tradição oral e a força da palavra

também se inscreverão em nossa dissertação, além de lançarmos mão de alguns ensaios de

Rita Chaves, Laura Cavalcante Padilha, Carmen Lucia Tindó, entre outros. Nosso objetivo

maior, porém, é analisar as crônicas de Ana Paula Tavares, fruindo o prazer de desvendar o

jogo de suas palavras.

Não temos a pretensão de estudar todas as crônicas de cada livro da autora, mas

procuraremos percorrer o gozo da arte de cronicar de Ana Paula Tavares, cujas crônicas se

querem textos e corpos desejados e desejantes. Buscaremos na escritura de Paula provar,

afinal, o que nos ensina Barthes: O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que

ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura (BARTHES, 2004, p. 11).

Para chegar a esse ensinamento e demonstrar os traços característicos do “espaço

entre” em que se convertem os textos das crônicas de Ana Paula Tavares, dividimos nossa

dissertação nos seguintes capítulos: no primeiro, analisaremos o caráter “entre” do gênero

crônica, através de diversos textos das literaturas brasileira e africanas de língua

portuguesa; no segundo, apresentaremos características gerais da poesia e da crônica de

Ana Paula Tavares; em seguida, mostraremos como suas crônicas percorrem as trilhas da

memória, da história, da poesia e da tradição de contar outras histórias.


14

Através da arte de cronicar de Ana Paula Tavares, procuraremos apreender uma

sociedade que quer (re)erguer a coluna vertebral e continuar a contar e cantar suas

tradições, mulheres, sonhos, desejos e histórias por meio das palavras poéticas de seus

artistas, verdadeiros griots de sua terra.


15

2 CRÔNICA: UM GÊNERO “ENTRE”

A crônica não quer abafar ninguém, só


quer mostrar que faz literatura
também.

Joaquim Ferreira dos Santos∗

Vejamos o significado da palavra crônica no Dicionário Aurélio da Língua

Portuguesa: 1. Narração histórica, ou registro de fatos comuns, feitos por ordem

cronológica. 2. Pequeno conto de enredo indeterminado. 3. Texto jornalístico redigido de

forma livre e pessoal, e que tem como temas fatos ou idéias da atualidade, de teor artístico,

político, esportivo, etc., ou simplesmente relativos à vida cotidiana (HOLLANDA, 2002,

CD-ROM).

Narração histórica, texto jornalístico, pequeno conto de enredo indeterminado —

escolhemos essas definições do Dicionário Aurélio para iniciarmos nossa reflexão acerca

desse gênero e ressaltamos que, ao longo da nossa pesquisa, percebemos que muitas

tentativas de explicação são dadas por intermédio de perguntas: O que é a crônica? De

onde ela nasceu? Quais são suas características? Esse gênero pertence ao Jornalismo ou à

Literatura? Nenhuma das respostas, porém, é definitiva, o que revela ser a crônica um

gênero polêmico que, quando se faz assunto, sempre gera uma discussão a mais. Assim,

observamos que falar de crônica já é um ótimo motivo para fazer nascer uma crônica.

Este capítulo não tem a pretensão de lançar mais uma explicação que (in)determine

as questões acima levantadas, mas procurará tecer reflexões sobre a origem, as

características da crônica, fazendo também comentários relativos ao gênero em questão.



SANTOS, Joaquim Ferreira dos. “Introdução”. In: As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007, p.15.
16

Procuraremos, aqui, entretanto, ser como uma crônica: “um leve tiro certeiro”, pois

desejamos proporcionar uma leitura suave como as águas de um riacho, porém

determinante e determinada no seu assunto principal que, no nosso caso, é a crônica. Após

tentarmos definir esta forma narrativa, exemplificaremos com alguns cronistas brasileiros e

africanos.

Muito nos identificamos com certos autores de crônicas nesses tantos meses de

estudo. A arte de escrever é realmente admirável, contudo, muitas vezes, ingrata. Quantas

noites, em frente ao computador, “mil” idéias e... nenhuma linha escrita. O primeiro

parágrafo do texto “A última crônica”, de Fernando Sabino, retrata essa relação com o

verbo escrever e nos traz um certo “ar de conforto”, pois a identificação é imediata:

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do
pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um (SABINO, 2006, p. 37).

Lendo esse pequeno trecho do seu fiar narrativo, notamos que o cronista padece de

um momento “pré-crônica” e que o registro de fatos comuns — uma das definições para a

crônica encontrada no Dicionário — tanto necessita de inspiração, quanto de transpiração.

Isso ocorre, principalmente, com a crônica diária, aquela que faz com que o leitor troque o

simples “cafezinho com pão” de todas as manhãs pelo “cafezinho com crônica”.

Dessa pressa ingrata vive a crônica, o que não impede, entretanto, que ela se torne

uma “séria prosa fiada”. Vinícius de Moraes, no livro de crônicas e poemas Para viver um

grande amor, mostra que, ao contrário do que possa parecer, o texto redigido de forma livre

e pessoal (lançamos mão de mais uma das definições do Dicionário Aurélio para o verbete

crônica), que tanto nos proporciona o prazer da leitura, não é tarefa fácil:
17

Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a
prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e
situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa
fia mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da
janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no
noticiário matutino, ou de véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa
injetar um sangue novo (MORAES, 2005, p. 17).

Percebemos que o escritor de crônica não dispõe da mesma liberdade ficcional dada

a um romancista. É necessário que o cronista mantenha o equilíbrio entre o não-ficcional e

o ficcional. Afinal, parafraseando as palavras de Antônio Dimas (DIMAS, 1974, p. 49), a

matéria das crônicas é o dia-a-dia. Nem sempre o cronista tem o tempo necessário para

escrever ou reescrever seu texto. A efemeridade inerente às crônicas é herança de seu

principal veículo difusor: o jornal. Como esse nasce e morre em 24 horas, o cronista que

publica seus textos nos periódicos, necessita, como mostrou Vinícius de Moraes, “sentar-se

diante de sua máquina” e, para a felicidade de seu fiel leitor, cumprir a arte de cronicar.

Dizemos felicidade, pois a crônica aproxima (e muito!) o cronista do leitor. Aquele

que lê crônicas sempre tem a sensação de que está a conversar com um amigo próximo. Há

uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade, ensina Jorge de

Sá (SÁ, 2005, p. 11). Assim como no romance, a matéria-prima da crônica é a palavra. O

gênero em questão, todavia, busca, através da palavra suave, breve, subjetiva, chegar bem

perto do leitor e esse, por sua vez, deixa aproximar-se. Vejamos um trecho de “Crônica”, de

Ferreira Gullar:

Abro esta crônica como uma janela – Bom dia – e nela me debruço para conversar
contigo, leitor casual. E nela me debruçarei, se Deus quiser, todas as quintas e
domingos, quer chova, quer faça sol. Essa disposição evidentemente não é minha,
que preferiria tomar o calor ou a chuva por desculpa para adiar a conversa...
(GULLAR, 2004, p. 15).

Uma reciprocidade marca o início da narrativa de Ferreira Gullar. Uma ação mútua

é realizada entre dois corpos: o do leitor e o do autor. O caráter intimista é tão forte que o
18

poeta-cronista diz, como para um amigo: Bom dia. Deixa claro, sem pormenores, que

deseja conversar com o leitor. “Fala” para um leitor casual, pois sabe que esse “amigo”

também o é de tantos outros cronistas. Entretanto, a crônica é democrática e lá vai Ferreira

Gullar a se entregar ao prazer desse gênero, quer chova, quer faça sol.

É claro que observamos que tal prazer anda lado a lado com as dificuldades do

cronicar: a pressa da escrita, a efemeridade do texto, o compromisso diário com o leitor e

com o circunstancial, etc. E, nesse texto que se quer ora jornalístico, ora literário (muito

mais literário do que jornalístico, na nossa opinião), Gullar lança mão da metalinguagem

para navegar entre as fronteiras tão tênues desse gênero, como um aluno a indagar: O

aprendiz se pergunta que diabo é a crônica e não sabe responder (Ibidem, p. 15).

Deixando a deliciosa crônica de Ferreira Gullar de lado (só por alguns instantes, ou

melhor, por algumas linhas), reforçamos essa relação íntima entre o cronista e o leitor,

analisando um dos caminhos narrativos de Mário Prata. Em 2004, esse autor assinou um

contrato com uma emissora de televisão e anunciou aos leitores que ficaria, por um tempo,

sem escrever suas crônicas semanais. Nessa despedida2, através da crônica “Até mais”, faz

questão de ter o leitor como protagonista e diz que gostava quando sentia que estava

falando no seu ouvido, como se estivesse ao seu lado. Mostra que o escritor não existe sem

o leitor, principalmente neste diálogo chamado crônica. Se você pensava no que eu iria

escrever, do lado de cá, eu ficava pensando no que é que você queria ler, ressalta Mário

Prata. E como acontece nas relações humanas e nas conversas com um amigo, a discussão

sempre é um “tempero a mais”. No caso dos cronistas, a discussão é sempre uma crônica a

mais e o autor registra que algumas vezes nossas idéias não bat[em].

2
Disponível na Internet via www.marioprata.com.br (consulta feita em 22/10/2006, às 21:40h).
19

A crônica de Rubem Braga, “A borboleta amarela” (BRAGA, 1979, pp. 167-170),

enfatiza também essa relação de intimidade entre autor e leitor que o gênero em questão

tanto proporciona. O cronista leva aquele que lê a seguir o rastro de uma borboleta. Não

qualquer borboleta, mas uma amarela. Seduzido, o narrador conduz a um belo passeio por

ruas e paisagens do Rio de Janeiro: ruas México e Graça Aranha, avenida Rio Branco,

Biblioteca Nacional, floresta da Tijuca.

O cronista admite que arrastou o desprevenido leitor ao longo de três crônicas, de

nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. E mais: mostra que o leitor se deixou guiar e

participou ativamente desse tecer narrativo, demonstrando sua expectativa em relação ao

rumo tomado por tal inseto. Braga conta que recebeu telefonemas em que as pessoas

diziam: eu só quero saber o que vai acontecer com essa borboleta. Percebemos, então, que

o caráter intimista da crônica e a proximidade desta com o seu leitor são ingredientes

essenciais dessa forma narrativa.

Não é à toa que Machado de Assis, em “O Nascimento da crônica”, mesmo

admitindo não saber precisar o ano em que a crônica nasceu, afirma que esse gênero

narrativo tem grandes chances de ter surgido em meio ao papear de vizinhas:

Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a
probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas,
entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia.
Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dizia que não pudera comer
ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopada do que as ervas que comera. Passar
das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito
morador, e ao resto, era coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem
da crônica (ASSIS, 2007, pp. 27-28).

Segundo Machado, a crônica nasce de um bom papo que se pretende trivial, mas

que muitas vezes vai além. Passa do jantar regado a ervas ao plantador destas. Do semeador
20

à sua vida amorosa. Enfim, pode ir da trivialidade a uma conversa mais séria, porém

sempre regada pela suavidade e naturalidade de um “papo descompromissado”. É isso que

afirma Antonio Candido (CANDIDO, 1992, p. 20): a crônica pode dizer as coisas mais

sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada.

Através dessa aparente conversa fiada, o narrador do cotidiano muitas vezes se

mostra crítico e preocupado com fatos históricos relativos ao momento de sua criação. A

relação da crônica com o tempo já vem de sua etimologia grega: Khronos – tempo

(COUTINHO, 2003, p. 120). Registrar o circunstancial: esse é um compromisso assumido

pelas crônicas, como nos ensina Carlos Reis, no artigo “O tempo da crónica”:

(...) essa dimensão temporal é aqui fundamental: ela refere-se não tanto à dinâmica
interna do texto cronístico – que não obedece, neste aspecto e forçosamente, ao
mesmo movimento de desenvolvimento temporal que encontramos num conto ou
num romance – mas antes à relação da crônica com o seu tempo, com o movimento
da história ainda em discurso, às vezes até com as incidências, com as figuras, com
os conflitos e com as motivações da pequena história quase sempre esquecida pela
historiografia como ciência e repositório da memória colectiva (REIS, 2005, p. 12).

Essa relação da crônica com o seu tempo, como movimento da história, indica que

o gênero pode ir além da trivialidade. A crônica “É verdade?”, de Carlos Drummond de

Andrade, mostra-se atual e crítica ao revelar um diálogo entre um Governador e um

aparente jornalista acerca da prática do nepotismo. O pretenso repórter indaga sobre tantas

nomeações em poucos meses e enfatiza que a fatia maior coube à família de V. Exa.

(ANDRADE, 1998, p. 177). Ao longo dessa conversa, é perguntado ao político se as

condições financeiras do Estado suportam o número de contratações e o mesmo responde:

— Que é que tem as condições? A prova que elas resistem é que o meu sucessor fez
o mesmo que eu e o Estado não fechou. Então você acredita que eu ia colocar minha
21

gente em qualquer empresa particular por aí, sem garantia de solvabilidade? Pensa
que sou algum palhaço? (Ibidem, p. 178).

Com um toque de humor (mais uma característica de grande parte das crônicas) e

com a leveza da arte de cronicar, Drummond estabelece um diálogo que assume um caráter

reflexivo, levando o leitor a especular acerca das questões políticas de seu país. O título da

parte em que o texto “É verdade?” está inserido denomina-se “Política mais ou menos”,

sugerindo que a crônica “pode” saltar o banal, mas nem sempre o deve fazer, pois, se esse

gênero, por um lado, deseja provocar a nossa reflexão, ele sabe que nunca deve dispensar

sua característica básica: a leveza de uma boa conversa.

Ao jornal cabe divulgar acontecimentos, notícias de seu tempo acerca das pessoas e

da sociedade. O objetivo principal desse veículo de massas é “comunicar”, deixando o

leitor a par dos fatos globais. Para além da comunicação, a crônica, muitas vezes, aprofunda

a notícia, deflagra o acontecimento e até abre as cortinas para o que seria coadjuvante no

episódio principal. Disse Rubem Braga que os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma

coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida... (BRAGA, 1979, p. 149). E é essa a

protagonista desse gênero narrativo.

A crônica também sabe “falar” de coisas sérias, mas insistindo no seu papel da

simplicidade, brevidade e graça, afirma Antonio Candido (CANDIDO, 1992, p. 19). E

mais: ele mostra que o fato de a crônica não ser considerada “séria” é ótimo, pois seu

caráter persuasivo e sedutor se dá justamente nessa aparente superficialidade:

Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma idéia falsa de
seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que
conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se
diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para
mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira faz
amadurecer a nossa visão das coisas (Ibidem, p. 19).
22

O texto “Crônica”, de Ferreira Gullar (GULLAR, 2004, p. 15), anteriormente

citado, também abre-nos a janela para a seguinte discussão, já iniciada por Candido: será

que a crônica deve assumir um caráter cheio de seriedade? Será que só as coisas sérias

devem ser levadas a sério? Ele nos alerta:

Dizem que agora a crônica é um gênero seríssimo, e isso me amedronta. Mas tudo
ficou, nesses últimos anos, extremamente sério: o próprio humor é olhado hoje com o
maior respeito. Isto é bom? É mau? Não sei. O que sei é que quanto mais sérios
formos, mais tristes ficamos, e é preciso, senhores, deixar na praia uma faixa,
pequena que seja, para o frescobol. Sim, porque há também os profissionais do verão
que vão para a praia e ali se sentam, gravemente, como se cumprissem uma
obrigação. E cumprem mesmo (Ibidem, pp. 15-16).

E é essa faixa na areia da praia que a crônica deseja deixar. Quer cumprir o seu

papel de “noticiar a vida”, como demonstrou Rubem Braga, a partir da sua brevidade e

leveza. Quer mostrar-se comprometida com o seu tempo, reflexiva, mas quer que esse

comprometimento se dê por intermédio de um “papo fiado à beira da praia”.

Antônio Dimas, no artigo “Ambigüidade da crônica: literatura ou jornalismo?”

(DIMAS, 1974, p. 49), diz que se a literatura não precisa em princípio de nenhum

compromisso com a realidade histórica, o mesmo já não pode ocorrer com a crônica, cujo

motor de arranque é o cotidiano. O compromisso com a realidade histórica pode não fazer

parte da literatura, mas o lirismo e a poeticidade sim. E disso as crônicas, ou melhor, os

prosadores do cotidiano entendem.

Voltemos à crônica “Os jornais”, de Rubem Braga. Nela, o autor aponta claramente

a diferença da linguagem jornalística para a linguagem poética. Esta consegue unir

simplicidade e lirismo, enquanto aquela é objetiva, conteudista e técnica. Ele diz que nunca

um jornal publicaria uma manchete do tipo Durante os três primeiros anos o casal viveu

imensamente feliz (BRAGA, 1979, pp. 148-149). Ao contrário, ele mostra que a impressão
23

que a gente tem, lendo os jornais (...), é que “lar” é um local destinado principalmente à

prática de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala (Ibidem, p. 149).

A crônica não deseja aliar-se a essa “prática uxoricida” e, sim, se entregar a uma

sensibilidade especial que possa fazer com que ela capte com maior intensidade instantes

da vida diária que escorrem por entre nossos dedos.

Rubem Braga, na crônica “O pavão” (BRAGA, 1979, p. 237), declara que este é o

luxo do artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. Isso ele diz ao

dissertar sobre o luxo do pavão. Este animal, explica o prosador, não possui todas aquelas

cores na pena. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se

fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas, afirma. E é com o

mínimo de elementos, no caso de palavras, já que essa crônica é curtíssima, que o autor

apresenta toda a simplicidade do amor e mais: o gozo de cronicar.

Jorge de Sá (SÁ, 2005, p. 48) ressalta que o cronista não se limita a escrever o

objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando a sua essência

(...) É preciso ir mais longe (...) buscar exatamente aquilo que caracteriza a poesia: a

imagem. Drummond, em “Assiste à demolição” (ANDRADE, 1998, p. 74), busca esse

sentido profundo e faz com que o leitor mergulhe no seu tecer poético-narrativo, recriando

e examinado o objeto na crônica descrito:

Começou a demolição. Passando pela rua, ele viu a casa já sem telhado, e operários,
na poeira, removendo caibros. Aquele telhado que lhe dera tanto trabalho por causa
das goteiras, tapadas aqui, reaparecendo ali. Seu quarto de dormir estava exposto ao
céu, no calor da manhã. Ao fundo, no terraço, tinham desaparecido as colunas da
pérgula, e a cobertura de ramos de buganvília – dois troncos subindo do pátio lá
embaixo e enchendo de florinhas vermelhas o chão de ladrilho, onde gatos da
vizinhança amavam fazer sesta e surpreender tico-ticos (Ibidem, p.74).
24

Notamos que, como enfatizou Jorge de Sá (SÁ, 2005, p. 75), mesmo que o narrador

não se coloque na primeira pessoa e se dirija claramente a um interlocutor, a idéia de

diálogo deve permanecer. E, nessa crônica de Drummond, isso acontece. Ele convida o

leitor a dialogar, a discutir acerca do que representa aquela imagem da demolição. Teria o

morador se desesperado perante a perda de seu lar? Teria sido justa aquela demolição?

Drummond, nesse texto, guia o leitor pelas suas veredas narrativas para levá-lo à

seguinte questão: não devemos nos prender à ilusão de permanência (ANDRADE, 1998, p.

76). Para defender tal posição, descreve o morador que, forte e tranqüilo, assiste ao

desmoronamento de sua moradia:

E não sentiu dor vendo esfarinharem-se esses compartimentos de sua história


pessoal. Nem sequer a melancolia do desvanecimento das coisas físicas. Elas tinham
durado, cumprido a tarefa. Chega o instante em que compreendemos a demolição
como um resgate de formas cansadas, sentença de liberdade. Talvez sejamos levados
a essa compreensão pelo trabalho similar, mais surdo, que se vai desenvolvendo em
nós. E não é preciso imaginar a alegria de formas novas, mais claras, a surgirem
constantemente de formas caducas, para aceitar de coração sereno o fim das coisas
que se ligaram à nossa vida (Ibidem, p. 75).

Nessa poesia que se quer prosa, na verdade uma crônica poética, Drummond

defende o valor da vida e a busca pelo novo, pela mudança que deve todo ser humano

almejar. A crônica também é assim: não se quer caducar, não quer ser uma forma cansada e

procura a sentença de liberdade, recitada por Drummond. Talvez por isso, permita-se

flutuar pelas formas dos gêneros literários.

No livro A companheira de viagem, de Fernando Sabino, há uma nota inicial,

assinada pelo autor, que mostra a confluência entre a crônica e o conto. Sabino diz que,

apesar da designação de crônicas, seus textos apresentam tratamento de ficção

característico dos contos e das histórias curtas (SABINO, 1965, p. 5).


25

No texto “Cem cruzeiros a mais” (Ibidem, p. 28), percebemos essa ambigüidade da

crônica. A narrativa descortina a via-crúcis de um funcionário que tenta devolver cem

cruzeiros a mais que recebeu erroneamente ao retirar seu pagamento no Ministério. A

burocracia é tamanha! O homem tenta resolver seu problema em vários departamentos e

com vários funcionários, mas esbarra sempre na hierarquia pública. Resolve, então, “furar”

o protocolo: o honesto cidadão dirigiu-se ao guichê onde recebera o dinheiro, fez da nota

de cem cruzeiros uma bolinha, atirou-a lá dentro por cima do vidro e foi-se embora

(Ibidem, p. 30).

Nessa narrativa, depreendemos a construção de um diálogo entre personagens

ficcionais, num tempo também ficcional. A crônica desfaz os laços com o circunstancial,

com a realidade. Há uma só ação, um só foco temático, como é comum aos contos. O

narrador não se apresenta em primeira pessoa, como é freqüente nas crônicas e há uma

perspectiva do cronista de distanciar-se do narrador, uma vez que na crônica a voz do

narrador é a voz do cronista, explica Jorge de Sá (SÁ, 2005, p. 29). O dialogismo não é

feito de forma direta. Há um diálogo nas entrelinhas, o que leva o leitor a uma reflexão.

Afrânio Coutinho afirma que é mesmo da própria natureza da crônica a

flexibilidade, a mobilidade, a irregularidade (Coutinho, 2003, p. 133). Notamos que a

crônica é um gênero “entre”: entre o jornalismo e a literatura; entre a crônica e o conto. E

realmente acreditamos que esse gênero se quer “entre”, porém, sempre entre amigos,

podendo, assim, preservar sua característica maior: a informalidade.

Ferreira Gullar, em “Crônica”, declara como os cronistas acrescentam à prosa do

cotidiano o lirismo, o humor, o drama, os elementos ficcionais. Mostra que, por ser esse

gênero “entre”, a crônica, geralmente, deixa uma fresta aberta, enriquecendo a arte de
26

cronicar, ou melhor, tornando possível o prazer de quem deseja percorrer o tecer narrativo e

lírico desse tipo de texto. Vejamos as palavras de Gullar:

Mas a janela está aberta e o dia balança suas folhas e suas toalhas nesta manhã de
Ipanema. Rubem Braga meteu na crônica as flores, as borboletas e, mais
recentemente, um pavão. Bandeira e Drummond, uma ironia fina, alegre e triste,
enquanto Fernando Sabino a tornou veloz e estonteante, cheia de casos, tudo com um
delicioso ar de mentira. São mestres, como outros, e os campeões da crase quando
erram ditam lei. Quer dizer, não erram. Tudo o que o velho Braga escreve é crônica!
Fico bobo de ver. E os outros também: no barbeiro, na praia, na própria Câmara
Federal, descobrem assunto, coisas que a gente lê como se comesse (GULLAR,
2004, p. 15).

A crônica é vento a balançar folhas pela manhã, contudo alguns escritores fazem

com que ela agite a vegetação das árvores diariamente. E mesmo não sendo escrita para

almejar a posteridade, às vezes deseja “saltar” o caráter passageiro dos jornais, rumo ao

ritmo duradouro dos livros. Dessa forma, ensina Antonio Candido que a crônica consegue

quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo (...) e quando passa do jornal ao

livro, verificamos meio espantados que sua durabilidade pode ser maior do que ela própria

pensava (CANDIDO, 1992, pp. 14-15).

Dos jornais para o livro, a crônica supera a transitoriedade e deixa de ser um mero

painel fragmentado das páginas jornalísticas, tornando-se eterna. Cabe ao autor de crônicas

selecionar com arte seus melhores textos, atribuindo-lhes uma seqüência temporal e

temática.

Segundo Jorge de Sá, quando a crônica se quer livro, a atitude diante do texto é que

muda (SÁ, 2005, p. 85), pois o público leitor será mais seletivo e não mais tão apressado

quanto é o dos jornais. Isso faz com que os leitores saboreiem as crônicas num tom mais

reflexivo e intenso, permitindo novas possibilidades interpretativas a partir de cada

releitura (Ibidem, p. 86).


27

Fadada ao esquecimento ou não, a crônica, mesmo que por um instante, nos faz

pensar, refletir, discutir, dialogar com o nosso tempo. Há quem considere esse gênero

menor. E, “graças a Deus”, isso acontece, conforme a opinião de Antonio Candido:

(...) Parece mesmo que a crônica é um gênero menor.


“Graças a Deus” – seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E
para muitos pode servir de caminho não apenas para vida, que ela serve de perto, mas
para a literatura (...) Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do
ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de
todo o dia. Principalmente porque ela elabora uma linguagem que fala de perto ao
nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização
lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem
fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição (CANDIDO, 1992,
p. 13).

Autores africanos como Ernesto Lara Filho, Mia Couto, Manuel Rui, Germano

Almeida, José Eduardo Agualusa, Arnaldo Santos, entre outros, também lançaram mão

desse “gênero menor” e o tornaram gigante a partir de suas sensibilidade e poeticidade.

Apreciemos, então, alguns exemplos.

No prefácio do livro Crónicas da Roda Gigante, de Ernesto Lara Filho, aprendemos

sobre a história da crônica em Angola através das linhas desenhadas por Artur Queiroz.

Vejamos o que suas palavras nos ensinam:

No período áureo das permutas com o interior e da escravatura, surge no país uma
imprensa combativa, na qual se destacaram vários angolanos como cronistas. Já no
período da queda da burguesia negra, essa imprensa ganha ainda mais combatividade
— perdiam-se rapidamente os privilégios — e surgem os ideais nacionalistas em
grande força. Os angolanos oriundos da burguesia, agora lançados no escol de
funcionários da administração colonial, não perdem a sua oportunidade de se
mostrarem alfabetizados, em oposição aos colonos que, na sua esmagadora maioria,
eram iletrados, não poucos criminosos de delito comum (alguns, presos políticos) e
por isso mesmo deportados. Surgem grandes jornalistas e grandes cronistas negros. A
crónica foi muito cultivada nesta época. E continuou a sê-lo ao longo dos tempos,
praticamente até a independência do país (QUEIROZ, 1990, p. 7 – prefácio).
28

Constatamos, assim, que a crônica se faz presente nas literaturas africanas, sendo

mais uma importante ferramenta da palavra literária, fonte de conscientização e beleza

estática. Artur Queiroz destaca o nome de Ernesto Lara Filho entre os grandes escritores da

crônica angolana, afirmando que o autor foi um esbanjador de talentos e que em seus textos

havia sempre o ideal nacionalista, embora por vezes de uma forma confusa (Ibidem, p. 8).

Multifacetada foi sua trajetória literária, vivendo, como as crônicas, um espaço

“entre”. Ernesto esteve entre o céu e o inferno, entre o sucesso e o desemprego, entre as

crônicas e a boemia, como ressalta o prefácio de Artur Queiroz. Porém, como este

destacou, Ernesto Lara Filho, foi um dos mais importantes poetas angolanos de todos os

tempos, foi indubitavelmente o maior cronista dos anos 50 e 60 (Ibidem, p. 16).

Ao discorrer acerca de sua cidade natal, na crônica “Mukanda de amor para

Benguela” (LARA FILHO, 1967, p. 10), Ernesto Lara Filho percorre as trilhas

memorialísticas de seu passado, reinventando pela escrita o lugar onde nasceu e, como

afirma nessa crônica, onde deseja ser sepultado. Por meio de seu discurso lírico, saúda o

350º aniversário de sua terra e alerta para o fato de que sua crônica foi escrita com os

farrapos da saudade a tremular nos bicos mais altos do coração, com as reminiscências da

infância a reluzirem nos quintalões da nossa memória.

Apaixonado por sua terra, Ernesto Lara Filho sempre demonstrou seu apego a

Angola por meio de suas narrativas que espelharam a maneira de falar, pensar e sentir de

tantos outros irmãos, pois foi ele o primeiro angolano que conseguiu levar para as

primeiras páginas dos jornais a linguagem e a língua dos angolanos (...) escreveu sempre

como um angolano. Ou melhor: à sua maneira de ser angolano (QUEIROZ, 1990, p. 15 –

prefácio).
29

Em Crónicas da Roda Gigante, Ernesto defendeu também a importância da leitura e

da literatura. Demonstrou saber que, para além de uma ferramenta crítica, o texto, no caso

suas crônicas, pode também transmitir um pouco de tranqüilidade e leveza ao dia-a-dia de

seus leitores:

(...) O jornal está pronto. Vai seguir, apanhando comboios, aviões, camionetes,
carros, a pé, enfim, por todos os meios de transportes, para os quatros cantos de
Angola. Vai levar aos Chefes de Posto, isolados, das margens do Cunene a
mensagem de alegria, de vida. Vai levar aos comerciantes do Cubango, aos homens
que trabalham no mato, aos capatazes, da Ganda e Cubal, um pouco de leitura, de
paz e sossego e de interesse pelas coisas de espírito (LARA FILHO, 1990, p. 25).

Era por meio do jornal que Ernesto irradiava seu labor cronístico, levando aos seus

leitores, principalmente aos mais distantes, um pouco do sabor, do cheiro e do aconchego

de sua terra natal. Essa proximidade, proporcionada pela crônica, levava, pela leitura, ao

coração de todos um pouco de conforto, encontrado no “papo-fiado” sobre a não vocação

de Ernesto para o trabalho, conforme ele mesmo afirmava: (...) não aprecio o trabalho.

Trabalho porque preciso de trabalhar para ganhar a vida. O pão. Mas, repito, não gosto

de trabalhar. (...) Eu gostava de ser lírio de campo (Ibidem, pp. 29-31). Consola-se o

cronista, entretanto, ao saber que, por meio de suas crônicas, tinha com quem dividir o

amor por Angola, por sua terra:

(...) Depois de Paris e Rio de Janeiro, depois de os visitar, irei morrer ao Hawai. Mas
ao «meu Hawai». Vocês não o conhecem? Fica aí a alguns quilómetros da cidade de
Luanda e algumas milhas da Ilha dos Padres. Também tem flores e coqueiros e
raparigas bonitas para a gente namorar. E depois fica perto de Luanda. Desculpa ter
ido tão longe buscar o assunto da crónica. (...) É assim. A gente bem procura libertar-
se. Mas quando menos dá por ela, lá vem o microbiozinho angolano roer as entranhas
de quem lá nasceu (Ibidem, pp. 34-35).
30

Descansamos ao compartilhar, por intermédio do cronicar “ernestiano”, os

domingos de Angola, cheios de paladar, cores e tradições de seu povo: Para mim, domingo

de Angola é paraíso. É um céu. Colorido. É «moamba» de peixe ou caril de galinha de

Quilengues. Domingo de Angola não tem rival no mundo. Começa na praia e termina na

sesta (Ibidem, p. 35).

Sentimos alívio ao detectar que, apesar das tristezas vividas pelos povos de Angola,

a alegria, marca inerente aos cidadãos desse país, faz com que a esperança seja renovada a

cada dia. Ernesto Lara Filho fez questão de retratar, em uma de suas crônicas, essa forma

de ser angolano:

A alegria é tradição. Só tem alegria o homem que tem dívidas. Por isso há em Angola
tanta gente alegre. Só tem alegria o desempregado, o infeliz, o ajudante da carrinha.
Que vêem na alegria a única resposta que podem dar ao mundo no meio de toda a
sorte dos seus azares. (...) Só tem alegria o génio que descobre no bolor imundo o
milagre da penicilina, o músico que faz a sinfonia na água-furtada e o guarda-
nocturno que abre a porta ao ébrio infeliz (Ibidem, p. 43).

O cronista também confessou seu amor ao Brasil e aos nossos escritores, tais como

Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Rubem Braga entre outros, cujos textos encantaram

Ernesto e fizeram dele um brasileiro também, como comprova o seguinte trecho: Sou uma

espécie de brasileiro. (...) Um português de Angola, que conhece melhor Érico Veríssimo,

José Lins do Rego e Graciliano Ramos do que Eça de Queiroz e Aquilino Ribeiro (Ibidem,

p. 61).

Num discurso altamente poético, apimentado pelo senso crítico, Ernesto Lara Filho

— e sua alquimia de cronicar — cria um estilo prenhe de “miscigenação auriverde” para

presentear a bandeira brasileira, a nação Brasil:


31

Na monumental floresta de cimento armado que é a vossa cidade, há-de florir uma
civilização. A beleza, a humildade, de um azulejo português.
Isso o que vos ofereço. É isso que vos dedico. Sinceramente. Humildemente. Nessa
data. Nessa hora. Azulejo de tons azuis, quase irreais, como o nosso, o vosso céu. (...)
Terás uns laivos de tristeza, de saudade, a saudade pungente das nossas letras de
fado. Saudade dos entes queridos. Saudade.
Tingido do sangue comum que verteu nas nossas costas, no martírio dos nossos
escravos dos porões das caravelas. Sangue dos nossos irmãos-negros, dos nossos pais
comuns, dos nossos soldados, das nossas noivas. Porque afinal, todos nós ajudamos o
Brasil a crescer.
Vai também um pouco do verde claro das nossas florestas. O perfume das nossas
flores de café. Para colorir a vossa bandeira.
O amarelo ouro da nossa amizade. Amizade cor de marfim-velho. Fraternidade
(Ibidem, pp. 62-63).

De crônica a crônica, ou melhor, de azulejo a azulejo, Ernesto Lara Filho construiu

um mosaico mesclado de lirismo, arte e pedacinhos de Angola. Na informalidade de sua

crônica, podemos nos sentir um pouco cidadãos angolanos, já que delas brotam o amor, a

beleza, o gosto, o aroma, a tristeza, a saudade e a esperança, tudo relacionado à terra

angolana.

O crítico e poeta angolano David Mestre ressalta características importantes das

crônicas “ernestianas”, relembrando também que Lara Filho foi leitor de grandes nomes da

crônica brasileira:

Quanto aos cronistas, Rubem Braga em particular, e Fernando Sabino (entre


outros), vão ao seu encontro com um projecto bem sucedido para salvar a
moderna crónica jornalística do efêmero e precário cotidiano, e conferir-lhe o
honrado estatuto de que goza hoje nas literaturas do idioma. Ernesto Lara
Filho encarna o modelo, circunstancial mas cheio de encanto poético, que
cativa pela simplicidade e agrada pelo tom informal e desafectado, e aduba-o
do seu próprio húmus, da sua vertiginosa experiência de crioulo de Angola e
cidadão do mundo (MESTRE, 1997, p. 92).

Gosto de fazer isto — como diz o poeta — soltar pombas, por entre as grades das

palavras (LARA FILHO, 1990, p. 32), afirmou Ernesto Lara Filho. E, pelas asas de suas

pombas vestidas de crônicas, esse escritor se tornou um prosador de primeira água, que
32

arrebatou para as nossas cores um frescor admirável, digno da melhor atenção (MESTRE,

1997, p. 15).

Diversos outros autores africanos também trilharam o percurso da crônica,

demonstrando o papel importante que esse gênero desempenha na Literatura. No prefácio

do livro Crónicas ao sol e à chuva, de Arnaldo Santos, João Melo disserta acerca das

funções que a crônica pôde e pode cumprir a partir das mãos dos jornalistas e escritores de

Angola:

Com efeito, o recurso à crónica sempre constituiu para os jornalistas e escritores


angolanos (...) uma tentativa consciente de introduzir uma nota de lucidez e
insubordinação no discurso monocórdio e totalizante de todos os entões. Nas suas
crônicas profundamente vinculadas ao quotidiano, os escritores-jornalistas (ou o
inverso, tanto faz...) angolanos, portanto, faziam muito mais do que simplesmente
contar histórias: resgatavam, mesmo que recorrendo à invenção e/ou à parábola, uma
realidade quase sempre ignorada ou fantasiada pelo discurso oficial, nas diversas
etapas históricas por que passou o país, ajudando, assim, a entendê-lo melhor. (...) as
crónicas eram brechas por onde a vida se infiltrava, simples, discreta e
poderosamente (MELO, 2002, p. 13 – prefácio).

Sem perder a simplicidade de uma boa conversa, típica característica do bom

cronicar, Arnaldo Santos temperou criticamente o seu papear cronístico. No texto

“Profissão de fé” (SANTOS, 2002, p. 19), o escritor leva o leitor angolano a refletir sobre

seu papel de cidadão na construção da história de Angola e na busca pela paz. Nas

pequenas atitudes e no seu simples dia-a-dia, os angolanos poderiam contribuir, assim, para

a edificação de um país melhor a todos:

É é [sic], pois, com esse sentimento gentílico e a sempre irresistível utopia da criação
desse mundo novo – (onde será que eu já li isto?) – que eu me ateimo aqui em me
querer reencontrar com todos aqueles que acreditam que ainda podem fazer a história
deste país. Vivendo suas estórias pequeninas, com dignidade e respeito por si
próprios, na roda do nosso fogo comum (Ibidem, p. 20).
33

Captamos nesse trecho, a esperança vizinha da desesperança. Arnaldo também falou

da incredulidade no Governo, em “A Alta Autoridade” (Ibidem, p. 21). Como cidadão,

desabafou: Essa Alta autoridade que nos prometeram, faz já muito tempo, está embora

andar muito devagar, arrastando os pés xacato-xacato, demorando a chegar. Continuou o

discurso, demonstrando que acreditar nas autoridades do país já não era possível e que a

Alta Autoridade talvez jamais viesse a existir: Foi prometida há um ror de tempo, (...) é a

Alta Autoridade contra a Corrupção, designação que só por si fez palpitar nos corações

das gentes sentimentos desencontrados, quicá, o da esperança, o que se reconheceu depois

ser prematuro e excessivo (Ibidem, p. 21).

Percebemos aí um desencanto com as autoridades, mas uma crença no futuro de

Angola: os jovens. Em “...e assim foi como veio a ser da maneira como será” (Ibidem, p.

45), Arnaldo Santos mostra que, apesar de ainda não votarem, a juventude que possui

menos de dezoito anos não pode ser ignorada como uma parte inexistente do país, pois

indica como será o amanhã de Angola: Ignorar essa geração de menos de dezoito anos é

subestimar sua existência. Impossível, porque eles são centenas de milhar, e também

porque eles é que dão significado à expressão, que assim foi como veio a ser da maneira

como será amanhã (Ibidem, p. 46).

De simplicidade aparente mascaram-se, entretanto, as crônicas de Arnaldo Santos.

Elas demonstram que da mera “conversa” podem brotar importantes críticas e reflexões,

sem que se abra mão da clareza, da espontaneidade e da leveza.

Outro grande escritor angolano, o Manuel Rui, também cronicou e, em Maninha,

escreveu crônicas disfarçadas de cartas (ou vice-versa) para narrar o cotidiano da pseudo-

autora, Maninha, que assina as missivas endereçadas às suas queridas primas. Essa

personagem descreve, por exemplo, como foi o seu domingo ao lado do tio: O domingo
34

aqui é assim. O tio ficou a giboiar uma funjada e eu fui numa volta com o profe [sic] na

ilha, já de noite (RUI, 2002, p. 20).

Como o próprio título do livro nos diz, são cartas optimistas e sentimentais,

necessárias em tempos tristes, tempos de guerra (os textos foram escritos entre 1992 e

1994). As cartas-crônicas adotam, nesse livro, um tom íntimo, profundo, parecendo, às

vezes, só ser possível o entendimento entre as primas. Pouco a pouco, passamos a

“bisbilhotar” os dias de Maninha e, assim, fazendo parte de sua intimidade e amizade em

relação às primas, nos sentimos também como se fôssemos parentes dela.

Redigidas sob títulos bem sugestivos, como “É bom, é nacional!”, “Viva o petróleo

burro”, “Globalização”, vemos que, da espontaneidade da língua nas cartas, nascem

reflexões e histórias importantes. E por que não falar do interesse mais importante, a paz? E

Maninha declara seu desejo por uma trégua:

As primas disseram que viram nessa televisão uma surra que os bimbitas levaram na
Katabola? eu não vi nem ouvi mas assim é melhor até no dia em que lhe acabarem
com a guerra que às vezes até fico a pensar como é que deve ser viver em paz porque
nasci já na guerra e sempre com a guerra e aí vocês já devem saber essa maneira de
viver a paz mas olhem que devia ser proibido pessoas da nossa idade viverem na
guerra que isso só devia ser uma maka dos mais-velhos mas vamos fazer mais como
se eles é que inventaram a guerra mas assim podia nos dar também só um cochito de
paz mesmo que fosse a pagar em Kwanzas que em dólares também era demais e um
beijo cheio de paz desta vossa (Ibidem, p. 197).

Apesar do país em guerra, os textos de Manuel Rui expressam a simplicidade do

cotidiano, do povo angolano, as alegrias dos instantes líricos e subjetivos. Crônicas que não

querem só escrever desalentos, disfarçando-se de cartas, na esperança de levarem ou

trazerem otimismo e bons sentimentos.

Embora nossa dissertação se centre em autores de Angola, não poderíamos deixar

de falar das crônicas do escritor moçambicano Mia Couto. Seus livros Cronicando e O país
35

de queixa andar também demonstram com muita propriedade o sabor de cronicar. Na

crônica “Mulher roxa em vestido laranja” (COUTO, 2002, p. 73), Mia Couto emprega uma

característica bastante comum às crônicas: a inserção de personagens ficcionais para

abordar cenas do dia-a-dia. Em primeira pessoa, o cronista adverte, afirmando: (...) esta

história eu que inventei (...) Ficção e realidade são as gémeas e convertíveis filhas da vida

(Ibidem, p. 73).

O texto “O jardim marinho” se inicia com a expressão Era uma vez (Ibidem, p. 53).

Usando também esta expressão própria dos contos infantis, reafirmamos e ousamos

continuar: “Era uma vez uma crônica que não desejava ser só crônica, queria ir além. Casou

com o conto, tendo as parábolas e estórias como parentes próximos”. Pronto. Essa é uma

das justificativas que fez nascer o livro Cronicando.

Misturando características de contos e crônicas, Mia Couto seduz e conduz o leitor

por linhas repletas de imaginação, lirismo e reflexão, como em “Balões dos meninos

velhos”. Nesse texto, alerta-nos sobre a situação dos mais velhos em Moçambique, muitos

abandonados em asilos. Numa “até” divertida festa de Natal, percebemos a solidão, a

indiferença e a falta (de tudo) em que esses cidadãos se encontravam. Ao fim, uma das

personagens diz: Senhor director, não será que podemos ter mais Natais, muitas vezes cada

ano? (Ibidem, p. 81).

Ao longo deste capítulo de nossa dissertação, fomos, através do comentário e

apresentação de diversos cronistas, chamando atenção para muitas características das

crônicas, com exemplos delas próprias. Crônicas de autores brasileiros e africanos que

demonstraram ser esse gênero, embora multifacetado e carregado da naturalidade do

cotidiano, uma forma textual bastante importante para a Literatura. Um gênero digno de ser

analisado, sim!
36

Entre muitos cronistas, africanos ou não, Ana Paula Tavares também deixa que suas

crônicas fiquem mais perto de nós, leitores, e estabelece, por meio de seus textos, um

compromisso com a condição de mulher da sua terra, com seu tempo, com a história e as

tradições das etnias do sudoeste angolano, onde nasceu e cresceu. Traz profundidade de

significação às suas crônicas, sem perder a leveza inerente a esse gênero, fazendo com que

o leitor sinta o gozo de cronicar, ou seja, de se deliciar com as histórias tradicionais dos

povos da Huíla, ao mesmo tempo que apreende as reflexões sobre a história de Angola,

brotadas das entrelinhas dos textos da autora . Artífice da poesia, Paula imprime forte carga

poética em seus textos de prosa, o que amplia o prazer de suas narrativas, conforme

demonstraremos nos capítulos adiante. É isso, em suma, que desejamos comprovar com

nosso estudo sobre as crônicas da autora.


37

3 O SALTAR DAS PALAVRAS

Sino
é como começa
este falar das palavras
e o livro de horas da minha avó.

Ana Paula Tavares∗

Após a poética engajada socialmente que, em Angola, cantou a certeza da

liberdade nas décadas de 60 e meados de 70, surgiu, paralelamente, nos anos 70 e 80, uma

poesia que já não tinha como foco principal questões referentes à coletividade social, mas,

sim, indagações existenciais, inerentes ao “eu / individual”. Essa nova poética inseriu-se

num paradigma de desencanto. As promessas feitas durante as lutas pela independência não

haviam sido totalmente cumpridas. Uma das únicas utopias que restou foi a poesia como

espelho de reflexão. Esse novo lirismo, muitas vezes, denunciou a corrupção do poder, mas

não foi só esse o seu objetivo. Desejou também saudar o amor, a mulher, a vida, a oratura,

os mitos africanos, o erotismo, por meio de um fazer poético-narrativo que primou pelo

labor estético, preservando, assim, a história e a memória das etnias angolanas.

Vejamos um poema de Paula Tavares, poetisa que vem-se destacando desde 1980.

No poema a seguir, o sujeito lírico busca recuperar traços da memória dos mumuílas, etnia

do sudoeste angolano, através do ritual de passagem de uma menina que se torna mulher:

Dessossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me


TAVARES, Paula. Ex- votos. Lisboa: Caminho, 2003, p. 12.
38

no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
Sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro que me lembre
mal existe

Hoje levantei-me cedo


Pintei de tacula e água fria
O corpo aceso
Não bato a manteiga
Não ponho o cinto

VOU
para o sul saltar o cercado

(TAVARES, 1985, p. 30)

Há nessa poesia uma dicção marcada pela transgressão e desobediência3. Paula

Tavares retrata uma mulher de tradição mumuíla que deseja subverter sua situação social,

mostrando-se rebelde ao romper com algumas práticas ancestrais de seu povo. Como uma

artesã, tece, reinventa o feminino vivenciado por fêmeas sofridas em razão da guerra, da

fome, da corrupção, presentes, também, no contexto angolano pós-independente. Ao

quebrar o silêncio que envolvia, em grande parte, a figura feminina, a poeta instaura um

grito libertador da mulher, ao dizer, em caixa alta: VOU para o sul saltar o cercado.

No poema, a mulher quer ser agente de sua história, relacionar-se com seu corpo

livremente, cantar o amor. Não é a visão do amor romântico em cenário natural edénico,

3
Essas idéias de transgressão, de “saltar o cercado” já foram amplamente estudadas em artigos, teses e
dissertações. Entre os estudiosos de Paula Tavares lembramos para só citar alguns: Laura Padilha, Benjamim
Abdala, Inocência Mata, Rita Chaves, Carmen Tindó, Érica Antunes, Cláudia Fabiana de Oliveira Cardoso,
entre outros.
39

de harmoniosa convivência com o sujeito, ressalta Inocência Mata (MATA, 2001, p. 119),

mas o amor sexual, pois seu corpo está aceso e consegue por isso deixar de ser sombra,

passando a ser sujeito.

Na prosa, a poetisa se assina Ana Paula Tavares. Suas crônicas são, como já

dissemos na Introdução, o objeto desta dissertação. Em suas narrativas poéticas, a autora

“salta” as fronteiras literárias e dialoga com a história de seu país, de modo crítico e

metafórico. Assume-se em seus textos cidadã e mulher.

Nascida em 30 de outubro de 1952, viveu com a madrinha desde os nove meses.

Teve criação portuguesa, mas dava para ver à volta, e à volta existia uma sociedade

completamente diferente, disse a própria Paula em entrevista concedida ao Jornal

Panorama, em 2000. Formada em História, com Doutorado também nessa área e com

Mestrado em Literaturas Africanas, em alguns de seus textos, Ana Paula Tavares reflete

sobre a literatura angolana, mostrando-se ciente do importante papel dessa arte na

edificação social de Angola, pois é (..) uma literatura permanentemente em busca do seu

novo rosto, não escondendo as escarificações e insígnias de um passado multiforme que a

sustenta. (TAVARES, 2001, p.109).

É por esse caminho que segue obra marcante de Ana Paula Tavares. Após Ritos de

passagem, livro de poesia, publicado em 1985 e caracterizado pelo apuro da linguagem, a

autora edita O sangue da buganvília, em 1998, coletânea de crônicas, escritas inicialmente

para serem lidas em programa da Rádio da Difusão Portuguesa. Não houve decepção para

os que esperavam a continuação de linhas inundadas de lirismo, pois os textos de O sangue

da buganvília nos levam também à fonte do gozo estético. E continuamos a beber nessa

fonte quando Ana Paula publica seus demais livros: O lago da lua (poesia-1999); Dizes-me

coisas amargas como os frutos (poesia-2001); Ex-votos (poesia-2003); A cabeça de Salomé


40

(crônica-2004), também corpus de nossa pesquisa; Os olhos do homem que chorava no rio

(romance em parceria com Jorge Marmelo-2005) e Manual para amantes desesperados

(poesia-2007).

Tanto os textos de prosa da autora, como os de poesia buscam recriar ritos e práticas

culturais vivenciados ancestralmente por etnias da região da Huíla. Há nesses textos

também a preocupação de afirmar a mulher. Vejamos o seguinte poema:

O lago da Lua
No lago branco da lua
Lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
Voltaria a cada mês
Para lavar
Meu sangue eterno
A cada lua

No lago branco da lua


Misturei meu sangue e barro branco
E fiz a caneca
Onde bebo
A água amarga da minha sede sem fim
O mel dos dias claros.
Neste lago deposito
Minha reserva de sonhos
Para tomar.
(TAVARES, 1999, p. 11)

No poema O lago da lua, o sujeito poético cumpre um ritual cíclico, intimamente

feminino. Mistura seu sangue ao barro de sua terra, consolidando suas raízes e sofrendo

junto com Angola. Preserva por meio de suas palavras o que é tradicionalmente angolano.

A poetisa, ao falar da condição da mulher, reinventa tradições africanas das etnias

do sudoeste angolano onde nasceu. Tradições muitas vezes esquecidas devido ao contexto
41

histórico conturbado por diversas guerras. Carmen Tindó, estudiosa da obra de Paula

Tavares, ressalta que a poesia de autora se faz também guardiã da palavra e da memória

ancestrais (SECCO, 2003, p.177), pois reinventa mitos, rituais, costumes de sua terra. Seus

textos assinalam a transformação do corpo feminino. A mulher fala, poeticamente, de sua

sensualidade de fêmea.

Há, nos textos de Paula Tavares, uma sede infinita de liberdade que a mulher sente,

uma vez que se encontra consciente da situação atual de sua sociedade. Não renega sua

condição amarga, mas passa a beber os sonhos de fêmea e cidadã, tendo em vista assumir

sua sexualidade e lutar por uma Angola mais justa.

Alfredo Bosi nos ensina que nostálgica, crítica ou utópica, a poesia moderna abriu

caminho caminhando (BOSI, 1983, p.145). No seu caminho, Paula Tavares usa a palavra

como instrumento transmissor dos costumes de sua terra, ao mesmo tempo em que

inaugura uma linguagem mais próxima do corpo e da voz feminina, fazendo também

críticas à guerra e à corrupção.

No poema O lago da lua, anteriormente citado, o sangue, regulador do tempo

feminino, é marca da fertilidade da mulher que se quer fecunda não só biologicamente, mas

em seus sonhos e desejos. As palavras de Paula Tavares mostram que sua lavra, sempre a

receber cuidados de mulher, é fértil e dela se pode obter abundante colheita (PADILHA,

2000, p. 294), como ensina Laura Padilha, outra estudiosa da obra de Paula Tavares.

E colhendo os frutos desse terreno fértil, percebemos uma imagem de mulher que

deseja ser reguladora de seu próprio tempo e destino. Não bebe somente a amargura, mas o

mel dos dias claros. Pinta os ritos africanos em seu corpo e nos dos poemas, mostrando-se

responsável pela preservação memorialística de sua terra. Salta o cercado para se relacionar

de maneira livre com sua própria sensualidade e com sua sociedade. Seus textos unem
42

poesia e erotismo, uma a complementar o outro, relação consolidada, conforme nos explica

Octavio Paz:

A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o
primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de
uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material
que denota idéias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz evanescente: a
sensação. Por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia,
representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o
agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em
cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora (...) a poesia erotiza a linguagem
e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. (PAZ, 1994,
p. 12).

Paula, tanto nos poemas, como nas crônicas, opera com a sedução do próprio texto.

No prefácio de O sangue da buganvília, João Nuno Alçada nos instiga os olhos e ouvidos,

já que as crônicas de Ana Paula Tavares preenchem os espaços da memória e da história

por meio de palavras, vozes e imagens. Ele nos explica:

Ao escrever estas Crónicas talvez que a autora se lembrasse de Henri Bérgson


“exprimimo-nos necessariamente por palavras, mas pensamos, a maior parte de
vazes, no espaço”, e na leitura destas páginas tão cheias da presença humana, de
apelo ao primeiro dia, de pensamentos mal consolados num coração decepcionado
em disfarce de alegria revelada, há muitos espaços pessoais, mas todos eles
pertencem a um maior, que nos faz sentar na varanda do tempo para ouvirmos a
revelação de um pacto feito pela autora, com as coisas que lhe são profundamente
conhecidas do mundo e da vida (ALÇADA, 1998 – prefácio).

Os textos dessa cronista-poeta nos convidam a também visitarmos essa varanda do

tempo através das crônicas. Para além da leitura, somos surpreendidos pelos espaços

revelados por uma escrita a transbordar intimismo.

Ao registrar o circunstancial, as crônicas de Ana Paula Tavares consolidam um

compromisso, já estabelecido através de suas poesias, com o seu tempo, com a história de

seu país e com as tradições dos povos da Huíla.


43

As crônicas de Paula não se limitam, porém, ao simples registro dos fatos. O

comentário é característica marcante nos textos narrativos da autora. Historiadora por

formação, faz o relato dos fatos históricos; contudo, como testemunha de sua sociedade e

como poeta, inclui os ingredientes da subjetividade, frutos da experiência vivida e de sua

dedicação à poesia.

Essa subjetividade inerente à crônica, mesmo sendo expressa por uma historiadora,

quer-se necessária, pois faz com que um fato aparentemente comum ganhe o sabor da

experiência indispensável para que não caia no esquecimento. Destacamos a seguir o que

defende Todorov, ao definir o discurso do historiador, em trecho do livro Memória do mal,

tentação do bem:

O historiador: assim designo o representante da disciplina cujo objetivo é a


reconstituição e a análise do passado; e, de modo mais geral toda pessoa que procure
realizar esse trabalho escolhendo como princípio regulador e como horizonte último
não mais o interesse do sujeito, mas a verdade impessoal. Ao longo dos últimos
séculos, os filósofos e os próprios historiadores submeteram essa noção de verdade a
uma crítica severa e muitas vezes justificada para lembrar a fragilidade dos nossos
instrumentos de conhecimento, assim como as inevitáveis intervenções do sujeito
que o investiga; é inegável que, se for apagada toda fronteira entre discurso verídico
e discurso de ficção, a História não tem mais razão de ser. (TODOROV, 2002, pp.
151-152).

Vimos, assim, com Todorov, que nenhum discurso está livre do posicionamento de

quem o profere. Ana Paula é consciente do papel do historiador: desvendar os fatos e

mostrar sua postura crítica frente aos mesmos. Ela, na crônica “O prazer do historiador”,

afirma que o historiador procura os argumentos da verdade, estende os dedos e acusa

(TAVARES, 1998, p. 33).

O compromisso histórico e a experiência daquela que escreve as crônicas fazem

com que o texto tenha uma aparente espontaneidade que seduz o leitor. Há um dialogismo
44

estabelecido pela narrativa de Ana Paula Tavares que deixa a efemeridade das crônicas para

trás.

Por abordar as notícias do cotidiano, a crônica, muitas vezes, como mostramos no

capítulo anterior, possui um caráter transitório, passageiro. Porém, os livros de Ana Paula

Tavares abandonam a “falsa” simplicidade de um texto que envelhece a cada 24h, como

ocorre com o jornal, e nos faz ler levantando a cabeça, conforme ensinou Roland Barthes:

Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro, interromper com freqüência a leitura, não por
desinteresse, mas ao contrário, por afluxo de idéias, excitações, associações? Numa
palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a cabeça? É essa leitura, ao mesmo
tempo irrespeitosa, pois que corta o texto, e apaixonada, pois que a ele volte e dele se
nutre, que tentei escrever. (BARTHES, 2004, p. 26).

Esse levantar a cabeça acontece nas crônicas de Ana Paula Tavares e nos faz

seduzidos por elas. Nós percebemos que são narrativas de enredo determinado: o povo

angolano, mas elas tocam também em questões humanas, existenciais, universais.

Apesar da limitada extensão permitida a uma crônica, a autora cria um sutil elo

entre a linguagem realista existente nesse tipo de narração, a poesia e arte de contar. Além

das reflexões acerca da sociedade e da história angolana, as crônicas de Paula Tavares

transcriam “estórias” e tradições dos povos da Huíla, como demonstra o seguinte trecho da

crônica “As madrinhas”: A história contava-se bem, enquanto numa vasilha de barro

esmaltado, com uma colher de pau, se tiravam, às gemas e ao açúcar, a leveza dos bolos

de vinte e quatro ovos para servir aos domingos à hora do chá (TAVARES, 2004, p.90).

Histórias, tradições e a utilização dos provérbios como fontes de sabedoria também

são traços marcantes na obra de Ana Paula Tavares. Assim como as oleiras moldavam no

barro os provérbios que deveriam ser transmitidos às gerações descendentes, a autora, no


45

seu ofício de narrar, também perpetua esses ensinamentos. Além da presença dos

provérbios como epígrafes dos seus textos, vemos a importância desses elementos

característicos do patrimônio cultural angolano na crônica “A divisão do mundo”:

Tal como outros valores culturais, o sistema dos provérbios assenta num patrimônio
de conhecimento facilmente reconhecível pela comunidade, que o aprende integrado
num sistema de ensino baseado no aproveitamento da singularidade do indivíduo,
enquanto parte de um todo comunitário, onde a solidariedade é cultivada como dado
adquirido a não perder. (Ibidem, p.27).

A história, muitos traços culturais, variadas tradições e inúmeras “estórias” estão

presentes nos livros de crônicas de Ana Paula Tavares que também ressaltam uma

fundamental personagem da sua obra: a mulher.

Ao reinventar e recontar, através de suas crônicas, a história de Angola, Ana Paula,

simultaneamente, recria a história da mulher angolana, suas experiências, alegrias e dores.

A figura feminina é sempre representada por linhas banhadas de lirismo e erotismo que a

autora desenha em seus livros.

Numa sociedade em que o homem saiu para lutar, participou de guerras que muitas

vezes não o deixaram voltar, a presença da mulher se fez indispensável, já que era dela a

função de ensinar e guardar as tradições.

Num doce narra de histórias, Ana Paula nos apresenta Dona Beba, numa crônica

que leva como título esse mesmo nome, a exaltar a ternura daquelas que se mostravam

mães, mulheres, guerreiras. Tudo narrado pelas lembranças de uma criança. Cito um trecho

dessa narrativa:

Salvou-nos Dona Beba com suas mãos de veludo. Umas mãos impossíveis para
quem há oitenta e nove anos as usa a segurar a vida de quem precisa. Cuida dos
doentes, ampara os presos, seca o peixe das viagens.
Abriu-nos as portas da sua casa secreta, desvendando a verdadeira história do
Tarrafal (Ibidem, p.10).
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Vemos que, por vezes, as crônicas de Ana Paula Tavares se assemelham a contos,

ficando na fronteira entre os dois gêneros. Além das lembranças femininas, a autora

também recria os rituais de passagem vivenciados pelas mulheres. Na crônica “A menina

dos ovos dourados”, a autora desenha a travessia inerente ao corpo feminino: a passagem

de menina à mulher. O sangue que vem batizar esse ritual cíclico é apresentado pela mãe,

personagem da crônica: Agora tens por dentro ovos de sangue prontos para cair, um em

cada tempo, de vinte e vinte oito dias (Ibidem, p.72). A delicadeza das palavras cantadas

por Ana Paula Tavares torna poético esse estar maduro de uma mulher que ainda se quer

menina: O que eu queria era parar no centro da vida e plantar-me árvore, para os ovos

não caírem (Ibidem, p.72).

Nessa crônica, assim como em toda obra de Ana Paula Tavares, a cultura tradicional

da região onde a autora nasceu, o sudoeste angolano, desabrocha: tábuas eylekessa, panelas

da tradição, bois, todos símbolos da tradição regional. O primeiro fluxo de uma menina é

comemorado por seu povo, como enfatiza as linhas narradas: À volta, a festa começou. A

mãe da mãe das raparigas apresentou o penteado, o pai do pai das raparigas chamou os

bois do sacrifício (Ibidem, p.72).

Paula questiona a condição feminina, dando voz ao erotismo e aos anseios da

mulher angolana oprimida tanto na tradição, como na modernidade. Já dizia, em Ritos de

passagem, que era necessário à mulher um perder-se entre seus desejos, conscientemente,

para depois se encontrar: Achando o perímetro/ suicidou-se, LÚCIDA/ no rio de pólen

descoberto (TAVARES, 1985, p.21). Sobre esse desequilíbrio ligado ao erotismo, explica-

nos Georges Bataille:


47

Já disse que, aos meus olhos, o erotismo é o desequilíbrio no qual o ser coloca a si
mesmo em questão, conscientemente. Em um sentido, o ser se perde objetivamente,
mas então o sujeito identifica-se com o objeto que se perde. Se for necessário, posso
dizer que no erotismo EU me perco (BATAILLE, p. 48).

No cenário erótico que Ana Paula Tavares constrói, em “A menina dos ovos de

ouro”, a mulher é colocada em questão e mostra que quer uma relação livre com o seu

corpo, metáfora de seus desejos e de sua sede de liberdade. Para isso, salta o cercado das

convenções e diz: Fechei-me no quarto mais pequeno da casa antiga, pendurei na porta

minha voz de menina, preparei-me para fugir, saltar o cercado (...) (TAVARES, 2004,

p.72).

A palavra salta em busca da realização feminina, mas a personagem mantém-se

comprometida com seu papel de cidadã engajada socialmente e diz: Não fui capaz (Ibidem,

p. 72). Apesar da repressão, de ter sido uma mulher criada ainda dentro de “cercas”,

metáfora da tradição rígida de uma sociedade, essa fêmea também é mãe e terra, uma a

complementar a outra, conforme percebemos nas seguintes palavras que saltaram

poeticamente do livro Ex-votos e foram recriadas para essa crônica: Estou selada na ilha do

meu corpo e, se me deito no chão, é para que o coração da terra bata por mim e me encha

as veias. Não quero sofrer (Ibidem, p.71).

Um cenário encharcado de simbologia é criado. O “conto-crônica” termina com a

menina, agora mulher, misturando seu sangue ao barro de sua terra, consolidando suas

raízes. Notamos, ao longo da obra de Ana Paula Tavares, que a temática feminina é algo

recorrente, assim como a recriação das tradições das etnias do sudoeste angolano onde

nasceu e cresceu a autora.

Para além do cercado, o texto de Paula Tavares quer nos fazer também “saltar”, já

que nos “obriga” a refletir sobre a luta, a opressão, a sensualidade e os sonhos da mulher
48

mumuíla, metonímia da sociedade angolana. Um verdadeiro texto de fruição, como define

Barthes a linguagem da poesia:

Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez
até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor,
a consciência dos seus gestos, dos seus gostos, dos seus valores e das suas
recordações, faz entrar em crise a sua relação com a linguagem (BARTHES, 1973,
pp. 20-21).

E, sob a fruição da linguagem de Ana Paula Tavares, apreendemos uma

sensibilidade feminina que deseja, que sonha e que quer cumprir a função de transmissora

de ritos, histórias e sabedorias do imaginário cultural dos povos da Huíla, através de

narrações presentes em suas crônicas. Assim, as palavras saltam e vêm à tona para nos

fazerem refletir, poeticamente, sobre os caminhos percorridos por Angola em relação à sua

história, às suas tradições e ao papel das mulheres angolanas.


49

4 TRILHAS CARREGADAS DE SENTIDO: História, Memória,

Tradição

4.1 O Tempo da História e a Palavra da Memória

O tempo pode medir-se


No teu corpo

Ana Paula Tavares∗

Segundo Ana Paula Tavares, o recurso à história surge como lugar onde se instala

o testemunho e onde, para lá da informação, se pode recolher a “carga de sentidos” que

“lugares saturados de tempo nos podem devolver” (TAVARES, 2001, p. 25). Testemunha

de seu tempo, a autora lança um olhar crítico sobre a história de seu país. Repensa o

passado, pois sabe que é preciso interpretá-lo para reconhecer o que deveras foi importante,

buscando, assim, as trilhas carregadas de sentidos.

Tzvetan Todorov, na obra Memória do mal, tentação do bem: indagações sobre o

século XX, discute relações entre história e memória no contexto social do século passado,

mas que são fundamentais para todos os tempos. Mostra que, num mundo capitalista em

que o consumo desenfreado das informações acontece, a sociedade está fadada à

eliminação das lembranças com igual rapidez. No seu discurso, o autor não pretende

defender a utilização da memória, porém refletir sobre o seu essencial papel. Explica que o

passado deixa seus vestígios tanto no mundo, sob a forma, por exemplo, de cartas, decretos,

quanto na mente humana. Quer queira ou não, o outrora vem sempre à tona, afirma o autor:


TAVARES, Ana Paula. Ex-votos. Lisboa: Caminho, 2003, p. 13.
50

Quer lamentemos ou não, não podemos escolher entre lembrar e esquecer. Não
adianta fazer de tudo para repelir certas lembranças; elas voltam a assombrar nossas
insônias. Os antigos conhecem bem essa impossibilidade de submeter a memória à
vontade; segundo Cícero, Temístocles, famoso por sua capacidade de memorizar,
queixava-se: “Eu retenho até mesmo o que não desejo reter, e não consigo esquecer o
que desejo esquecer” (TODOROV, 2002, p. 142).

O desejo por lembrar ou apagar certas lembranças não dependem da vontade do

indivíduo, explica Todorov, chegando a uma importante conclusão: a de que a memória

não se opõe absolutamente ao esquecimento (Ibidem, p. 149). O autor ressalta que a

oposição se dá entre o esquecimento e a conservação, pois a memória é o resultado da ação

mútua entre esses dois termos. Por isso destaca: A reconstituição integral do passado é

coisa impossível (Ibidem, p. 149).

Nessa discussão sobre o uso da memória, o trabalho de Todorov enfatiza que, em

muitas situações, alguns evocaram o passado com o objetivo de garantir o papel de herói,

de vítima ou de moralizador (Ibidem, p. 206). O teórico nos leva a entender que a memória

pode tornar-se uma tentação do mal, pois quando se ouvem esses apelos contra o

esquecimento ou a favor do dever da memória, na maioria das vezes não é para um

trabalho de resgate da memória, de estabelecimento e de interpretação dos fatos passados

(Ibidem, p. 206). Devemos ter consciência de que o bom uso da memória é aquele que

serve a uma justa causa, e não aquele que se contenta com reproduzir o passado (Ibidem,

p. 204).

Esse “bom uso” da memória é encontrado na narrativa de Ana Paula Tavares. Por

meio de sua linguagem, a voz enunciadora cumpre o exercício de rememorar a história de

Angola e de reinventar as tradições de etnias do sudoeste angolano, sob um olhar crítico

que caminha em busca de uma possível ação voltada para um tempo novo.
51

Na crônica “Literatura, história, António de Oliveira Cadornega e nós”, em O

sangue da buganvília, Ana Paula Tavares tece considerações acerca de literatura e história,

refletindo sobre o papel do historiador. Reflexões já anunciadas pela epígrafe por ela

escolhida para a referida crônica:

[...] Uma vez que a criação artística é sempre governada pelas forças sociais
dominantes, a invenção situa-se quase por inteiro entre o que foi modelado para
glória de Deus, para o serviço dos príncipes e para o prazer dos ricos. Partir das
obras-primas é um percurso obrigatório e não é um mau percurso. Com a condição de
nunca perder de vista o que as rodeia, nem a diversidade obscura, fecunda sobre que
elas pairam [...] – Georges Duby (TAVARES, 1998, p. 16).

A citação incorporada ao texto chama atenção para o fato de que a arte se mostra

muitas vezes elitista e que a história também pode ser vista sob o olhar do herói, da classe

dominante. O trecho ressalta, porém, que as obras-primas, e por que não a ciência histórica,

podem, para além do herói, desvelar o outro lado da moeda, ou melhor, não só o lado coroa,

mas o lado cara, o dos vencidos, pois o sujeito do conhecimento histórico é a própria

classe combatente e oprimida (BENJAMIN, 1994, p. 228).

Na crônica em questão, escrita em 1996, Ana Paula Tavares também discute a

importância do olhar crítico em relação aos fatos históricos numa sociedade em (re)

construção como Angola. Já ultrapassado o tempo das utopias libertárias, é necessário abrir

as cortinas da história para que se enxergue seu “avesso”:

Sem princípio nem fim, a nossa história tem as costas largas e tem-se constituído
chão fértil para o lançamento da dúvida, mas também das certezas de quem não quer
perder a oportunidade de deixar seu nome, mais do que seu rosto, inscrito numa
modernidade, em construção, feita da procura dos grandes sentidos da história e do
seu avesso, compadecendo-se pouco com um quotidiano que, sem que nenhum de
nós o suspeitasse, era história a constituir-se em simultâneo com a terra que
inventávamos na região da utopia (TAVARES, 1998, p. 16).
52

Testemunha do silêncio que muitas vezes foi tão ou mais perturbador que a guerra,

a cronista deseja que a situação vivida pelos indivíduos angolanos não cale também a

tradição, os costumes e a consciência crítica da sociedade:

Vêm estas considerações a propósito das estranhas relações entre ruído e silêncio,
que alternadamente se impõem sobre momentos da história como se o sobressalto, a
moda repentina, a universalidade da discussão fossem mais importantes do que o
documento, o monumento, a tradição oral. (ibidem, p. 16).

Laura Padilha explica que os textos de Paula Tavares representam uma espécie de

“grito-faca” a tentar quebrar o silêncio, pois o sujeito histórico reconhece a necessidade

de preencher tal silêncio, de qualquer modo e com muita urgência (PADILHA, 2000, p.

288). E esse grito se dá nas palavras de quem deseja, como explicou Benjamim, escovar a

história a contrapelo (BENJAMIM, 1994, p. 225). É o que ocorre no final da referida

crônica, quando é mencionado António de Oliveira Cadornega, um historiador que também

enxergou a história do cotidiano, embora escrevesse para agradar os que estavam no poder:

Construiu a sua marca de autor, contando as histórias de um ponto de vista muito


peculiar, tentando agradar aos príncipes, mas não esquecendo os quotidianos e a vida,
percebendo, antes do tempo (ou a tempo se preferirem) as fronteiras frágeis entre o
passado histórico e a sua dimensão literária, entre a história e as histórias, entre os
acontecimentos e o à volta (TAVARES, 1998, p. 17).

E, se no passado, Cadornega focaliza as guerras angolanas, vemos que Ana Paula

Tavares, no presente, também reflete sobre as guerras civis; a autora retrata a situação das

cidades africanas, na crônica “Viver nas cidades” (SB), inundadas pelos problemas sociais

e pela ausência do significado da palavra cidadão:


53

Secas, fomes e sobretudo os flagelos da guerra prolongada e generalizada foram


guiando as pessoas num único sentido: a procura de espaços para a vida. A cidade foi
assim crescendo, transformada num enorme acampamento definitivo de pessoas de
terra perdida, sujeitas a processos de perda de memória da sua identidade e do valor
da palavra. (Ibidem, p. 42).

A epígrafe desse texto denuncia o que a crônica acusa ser a situação de muitos

africanos: fugitivos dentro de sua própria terra. A citação é retirada de um livro do escritor

Mia Couto e destaca: [...] Fica, tu não sabes o que é andar, fugista por terras que são dos

outros [...] (Ibidem, p. 42).

Terras dos outros sim, pois essas cidades fotografadas pelo cronicar de Ana Paula

Tavares não são as desejadas e sonhadas pelos angolanos, porque nelas sobreviver

transformou-se na exclusiva hipótese diária de subsistir, animais-humanos de presentes

envenenados e dias de descidas aos infernos (Ibidem, p. 43). A esperança em dias

melhores, porém, não é extinta da sofrida realidade. No final da crônica, a autora nos saúda

com a presença do mais-velho a metaforizar a fé:

Vivia ali, o mais velho, estendendo as mãos aos passantes, sem palavras excessivas
apenas com um sorriso de eternidade fixado entre os lábios.
À recusa de um pedaço de pão, normal entre os passantes, respondia sempre com a
ternura dos seus muitos anos:
— Está bem, obrigado, hoje não como, mas amanhã, quem sabe? (Ibidem, p. 43).

Esperança não só em um futuro melhor, mas na manutenção da memória e da

tradição ainda tão cheia de passados mais recentes, como afirmou Ana Paula Tavares, em

“As cidades do sol” (SB). Nesta crônica, há um desejo pela preservação do passado e dos

costumes angolanos:

Apanhadas na longa e movediça armadilha das cidades, as pessoas são vítimas de


uma aparente ausência de passado, que se estrutura e sedimenta num quotidiano
violento, sem nenhum espelho por detrás, o que faz com que as pessoas pareçam
54

zombies, fantasmas de um presente, sem escoras, sem o conhecimento do passado


que une comunidades e grupos, num ajuntamento de referências comum [sic].
(Ibidem, p. 38).

As cidades e o povo têm o sol como testemunha da degradação social vivida não só

por alguns países africanos, mas pela humanidade em geral e essa conclusão pode ser

colhida do palavrear profético da cronista que afirma no final dessa crônica:

A violência, a desagregação do tecido social, a institucionalização da injustiça, a


priorização do comércio em detrimento da fruição e dos espaços de lazer, a situação
de gradual empobrecimento das cidades e das pessoas, essas continuarão o seu
percurso imparável, século XXI adentro. (Ibidem, p. 39).

Esse olhar crítico sobre o outrora e, principalmente, em relação ao futuro é marca

dominante nos textos da cronista que sabe que o dom de despertar no passado as centelhas

da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos

não estarão em segurança se o inimigo vencer (BENJAMIM, 1994, pp. 224-225). E se

tratando de Angola, havia um principal inimigo a ser derrotado: a desesperança provocada

pelos muitos anos de guerra.

O tempo da escrita de O sangue da buganvília não foi o da euforia da

independência e, sim, o da guerra civil entre o MPLA e a UNITA. A maioria das crônicas

que compõem essa obra foram escritas entre 1996 e 1998. Refletir sobre o rumo tomado

pelo país pós-independente e repensar caminhos trilhados e por trilhar era necessário e o

cronicar de Ana Paula Tavares sabia disso, como bem demonstra a crônica “Os dias da

independência” (SB), escrito em novembro de 1996:

Passaram vinte e um anos e não se trata já de maioridade, a maioridade agora atinge-


se mais cedo e em dor, trata-se sim de olhar no espelho a nossa própria velhice e a
55

velhice da pátria apodrecida pela guerra, fermentada de fome, adiada de


projectos.(...)
Em Pasárgada o rei ainda vive, mas dele já não somos amigos (TAVARES, 1998, p.
73).

Assumindo um discurso “anti-Pasárgada”, a voz enunciadora toca na ferida da terra-

mãe que deu à luz não apenas sonhos, mas pesadelos que insistem em assombrar a história

de Angola. A epígrafe dessa crônica, versos de José Luís Mendonça, enfatiza o quanto é

duro perceber que as mãos que derramaram o próprio sangue pela independência são as

mesmas que tiraram a vida de seu irmão. O trecho declara:

[...] Eu queria abster-me


de olhar as lentas
feras madrugadas
paridas entre a unha e a polpa
dos meus dedos de sangue [...]

José Luís Mendonça, Chuva Novembrina


(Ibidem, p. 72)

Abster-se já não era possível no contexto histórico pós-independente vivido por

Angola. Homens e mulheres sofreram a dor da guerra civil e testemunharam o desencanto

da nação recém-libertada. A história de um país que buscava a igualdade e a justiça não era,

portanto, remota, contudo revelava um presente que transbordava uma liberdade ambígua,

como chama atenção a crônica “O gênero da memória” (SB):

(...) A história armadilhou o dia a dia e a sua imagem actual não corresponde à
imagem do sonho antigo.
Os actos cometidos em nome da mudança do mundo são agora postos em causa por
várias gerações, que não só viram essa mudança como vivem presentes envenenados
sem esperanças. Os amanhãs perderam a voz (Ibidem, p. 71).
56

A poetisa historiadora tem consciência de seu papel na sociedade e sabe que, para

além dos fatos, “as verdades das verdades” precisam ser questionadas. História e memória a

favor (ou não!) da sociedade, mesmo que esse exercício memorialístico não seja assim tão

prazeroso, pois afirma que o historiador transformou-se no dono da verdade, que nem

sempre é a verdade que interessa ao grupo (Ibidem, p. 87).

O duro cotidiano criado por anos e anos de combate armado é flagrado pelas

crônicas de Ana Paula Tavares que revela um tempo que muitos desejariam esquecer. Um

tempo a definhar o sonho de um futuro próspero para aqueles que construiriam um país

melhor, como conta “A princesa e os meninos à volta da fogueira” (SB):

A guerra, o abandono e a fome são o pano de fundo de seres que a terra mãe nem
sempre adoptou como devia. Seres crescidos antes do tempo e, se desenvolvem a
meio caminho entre uma improvável chegada ao mundo dos adultos e a imprevisível,
porque assente numa longa combinação de imponderáveis, construção do dia que
passa.
O rosto mais visível da devastação e da guerra tem olhos de criança, tão grandes e
espantados como os símbolos solares das pinturas rupestres antigas.
A sua trajectória fez-se em câmara lente num filme de terror com duração igual e
consciente com suas próprias vidas (Ibidem, p. 93).

As palavras da cronista flagram o rosto de uma juventude descendente de outra

anterior mocidade também manchada pelo conflito armado. Antes, uma guerra pela

independência. Depois, uma liberdade que busca, no confronto, a sua própria libertação,

pois o seu conceito foi deturpado como se lê em “Filhos do clã de novembrino”, mais uma

crônica de O sangue da buganvília:

Eram anjos descalços e errantes, num país minado pelo petróleo, diamantes, uma
indefinição geográfica e várias condenações políticas. Com as suas próprias mãos de
anjos reinventaram a guerra e envelheceram os jovens à força das promessas de fazer
a guerra para acabar coma guerra (Ibidem, p. 77).
57

O texto denuncia como esses anjos mascarados de homens morrem de tristeza,

pendurados nas árvores como pássaros doentes (Ibidem, p. 77). Aves impossibilitadas de

alçar vôo, suas asas não suportaram o peso da tristeza, da dor, da fome, da miséria e,

sobretudo, da desilusão da liberdade.

As crônicas de O sangue da buganvília foram escritas em Lisboa, todavia

demonstram o comprometimento da autora que se preocupa com futuro de sua terra natal.

Apesar da triste realidade vivida por Angola na década de 90, há no exercício das crônicas

da autora o desejo por tempos melhores, após tantas tempestades, conforme deixa evidente

a epígrafe de “Filhos do clã de novembrino”:

Se eu tivesse uma plantação nesta ilha, meu senhor...


E se fosse o rei dela, que faria?
(...) A natureza produziria tudo em comum
Sem suor e sem esforço; traição ou suborno
Espada, lança, faca, mosquetes ou engenhos,
Não seriam precisos; a natureza faria brotar por si própria, toda a abundância
Para alimentar meu inocente povo

Shakespeare, A tempestade (Ibidem, p. 76)

Ana Paula Tavares assume um discurso firme e consciente de quem não se pode

calar frente a tantas feridas. A fugacidade se dá apenas na curta extensão de algumas

crônicas. A par da brevidade destas, o que encontramos é a profundidade da palavra que

fica, ou melhor, que grita, como revela “Manifesto” (SB):

Anda por aí muito silêncio a transformar palavras em medo. Andam muitas bocas
com coisas por dizer e no entanto amordaçadas pela indiferença, que por esta altura
já cresceu tanto que se tornou difícil de romper.
(...) Faz falta a palavra grito a crescer por cima desse silêncio todo, construída
livremente, com o respeito antigo pelo lugar, mas trazendo as novas do tempo, dos
participantes e das promessas (Ibidem, p. 33).
58

Por meio do palavrear da autora constatamos que à volatilidade da transmissão não

está ligada a superficialidade da mensagem, neste caso ciosa do seu dever e seu direito de,

em certa medida, transformar o meio, conforme afirma Rita Chaves, no texto “A palavra

enraizada de Ana Paula Tavares”4.

A crônica “O sangue da buganvília” (TAVARES, 1998, pp. 34-35), que dá título ao

livro, representa o quanto a “palavra grito” se mostra forte perante o silêncio criado pela

dor da guerra. A buganvília, símbolo da resistência, metaforiza a história do povo angolano

nesse texto:

(...) Um jacarandá adianta-se um bocadinho e apresenta aos nossos olhos a graça de


uma floração precoce e logo os outros se oferecem floridos, num festival de dedos e
unhas roxas, como se a necessidade de uma oração comum adiantasse a estação.
Dessa fragilidade não padece a buganvília, no seu silêncio retorcido e insondável.
Está. Desafia. Sangra abundantemente de qualquer corte e renasce no chão pingado
com a teimosia das espécies que resistem (Ibidem, p. 34).

As crônicas de Ana Paula Tavares, assim como Angola, desafiam a dura realidade

regada por sangue e desigualdade, mostrando que também da terra nascem flores em meio a

ervas daninhas: De uma coisa estou certa, venha quem vier, mudem as estações, parem as

chuvas, esterilizem o solo, nós somos cada vez mais como as buganvílias: a florir em

sangue no meio da tempestade (Ibidem, p. 35).

A coletânea de crônicas O sangue da buganvília também denota essa arte de “florir

em sangue”, pois, além de repensar momentos difíceis da história de Angola, faz surgirem e

ressurgirem paisagens, tradições, personagens que têm muito a contar através de

experiências e recortes da memória. E o segundo livro de crônicas de Paula, A cabeça de

Salomé, vem para ratificar essa nossa percepção e a própria arte de cronicar da autora.

4
Disponível na Internet via www.fflch.usp.br (consulta feita em 12/04/2007, às 16:40).
59

As crônicas de Ana Paula Tavares apresentam não só uma opulência de temas,

como também uma linguagem multifacetada. Mantêm um caráter crítico-reflexivo, sem

deixar de lado o discurso inundado de lirismo, proveniente da práxis poética da autora:

A diversidade dos temas, portanto, não espelha a fragmentação do ponto de vista,


todo ele recortado pela coerência que resulta dessa feliz combinação entre o
conhecimento adquirido pela leitura e a aprendizagem assegurada pela experiência.
Essa “sabedoria”, mais próxima do próprio processo de aprendizagem do que de um
repositório de conhecimentos permite que a palavra transite por muitos universos,
pois o mundo sobre o qual se debruça também ele é cenário de movimento, e no
quadro a ser delineado tanto cabe a reflexão sobre a perda e a resistência de tantas
utopias como a descrição do funge do almoço, tradição quase ritual nos sábados
angolanos (CHAVES, www.fflch.usp.br).

Ana Paula Tavares dá asas às palavras, deixando que do alto possam, para além do

sofrimento, sobrevoarem as lembranças das tradições e a esperança de tempos melhores,

como sugere o “poema-epígrafe” de “Efemérides” (TAVARES, 1998, p. 30):

“(...) Olho a asa a subir rumo ao ar


sobe como se fosse a gémea alma do vento
e é nave
e é música
sua conclusiva presa
que é voar.”

Eduardo White

A crônica convida o leitor a (re)encontrar sua “alma-pássaro” que, na infância, o

levava a tantos caminhos desconhecidos, guiado pela esperança e pela capacidade de

sonhar, como instiga a autora: Todos nós temos um tempo de voar. É quando participamos

do absoluto, nos nascem penas e simplesmente voamos pelos caminhos da infância, a asa

aberta e folha solta, sem mãos, sem pés e sem destinos (Ibidem, p. 30).
60

Engana-se quem pensa que há no texto uma fuga da realidade. Ao contrário: há uma

tentativa de resgatar a fé e a confiança em si próprio e na construção de um país melhor. Há

a demonstração de que a infância é algo passageiro e de que o crescimento faz com que

deixemos para trás as asas: A cor do medo aprende-se mais tarde, nesse longo processo de

domesticação a que nos submetemos, no doloroso ritual de passagem de deixar crescer os

ossos e cortar as asas (Ibidem, p. 30).

Apesar de aparadas as asas, sabemos que um dia fomos capazes de voar e quem

guarda essa lembrança não perde a confiança diante de ventos fortes que não mais

permitem o alçar vôo. Ecléa Bosi afirma: A memória aparece como força subjetiva ao

mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, E., 1994, p.

47).

É a força da memória, uma memória a acender a esperança e a consciência de que

algo seja feito, que Ana Paula Tavares quer despertar no dia-a-dia de cada pessoa, no

registro de fatos de cada um, nas “efemérides”: Poucas coisas ficam resolvidas, os

problemas de África não se resolvem num dia, agravam-se todos os dias, mas ainda é bom

ver as pessoas com a cara de anjos malucos, que é a que todos temos quando somos novos

e voamos (TAVARES, 1998, p. 31).

Rita Chaves, no artigo “A palavra enraizada de Ana Paula Tavares”, explica a

função da memória nas crônicas dessa poetisa: Nas revisitas ao passado, desmancha-se a

atmosfera nostálgica para que a recordação, colhida em jogo dinâmico, venha iluminar o

presente, remarcar as linhas e as cores que delineiam a vida atual (CHAVES,

www.fflch.usp.br).

Por intermédio dos dois livros de crônicas de Ana Paula Tavares, revisitamos e

rememoramos Angola. O posicionamento crítico sobre o presente histórico angolano e a


61

conservação da memória por meio da reinvenção das tradições e narrações são

características marcantes nas obras dessa autora que sabe que o cronista que narra os

acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de

que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história

(BENJAMIM, 1994, p. 223).

As palavras da cronista revelam-nos muitas outras histórias dentro da história a que

temos acesso. Passamos a também percorrer, por meio da experiência da autora, as trilhas

“cheias de sentidos” que a mesma visitou. As lembranças recorrentes em suas crônicas

fazem com que nos tornemos “viajantes-aprendizes” das tradições e costumes de diversas

etnias angolanas.

As crônicas, muitas vezes, deixam de lado o compromisso de relatar apenas

acontecimentos do presente, para falar do que a poeta chamou de viagens antigas

(TAVARES, 1998, p. 19). Ela conta-nos as histórias, muitas vezes narradas por contadores

de histórias de sua terra, que se entrelaçam às suas próprias experiências de também

narradora de suas viagens:

Assim as histórias das viagens antigas. Começavam sempre um pouco antes nas
azáfamas de uma preparação meticulosa oficiada pela voz sacerdotal do meu pai e a
capacidade de multiplicação do tempo da minha mãe. Depois era uma lenta descida
pelos rios interiores da antecipação: o rememorar de conhecimentos que nos tinham
ficado escondidos na alma pelos contadores de histórias que, de serviço, aos serões
de um tempo sem televisão e com uma rádio rigorosamente controlada, nos
gravavam uma sede expectante sobre a alma dos lugares (Ibidem, p. 19).

Um terreno semeado de imagens, sensações e vozes: a arte de cronicar de Ana Paula

Tavares. O trecho citado reitera o que Rita Chaves, em trabalho já anteriormente referido,

ressalta e que perceberemos ao longo da dissertação: (...) o leitor, atento, vai percebendo

que os textos, de fato, se potencializam se lidos em voz alta, porque guardam na


62

elaboração de seus argumentos uma densa ligação com a oralidade (CHAVES,

www.fflch.usp.br).

Ao longo dessa crônica, o sujeito enunciador rememora viagens por caminhos

guiados pelo palavrear do contador de histórias que, para além dos recursos técnicos da

comunicação, permitia que as asas do sonho e da poesia (não nos esqueçamos do tempo de

voar) se lançassem em rios infinitos da imaginação, tão fundamentais em tempos difíceis:

Logo de seguida os cheiros à solta, sólidos, antecipando espaços de euforia e


liberdade que só as viagens permitiam.
Lembro ainda que os contadores de histórias nos tinham antecipado geografias que a
nossa memória hoje confirma mais do que nesse tempo a nossa infância distraída
permitia (TAVARES, 1998, p. 19).

Ao exercício do ouvir é acrescentada a experiência do viver, do experimentar

paisagens, sons, cheiros, gostos e vozes, de modo semelhante ao usado pelos contadores de

histórias: Mais tarde eu própria oficiei esse tempo solene de preparação, quase todas de

jeep em busca do país cultural, que é uma forma como qualquer outra de ir deixando a

alma inscrita nos locais de nossa devoção (Ibidem, p.19).

É feita nessa narração uma espécie de “releitura” dos relatos ouvidos na infância. A

distração infantil impede a retenção de várias das informações e imagens sugeridas pelos

contadores. Ocorrida a experimentação dos fatos, a história passa a ser “refeita” e não

“revivida”, como explica Ecléa Bosi ao discorrer acerca da experiência da releitura:

A impressão inicial é a de um reencontro com o frescor da primeira leitura. Na


verdade, antes de reabrir aquelas páginas seríamos capazes de lembrar poucas coisas:
o assunto, algumas personagens mais caracterizadas, este ou aquele episódio mais
pitoresco, emocionante ou engraçado e, às vezes, a imagem de uma gravura. Ao
encetar a releitura esperamos que voltem com toda a força e cor aqueles pormenores
esquecidos, de tal maneira que possamos sentir as mesmas emoções que apanharam o
nosso primeiro contato coma a obra. Esperamos, em suma, que a memória nos faça
reviver aquela bela experiência juvenil. Mas, se fizermos uma análise objetiva da
63

situação em que se desenvolve a releitura, teremos de reconhecer que não é isso que
se dá. Parece que estamos lendo um livro novo ou, pelo menos, um livro
remanejado.(...).
A diferença maior, e inevitável, está no teor das idéias e das reflexões sugeridas pela
nova leitura (BOSI, E, 1994, p. 57).

E é sobre esse “novo livro” de experiências que Ana Paula Tavares continua a nos

contar em sua crônica: Depois era mergulhar no mato de encontro às interrogações da

história por fazer, a coleção de aventuras a aumentar e a descoberta de um chão

demarcado por culturas que muito anteriormente tinham atravessado e modificado a nação

(TAVARES, 1998, p. 20).

Diante dessa releitura, a cronista nos apresenta suas reflexões e conclusões acerca

dos bens culturais que sua terra deixava marcados para sempre naquela que por meio da

palavra seria também uma guardiã das tradições e histórias descortinadas por sua própria

vivência:

Sem percebermos, tornávamo-nos responsáveis pela presença incómoda de um


patrimônio que devíamos assumir e preservar. O facto de nem sempre o
conseguirmos não nos libertou do fardo (e como pesa) da tarefa de guardadores da
memória.
Essa incomodidade obriga-nos a percorrer o actual chão dos nossos exílios como
caixeiros-viajantes das questões culturais de nossas terras (Ibidem, p. 20).

Ana Paula Tavares demonstra, em suas crônicas, que não é fácil assumir o

compromisso de preservar as heranças dos muitos povos de seu país. Não há como fugir de

sua própria história, de suas íntimas lembranças, de tudo aquilo que a fez crescer,

assumindo o seu papel de também contadora de histórias de sua região, seja por onde for:

(...) uma espécie de viagem ao contrário, onde o importante é chegar e mascarar uma

funda desorientação, pronunciando as palavras mágicas que nos introduzem no universo

da palavra, de semeadores de sentido (Ibidem, p. 20).


64

As suas palavras de cronista e de poetisa espalham sementes que fazem brotar,

recriados, muitos traços do patrimônio cultural de determinadas etnias angolanas, refletindo

sobre os múltiplos sentidos dessa lavra e para que serve ela. Assim, Ana Paula Tavares vai-

nos guiando pelos fios narrativos de suas crônicas, conjugando também a mestria de saber

manejar o verbo poético:

Os poetas têm sobre o comum dos mortais a grande vantagem de poder cultivar, na
sua grande lavra de palavras, passados intactos que visitam e tratam para depois
distribuir por pequenos trabalhos que nos devolvem a um mundo mais-que-perfeito e
entretanto perdido. (Ibidem, p. 48).

Nas crônicas de Paula, vamos, a cada linha, penetrando em espaços perdidos na

história, mas reinventados e reencontrados pela poetisa. A linguagem resguarda a memória

dos danos difíceis causados pela guerra. Palavra e memória: uma necessária à outra, como

argumenta Alfredo Bosi:

A memória articula-se formalmente e duradouramente na vida social mediante a


linguagem. Pela memória as pessoas que se ausentaram fazem-nos presente. Com o
passar das gerações e das estações esse processo “cai” no inconsciente lingüístico,
reaflorando sempre que se faz uso da palavra que evoca e invoca. É a linguagem que
permite conservar e reavivar a imagem que cada geração tem das anteriores.
Memória e palavra, no fundo inseparáveis, são a condição de possibilidade do tempo
reversível (BOSI, A. 1992, p. 28).

Essa possibilidade de palmilhar as estradas memorialísticas pela palavra é adotada

pelo narrar da nossa cronista que conclui: Não surpreende assim que seja pela mão das

palavras que se pode fazer o regresso à casa da mãe, às distintas cores da infância e aos

cheiros dos nossos contentamentos (TAVARES, 1998, p. 48).

Conduzidos pelo palavrear de Ana Paula em crônicas contadoras das tradições de

Angola, os leitores aprendem que a palavra é um pacto com o tempo. Mesmo que seja um
65

tempo fissurado entre realidade e sonho, entre vivido e por viver, entre ruído e silêncio

(Ibidem, p. 49).

Por meio desse modo de cronicar, nos entregamos à aventura de mergulhar em

águas longínquas, possíveis por intermédio do fio condutor que une algumas das ricas

tradições de Angola, Ana Paula Tavares, suas crônicas e nós, leitores: a palavra. E essa

desvela como a língua se mostra essencial nesse processo de preservação cultural. Para que

cada palavra possa ser pronunciada, ela tem por fundo a língua inteira como sistema de

significação que reflete nossos valores, costumes, tudo o que constitui o mundo da nossa

cultura, ensina Adauto Novaes a respeito da importância das línguas como formas de

identidade (NOVAES, 1992, p. 11).

Recorrendo a Albert Memmi, explicamos a dificuldade encontrada na luta pela

manutenção da língua materna e a necessidade de aprender a de quem coloniza, pois

munido apenas de sua língua o colonizado é um estrangeiro dentro do seu próprio país

(MEMMI, 1977, p. 97).

Percebemos que não foi possível ao colonizado a posse única de sua língua, pois,

como ressalta Memmi, no contexto colonial o bilingüismo é necessário. É a condição de

toda a comunicação, de toda a cultura e de todo progresso (Ibidem, p. 97) e ainda

acrescenta: (...) o bilingüismo colonial não pode ser confundido com qualquer dualismo

lingüístico. A posse de duas línguas não é apenas a de dois instrumentos, é a participação

em dois reinos psíquicos e culturais (Ibidem, p. 97).

O colonizado não necessariamente sobrepôs a língua colonizadora à sua. Ele serviu-

se do idioma do colonizador naquilo que se fez necessário e preservou a que era única,

exclusiva e inerente à sua história: a língua materna. Mas, no decorrer da história de

Angola, muitos assimilados adotaram a língua portuguesa e seus filhos já tiveram o idioma
66

português como língua materna. Portanto, os escritores de países que foram colônias devem

articular essa relação “colonizado X colonizador”, no que diz respeito à comunicação, em

favor da propagação da cultura de sua terra, como enfatiza Memmi:

O escritor colonizado, que chegou penosamente à utilização das línguas européias —


a dos colonizadores, não o esqueçamos — não pode deixar de servir-se delas para
reclamar em favor da sua. Não se trata nem de incoerência nem de reivindicação pura
ou cego ressentimento, mas de necessidade (Ibidem, pp. 99-100).

Ana Paula Tavares assume seu papel social como escritora e sabe servir-se da língua

portuguesa, seu idioma materno. Isso fica claro em sua crônica “Língua materna” (SB),

desde as epígrafes escolhidas por ela: “[...] Português, irmão, é difícil mas não custa

(Lourentinho, personagem de um livro de José Luandino Vieira)” e “Pela voz da mãe eles

já conhecem a mãe deles...(Provérbio cabinda). A sabedoria dessas citações anuncia o tecer

crítico da autora que começa por dizer: Há nas nossas relações com a língua materna um

certo efeito almofada que, como a mão fresca das mães nas nossas infâncias febris,

amortece a queda, suaviza a dor (TAVARES, 1998, p. 13).

Ciente das contradições inerentes à literatura angolana e às etnias de Angola, no que

diz respeito ao pluralismo lingüístico e à função crítica da linguagem enquanto ferramenta

da literatura, Ana Paula Tavares explica o sentido lato da língua e a disponível volubilidade

desta para que lhe sejam asseguradas uma efetiva comunicação e propagação, de modo que

ela, a língua, se torne aberta a múltiplos sentidos e sonoridades, o que é imprescindível à

sinfonia literária:

(...) Como as pessoas, a língua alarga-se à convivência com as outras, oferecendo-se


mesmo ao acto de incorporar no seu próprio corpo outras sonoridades, outros
empréstimos. Sempre observei com gosto a alquimia generosa da língua portuguesa
engrossando ao canto umbumdo, sorrindo com o humor quimbumdo ou incorporando
67

as palavras de azedar o leite, próprias da língua nyaneka. O contrário também é


válido e funciona para todo o universo das línguas bantu e não só faladas nos
territórios, onde hoje se fala também a língua portuguesa (Ibidem, p. 13).

A cronista nos mostra que a língua é, ao mesmo tempo, semente fertilizante e

terreno fertilizado. Corpo que se quer semeado, grávido, eterno gerador dos signos que

perpetuam a existência da cultura e da memória humanas.

Memmi discute ainda que a língua do colonizado é aquela nutrida por suas

sensações, suas paixões e seus sonhos, aquela pela qual se exprimem sua ternura e seus

espantos, enfim a que contém a maior carga afetiva (MEMMI, 1977, p. 97). E na crônica

em questão a autora também aponta os laços indissolúveis (e que se querem assim) da sua

vivência social com sua língua mãe:

(...) a língua materna vai connosco [sic] à escola e aprende a domesticar-se e a fingir-
se. Assimilada, calçada e de bata branca durante certas horas do dia, solta-se
selvagem e descalça na hora do pontapé, do futebol e da pancada. Pode lá disparatar-
se sem ser em língua materna?
Enfim, a língua é uma espécie de segunda pele, impressão digital, única, pessoal,
contagiosa poderia mesmo dizer-se (TAVARES, 1998, p. 14).

A cronista relata-nos ainda como os contadores de histórias usam as suas línguas

maternas para realizarem as tarefas de Deus, a transmutação do corpo em voz e, uma vez

voz, repetir o murmúrio da tradição que assim se transforma em pedra de tanto durar

(Ibidem, p.14). E toma para si essa responsabilidade de transmissora das questões culturais

de seu país, ao assemelhar-se ao contador de história, quando diz: Os poetas também sabem

desses ofícios (Ibidem, p. 14). E sabem que pela língua e pela palavra podem reinventar

passados, revisitar lugares, viajar por entre a(s) cultura(s) e trapacear tempos de dor: À

força de voz e no meio da língua fundamos o nosso lugar e inventamos a utopia quando

gela frio intenso (Ibidem,p. 14).


68

Em A cabeça de Salomé, coletânea de crônicas disfarçadas de contos (ou vice-

versa), há também textos banhados pela metalinguagem e que apresentam reflexões

poéticas acerca da palavra e da língua.

Em “Língua da terra” (CS) a cronista traça um caminho revestido de cenas do

pretérito e do presente, que se mostram espelhos das relações dos indivíduos com a língua.

Ensina-nos que silêncio também é verbo, ou melhor, é dele que todas as coisas nascem,

inclusive a palavra, e, como tal, apresenta-se cheio de significação e, principalmente, voz:

O rosto de madeira do pequeno pensador adormecido tem gravada esta expressão do

silêncio que antecede a linhagem, que perpetua um tempo para lá da eternidade, antes do

fogo, antes da terra e da lua (TAVARES, 2004, p. 112).

O texto se constrói por intermédio de um discurso maduro de quem sabe que falar a

mesma língua não garante o entendimento da comunicação e que o silêncio e a diferença

têm muito a ensinar e a dizer. A existência da palavra se dá justamente na oposição ao

silêncio e saber sobre o outro é também aprender a escutar, bem mais do que falar:

Homens e mulheres falavam, então, línguas diferentes, residindo a fórmula perfeita


do entendimento, nessa capacidade de prestar atenção e medir a palavra, cada uma
pronunciada de maneira clara, ganhando forma no contraste com o muro de silêncio
que separava os mundos (Ibidem, p. 112).

As palavras dessa crônica se mostram sedutoras. Algumas até secretas, encantando

justamente pela descoberta das diferenças, pela observação do outro, do novo, da beleza da

língua e da linguagem, da percepção daquilo que o silêncio e o falar têm de tão diferentes e,

principalmente, do que têm em comum que é a aprendizagem recíproca:

As relações entre os homens e as mulheres nasciam de um longo processo de


aprendizado. As grandes histórias de amor mediam-se em unidades de crescimento
69

que os dias, as noites e os anos ajudavam a cimentar. Os nomes secretos de cada um


(a tradição fala em sete nomes disponíveis para cada indivíduo [...] ) não podiam ser
pronunciados, pois permaneciam como prova e resíduo do sopro inicial do tempo do
silêncio. Por isso dispunham de um oitavo nome para o uso diário, em fórmulas de
ternura que ainda não tinham caído em desuso (Ibidem, p. 112).

Conta-nos, porém, a autora que a magia pela descoberta das línguas, das palavras,

do outro, se perdeu e que, desde então, o silêncio foi banido das terras Lunda. Os tambores

anunciam as falas. Toda a gente fala a mesma língua mas ninguém se entende (Ibidem, p.

113).

Nas crônicas de Ana Paula Tavares, observamos a importância da palavra na cultura

angolana por meio das inferências da cronista que faz de sua escrita uma vibração, força

vital. Amadou Hampâté Bâ construiu reflexões, no texto “Palavra Africana”, que vão ao

encontro do sentido que Paula Tavares atribui às palavras em seus textos, pois ele nos

ensina: Se a palavra é força, é porque cria um vínculo de vaivém gerador de movimento e

ritmo conseqüentemente de vida e ação (HAMPÂTÉ BÂ, 1993, p. 16).

Na crônica “Língua da terra” (CS), aprendemos que do silêncio nasce a palavra e

que desta, como demonstrou Amadou Hampâté Bâ, surge a força, a vida: (...) todas essas

forças de que o homem é herdeiro jazem nele como forças mudas, em estado estático, entes

que a palavra as venha pôr em movimento. Graças à vivificação da palavra divina, tais

forças começam a vibrar (Ibidem, p. 16).

Hampâté Bâ também assinala como a atividade artesanal é considerada a repetição

do mistério da criação da vida. Repletos de cantos e palavras rítmicas, os gestos dos

artesãos são considerados linguagem plena. Cada produção do tecelão e do ferreiro se inicia

por meio de palavras pronunciadas em típicos rituais, que tecem, assim, a arte por meio da

palavra: (...) é o próprio cantar da vida (Ibidem, p. 18).


70

Sobre o nascimento do verbo, “fala-nos” mais uma crônica da nossa também tecelã

de poesia. Um texto da cronista, cheio da magia e força poética da palavra africana,

intitulado “A cor das vozes” (CS), metaforiza o mistério da criação tecido pelas mãos de

uma mulher:

A senhora das mãos de seda colocou no cesto da tradição, por ordem, as tintas
antigas. Amassou com dedos finos, tacula e lápis-azul, moídos sem pressa com
gestos longos nos dormentes esquecidos das antigas casas da aldeia. O pó dos
alfabetos (latim, éfik, desenhos geométricos em carapaças de tartaruga) foi misturado
em cuidadas operações com óleos, vegetais, minerais e perfumes.
A senhora das mãos de seda amarrou o sopro das vozes dentro do cesto de
adivinhação e inventou o mundo a partir das relações entre os diferentes sons.
Aprendeu a olhar uma por uma e a cobrir de panos as palavras nuas da história.
(TAVARES, 2004, p. 115).

Nessa alquimia banhada por cores, sons, cheiros e delicadeza em seda,

testemunhamos o respeito pela palavra e pela tradição existentes nas crônicas de Ana Paula

Tavares, cujos ensinamentos são, entre outros, os de que experimentar a palavra é também

provar o gosto saboroso e profundo da vida:

Para conhecer e distinguir as diferentes notas das vozes, a senhora das mãos
experimentou tudo: a escrita das pedras, a escrita na areia, o alfabeto grego, a escrita
tifinagh e a revelação dos sonhos transcrita directamente dos símbolos mais perfeito.
Aprendeu a bordar tapetes showa, veludos do Congo, esteiras com provérbios
inscritos. Coleccionou as fibras de toda as espécies vegetais, mesmo as
aparentemente desaparecidas dos mapas mais à mão (Ibidem, pp. 115-116).

Esse trecho ratifica a idéia de que tudo é palavra que tomou corpo e forma

(HAMPÂTÉ BÂ, 1993, p. 16). A cronista mostra-se como a “senhora das mãos de seda”,

criadora e ao mesmo tempo aprendiz da palavra que nunca cansa de se “auto-reinventar”

em formas, cheiros e sons: De cada vez que uma voz se mexia, ela ficava uns momentos
71

quieta a descobrir-lhe as cores, os silêncios, os cheios, os vazios, enquanto nas voltas que

dava procurava versos na poeira do sol (TAVARES, 2004, p. 116).

Amadou Hampâté Bâ ressalta a sabedoria daquele que deseja aprender a arte e fazê-

la seu ofício: O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas observar e soprar. Essa é

a fase “muda” do aprendizado. À medida que seus conhecimentos aumentem, soprará

ritmos cada vez mais complexos, que têm, todos eles, um significado (HAMPÂTÉ BÂ,

1993, p. 19).

Por entre os ritmos geradores da poesia, da tradição, da memória, e, sobretudo, da

palavra, somos guiados pelo cronicar de Ana Paula Tavares que, assim como “a senhora

das mãos” em “A cor das vozes”, tem uma luz espalhada na alma que, às vezes, empresta

às palavras quando estas se repetem, são pouco polidas, ou aparecem nuas e ásperas como

as sedas (TAVARES, 2004, p. 117).

Ana Paula Tavares escreve sobre o tempo de histórias difíceis, sobre o exercício da

memória, sobre a arte da palavra. E, sob o sopro de sua pena, registra o circunstancial, o

presente, para, a partir desse, interpretar o passado, pois a história é bem contemporânea,

na medida em que o passado é aprendido no presente e responde, portanto, aos seus

interesses, o que não é só inevitável como legítimo (LE GOFF, 1990, p. 51).

A cronista reinventa tradições, histórias, trilhas memorialísticas, sem deixar de lado

o essencial da crônica: a leveza do gênero. Seu tecer narrativo não desfaz os laços com sua

formação poética, embalando suas crônicas num ritmo marcado pelo lirismo e pela força

vital da palavra. Rita Chaves ressalta essa relação “poético-narrativa” nas crônicas de

Paula:
72

A lâmina da poesia tem sido uma ferramenta adequada para penetrar em câmaras
fechadas, em cantos escuros, por isso a ela a cronista se apega e seus textos atestam
que a opção pela prosa, e pela prosa curta, não postulam uma ruptura com o lírico.
Ao contrário, através dos textos, vamos percebendo que a intimidade com a poesia
manifesta-se de modo vivo, uma comunhão materializada no inesperado das
imagens, na busca pelo insólito para falar do desconcerto do mundo (CHAVES,
www.fflch.usp.br).

Na crônica “O teatro da vida” (SB), é confessada pela autora a tristeza de sempre

estarmos a ouvir notícias tristes, narrativas obscuras que não se mostram capazes de utilizar

a palavra para produzir força, nem o silêncio para gerar vida:

A notícia alimenta-se de uma peculiar construção narrativa, estrutura-se apoiada


numa sintaxe e num ritmo que o fragor da batalha criou. Ficou tão dependente dessa
figuração do discurso, precisa tanto de sangue para viver, que se alicerça num
maniqueísmo vicioso: ou há guerra e há notícia, e ou não há e logo um silêncio que
torneia o inacabado da frase, a forma interrogativa, ou interrogativa-negativa, se
substantiva: África deixa de existir durante dias (TAVARES, 1998, p. 134).

Para além de narrativas banhadas de lágrimas e sangue, a cronista quer a descoberta

de magias antigas, a saúde pela palavra, a busca incessante do “prazer da língua”

(Ibidem, p. 135), pois, como ensina Barthes: Se leio com prazer essa frase, essa história ou

essa palavra, é porque foram escritas no prazer (BARTHES, 2004, p. 9). E continuaremos

a sentir esse prazer, no narrar de Ana Paula Tavares que dança, canta e toca os tambores do

ritmo vital da poesia, conforme observaremos, também, em suas crônicas analisadas no

capítulo seguinte.
73

4.2 O Colorir da Poesia e a Arte de Contar e Cronicar Histórias

A nossa conversa percorrerá oásis


Os lábios a sede

Ana Paula Tavares∗

A crônica, como mostramos em capítulo anterior, geralmente nos deixa a sensação

de estarmos a conversar com um amigo próximo. Alguns textos acentuam, de forma

explícita essa característica e evocam o leitor, proporcionando com este um diálogo claro.

Há crônicas que sugerem essa conversa de uma maneira velada, porém não menos íntima,

afinal só para amigos (ou para quem deseja sê-lo) contamos nossas histórias e lembranças.

Para Ruth Silviano Brandão o texto, literário ou não, exige uma extrema delicadeza

para ser analisado, tocado, invadido em sua interioridade. Texto é o lugar onde o sujeito

se inscreve e se escreve (BRANDÃO,1995, p. 21). Notamos, então, que o leitor amigo

necessita ser atento e cuidadoso ao “escutar” o que o texto desejou contar, ou melhor, o que

o sujeito quis que fosse contado sobre ele.

O autor almejou não apenas escrever sobre algo, ou acerca dele mesmo, mas se

inscrever, deixando marcas e traços de uma escrita própria, perpetuando-se a cada curva

textual. Assim, também se quer o cronista: a cada instante flagrado deseja mostrar-nos o

que o tocou, o que o motivou a compartilhar conosco aquele acontecimento do cotidiano.

Da mesma forma, as crônicas de Ana Paula Tavares. Seus textos querem dividir as

experiências, histórias, lembranças, narrações com aquele que lê. Aspiram tanto à invasão

por parte do leitor que não se contentam com as folhas diárias do jornal, quanto sua difusão

por meio do rádio. Querem-se livro. É a partir desse contar, desse modo de “conversar”, ou


TAVARES, Paula. Manual para amantes desesperados: poemas. Luanda: Editoria Nzila, 2007, p. 9.
74

melhor, “cronicar”, que nos deixamos levar pelas narrações da autora, cujas constantes

reflexões líricas revelam sua face poética.

Na crônica “O pintor” (SB), percebemos o olhar observador da cronista a capturar a

beleza e a arte, no ofício daquele que, assim como o poeta, tem por objetivo, para além do

simples recobrir de tinta, o envolver de cores as paredes da vida:

Durante muitos anos vi-o na sua forma sólida, um pouco curvada, mas sempre
discreta, passear pelos lugares num estudo minucioso dos materiais.
Era a um tempo estranho e familiar observar a figura alheada do pintor, longe da
azáfama dos anos de brasa, procurando meditar e ressuscitar para a vida as coisas
simples do chão, os imperceptíveis ruídos da terra (TAVARES, 1998, p. 54).

A cronista olha, examina e narra minuciosamente o trabalho artesanal do pintor que

busca o sentido das coisas, o significado dos tons, na tentativa de representar a simplicidade

dos gestos através da mestria de colorir. E para apreender a fugacidade dos segundos, faz-se

necessário sentir e não apenas ver:

Seus olhos filtravam do chão, de terra batida, sabedorias antigas de encontrar o ocre,
o branco e o negro, cores da vida e da morte.
O seu olhar sobre as coisas era tão quieto e tão atento que parecia ouvir mais do que
ver, o jogo de transparência e sombra reflectido nos grandes silêncios da terra o nos
ruídos do mar (Ibidem, p. 54).

Continuou, assim, a “perseguir” os passos do pintor, tentando também colher da

terra a cor da vida, a pigmentação da poesia. Seu olhar de cronista atenta permite que o

leitor experimente os gestos do pintor, sendo também guiado pelo ritmo desse artesão que

busca não apenas o sentido das cores, mas as cores dos sentidos. Palavras a pincelar com

sentimento um painel poético:


75

Eram muitas deambulações, na aparência sem sentido, atravessando os rios de


jangadas, ou mergulhando nos oceanos à procura dos limites da cor, ao encontro da
sua vibração mais íntima, para estabelecer diálogo com o visível e o invisível na fala
de cera entre os espaços, depois enquadrados segundo outras perspectivas (Ibidem, p.
55).

Uma procura pelas cores, pelos sentidos é clara na escrita da cronista que também

revela, nesse texto, a sedução pela palavra, ou melhor, pelos caminhos que leva sua palavra

também a colorir com narrações. Na poesia do pintar, a inspiração do contar, do cronicar:

Criava uma poética da transfiguração, com palavras feitas de materiais recolhidos do

chão e organizados nos seus textos ocres e amarelos (Ibidem, p. 55).

É do chão, da terra que brota a inspiração para os temas inscritos nas narrações de

Ana Paula Tavares. Textos que, inundados de palavras preenchidas por tintas de tons

vibrantes, despertam a atenção do leitor que deseja continuar a conversar com as crônicas e

sobre estas, viajando, assim, pelas histórias contadas pela cronista. Histórias, às vezes,

provenientes de suas lembranças de infância como é o caso, por exemplo, da crônica “A

escola 60” (SB) que reflete sobre os espaços marcados pelas descobertas do crescimento.

Ecléa Bosi explica que a lembrança é a sobrevivência do passado. O passado,

conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de

imagens-lembrança (BOSI, E., 1994, p. 53). E essa alomorfia da palavra em imagem nos é

apresentada na referida crônica:

Era uma escola pequena, de bairro, quase portátil, entalada entre a oficina de
automóveis “Auto Reparadora da Huíla”, a casa vazia do antigo Odeon-Cine-Teatro
e o Parque Infantil.
Dois enormes jacarandás invadiam o pátio com suas raízes de tronco e a festa dos
tapetes deixados pelas suas flores roxas, em Setembro, quando a escola reabria
(TAVARES, 1998, p. 60).
76

Assim como a crônica “O pintor”, também “A escola 60” se deixa inundar pelas

cores, imagens e gestos que vestem a roupagem das palavras gravadas no papel por Ana

Paula Tavares. E as ações tipicamente infantis vêm à tona num discurso que se mostra

cheio de contentamento nessa viagem ao passado:

À oficina de automóveis ia-se tarde roubar rolamentos que, juntamente com as tábuas
dos caixotes das lojas da esquina, serviam para elaborados carrinhos guiados a alta
velocidade, encostas abaixo pelas ruas das cidades.
Os mais inaptos (nabo era a palavra), aqueles que mal conseguiam a proeza de
manobrar tão sofisticadas máquinas, eram nomeados penduras, encargo que
significava normalmente carregar às costas o carro dos mais hábeis na condução e na
pancada (Ibidem, pp. 60-61).

Os medos, fantasias e descobertas de criança habitam as linhas desse texto,

mostrando o faro aventureiro e a abundante imaginação que, em geral, todos nós

esbanjamos em nossa meninice. A capacidade de transformar qualquer objeto e instante

num inesquecível e valoroso momento de brincadeira:

O velho Odeon era um espaço misterioso escurecido de dia e de noite, com metros de
película abandonada e mágicas caixinhas vazias com rótulos comidos pelo tempo,
onde ainda se podia ler “CLEÓPATRA”, parte dois, que recuperávamos e enchíamos
de novos tesouros (papéis, ossos, asas de salalé e gafanhotos, pedaços de cabelo da
pessoa amada) e enterrávamos no jardim das casas dos avós e dos vizinhos, não sem
antes ter elaborado complicados mapas do tesouro impossíveis de ler para todo o
sempre (Ibidem, p. 61).

Enterrado, porém, não ficou o senso crítico da autora que revela o quanto sensível é

o coração infantil que, desde novo, aprende a discernir a crueldade em alguns adultos e em

sociedades opressoras, prenhes de discriminações e exclusões:

Ana Maria, loira e de olhos azuis que, nos teatros da escola, desempenhava sempre
os papéis de nossa senhora, enquanto às nossas peles escuras estavam reservados os
lugares menores de criados, o que mesmo sendo criado de Nossa Senhora,
decididamente não nos agradava. Nos anos de sorte e no Natal alguns de nós
77

puderam representar os reis magos, o que significou uma certa promoção (Ibidem, p.
61).

Assim é o gênero da crônica: se tece por entre lembranças, acontecimentos,

reflexões críticas. Sempre, porém, acompanhado de um bom “papear”, o cronista conta com

a figura de um amigo que o “ouça” do outro lado da página, que lhe empreste o ouvido para

os temas “sérios” e também para as trivialidades. Afinal, alguns escritores conseguem fazer

do insignificante, do corriqueiro, ou mesmo do prosaico, meteria poetizável, ensina-nos

Lúcia Castello Branco (BRANCO, 1995, p. 122).

Também compartilhamos dessa matéria-poesia nos textos de Ana Paula Tavares que

trava um aparente “papear” da crônica com aquele que a lê. Às vezes, certos cronistas

invocam claramente esse leitor, outros assumem o lugar “entre” da crônica e preferem o

chamamento mais velado, implícito, contudo, não menos, convidativo, pois demonstra que

seu texto (literário, não nos esqueçamos!) se quer fazer desejar, que deseja ser lido e que se

comporta de forma semelhante a todo discurso sedutor, armador de trapaças, criador de

armadilhas (BRANDÃO, 1995, p. 22).

A crônica tem um caráter multifacetado e incorpora esse discurso de sedução. Nos

textos de Ana Paula Tavares não há referência explícita ao leitor, mas nem por isso suas

crônicas deixam de exigir o comparecimento deste na abordagem do tema, uma vez que

dissertam sobre questões dignas de serem conversadas, discutidas e, como nos diálogos, há

uma relação entre duas ou mais pessoas. No caso da crônica, acirra-se esse vínculo entre o

leitor e o texto literário; sendo assim, o leitor sublinha, recorta, seleciona, pontua,

reescreve o texto lido (Ibidem, p. 21).

Roland Barthes nos ensina que ler é fazer o nosso corpo trabalhar (...); ao ler, nós

também imprimimos certa postura ao texto, e é por isso que ele é vivo (BARTHES, 2004,
78

p. 29). E nosso corpo responde aos apelos da crônica, pois refletimos e tecemos

comentários acerca daquele instante flagrado pelo cronista, mesmo que estes fiquem

guardados no texto da nossa mente. Não vivenciamos o ocorrido, mas, assim como fazemos

com nossos amigos, sentimo-nos no dever de também esboçarmos a nossa postura diante

do fato. Poderíamos até fazer nascer uma outra crônica daquela já lida.

Em “A Escola 60”, podemos confessar que por alguns instantes as imagens, as

lembranças das nossas próprias histórias da infância, das nossas aventuras entre amigos,

dos nossos anos escolares, colocam-se frente aos nossos olhos. Afinal, quem nunca se

flagrou contando seus contos, suas narrações, ou melhor, quem nunca se surpreendeu

cronicando?

Diante desta inevitável intimidade leitor-autor proporcionada pelo gênero crônica,

ficamos a ouvir as narrações de Ana Paula Tavares. Viagens, recordações, história, Angola,

Huíla, infância, língua: a diversidade temática é grande e a palavra é sempre utilizada como

ferramenta condutora por entre essas trilhas que nos levam a viajar e refletir.

Nas linhas desenhadas por Paula, há muitas histórias e muito a se capturar com a

alma, conforme a própria autora ressalta em “Recensões críticas” (SB): Dizem-me os sábios

cabinda [sic] que isso é mesmo assim e que a história resulta da hábil conservação de

segredos, daqueles que nunca são revelados a não ser aos iniciados na linguagem secreta

das coisas da alma (TAVARES, 1998, p.108).

Algumas histórias extrapolam os limites das terras angolanas, como é o caso da

crônica “Chão das ilhas” (SB) que discorre acerca de Cabo Verde. Sabe a cronista que

muitos leitores não conhecem o território cabo-verdiano, não obstante cumpre o papel de

conduzir o leitor-amigo ao “chão das ilhas” pelo fio narrativo-poético:


79

Demorei muito tempo a perceber esta deambulação fascinada por uma terra
desconhecida, embora muito frequentada pelo recurso às literaturas e outras músicas
chegadas de lá e com morada certa no coração das gentes.
Talvez não seja preciso conhecer as ilhas para adivinhar a sua pequena extensão
plantada no meio do atlântico, atravessando em súplica a sua solidão de seca,
fazendo de intérpretes entre o mar e o continente, entre o continente e o resto do
mundo (Ibidem, p. 80).

O tema é a seca, todavia a cronista não assume um discurso lamentador sobre o

assunto. Ao contrário, busca, através da poesia, mostrar o encantamento das ilhas e das

águas. Fala-nos das línguas, da musicalidade no cantar e falar dos habitantes de Cabo

Verde. Os pedidos por chuva se transformam em sensíveis canções dentro do peito de quem

vive e conhece as ilhas:

Só essa experiência pode explicar o granulado das vozes falando uma língua
suavemente encaracolada, uma língua feita para sentir e, portanto, forte e, ao
mesmo tempo, capaz de se fazer cicio na oração pela chuva passada de boca
em boca durante a “estação das brisas”, que dura de Dezembro a Junho e às
vezes se eterniza o ano inteiro (Ibidem, p. 80).

Num texto inundado pela sinestesia, as palavras se ligam por uma musicalidade

poética sussurrada em nossos ouvidos. Como em uma “morna”, a típica canção popular dos

cabo-verdianos, as palavras cantam a dor e a saudade daqueles que suplicam pelas águas

pluviais e por aqueles que saíram das ilhas, mas deixaram suas almas nelas inscritas. A

crônica celebra a sabedoria de outras viagens em histórias dentro de outras histórias:

Os deuses vagueiam inquietos e habitam essa zona de espera entre Agosto e Outubro.
Tentam controlar os ventos e cumprem estranhas profecias, entre as quais o hábito de
olhar a multidão e com ela apreender a leitura dos lábios da linguagem antiga e aos
caracóis que é, a um tempo, voz poética e instrumento que molda todos os sentidos e
os convoca na auscultação dos segredos da terra e do céu (Ibidem, pp. 80-81).
80

Vozes, línguas, bocas, lábios, olhares, águas, canções, letras inundadas de poesia e

sedução que embalam com ritmo e sensualidade as literaturas africanas de língua

portuguesa, aqui representadas pelo cronicar de Ana Paula Tavares.

As palavras contidas nesse texto, e em tantos outros já citados, dançam, sussurram,

seduzem, gesticulam, assumem vida dentro de um discurso que se quer sedutor perante um

leitor que se deixa seduzir pela aparente simplicidade de uma crônica. Mínimas palavras

num máximo de representações, de sugestões. Uma relação da linguagem com a própria

linguagem, conforme explicou Lúcia Castello Branco ao falar sobre poemas de Drummond,

o que pela associação com a poeticidade do discurso de Paula Tavares, nos permite tal

incorporação:

(...) o olhar do leitor é substituído pelo ouvido de um ouvinte supostamente distraído


– a leitura se transformando antes numa escuta acariciante, acalentadora,
perturbadora, hipnótica. Como o sopro da voz da mãe na orelha do bebê, como o
murmúrio dos amantes num momento de amor, como um dialeto peculiarmente
íntimo, absurdamente singular, a que apenas o escritor e o leitor – únicos no ato da
leitura – têm acesso (...) (BRANCO, 1995, p. 120).

É a poesia das palavras de Ana Paula Tavares ao narrar os flagrantes do cotidiano,

isto é, o circunstancial típico das crônicas, que realiza essa relação de intimidade com o

leitor que se mostra conduzido pelo sopro poético de letras dramatizadas em forma de voz a

chamar, a clamar. O caráter intimista se dá para além de um diálogo. Estabelece uma

relação de sedução e toque, pois, como teoriza Roland Barthes acerca do erotismo das

palavras,

a linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse


palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme
de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do
discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado
único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a
linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas
81

palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o


comentário ao qual submeto a relação (BARTHES, 1981, p. 64).

E nessa relação de intimidade entre as palavras e o texto, entre a crônica e a poesia,

entre a cronista e o leitor, Ana Paula Tavares deixa aflorar histórias, narrações, personagens

e tradições ao realizar a arte de cronicar.

Ao contar, “os dedos na ponta das palavras” continuam a tocar a sensibilidade e o

corpo do leitor que se inquieta em meio às narrações; afinal, a arte de narrar é uma relação

alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana (BOSI, E.,

1994, p. 90). Alma para sentir o que para além das palavras está escrito e dito, o que para

além do narrar foi vivido e experimentado pelo corpo e pela mente por entre viagens e

histórias, como nos mostra o início da crônica “Peregrinações” (CS):

As viagens por terras exigem uma disponibilidade do corpo e do olhar para a


compreensão das diferenças entre territórios organizados e outros afogados em capim
e solidão.
Uma grande diferença de capacidade de apreensão deve ser o alerta em estado
permanente, que traduz a capacidade de o viajante se adequar a uma situação de
território desconhecido, quase ou mesmo totalmente selvagem, sujeito a regras de
ocupação e silêncio, que não são regras ditadas pelos homens (TAVARES, 2004, p.
23).

Olho para fotografar as paisagens dentro do coração e da memória. Para não apenas

ver, mas enxergar o que a alma do território tem a mostrar, as cores inusitadas a

surpreender, as vozes da terra a cantarolar:

A primeira vez é sempre uma surpresa: a cor da terra batida, um trilho insuspeito de
um viajante anterior, o verde-acastanhado de um capim teimoso, a pequena depressão
da memória de um rio, agora inexistente, o perigo de uma mão cheia de areia
estendida pelo deserto até a orla da floresta.
Depois, são os sons a dar notícias da existência de bichinhos a contar sobrevivências,
milhões de anos antes de nós. A impossibilidade dos insectos, uma jibóia distraída, a
correria das capotas, o barulho pouco educado dos grous (Ibidem, pp. 23-24).
82

Mão para escrever e descrever o que foi inscrito na alma e registrado pelos olhos, já

que, em “Peregrinações”, narração para ser lida em voz alta, a combinação da voz com os

gestos é fundamental, pois pode-se falar de uma verdadeira relação entre os gestos e o

discurso; é como se os gestos fossem percebidos como um dos recursos essenciais da

comunicação, que sem eles não se estabeleceria (CALAME-GRIAULE, 1993, p. 19).

Gestos e palavras, um a complementar o outro, nessa arte de contar em que se converte a

referida crônica:

O meu amigo não é um viajante, nem um guia, nem uma daquelas pessoas cheias de
sentenças. É, apenas, um coleccionador de rotas, que degusta, fotografa e descreve,
com o deleite de quem procura o caminho da perfeição, mas sabe encontrar o seu
próprio tempo em qualquer lugar.
Dele me lembrei, quando no outro dia contava histórias africanas a alguns meninos
europeus. Quase todos gostaram muito das histórias, dos estranhos nomes, dos
percursos complexos, dos animais de nomes sonantes a encher as histórias, nem
sempre com um final feliz.
Um dos miúdos, no entanto, disse-me: «Não gostei nada, mas lá que o medo, como
todos os caminhos, é um rio que se atravessa molhado, é verdade. » (Ibidem, pp. 24-
25).

O medo é um rio que se atravessa molhado, citação retirada de um livro do escritor

Mia Couto, é a frase utilizada como epígrafe dessa crônica e incorporada ao discurso do

texto. Muitas referências a outras leituras e a provérbios inerentes à cultura popular são

utilizados nas crônicas de Ana Paula Tavares, tanto em O sangue da buganvília, quanto em

A cabeça de Salomé.

Ao leitor é permitida, assim, a leitura de outras leituras, viagens dentro de outras

aventuras textuais e, como enfatiza Ruth Silviano Brandão, sobre a relação do leitor com o

texto literário: as citações são as marcas de quem escreve, de suas escolhas, de suas

viagens por outros textos, e por meio delas o leitor constrói seu trabalho de leitura/
83

escritura, reescrevendo seu próprio texto interno no texto alheio (BRANDÃO, 1995, pp.

21-22).

Na crônica “Corpos proibidos” (SB), a epígrafe escolhida pela poetisa é o próprio

depoimento de uma mulher africana que desabafa: Não conheço uma família em que o

marido limpe a casa, olhe pelas crianças, faça as compras etc. É possível que exista mas

eu pelo menos não conheço nenhuma (TAVARES, 1998, p. 128).

Há nessa crônica, como em quase toda a obra de Ana Paula Tavares, o olhar de

quem escreve e reflete sobre a situação das mulheres, principalmente da mulher angolana, e

sobre o importante papel que essa desempenha na sociedade. Como assinala Rita Chaves no

artigo “A palavra enraizada de Ana Paula Tavares”, a autora não fala pelas mulheres de sua

terra ou de outras, fala com elas, abre-lhes o lugar que elas já ocupam. É essa uma das

maneiras de denunciar uma das muitas injustiças dos tempos que não param de correr

(CHAVES, www.fflch.com.br).

Essa crônica de Paula nos apresenta a cidade de Kinshasa e questiona a vida das

mulheres nessa sociedade opressora, inserida num contexto histórico machista e silenciador

das vozes e vontades femininas. Nesse texto, há um diálogo claro “com” as mulheres para

que reflitam sobre sua condição de cidadãs e, por assim serem (e terem de ser!), gozadoras

de seus direitos civis e políticos:

A noite é realmente absoluta e instala-se logo que o sol descansa de um dia de


trabalho, quase todo a cargo das mulheres que, proibidas de falar em voz alta
rememoram para dentro um dia sem respirar quando acabam a madrugada e a ligam
ao trabalho, ao mercado e às crianças.
Reguladas por um código de família que as não considera parte do “ser colectivo
congolês”, a não ser nos casos de prática de actos contra natureza e outras feitiçarias,
as mulheres são mercadoria de valor acrescentado, pelas famílias que as vendem [o
colonialismo belga protegeu e incentivou esta prática], os maridos que as usam, os
bailarinos e cantores que se servem delas como enormes espelhos dos seus egos
inchados (TAVARES, 1998, p. 128).
84

Corpos proibidos e submetidos aos desejos masculinos, as mulheres, em geral, são

seres sem vontade expressa. Essa crônica cumpre o papel de registrar esse abuso contínuo

do dia-a-dia e que perdura por gerações. Retomando a crônica “A escola 60” (SB),

percebemos que, desde pequeno, o homem aprende o valor da mulher “em casa”, mas, nas

entrelinhas, a cronista sugere que a figura feminina pode saltar para além dos serviços

domésticos e realizar a arte de ser mulher-fêmea, não incorporando apenas o papel de mãe:

Lembro-me sempre das redacções dedicadas às mães e pedidas pela professora.


A redacção do Valério teve honras de ser lida em voz alta. Era assim:
Na minha casa a minha mãe faz tudo: cozinha, lava, limpa, trata de nós quando
estamos doentes e atura o meu pai.
A MÃE É MUITO ÚTIL (Ibidem, p. 61).

A cronista aborda não só os abusos contra as mulheres, porém a força que brota

dessas personagens da vida real, sempre a lutarem, a se sacrificarem, mesmo que em

silêncio. Mas não é da privação do falar que se apropria a palavra de Paula na crônica

“Silêncio, sacrifício e serviço” (SB). O discurso tem voz de mulher, de cronista a denunciar

a dura jornada das “raparigas” e de como elas semeiam a vida:

A vida quotidiana das mulheres, o seu contributo para a construção do passado, o seu
verdadeiro papel na história do continente africano não consta da tradição oral,
escapou, com as excepções já referidas, à pena dos cronistas africanos, europeus, de
todos os lados do mundo.
A história tem passado ao lado de quem nove meses por ano se agarra à terra e dela
cuida, rasgando, semeando, colhendo, protegendo, enquanto ainda arranja forças para
sustentar o corpo inchado e pôr cá fora uma nova criança, para alimentar a linhagem,
para crescer a vida e enganar a própria morte (Ibidem, p. 103).

As mulheres são um dos grandes assuntos da pena dessa cronista que reconhece a

importância feminina na construção da história de seu país e, por que não, também da

história mundial. Palavras, mãos e corpos femininos estão inscritos na obra dessa autora
85

que nos abre os olhos para as trilhas percorridas por mulheres, assim como ela: As mãos

que tecem o tempo, moldam o barro, já imprimiram na face da história a sua impressão

digital (Ibidem, p. 103).

As crônicas de Ana Paula Tavares se tecem de memória, História e outras histórias

vividas, experimentadas pela cronista e também por outras personagens, muitas delas

mulheres. O título A cabeça de Salomé de seu segundo livro de crônicas já anuncia um

sacrifício de fêmea a oferecer-nos palavras que, assim como Salomé, dançaram um ritual

sedutor: corpo-texto a semear a vida e a guardar as histórias e a tradição.

Algumas crônicas de O Sangue da buganvília também já começavam a apontar a

importância de personagens femininas. Esse livro nos conta sobre o sangue derramado nas

guerras, sobre a luta pela sobrevivência necessária em meio a tempestades e também sobre

o papel da “buganvília mulher”, sempre a resistir ao tempo e a guardar as palavras.

Em “Coração de barro” (SB) conhecemos as oleiras. Mulheres responsáveis pela

preservação das palavras. Artesãs da cultura e da tradição a tecerem, conforme trecho de

uma crônica citada anteriormente, o tempo e o barro da vida:

As oleiras conhecem todas as cores da terra. Possuem os seus sítios especiais de


colheita, que percorrem, esboroando entre os dedos pedaços de barro e passando a
língua pelo fino pó que se entranha na pele.
A descidas aos locais implica percursos de muito quilômetros que vencem em
passadas rápidas, saindo de casa antes do sol nascer (Ibidem, p. 62).

Num jogo de palavras sugestivas, o cenário da criação da vida, da poesia se revela

ao leitor: a existência pelo barro, o viver sentido, tocado, degustado pela mulher tão dona

da terra. As palavras se “esboroam”, se reduzem a pó, ao mesmo tempo em que renascem

corpo, alma, texto.


86

A imagem do barro é presente em várias culturas e religiões. Gênesis, capítulo 2,

versículo 7, relata que o Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou

no seu rosto um sopro de vida, e o homem tornou-se alma (pessoa) vivente (BÍBLIA, 1990,

p.26). Na crônica de Paula, também vemos o barro associado à geração da vida, do homem,

à recriação da tradição pelas mãos femininas das oleiras e pelas linhas da poetisa que

transformam o texto em corpo erótico, semeador de poesia.

Amadou Hampâté Bâ, no texto “A palavra Africana”, destacou o trabalho dos

artesãos e ressaltou que os gestos do tecelão que trabalha em seu tear (assim como os

gestos do ferreiro e de outros artesãos tradicionais) representam a criação em ação; (...)

Enquanto trabalha, o ferreiro pronuncia palavras especiais ao tocar cada ferramenta

(Hampâté Bâ, 1993, p. 18). Na crônica, de Ana Paula, a ação do criar é feita a partir da

união dos elementos naturais com as palavras da mulher artesã que, ao “soprá-las”, torna o

barro, assim como fez Deus, alma vivente:

Depois são as operações de limpeza: estendem o barro no chão sobre uma esteira, ou
qualquer outra superfície polida e esmagam-no grão a grão. Acrescentam água e
amassam adicionando, com a sabedoria de quem domina linguagens antigas, outros
elementos que dão consistência aos barros magros ou diminuem o peso dos barros
excessivos (TAVARES, 1998, p. 62).

As mulheres “esmagam” a argila para que esta passe de matéria à vida, uma vez que

a missão do barro será perpetuar os ensinamentos, os provérbios a serem transmitidos às

gerações descendentes como fonte de sabedoria. A argila é, assim, uma verdadeira metáfora

da criação da vida, presente também na Bíblia. Esse processo de “tocar” o barro é

indispensável e necessário como demonstra a crônica:


87

Todas essas operações se fazem com umas mãos que parecem asas e que escondem,
pela rapidez dos movimentos, a força necessária à transformação da matéria em vaso,
repetindo gestos de criação que de certeza nos sobram do tempo dos dedos de deus
(Ibidem, p. 63).

O exercício do “tocar” também é cumprido pelo poeta que com suas mãos tece o

corpo do texto e a este acrescenta vida e alma, ou melhor, como as oleiras, “esconde” seu

coração em suas criações para que estas possam encantar aqueles que as experimentem: Só

os poetas descobriram como é que as oleiras enterraram o coração no barro e desde aí lhe

perseguem o sentido (Ibidem, p. 63). Sobre o coração Barthes afirma:

O coração é o órgão do desejo (o coração se dilata, falha, etc., como o sexo), tal
como ele é retido, encantado, no campo, do Imaginário. O que é que o mundo, o que
é que o outro vai fazer do meu desejo? Essa é a inquietude que reúne todos os
movimentos do coração, todos os problemas do coração (BARTHES, 1981, p. 60).

Também os leitores da cronista continuam a perseguir o desejo exalado por suas

crônicas, fazendo desse anseio o seu desejar, o seu gozar. E nesse jogo da sedução do texto,

há a presença fundamental das mulheres que têm, para além de um coração de barro, um

coração cheio do barro da vida. A figura feminina é exaltada no final dessa crônica de

Paula pela citação de versos do poeta Ruy Duarte:

“[...] Esta mulher é minha e eu amparo, oh povo, para poder vê-la a modelar o pó. Os
seus dedos, oh povo o ar é que os governa, assoprado pelo nó do coração quando o
seu gênio, oh povo confunde a terra e a carne e a cor dos instrumentos, e a água vem
render à mesma massa, oh povo, a terra e a carne que um tempo antigo modelou
primeiro. É o vento que vem, é a terra que está, é a água que rende, é o fogo que
coze, é a forma que nasce [...]” (CARVALHO, R. D., In: TAVARES, 1998, p. 63).

É, portanto, pelos dedos da poesia que podemos observar o ensinamento de

provérbios existentes no ofício das oleiras e determinadas tradições culturais presentes na

região da Huíla. O sopro poético das palavras é sentido pelos leitores que são visitados
88

pelas narrações líricas das crônicas de Paula Tavares, já que estas, muitas vezes, se fazem

“cronicontos” e/ou “cronipoemas”.

Aquele que narra doa um pouco de sua vida, de suas experiências, de suas vivências

aos leitores. Assim ocorre, em geral, nas crônicas, pois os seus autores mostram-se atentos

ao que acontece ao redor, na tentativa de narrarem o que os tocou, o que conseguiram

apreender de certas circunstâncias. E desse “aprendizado” flagrado em seu cotidiano

querem os cronistas compartilhar; afinal “narrar” acontecimentos, instantes é o principal

objetivo da crônica. Mas, Paula narra, muitas vezes, como se contasse uma história, um

conto.

Ecléa Bosi ressalta o valor daquele que narra:

O narrador é um mestre do ofício que conhece o seu mister: ele tem o dom do
conselho. A ele foi dado abranger uma vida inteira.
Seu talento de narrar lhe vem da experiência; sua lição, ele extraiu da própria dor;
sua dignidade é a de contá-la até o fim, sem medo.
Uma atmosfera sagrada circunda o narrador (BOSI, E., 1994, p. 91).

Como esse narrador, também, Ana Paula Tavares narra suas experiências e

aprendizados. Os provérbios destacados em suas crônicas expressam algumas das lições

passadas à cronista. E esta continua a cumprir a tradição de repassá-las, no caso, para nós,

privilegiados leitores, que podemos partilhar dessa “atmosfera sagrada” de ensinamentos.

Vejamos alguns provérbios que destacamos do livro A cabeça de Salomé:

“A centopéia com 100 pernas só anda por um caminho” —Provérbio cabinda,


p.13;
“No sítio onde se parte um vaso só ficam os cacos” —Provérbio umbundo, p.21;
“Caiu a noite chegou a hora da caça ao caracol” —Provérbio cabinda, p.27;
“Coitado dos cordeiros quando os lobos querem ter razão” —Provérbio cabinda
adaptado para português muito livremente, p.49.
89

Muitos ensinamentos e muitas histórias as crônicas de Ana Paula Tavares têm a nos

contar, como ocorre, por exemplo, no texto “Funge de sábado” (SB) que focaliza o

tradicional hábito angolano de saborear as receitas oriundas do milho aos sábados. Receitas

“secretas” realizadas pelas mãos das mais velhas:

Algumas mulheres mais velhas (nota-se que esta designação ⁄ estatuto “mais velhas”
comporta um universo de mulheres de idades tão variadas como as que ainda
freqüentam há pouco tempo o lugar dos trinta até àquelas mulheres de origens
remotíssimas, árvores de grande porte onde o tempo entrou, e se perdeu, e que têm
das suas origens e nascimentos uma vaga noção – “nasci no ano dos ratos”, “quando
era pequena houve a sétima praga de gafanhotos”)
Mas, dizia eu, transportam estas mulheres a secreta ciência dos sabores, patrimônio
ciosamente guardado, pessoal e intransmissível, exercido com a eficiência dos
longamente iniciados...intransponível.
São elas que inventam o sábado, num amanhecer de todas as cores, transformando
cada sábado num dia único irrepetível, para ser vivido devagar.
Antigas viagens do milho e da mandioca são trazidas de volta, nas intermináveis
buscas e nas cerimônias de prova e compra dos melhores produtos (TAVARES,
1998, p. 50).

As mulheres, conhecedoras dos sabores e segredos da terra, cumprem seu ofício e

guardam as tradições como a do “funge de sábado”. Passam esse e outros costumes umas às

outras, legando às futuras mais velhas a responsabilidade da preservação cultural.

Desde a escolha do milho, da farinha até a cozedura do alimento, há um cuidado e

uma disponibilidade destas mulheres em cultivar o hábito cultural de “bater o funge”, tão

freqüente em Angola. A crônica, passo a passo, descreve essa prática ancestral e mostra a

importância da ferramenta fundamental, e de grande valor, utilizada para a preparação

desse saboroso patrimônio gastronômico angolano:

A panela do funge é uma instituição em cada casa. É aquela e mais nenhuma, sendo
que as verdadeiras apresentam uma pátine reveladora das marcas do tempo, numa
estratigrafia que corresponde aos segredos da família, como a terra, a árvore secreta,
as malas dos panos, as rugas das faces (Ibidem, p. 51).
90

A panela funciona como metáfora das trilhas culturais de Angola e das famílias

angolanas que vêem nela seus próprios traços, suas histórias e seus segredos. E são também

as mulheres que, nas linhas narrativas de Ana Paula Tavares, nos apresentam a “panela” de

histórias que a autora guarda na memória e reinventa em muitas de suas crônicas.

O livro A cabeça de Salomé inicia sua contação de histórias nos apresentando Dona

Beba, personagem principal que dá título a uma das crônicas. Num retorno ao passado, a

cronista narra a experiência do encontro com essa mulher de louvável memória. E tudo

começa num interessante domingo nas ilhas (provavelmente as de Cabo Verde),

impregnadas dos rituais da terra:

Acordávamos numa manhã de erva-doce e tamarindos e, quando a noite se


decompunha sobre o mar, preparávamos o corpo para a viagem. Água perfumada,
óleos essenciais, a roupa dos dias claros e um rápido traço de kohl. Não que fosse
preciso, mas o domingo convida à repetição dos gestos aprendidos na casa da tinta,
nossa cerimônia de passagem, que a ideia de viagem rememora e inscreve nos actos
de lavar o corpo para o que der e vier (TAVARES, 2004, p. 9).

Numa manhã de cheiros a estimular gestos ritualísticos: óleos, águas, roupas

apropriadas, tudo oriundo de ensinamentos repetidos por tantos outros que vivenciaram os

rituais de passagem. Corpos disponíveis à aprendizagem e, principalmente, à

experimentação da vida. O olfato estimula a memória das sensações, sendo o sentido mais

erótico. Por isso enche de emoções e desejos o corpo do texto.

O narrador deixa sua posição de observador, comum aos narradores das crônicas

tradicionais, e realiza o desejo de também sentir, viver o que é narrado. Como ressalta

Ecléa Bosi, (...) seu talento de narrar vem da experiência (BOSI, E., 1994, p. 91), e nossa

contadora de histórias mergulha nessa aventura do viver, ver, tocar, perceber por meio dos

sentidos:
91

Esgotávamos as horas de sobra, deixando deslizar os dedos por manuscritos antigos,


locais de invenção da escrita, cheiro vegetal de tinta e gesto, secretos lugares de
peregrinação e travessia. Percorremos a ilha até o coração da sede, onde pequenas
árvores rentes sorriam um sorriso de vento com surpreendentes rijos e tratados.
Sobreviviam, como as pessoas, de pequenas gotas de água perdidas por entre os
montes (Ibidem, p. 10).

Nessa aventura pelas ilhas, o narrador e seus companheiros se surpreendem a cada

barco, a cada casa, a cada palavra e a cada silêncio. Em meio a tantas surpresas, diante

desses viajantes, surge Dona Beba,viúva de nho Papacho, a tocá-los pelas mãos e histórias:

Salvou-nos Dona Beba com suas mãos de veludo. Umas mãos impossíveis para quem há

oitenta e nove anos as usa a segurar a vida de quem precisa. Cuida dos doentes, ampara os

presos, seca o peixe das viagens (Ibidem, p. 10).

Vemos na figura da Dona Beba a ratificação do que Nsang O’Khan Kabwasa

afirmou sobre a velhice, no texto “O eterno retorno”: A velhice é a idade da sabedoria, do

ensinamento, e não do descanso, pois “mesmo que o corpo dos velhos desfaleça, seu

espírito não descansa” (KABWASA, 1982, p. 14).

E Dona Beba não descansa e não cansa de mostrar sua sabedoria. Sua morada

também contribui para o cenário mágico das contações de histórias. Paredes cheias de

cheiros, imagens, segredos e memórias a acolher os viajantes sedentos pela descoberta, a

partir das palavras contadas e cantadas:

Abriu-nos as portas da sua casa secreta, desvendando a verdadeira história do


Tarrafal. O cheiro dos bolos e especiarias, preparados para os domingos dos presos,
sobrava ainda das paredes. No meio das fotografias, muito belas, circulava
livremente a memória do acolhimento, da bondade, do sorriso doce e compreensivo
de nho Papacho, quando dentro daquelas paredes os presos se submetiam ao breve
sabor da liberdade (TAVARES, 2004, p. 10).
92

E em meio a esse cenário mágico, as histórias de Dona Beba encantam a todos

aqueles que as escutam; afinal, como afirma Laura Padilha, o contador, ou seja, um ser que

‘mima a palavra’, é quase sempre um velho, o qual, no momento do dito, torna-se

auraticamente luminoso (PADILHA, 1995, p. 95). E esse “mimar” da palavra é sentido

pelos que escutam a viúva de nho Papacho, os aventureiros e nós, leitores dessa crônica:

A memória perfeita de Dona Beba desfiava nomes, datas, histórias em português


suave e muito elegante, levemente perturbado pela música dos tocadores de vozes
que habitam o chão das ilhas.
Perante a exclamação incontrolada de um de nós: «A senhora é um anjo!», Dona
Beba passeou pela eternidade e disse:
— Não se entusiasme, menino, o anjo era ele, eu vivi p’ra tomar conta (Ibidem, p.
11).

As narrativas de Ana Paula Tavares vieram para “tomar conta” dos nossos ouvidos e

mentes ao reinventarem a tradição de contar histórias. O livro Entre voz e letra, de Laura

Cavalcante Padilha, disserta entre outros textos acerca dos missossos. Sobre essas

narrativas da tradição oral, Laura Padilha ressalta que o prazer está, algumas vezes, menos

no que se conta do que no como se conta (PADILHA, 1995, p. 28). E as crônicas de Ana

Paula, ao narrarem as histórias, além de fixarem os olhos dos ouvintes no que está inscrito

nas palavras, instigam os ouvidos daqueles que as escutam pela maneira como são

contadas. Essa proximidade dos textos de Paula com a oralidade é também enfatizada num

ensaio de Rita Chaves:

As crônicas de Ana Paula Tavares remetem, suavemente, à roda da fogueira, lugar de


aprendizagem e crescimento na tradição africana. Ao investir nessa evocação, a
escritora não consegue recuperar, evidentemente, a inteireza de um passado
irremediavelmente (como, aliás, qualquer passado), mas consegue manter viva uma
referência fundamental de seu patrimônio cultural (CHAVES, www.fflch.usp.br).
93

Somos envolvidos pela “artimanha” da escritura de Ana Paula Tavares que encanta

ao colorir de poesia as linhas desenhadas em seus textos e surpreende os nossos ouvidos

que, ao perceberem o “acariciar” do verbo, se abrem ao prazer de ouvir. Tais crônicas

preservam a tradição oral do narrar e se querem oralizadas na perspectiva também da

sedução. Desse modo, mais uma vez, as crônicas se revelam um lugar “entre”: entre a

palavra escrita e a palavra oral, ambas a tocar a pele do leitor, a estabelecer mais uma

possibilidade de aproximação com aquele que, ao ler, se deixa seduzir. Sobre a “escritura

em voz alta”, Barthes chama atenção para o erotismo e a musicalidade das palavras e dos

fonemas:

(...) o que ela procura (numa perspectiva da fruição) são os incidentes pulsionais, a
linguagem atapetada de pele, um texto em que se pode ouvir o grão da garganta, a
pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne
profunda (...) Uma certa arte da melodia pode dar uma idéia desta escritura vocal;
mas, como a melodia está morta, é talvez hoje no cinema que a encontraríamos
facilmente (...) o corpo anônimo do ator na mina orelha: isso granula, isso acaricia,
isso raspa, isso corta: isso frui. (BARTHES, 2004, p. 78).

Também nós, leitores, nos deixamos levar pelo fruir dos textos de Ana Paula

Tavares, crônicas que narram em voz alta e ultrapassam o limite do gênero, assumindo sua

condição “entre”, perante a sagacidade das palavras a nos desvelarem múltiplas faces e

sentidos. As crônicas da autora se avizinham das narrativas orais pela sedução da palavra e

arte de narrar histórias pelo viés do prazer5. Elas se “apropriam” dessas características

como formas de seduzirem o leitor e de se aproximarem do mesmo; afinal, como também

afirma Lourenço Rosário sobre a tradição oral, (...) através da narrativa, a memorização se

torna mais fácil por causa da curiosidade e do prazer (ROSÁRIO, 1989, p. 48).

5
Nossa dissertação usa conceitos de Hampâté Bâ acerca da tradição oral que se assenta na crença da palavra
africana vinculada à idéia de energia vital.
94

Ana Paula Tavares preserva a tradição de narrar histórias sem, entretanto, abrir mão

do comprometimento com a literatura marcada pela escrita. Como ela mesma chama

atenção, a

«construção da literatura» angolana, tendo em conta os seus legados, faz-se num jogo
de alternância entre tradição e modernidade de fronteiras nem sempre bem definidas.
Entre oralidade e escrita, pese embora o facto de existirem poucos trabalhos de
análise sobre estes problemas, resistem jogos de formas, estruturas, toda uma
simbólica que remete para a sobrevivência da tradição com as suas marcas próprias,
no interior dos géneros e das escolas que definem a modernidade (TAVARES, 2001,
p. 109).

Por entre a tradição e a modernidade, as crônicas de Paula Tavares fotografam o

circunstancial, os acontecimentos do real histórico, mas vão além. Alguns textos, ao

realizarem a arte de narrar, abrem mão do pacto com a realidade imediata e tangenciam o

gênero conto, utilizando personagens ficcionais para realizarem o gozo, a arte de contar e

cronicar histórias.

O lugar da crônica, afinal, também é o da literatura, “lugar privilegiado”, onde o

fictício e o imaginário repensam e recriam contextos circunstanciais do dia-a-dia captados

pelos cronistas:

Literatura é lugar privilegiado do imaginário: é duplamente imaginária, mesmo


quando se quer realista e documental. A literatura é lugar onde a memória mostra seu
mecanismo, querendo-se plena ou faltosa, mas com sua especial qualidade de fictícia
ou ficcional (BRANDÃO, 1995, p. 23).

O sangue da buganvília nos apresenta características mais “tradicionais” da crônica,

como o compromisso com o cotidiano, com o factual, com os acontecimentos históricos de

Angola, já que esses textos da autora focalizam as datas em que os mesmos foram escritos

pela cronista. O trabalho com a linguagem poética também não foi esquecido: Nessa
95

incursão pelo gênero narrativo projeta-se a familiaridade com a poesia (...), ressalta Rita

Chaves (CHAVES, 2000, p. 272).

Esse primeiro livro de crônicas de Paula Tavares, todavia, já anunciava uma

alquimia de gêneros, como podemos perceber, em “Os ovos do arco-íris” (SB), já pela

epígrafe escolhida: “[...] Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é fumo, leve

demais para se prender na vigente realidade [...] – Mia Couto” (TAVARES, 1998, p. 64).

Na referida crônica, Paula acaba por estabelecer um diálogo com o conto e sobre o conto:

Uma viagem ao mundo acidentado dos contos é uma viagem guiada a uma
arqueologia de saberes, rigorosamente ordenada de forma a servir de manual de
ensinamentos úteis e práticos para a vida.
Sua absoluta dimensão de verdade enfeita-se, por vezes, da matéria dos sonhos, mas
não é assim que são feitas todas as verdades?
Tudo isto parece confundir os especialistas que, desde há pelo dois séculos, se
afadigam na recolha, dissecação e classificação meticulosa de um património que se
destinava a servir um momento e depois se perder ou ganhar uma nova dinâmica,
sobre outras cores das palavras (TAVARES, 1998, p. 64).

Assim, ao colorir a transmutação dos gêneros, a autora explora as fronteiras da

crônica, inserindo aspectos ficcionais na tentativa de transmitir a tradição de narrar

histórias, preservando, desse modo, grande parte do patrimônio cultural de Angola. Ela

sabe que ao conto são permitidas certas transformações próprias à narratividade

característica da tradição oral; por isso, suas crônicas, muitas vezes, se esmeram na arte de

contar:

Sempre me pareceu que o conto na sua especial morfologia resultava da sua


capacidade de transformação. Uma pequena estrutura permite que a linguagem da
oralidade a fermente e assim migra e aninha-se no núcleo daquilo que, à primeira
vista, parece um conto diferente e mais não é do que uma variação de outro conto
apresentando a marca original de cada contador. “Quem conta um conto”!...(Ibidem,
p. 65).
96

É contando “crônicas-contos” que nasce A cabeça de Salomé, um livro de histórias

que seduzem o leitor pela “marca original” da autora Ana Paula Tavares: o colorir da

poesia e a arte de contar, de cronicar histórias. São crônicas que vão além do tempo factual.

Textos que transportam o leitor ao tempo da experiência da cronista, aos momentos vividos

por esta, às histórias ouvidas pela autora, como ocorre em “O meu encontro, à porta

fechada, com a beleza...” (CS). Essa crônica, narrada em primeira pessoa, relata uma

experiência “real” (ou que deseja ser) do narrador que nos apresenta uma personagem

especial, o homem-ovo:

Para todos os efeitos, os conhecidos e os outros, tratava-se do homem-ovo. Assim


mesmo, ovo, porque segurava nas mãos uma enorme barriga protegida por uma casca
à prova de tempo, fome e outros fenômenos, como a chuva de pedras desencadeadas
pela inocência das crianças.
(...) Um dia, vencendo barreiras de som e de cheiro, cheguei à conversa com o
homem-ovo que, ao que me contou, tinha mudado de nome várias vezes durante as
muitas vidas e algumas mortes de que era feita a sua existência. Quando nasceu,
menino grande para alegrar o quintal da avó, ficou Jesus Maria, que os amigos de
bola, fruta roubada e fome, vendo a sua pouca habilidade para a pancada e fuga,
rapidamente transformaram em Maria Jesus, Menina Jesus, nos dias piores de polícia
e alcatrão (TAVARES, 2004, p. 32).

Pelo trecho citado, observamos que “homem-ovo” revela sua capacidade de

adaptação aos tempos que sempre mudam. Seus vários nomes se alteram de acordo com

suas características e situações vividas. Assim também as crônicas de Ana Paula Tavares

vestem diferentes roupagens, segundo as situações que desejam narrar. O que os textos da

autora desejam é fazer nascer o colorido das palavras, conforme ocorre com o “homem-

ovo”. Ele conta o seu segredo ao narrador da crônica que fica a ouvir atentamente, pois

sabe que a proximidade com esse homem é também o encontro com a beleza das palavras:

«Sabe, o que eu choco realmente são palavras, textos secretos, fórmulas de entrar no
97

paraíso das cidades. Um dia, vou virar finalmente a Mãe Natal e pôr meus ovos de Beleza

no grande ninho da terra.» (Ibidem, p. 32).

Walter Benjamin ensina que a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a

que recorreram todos os narradores (BENJAMIN, 1994, p. 198). Também as vozes

narradoras das crônicas de Paula contam-nos suas experiências vividas e ouvidas. Muitas

dessas histórias parecem ter sido oriundas de outras histórias escutadas cuidadosamente

pela cronista. Vozes que ecoam nos textos dos livros e que são, como mostra Ruth Silviano

Brandão, “vozes que compõem o texto interno” de cada um:

Cada um de nós tem seu texto interno, complexo, composto de vozes recentes ou
vozes arcaicas, vozes representadas, fantasmáticas. Texto consciente e ⁄ ou
inconsciente – escrituras produzidas por outras leituras ⁄ escrituras, por mitos
familiares, por vozes que não se distinguem umas das outras, avós, mães ou filhas
umas das outras, confundidas, entretanto, no espaço familiar (BRANDÃO, 1995, p.
21).

Dessas vozes “fala” Ana Paula Tavares, mas estas também “falam” ao mesmo

tempo em que a cronista narra as histórias, desvelando personagens que circundam suas

lembranças e suas linhas narrativas. O texto “As mais-velhas” (CS), por exemplo, é

iniciado pelo “falar” de um poema kuanyama, metáfora da força dessas idosas,

representantes do patrimônio cultural angolano. Tais provérbios trazem ensinamentos do

tipo: «Os teus chifres são agudos e direitos como uma azagaia: / Quando ferem alguém,

este morre sem ter tido doença. (...)» (TAVARES, 2004, p. 79).

Também, nós, leitores, somos “feridos” pelas palavras que nos apresentam essas

personagens femininas que são “mães, mulheres, irmãs” e “guardadoras de palavras”, pois

vivem a soprar “histórias, provérbios, adivinhas”, num viver poético, rico de tradições,

como mostra a crônica:


98

Nunca sabem a idade, porque nasceram antes do tempo das sementes, num qualquer
ano da praga dos gafanhotos ou epidemia da varíola. (...) Crescem sob o signo das
sobreviventes, com a testa marcada pela estrela em brasa das vacas eleitas para serem
mães, mulheres, irmãs.
(...) Por vezes e sem que se note muito param, entre o dia e a noite, um momento,
para passar, em forma de história, provérbio ou adivinha, as fórmulas de
sobrevivência, lições de parentesco, lugares de culto, os nomes do caminho. São
livros de marinharia que trazem escritos dentro da memória e, em segredo, libertam
do esquecimento.
Quando isto acontece, acontece um momento de milagre em que esquecem sua
condição de formiga e acendem a voz, soprando as palavras até que o fim do dia
apague a trémula chama de um ritual de cacimbo bem afinado (Ibidem, p. 80).

Muitas crônicas de Ana Paula Tavares contam histórias, às vezes “histórias de

parentesco”, como a contada em “As madrinhas” (CS) que começa com a seguinte epígrafe:

«O passado também nos devora» – Maria Concepción García Sáiz (Ibidem, p. 89).

Observamos que as vozes do passado também “devoram” as linhas dessa crônica:

Falo de um passado que ainda existe, com a casa ali de esquina, espreitando o fim da
rua, marcada de crianças de vozes fortes e canções tristes e de um tempo a escoar-se
em lentíssimas tranças, amaciadas a pente e óleo de nompecke.
Construo a fala de um pedaço e céu em tecto azul, noites de veludo cozidas pelo frio,
aberto (Ibidem, p. 90).

É nesse passado reinventado em letras que vemos a presença marcante das

madrinhas a povoarem a memória do narrador que passeia em meio a tantos símbolos de

seu próprio e íntimo patrimônio cultural:

As madrinhas instituíam uma cadeia entre os mundo vegetal — laranjas, maboques,


mangas, óleo de palma, e animal — afilhadas, sobrinhas, protegidas e outros seres,
criando palavras rigorosas e os métodos de leitura dos caminhos interiores dos sinais
e mistérios, anéis perdidos na esconjuração do medo e do mau-olhado. Nós tínhamos
nascido quase nada ainda, pequenas sombras no risco de cimento da cidade em
construção (Ibidem, p. 90).

As vozes “faladas” por Ana Paula Tavares em suas crônicas permitem ao leitor o

acariciar das histórias feitas de reinvenção das experiências vividas e ouvidas pela poetisa-
99

cronista. Assim, conhecemos uma maneira de cronicar, que se tece também das cores da

poesia.

A crônica “A cabeça de Salomé” (CS) também “reinventa” o mito bíblico de

Salomé. Esta, segundo a História, foi uma mulher envolvente que fez de sua capacidade de

sedução sua “armadilha” maior. Ao dançar, encantou Herodes e o fez jurar que tudo o que

ela desejasse seria concedido. Usou o erotismo de seu corpo para conseguir a cabeça de

João Batista, ofertada numa bandeja de prata. A crônica de Paula mostra os ritmos

dançados pela beleza das palavras e pela oferta que a cronista faz aos leitores, quando nos

conta e nos encanta com seu “cesto de narrações”:

(...) Os homens e as mulheres, muito assustados, lembraram o tempo da grande fome


antiga, quando a desgraça foi tanta que o ar se tornou sólido, à força de abrirem as
bocas para o beber. Dizia-se, muito baixo, que o sangue de uma mulher virgem era
esperado pelos deuses e que só assim a cólera regressaria de novo às bainhas e
haveria descanso para os ferreiros.
Todos olharam a-mais-nova, a filha de muata, tão linda que a máscara Mwana Pwo
se recusara a sair diante dela e a acabar de vestir o corpo do bailarino.
Por isso, ele dançou só, sem protecção, com o despeito da máscara, a do espelho. E
tão bonita foi a sua dança, tantas vezes o seu corpo se torceu em música, que a terra
se abriu de desejo, e a cólera dos deuses pôs a vibrar todos os tambores. Era precisa
uma cabeça.
O bailarino não descansou com seu corpo de arco-íris e distraiu homens e deuses e
desposou a mais nova filha do muata. No intervalo, e com a festa, homens e deuses
esqueceram a promessa.
(...) Ao longe, ouvem-se os sons dos tambores duplos. O ruído da faca no altar dos
sacrifícios. Alguém deseja a terra. Diz a tradição que chegou a hora de cumprir a
promessa: entregar a deus, no cesto de adivinhação, a cabeça de Salomé (Ibidem,
pp.15-16)

É necessário o cumprimento das tradições: em geral, uma oferta feminina nos

espaços rurais da Huíla. No livro de Paula que leva o mesmo nome dessa crônica, a doação

da mulher nos é oferecida por palavras poéticas, criadoras de imagens, sons, vozes, cores e

histórias desenhadas pela autora. A cabeça de Salomé metaforiza, assim, uma escrita que se

doa, que se quer desejada.


100

Ao procurar novos caminhos para a escritura de suas crônicas que travam uma

grande aproximação com os leitores, Ana Paula Tavares domina a arte de cronicar,

descortinando diversas faces e vozes desse gênero. Para contar a História e as histórias, a

autora estabelece diálogos com os leitores, entregando-se às conversas sobre “oásis, lábios

e sede” que permitem o dançar das palavras num autêntico ritual de narrações da vida.

Afinal, como afirmou a própria autora, é necessária a introdução do novo naquilo que é

tradicional para haver mudança; as transformações são sempre bem-vindas:

(...) a tradição, longe de constituir um legado imóvel e fixo, pronto para ser
transmitido de geração em geração, a tradição é também mudança e sinônimo de um
quadro dinâmico longamente entretecido entre o indivíduo e o grupo, que alimentam
o antigo e estabelecem a necessária ponte entre o velho e o novo (TAVARES, 1998,
p. 52).

Apresentando essa capacidade de mesclar as tradições e a modernidade, os textos da

cronista se tecem de memórias do passado, mas também preparam o futuro, na medida em

que refletem sobre os erros do presente e do outrora.

Ao longo da dissertação, pudemos perceber palavras inundadas de imagens

poéticas, inseridas num discurso que transita pelas trilhas da memória, da história e da

tradição. Enfim, por meio das crônicas de Ana Paula Tavares, a nossa “conversa” , como a

epígrafe deste capítulo sugere, percorreu o prazer da palavra, o “oásis” da linguagem.


101

5 CONCLUSÃO

A encenação da palavra, de Ruth Silviano Brandão, disserta acerca do “lugar do

texto” literário, um espaço tecido, sobretudo, a partir da linguagem, que se utiliza das

artimanhas da língua, das palavras para estabelecer um “jogo de sedução” com o leitor:

Se o texto é sempre tecido, malha ou tapeçaria, é também esconderijo, jogo de


esconde-esconde, onde as paixões se representam deformadas e se mostram com
diversa roupagem. Roupagem que se tece de palavras, entretanto. Pois é do e no seio
mesmo da linguagem que o texto se revela e se constrói como produtividade —
possibilidade de produção do desejo. Na materialidade dos significantes, atualiza-se a
emergência dos fantasmas, que se travestem em ficção feita na palavra (BRANDÃO,
1995, p. 25).

Desse “esconderijo da linguagem”, desse “brincar de esconde-esconde” entende

bem o gênero escolhido para estudo nesta dissertação: a crônica. Quem lê um texto desse

gênero sabe que este veste diversas “roupagens” para cumprir sua matéria diária de narrar o

circunstancial. Vestes constituídas de palavras que atraem o leitor, que o seduzem pela

linguagem utilizada nas narrações.

No caso das crônicas, as palavras possibilitam essa “produção do desejo”, como

bem observou Ruth Silviano Brandão, por conhecerem o “lugar desse gênero”, ou melhor,

o “entrelugar”, tendo em vista que tais textos ocupam um espaço intermediário, vizinho da

poesia e do conto.

Ao aceitarmos as regras desse jogo do tecer cronístico, mergulhamos na descoberta

de um “lugar outro” de que se faz a crônica, gênero multifacetado, que, por assim ser, nos

chamou a atenção e nos encorajou nesta aventura literária em busca de captar o prazer da

arte de cronicar.
102

Observamos, portanto, que a crônica é, acima de tudo, um gênero “entre”. Há quem

a considere uma forma típica do jornalismo; outros, uma vertente própria à literatura.

Preferimos entendê-la como um lugar “entre”: ora utilizada como ferramenta jornalística,

ora como uma possibilidade literária.

Percebemos, então, que esse jogo de poder transitar entre vários lugares da escritura

é o que torna a crônica tão sedutora. A liberdade própria desse gênero faz dele um dos

preferidos de diversos autores literários e daqueles que exercem o ofício de escrever em

jornais. Quem a produz conhece a capacidade que a crônica tem de penetrar o dia-a-dia

tanto dos leitores que dispõem de tempo para a prática da leitura, como para os que, entre

um intervalo e outro do cotidiano, se pegam a ler as interessantes observações desse gênero

quase sempre curto, mas instigante.

Engana-se, porém, quem acredite que o poder de sedução da crônica se dá apenas

pela sua “pequena extensão”. O que a torna fascinante é sua capacidade de estabelecer um

diálogo, uma conversa franca e direta com os “amigos” leitores que com ela se dispõem a

papear.

Esse caráter intimista próprio da crônica estabelece com o leitor um certo “grau de

amizade” e essa relação permite ao cronista uma liberdade maior para contar fatos do

cotidiano, fazer observações íntimas, narrar acontecimentos “quase” em segredo, como se

contasse algo importante a um amigo.

O prazer desse gênero é sentido por todos os que se dispõem à aventura diária ou

eventual de mergulhar nas linhas narrativas da crônica. Por meio de sua leitura, observamos

alguns instantes do dia-a-dia despercebidos de muitos, contudo flagrados pelo cronista. É

possível, assim, reconstruir imagens que parecem fotografadas pelo artífice que sabe

manejar a arte de cronicar.


103

Esse prazer se encontra na linguagem, no jogo das palavras que também “brincam”

de esconde-esconde. Há momentos em que notamos que a crônica nos quer enganar ao

flutuar entre os gêneros, aparecendo diante de nós, leitores, vestindo a roupagem do conto,

com personagens ficcionais, situadas em tempo não real. O que concluímos, porém, é que o

“entrelugar” da crônica nos fascina por ser também o “entrelugar” da palavra poética.

Nesse jogo, nunca se perde, ao contrário, ganham todos: o autor, ao seduzir fiéis amigos, e

os leitores, leais observadores do gozo da arte de cronicar.

E essa arte vimos que incorporou, com mestria, Ana Paula Tavares, cujos textos de

O sangue da Buganvília e A cabeça de Salomé foram nossos principais objetos de análise.

Percebemos que a autora também se “entregou” ao jogo próprio da crônica, seduzindo os

leitores por meio de sua linguagem banhada de lirismo e poesia.

Em O sangue da buganvília, observamos o olhar atento da cronista sobre a situação

histórica de Angola, levando o leitor a refletir acerca dos caminhos percorridos por esse

país. Tais crônicas são mais próximas das características “tradicionais” desse gênero, pois

apresentam um compromisso com o tempo factual, referindo-se claramente às épocas e aos

contextos históricos em que a maioria dos textos foram escritos. Mas, o “pacto” com o

circunstancial não deixou de lado as marcas poéticas do estilo de Ana Paula Tavares.

Em A cabeça de Salomé, flagramos a cronista se apropriando das várias faces que o

gênero crônica pode assumir. Paula encena, nesses textos, narrações de histórias a partir de

personagens ficcionais num tempo afastado do real histórico, fotografados em imagens

inundadas de lirismo.

A autora revela em seus livros de crônicas, assim como em toda sua obra, um

comprometimento com os instantes históricos de Angola e com a recriação de traços

culturais característicos das etnias de sua terra natal, a região dos mumuílas, no sudoeste
104

angolano. Como marca predominante de seus textos está o exercício da linguagem poética

que nos toca profundamente.

Por meio das crônicas da autora, percorremos, desse modo, as trilhas da história, da

memória e das tradições de Angola. Desfrutamos, assim, do prazer do texto, do sabor das

palavras, do sentido da linguagem e da poesia das narrações que Ana Paula Tavares, com

tanta arte, oferece aos seus leitores.

Antes de finalizarmos, deixamos expresso nosso imenso prazer por termos

mergulhado no estudo das crônicas de Ana Paula. E, por termos feito um rápido painel

desse gênero dentro da literatura angolana, nasce a idéia (que deixamos aqui registrada) de

nossa futura tese de Doutorado: “Percursos da crônica literária em Angola”. Fica, assim,

nosso compromisso de continuar a investigar os caminhos e a importância da crônica no

sistema literário angolano.


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