978, Hilton Japiassu

Capa: Ana Maria de Silva Araújo

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

1a
ethço:Fevereirode 1978

Ficha Catalográfica
Preparada pelo Centro de Catalogaçâo-na-fonte do
SINDICATO NACIONAL DOS EDiTORES DE LIVROS, RJ)

Japiassu, Hilton.
J 39n Nascimento e morte das cléncias humanas. Rio de Janeiro,
F. Alves, 2 edição, 1982.

1. Ciência - Metodologia 2. Teoria do Conhecixnento

I. Título

CDD - 001.4
120
CDU - 001.8
165

78-0008

1982

Todos os direitos desta ediço reservados à

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Rua Sete de Setembro, 77 - Centro
i

20050 - Rio de Janeiro, lU

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 CAPITULO I

Como Nasceu a Ciência Moderna?

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 Entendemos por "ciência moderna" a ciência que surgiu
no século XVII corn a Revo1uço Gailleana. Nao nasceu per-
feita e completa das cabeças de Galiteu e de Descartes. Pelo
Contrário, foi preparada por um longo esforço de pensarnento.
Teve que lutar contra inúrneros obstáculos. Resistências de todos
os tipos se opuseram à instauraço dos novos conceitos e dos
novos métodos de pensamento. A ciência moderna nasceu cone
ira a ciência anterior, contra os conceitos e as formas de pen-
sarnento oficialmente em 'igor. Pode-se dizer que nasceu con-
tra tudo e contra todos. Ou apesar de tudo e de todos. Multo
embnra só lenta ç.proressivarnente forj4 instru-

tôflCOS rnetodológjcos deanálise darealidade do

mundo.O quenãosefez por geracäo gênese dos
espontâneaL

grandes principios da ciência moderna processou-se no interior

de urna concepçäo, acreditando na unidade do pensamento hu-
mano, especialmente em suas formas mais elaboradas: pensa-
mento filosófico, pensamento religioso e pensamento científico.
Por isso, näc ternos o direito de desvincular a evoluço do pen-
samento científico da evoluçâo das idéias extra ou transcientífi-
cas. A história do pensarnento científico, tal como é elaborada
por Koyré, mostra-nos claramente:

- que o pensamÇntQintíCo, amaissparou.por

conipletodo pensamento filosófico;,

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 - que as grandes revoluçöes científicas sempre foram
determinadas, ou pelo menos condicionadas, por
- mutaçöes de concepçöes filosóficas;
que o pensamento científico nao se desenvolve num
vazio cultural, mas no interior de um quadro de
pensamento, de um contexto de idéias, de pnud-
pios fundamentais e de evidências axiomáticas per-
tendentes a um dominio de ordern extracieñtífica.
o que podemos nos perguntar é por que a clência moderna
nasceu apenas no século XVII, na Europa, e nao no Oriente.
A questäo parece apaixonante. No fundo, o que se tenta corn-
preender é a complexidade da revolução cientuuicai Numerosas
e divergentes são as explicaçoes propostas. O que é devido, pe'o
menos em parte, às lacunas no que diz respeito às informaçöes
históricas. No entanto, os conflitos entre os historiadores das
ciências possuem urna causa mais profunda: seu desacordo
quanto ao conceito de "ciência". Os debates em torno dessa
noção nao podem ser reduzidos a aspectos meramente técnicos.
Dizeni respeito diretamente à imagem que nos fazemos da ati-
vidade cithitlfica e de seu lugar real no contexto sócio-cultural
em que cia se insere. Nao podemos nos esquecer de que, atra-
vés das controvérsias sobre a civilizaçäo, na Renascença, foram
as idélas vigentes sobre a cultura, sobre o saber, sobre o tra-
baiho e sobre a vida que passaram pelo crivo do questionamen-
to generalizado. E isto, muito embora saibamos que a inspira-
cao fundamental da Renascença nao foi científica. Pelo contrá-
rio, como bem mostrou Koyré (Etudes d'histoire de la pensée
rcienti/ique, 1973), o ideal da civilizaçäo da Renascença das
letras e das artes foi eminentemente retórico. E o grande artista
quem meihor encarna esse período. Seu traço característico con-
siste em sua enorme erudiçao. Trta-se de urna época paupérni-
meJD_spídtocn1icQ mpregnaJa de sds os tipus dci. su-
perstiçöes grosaeiras. Q hnmemrnaacantis*a. viveafundada ein
suas crenças naiiagiaeiias 1itiçanias. Estas prolifezam multo
1i1_î nessa época do que na Idade Média A astrolugia 6 nui-
to mais importante que a astronomia. Nao é, pois, de se estra-
nhar que as obras mais lidas sejam justamente as de demûno-
logia e as de magia.
.
Dos pontos de vista filosófico e científico, o grande InI-
migo da Renascença é a smnte.ce aristottliça. Seu grande mérito
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consiste em ter destruIdo essa síntese. A credulidade ineio cega
e a crença irracional na magia são conseqüências dessa demoli-
çäo. Após destruir a física, a metafísica e a ontologia aristotéli-
cas, a Rcnascença se viu inteiramente privada de urna física e
de urna metafísica. Perdeu por completo todo e qualquer refe-
rencialpropriarnentecognitiyo.Fiçou e.niregue.aossontilégios sie
S"? doxas ou oiniiíesnuma péçi sia aziû jnteJactua1,.pai-
rando acima da tçn:a fie çio saber racionaL A. conseqüância é
que ficou_numa total impossibilidade de poder dcdialgo é
iiThäo possít Foijor ¡sso que o pensamento dessa época se
viu inteiramente dominado pela credulidade. sem limites. O que
se explica pelo fato de o homem ser um animal crédulo por na-
tureza. Era perfeitamente normal que se desse crédito irrestnito
ao testemunho das pessoas honestas e respeitáveis. Ora, do pon-
to de vista do testemunho, nada havia de mais estabelecido, oes-
se momento histórico, que a existência dos demônios e dos fei-
ticeiros. Criou-se, assim, o que pode ser chamado de urna ver-
dadeira oniologia mágica, cuja característica fundamental con-
siste na naturaliaaçäo mágica do maraviihoso. E essa ontologia
que funda dsaenuIeada_Iwa.pildere& siemoníacos. A
mentalidade renascentista pode ser resumida numa frase: a cre-
dulidade iio "tudo é possível" (Koyré). Mas trata-se de urna
credulidade possuindo sua contrapartida: a curiosidade sem li-
mites, a acuidade de visäo e o espirito de aventura do homem
renascentista enriquecem prodigiosamente o conhecimento dos
fatos e alimentam o gosto pela riqueza do mundo. Donde o
¡menso interesse, nessa época, por se conhecer as "maravilhas
da natureza", o que deu origem às viagens e aos descobnimentos.
Todavia, o nascimento da ciência moderna processou-se à
margem do espIrito renascentista. O que nao a ¡mpediu, corn a
demoliçäo da síntese aristotélica, de constituir a base sólida e
necessária para a instauraçäo do espIrito científico. Nessa sIn-
tese, o mundo formava um Cosmos físico bem ordenado. Nele,
tudo encontrava seu lugar. A Terra ocupava o centro do Uni-
verso. O mundo era urna realidade dada aos sentidos. O bomem
nao dominava a natureza. Tratava-se apenas de um mundo de
qualidade e de percepçöes sensíveis, no quai se vive, se morre
C se ama. Sem destruir essa concepção do mundo, a astronomia
heliocêntrica nao poderia desenvolver-se. Do ponto de vista
científico, Kepler pode ser considerado o melhor representante
do espIrito renascentista, muito embora, de um ponto de vista
I 25
 eronológico, seja posterior a esse período. A idéia kepleriana
de que o Universo, em todas as suas partes, continua regido
pelas mesmas leis, de que a velocidade dos movimentos dos
planetas nao é uniforme, ainda se encontra muito presa à con-
cepçao aristotélica. Por exemplo, considera que o repouso nao
tern necessidade de ser explicado. O movimento, pelo contrário,
tern necessidade de urna explicaçäo e de urna força que sobre
ele atue. Eis por que Kepler nao teve condiçoes de conceber a
lei da inércia. Ein sua mecânica, como na de Aristóteles, as
forças motrizes produzem velocidades, e nao aceleraçôes: a per-
sistência de urn movimento implica a ação. contInua de um
motor.
Foi Galileu quem introduziu urn corte epistemológico na
história do pensamento ocidental. Foi ele quem rompeu corn
todo o sistema de representação do mundo mitigo e do mundo
medieval. Corn ele, o pensamento rompeu corn a Renascença.
Ele é o antirnágico por excelência. De forma alguma se mostra
interessado pela variedade das coisas. Aquila que o fascina é a
idéia da física matemática, da redução do real ao geométrico.
o primeiro espIrito verdadeiramente moderno. Encarna, nos
últimos anos do século XVI e nas primeiras décadas do XV!!,
a concepçao mecanicista do saber que, vencendo pouco a pou-
co os obstáculos aparentemente insuperáveis, definirá, dora-
vante, o ideal científico e o código de procedimento de todo e
qualquer conhecimento corn pretensòes ao rigor.
Ao destruir definitivamente a imagern mítica do Cosmos,
Galileu tern em vista substituí-la pelo esquema de um universo
unitário, submetido à disciplina rigorosa da física matemática,
chamada a axiomatizar cada vez mais todos os setores do co-
nhecimento. Ele geometriza o universo, quer dizer, identifica o
espaço físico ao da geometria euclidiana. Elabora, assim, um
novo conceito de movimento, que se encontra na base da me-
cânica clássica. O movimento passa a ser urna entidade ou um
estado tao estável quanto o estado de repouso. Para realizar-se,
nao tern necessidade de nenhuma força constante agindo sobre
o móvel. Inaugura-se um novo tipo de inteligibilidade, desta vez
mecanicista. Essa inteligibilidade modifica radicalmente, nao
somente esta ou aquela maneira de ver, mas impöe um novo
pensamento do pensarnento. O que muda, nao é o sistema do
mundo, que permanece o mesmo, mas o mundo enquanto sirte-
ma. Alteram-se igualmente, em profundidade, o lugar do ho-
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mem no mundo, a relação que ele mantém corn o mundo, con-
sigo mesmo e corn Deus. Responsável por.esa. muJaçäoc con-
diçao humana, Galileu leve que pagar um preço e'evado por
sua ousadia em desafiar a prepotência do saber oficial, escudada
na força da Tradiçäo e na "violência" das Autoridades. Assim
como Sócrates foi condenado por corromper, a juventude de seu.
tempo, Galileu tena que. ser. condenapis nUIItÌIJIIaiLIQ
queele serneou o "terrorismo intclectual"e a "corrupço da in-
tçIinciai' J'rometeu jÁhia sido condenacip p.o ousado
roubar rogo d'inq. jntandj ronhar o
fQgo c.la sabedoria, divirut sobre o mupdp? Os_guadiäes--p+en-
tçLa4ps dessa sabedoria qäp sssa uhrerso.
Scm o seu "mundo' ', ficariam completamente perdidos.
Portanto, foi Galileu, e nao Copérnico, quem inaugurou a
revoluçao científica moderna. A chamada "revoluçao copérni-
ca" foi criada por Kant no prefácio à segunda ediçäo da Crí-
tica da razão pura (1787) para designar a inversao de pers-
pectiva introduzida, na concepção da astronomia, pelo De re-
volutionibus orbiurn coelesijuin ( 543 ) "Vendo que nao podia
1 :
ou conseguia explicar os movimentos do céu, admitindo que
todo o exército das estrelas evoluía em torno do espectador,
Copérnico procurou saber se nao tena mais éxito fazendo o
próprio observador girar em torno dos astros imóveis". Eviden-
temente, a Terra deixou de ser o centro do mundo físico. Mas
Continuou sendo o centro do mundo metafísico. Donde se po-
der duvidar que Copérnico tenha sido o iniciador da revoluçäo
astronômica. Ademais, suas teses nAo constituíarn nenhuma sub-
versäo para as consciências. Nao erarn perigosas. Alncjuisiçiío
piafiçamuiite asigrioiou. Só 'sio a condenaro heliocentrismo
ejnl6l6, qiase oitenta anos dep9i da. morta de. Copérnico.
Masa presteza corn ftUesesde Jilr_ atesta
cwaioi .ele uem. introduziu realmente p subversäo. .&on1isà
.cândalo rias consciências. As teses do De revolutionibus
propöern urn esquema explicativo seguindo a mesma linha de
pensamento de Ptolomeu. Nao propbern urna teoria fundada
na conjunçäo da observaçao e das matemáticas. Para justificar
sua visao do mundo, Copérnico toma de empréstimo à tradiçbo
antiga vários elementos, especialmente de Aristarco de Samos.
Essa visbo pressupbe todo um pano de fundo irracional e nils-
tico, incompatível corn a mentalidade científica emergente. Tra-
ta-se de urna visäo envolta numa espécie de véu místico. No
I 27

dizer de Koyré, "só as vethas tradiçäes, a tradição profunda
da metafísica da luz, das reminiscências platónicas e neoplatôni-
cas (o sol visive! representa o sol invisível ) podem explicar a
emoção, o lirismo que se apoderam de Copérpico quando ele
fala do Sol. Ele o adora e quase o diviniza". Por isso, seu he-
liocentrismo nada mais é que a conseqüência de sua heliolatria.
Assim, as provas alegadas por Copérnico nada provam. Por
conseguinte, nao inaugura urna astronomia científica. Sua as-
tronomia 6 muito mais urna espécie de estética geométrica e
metafísica. A conclusão de Koyré é que "Copérnico nAo â
copernicano".
o primeiro sábio moderno, o fundador da ciência inoder-
na, foi incontestaveirnente Galileu. Neste ponto, a InquisiçAo
nao se enganou : condenou o homem certo. E a convicçáo pro-
funda desse homem é a de que as formas matemáticas estAo
realizadas no mundo. Para ele, a natureza só pode ser conhe-
cida através da experiência, vale dizer, mediante questöes que
¡he são colocadas. Essas questöes possuem urna linguagem toda
especial: a linguagem geométrica e matemática. NAo basta mais
observar a natureza. O que importa, doravante, é saber colocar
as queatöes e, sobretudo, saber decifrar e comprcender as res-
postas. Em outros termos, o importante é que se aplique à
experiência as leis da medida e da interpretaçäo matemática.
Todavia, os instrumentos metodológicos de Galilcu no passam
de encarnaçòes de teorias. Assirn, o telescópio só é construido
a partir de urna teoria ótica, corn determinado objetivo cien-
tífico: revelar-nos as coisas que se nos apresentam invisfveis
a olho nu. Ternos al urna teoria encarnada que ultrapassa os
limites do simples observável. Entre o mundo dado dos sen-
tidos e o mundo real, que é o mundo da ciência ou da geome-
tria realizada, instaura-se o que hoje chamamos de corte epis-
temológico, cuja função principal consiste em decretar o Jim
do Cosmos. O que isso significa?
Corno sabemos, a física dos Antigos, codificada por Ads-
tóteles, submetia o baixo mundo sublunar ao determinismo fi-
sico e ontológico da esfera celeste. As verdades e os valores
desciam do céu sobre a terra. O esquema inteligível do Cos-
mos propunha urna ordenação totalitária de todas as coisas aqui
de baixo ao poder soberano e transcendente dos astros-deuses.
Eis o princIpio de ordern do universo: tudo deveria estar sub-
metido aos astros-deuses, que comandavam o devir dos seres e
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das coisas, segundo procedimentos que os sábios podiam dcci-
frar realizar graças a urna hábil conjunçâo de influências anta-
gônicas. O saber unitário da astrologia propöe urna smntese coe-
rente do conhecirnento e da açäo. Deduz os destinos dos ho-
mens a partir das constelaçòes e oposiçöes que presidem, de
cima, aos acontecirnentos terrenos. Trata-se de urn saber que
fornece remédios para as predestinaçöes desfavoráveis, mobili-
zando as energias compensadoras. Esse saber unitário encontra
seus principios nos ritmos das revoluçòes astrais. A astrobiolo-
gia vinha apresentar à morada dos homens urn esquema de
grande segurança, proporcionando a todos urn enorme confor-
to espiritual. Os homens se encontravam sob o abrigo protetor
da cumeeira celeste, de onde se exercia a providência astral.
o nue veio fazer Galileu? Sua ciência veio destruir o es-
quema de um Cosmos organizado hierarquicamente no interior
de um espaço fechado e impregnado de ressonâncias mItico-
religiosas. O Universo, doravante, precisa ser compreendido sob
a forma de urn contInuo físico de extensäo indefinida, no inte-
nor do qual os fatos físicos se condicionam reciprocamente em
virtude de necessidades materiais e matematicamente calculá-
veis. São banidas do campo epistemológico as simpatias e anti-
patias, as afinidades e analogías sobre as quais se fundava a
operaçào do mágico. O campo episternológico deve subordinar-
se única e exclusivamente às disciplinas da Razão. Só pode
fazer autoridade urna inteligibilidade restritiva. Só cia pode sa-
tisfazer ao entendimento humano. E dà é inteiramente despro-
vida de eficácia consoladora para os indivIduos preocupados
corn seus problemas de ordern pessoal, sobretodo corn o pro-
blema de seu destino. A oposiçäo homem/Deus é substituIda
pela oposição homem/mundo. Melhor ainda: pela oposição Su-
jeito/Objeto. No dizer de Koyré, a revolução galileana é ca-
racterizada por dois traços complementares: 1. a destruiçäo do
Cosmos e, por conseguinte, o desaparecimento, na ciência, de
todas as consideraçôes fundadas sobre tal conceito; 2. a geo-
melrizaçao do espaço: o conjunto contInuo, concreto e dife-
renciado dos "lugares" da física e da astronomia antigas é subs-
tituido por um espaço-dimensäo, homogêneo e abstrato.
Assim, a destruiçao do Cosmos significa que o mundo da
ciência nao pode mais ser concebido como um todo finito e
hierarquicamente ordenado. Portanto, nao é mais um mundo
qualitativo e ontologicamente diferenciado. Passa a ser conce-
29
r--
bido como um Universo aberto, indefinido e unificado. Unif i-
cado nAo por sua estrutura imanente, mas pela identidade de
suas leis e de seus elementos fundamentais. A geometrizaço
do espaço implica em sua infinitização. A demoliçäo do Cos-
ff05 pode ser considerada como a "ruptura do círculo", ou
como o "estouro da esfera". Ficam excluIdas do pensamento
científico todas as consideraçöes invocando o valor, a perfeiçAo,
o sentido e o fim. Tais conceitos, doravante tachados de subje-
tivos, nao se encaixam na nova ontologia. Em outras palavras,
desaparecem as causas formais e finais como modo de explica-
ção ou de conhecimento. Perinaneceni apenas as causas ma-
tenais e eficientes.
A revoluçäo galileana introduziu uma rachadura no mun-
do. Dividiu o mundo em dois. Dois mundos e duas verdades.
Diante disso, Pascal, muito amigo de Galileu, cristäo e físico,
exclama: "O silêncio eterno desses espaçps jnfinit me ater-
roriza". Segundo Gusdorf, o galileano Pascal lança esse grito
de alarme ao tomar consciência daquilo que será doravante a
situaçäo do homem sob um céu onde nao mais se faz ouvir
nem a harmonia das esferas nem tampouco as cantatas dos
anjos. Tais espaços constituern urnvazio para o coração. O
domíniofísico fica desligado da ordern metafísica. A ordern
das coisas é organizada num feixe autônomo de relaçôes, de
que a ciência newtoniana decifrará a perfeita coerência mate-
mática. Só a ordern das coisas sai intacta dessa peripécia. O
mesmo nao ocorre corn a morada dos homens. A situaçäo do
homem se vê despojada de suas grandes significaçoes. Fica
reduzida ao estada ksoLadorde_um lsr*o deïalores. Todas
as evidêncjas do domInio humano, bern como a espiritualidade
religiosae a vidaquotidiana, passain pelo crivo de urn questio-
namcnia.feroz. A mutaçäo da imagem_do mundo implica urna
revis.ào- dilaceranle. de todas as crteas estabçlecidas e urna
dennciadetodas asatitudes sacramentadas pela tradiçáo. Ao
ser questionado o equilibrio milenar do Universo, o que impera
é a confusão geral. De um lado, situa-se a imagern tradicional
do Universo, garantida por Deus, cuja Palavra encontra-se con-
signada na Biblia, e por Aristóteles, que se eosina nas univer-
sidades; do outro, situa-se um esquema abstrato, contrário aos
bons costumes intelectuais, que reduz o mundo a urna espécie
de mundo geomótrico, sern nenhuma relaçäo corn a presença
humana nem corn a história da salvação. A ciência mecanicista
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destról o mundo natural enquanto meio simbólico de referencia
para a existência do homem. Afirma um uovo regime de ver-
dade asseptizado de valores humanos, mas sem propor novos
valores. O universo se resume num conjunto de objetos, de que
todas as significaçóes qualitativas foram centralizadas para me-
ihor adaptarem-se às exigências da inteligibilidade físico-mate-
mática. A verdade do mundo é indiferente à verdade do ho-
mcm. O universo inteligível da ciência é regido por normas
rigorosas e impassíveis. A natureza sensível é substituIda por
urna natureza idealizada, axiomatizada segundo a ordern gea-
métrica. Talvez pensando nisso é que Pascal tenha dividido os
homens em duas categorias: os que possuem um esprit de fi-
nesse e os que possuem um esprit géométrique. O mundo real
dado à nossa percepçao, mundo da vida quotidiana, foi substi-
toldo por um universo de seres de razäo.
Nao devemos nos esquecer, no entanto, de outro traço
inarcante do pensamento de Galileu. Ele foi o primeiro cien-
tista que conseguiu realizar a junçäo da teoria e da prática. O
que nao quer dizer que Galileu tenha realizado experiências.
Para ele, urna experiência urna questäo que se coloca à na-
tureza e que deve ser formulada numa linguagern adequada.
Ele parte do princípio de que a necessidade determina o ser.
Em outras palavras, a ciencia (a física) se elabora a priori.
Nela, a teoria precede o fato. A experiência se revela inútil,
porque, antes dela, já estamos de posse do conhecimento que
procuramos. A originalidade de Galileu consistiu em descobrir
tIUC as matemáticas constituern a gramática
da ciência física.
l foi essa descoberta da estrutura racional da natureza que
possibilitou a criaçäo da base a priori da ciência experimental
moderna e que tornou possível sua constituiço. A ciência nao
bC baseia diretamente sob a experiência e a percepçao sen-
afvel. Pelo contrário, baseia-se nas matemáticas enquanto são
portadoras de urna espécie de valor supremo, ocupando urna
posição-chave no estudo das realidades naturais. Neste senti-
Jo, a ciência e a filosofia de Galileu recuperam certa forma de
platonismo. Porque o cientista é alguém ativo que toma posse
do espaça. alguém que .redescobre a linguagem falada pela
Natureza.
31
 Portanto, apesar de seu platonismo, Galileu formulou urna
concepçäo da ciência em que se encontram profundamente vin-
culadas a ciência entendida como teoria e a ciência enquanto
se revela urna prática social. Semeihante vinculaçäo é suma-
mente importante para se compreender o que hoje se passa no
dominio das relaçöes da teoria e da prática, da chamada "ciên-
cia pura" (teórica, básica ou fundamental) e da chamada "ciência
aplicada". Evidentemente, nem todos a aceitam. Muitos histo-
riadores das ciências defendem a tese segundo a quai a ciên-
cia sempre foi, desde seu nascimento, e continua sendo até nos-
sos dias, urna construçäo eminentemente intelectual, vale dizer,
urna elaboraçäo pura, fundamental, teórica ou desinteressada,
tendo por objetivo precIpuo e exclusivo a busca do conheci-
mento, a procura da verdade das coisas, a explicaçáo dos e-
nômenos e a descoberta de suas verdades: conhecer por co-
nhecer. Sendo assim, dá-se urna ênfase toda especial à especi-
ficidade da atividade científica, aos procedimentos lógicos uti-
lizados pelo "método" e à elaboraçao progressiva do "conteú-
do" das ciências. O que se pretende buscar, é resolver o pro-
blema do conhecimento enquanto tal, numa espécie de supra-
temporalidade e de a-historicidade radicais. Nessa perspectiva,
estudar a gênese, a formaçäo, o desenvoivimento e a estrutura-
çao das ciências consiste simplesmente em elaborar urna his-
lória das idéias e dos conceitos que tornaram possivel a edo-
são das diversas teorías científicas atualmente em vigor. Certas
influências vindas do exterior podem ser levadas em conta,
especialmente as filosóficas. No entanto, na prática, pensa-se
a ciência como se ela fosse um dominio autônomo de conheci-
mento que se constrói na obediência estrita e meticulosa ès
exigências e às regras de seu desenvolvimento interno ou de
sua dinâmica imanente. A ciência se autodeterminaria e se auto-
finalizaria. Suas relaçöes corn o mundo da açäo ficam relegadas
ao domInio do acessório. Ao especializar-se, o historiador cava
um fosso entre esse tipo de história das ciências e as demais
"histórias": das técnicas, das artes, da divisäo do trabalho etc.
E esse modo de encarar a historicidade da ciência que podemos
chamar de internalista, por oposiçäo ao modo propriamente
exiernalista. O que isso significa?
o problema consiste em saber como se faz a história das
cléncias. Essa questäo se vincula profundamente a urna outra:
de que se faz a história das ciências? E para solucionar essa
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questâo que duas orientaçòes opostas entram em jogo: há urna
corrente externalista e outra internalista. No dizer de G. Can-
puilhern (Etudes d'histoire et de philosophie des sciences, 1970)
o externalismo deve ser concebido como um modo de se con-
ceber e de escrever a história das ciências condicionando os
chamados "acontecimentos científicos" às suas relaçóes corn os
interesses sociais, ideológicos, filosóficos e econôrnicos, vale di-
zer, corn as exigências e as práticas técnicas, corn as ideologias
religiosas, políticas e culturais. Trata-se, no fundo, de um "mar-
xismo enfraquecido" ou empobrecido. Quanto ao internalismo,
quase sempre acusado de idealismo pela primeira corrente, con-
siste em conceber e escrever a história das ciências a partir de
urn ponto de vista interior à própria obra científica, e sem ex-
trapolar as fronteiras do saber científico, salvaguardadas por
protocolos metodológicos de estrita segurança objetiva. O que
so deve analisar são as démarches internas da ciência, median-
le as quais ela procura satisfazer suas normas específicas, se é
que pretende definir-se realmente como ciência, e nao como
iinples técnica ou mera ideologia.
o que se pode notar é que, em ambas as posiçôes, veri-
fice-se facilmente urna forte tendência a assimilar o objeto da
história das ciências ao objeto de urna ciência, O externalista
'6 a história das ciôncias como a explicaçäo de um fenôrneno
de cultura pelo condicionamento do meio sócio-histórico gb-
bal. Neste sentido, ela é assimilada a urna sociologia naturalista
de instituiçôes, ficando completamente relegada a segundo pIa-
no a interpretaçäo de um discurso corn pretensôes à verdade.
o internalista, por sua vez, encara os fatos da históría das
ci6ncias como fenómenos dos quais nao se pode elaborar a
liistória sem urna teoria. Assirn, o fato da história das ciôncias
passa a ser tratado como um fato de ciência, segundo urna
posiclo episternobógica que privilegia a teoria sobre os dados
empiricos.
Os historiadores externalistas julgarn o ponto de vista in-
tcrnalista por demais estreito, e insistem nos vínculos necessá-
noi que unem os diversos setores da atividade humana. Nao
Ignuram que a clência possa definir-se como urna busca do
couhecìmento ou da verdade das coisas. Mas nao acreditam que
esta procura do conhecer pelo conhecer seja suficiente para de-
terminar os critérios de cientificidade de urn saber. Porque a
ciencia é urna realidade histórica. Eba nasce, cresce, desenvol-
I 33
 ve-se e estrutura-se no interior da temporalidade, em condiçöes
bastante variadas e variáveis que nao devem ser esquecidas,
mas artalisadas de perto, em cada momento histórico, para que
possamos compreender corn exatidão em que sentido ela é real-
mente um esforço para atingir o conhecimento. Esses historia-
dores, sem negar o caráter internalista das ciências, são cha-
mados de externalistas justamente porque são muito mais sensi-
veis a todas as formas que as ciências revestem nas diversas civi-
lizaçöes e culturas, e porque estão primordialmente preocupados
corn a análise da inserçäo do "saber" em seus diversos con-
textos sócio-culturais, quer dizer, em seu enraizamento espácio-
temporal e em suas condiçöes reais de produçäo. Por exemplo,
os ocidentais admitem corn certa tranqüilidade, de modo impli-
cito ou explícito, que sua ciência é superior a todas as demais
formas de saber ou de conhecimento. E é por isso que falam
corn toda desenvoltura de a ciência para designar esse tipo de
conhecirnento moderno que nasceu cam a revoluçäo de Galileu
no século XVII.
Ora, falar de a ciência em geral, como de urna entidade
que poderia ser tomada por objeto, nao é faxer uso de um
conceito científico (unidade de significaçao de um discurso cien-
tífico) nem tampouco de urna categoria epistemológica (uni-
dade de significaçäo num discurso epistemológico), mas de urna
noçao ideológica (unidade de significaçâo num discurso ideo-
lógico) ou de urna noçäo filosófica idealista. E supor que pos-
Samos tratar o conjunto das práticas científicas (conjunto corn-
plexo de processos determinados de produçäo de conhecimen-
tos, unificados por um domInio conceitual comum, organizados
e regulados por um sistema de normas e inscritos num conjun-
to de aparatos institucionais) como urna realidade homogénea,
constituindo, pelo menos de direito, a unidade de um todo in-
diferenciado. Esse "tratamento" ou "ponto de vista sobre" a
Ciência é propriamente filosófico. Repete o procedimento clás-
SicO da filosofia idealista que, ao falar das ciências, tenta logo
extrair sua "essência" comum para poder falar de "a ciência"
ou de "o conhecimento científico". Trata-se de urna posiçäo,
deixando claramente subentendido que "a ciência" pode ser
algo de transcendente, que só há urna ciéncia, de certa forma
intemporal, a única capaz de revelar aos homens a Verdade.
Ora, a clência (em geral) nao existe. Só existem práticas cien-
tíficas diferentes e desigualmente desenvolvidas. Tampouco pode
34 .
I 35
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existir um discurso sobre a ciência em geral. Um discurso so-
bre a ciência que nao leve em conta a pluralidade e a dispa-
ridade específica das práticas científicas deve ser considerado
(C)fl um discurso epistemológico idealista. São três as carac-
teristicas básicas da filosofia idealista do conhecirnento:
a. Há urna verdade a-histórica que se encontra dada,
de antemão, na ordern da "realidade". A função
do cientista é extraí-la, sem ter necessidade de cons-
truí-la ou de produzi-la.
b. O sujeito cognoscente e o objeto de conhecimento
constituem os elementos últimos do conhecimen-
to científico.
C. A investigaçáo científica consiste no estabelecimen-
to de urna adequaçäo entre o sujeito e o objeto de
conhecimento. E essa adequaçäo que define a ver-
dade. Esquematicamente, a fórmula seria a seguin-
te: (sujeito) = (Objeto) = Verdade. Contudo,
essa fórmula possui ainda duas variantes que su-
bordinam, quando nao eliminam, um ao outro, os
--
termos da equação (Sujeito) = (Objeto):
variante i (
: ) = (Objeto) = Verdade
variante 2: (Sujeito) = ( ) Verdade
A variante i é conhecida pelo nome de empirismo;
a 2, pelo nome de formalismo.
Tanto o empirismo quanto o formalismo se opöern e cons-
tituem obstáculos epistemológicos (todo elemento ou processo
atracientífico que, intervindo no interior de urna prática cien-
llfLca, freia, impede ou desnatura a produçäo de conhecimen-
tOs) a urna concepcäo externalista da
história das ciências. O
empirismo se define por ser urna representaçäo da prática cien-
tífica que, ao pressupor que o conhecimento está contido nos
latos, conclui que o próprio da investigaçäo científica consiste
cm limitar-se a comprová-los, a reuni-los e a sintetizá-los por
um processo de abstraçäo que os tome suscetíveis de um ma-
ntjo eficaz, quer dizer, acumuláveis e cornunicáveis. O "mode-
lo' rrnpirista concebe a prática científica nomo um processo,
11a0 de transforrnaçäo, mas de purificaçâo
dos fatos constata-
das, dos quais seriam eliminadas as propriedades contingentes
C espúrias. Esse "modelo" se baseia na
"teoria do dado", se-
 gundo a quai o essencial da prática cientifica consiste:
ramente, em recoiher; em seguida, analisar (tratamento
priniei- rIco no somente se liga ao prático, mas domina e determina
dos u$ estrutura. As grandes revoluçöes científicas, desde o século
dados) urna informaçäo qualificada de "objetiva" e x\/lI at nossos dias, teriam sido fundamentalmente revoluçöes
tente à atividade (e aos preconceitos) do preexis-
ao formalismo, trata-se de um "modelo" que investigador. Quanto itóricas cujos resultados visarn, nao tanto a melhor religar entre
faz a inverso sis- I os "dados da experiência" quanto a adquirir urna nova con-
temática das opçöes empiristas. Onde o empirismo cepçao da realidade profunda que esses "dados" subentendem.
o momento específico da vislumbra
construçâo teórica, o formalismo ten- 1 Os externalistas negam que a revoluçäo científica inicial
de a eliminar ou, em todo caso, a
subordinar o processo de tonha sido desencadeada por urna revoluçäo filosófica. Consi-
produçAo efetiva (construção + demonstraçäo)
mento de fatos e conjunturas reais. do conheci- dtìrnm tal posiçäo idealista, pois ela se situa apenas no nível
dupla subordinaço, que afeta, de umTrata-se, a rigor, de urna da idélas. Ademais, apenas desloca a questáo, sem Ihe dar urna
lado, as rsposta satisfatória. O que é importante saber é por que deter-
tinadas à "realizaçäo" do sistema de conceitosoperaçoes des-
Outro, as operaçoes de controle empírico teóricos, do minada sociedade teve o privilégio e o direito a essa iluminaçào
do concreto assim filosófica". Eis a grande objeçäo que se coloca à posiçäo inter-
elaborado. Ora, o empirismo e o formalismo,
temologia idealista, nao se excluem nem se variantes da epis- nalista. No impasse, esta tenta apelar para o simples acaso ou,
sanamente. Pelo contrário, coexistem corno contradizem neces- cntúo, vê-se condenada a admitir urna interpretaçäo racista. Re-
doras e informadoras da prática efetiva da "filosofias" funda- correndo a um estudo sociológico e histórico, os internalistas
maioria dos cien- acreditam que "a ciência", se nao nasceu na China, mas na
tistas atuais. E são tais "filosofias" que
impedem que as dis- luropa do século XVII, nAo foi porque os chineses nao tives-
ciplinas científicas sejam estudadas
historicamente, em sua for- em tido a idáia de experimentaçäo ou porque teriain imagina-
inaçäo, em sua gênese, no interior
de suas condiçOes reais e çlo curta, mas porque, socialmente, nao possuíam as condiçc3es
sócio-culturais
Os historiadores internalistas se apóiam
favoráveis à sua posto que viviam nuin feudalismo
tanto na filosofia burocrático que nao comportava a existência de urna classe de
empirista quanto na formalista das ciências.
por exemplo, de explicar por que a ciênciaThante da questäo, negociantes. Em contrapartida, afirmam que, durante a Idade
justamente na Europa do século XVII, e nao moderna nasceu
no Oriente, däo
Media européia, os chineses se encontravam muito mais avan-
a seguinte resposta: a
çados em matéria de ciência e de técnicas. Ora, tratando-se de
revoluçäo científica foi, essencialmente, idélas, nao podemos ignorar que as tradiçöes culturais e filo-
desencadeada por urna "revoluçAo filosófica".
Ao fazerem tal sóficas dos chineses estavam em condiçôes de suscitar um pen-
afirmaçäo, adotam um ponto de vista conhinuísta
das ciências. Há mesmo os que tentam na história samento "mecanicista". No entanto, cremos ser ilegítimo expli-
mente que a ciência moderna tern sua fonte demonstrar, näo so- car o nascirnento da ciência moderna apenas recorrendo a urna
medieval, mas que, pelo menos em seus profunda no solo explicação da origem das idéias, no sentido intelectual do termo.
aspectos fundamen- O que se nos augura importante compreender é por que
tais, por sua inspiraçäo metodológica e
filosófica, é urna inven- esta ou aquela coletividade humana fixou sua atenço sobre
Çáo medieval. Essa posiçáo, que é
a de A. Crombie, analisada tais idéias e consagrou ingentes esforços para elaborá-las. De
longarnente por Koyré quando estuda as origens
derna (Etudes d'histoire de la pensée da ciência mo- forma alguma os externalistas pretendem negar a existência de
scientifique (1973), de- inovaçôes intelectuais. O que têm em vista faxer é estudar o
fende, no fundo, urna evoluçäo
continuísta das ciências. Tal desenvolvimento de tais inovaçöes, mas levando em conta o
evoluçâo é comandada por urna concepçäo
temente inspirada por certo tipo de empiriata e 6 for- major número possível de conjunturas históricas. Ê por isso
"filosofia experimental". que se recusam a ver no desabrochamento da "ciéncia experi-
O que se pode objetar é que a
história do progresso das ciôn- mental" na Inglaterra, na Itália e na França, um simples favor
cias modernas deve estar baseada em
seu caráter teórico, pelo outorgado pelos deuses, como se pudesse cair de um céu qual-
menos tanto quanto em seu aspecto
experimental. O aspecto teó- quer das idéias. Esse desabrochamento encontra-se íntima e
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 estruturalmente vinculado ao desenvolvimento tempo, como um fenômeno de civilizaçäo, como urna prática
sociedade pós-feudal de certo tipo de
:
desenvolvimentos marítimo, industria!, «triaI indissociável das dernais práticas humanas.
Comercial, financeiro etc. Nao
ternos o direito de separar os Alexandre Koyré, que pode ser justamente considerado um
fatores intelectuals de seu
enrajzamento concreto. As condiçôes d(1 melhorcs historiadores internalistas, censura todos os que
históricas reais que possibilitararn o
derna foram: o surgimento do nascimento da ciência mo- intltrrn no papel das necessidades prática.s e dos fatores de
so do sistema bancárjo, a primeiro capitalismo, o progres- !r4km econômico-social de cairem ou deixarem-se levar pelos
aceleração
vegaçáo, das minas, da artiiharia, rápida da técnica (de na- preconceitos baconianos e marxistas". Reconhece que a inter-
Social dos "engenheiros" e da imprensa), a pronioçao ;)retnçtio mais difundida, hoje, da história das ciências, é urna
dos artistas, as grandes nterpretaçäo positivista e pragmatista. Os historiadores de ten-
marítimas, a Reforma, a expediçöes
sobre o qual nasceu a ciência Contra-Reforma etc. Eis o solo real dncìn positivista insistem corn freqüência, ao tratarem da obra
moderna. dr Galilcu e de Newton, sobre seu caráter experimental, empi-
Apesar de muita coisa ainda permanecer ruto e fenornenista, bern corno sobre a renúncia desses autores
ao nascimento da ciência obscura quanto
moderna,
ternalista e internalista nao constituemvisto que as posiçoes ex- , busca das causas em proveito da busca das leis. Eles teriam

explicaçäo, havendo outros os dois (micos pólos de bLIndonado por completo a questäo: por quê?, substituindo-a
intermediários, urna coisa nos pa-
rece certa: seria injusto condenar, pela questão: como? A primeira questão seria de ordern filo-
em bloco, a orientaçäo dos 4tfica. Só a segunda interessaria à ciência. O que nao é ver-
externalistas, sob o pretexto de que
de um pesquisador nâo pode omeio econômico e socia! tludc, porque nem mesmo a questão: como? pode escapar to-
te de suas idéias teóricas. constituir a "causa" determinan- talmente da influência filosófica. Para Koyré, a questão de sa-
E evidente que os trabaihos hei se a influência da filosofia sobre a evoluçäo do pensamento
lileu nao forant "causados" pelas de Ga-
de sua mecânjca. Mas isso possíveis aplicaçoes práticas científico é boa ou má, ou é urna questäo de somenos impor-
nao o impediu de declarar, no láncia, porque "a presença de urna ambiência e de um quadro
de seus Discorsi: 'Senhores inicio
venezianos, que ampio campo de filosófico é urna condição indispensável da própria existência
ref!exäo me parece abrir, aos
taçâo assIdua de vosso famoso espíritos especulativos, a freqüen- da ciência", OU trata-se de urna questäo bastante profunda de
teirão dos trabalhos mecânicos"!
Galileu Situa expiicitamente seu
arsenal e, especialmente, o quar-
Ora, an fazer tal declaraçäo,
trabaiho dentro de urna pers-
resso- ou da decadência -
scntido, "porque este sentido nos levaria ao problema do pro-
do próprio pensamento filosó-
lico" (Etudes d'histoire de la pensée philosophique, p. 257).
pectiva de orientação prática. O
forma alguma é negado. Mas
aspecto teórico da ciência de o que podemos dizer é que o próprio Koyré nao está isen-
nao se encontra desvinculado de IL) de preconceitOs idealistas. Ora, em matéria de preconceitos,
um caráter nitidamente prático. '.1() menos nocivos os que menos fecham as perspectivas. A
Creio ser até certo ponto este respeito, o livro de Koyré sobre o espaço na Renascença
artificial e arbitrário, ernbora
bastante cômodo, distinguir urna e sobre a geometriZaÇäO bastante significativo. Ele consegue
lista, tendo por objetivo história das ciências interna-
precipuo estudar a evoluçäo das elaborar urna história das ciências dentro de um espaço de "au-
científicas, quer dizer, o idéias tologia do desenvolvirnento do pensamento científico" (ibid,
desenvolvirnento dos conceitos e das
teorias das ciências, e urna
história externalista, preocupando- p. 257). Ademais, ao conceber a geometrizaçàO do espaço
se muito mais com a
análise da inserçao social da como a substituiçäo do espaço concreto (conjunto de "luga-
de modo especial, corn a ciência e, res" ) aristotélico e medieval por um espaço abstrato da geome-
infiuência que sobre cia exercent as tria euclidiana, doravante considerado corno real, consegue o
necessidades sOciajs e as
ideologias. No entanto, a hipótese de feito de ignorar por completo Mercator, Leonardo da Vinci, os
trabaiho que mc parece mais justa e
conhecer que a ciêncja nao pode adequada consiste em re- grandes navegadores. Donde a invectiva que se faz aos inter-
a produçäo intelectual de
ser concebida apenas como nalistas, conseqüentemente a Koyré: elaboram urna história das
leonas, mas tarnbém, e ao mesmo clências na quai os cientistas vivem sem participar da vida so-
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 dal, como se fossem seres extratemporais, a-históricos ou
praculturais. Evidentemente, nao podemos negar que o objeto
da histórja das ciências seja a historicidade do discurso cien-
tífico, enquanto tal historicidade representa a efetuaçao de um
projeto interiormente normativo. Todavia, trata-se de urna his-
toricidade que é atravessada por acidentes, que é desviada por
obstáculos e interrompida por inúmeras crises, vale dizer, por
momentos de juízo e de verdade. A este respeito, parece sen-
sata a posiçäo de G. Canguilhem: "A história das ciências é a
tomada de consciência explícita, exposta como teoria, do fato
de as ciências serem discursos críticos e progressivos para a
determinaçâo daquilo que, na experiência, deve ser tido por
real. Portanto, o objeto da história das cîências é um objeto
nao dado al, um objeto cujo inacabamento é essencial ( . .).
Ele só pode ser delimitado por urna decisa9 que Ihe confere
.
interesse e importância" (Etudes, pp. 17-18).i E por isso que
podemos afirmar, inspirando-nos na epistemologia de Bache-
lard, que a história das ciências nao é urna história empírica,
mas a história das ligaçoes racionais do saber, toda ciência pro-
duzindo, a cada momento de sua história, suas próprias normas
de verdade. Todavia, ao serem produzidas, essas normas esto
sujeitas à sucessäo das
práticas que as
constituem e condicionam O processo de produção de conhe-
cimentos consiste justamente na transformaçao de urna matéria-
prima determinada, que é o conhecimento científico c/ou "re-
presentaçäo" pré-científica, nurn determinado produto intelec-
tuai, que é um novo conhecimento científico. Essa transforma-
çäo é efetuada por determinados agentes de produçäo científi-
ca, que se utilizam de determinados instrumentos de trabaiho
(conceitos, teorias e métodos) em determinadas condiçöes só-
cio-culturais de produçäo.
Para compreendermos como nasceu a ciência moderna,
deveríamos nos interrogar ainda sobre o modo como aqueles
que a criaram viarn e concebiam o mundo. Como percebiam o
espaço? Como se situavam relativamente às necessidades práti-
cas e às diversas profissôes encarregadas de satisfazê-las? Quais
os limites e os fins que estabeleciam para a aço humana? Qual
a concepçäo que se faziam da natureza? Que valores sociais
Ihes pareciam essenciajs? Que formas senslveis ou intelectuais
davam-Ihes major satisfaçâo? Num sentido lato, a resposta a
essas questöes depende da história das idéias. Por sua vez, e
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su-
Ito rnsmo tempo, essa história das idéias depende de urna so-
clologia, porque, tanto por sua origem quanto por sua difusäo
Pelo modo como se encarnam nas diversas práticas, tais idéias
possuem urna existéncia social. A este respeito, vários autores
Iøiitararn mostrar como a tradiçäo judaico-crista contribuiu, por
VCZCS indiretamente, para a preparação da revoluçäo científica.
n o que tenta demonstrar, por exemplo, R. Hooykaas em sua
',bra Religion and the rise cil modern science (Scotish Aca-
dcsnic Press, 1972) Esse autor vai de encontro à opinião cor-
.
rente, segundo a quai a ciência moderna deve muito aos gre-
gos e quase nada à BIblia. Evidentemente, ele nao faz um arra-
toado em favor da religiào, no sentido apologético do termo,
nem tampouco faz da Biblia urna fonte fornecedora, para os
dentistas, de urna espécie de esboço de suas idéias teóricas.
o que pretende mostrar é que a BIblia forneceu diversas "con-
ccpçOes sociais e metodoiógicas" cujo papel foi importante para
n clência moderna. Sua tese diz respeito a urna sociologia das
mentalidades e das idéias: a mensagem bíblica estaria na ori-
gem de certas atitudes diante da natureca, da experiência e do
irabaiho. E foi graças a essas atitudes que a ciència pôde sur-
gir e desenvolver-se no século XViI
CEssa pociçäo pode ser ilustrada pelo advento do mecani-
¡5mo A ciência moderna já nasce mecanicista. Considera a
natureza como urna máquina, como um conjunto de mecanis-
mas cujas leis precisam ser descobertas. Para se chegar a essa
concepçäo, é necessário ultrapassar as idéias de Piatâo e de
Aristóteles, bem como as dos atomistas. Segundo Hooykaas, foi
a noçäo bíblica de um Deus criador que tornou possível essa
inudança. E a idéia do Deus engenheiro ou arquiteto cuja obra
vai poder ser anaiisada metódica e matematicamente. Ora, essa
idéia de um Deus criador faltava aos chineses. Dal nao terem
podido formular a noçäo de "lei da natureza", no sentido
ocidentai.
O pensamento moderno, nao podemos negar, é contempo-
râneo da idéia e da presença da máquina. Evidentemente, os
filósofos modernos nao estavam interessados na máquina en-
quanto tal, nem tampouco enquanto constituía urna reaiidade
técnica, mas enquanto era um componente da realidade huma-
na e social. Em outros termos, o problema filosófico do maqui-
nismo nao se coloca em funçäo do papel da máquina na produ-
cao, mas em funçäo de sua influência sobre a vida humana. So-
I 41
 nha-se, nessa época, corn urna clência que seria ao mesmo tern-
PO sabedoria e poder. Corn urna ciência tornando o homem se-
nhor e dominador da natureza: da natureza exterior, pela "me-
cânica"; da natureza corporal, pela medicina. Descartes pensou
mesmo em criar urna Escola de Artes e de Oficios. Sonhou
corn urna humanidade liberada pela máquina de sua sujeiçäo às
forças naturais, corn urna hurnanidade capaz de vencer os ma-
les que a acabrunham. Ora, o nascimento e evolução da técni-
ca vão determinar e explicar toda a história humana posterior.
A civilizaçAo industrial nasceu do rnecanicismo. Dal por diante,
o ritmo natural da vida foi progressivamente sendo substituido
por urn ritmo mecânico, por um quadro artificial e por urn
melo fabricado. Em todos os dornínios, o pensamento moder-
no substituj o esquema biológico pelo esquema mecânico da
explicaçäo. A técnica pré-industrial reduzia-se a urna técnica
de adaptacäo às coisas. Mas a técnica industrial será urna téc-
nica da exploraçâo das coisas ou, ainda, da criação de coisas.
O que nos parece fundamental, no século XVII, é que a
Natureza deixa de ser deificada. Tarnbém deixa de ser urna
espécie de organismo governado por um ou vários princIpios
imanentes. Os filósofos passarn a comparar o mundo a um re-
lógio. A visao mecanicista serve de quadro para a astronomia
e para a física. A metáfora da máquina é utilizada para des-
crever os fenômenos da vida. Assirn, Mersena explica de modo
mecânico a fisiologia e o comportamento dos animais como
urna seqüência de causas e de efeitos necessários. Refere-se
explicitamente ao modelo do relógio. Tarnbém Descartes ima-
gina o homem como "urna máquina construída segundo o mo-
delo dos relógios, das fontes artificiais, dos moinhos e de outras
máquinas semeihantes". Portanto, nao há mais principios vitais
nem tampouco entelequias inapreensíveis. Os seres vivos con-
vertem-se em autómatas. O filósofo materialista La Mettrie, no
século XVIII, dará um vigor todo especial a essa idéia em seu
livra O homem-máquina.
Mas foi somente corn a primeira revoluçäo industrial, corn
a inauguraçâo da era técnica, que se tornou possível a realiza-
çäo daquelas máquinas tao ardentemente desejadas, tao inge-
nuamente esperadas e tao candidamente glorificadas. Corn seu
advento real, muitas esperanças forarn desenganadas. A máqui-
na nao veio aliviar o sofrimento dos hornens. Pelo contrário,
velo agravá-lo. Veio transformar o hornem nurn escravo de sua
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própria criação. Ao criar muita riqueza, repartia por toda parte
a miséria. Ao reduzir a força física, introduzia um trabalho
monótono e fastidioso, substituindo o ritmo vital e o ritmo hu-
mano do trabalho pela uniformidade do ciclo mecânico que se
repetia indefinidamente. As máquinas ignoravani o cansaço. Já
nesse momento, Fourier condena o industrialismo, afirmando
ser ele "a mais recente de nossas quimeras científicas". O tra-
balho industrial, gerador de fadiga insuportável, constitui "o
vIcio radical do mecanicismo civilizado". A este respeito, reme-
to o leitor ao estudo de Koyré sobre as origens e a significaçâo
do maquinismo (Etudes d'histoire de la pensée philosophique).
Depois dessa ilustração, corn o sentido do maquinismo,
retornemos às influências bíblicas sobre as atitudes do hornem
diante da natureza. Hooykaas está plenamente convencido de
(lue certos temas bíblicos favoreceram a substituiçAo do racio-
nalismo dogmático, que pretendia desvendar os segredos da na-
tureza mediante apenas a especulaçäo dedutiva, pelo raciona-
lismo crítico da ciência moderna, que tomou decididamente o
rurno do empirismo, na medida em que nao hesitou em recor-
rer à experiência e à experirnentação. O objetivo da ciência no
se reduz a colecionar fatos. Seu "empirismo" consiste, antes de
(udo, nurna reação contra o dogmatismo especulativo vigente.
E a enauete experimental corresponderia a urna orientaçäo
tente da concepçào bíblica concernente ao trabaiho do homem
no mundo. Ao afirmar que Seus pensamentos nao se identifi-
cam corn o pensamento humano, que ultrapassam nossos pen-
amentos (Isaías, 55, 8), Deus tena escoihido livremente as
leis da natureza. E para conhecer tais pensamentos, o homem
nao pode confiar apenas em sua razão. Dessa forma, a BIblia
tena valorizado o trabalho manual e encorajado o homem a
dominar a natureza. E isso contribuiu certamente para a for-
macao da mentalidade técnica e experimental dos cientistas
modernos.
Evidentemente, näo podemos negar que a concepçâo b!-
blica contenha certos elementos e certas idéias suscetíveis de
modificar as atitudes humanas. Mas será que ternos o direito
de dizer que a ciência seja urna conseqiiência das concepçöes
bíblicas? Se isso é verdade, corno se explica que durante tantos
áculos nao manifestaram nenhum efeito "científico"? Por que
tais idéias só corneçaram a agir a partir da época moderna?
Scm dúvida, formaram um quadro possível para o pensamento
I
 mecanicjsta e para a "filosofia experimental". Mas será que os
textos sagrados desempenharam verdadeiramente um papel de
desencadeadores do pensamento científico? Ou nAo teriam for-
necjdo apenas urna ideologia oportuna para urna sociedade em-
preendedora e dinârnica como a moderna?
E claro que nao podemos negar o fator religiäo a fim de
Supervalorizar sua importância e sua eficácia históricas. In-
f1uncias sociais, econômicas, políticas e geográficas desempe-
nharam um papel de primeira importância no nascimento da
ciência. Todavia, o aparecimento da filosofia mecanicista foi
muito mais a conseiiêncja de urna promoçäo social e econô-
mica inegável da mecânica (arte das máquinas) e dos mecâni-
cos (os "engenheiros". de entäo) As múltiplas analogías e me-
. Por conseguinte, parece inevitável urna relatividade generaliza-
táforas recorrendo à idéia de máquina surgiram por razöes de
ordern prática, dependendo da história do trabaiho e das técni-
cas no seio de determinada sociedade. Assim, o movimento
científico foi orientado muito mais pela "ascensäo dos enge-
nheiros" que pela influência de fatores de ordern religiosa. Sem
dúvida, a religiao tern seu lugar na história das ciências. Mas
nao se pode negar a influência decisiva de outros fatores exter-
nos condicionando a emergência da ciência moderna. Entre
esses fatores, volternos a citar os navegadores que, corn suas
descobertas, derrubaram as opiniôes dos "sábios" e dos "f116-
sofos". Graças aos seus conhecimentos práticos, hoinens de
pouca instruçäo deram urna grande liçäo aos eruditos dogmá-
ticos. Ê neste sentido que Bernard Palissy declara: os que me
visitam aprenderäo muito mais em duas horas de conversa co-
migo do que em quarenta anos de leitura dos filósofos. Tal
afirmação reflete urna realidade social que s6 muito parcial-
mente se explica pela influência da religiäo ou da filosofia.
Por conseguinte, a nova astronomia, inaugurada por Gali-
leu levada adiante por Newton, se permitiu solucionar certos
e iecnologia" moderna, cujo caráter próprio, e que a distingue
problemas científicos, vejo colocar urna série de outros proble-
mas não-astronômicos insolúveis. Em seu The copernican re-
volution, Thomas Kuhn apresenta urna lista desses problemas.
a história
da___qq _edaRedençäodoshomens passa a irur-se num
Iigrnäo-privilegiado da cosmoloiÖra,iàòà outros plane-
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tas possuem o mesmo estatuto da que somente nela
a bondade divina tena colocado habitantes? Os outros plane-
ta& £exiamhai1adQL IJIaki1ck p!Lpq descenderem
de Adk.e Eva4 o pecadoonginal. E o
trabaihoara eles. nao _constituía urna maldiço. Ademais, te-
ria havido múltiplas Revelaçòes divinas. E certamente várias
Encarnaçöes. Por outro lado, se os céus supralunares partici-
pam da geração e da corrupçäo do mundo aqui de baixo, nao
poderiarn mais constituir moradas dignas de abrigar o trono de
Dcus, que nao se sabe mais onde situar. E nao sendo mais a
l'erra o centro do mundo, a morada dos homens deixa de ocupar
urna posiçäo intermediária entre a dos demônios e a dos anjos.
da clos valores espirituais num universo infinito. Em tal univer-
so, nao se vê mais como Deus poderia dirigir-Se ao homem e
como o homem poderia encontrar Deus.
Apesar das pncias. os Juízes da Inquisiçäo, que sa-
biamueo r.to ÇJjleu cpnsistia em ele ter razo, donie
buscade silanciálo, foram osgrandes derrotados. A revolu-
çflo galileana se realizou e introduziu urna descontinuidade 'a-
dical na história do saber. E foi assim que se impôs um novo
tipo de ciência. O saber tradicional, conservado nos livros que
faziam autoridade, cercado por um clima de segredo e de sa-
grado, teve que dar lugar a um conhecimento rigoroso, verifi-
cável e universal. No dizer de Koyré, o universo do "mais ou
menos" foi substituIdo pelo universo da precisão. Fazer ciên-
cia passa a ser aplicar ao real noçöes rígidas, exatas e precisas
das matemáticas e, em prirneiro lugar, da geometria. E através
do instrumento de medida que a idéia de exatidäo passa a to-
niur posse de nosso mundo, e que tal mundo da precisäo vem
Wrnar o lugar do mundo do "mais ou menos" da física aristo-
télica, incapaz de conceber urna medida unitária do tempo. A
tecnica grega era urna simples techné. Foi pela conversäo da
(I)iSteme em techné, nos séculos XVII e XVIII, que surgiu a
da techné antiga, consiste na precisão. Doravante, nao se trata
mais de contemplar a verdade, mas de constituí-la pela força
titt demonstraçäo. Conhecer significa medir, experimentar, pro-
var e comprovar. Ademais, doravante o sábio deixa de ser um
eb.rigo, enciumado de seus segredos e fechado em si mesmo
como o alquimista sobre seus falsos tesouros, para ser um leigo,
I 45
 Iìomem de razäo e de reflexäo, de observaçäo e de laboratório.
A verdade passa a ser urna procura da verdade, ou urna ver-
dade em busca. Por outro lado, a nova ciência suscita um novo
tipo de instituiçäo capaz de abrigar o novo tipo de saber. Esta
"casa de Salornäo", cujo projeta foi elaborado por Bacon
(1561-1626) em sua Nova Atiântida, logo será urna realidade.
De 1657 a 1667, existirá em Florença, cidade que deu prote-
ção a Galileu, a Accademia del Cimento, onde se realizam tra-
balhos científicos extraordinários. A vigilância inquisitorial ter-
mina por levar essa primeira Academia de Ciências a fechar
suas portas Todavía, acriaçâo da Royal Society of Sciènces
de Londres (1662) e da Acadérnie des Sciences de Paris (1666)
viräo dar à nova ciência domicIlios fixos, onde poderão desen-
volver-se graças à proteçäo efetiva dos reis da Inglaterra e da
França, bastante fortes para permitirem o desenvolvimento li-
vre da nova ciência.
Até o momento, parece-nos claro que a ciência moderna
nao nasceu obedecendo apenas à sua dinârnica interna, mas a
fatores de ordern externa. Para ilustrar essa posiçäo, tomare-
mas dois exemplos: o primeiro se refere ao caso de Newton;
o segundo, à formaçäo do conceito de evolucionismo.
o caso de Newton é muito ilustrativo. Numerosos fatores
externos ao seu pensamento foram abandonados pela visão in-
ternaljsta da história das ciências. No entanto, em 1855, David
Brewster, biógrafo de Newton (1642-1727), ao descobrir que
ele havia estudado a alquimia, revelou-se um tanto escandali-
zado e escreveu: "NAo podemos compreender como um espí-
rito de tanto vigor, que se entregou nobremente às abstraçoes da
geometria e ao estudo do mundo material, pôde rebaixar-se e
recopiar a mais desprezível poesia alquimista e fazer anotaçòes
numa obra evidentemente produzida por um insensato" (cf.
La Recherche, nc 41, 1974, p. 85). Ora, à medida que foram
sendo aprofundados os estudos históricos, essa situação tornou-
se ainda mais insustentável para quem via em Newton um puro
"cientista", um "racionalista" de estrita observância, o legítimo
representante do espirito "positivista". Já era de todos sabido
seu grande interesse pela teologia e pela BIblia. Mas dedicar
650.000 palavras, em sua obra, à alquimia, era demais. Como
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entender isso justamente no homem que formulou a lei da gra-
vitaçäo universal e continua sendo considerado o grande sábio
dos tempos modernos?
Por longo tempo a história internalista considerou o mo-
virnento científico que vai de Copérnico a Newton como um
progresso contInuo em direção ao Iluminismo. Assini concebi-
da, essa história é maniqueísta, pois opòe aqueles que favore-
ceram o Progresso, o reino da Razäo (precursores e gênios
fundadores) aos que a eles se opuseram, por preconceito, por
Ruperstição ou por qualquer outro tipo de obscurantismo inte-
lectual. Ora, näo se pode evitar facilmente semeihante tipo de
avaliaçäo. Torna-se possível a reconstituição de urna história
das ciências que venha a confundir-se, na prática, corn urna
história do pensamento racionalista. Considera-se, pois, que a
ciência culmina num conjunto de leis formuladas matematica-
mente, verificadas experimentalmente, devendo excluir toda es-
peculaçäo sobre as realidades subjacentes aos "fenômenos"
Postula-se claramente a oposiçäo entre ciência e metafísica. Ne-
ga-se qualquer influência das obscuras idéias místicas na cons-
truçäo das cìências.
Essa concepçäo rigorista de ciência, por urna espécie de
ironia do destino, refere-se a Newton, justamente a ele, que é
apresentado como o modelo, o protótipo do "sábio moderno".
Inümeros de seus textos parecem confirmar essa hipótese: insis-
tência nos procedimentos do método experimental ao lado de
urna recusa sistemática das hipóteses metafísicas. Em suas obras
reconhecidas como propriamente "científicas", Newton parece
confirmar essa irnagem dos puristas. No entanto, de um ponto
de vista histórico e epistemológico, nao ternos o direito de ne-
gar que, para se compreender a significação do pensamento
newtoniano, é imprescindível que levemos em conta suas espe-
culaçöes alquimistas e herméticas. E toda a interpretaçào da
'revoluçäo científica" que precisa passar por um processo de
retificaçäo. Na verdade, como bem enfatizou H. Kearney
(Science and change, 1971), a ciência moderna recebeu urna
tríplice influência: a primeira, da tradiçäo organicista, que tenta
explicar tudo em termos biológicos; a segunda, da tradiçäo nie-
canicista, em cujas explicaçöes dos fenômenos predominam as
analogías corn a máquina; finalmente, da tradiçäo mágica, ba-
scada nos "escritos herméticos" (escritos atribuIdos a urna mis-
teriosa figura mítica, Hermes Trismegisto).
I
47
 Os textos herméticos refletern tendências místicas
derivadas
do neoplatonismo, nos quais se pode 1er a revelaçâo divina de
segredos relativos ao mundo físico: a luz como fonte de
vida,
a situaçäo do Sol no centro do mundo, a natureza como
algo
ativo, animado e impregnado de "psiquismo",
o "fascínio" do
semelhante pelo semeihante. Ternos al urna espécie de
fundo histórico das especulaçòes sobre o conceito de pano de
arração.
Contudo, a essa corrente hermética ligam-se as especulaçöes
pitagóricas: o Cosmos é regido por secretas harmonias
máticas, o sábio é um mago devendo decifrar os mate-
mistérios da
natureza e dominar suas forças ocultas, tendo em vista
respon-
der às necessidades práticas da vida humana. Na
Renascença,
vários desses temas exerceram forte influência
sobre o
mento dito científico. Assim, em seu De Revolutionibus pensa-
Copérnico faz explicitarnente alusão a Hermes para
(1543),
confirmar
o lugar central do Sol em seu sistema:
"Trismegisto o chama
de o deus visível". Ao estudar a passagem da
magia à ciência,
o historiador inglés das ciências, W. P.
Wigtman (Science in a
renaissance society, Hutchinson, 1972), afirma que a
dos que esperavam mudanças revolucionárias nas maioria
ciâncias (Co-
pérnico, Kepler, Newton e Galileu) estavam
profundamente mo-
tivados pela convicçäo de que forças ocultas
atuavam sobre a
ciência, para além da sensaçäo imediata.
Evidentemente, Newton nAo foi o primeiro cientista a
ocupar-se de hermetismo. Mas isso nao impediu
protestos. Em 1947, por exemplo, Lord Keynesurna onda de
declara que
"Newton foi o último dos mágicos". O que se pode
que nao Jevou muito a sério a busca da Pedra alegar é
Filosofal nem
tampouco do Elixir de longa vida. No entanto, tal
alegaçäo
revela-se insuficiente para se resolver a questäo.
Porque os tex-
tos são claros: Newton inseriu em sua obra
inúmeros trechos
de autores alquimistas (entre outros, de Michel
nao concernem apenas aos aspectos técnicos
Maier) que
da Grande Arte,
mas à significaçao alquimista da mitologia paga.
acreditava piamente na existência da urna revelaçäoInclusive, ele
alquimista.
Talvez isso possa parecer escandaloso. Mas nao
ternos o direito
de nos contentar corn urna interpretação
"esquizofrénica" de
Newton: de urn lado, ternos o cientista rigoroso,
meticuloso, ob-
jetivo, calculista, realizando um trabalho sério de
tiva; do outro, um -homern supersticioso, ciência posi-
crente, merguihado nos
delIrios alquimistas.
Parece-nos falso esse dualismo radical. Na verdade, New-
ton tentou interpretar certos fenômenos alquimistas em termos
mecanicistas. Isso nao quer absolutamente dizer que tenha Visto
urna perfeita compatibiidade entre a alquimia e o pensamento
científico. O que nao se pode negar é que acreditava, segundo
os hábitos da Renascença, na existência de urna sabedoria aníiga
ou de urn corihecimento antigo. Estava convencido de que os
textos que the cram transmitidos continham verdades sob urna
forma enigmática. E tais verdades precisavam ser decifradas.
Foi dessa forma que ele leu os alquimistas. Em seu estudo Sobre
a natureza dos ácidos, defende claramente a legitimidade da
teoria alquimista do Eaxofre e do Mercúrio filosóficos. Nao
opòe a filosofia mecanicista à tradição hermética nern, tampou-
co, tenta refutar o hermetismo. Sua convicçäo é a de que a
ciência nova precisa conhecer e aprofundar as verdades antigas,
bem como as revelaçbes ocultas nas ficçöes e nos mitos arcaicos.
Foi semelhante estratégia que lhe perrnitiu mostrar que Pité-
goras já conhecia a lei da gravitaçäo. E para confirmar a oni-
presença substancial de Deus, cita indiscriminadamente Pitágo-
ras, Tales de Mileto, Anaxirnandro, VirgIlio, Sao Paulo, São
Joäo, Moisés, Salomão (no Scholium generale de seus Princi-
pia) A conclusAo é que o velho Anaxágoras já havia anuncia-
.
do a idéia da gravitação universal.
A cultura alquimista de Newton pode ser percebida até
mesmo em seus textos fundamentais de física. Assiin, numa
longa carta a Oldenburg, sobre "a hipótese concernente à teoria
da luz e das cores", hipótese esta submetida à Royal Society of
Sciences, em 1675 (cf. H. S. mayer, Philosophy of Nature,
Hafner, 1953, p. 82), ele descreve um etherial medium que
onteria diversos "espíritos etéreos" correspondendo aos "efiti-
vios elétricos e magnéticos", bem como ao "princIpio causador
da gravitaçäo". Ao ampliar sua hipótese, Newton sugere que
"todas as coisas têm sua origem no éter", toda a natureza de-
vendo reduzir-se a "diversas contexturas de cesios espíritos ou
vapores etéreos, condensados por precipitação" Bem entendido,
semeihante berança tradicional pode ser interpretada segundo a
metodologia mecanicista. Todavia, isso nao impede Newton de
conceber a natureza como urna espécie de grande alambique
onde perpetuamente circulam fluidos e espíritos diversos.
Nesse contexto, como se deve entender a orientação para
a idéia de gravitaçäo? Como se deve conceber a "força atrati-

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1 49

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 va" que se exerce sobre dois corpos? O mecanicista Descartes
dispunha de turbilhoes de matéria sutil para dar urna explicaçäo
inteligível a tais questes. Era sempre possível imaginar meca-
nismos invisíveis para "explicar" os fenômenos. Para os meca-
nicistas, tudo se reduzia a urn jogo de partículas em movimento.
Embora fornecessem causas para os fenômenos, nom por isso
conseguiam explicar o problema das forças. Foi Newton quem
desenvolveu um conceito de força bastante compreensível e cfi-
caz. NAo se tratava mais de referir-se apenas aos choques entre
os corpos. Doravante, torna-se cientificamente legítima a aira-
Ção à distância. Mas como pensar o modo de ação da "força
atrativa"? Admitindo-se em cada corpo urna pequena alma de-
sencadeando o movimento em direçäo a outro corpo? Cientifi-
carnente, nao se podia admitir tal espécie de telepatia scm
nenhum suporte de ordern material. Donde as críticas à teoria
newtoniana, que .recorria a forças ocultas. O fato, no entanto, é
que tal teoria se elaborou graças a urna reflexäo em que se
misturaram idéias teológicas e idéias de origern mais ou menos
mágica. Newton nao foi um partidário da ciência pela ciência.
Seu objetivo último era definir as relaçöes de Deus corn o
Universo. Formulou urna concepção em que o éter era substi-
tuldo por Deus. Estava profundamente convencido de que o
espaço é um sensorium Dei. Em outras palavras, sua concepçäo
científica só pode ser compreendida no interior da crença na
onipotência de Deus, que percebe todas as coisas e age imedia-
ta,nente sobre cias. No plano metafísico, os "princIpios ativos"
identificam-se corn Deus.
Nosso segundo exemplo ilustrativo das interferências exter-
nas na formaçäo da ciéncia moderna diz respeito à história do
evolucionismo. Corno foi visto pelos historiadores das ciências?
o que há de mitológico e de científico nas teorias de Laînarck
e de Darwin? Todo mundo parece possuir sua idéia ou sua opi-
niäo a respeito do evolucionismo. ou da "revoluçäo darwiniana"
lodavia, as teorias transformistas nao se desenrolaram de modo
tao simples corno talvez possamos imaginar. Os cientistas igno-
ram quase por completo os resultados encontrados pelos histo-
riadores das ciências. Talvez porque nao estejam interessados
no modo como se formaram as idéias, os conceitos e as teorias
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de suas respectivas ciências. O que revela um desinteresse pelas
indagaçòes de ordern propriamente epistemológica. Todavia,
há urna razäo mais profunda: as análises e as discussöes dos
historiadores atingem a própria natureza do trabaiho científico.
Conseqüentemente, podem alterar profundamente a imagem da
ciência que nos foi proposta. Ora, toda sociedade possui certr
concepçäo do que seja o saber, do que seja a ciéncia, do que
seja a pesquisa científica. Muitas vezes nos foi ensinada urna
visa0 simplista do progresso científico. Isto se deve à ignorância
da história das ciências. Tal ignorância leva a verdadeiras de-
formaçòes. A história do evolucionismo foi deformada, corn
freqüência, segundo o mito do progresso contInuo.
Há vários modos de se deformar urna teoria científica pas-
sada. Urn consiste em interpretá-la apenas como a antecipaçào
ou como a preparaçâo de urna teoria posterior. Recorta-se a
primeira teoria em pedaços: rejeita-se os maus e conserva-se
os bons, quer dizer, os que meihor se inserem na sucessáo ao
mesmo tempo lógica e cronológica de progressos acumulativos.
Ê assim que se cria o mito do precursor: adota-se urna perspec-
tiva otimista e abusivamente continuísta, em que os êxitos en-
gendram os éxitos. Nao se negam as diferenças entre duas teo-
rias, mas se minimizam, e pressupöe-se que as perspectivas em
que se situam sejarn as mesmas. Assim, somos levados a falar
de Lamarck e de Darwin como de "evolucionistas" possuindo
problemáticas mais ou menos semeihantes, só se diferenciando
pelo modo de ambos conceberem a "adaptaçäo". Segundo tal
interpretaçáo, Lamarck aparece como o fundador do transfor-
mismo, retomado, mais tarde, por Darwin.
Ora, temos aí. o vIrus do precursor, tao bem denunciado
por Canguilhem, ao interpretar a concepçäo da história descon-
tinuísta das ciências, elaborada por Bachelard. Nao ternos o
direito de pretender que a teoria de Lamarck venha anunciar,
de um ponto de vista científico, a de Darwin. Porque, do ponto
de vista conceitual, o lamarckisrno nada tern a ver ou nada pos-
sui em comum corn o darwinismo, corno bem mostrou C.C.
Gillispie (The edge of objectivity, Princenton University Press,
1970). As idéias de Lamarck são inseparáveis de urna filosofia
zoológica. Embora seja um dos criadores do termo "biologia"
(1802), nao se preocupou unicamente corn a vida, mas corn a
natureza em seu sentido ampio. Seu evolucionismo está apoiado
nurna visâo do mundo bastante ronthntica, muito diferente da
I 51
 visao proposta pelas ciôucias físicas. Tomadas urna a urna, as
palavras de Larnarck se assernetham ès de Darwin. O problema
consiste em saber se, na visäo lamarckista da natureza e de
seus processos, tais palavras podern significar a mesma coisa.
Em geral, nao atribuimos aos pré-socráticos a glória de
terem fundado o evolucionismo. No entanto, Anaxirnandro já
dissera que "o homem nasce de animais de outra espécie", que
ele "nasce dos peixes". Também Empédocles tena sido o "pre-
cursor" de Darwin, pois já concebera a idéia de sobrevivência
do mais apto. Aliás, o próprio Darwin, no inicio de A origem
das espécies, atribui a Aristóteles (na realidade, a Empédocles),
o princIpio da "seleçäo natural". No entanto, os pré-socráticos
nao podem ser considerados os precursores do evolucionismo.
Urna das idéias centrais de Lamarck, em sua Philosophie zoologi-
que, consiste em ver a natureza agindo como urna "causa" que
complica progressivamente a organizaçäo dos corpos vivos. Essa
causa se exerce de modo uniforme, segundo uma lei bem deli-
nida, tendo em vista realizar "o plano gera! da natureza". Nao
ternos al um princIpio vital, mas um processo que se desenvol-
ve no mundo físico, sendo-Ihe imanente. O que essa lei visa a
produzir, ao longo da série natural dos animais, são organismos
catla vez mais "perfeitos". Graças a essa "lei de composiçäo",
a natureza produz necessariamente urna série progressiva de
organismos. Se o meio nao mudasse, a natureza produziria essa
gradaçäo de modo absolutamente regular e idêntico, porque cia
realiza seu plano em todo tempo: todos os animais progridem
continuamente, como se subissem ao longo de urna "escada".
A natureza produz continuamente protozoários por geraçâo es-
ponidnea e que se aperfeiçoam sempre, até um teto, corneçando
al decadência, a decomposiçäo: "todos os corpos brutos corn-
postos, sem exceçâo, constituem o resultado dos despojos e dos
detritos dos corpos vivos" (Hydrogéologie, i 802).
Fecha-se, assim, o círculo do orgânico ao inorgânico: ge-
raçöes espontâneas, animais cada vez mais aperfeiçoados, for-
macao dos corpos brutos a partir dos cadáveres, retorno aos
primeiros princípios, novas geraçöes espontâneas. Ternos al urna
circulaçâo contInua, o sistema lamarckiano funcionthido como
urna escada rolante. Os fatores exteriores desempenham apenas
um papel secundário. O plano ideal da natureza encontra "ano-
malias" e "desvios". As classes animais nao progridem de modo
linear e regular. A "lei" age, mas esbarra corn obstáculos. As
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circunstâncias agem sobre os animais. A série animal nao se-
gue a via única do aperfeiçoamento. Ela se ramifica. Todavia,
a ordern principal é mantida e respeitada, apesar da "distribuí-
çâo" natural das classes zoológicas (Darwin faia de espécies).
A hierarquia é absoluta. As circunstâncias introduzem apenas
certa desordem na "distribuiçâo" ideal. As espécies constituem
variaçOes do plano principal. O papel das circunstâncias con-
siste em suscitar, nos animais, novas necessidades capazes de
modificar seus hábitos. Estes ievam ao desenvolvimento, ao en-
fraquecimento e ao desaparecimento de um órgao.
O que pretendemos afirmar é que essa parte "científica"
do lamarckismo nao pode ser comparada à "seleção natural"
de Darwin, pois nao constituem respostas à mesma questäo. Em
Lamarck, a aço das circunstâncias está subordinada ao "plano
da natureza". Segundo Darwin, a "seleção natural" se exerce
sobre "variaçöes" apresentadas pela natureza. Ademais, a di-
versificaçäo dos animais nao é um conjunto de "anomalias" re-
lativamente a urna "distribuição" ideal. Ela é constituIda pelo
mecanismo variaçóes/seleçäo. No detalhe, encontrarnos em Dar-
win vários elementos lamarckianos. Mas seu quadro teórico e
suas exigências científicas são inteiramente distintos. Basta dizer
que Lamarck possui um apego muito forte à ordern estabelecida,
o que é incompatível em alguém que possui urna concepçäo ver-
dadeiramente evolucionista. E duvidoso que ele tenha compre-
endido o caráter histórico da evolução, capaz de produzir for-
mas radicalmente novas. Sua história dos animais nao é urna
história que muda e inventa. Sua concepçäo da natureza é por
demais tonservadora. Em seu entender, tudo o que foi produ-
zido se conserva: "a ordern geral deve subsistir" (Philosophie
zoologique, p. 1 13). Portanto, sua famosa "escada rolante"
funda urna real estabilidade, embora Lamarck nao scia um es-
pInto fixista. Seu tempo é repetitivo, nao possibiiita urna evo-
luçäo indefinida, urna rnodificaçao essencial da hierarquia dos
organismos vivos. Por exemplo, declara textualmente: "Tudo se
conserva na ordern estabelecida. As mudanças e as renovaçbes
perpétuas que se observam nessa ordern são mantidas nos lirni-
tes que cias nao poderiam transpor ( . . . ). Tudo o que parece
desordem, reviravoita, anomalia, entra incessantemente na or-
dem gerai e contribui para cIa" (Philosophie zoologique, p. 115).
Por conseguinte, o transformismo de Lamarck nAo intro-
duziu urna ruptura corn as doutrinas metafísicas fundadas nas
I 53
 idélas de finalidade, de ordern e de sabedoria divina ou natural.
Mesmo recusando a id'éia de finalidade, sua linguagein está ei-
vada de finalismo, encontra-se vinculada à idéia de ordern na-
turai, ordern estática, corno que eterna. Donde a nãa-historici-
dade de suas teorias e seu caráter por demais conservador, tanto
no plano científico, defendendo teorias ultrapassadas (a teoria
"pirótica", na qual o logo desempenhava um papel central),
quanto no filosófico. Aliás, Larnarck jamais utilizöu o termo
'evoluçâo". Quem o empregou, e assim mesmo somente na sex-
ta ediçâo de A origern das espécies, foi Darwin.
o termo "evolução" apresenta vários sentidos. No século
XIX, era usado para significar a transformaçào progressiva que
leva a formas novas. No século anterior, designava o "desenvol-
vimento" de algo previamente definido. Trata-se de um desen-
volvilnento no tempo, mas como realizaçäo de algo que já exis-
tia em germe. Neste sentido, a evolução exclui o transformismo,
pois define-se mais como uma pré-forrnaçäo. E por isso que
Darwin tenta evitar o termo "evoluçào". Prefere falar de "trans-
mutação das espécies", ou de "modificação por seleção natural",
ou simplesmente de "transformação". Se passou a adotar o ter-
mo "evoluçäo", foi por influência de Herbert Spencer que, antes
mesmo de A origem das espécies ( i 859 ) , havia definido a evo-
lução corno urna "integraçäo de matéria e urna dissipaçäo de
movimento, durante a qual a matéria passa de urna homogenei-
dade indefinida e incoerente a urna heterogeneidade definida e
coerente; e durante a quai o movimento retido sofre urna trans-
formaçäo paralela". Assirn, para Spencer, a evoluçäo é urna
doutrina que pretende tudo explicar: a biologia, a psicologia, a
sociologia, a moral etc. Nao é urna teoria científica, mas um
corpo de princípios de alcance universal. Spencer parte do uni-
versal para explicar o particular. Foi ele quem fundou realmente
o evolucionismo, embora Darwin leve a fama, apesar de nao té-
lo ensinado, mas a teoria da seleçäo natural.
Estamos diante de um exernplo típico de forrnaçäo de um
mito filosófico-científico. Spencer elaborou grandes generaliza-
çöes inverificáveis. Darwin veio trazer-Ihes a cauçäo da "cién-
cia". Em sua Autobiografia, afirma nao se ter inspirado na obra
de Spencer, cujo método dedutivo de tratar os assuntos era di-
verso do seu: "Suas generalizaçóes fundamentais nao me são de
nenhuma utilidade científica, pois nao me ajudarn a predizer o
que vai se passar em nenbum caso particular". Darwin quena
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acumular observaçoes e fazer experiências. Pretendia elaborar
urna teoria vinculada aos jatos. Sen objetivo era chegar a urna
explicaçao relativa (nao definitiva), regressiva (nao dedutiva)
e particular (nAo universal). O estatuto epistemológico de sua
teoria já se encontra presente no seguinte texto: "Creio na sele-
cao natural, nao porque posso provar que da mudou urna es-
pécie em outra, mas porque agrupa e explica bem muitos fa-
tos". O que ternos, corn tal declaraçAo, nao é mais urna intençäo
metafísica, mas a expressäo clara de urn pensamento preten-
dendo afirmar-se na cientificidade. O que nao quer dizer que
Darwin tenha elaborado urna "ciência pura", cortada de toda
preocupaçäo de ordern extracientífica.
Até que ponto se pode dizer que seu pensamento se opôs
à conceçóo teológica? Tena sido sua obra urna refutaçào cien-
tífica da concepçäo vigente, segundo a quai há tantas espécies
diferentes quantas forem as formas distintas criadas, na origem,
por Deus? Para Darwin, a Bíbiia ensinava a fixidez das espécies.
Sua doutrina é eminentemente criacionista: Deus cniou separa-
damente cada espécie. Ao que tudo indica, Darwin se opôe de
modo científico à teologia criacionista, à idéia de urn Deus cria-
dor das espécies. Em sua obra fundamental, The descent of
man (trad. fr. La descente de l'homme, 1891 ), faz a seguinte
deelaraço "Se cometi um erro ao atribuir um grande poder à
:
seleçäo natural, espero, pelo menos, ter prestado algum serviço,
contribuindo para derrubar o dogma das criaçöes distintas"
(trad. fr., p. 63). E, numa carta de 1863 a Asa Gray, reforça
sua posiçbo: "Dou a máxima importância à seleção natural.
Mas isso me parece inteiramente desprovido de importância
em comparaçäo corn a questâo: criação ou modificação". Neste
sentido, apoiava Lamarck, que fazia de toda mudança o resul-
tado de urna "lei", nao de urna intervençäo miracuiosa qualquer.
Assim, criticou as teorias da Criaçäo, a teologia servindo como
o terreno de ruptura, pois o trabalho científico näo se realiza
nom vazio cultural. Por estar convencido da mutabilidade das
espécies, é que faz esta deciaração: "Tenho a impressäo de
confessar urn assassinato", de que a vítirna é o próprio Criador.
No prefácio de The descent of man, aprovado pelo pró-
prio Darwin, Carl Vogt mostra claramente o pano de fundo
ideológico sobre o qual essa obra foi escrita. Vogt liga o pen-
samento de Darwin a urn combate incessante contra a autori-
dade e as crenças transmitidas, herdadas e autoritárias. Liga-o
 L'
a urna "corrente de liberdade e de independência, manifestan-
do-se no mundo político, religioso, social, literário e científi-
co". Trata-se, no fundo, de urna "crítica aos textos sagrados"
e ao criacionismo, de tal forma que o verdadeiro núcleo
do
darwinismo pode ser definido por esta tese: "Nao há lugar, nern
no mundo inorgânico nem no mundo orgânico, para urna ter-
ceira força independente da matéria e podendo modelar essa
matéria segundo seu desejo ou seo capricho".
No entanto, podemos nos perguntar: o que há de ideoló-
gico e de propriamente científico nas teorias darwinianas? Sa-
bernos que ningum tern o direito de separar de modo absoluto
o que é fato daquilo que é interpretaçäo, hipótese ou especula-
ção. Nao há urna verdadeira linha de demarcaçäo entre a "ciên-
cia pura", as generalizaçôes fundadas sobre eta e as quesoes
ideológicas correspondentes. Isso nao quer dizer que basta co-
nhecermos a origem de urna idéia para determinar o valor de
seu emprego numa teoria científica. Maithus, por exemplo, foi
urn reacionário no plano político. No entanto, criticar Maithus,
nesse plano, nao basta para se fazer urna crítica científica da
"seleção natural". Darwin deve rnuita coisa a Maithus. Seo
evolucionismo está vinculado às ideologías de seo tempo. Aliás,
a teoiia evolucionista sempre esteve ideologicamente atual. Por
exeznplo, num trabaiho sobre a biologia evolucionista e a ideo-
logia, R. Young (Sciences studies, 1971) mostra como A. R.
Wallace, tendo descoberto ao mesmo tempo que Darwin a teo-
ria da seleçao natural, torna posiçäo a respeito da teoria malthu-
siana. No entender de Wallace, os princIpios de base dessa tea-
ria são contrários à sua posiçäo socialista e à sua filosofia da na-
tureza. Donde recusar-se a aplicar a idéia de seleço natural aos
Oljtros aspectos do desenvolvirnento do hornem. Via no maithu-
sianismo urna doutrina politicamente inaceitável, pois ela corn-
portava urna concepçäo fatalista da existência humana, excluin-
do a possibilidade de se reestruturar radicalmente a sociedade.
No fundo, ele faz sua a posiçäo de Fngels: "Toda a teoria
darwiniana da luta pela existência é simplesmente a transferên-
cia, da sociedade à natureza viva, da teoria de Hobbes sobre
a guerra de todos contra todos, e da teoria econômica bur-
guesa da concorrência, bem como da teoria da populaçäo de
Maithus" (citado por Young, p. 184).
Urna coisa parece certa: as doutrinas evolucionistas extra-
polarani o domInio da simples biologia, o que vem mostrar a
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importância do problema. Marx quis dedicar a ediçAo inglesa
ae O capital a Darwin. Este tena recusado, dizendo: "Os ale-
mäes parecem ter urna idéia bastante estranha (foolish) das
relaçoes existentes entre o socialismo e a evoluçäo por seleçAO
natural". O que importa é que, nas últimas décadas do sêculo
XIX, o darwinismo e o socialismo mantiveram relaçei bas-
tante complexas. Nesta epoca, "a ciência" gozava de enorme
prestIgio. Do ponto de vista sócio-cultural, era perfeitamente
natural que qualquer doutrina política viesse a reclamar-se do
evolucionismo. Para alguns, o darwinismo vinlia refutar defini-
tivamente os ideals socialistas. Para outras, pelo contrário, ele
podia servir-Ihes de urna sólida base científica. O próprio Marx,
numa de suas cartas (Lettres sur les sciences de la natwe, tr.
fr. 1973, p. 21), afirma: "O livra de Darwin (The descent
of man) é moita importante e me convm como base da luta
histórica das classes". Oito dias após a morte de Marx, seu
genro escreve urn artigo explicìtando os desenvolvimentos ideo-
lógicos do evolucionismo. No fundo, diz Paul Lafargue (cita-
do em La Recherche, n° 77, 1977, p. 395); "a ciência dos
evolucionistas é mais opressiva que a religio dos padres". Corn
efeito, "eles falsearam a teoria darwiniana para meihor colocá-
la a serviço da classe capitalista". Porque "a degenerescência
das classes reinantes é fatal: cia confirma a teoria darwiniana"
Como se pode notar, o darwinismo den margens a varias
interpretaçöes. Uns dele se aproveitam para justificar a desi-
gualdade dos homens pela seleçâo natural. Forma-se urna elite,
urna classe dos meihores. A ciência evolucionista está baseada
na religiào: as almas, criadas por Deus, são iguais; os homens,
selecionados pela Natureza, nascem desiguais e ficam condena-
dos à eterna desigualdade. Outras autores se servern do evolu-
cionismo para fundar as bases, ditas científicas, de urna desi-
gualdade apenas social. O fato, no entanto, é que o evolucio-
nismo foi invocado para explicar a evolução social, para de-
fender o individualismo e o socialismo, a competiçäo e a co-
operaçâo, a aristocracia e a democracia, a força bruta e a bon-
dade, o militarismo e o pacifismo, o pessimismo e o otimismO
morais, o evolucionismo criador por emergência e o naturalis-
mo evolutivo. Recentemente, C. D. Dalington (1969) explica
que os resultados da biologia vêrn confirmar as doutrinas se-
gregacionistas e do apartheid, e que a discriminaçäo racial tern
urna sólida base genética (cf. Young, op. cit., p. 188).
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 Torna-se, pois, patente que o evolucionismo constitui am- so/ia esponânea, ou seja, corn esse conjunto de "representa-
da um problema vivo, onde a ciôncia nao é a única em ques- çöes", de crenças, de atitudes e de hábitos relativamente à sua
tao. Para avaliarmos seu estudo crítico, precisamos recorrer à prática. 1 seu caráter "espontâneo" e seu reconhecimento ins-
história das ciências. E lamentável qne os cieists_näq estu- titucional que a privam da sistematicidade e da forma reflexiva
dem a história deuapeciivas cinciasFrivados do apara- e crítica.
(Q hjri e conceitua1 río caneguem elaborariuna crítica
de seu saber, do saber que Ihes kizansmitido. ivase sempre
dogmaticamente. para dtectaras apçöes fiksóficas .e ideolégi-
cas nele jpjjcadas. Na prMiça,nossaensino cientí1ico k ba&-
tante equizóide, pois deixa que ..certo& especialistas façam.. a
história dos conce1to científicos. das teorías do .passado, das
controvérsias filosóficas ou po1ítias, .taflsmitindo aos çientis-
tas apenas um saber positivo, dogmaticamente exposto ou pre-
cedido de resumos simplistas e simplificadores. Em geral, os
cienhistas conhecem muito mal a formação de suas teorias e de
seus conceitos, pois aprendem urna ciência divorciada da his-
tória das idéias, da vida social e política.
Para esse fato, há várias explicaçães. A história das ciên-
cias nao apresenta nenhum interesse direto para a pesquisa.
Seria urna perda de tempo. Ora, dizer isso já implica adotar,
pelo menos implicitamente, determinada "filosofia da ciência",
certe concepçäo da atividade científica e de seu valor. No mí-
nimo, tal concepção está fundada nurna filosofia pecuniária e
industrial, num pragmatismo mercantilista do saber. No fundó,
admite-se que a ciência constitua urna atividade autônoma, que
progride de modo linear e acumulativo, que nao implica ne-
nhuma opçâo de ordern filosófica ou ideológica, que todas as
descobertas convergem para a Verdade e para o bem da hu-
manidade. Ora, devernos duvidar desses postulados. Exprimern
urna idéia justa, na medida em que postulam que os cientistas
precisam elaborar conhecimentos rigorosos e objetivos. No en-
tanto, a realidade está muito distante desse ideal. A ausência
ou a recusa da história das ciências correspondem a urna con-
cepçäo idealista do saber (considerado mais "puro" do que real-
mente é), a urna visäo bastante cientificisia e tecnocrática da
atividade dos pesquisadores. Na prática, tal mentalidade leva a
um culto abusivo do especialista e do expert, bem como a um
recuo do espIrito crítico. A história do evolucionismo mostra
que a ciência nao se identifica necessariamente corn um discur-
so transparente, definitivo e totalmente neutro. Creio que os
cientitas nao têm o direito de contentar-se apenas corn sua filo-

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