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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1ª Oficina de Filosofia das


Ciências Humanas e Sociais

CENTRO DE FILOSOFIA
DAS CIÊNCIAS DA
UNIVERSIDADE DE LISBOA

Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa


27 de Maio de 2008

Organização
Marta Filipe Alexandre
INSTITUTO DE LINGUÍSTICA TEÓRICA E COMPUTACIONAL

Nuno Miguel Proença


CENTRO DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Índice

Reflexão epistemológica sobre a investigação em ciências da linguagem


em Portugal: aspectos da apresentação e da avaliação das unidades de
investigação..
Marta Filipe Alexandre……………………………………………….4

As Ciências Humanas – o caso da Psicologia.


Isabel Oliveira da Silva Coentro……………………………………..18

Agentes e ações na criação de uma disciplina: o caso dos Estudos da


Tradução no Brasil.
Roberto Carlos de Assis……………………………………………………..38

A glória de uns e o domínio de outros: sobre relações de poder na prática


da linguística.
Carlos A. M. Gouveia………………………………………………..59

Espaços de verdade. A partir de Michel Foucault.


Ricardo Julião………………………………………………………...75

Pensar para além da verdade. A ficção na história, na sociedade, na


filosofia.
Eduardo Pellejero…………………………………………………….85

Proust e os Signos: as Categorias, a Lei, a Loucura.


Catarina Pombo Nabais……………………………………………..100

Merleau-Ponty e a experiência da afectividade na criança.


Irene Pinto Pardelha………………………………………………...116

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Afinal o que significa o inconsciente? Michel Henry leitor de Freud.


Nuno Miguel Proença……………………………………………....125

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Reflexão epistemológica sobre a investigação em


ciências da linguagem em Portugal: aspectos da
apresentação e da avaliação das unidades de investigação.

Marta Filipe Alexandre1


martafilipealexandre@gmail.com

Introdução2

Permita-se-me que comece por algumas das interessantes


questões que foram colocadas à minha comunicação e tente esclarecer
aspectos cruciais para a compreensão e discussão do meu trabalho. Na
verdade, este pequeno texto não se fica pelo resumo da apresentação que
fiz na Oficina: o meu projecto inicial fermentou com as ideias dos outros,
com o seu entusiasmo e inteligência, e seria tanto desonesto como
labiríntico tentar recuperar a forma inicial, dando passos para trás e
procurando essa miragem que sempre me parecem ser as “minhas” ideias.
Ouçamos uma das perguntas formuladas depois da minha
intervenção: Discurso, espaço semiótico, conhecimento partilhado... e
onde está a análise linguística propriamente dita? Esta pergunta mostra
que a investigação em análise crítica do discurso significa, para muitos,
estar a milhas da linguística. Isto prende-se sobretudo com o facto de ser
um trabalho fora do “mainstream” do estudo científico da linguagem, para
1
Investigadora do Grupo Discurso e Literacia do Instituto de Linguística Teórica e Computacional e
Doutoranda em Linguística Aplicada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
2
Gostava de agradecer o amável convite do Nuno Proença para participar na organização da Oficina,
bem como o apoio amigo da Professora Olga Pombo e do meu orientador, o Professor Carlos A. M.
Gouveia. Uma nota ainda de apreço aos meus amigos e colegas investigadores Roberto Carlos, Sílvia
Barbosa e Fausto Caels pela disponibilidade ao lerem e comentarem. atentamente este texto. Todos os
erros e omissões são da minha inteira responsabilidade.

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usar um conceito desenvolvido na comunicação de Vítor Neves,


apresentada nesta mesma Oficina. Não sendo agora o momento para refutar
essa distância, direi apenas que a análise crítica do discurso tem, para mim
e para as minhas principais referências de trabalho (cf. Fairclough 2003;
Martin & Rose 2002), como ferramenta fundamental de análise textual a
linguística sistémico-funcional de Michael A. K. Halliday (cf. Halliday
2004).
Por outras palavras, ao analisar o discurso criticamente recorro a
conceitos como, por exemplo, Escala de níveis, Complexo oracional,
Oração, Sistema de Transitividade, Processo Material, Actor ou Campo,
conceitos tão linguísticos quanto os tradicionais Frase, Nome, Verbo,
Oração subordinada, Oração interrogativa ou Voz passiva (tudo palavras
escritas com maiúscula por uma questão de convenção). Os dois grupos de
termos, escolhidos um pouco ao acaso, parecerão, porventura, contrastar
em linguisticidade. Na verdade, o conjunto de termos tradicionais parece
evocar conceitos naturalmente linguísticos e os termos do primeiro
conjunto não. A razão desta diferença é que os conceitos da linguística
sistémico-funcional, evocados no primeiro conjunto de termos, têm, para
além da dimensão estrutural tradicionalmente associada à descrição de
língua, uma dimensão funcional e uma dimensão sistémica. A dimensão
funcional reflecte uma abordagem que tem presentes a função da língua e
do seu uso, o contexto de situação e de cultura, e a dimensão sistémica,
inter-relacionada com a anterior, reflecte uma concepção da língua como
rede de sistemas de opções que produzem significados necessariamente
distintos.
Quero com isto mostrar que, sim, fazer análise crítica do discurso
envolve fazer análise linguística propriamente dita e, mais ainda, que existe
uma ferramenta teórica adequada para concretizá-lo. Numa Oficina em que
se propõe a oferta de várias reflexões sobre a filosofia de diferentes

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ciências sociais e humanas, afigura-se pertinente falar aprofundadamente


sobre este enquadramento teórico e metodológico. Com efeito, a linguística
sistémico-funcional, ou melhor a análise crítica do discurso com
fundamento linguístico, é um tipo de trabalho pouco representativo no
nosso país, quer em termos de equipas e instituições de investigação, quer
em termos de produção científica propriamente dita. De facto, eu, enquanto
bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia
(doravante FCT), entidade governamental de financiamento e apoio ao
trabalho científico, sou uma das afortunadas excepções no panorama de
investigação em ciências da linguagem, onde predominam os estudos de
fundamento formalista e mentalista e, como se terá visto com a
comunicação de Carlos A. M. Gouveia, apresentada nesta mesma Oficina,
é muito difícil obter financiamento para projectos de fundamento
funcionalista e social.
Em termos gerais, pode dizer-se que a análise crítica do discurso é
um projecto social constituído e reconhecido como ciência (cf. Resende &
Ramalho 2006; Luke 2002) que, na formulação de Fairclough (cf.
Fairclough 2003), se concretiza através de um trabalho assumidamente
dialógico, processual, reflexivo, transdisciplinar, socialmente
comprometido e emancipatório. São pressupostos teóricos essenciais desta
disciplina (i) a concepção da linguagem como uma prática social e (ii) a
existência de uma relação dialéctica entre o uso da linguagem e os
processos e estruturas sociais em que ela é usada. O objecto de estudo é o
discurso, entendido, numa acepção desenvolvida a partir do pensamento de
Foucault, como construção social pela qual se representa, se significa e se
constrói a realidade (cf. Fairclough 2003; Wodak 2001). E o objectivo final
desta análise é compreender a natureza dos conhecimentos socialmente
partilhados.

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Assim, e para ser mais concreta, o analista crítico do discurso


interessa-se por instanciações discursivas, que podem ser textos escritos,
orais ou até multimodais, encarando-as como representações, significações
e construções sociais. Os sujeitos são concebidos não como entidades
sociais e linguísticas relativamente autónomas, mas enquanto entidades em
representação, significação e construção nos e pelos próprios processos
discursivos e respectivas práticas sociais, daí decorrendo o interesse em
esclarecer e desconstruir estes mesmos processos e práticas.
Para a componente linguística do seu trabalho o analista crítico do discurso
pode recorrer, como eu faço, à linguística sistémico-funcional. A relevância
desta teoria linguística reside no facto de combinar três perspectivas
analíticas complementares, a representacional, a interpessoal e a textual, e,
deste modo, permitir, manter a consciência do poder modelador semiótico e
social da linguagem. Dito isto, apresento-me aqui como uma linguista que,
seguindo a sugestão de Fairclough (2003), trabalha de forma
transdisciplinar, utilizando conceitos teóricos e metodologias de diferentes
disciplinas científicas: a teoria social, a linguística e, como veremos mais
adiante, a filosofia da ciência.

Os textos analisados

Aproveito agora uma outra pergunta formulada na Oficina para


falar sobre os textos escolhidos para a presente análise. Co-orientação de
dissertações, contactos já estabelecidos, preocupação predominante da
investigação... para quê analisar clichês há tantas décadas perpetuados
pelas instituições académicas? Em primeiro lugar, a análise de textos que
foram produzidos no âmbito institucional faz parte das pesquisas
preliminares à minha dissertação de doutoramento. Tenho como objectivo
estudar criticamente a representação no discurso da ciência, em particular,

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como é que os cientistas se representam a si próprios e aos outros. Neste


âmbito, estou a procurar formar uma perspectiva sócio-cultural mais
compreensiva da prática da ciência em Portugal para melhor determinar o
escopo do que entendo por discurso da ciência e para delimitar as áreas
mais interessantes. Até agora parece-me evidente que textos como
regulamentos, formulários em linha, currículos ou sítios em linha de
centros de investigação são instanciações discursivas de práticas sociais
fundamentais para esta pesquisa. Por outro lado, qualquer texto, com
clichês ou sem eles, é fruto de escolhas (não só lexicais, mas também
estruturais) e, como tal, tem significado.
Na sequência de um lento périplo pelos imensos textos
disponíveis no sítio em linha da FCT, um dos elementos mais importantes
do actual sistema científico português, acabei por focar a minha atenção no
sistema de financiamento plurianual garantido pela FCT e nas unidades de
investigação e desenvolvimento sujeitas a esse mesmo financiamento.
Rapidamente decidi ficar pela área das ciências da linguagem, em que se
encontra enquadrada a minha instituição de acolhimento. Primeiro, detive-
me nos relatórios de avaliação elaborados pelo painel de avaliação em
2003, procurando outros documentos que estivessem de alguma forma
relacionados com essas oito unidades da área de ciências da linguagem.
Todas as unidades em questão, melhor conhecidas (e doravante aqui
referidas) como centros de investigação, têm o seu sítio em linha e
interessei-me também pelos textos apresentados nesses sítios.
A presente reflexão constitui, pois, apenas uma das jornadas do
dito périplo. Nesta reuni os textos de apresentação dos centros de
investigação de ciências da linguagem disponibilizados nos seus sítios em
linha e os oito relatórios do painel de avaliação da FCT elaborados sobre
essas mesmas oito unidades em 2003. Obviamente que são tipos de textos
bastante diferentes e isto, de resto, levou a que fossem considerados

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separadamente noutros contextos de análise. Aqui, porém, são considerados


como um todo, como instâncias discursivas de instituições, ou melhor, de
práticas discursivas de natureza institucional.

A análise linguística crítica e a reflexão filosófica

Se, como vimos, a reunião dos textos teve uma motivação


essencialmente sócio-cultural e, para a sua análise discursiva crítica,
disponho de uma ferramenta de análise linguística de fundamento
igualmente social, acrescentei a todo este processo de pesquisa uma outra
perspectiva, a perspectiva da filosofia da ciência. Pareceu-me que, neste
cenário de inexistência de estudos críticos sobre o discurso da ciência em
Portugal, a minha pesquisa só poderia beneficiar com a construção de uma
perspectiva filosófica sobre a ciência. Assim, a par da perspectiva
sociológica sobre a ciência portuguesa, em particular uma reflexão sobre a
representação dos cientistas no sistema científico português e suas
instituições, senti necessidade de conceitos e problematizações
epistemológicas, de questionar o que é uma disciplina científica, um
paradigma, o conhecimento científico ou a descoberta. Com isto se
confirma que o trabalho de análise crítica do discurso é de facto um
trabalho transdisciplinar, em que o objecto de estudo e a motivação da
análise ditam as áreas disciplinares a percorrer.
Para a presente oficina proponho, pois, uma análise crítica do
discurso sobre a representação dos cientistas. Cruzando a análise linguística
e a reflexão filosófica, vou formular interrogações de ordem filosófica, bem
como interrogações de natureza social e procurar possibilidades de resposta
na interpretação da análise linguística. E, neste processo de pergunta-
resposta aos textos, estou a assumir como premissa uma equação
fundamental em análise crítica do discurso: a representação construída nos

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textos seleccionados constitui uma prática partilhada pela comunidade onde


são produzidos. Não me interessa, pois, comparar a representação de cada
um dos textos, mas esclarecer a representação partilhada pela comunidade
em que estes foram produzidos: a representação dos cientistas no âmbito
das práticas institucionais portuguesas.

As perguntas

Vista a natureza da presente Oficina, formulei um conjunto de


interrogações epistemológicas que têm que ver com a representação da
actividade dos cientistas: O que é que os cientistas da linguagem fazem?
Qual é o seu método de trabalho? Como concebem e definem o seu objecto
de estudo? Formulam hipóteses? Descobrem coisas novas? Fazem
demonstrações experimentais? Lidam com modelos teóricos concorrentes?
Se sim, como? O seu trabalho é (mais) processual ou resultativo?

A análise linguística

Considerando o objectivo e a dimensão do trabalho, o estudo da


representação, abordei os textos adoptando apenas uma das perspectivas
disponibilizadas pela linguística sistémico-funcional: a perspectiva
representacional. Esta perspectiva situa-se no âmbito da função ideacional
da linguagem e no modo como a linguagem permite criar representações
que envolvem eventos, entidades e circunstâncias. Recorro, assim, a
categorias do sistema de Transitividade, o mecanismo léxico-gramatical
que constrói a experiência como um mundo de Processos, Participantes e
Circunstâncias. Estas categorias semânticas servem como ferramentas para
analisar o significado construído nos textos, sendo implícito que o texto é
entendido como uma escolha de representação.

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O ponto de partida foi a segmentação dos textos em orações – já


que a oração é a unidade pertinente para a análise do sistema de
Transitividade – e a classificação dos constituintes dessas mesmas orações
segundo a sua função ideacional. Assim, para cada oração, identifiquei o
Processo gramaticalizado pela forma verbal, o(s) Participante(s)
gramaticalizado(s) pelo(s) grupo(s) nominal/ais e a(s) Circunstância(s)
gramaticalizadas pelo(s) grupo(s) adverbial/ais. Partindo destes elementos,
foi-me possível compreender alguns aspectos curiosos sobre a
representação. Desses seleccionei a distribuição dos tipos de Processos no
conjunto dos textos e as instâncias de um tipo específico de Participante, o
Actor.
Comecemos, pois, pelos tipos de Processos. A tipologia de
Processos seguida (cf. Halliday 2004) distingue três tipos básicos e três
secundários que podem ser concretizados com o uso dos seguintes verbos
prototípicos. Os Processos básicos são os Materiais (verbos como fazer,
mudar, acontecer), Relacionais (ser, simbolizar, possuir) e Mentais
(pensar, sentir, ver). Os Processos secundários são os Existenciais (existir,
haver), Verbais (falar, responder) e Comportamentais (respirar, rir). Os
Processos básicos correspondem às formas mais elementares de
experiência. Como se vê pelos exemplos, os Processos Materiais
representam tipicamente a experiência como uma transformação ou
mudança no mundo físico, na sua dimensão exterior, portanto. Os
Processos Relacionais representam relações entre entidades e entre
entidades e atributos, uma dimensão mais abstracta. Os Processos Mentais
representam a experiência interior, a dimensão da consciência. Quanto aos
processos secundários são literalmente categorias intermédias em termos
daquilo que representam. Os Processos Existenciais estão entre os
Materiais e os Relacionais. Os Processos Verbais entre os Relacionais e os
Mentais. Os Comportamentais entre os Mentais e os Materiais.

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Ao observar o tipo de Processos concretizados nos textos


reunidos, na sua predominância ou residualidade, cheguei a algumas
constatações. Primeiramente, constatei uma predominância de Processos
Relacionais (em 55% das orações), como o do seguinte exemplo: “O [nome
da unidade] é uma associação privada sem fins lucrativos cujos
associados são a [nome de instituição], a [nome de instituição] e a [nome
de instituição] (Unidade de I&D da FCT com o número [número]).” (texto
07a). Esta predominância é secundada por uma fatia significativa de
Processos Materiais (em 35% das orações), como o do seguinte exemplo:
“Além de desenvolver investigação em linguística fundamental, o [nome
da unidade] aposta na produção de aplicações linguísticas em diversas
áreas: descrição do léxico, análise do discurso e ensino da língua
portuguesa, particularmente numa perspectiva de língua não materna.”
(texto 07a).
Os Processos residualmente instanciados nos textos são, por
ordem de proporção: os Mentais (6%), os Existenciais (3%) e os Verbais
(1%). A outra escolha disponível no espaço semiótico, a dos Processos
Comportamentais, não se encontra instanciada nos textos, isto é, não foi
escolhida, passe a redundância.
Esta distribuição de Processos, mostra que nas práticas institucionais
se representa um mundo essencialmente dual, feito de ser e de fazer, e
exteriorizado, que só muito residualmente aponta para uma vivência
interiorizada (pensar, sentir, gostar, etc.). Sabendo, ainda, que os Processos
Relacionais representam relações de caracterização, classificação ou
identificação entre duas entidades autónomas, a sua predominância mostra
que no mundo institucional predomina precisamente esse tipo de relações,
de definição e classificação, e que as entidades desse mundo são tidas como
entes finitos e autónomos, definíveis e classificáveis. Este predomínio
mostra, por fim, que se trata de um mundo estabilizado e pouco dinâmico.

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Paralelamente, considerando que os Processos Materiais


representam os eventos como mudanças ou acontecimentos do mundo
físico ou material, a sua predominância relativa mostra que no mundo
institucional também se fazem coisas materiais e que existem agentes e
entidades sobre as quais esses agentes operam transformações.
Em parte esperáveis, estas primeiras constatações parecem não
dizer nada sobre a representação dos cientistas propriamente ditos. É
necessário focar as entidades envolvidas em cada um dos tipos de
Processos identificados. Partindo da natureza das perguntas acima
formuladas, sobre a representação da actividade dos cientistas, optei por
focar os Participantes envolvidos nos Processos Materiais e observar quais
os agentes que operam as mudanças, os Actores. Seria interessante
compará-los com as entidades que sofrem as mudanças, as Metas, porém,
por limitações óbvias, deixemos a comparação para outra altura e vejamos,
sim, quem é representado como Actor no mundo institucional das ciências
da linguagem.
Ao recensear os grupos nominais gramaticalizados como Actor,
constata-se que os Actores dos textos são maioritariamente as instituições
(50% dos Actores), o que contrasta claramente com a pequena fatia
instanciada pelos investigadores (14,5%).
Seria de esperar, dir-se-ia, o predomínio das instituições como
entidades em destaque nos textos, ou talvez não. Ao falarmos em Actores
estamos a olhar para um tipo específico: as entidades que fazem coisas
propriamente ditas, aqueles que operam transformações. Ora, se no mundo
institucional são sobretudo as instituições e não tanto os investigadores
quem “faz”, então estamos perante um mundo tendencialmente
impessoalizado e perante investigadores desprovidos de agência individual.
Por outro lado, a procura de resposta às perguntas formuladas é defraudada:

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não podemos saber o que é que os cientistas fazem, porque eles não
“fazem” ou, pelos menos, “fazem” muito pouco.
Entre os restantes Actores instanciados nos textos, temos um
conjunto significativo, mais representativo até que os investigadores, o das
entidades abstractas (16,1%), como no seguinte excerto: “A escolha de
outras línguas (dialectos)-objecto é orientada por diferentes factores...”
(texto 08a). Um carácter semelhantemente abstracto é representado por
uma outra fatia de grupos nominais, igualmente significativa, a dos nomes
eventivos (14,5%), como o do seguinte exemplo: “vários contactos
nacionais e internacionais já estabelecidos deverão dar lugar, no futuro
próximo, à assinatura de protocolos de cooperação com o [nome de
instituição]” (texto 01a). À natureza abstracta daquelas entidades
acrescenta-se um segundo nível de abstracção: os nomes eventivos
representam uma autonomização semiótica daquilo que seria a
representação de um evento, ou seja, em vez de um Processo estamos
perante o seu resultado tido como entidade autónoma. Em ambos os casos,
a impessoalidade deste mundo parece uma tendência flagrante.
Por fim, os restantes Actores são entidades não-humanas concretas
(1,6%), nomes predicadores (1,6%) e nominalizações (1,6%), todos
instanciações igualmente residuais, mas com significado relevante, uma
vez que vêm adicionar ainda mais impessoalidade ao mundo
discursivamente representado.

A investigação sobre a linguagem no contexto institucional é...

Como vimos, a análise linguística, na perspectiva ideacional,


evidencia que a investigação sobre a linguagem no contexto institucional
português é predominantemente um mundo impessoalizado, mundo de
relações de classificação e controlo entre entidades e que envolve pouca

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transformação material, sendo os agentes dessa transformação entidades


abstractas. Dificilmente se compreende o que fazem os cientistas enquanto
indivíduos e muito mais dificilmente o que são os cientistas. A
representação dos cientistas e da sua actividade não parece ter lugar nas
práticas institucionais, onde se lida antes com abstracções, seja na forma de
instituições, de nomes eventivos e outros nomes abstractos.
Alegar que isto será apenas constatar o óbvio parece-me
limitador, porque as práticas institucionais envolvem naturalmente tanto
instituições quanto os próprios cientistas. E o que a análise da
representação dos cientistas (ou, no caso, da sua ausência ou exclusão)
pode indiciar é que as práticas de manutenção do poder das instituições e
de assimilação dos indivíduos em grupos são consensuais na comunidade,
não parecendo haver quaisquer indícios de resistência ou contestação.
Se abordássemos, agora, os textos segundo as outras dimensões
analíticas, a interpessoal e a textual, chegaríamos provavelmente a outras
constatações que nos permitiriam formar uma perspectiva geral mais
apurada e completa dos textos e encontrar outras formas de responder às
perguntas epistemológicas inicialmente colocadas. Todavia, não querendo
dar por encerrada esta contribuição com mais desculpas (bastante reiteradas
já ao longo da redacção) sobre as suas limitações, gostaria, pois, de
sintetizar algumas notas de leitura que ajudariam a caminhar para essa
perspectiva geral.
Na sua dimensão institucional, tanto a prática da investigação
como os investigadores se tornam abstracções, entidades estáveis e
uniformes, com estatuto definido e delimitado. Não temos pessoas, temos
grupos de pessoas, e o que está a ser representado são as suas acções
enquanto tal: os textos constroem a actividade científica como
colaboração, cooperação, parceria e trabalho em rede, para usar
expressões frequentes nos textos.

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Por outro lado, procurando determinar aspectos mais específicos


dessa actividade de investigação, a sua forma de experimentação e
avaliação da pesquisa é a publicação e o critério valorizador máximo é o
impacto na comunidade científica. Este é, de facto, o aspecto mais
reforçado nos textos: trata-se de uma actividade essencialmente
comunitária e comunicativa.
Por fim, na representação da actividade de investigação podem
ser ainda encontradas evidências de uma mudança em curso, a saber: uma
tendência para a mercantilização do conhecimento e da produção de
conhecimento. Esta tendência torna-se evidente na construção do processo
de avaliação, em que o conhecimento científico é construído como um bem
de consumo e os cientistas como produtores profissionais de conhecimento
científico.

Referências

Fairclough, Norman, 2003. Analysing Discourse - Textual


analysis for social research. London: Routledge.
Halliday, Michael A. K., 2004. An Introduction to Functional
Grammar. London, New York: Hodder Arnold.
Luke, Allan, 2002. «Beyond science and ideology critique:
developments in critical discourse analysis». Annual Review of Applied
Linguistics 22: 96-110. Cambridge: Cambridge University Press.
Martin, J. R. & Rose, D., 2002. Working with Discourse:
Meaning beyond the clause. London: Continuum.
Resende, Viviane de Melo & Ramalho, Viviane, 2006. Análise
de discurso crítica. São Paulo: Editora Contexto.

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Wodak, Ruth & Meyer, Michael, 2001. Methods of Critical


Discourse Analysis. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage
Publications.

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As Ciências Humanas – o caso da Psicologia.


Isabel Oliveira da Silva Coentro3
isabel.coentro@iol.pt

Palavras Chave: Ciências da Natureza, Física, Ciência, Psicologia,


Homem

A Psicologia é uma das ciências humanas que aparece ainda no


século XVIII, mas que só se constitui como ciência apenas no século XIX e
mesmo assim com uma aproximação ao saber da Física e à constituição das
suas leis. Tal acontece, por exemplo com Freud no século XIX, que tinha
relacionado o conceito de “energia psíquica” presente na sua concepção de
Psiquismo com os conceitos de energia presentes no 2º Princípio da
Termodinâmica. Assim o aparelho psíquico terá tendência a manter a sua
quantidade de excitação o mais baixa possível e a um nível o mais
constante possível. Para Freud as forças presentes nas pulsões de Vida e de
Morte têm uma relação de organização e desorganização com semelhança
com as forças universais de atracção e repulsão. O primeiro princípio da
termodinâmica ou princípio da conservação da energia envia-nos, para a
existência duma quantidade de energia presente nas diferentes
transformações, químicas, mecânicas e térmicas. O segundo princípio a que
já aludi, afirma a existência de uma transformação qualitativa e irreversível
dessa mesma energia. Este princípio traduz-se pelo facto de a Entropia em
todos os sistemas fechados tender a aumentar ou a ficar constante mas
nunca a diminuir. O mesmo acontece no Psiquismo com as pulsões
presentes e na luta constante entre Eros e Thanatos que mantém em
constância o dinamismo psíquico.

3
Mestrado em História e Filosofia das Ciências, Universidade de Lisboa.

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No entanto a palavra Psicologia existia já desde o século XVI na


escolástica luterana na Alemanha, mas apenas designa uma aproximação à
perspectiva aristotélica da “Alma”.
Parece haver com esta introdução uma relação entre o mental e o
físico que serviu de base a algumas das teorias que estiveram no início da
constituição da Psicologia como ciência, mas antes do desenvolvimento
deste tema seguindo este caminho, deverá ser analisada uma outra
concepção contrária à anterior. Assim se tentarmos entender as ideias
principais de um autor americano falecido há poucos anos, discípulo de
Quine, chamado Donald Davidson e que em relação ao conhecimento é
adepto do Coerentismo,4 afirmando que o conhecimento se deve basear em
crenças justificadas e que estas o são pela coerência e consistência existente
entre as mesmas. “ Todas as crenças são justificadas neste sentido: são
suportadas por inúmeras, outras crenças (de outro modo não seriam as
crenças que são), e têm uma presunção a favor da sua verdade. A presunção
aumenta quanto mais significativo for o corpo de crenças com o qual a
crença é coerente, e uma vez que uma crença isolada é coisa que não existe,
não existe qualquer crença sem presunção alguma a seu favor.”5 Este autor
defende nos seus livros “Ensaio sobre a Verdade” e o “Anomalismo do
Mental” que “ (…) os factos mentais são físicos, mas isso não nos permite
aplicar as leis físicas ao mental”.
Donald Davidson é assim um defensor do fisicalismo e afirmava que
a causalidade e a relação a esta subjacente só se dão entre eventos físicos.
Ao contrário do seu mentor, Quine, Davidson afirma no entanto, que os
termos mentais não podem ser reduzidos a termos físicos. Isto significa
que, se aquilo que é descrito como acontecimento mental está envolvido
numa relação de causalidade, o acontecimento deve ser físico, embora a sua
4
Aplica-se enquanto teoria da justificação e afirma que todas as crenças são justificadas, por intermédio
das suas relações com as outras crenças. As crenças são justificadas pela forma como são coerentes
entre si e como se integram num determinado conjunto de outras crenças.
5
Donald Davidson – “Uma Teoria Coerencial da Verdade e do Conhecimento” – página 359.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

descrição mental não possa ser reduzida a uma descrição física. Esta
consideração conduziu-o à defesa de que as descrições mentais não podem
figurar nas leis científicas e que não há leis científicas (dos acontecimentos
descritos como mentais) que possam ser explicados e previstos. Para
Davidson o homem é constituído por um monismo anómalo, ao contrário
do que já foi referido anteriormente no caso de Descartes em que o homem
é visto como um ser dualista. O monismo implica a não divisão entre corpo
e alma como duas entidades separadas e que comunicam entre si ao
contrário do que é referido por Descartes que fala de dualismo
antropológico, mas o Homem tem na sua constituição uma parte física e
uma mental que funciona como um todo, mas as leis físicas aplicam-se
apenas à parte física ou seja ao corpo e nunca ao mental. Este monismo
anómalo, leva-o a afirmar que as descrições mentais não podem ser
explicadas em termos de lei, pois por exemplo posso explicar uma acção
humana como um “evento” que é intencional sob alguma descrição; a
contracção de certos músculos, o movimento de uma faca, o barrar de uma
fatia de pão – todos são o mesmo acontecimento, que pode ser descrito de
maneira diferente, mas é sempre a mesma acção e não existe mais nenhuma
causa mental para essa acção. Assim todas as descrições mentais podem ser
entendidas a partir das leis naturais científicas já existentes sem
necessidade de nenhuma outra explicação. O mental pode ter as suas
próprias leis mas estas serão sempre e só normativas e nunca permitirão a
previsão. Não há leis que expliquem por exemplo o “meu desejo de ler um
livro” com uma particular actividade cerebral. Contudo para Davidson o
mental não é reduzível ao físico, mas os acontecimentos mentais podem ser
relacionados com alguns acontecimentos físicos, isto é, qualquer descrição
mental de um acontecimento pode ser relacionado com uma descrição
física do mesmo acontecimento. O monismo anómalo explica-se pela
concepção do Homem como um todo, em que as leis físicas se aplicam ao

20
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

corpo e às acções e comportamentos do homem enquanto realização do


corpo, mas não considerando a existência de leis mentais que expliquem o
nosso comportamento.
Deixando Davidson e voltando para a Psicologia, podemos então
considerar esta actualmente como a ciência do comportamento e dos
objectos mentais e o seu objecto de estudo pode ser traduzido pela fórmula
(R=S⇄P).6 Como ciência os psicólogos pretendem que o conhecimento
psicológico esteja também ele baseado em princípios de explicação
científica.
É isso mesmo que podemos verificar quando falamos de Gustav
Theodor Fechner, físico de profissão, que em (1860) escreveu um livro que
se chamava “Elementos de Psicofísica” em que concebeu uma ciência que
pretendia abranger a física e a psicologia que designou de psicofísica e esta
não era mais do que a ciência das relações constantes entre os estímulos e
as sensações. Prova que existe uma relação quantificável entre a
intensidade da sensação e a do estímulo e o desenvolvimento desta relação
originou a lei de Weber-Fechner. São assim conhecidas as leis do campo
perceptivo que explicam a forma como se dá a percepção e a consequente
representação mental, bem como os fenómenos de ilusão perceptiva.
O mesmo se passou com Francis Galton7 que em 1884 construiu um
laboratório antropométrico, onde estudou as imagens mentais e as
associações de ideias com a preocupação da quantificação dos fenómenos
psíquicos.
Fisiólogos, médicos e anátomo-patologistas como por exemplo
Broca deram, por seu lado, importante contribuição para o estudo científico
dos fenómenos psíquicos, quando pela sua análise dos órgãos dos sentidos,
do funcionamento geral do sistema nervoso, das funções do Encéfalo,

6
A resposta é dada em função da interacção que se estabelece entre a Situação e Personalidade do
Indivíduo particular e que por isso mesmo vai reagir de forma diferenciada em determinada situação.
7
Antropólogo e Geógrafo Inglês.

21
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

assim como do desenvolvimento da linguagem e da patologia mental,


foram levados a abordar experimentalmente o estudo dos processos
mentais. A eles se devem as primeiras tentativas para estabelecer relações
entre os fenómenos físicos, fisiológicos e psicológicos. Não esquecer que
são as preocupações e a curiosidade de Broca que levam a que este guarde
o cérebro de Phineas Gage cujo acidente e consequentes alterações
comportamentais tanto o influenciaram, procurando na sua vida tentar com
os seus estudos explicar o que tinha sucedido e quais as razões que
eventualmente poderiam explicar as alterações comportamentais
verificadas. Não conseguindo encontrar uma solução preservou o cérebro,
para que ainda hoje este possa ser analisado, permitindo assim os estudos
de António e Hanna Damásio. Estes com os meios tecnológicos disponíveis
actualmente, conseguiram criar um programa de computador que de forma
exacta estabeleceu o percurso da barra de ferro pela caixa craniana de
Phineas Gage, explicando as alterações no comportamento que tinham sido
detectadas e possibilitando a descoberta de um centro das emoções no
córtex pré-frontal, responsável também ele pelas capacidades superiores do
Homem, nomeadamente as que dizem respeito ao pensamento.
É com Wundt8 que em 1873 escreveu o livro “Elementos de
Psicologia Fisiológica”, que a Psicologia como ciência tem a sua criação. É
Wundt que afirma que “(…) Há uma só experiência que contém
sentimentos, volições, ideias, juízos, representações, etc. Todo este
conjunto estudado no seu carácter imediato (como via mental de um
sujeito) é a Psicologia.” Se consideramos então a parte da representação
não no seu carácter imediato como representação, mas no seu aspecto
imediato de objecto independente de nós, cuja existência nós inferimos da
representação, temos o estudo das ciências da Natureza. Concluí-se então

8
Psicólogo e Filósofo Alemão, doutorou-se em Medicina. Não satisfeito com a lei psicofísica de
Weber, reconhece que é preciso ir mais fundo, já que os fenómenos fisiológicos e psicológicos
aparecem como dois pontos de vista duma idêntica experiência.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

que para Wundt as expressões “experiência externa” e “experiência


interna” não designam diferentes objectos, mas diferentes pontos de vista,
porque pode ser realizada a análise científica de uma expressão unitária. É
também isso que nos diz Magalhães Vilhena9 em 1977 no seu livro
“Pequeno Manual de Filosofia”, “ (…) A Psicologia define-se como a
ciência da vida mental; é o estudo concreto dos fenómenos psíquicos e suas
leis – fenómenos tão reais e observáveis e susceptíveis de investigação
científica como os que pertencem ao mundo externo.” O mesmo autor
refere que:
“(…) Negar à psicologia a possibilidade de formular leis e de
reivindicar até certo ponto, a legitimidade da medida numérica, é
afirmar a impossibilidade de reduzir a realidade psíquica à precisão
científica. Tal negação, segundo a maioria dos psicólogos
contemporâneos, não é hoje já aceite. A psicotécnica, por exemplo
demonstrou já o valor científico e prático das medidas numéricas, ao
estudar nomeadamente as funções gerais da atenção, da memória, da
inteligência e das suas variedades.”

Como é também referido por Gilles Gaston Granger,10 em (1975) no


seu livro “Pensamento Formal e Ciências do Homem”:
“A dificuldade radical das ciências do Homem resulta justamente
desta necessidade que o cientista encontra em se referir a factos
dotados de sentido, mas de a eles chegar através de uma elaboração de
dados que são já significações ao nível da apreensão imediata. A dupla
tentação que o espreita é então a de se cingir simplesmente aos
acontecimentos vividos, ou então a de, num esforço mal adaptado para
atingir a positividade das ciências naturais, liquidar toda a
significação, para reduzir o facto humano ao modelo dos fenómenos
físicos. O problema constitutivo das ciências do homem pode,

9
Filósofo.
10
Tradução de Miguel Serras Pereira, editorial Presença, em 1975.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

portanto, ser descrito como transmutação das significações vividas


num universo de significações objectivas.”

É aquilo que está presente na constituição da Psicologia como


ciência e a forma como foi abordada esta constituição, que hoje é referido
pelas ciências humanas como sendo a necessidade de mudança dos
modelos que se devem aplicar a estas. Estes parecem cada vez mais serem
os modelos cibernéticos já que a troca da informação é o mais importante
quando falamos de ciências humanas inclusive da psicologia e não os
modelos energéticos que as ciências da Natureza aplicam. Karl Popper no
seu livro de (1996), “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente” diz
que:
“(…) Ao nível humano, aquilo que designei por mundo 2 – o mundo
da mente – transforma-se cada vez mais no elo de ligação entre o
primeiro e o terceiro mundos. Todos os actos executados no mundo 1
sofrem a influência da maneira como o mundo 2 compreende o mundo
3. Por isso, é impossível compreender a mente e o eu humano sem
entender o mundo 3, e também não se pode interpretar este mundo 3
como mera expressão do segundo, ou este último como um simples
reflexo do terceiro”.

O que afirma Karl Popper é aquilo que poderemos pensar que nos
leva a procurar compreender o mundo 2, “o mundo da mente”, para
entendermos o mundo 3 e o mundo 1. É esse o papel da Psicologia. Popper
diferencia a realidade e a relação que se estabelece entre o Homem e essa
realidade em 3 Mundos. O Mundo 1 é o mundo dos fenómenos existentes,
naquilo que podemos considerar a realidade física. Por outro lado o Mundo
2 é o Mundo da mente, que permite a ligação entre o mundo 1 e o mundo 3.
Este último é constituído pelas produções humanas que constituem o tal
mundo autónomo separado das realidades físicas. É neste que estão as

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

teorias que o Homem entretanto criou sobre a realidade presente no mundo


1. Mas tal como diz Popper, “as teorias são como os filhos” e por isso
mesmo, autonomizam-se relativamente ao seu autor e conseguem
sobreviver sem este.
Já foi anteriormente considerado a forma como na história na
Psicologia nos podemos entender quanto ao facto da sua criação enquanto
ciência. Já também foi referido o facto de Fechner ter criado a psicofísica e
o facto de Wundt ter criado o primeiro designado laboratório de Psicologia
em Leipzig. Já foi mencionado anteriormente a relação que Freud tentou
estabelecer com o segundo princípio da Termodinâmica na sua concepção
de “energia psíquica” presente no seu dinamismo psíquico e a que obedecia
a noção de Psiquismo. É no entanto com Watson11 em 1913 que partindo
das descobertas feitas por Ivan Pavlov12 em 1903, sobre o reflexo
condicionado, que a Psicologia pode ser considerada uma ciência. Assim a
Psicologia passa com a corrente Behaviorista a considerar que o seu
objecto de estudo é o comportamento, já que este é observável e por isso
mesmo pode ser explicado e relacionado de forma matematizável
permitindo a previsão – ideia mais importante no campo da ciência. Com
os estudos de Watson existe a ideia de que o comportamento humano
explicitado na base de uma relação Causa-Efeito pode ser moldado desde
que as alterações se verifiquem ao nível da situação que provoca
determinado comportamento. Sabemos que tal forma de explicar o
comportamento humano é extremamente redutora e por isso mesmo
correntes posteriores como a de Freud ou a de Piaget13 entram com um
11
Psicólogo norte-americano, criador do Behaviorismo. Valoriza o comportamento – “Behaviour”,
como sendo o objecto da Psicologia.
12
Médico e professor de farmacologia, estudou os reflexos condicionados, a partir de experiências
realizadas com cães. Através delas demonstrou que qualquer estímulo próprio se pode associar a outro
não adequado e gerar idênticos reflexos, desde que se repita suficiente número de vezes, juntamente
com os seus evocadores característicos.
13
Biólogo, psicólogo e epistemólogo, nasceu na Suíça. A contribuição para a psicologia contemporânea
é decisiva. Piaget mostra de que modo o universo mental do indivíduo se constrói dialecticamente,
num equilíbrio estrutural sempre posto em causa: a inteligência modela e assimila o mundo que, por
seu lado, através da resistência que opõe, desencadeia um processo de acomodação, preparando desse

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

novo factor que influencia as nossas acções, o Eu individual e a sua história


pessoal. Mas tal só é possível na actualidade com o desenvolvimento das
ciências cognitivas e das neurociências. Hoje entende-se cada vez mais a
noção de Homem e dos seus processos mentais à luz de um cada vez maior
entendimento do funcionamento do cérebro humano e da sua relação com
todo o nosso sistema nervoso. As noções que temos hoje, ligada a estas
concepções são a de “plasticidade” e “auto-organização” mental. Como é
afirmado por Jean-Pierre Changeux 14(2002) no seu livro “A Verdade e o
Cérebro - O Homem da Verdade”:
“(…) Para além da abertura do sistema nervoso, o cérebro caracteriza-
se pelo que chamei a sua motivação.” Ele não funciona como uma
máquina que trata passivamente informações vindas do exterior. Actua
igualmente no sentido inverso, como um produtor de representações
que projecta para o mundo exterior. A actividade espontânea de
conjuntos especializados de neurónios leva o organismo a
continuamente explorar e testar o meio ambiente físico, social e
cultural a apoderar-se de respostas e a confrontá-las com o que ele
possui em memória. Em consequência o cérebro desenvolve
capacidades de “auto-activação” e com isso de auto-organização. É
neste sentido que aplico o termo “motivação” a uma rede de
neurónios. Sistema aberto e motivado, o cérebro funciona em
permanência no modo de exploração organizada.”

Segundo o mesmo autor, a sua preocupação é a partir desta noção de


“Homem neuronal” e do seu funcionamento cerebral saber como é possível
estabelecer uma relação com a noção de “verdade”. Considera que o
desenvolvimento das neurociências vai permitir identificar as
“arquitecturas neuronais” que permitem a consciência da aquisição de
conhecimentos e de que forma estas podem contribuir para que o Homem
modo, um novo trabalho de assimilação e assim sucessivamente.
14
Professor do Collége de France e do Instituto Pasteur, membro da Academia das Ciências de França.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

faça sobre as mesmas um exame à sua veracidade. Considera que se o


espaço consciente é capaz de “produzir, de seleccionar e de reter
representações e conhecimentos”, pode também em princípio “efectuar
operações sobre estes objectos mentais, avaliá-las e ligá-los numa melodia
constantemente posta à prova por comparações entre os mundos interior e
exterior e pela realidade dos eventos, presentes, passados e futuros com
uma referência constante ao eu neuronal.”
A “consciência” integra as informações e os conhecimentos no
quotidiano e as memórias sociais e culturais próprias do indivíduo com
comportamentos fundamentais da espécie enquadrados pelo seu
“envolvimento genético”. A consciência permite então ao Homem em cada
momento uma avaliação de cada comportamento tendo em vista a verdade
e a sobrevivência da espécie. Diz o mesmo autor que:

“(…) O facto de o organismo conseguir internamente pôr à prova a


realidade dos conhecimentos actualmente “em linha” com
conhecimentos conservados na memória ou até mesmo entre objectos
de memória torna possíveis simulações tácitas de comportamentos e
de tomadas de decisão sobre acções a ocorrer em termos psicológicos
particularmente breves.”

A consciência permite ao Homem uma considerável economia no


número de comportamentos a realizar (muitos deles perigosos) e conduz a
uma aquisição que fica presente na herança genética da espécie de vários
tipos de conhecimentos e a sua consequente validação. A verificação da
validade dos conhecimentos recorre a símbolos presentes na comunicação
entre os indivíduos, daí que os modelos que devem ser aplicados ao estudo
das Ciências do Homem, serem os modelos cibernéticos e não os
energéticos como já referi anteriormente. O mesmo autor refere ainda,
fazendo uma analogia entre as concepções que se tem de teoria e usando a

27
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

frase de Kant – “Conceitos sem intuições são vazios, intuições sem


conceitos são cegas” – que os nossos sentidos são aquilo que permite ao
homem a sua mediação com o mundo, mas que nada poderíamos conhecer
sem quadros mentais já existentes, ou seja sem representações (conceitos)
que servem para ordenar e organizar as características dos objectos que
captamos do meio. Poderemos assim afirmar que se partirmos dos
conceitos é a teoria que antecipa a observação e que a orienta, mas se
partirmos das intuições, a teoria só pode ser deduzida das observações
empíricas. A analogia quanto a estes modos de apreensão do mundo
exterior é feita com os “processos ascendentes e descendentes que se
desenvolvem no cérebro”, quando o ser humano entra em contacto com o
mundo e o tenta primeiro captar num processo de assimilação e
acomodação às estruturas já existentes como é referido por Piaget. Diz
Jean-Pierre Changeux que vamos assim “(…) dos órgãos sensoriais aos
processadores, depois ao espaço de trabalho consciente e no processo
contrário do espaço de trabalho consciente aos processadores.” No primeiro
caso a prioridade é dada aos sentidos, no segundo a teoria domina o
processo. Em ambos os casos existem problemas que devem ser
perspectivados, o problema das “ilusões sensoriais” e o problema do
“imaginário incontrolado e dogmático.”
Jean-Pierre Changeux considera que a ciência é o caminho para
aquilo que pode ou não ser considerado verdadeiro e que se situa “no
equilíbrio instável” entre estas duas perspectivas. Diz-nos ainda que esta
procura de verdade e esta exigência de validade não tem equivalente em
nenhuma outra actividade humana a não ser na ciência, mas está na base da
adaptação do Homem ao Meio enquanto espécie e por isso a evolução da
espécie e a sua epigénese demonstra ao mesmo tempo esta procura de
validade e veracidade mesmo em muitos dos aspectos de desenvolvimento
biológico e refere que:

28
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

“(…) Resta afirmar que a convergência de diferentes abordagens


teóricas e experimentais visando um objectivo comum, bem como a
capacidade para modificar ou abandonar uma representação e
substituí-la por outra mostram que não somos prisioneiros das nossas
estruturas cognitivas. Bem pelo contrário: nos debates que se
desenvolvem na agora planetária, as teorias e os factos são postos à
prova sem misericórdia. Uma vez validadas, cedo ou tarde estas
representações escapam ao seu inventor, tornam-se independentes,
ganham uma espécie de autonomia.”

Jean-Pierre Changeux ao fazer esta afirmação pode-se relacionar


com Karl Popper no seu livro “O Conhecimento e o Problema Corpo-
Mente”, já referido anteriormente. Ao tentar provar a existência de um
mundo 3 constituído pelas produções humanas e independente do mundo 2
– o mundo da mente -, mas directamente relacionado com o mundo 1 e 2,
em que o mundo 2 é o intermediário entre ambos. Mundo, este que em
Jean-Pierre Changeux está escrito na “epigénese” da espécie humana e
permite fornecer ao Homem a evolução que tem tido. Diz Popper, no seu
livro, “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente”, 1996, página 164,
“(…) Com as teorias sucede o mesmo que com os filhos também elas
tendem a tornar-se independentes dos seus autores. E tal como pode
suceder com os filhos também assim acontecerá com as teorias:
receberemos delas uma dose de conhecimento maior do que o que
investimos nelas originariamente.” Mas podemos fazer um paralelo com a
afirmação anterior com a afirmação de Changuex no livro que já foi
referido e que diz:
“ (…) O melhor modelo científico não dará jamais uma descrição
exaustiva da realidade. A física interna das nossas representações
mentais apresenta sob uma forma reduzida e simplificada, apenas uma
selecção de características da física externa. Como já os Gregos

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sugeriram mesmo múltiplas concepções da verdade científica. Assim


o combate pelo conhecimento objectivo oferece-nos visões do mundo
coerentes, sólidas e de grande alcance, que geram antecipações e
previsões eficazes. Depois de se decifrar o genoma humano, a
pesquisa científica permite-nos hoje esperar compreender melhor o
cérebro e as suas funções tanto ao nível do indivíduo como ao da
sociedade. Tudo o que pertence ao domínio do espiritual, do
transcendente e do imaterial está em vias de se materializar, de se
naturalizar e digamo-lo, simplesmente de se humanizar.”

É este processo de conhecimento das neurociências que nos leva até


ao autor português, António Damásio que nos seus livros relaciona os
estudos actuais do cérebro humano e as descobertas que existem com
algumas das teorias anteriores. Não é difícil provar que Descartes estava
errado quando nos fala das “Paixões da Alma” se soubermos como
funciona o sistema nervoso e qual o papel desempenhado pelo Encéfalo no
mesmo. Para compreender como o nosso cérebro reage e o papel da
emoção na decisão, uma equipa de investigadores chefiada por António
Damásio, submeteu algumas pessoas com lesões cerebrais particulares a
dilemas. Damásio defende que, os pacientes cujo córtex ventromediano –
zona do cérebro situada em cima dos olhos – se encontra lesionado têm
geralmente menores reacções emocionais de dimensão social – como a
compaixão, a vergonha, a culpabilidade, etc. - (esta zona faz parte dos
circuitos “emocionais” do cerébro), sem que a sua inteligência e a sua
lógica sejam afectadas. Juntamente com Ralph Adolphs e outros
especialistas em neurociências, colocou 30 pessoas, seis das quais tinham
esta lesão cerebral, perante escolhas morais difíceis, implicando sacrificar
uma pessoa para salvar outras. Foi usado como cenário proposto, por
exemplo a seguinte situação descrita: “No teu laboratório foram preparadas
duas substâncias – um líquido tóxico e uma vacina contra um perigoso
30
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vírus mortal que se propaga. A única forma de identificar a vacina é testar


estas substâncias em dois pacientes. Estarias pronto a matar um deles para
salvar muitas outras vidas? “. Confrontados com este tipo de dilemas, os
pacientes com o córtex frontal ventroniano lesado responderam muito mais
frequentemente que “sim”, sem hesitações, do que os outros voluntários –
doze com outros tipos de lesões e doze sem lesões neurológicas. Damásio
explica que em tais circunstâncias, a maioria das pessoas sem lesões
cerebrais específicas ver-se-ia confrontada com um conflito interior.
Normalmente, um sentimento de aversão, mistura a recusa do acto com
emoções de dimensão social e compaixão pela pessoa envolvida,
impedindo um Homem de fazer mal a outro. Mas estes pacientes
particulares parecem não experimentar esse conflito. Ficam tristes se
perdem, contentes se ganham, mas estes pacientes não modelam o seu
contentamento nem tristeza em função do que poderiam ter ganho. Face a
outras escolhas mais simples, como por exemplo guardar ou não um porta-
moedas encontrado na rua, poucas diferenças de reacções foram observadas
entre os grupos de participantes nesta experiência. Alguns cientistas
consideram que este trabalho prova directamente o papel das emoções nos
julgamentos morais. Damásio afirma mesmo que a razão humana precisa
de emoções para funcionar: não há escolha racional acertada na vida real
sem participação das emoções, da intuição, das nossas vísceras. As
emoções desempenham, portanto, um papel essencial no nosso
desempenho moral; sem elas, o nosso juízo moral não funcionaria. Assim,
defende-se que o córtex pré-frontal ventromediano tem um papel essencial
na expressão do remorso, mostrando que os pacientes que têm esta
estrutura lesada não o exprimem face às consequências das suas escolhas.
"É a região que modula as emoções em função do contexto".
Segundo António Damásio, a concepção de que a mente (entendida
como um conjunto de processos cerebrais) é algo separado e independente

31
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

do corpo tem levado alguns pesquisadores a suporem que serão capazes de


compreender o que somos biologicamente através de uma simulação de
processos biológicos com computadores que só possuem “mente”. Nesta
abordagem não há espaço à ideia de um corpo modificável em certas
circunstâncias que chamamos emoções e à apreciação do estado deste
corpo e da mente durante as emoções (sentimentos). Segundo Damásio, é
justamente este o Erro de Descartes: separar os processos cognitivos dos
afectivos, como se pudesse existir uma mente separada do corpo e
considerar a existência de uma racionalidade pura no Homem, não podendo
esta ser articulada sem a emoção. Pode-se dizer que os resultados que
foram obtidos mostram que os seres humanos não são biologicamente aptos
a terem raciocínios puramente utilitários. Este facto está ligado à produção
de emoções sociais. “Penso que esta forma mista de juízo moral, que alia a
razão à emoção, é a manifestação de uma sabedoria lentamente acumulada
ao longo da evolução (tanto biológica como cultural)”. Os juízos mais
simples não exigem estas combinações, sendo possível lidar com eles ou
somente com a razão ou somente com as reacções emocionais.
As emoções tiveram origem na história evolutiva do Homem,
trazendo vantagens de sobrevivência, na medida em que diante de
determinada situação, accionavam respostas de rápido processamento, de
maneira automática. Dependem dos mecanismos cerebrais que foram sendo
construídos ao longo da história do Homem, sendo processos determinados
biologicamente e de modo inato, podendo a cultura e a aprendizagem lhes
conferir apenas novos significados. Não conseguimos impedir as emoções
de acontecerem; no máximo, o que podemos fazer é adquirir a capacidade
de disfarçar as suas manifestações exteriores.
Tentar explicar de forma neurológica a “consciência de si” ou as
“emoções humanas” com o postular de noções como as de uma existência
de “marcadores somáticos” é o que pode demonstrar a beleza de uma

32
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

espécie racional preocupada em explicar o que a rodeia, a si própria e ao


próprio racional, como se continuadamente nos questionássemos sobre os
mistérios da criação continuamente escondidos sobre os véus de Maya,
cada vez mais desvelados por esse conhecimento a que o próprio Homem
chama de Ciência, não as Ciências da Natureza ou as Ciências Humanas,
mas esse processo de conhecimento continuado do Mundo e de si mesmo.
As ciências exactas, tentam a determinada altura do desenvolvimento
do conhecimento e numa ânsia de objectividade, só considerar como
ciência as ciências naturais, onde essa objectividade para os adeptos desta
posição era possível de ser alcançada e assim era eliminada a complexidade
do Humano inerente às ciências Humanas. Estas no entanto foram
encontrando modelos diferentes de funcionamento enquanto ciências e a
complexidade do Humano, não deixou de ser estudada e entendida. É o que
fazem os cientistas que no caso da Psicologia tentam construir uma ciência
objectiva, apesar de alguns dos seus objectos serem eles próprios
subjectivos, como é o caso do estudo das emoções.
A preocupação central da filosofia da mente é o entendimento
humano da mente e o seu lugar no mundo físico. Os dois principais tipos de
abordagem como vimos anteriormente são o dualismo que afirma que a
mente e o corpo são tipos diferentes de coisas, com propriedades diferentes
e o monismo que afirma a existência de um único tipo de coisa e de
propriedade.
Para Platão, a mente era a nossa parte imortal; em contraste com a
matéria, tinha afinidades com o eterno e o imutável e transportava as
verdades eternas. Aristóteles tentou uma explicação naturalista da psyche
ou da alma, em termos das suas diferentes faculdades, considerando que o
distinguia o homem do resto do reino animal era o nous, ou intelecto.
Também Descartes, como já foi referido considera o dualismo na separação
entre res cogitans e res extensa.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Por outro lado a tese de Espinoza acerca da mente é considerada


como uma tese monista, já que a mente e o corpo não eram substâncias
individuais. Donal Davidson refere-se, na continuação desta perspectiva da
existência de um monismo anómalo como foi explicitado.
Estabelecidas contra as teses dualistas, aparecem teses da mente
materialistas/fisicalistas. Na viragem do século XX encontramos a tese do
Behaviourismo, que afirmava que ter uma mente não é nada mais do que
ter a disposição para se comportar de determinada maneira. Este foi
ultrapassado pelo fisicalismo, com a tese de que os fenómenos conscientes
ou mentais são fenómenos físicos de algum sistema biológico ou físico
como o cérebro.
O fisicalismo é a doutrina que predomina hoje, mas que surge de
variadas formas: o fisicalismo não redutivo, por exemplo, afirma que
embora exista apenas um tipo de coisa, ou seja o cérebro, os termos que
usamos para o descrever não se reduzem um ao outro. Então por exemplo,
o termo dor e a expressão processo cerebral, referem-se à mesma coisa e
sendo assim as descrições físicas e mentais são governadas por normas
diferentes. A mente pode ser individualizada e por isso mesmo ser
separada, pelo papel funcional que desempenha na rede de inputs e outputs
e a sua realização múltipla, seja no sistema biológico ou num sistema
complexo de chips de silicone.
A Psicologia com a ajuda das neurociências e da cibernética tenta
explicar a complexidade inerente a um sujeito, ele próprio objecto de um
determinado conhecimento, mas por vezes numa perspectiva redutora do
próprio Humano. Se tentarmos explicar as emoções por exemplo
recorrendo apenas a uma explicação neurobiológica do facto, parece-nos
reduzir o Homem a algo indiferenciado e robótico, o que parece não se
coadunar com os individualismos e criatividade que nos é permitido

34
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

observar na espécie Humana. Criatividade que podemos afirmar, está na


base da produção da Ciência.
Não é então de estranhar o facto de ser hoje entendido por todos no
domínio do conhecimento que existe uma complexidade e que esta não
pode ser esquecida nem reduzida. Hoje esta mensagem começou a ser
entendida no domínio da Física e são os cientistas físicos que a partir da
concepção de Leis e Teorias para a mecânica quântica reclamam para si
esta mesma complexidade. Parece então que por vezes os próprios
fenómenos físicos que se pretendiam objectivos, reclamam parte da
complexidade existente e agora não apenas no Ser Humano.

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Grandes Étapes” (Ellipses/edition marketing S.A. – Paris)
- Platão, “Six Great Dialogues – Apology, Crito, Phaedo, Phaedrus,
Symposium, and the Republic” – translated by Benjamin Jowett – Dover
publications, inc -2007
- Platão, Théététe, - traduction, notices e notes par Émile Chambry –
Garnier Flammarion - 1967
- Pasternak, Guitta Pessis (1991) “Será Preciso Queimar Descartes? Do
caos à inteligência artificial: quando os cientistas se interrogam” –
tradução de Manuel Alberto (Relógio D’Água – 1993)
- Popper, Karl R., (1963) “ Conjectures and Refutations – The Growth of
Scientific Knowledge” – Routledge Classics, London and New York

36
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

- Popper, Karl R. (1996) “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente”-


tradução de Joaquim Alberto Ferreira Gomes (Edições 70)
- Vilhena, V. de Magalhães (1977) “Pequeno Manual de Filosofia”
(Livraria Sá da Costa Editora)

37
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Agentes e ações na criação de uma disciplina: o caso dos


Estudos da Tradução no Brasil.

Roberto Carlos de Assis15


(UFMG / FLUL)

0- Introdução

Embora comentários sobre traduções remontem a Cícero (46 a.C),


passando por São Jerônimo (340 d.C.), tradutor da Bíblia para o latim,
Lutero (1530), Tytler (1792), Scheleimacher (1813), entre outros, somente
a partir da segunda metade do século XX é que a tradução desponta como
uma disciplina autônoma no cenário internacional. Em Holmes (1972), tido
como marco epistemológico, o autor demonstra sua insatisfação com as
respostas elaboradas por paradigmas e modelos de disciplinas, como a
Linguística, Literatura e Lógica. Para ele, essas disciplinas não davam
conta da complexidade da área e, em seu trabalho, elabora um mapa
descrevendo o campo, define seu objeto (a tradução enquanto processo e
produto) e aponta possibilidades de estudos e de diálogo com outras
disciplinas.
Algumas ações evidenciam sua consolidação a partir da década de
1990: o lançamento de seu reader: The translation studies reader
(VENUTI, 2000); a criação de cursos em níveis de graduação e pós-
graduação em 45 países, conforme apresentados em
http://www.lexicool.com/courses.asp; e a elaboração de vários manuais
introdutórios à disciplina emergente (BAKER, 1992; MUNDAY, 2001;
ROBINSON, 2003; HATIM e MUNDAY, 2004; MALMKJAER, 2005) e
de enciclopédias da área (BAKER, 1998; KITTEL, 2004).

15
Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais e da Faculdade de Letras da U. de Lisboa.

38
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Embora, para alguns, sua posição como disciplina esteja de fato


consolidada, haja vista sua apresentação em algumas das obras acima
citadas com o artigo definido the (Translation Studies is the new academic
discipline related to the study of the theory and phenomena of translation
(MUNDAY, 2001, por exemplo, meu grifo), esta posição é questionada por
Arroyo (1998), que desconstrói essa posição alegando que a motivação dos
defensores de uma disciplina autônoma “é um certo impulso imperialista
em que o que está realmente em jogo é o prestígio e o poder das tendências
em nome das quais se pretende disciplinar a tarefa do tradutor”
(ARROYO,1998).
No contexto brasileiro, conforme constatado em artigos de cunho
explorador e histórico (PAGANO e VASCONCELLOS, 2003; FROTA,
2007, por exemplo), apesar de pesquisas na área remontarem a 1952
(RÓNAI, 1952), a disciplina não está consolidada como autônoma e tem
um caráter nômade, abrigando-se principalmente sob o guarda-chuva da
Linguística Aplicada, Letras ou dos Estudos Literários. Há interesses
manifestos de que a autonomia da área seja reconhecida, nomeadamente
dos pesquisadores agrupados em torno do GT de Tradução da ANPOLL -
Grupo de Trabalho de Tradução da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Letras e Linguística, doravante GTTRAD. Esse grupo de
trabalho foi criado em 1986 e, a partir de então, chama para si o embate da
conquista de um espaço próprio para os Estudos da Tradução no meio
acadêmico brasileiro, conforme explicitado em um retrospecto das
atividades do grupo:

O ano de 1986 foi auspicioso para a área de tradução. Primeiro,


porque a sua presença entre os vinte e um grupos de trabalho da
ANPOLL veio a contribuir para seu reconhecimento institucional,
além de proporcionar um espaço para o intercâmbio entre seus

39
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

pesquisadores. Segundo, porque foi criada, em nível de


pós-graduação, a primeira área de concentração em tradução do
país, no Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da
UNICAMP. Esses dois fatos foram fundamentais para o
enfrentamento de um poderoso obstáculo ao avanço dos estudos
sobre tradução: a inexistência de um lugar claramente demarcado
nas instituições acadêmicas, levando-os a realizarem-se às
margens da pesquisa que se desenvolve nas áreas de Letras e de
Lingüística. (FROTA et al: 1994, meus grifos)

Apesar de o primeiro encontro formal do GTTRAD ter ocorrido


apenas em 1987, ressalta-se, na citação acima, a importância dada à
presença do GT na reunião da ANPOLL como promotor de
reconhecimento institucional. Ressalta-se também que os pesquisadores
percebem o processo de criação de uma disciplina como um enfrentamento,
porquanto exista um “poderoso obstáculo” que se coloca contra o avanço
da disciplina, sendo esse obstáculo a inexistência do reconhecimento de um
território estabelecido. Percebe-se que o embate ainda persiste na
atualidade sem alcançar a meta inicial, pois um dos objetivos da atual
coordenação do GTTRAD, conforme descrito em seu plano de trabalho
2006-2008, é “continuar as injunções pela inclusão, como sub-área, da
Tradução no elenco de rubricas da CAPES e do CNPq”. Vale lembrar que
o não reconhecimento por essas instituições de fomento de pesquisa limita
o financiamento e direciona pesquisas, cujos projetos apresentados devem
contemplar abordagens das rubricas reconhecidas por tais órgãos. Além de
negar que os Estudos da Tradução tenham um escopo e métodos próprios,
essa prática confina os resultados a visões parciais e fragmentadas de um
todo complexo.

40
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Entre as diversas atividades realizadas pelo GT visando o


estabelecimento do território, estão as publicações de artigos que mapeiam
e traçam o percurso histórico da disciplina (PAGANO e
VASCONCELLOS, 2003; AZENHA JR, 2006; FROTA, 2007;
MARTINS, 2007). Ao reunir pesquisas dispersas temporal e
geograficamente, esses artigos revelam a robustês da disciplina e
apresentam as ações e os atores envolvidos no processo de reconhecimento
da disciplina.
É nessa apresentação de ações e atores que este trabalho se insere,
descrevendo de que forma os Estudos da Tradução vêm tentando se
estabelecer como disciplina no Brasil, utilizando para tal o arcabouço
teórico de representação dos atores sociais (VAN-LEEUWEN, 1996) e de
ações sociais (VAN-LEEUWEN, 1995).
O artigo tem quatro seções que seguem essa introdução. Na primeira
seção, é apresentado o arcabouço teórico; na segunda, o corpus e a
metodologia; na terceira, a apresentação e a discussão dos dados; e,
finalmente, na quarta seção, são apresentadas as conclusões. Apesar da
indeterminação da consolidação dos Estudos da Tradução como disciplina,
optou-se pelo uso desse termo neste trabalho, uma vez que o objetivo aqui
não é a argumentação pro ou contra a posição dessa área no cenário
acadêmico, tampouco a polemização da validade do termo na organização
do conhecimento, mas, como apontado no parágrafo anterior, investigar o
processo de busca de reconhecimento impetrado por um grupo de pessoas
em um determinado contexto.

1- Arcabouço Teórico

41
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As seções 1.1 e 1.2 apresentam brevemente o suporte teórico para as


análises deste trabalho. Nessas seções, são apresentadas as categorias mais
amplas do sistema desenvolvido por van-Leeuwen e, para conveniência e
proximidade entre a teoria e os dados, aquelas com traços mais distintos
são explicitadas no decorrer da análise, quando mencionadas pela primeira
vez.

1.1 Representação dos atores sociais

Van Leeuwen (1996), traduzido para o português em 1997, elenca os


modos sócio-semânticos de representação dos atores sociais no discurso em
inglês bem como as suas realizações lingüísticas, ou seja, o autor descreve
as escolhas que a língua inglesa proporciona aos seus usuários para fazer
referências às pessoas. Para tanto, é utilizada “uma série de sistemas
lingüísticos distintos, tanto ao nível léxico-gramatical como ao nível do
discurso, da transitividade, da referência, do grupo nominal, das figuras
retóricas, etc.” (VAN LEEUWEN, 1997:216). Sistemas que, segundo o
autor, os lingüistas tendem a separar, mas que estão envolvidos na
representação dos atores sociais. Mais amplamente aplicada ao inglês, essa
abordagem vem se mostrando produtiva também para análises de textos em
português (GOUVEIA,1997; ASSIS, no prelo, por exemplo).
Na rede de sistemas elaborada por van Leeuwen, estão escolhas entre
categorias maiores, como Exclusão e Inclusão, que apresentam outros
níveis de distinção (delicacy). A Exclusão tem como traços (features) a
Supressão e o Encobrimento, realizadas por elementos lingüísticos
distintos. Já a Inclusão se desdobra por outros traços, como Ativação e
Passivação, Participação, Circunstancialização e Possessivação,
Personalização e Impersonalização, cada traço com outros níveis de
distinção.
42
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A análise de escolhas lexicais referentes a atores sociais incluídos


revela de que forma essa inclusão ocorre, ou seja, os atores sociais podem
ser personalizados (Personalização) através de pronomes pessoais,
possessivos adjetivos, nomes próprios ou substantivos cujos significados
incluem a característica humana, entre outros recursos; podem também ser
impersonalizados (Impersonalização) através da escolha de substantivos
abstratos ou concretos cujo significado não inclui essa característica.

1.2 Representação de ações sociais

Semelhante à representação de atores sociais, em van Leeuwen


(1995), o autor elenca os modos como as ações sociais podem ser
representadas no discurso em inglês. Seu sistema apresenta distinção entre
Ação/Reação, traço ligado ao sistema de Transitividade da gramática
sistêmico-funcional, sendo que as ações estão relacionadas aos processos
materiais, comportamentais e verbais e as reações aos processos mentais.
Entre outras formas, as ações e as reações podem ser Dinamicizadas
(activated), representadas dinamicamente como processos, ou Estaticizadas
(de-activated), representadas estaticamente, como se fossem entidades ou
qualidades. Se Estaticizadas, elas podem ser Reificadas (objectivated), ou
seja, realizadas por nominalizações com função de sujeito ou objeto na
oração ou como parte de um sintagma preposicionado, entre outras formas,
ou Descriptivadas (descriptivization), representadas como qualidades mais
ou menos permanentes dos atores sociais ou de outros elementos
representados na prática social.
Formas de representação de ações e reações podem revelar as
atribuições de poder ao ator social representado pelo produtor do texto.
Construída a partir de van Leeuwen (1995), a FIG. 1 lista as diferentes
realizações de atribuições de poder aos atores sociais:
43
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

maior poder menor poder


←----------------------------------- -----------------------------------→
reação cognitiva reação afetiva e perceptiva
ação semiótica ação material
ação material transacional ação material não transacional
ação transacional interacional ação transacional instrumental
ação semiótica citação direta (quote) ação semiótica citação indireta
(rendition)
comportamentalização da ação
semiótica
dinamicização da ação estaticização da ação
agenteficação não-agenteficação

FIGURA 1: Realização de atribuições poder na representação das ações de atores sociais

Leiam-se os itens da FIG. 1 horizontalmente como extremos de


continua, sendo aqueles do lado esquerdo usados na representação de
atores sociais com maior poder, enquanto aqueles do lado direito são
reservados para a representação de atores sociais com menor poder.

2- O Corpus e Metodologia

O QUADRO 1 abaixo mostra a composição do corpus, doravante


ETBRASIL, que totaliza 40.734 palavras. Os oito textos foram reunidos
seguindo dois critérios. O primeiro foi sua disponibilidade em formato
eletrônico na internet e o segundo o fato de tratarem-se de textos que
propõem mapear os Estudos da Tradução, quer em nível nacional, quer
local.

44
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

QUADRO 1
Componentes do corpus ETBRASIL
Referência Referência / No.
de palavras
AZENHA JR., João “Apresentação”. In: AZENHA JR., João
(Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da
Tradução no Brasil. Disponível em
<http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Ins
titucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no% CAM2
20Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008. 482
MARTINS, Márcia A. P “Quatro décadas de tradução na PUC-Rio: 1968-
2006” In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização
dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em
<http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Inst
itucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%2 CAM1
1.504
0Brasil.pdf>, 2006. último acesso 25 fev. 2008.
BREZOLIN, Adauri “A institucionalização dos Estudos da Tradução no
Brasil: o curso de Letras, Tradutores e Intérpretes do Unibero” In:
AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos
da Tradução no Brasil. Disponível em
<http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Inst
itucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%2 CAM3
1.281
0Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.
AZENHA JR., João “O Curso de Tradução na Universidade de São Paulo:
algumas reflexões sobre seu momento fundador”. In: AZENHA JR., João
(Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da Tradução no
Brasil. Disponível em
<http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Inst
itucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%2 CAM4
4.138
0Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.
FROTA, Maria Paula “O GT de Tradução da ANPOLL: história e
perspectivas” In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da
institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em
<http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Inst
itucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%2 CAM5
11.892
0Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.
FROTA, Maria Paula “Um balanço dos Estudos da Tradução no Brasil”.
In: Cadernos de Tradução v. 19 – 2007/1. Disponível em:
<http://www.cadernos.ufsc.br/online/cadernos19/maria_paula_bast CT1
os.pdf>. Último acesso 25 fev 2008. 10.074

MARTINS, Márcia A. P “A institucionalização da tradução no Brasil: o


caso da PUC-Rio”. In: Cadernos de Tradução v. 19 – 2007/1. Disponível em:
<http://www.cadernos.ufsc.br/online/cadernos19/maria_paula_bast CT2
os.pdf>. Último acesso 25 fev 2008. 5.945

45
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Referência Referência / No.


de palavras
PAGANO, Adriana; Vasconcellos, Maria Lúcia “Estudos da tradução no
Brasil: reflexões sobre teses e dissertações elaboradas por pesquisadores
brasileiros nas décadas de 1980 e 1990.” DELTA vol.19 no.spe São
Paulo 2003 Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- PAGVASC
44502003000300003&lng=en&nrm=iso> último acesso 25 fev 2008. 5.418

Total de palavras 40.734

Os textos foram explorados com as ferramentas do WordSmith


Tools®, especialmente as ferramentas Wordlist e Concord.
Foi feito um recorte nos sistemas apresentados em van-Leeuwen
(1995, 1996). Do sistema de representação de atores sociais, utilizou-se
apenas a Inclusão e dessa, o traço Personalização / Impersonalização. Do
sistema de representação de ações sociais, utilizaram-se os traços de
Ação/Reação e Dinamização/Estaticização.
Para a classificação da forma de representação dos atores sociais
(Personalização / Impersonalização), foram considerados os itens lexicais
com dez ou mais ocorrências levantados através do Wordlist, devidamente
contextualizados através das linhas de concordância geradas pelo Concord.
Para o levantamento das ações sociais, foram considerados os itens lexicais
identificados como mais representativos dos atores sociais que se colocam
ou são colocados na posição de liderança, a saber: professores,
pesquisadores e tradutores.

3- Apresentação e Análise dos Dados

A lista de freqüência do Wordlist apresenta dados interessantes sobre


os Estudos da Tradução no Brasil. O nome da disciplina se consolidou
como Estudos da Tradução (27 vezes), em oposição à Tradutologia (7

46
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vezes), designação dada por alguns na década de 1980 e presente no corpus


apenas como referência a algumas obras publicadas nesse período.
“Estudos da Tradução” é usado principalmente em CT1 (20 vezes), mas
também em CAM5 (1 vez), CT2 (2 vezes) e em PAGVASC (4 vezes).
Há um discurso de guerra presente nos textos, revelado pela escolha
de itens lexicais como luta, batalha, enfrentamento, tropas, desfraldar
bandeira, vítima, revolução, como no exemplo 1:

Exemplo 1:

O corpo de pesquisadores, à época ainda incipiente como a própria


disciplina, parecia dividir-se entre duas tropas adversárias: os contra e
os a favor do pós-estruturalismo; caso se desfraldasse a bandeira da
desconstrução, mais acirrado ainda ficava o embate. Como de
costume, talvez uns poucos tenham preferido apenas observar, sem
filiar-se a nenhum dos dois grupos. Aparentemente sem qualquer
vítima fatal, a revolução chegou ao fim, vitoriosa, em meio ao
decênio aqui em foco. Mesmo os mais ingênuos ou empedernidos
essencialistas mudaram, uns mais outros menos, suas concepções
(CT1)

PUC-Rio (76), USP (42), UFMG (30), UFRJ (28), UNIBERO (26),
UFSC (24), UNICAMP (23) e UFRGS (12) são as principais instituições
de afiliação dos atores sociais responsáveis pelo processo de
reconhecimento da disciplina. Os nomes dessas entidades são usados para
identificação da origem dos atores sociais analisados, através de posposição
(exemplo 2) ou pós-modificação (exemplo 3); como circunstância de
localização (exemplo 4); ou como forma de Objetificação, representação

47
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

por meio de uma referência a um local ou coisa diretamente associada ao


ator social representado (Exemplo 5).

Exemplo 2:

..., foram apresentados os já referidos trabalhos de Tania Carvalhal


(UFRGS) e de Lucinda Brito (UFRJ), além de uma exposição de ...
(CAM5)

Exemplo 3:

... , outra integrante do grupo da UFMG, e sucedido pelo volume


organizado por Alves (2001) e intitulado ... (CAM5)

Exemplo 4:

... que foi apresentado por ocasião do XXI ENANPOLL, realizado na


PUC-SP em julho de 2006. A proposta da então Coordenação do
(CAM2)

Exemplo 5

... de outras instituições, brasileiras e estrangeiras, com as quais a


PUC-Rio mantém um produtivo intercâmbio acadêmico. Para o
futuro, (CT2)

A principal forma de representação dos atores sociais é a


Personalização através da Nomeação, referência através de nome próprio,
ou da Funcionalização, referência através do cargo que ocupam. Na
Nomeação, destaca-se, por não ser comum no gênero acadêmico, a
referência ao primeiro nome de pessoas. Entre aqueles com mais de nove
referências estão: Rosemary (19), José (18), Márcia (17), Fábio (15),

48
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Adriana (15), John (13), Célia (11), João (11). Na Funcionalização,


destacam-se os lemas tradutor* (185), professor* (75), pesquisador* (67),
autor* (39) aluno* (34), intérprete* (31), docente* (30), coordenador* (20),
estudios* (15).

Dentre as formas de impersonalização, exemplos 6 e 7, destacam-se


os itens lexicais que compõem os lemas GT* (162, GTS e GTTRAD),
trabalho* (13), grupo* (5), e estudo* (2), além des formas de referência
acadêmica (31), conforme discutido abaixo.
Exemplo 6:
s resultados alcançados nesse primeiro biênio, além da decisão do grupo de
manter para o biênio seguinte, 1992-1994, a mesma estrut (CAM5)

Exemplo 7:
ia Paula Frota, nós duas da PUC/RJ. Para dar uma idéia dos temas que
tais trabalhos abordaram, apresento-os a seguir, respectivamente aos
docentes (CAM5)
mais propriamente concernente ao mercado profissional, mesmo
porque os trabalhos acadêmicos, ao refletirem sobre a atividade tradutória
e (CAM5)

Van Leeuwen (1996) não inclui as formas de referência acadêmicas


em seu inventário sócio-semântico, especialmente pelo fato de seu corpus
não incluir textos acadêmicos, portanto decisão nesse sentido teve de ser
tomada, uma vez que esta é uma forma de representação recorrente nos
textos que compõem o corpus desta pesquisa. Conforme a prática no
gênero, a forma mais comum de referência a trabalhos acadêmicos é
através do sobrenome do autor seguido do ano de sua publicação, apesar de
outras formas serem possíveis. Nesta pesquisa, a forma mais comum foi
considerada impersonalização, enquanto aquelas referências com nome

49
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

completo foram consideradas personalização, como nos exemplos 8 e 9


respectivamente:

Exemplo 8:
... pesquisadores brasileiros nas décadas de 1980 e 1990 – ou, como
fez Martins (2005), optar por traçar um ... (CT1)

Exemplo 9
... sugiro a leitura do trabalho de Marcia A. P. Martins (2005), em
particular a seção ‘Os Estu (CT1)

O GRAF. 1 apresenta os dados referentes à Personalização e à


Impersonalização dos atores sociais no corpus ETBRASIL, revelando a
prevalência da primeira como principal forma de representação (79%).

Representação atores sociais em


ETBRASIL

206
21%

Personalização
Impersonalização

761
79%

Gráfico 1: Representação de atores sociais no corpus ETBRASIL

50
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Dentre as formas de representação dos atores sociais que despontam


como atuantes para o reconhecimento disciplinar, destacam-se GT*,
pesquisador*, e professor*. Vale lembrar que esses são itens lexicais para
referir freqüentemente aos mesmos atores sociais, revelando papéis
desempenhados por eles em momentos distintos, ora como membros do
GT, ora como pesquisadores e ora como professores. Destaca-se também o
lema tradutor*, mas, como discutido mais a frente, eles não desempenham
papel ativo na construção da disciplina, são antes aqueles que se
beneficiarão do seu reconhecimento.
Os pesquisadores e os tradutores são principalmente representados
em grupos (Coletivização), exemplos 10 e 11, em oposição à representação
individual (Individualização), exemplo 12. Os primeiros são coletivizados
em todas as ocorrências; os últimos são coletivizados em 61,6% e
individualizados em 38,4% dos casos. Os professores são coletivizados em
49,3% e individualizados em 50,7%. Esses dados revelam que os atores
sociais na posição de professor ou de professora atuam individualmente,
entretanto prevalece a necessidade de atuação em grupo para alcançarem o
objetivo, especialmente com a formação do GTTRAD, que responde pela
principal forma de representação dos atores sociais em ETBRASIL (162
ocorrências), exemplos 13 e 14.

Exemplo 10:
... o no Brasil, entendida esta releitura do passado como a tentativa de
oferecer aos pesquisadores elementos que possibilitassem uma
melhor visualização das tran... (CAM2)

Exemplo 11:

51
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

... cursos de tradução no Brasil. Os cursos destinados a preparar


tradutores, que começaram a surgir no Brasil a partir do final dos ...
(CT2)

Exemplo 12:
57 onstrar quão importante é a interpretação correta do texto
original pelo tradutor, para que o mesmo possa ser devidamente
compreendido pelo (CAM4)

Exemplo 13:
... o qual, como já era tradição, trazia a programação da reunião de
cada GT e os resumos dos trabalhos a serem apresentados, eram
esperad (CAM5)

Exemplo 14:
... ridade, de modo que o seu lançamento constituiu um êxito. Além
dela, o GT passou a ter uma secretaria com e-mail próprio, o que
também repre (CAM5)

A análise das ações sociais concentrou-se nos lemas pesquisador*,


professor* e tradutor* com o objetivo de analisar que tipo de ação esses
atores sociais desempenham em seus diferentes papéis. Os resultados são
apresentados no GRAF. 2:

52
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Ação e Reação em ETBRASIL


85
80
75
70
65
60
55
50 Reação
45 Ação: Paciente
40 Ação: Agente
35
30
25
20
15
10
5
0
Pesquisadores Professores Tradutores

Gráfico 2: Ações e reações em ETBRASIL

Os dados do GRAF. 2 incluem ações/reações dinamicizadas e


estaticizadas e mostram que os professores são aqueles que estão
envolvidos em mais ações ou reações (84), seguidos dos pesquisadores (60)
e dos tradutores (38). Na distribuição de suas ações e reações, os
professores são mais agentes (67), ou seja, Ator, Experienciador,
Comportante, do que pacientes (13), ou seja, Meta, Beneficiário,
Fenômeno, e estão envolvidos em processos de reação (4), exemplos 15, 16
e 17; os pesquisadores são mais agentes (51) do que pacientes (9) e não
estão envolvidos em processos de reação; os tradutores são mais pacientes
(22) do que agentes (14) e estão envolvidos em processos de reação (2).

53
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Exemplo 15: Professor-Agente


... de e sistemática produção das grandes universidades; no entanto,
vários professores desenvolvem projetos de investigação científica,
individualm... (CAM3)

Exemplo 16: Professor- Ação: Paciente


... lato e stricto sensu está não só formando pesquisadores como
capacitando professores, que muitas vezes vêm atuar nos diferentes
cursos de tradução (CT2)

Exemplo 17: Professor: Reação


... de trabalho, fundarem firmas de tradução” (1996: 431). A
preocupação dos professores do curso em oferecer uma formação
adequada levou a uma nova ... (CT2)

A TAB. 1 demonstra que tanto pesquisadores quanto professores


estão envolvidos em mais ações materiais do que semióticas, exemplos 18
e 19, respectivamente. 98% das ações dos pesquisadores são materiais e 2%
semióticas; 95,5% das ações dos professores são materiais e 4,5% são
semióticas.

Exemplo 18:
... o tradutor e professor Paulo Rónai e foi, mais uma vez, organizado
pela professora Maria Candida Bordenave e demais docentes da
área de tradução (CT2)

Exemplo 19
... contando com pesquisadores de outras áreas que haviam sido
convidados pela professora Candida. Devido a uma orientação da
diretoria da Anpoll, que não (CAM5)

54
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As ações materiais subdividem-se em transacional e não-


transacional. No primeiro tipo, a ação do processo é estendida a outro
participante (exemplo 20), enquanto no segundo a ação fica restrita ao
processo (exemplo 21). Das ações materiais dos pesquisadores, 70% são
transacionais e 30% não-transacionais; das ações materiais dos professores,
76,6% são transacionais e 23,4% não transacionais.

Exemplo 20
... no mapeamento publicado e a fragmentação dos critérios que
cada pesquisador parece ter utilizado para fazer sua indicação
revelam ... (PAGVASC)

Exemplo 21
... avanço relativo de nossa área, pôde contar com várias dezenas de
pesquisadores que se reuniram durante três dias para discutir a
situação... (CAM5)

TABELA 1
Tipos de ação em ETBRASIL
Tipos de ação
Semiótica Material
Pesq. Prof. Pesq. Prof.
2% 4,5% 98% (50) 95,5% (64)
(1) (3)
Transacional Não Transacional Não
Transacional Transacional
70% (35) 30% (15) 76,6% (49) 23,4% (15)
Intera- Instru- Intera- Instru-
cional mental cional mental

5,8% 94,2% 0 100%


(2) (33) (49)

55
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As ações transacionais subdividem-se em interacional e instrumental.


A ação do processo é estendida a um participante humano no primeiro tipo
(exemplo 22) e a um participante não-humano no segundo (exemplo 20,
acima). Das ações transacionais dos pesquisadores, 94,2% são
instrumentais e 5,8% interacionais; todas as ações transacionais dos
professores são instrumentais.

Exemplo 22:
... da professora Maria Cândida Bordenave, que, com sua equipe, ...,
foi coordenadora da área durante quase 30 anos, formou várias
gerações de tradutores e teve... (CAM1)

4 – Conclusões

Não é possível afirmar se a forma que professores


/pesquisadores/tradutores atuam, se auto representam e são representados
na busca de reconhecimento dos Estudos da Tradução como disciplina no
contexto brasileiro é adequada ou não, mas pode-se dizer que há interesses
tanto no reconhecimento da disciplina quanto dos seus próprios esforços,
haja vista a opção pela inclusão através da nomeação. A adoção do discurso
de guerra indica a escolha pelo enfrentamento, mas chama a atenção que os
opositores são excluídos. Seguindo a forma de realização da distribuição de
poder aos representados, é interessante notar que as ações dos professores-
pesquisadores são daqueles com menor poder, não estendendo suas ações
às pessoas.

56
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Espera-se que este trabalho contribua para reflexão e sirva como base
de avaliação do percurso daqueles em posição de liderança na criação da
disciplina.

5- Referências

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darkness (O Coração das trevas): uma abordagem lingüística de duas de
suas traduções” In. MAGALHÃES, Célia (Ed.) Corpu(o)s híbrido(s):
identidades raciais em tradução. Belo Horizonte: UFMG, no prelo.
ARROJO, Rosemary. “Os ‘estudos da tradução’ como área de pesquisa
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HOLMES, James The name and nature of translation studies. Amsterdam
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KITTEL, Harald et al (Eds) Übersetzung = Translation = Traduction: ein
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57
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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MALMKJAER, Kirsten Linguistic and the language of translation.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 2005.
MARTINS, Márcia A. P “A institucionalização da tradução no Brasil: o
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MUNDAY, J. Introducing Translation Studies. London and New York:
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58
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A glória de uns e o domínio de outros: sobre relações de


poder na prática da linguística.

Carlos A. M. Gouveia16
(FLUL/ILTEC)

“When we study human language, we are approaching


what some might call the "human essence," the
distinctive qualities of mind that are, so far as we know,
unique to man.”
Noam Chomsky, Language and Mind

“Language serves essentially for the expression of


thought.”
Noam Chomsky, Language and Responsibility

1. Introdução
De base discursiva, foucauldiana e faircloughiana (Foucault, 1971 e
1980; Fairclough 1992 e 2003), esta comunicação busca desconstruir
analiticamente processos de naturalização de práticas de produção de
significados hegemónicos no discurso da ciência linguística, aqui visto não
só como locus de poder e de dominação, mas também como um discurso de
silenciamento de teorias e de paradigmas de conhecimento.
O carácter histórico e material do discurso encontra-se amplamente
debatido, descrito e documentado em publicações que, por exemplo, vão
desde a sociologia até à análise do discurso, passando pela filosofia e a
psicologia sociais. Embora esta seja uma comunicação que, pessoalmente,
gostaria de classificar como de linguística, o que acabo de afirmar sobre o
objecto de estudo que a mesma convoca - o discurso - confirma que este
não é, como tal, exclusivo da linguística, sendo que, para alguns linguistas,
todavia, não será sequer objecto de estudo da ciência que praticam. Matéria
interessante esta, mas, em abono da verdade, nem a questão das relações

16
Professor assistente da FLUL, coordenador de investigação e investigador do ILTEC.

59
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

disciplinares difíceis entre diferentes áreas do saber é nova, nem a


linguística detém o exclusivo de ser a única ciência a considerar fora da sua
definição disciplinar essencial tudo o que se situa nas margens do núcleo
fundamental do corpo de conhecimentos que tradicionalmente invoca.
Ainda assim, veja-se, a título de exemplo, a definição de linguística na
Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Linguistics):

Linguistics is the scientific study of language. General (or theoretical)


linguistics encompasses a number of sub-fields, such as the study of
language structure (grammar) and meaning (semantics). The study of
grammar encompasses morphology (formation and alteration of
words) and syntax (the rules that determine the way words combine
into phrases and sentences). Also part of this field are phonology, the
study of sound systems and abstract sound units, and phonetics, which
is concerned with the actual properties of speech sounds (phones),
non-speech sounds, and how they are produced and perceived.
Linguistics compares languages (comparative linguistics) and explores
their histories to find universal properties of language and to account
for its development and origins (historical linguistics). Applied
linguistics puts linguistic theories into practice in areas such as foreign
language teaching, speech therapy, translation, and speech pathology.
Someone who engages in this study is called a linguist.

O que é relevante nesta definição é, em primeiro lugar, a


caracterização da disciplina como ciência - “linguistics is the scientific
study of language” -, e a pressuposição de que estudos não científicos não
serão linguística; em segundo, a indistinção entre linguística geral e
linguística teórica - “General (or theoretical) linguistics encompasses...”;
em terceiro, a afirmação de que a linguística engloba pelo menos duas sub-
áreas, o estudo da estrutura e o estudo do significado - “encompasses a
number of sub-fields, such as the study of language structure (grammar)
and meaning (semantics)” -, sendo que apenas as sub-áreas da sub-área
estudo da estrutura são referidas: morfologia, sintaxe, fonologia e fonética;
e, em quarto lugar, a implicitação de que o estudo da estrutura é linguística
(geral ou teórica) e o resto ou é linguística comparada, linguística histórica

60
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ou linguística aplicada - “Linguistics compares languages (comparative


linguistics)...”; “explores their histories to find universal properties of
language... (historical linguistics)”; “Applied linguistics puts linguistic
theories into practice...”.
O que o exercício do olhar sobre a realidade definidora desta
disciplina permite justificar, seja essa realidade a da Wikipedia, seja a de
um qualquer instrumento definidor produzido por e valorizado no mundo
académico e científico, é que nenhum discurso pode advogar a produção de
verdades independentemente das contingências do momento histórico e da
estrutura ideológica que motivam a sua produção. Daí que o discurso,
enquanto objecto de estudo científico, não seja também ele independente e
isento das influências e contingências da produção de verdades próprias do
discurso da disciplina que como tal, i. e., como objecto de estudo, o
constitui. Ou seja, todo o discurso, seja ele prática sócio-institucional e
material, seja ele objecto de estudo e idealização abstracta, é fenómeno
potenciador da criação, instauração e manutenção dos chamados regimes
de verdade.

2. A supremacia mentalista
Os regimes de verdade, no dizer foucauldiano, sistemas de poder
alimentados por mecanismos de produção e de manutenção de “verdades”,
são regimes fundamentalmente discursivos que configuram todo o discurso
como sendo um regime de verdade em si mesmo. A verdade, enquanto
produto de tal política regimental, é, para Foucault, caracterizada por cinco
traços fundamentais (Foucault, 1980: 131):

In societies like ours, the "political economy" of truth is characterised


by five important traits. "Truth" is centred on the form of scientific
discourse and the institutions which produce it; it is subject to constant
economic and political incitement (the demand for truth, as much for
economic production as for political power); it is the object, under

61
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

diverse forms, of immense diffusion and consumption (circulating


throughout apparatuses of education and information whose extent is
relatively broad in the social body, notwithstanding certain strict
limitations); it is produced and transmitted under the control,
dominant if not exclusive, of a few great political and economic
apparatuses (university, army, writing, media); lastly, it is the issue of
a whole political debate and social confrontation ("ideological"
struggles).

Acresce a estas características apontadas por Foucault o facto de a


verdade ter um cunho fundamentalmente discursivo que não se reestringe à
sua caracterização como estando centrada na forma de discurso científico.
A estimulação económica e política, a difusão e o consumo, o controlo
político e económico, o confronto político e social, enquanto factores de
caracterização da “verdade”, são também de natureza discursiva.
No caso do discurso científico da linguística moderna, o regime de
verdade instaurado pela insistentemente chamada revolução chomskyana
(Searle, 1972; Smith & Wilson, 1979) tem sobrevalorizado a realidade
mental da língua por oposição à sua realidade social e material como um
pressuposto teórico fundamental. Como afirma Beaugrande (1998: 765):
“In the discourse of 'modern' linguistics, the question of whether the
'reality' of language is mental, material, or social has been evaded by a
performative campaign to replace real language with ideal language and to
short-circuit mental with material whilst bypassing the social basis of
language.” No dizer de Chomsky (1965: 4), “linguistic theory is
mentalistic, since it is concerned with discovering a mental reality
underlying actual behaviour.” Nesse sentido, explicita Chomsky,
“mentalistic linguistics is simply theoretical linguistics that uses
performance as data (along with other data, for example, the data provided
by introspection) for the determination of competence, the latter being
taken as the primary object of its investigation.” (idem: 193).

62
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Ao longo de toda a segunda metade do século XX e até hoje, a


linguística chomskiana tem descurado o facto inquestionável da conexão
essencial entre a linguagem e a comunicação e a hipótese teórica de que na
evolução da pré-história e da história humana as necessidades da
comunicação influenciaram e determinaram a estrutura da linguagem. É
óbvio que a teoria linguística chomskiana não é hoje o que era há
cinquenta, quarenta ou até mesmo dez anos atrás. Podemos, como faz John
Searle (2002), achar que a revolução não teve sucesso, a julgar pela
constante redefinição e alteração de alguns dos pressupostos e dos
objectivos da teoria inicial e dos programas sucessivos, mas o que é certo é
que a influência original se mantém e o silenciamento de outras
perspectivas de entendimento da linguagem human continua activo:

Judged by the objectives stated in the original manifestoes, the


revolution has not succeeded. Something else may have succeeded, or
may eventually succeed, but the goals of the original revolution have
been altered and in a sense abandoned. I think Chomsky would say
that this shows not a failure of the original project but a redefinition of
its goals in ways dictated by new discoveries, and that such
redefinitions are typical of ongoing scientific research projects.

É no mínimo curioso que Searle use a expressão projecto de


investigação em curso para designar aquilo que vem acontecendo na
ciência linguística há mais de cinquenta anos e que tem sistematicamente
impossibilitado o acesso aos mecanismos de produção, difusão e consumo
de “verdades” de toda e qualquer teoria contrária aos princípios
mentalistas. A revolução aconteceu e por muito que se alterem
pressupostos ou objectivos, a filosofia da mesma mantém-se, como se
mantém o regime de verdade que caracteriza a língua como uma realidade
meramente mental e a linguística como um ramo da psicologia, como
defende Chomsky em várias publicações, nomeadamente em Language
and responsibility (1979: 43): “In my opinion one should not speak of a

63
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

"relationship" between linguistics and psychology, because linguistics is


part of psychology”, ou a sua caracterização como uma área fundamental
da ciência cognitiva, a par com ciências tão diversas como a referida
psicologia, a filosofia, a neurociência, a antropologia, a ciência da
computação ou a biologia.

3. Processos de naturalização
O discurso científico encontra-se abundantemente estudado e várias
são as características que lhe têm sido apontadas, desde o elevado teor de
nominalizações e de metáforas gramaticais, a elevada densidade lexical,
por vezes associada a um reduzido intrincamento gramatical, o elevado teor
de especialização terminológica, o pendor abstracto dos processos de
transitividade, até ao elevado grau de estruturas impessoais ou
impessoalizantes, como a passiva sem agente, orações não-ergativas ou
orações de sujeito indeterminado ou impessoal. São precisamente muitas
dessas estruturas, características fundamentais do registo escrito do
discurso científico, que servem muitas vezes o silenciamento de teorias e
de paradigmas de conhecimento.
Veja-se, a título de exemplo, no fragmento seguinte, retirado da
página de apresentação de uma unidade de Investigação e Desenvolvimento
da área da Línguística, o uso de duas construções com um Comentário
Tematizado nominalizado cada, isto é, com uma inversão na ordem natural,
não-marcada, dos constituintes funcionais da oração, por forma a colocar
em posição proeminente o comentário (normalmente um processo de
adjectivação, mas neste caso uma nominalização) que se pretende veicular
e que naturalmente ocorreria no final da oração:

Constituem preocupações estruturantes da investigação desenvolvida a


exploração de abordagens experimentais e a aplicação do
conhecimento fundamental em vários domínios, designadamente em
64
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

domínios interdisciplinares como a Linguística Educacional, a


Linguística Clínica, a Linguística Computacional, a Linguística
Forense e a Aquisição e Desenvolvimento da Língua. É igualmente
preocupação fundamental de [nome de Unidade de I&D] a utilização
dos resultados da investigação linguística na produção de instrumentos
de normalização linguística.

Note-se que em ambas as construções, em que são usadas sessenta e


quatro palavras, estamos perante apenas duas orações, uma por
construção/período, o que corresponde uma forte densidade lexical, e que o
Sujeito de cada uma das orações é o constituinte que surge em último lugar
(“”a exploração de abordagens... desenvolvimento da Língua”, no primeiro
caso, e “ a utilização dos resultados da investigação linguística na produção
de instrumentos de normalização linguística”, no segundo). Os valores de
densidade lexical elevados devem-se sobretudo à complexidade dos quatro
constituintes funcionais que orbitam em torno dos dois verbos usados
(constituir e ser), todos eles tendo na origem estruturas verbais (processos)
submetidas a princípios de nominalização. Note-se ainda o alto pendor
asbstracto das quatro nominalizações: “preocupações estruturantes da
investigação desenvolvida”; “a exploração de abordagens experimentais e a
aplicação do conhecimento fundamental...”; “preocupação fundamental
de...”; “a utilização dos resultados da investigação...”.
A nominalização, na perspectiva que aqui estou a considerar, é a
conversão, em Nome e Sujeito de uma oração (ou Complemento, por
vezes), de uma estrutura extremamente complexa em que várias processos
são compactados e naturalizados, e, como tal, tornados inquestionáveis.
Este último aspecto da nominalização é por demais visível no exemplo a
seguir, retirado de um texto publicado num semanário nacional: “A
gravidade de atitudes como a do [nome de pessoa], pesporrentas,
desinformadas e alheias a qualquer reflexão sobre o ensino da língua
materna e a formação de professores no contexto das novas exigências da

65
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sociedade do conhecimento e do estado actual de conhecimentos sobre o


processo de aquisição e desenvolvimento da língua materna e sobre as
bases neurobiológicas e os processos psico-linguísticos que suportam os
seus usos”. Repare-se que o que temos aqui é apenas o Sujeito de uma
oração cujo verbo vem a seguir: “reside em pretenderem abrir clivagens
artificiais entre especialistas com formações cuja complementaridade na
formação inicial e contínua de professores de Português ninguém nega (a
não ser o [nome de pessoa]).”
Tal nominalização contém em si vários processos em que o carácter
mental da língua é naturalizado, sendo que o mais determinante deles
afirma não a importância do conhecimento sobre os usos da língua
(conhecimento por demais importante para o ensino da língua materna,
matéria em causa na asserção) mas a importância do conhecimento sobre as
bases neurobiológicas e os processos psico-linguísticos que suportam os
usos da língua materna. Uma construção como esta não deixa espaço para
contra-argumentação, isto é, enquanto interlocutores temos apenas a
possibilidade de contradizer a afirmação “reside em pretenderem abrir
clivagens” e não a possibilidade de questionar a existência, a qualidade e a
validade do conhecimento invocado na nominalização.
Não deixa de ser estranho que neste exemplo de nominalização sejam
invocadas as “novas exigências da sociedade do conhecimento” e que do
ponto de vista da produção de conhecimento científico em linguística nada
seja dito sobre o conhecimento de e a investigação sobre as novas literacias
que tais exigências potenciam e sobre as questões sociais do uso da língua,
e se valorize ao invés o conhecimento das estruturas da mente, isto é, as
bases neurobiológicas e os processos psico-linguísticos.
Poderemos dizer que o que motiva esta leitura é apenas o despeito ou
o complexo de inferioridade de alguém que vê no paradigma de
conhecimento dominante em linguística algo que ele paradigma dominante

66
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

não tem, mas isso é o mesmo que um lisboeta dizer que quando as pessoas
do Porto se queixam do centrismo das pessoas de Lisboa tudo não passa de
despeito e de complexo de inferioridade. É preciso ser-se do Porto (e eu
não sou do Porto, frise-se) para se perceber o que está em causa na
“disputa” Lisboa vs. Porto. De facto, nessa disputa só as pessoas do Porto é
que têm sotaque, as pessoas de Lisboa não têm; só o Futebol Clube do
Porto e o Boavistas é que são regionais, isto é, do Porto, o Benfica, o
Sporting ou o Belenenses são nacionais; o magnífico dia de sol do Porto é
irrelevante face aos chuviscos de Lisboa transformados em “nacionais”
pela rádio e a televisão, cuja estações de emissão se encontram em Lisboa.
Para um Lisboeta nada disto faz sentido, porque nada disto é relevante, de
tão naturalizado que está, mas para uma pessoa do Porto isto faz parte do
seu quotidiano, da sua realidade identitária. Daí que classificar esta disputa
como “síndrome da segunda cidade do país” seja no mínimo ofensivo e que
só as pessoas de Lisboa a classifiquem como tal.
O mesmo se passa na linguística e em tantas outras ciências em que
dois pontos de vista distintos sobre o mesmo objecto de estudo possibilitem
diferentes sistemas de procedimentos ordenados para a produção,
regulação, distribuição, circulação e operação de asserções fundamentais
(Foucault, 1980). Por exemplo, dizer que o paradigma dominante nos
estudos linguísticos não nega o carácter social e material da língua não é
argumento contra uma qualquer acusação de domínio de uma visão
mentalista ou cognitivista. Dizer que o paradigma dominante nos estudos
linguísticos reconhece a validade do conhecimento produzido noutras áreas
com as quais não partilha metodologias de constituição e leitura do objecto
de estudo não é argumento contra uma qualquer acusação de discriminação.
Como em todas as relações estruturais de dominação, discriminação, poder
e controlo, o que urge trazer à luz do dia não são apenas as suas
manifestações transparentes e eventualmente assumidas como tal, são as

67
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

suas manifestações naturalizadas, ou seja, aquelas que são dadas como


fazendo parte da natureza intrínseca da realidade e que, como tal, são
relativamente opacas nessa sua manifestação. Em função de tais
pressupostos, urge, portanto, descrever tanto os processos e estruturas
sociais (universidades, cursos, centros de investigação, editoras) que levam
à produção de conhecimento linguístico e à sua disseminação, como dos
processos e estruturas sociais em que os indivíduos ou grupos, enquanto
cientistas, indivíduos históricos, na sua interacção com textos, criam
significado (publicações, congressos, resultados de investigação, etc.).
Como já tive oportunidade de referir em outro contexto (Gouveia,
2006), os encontros nacionais da APL-Associação Portuguesa de
Linguística, assim como as duas únicas licenciaturas de linguística
existentes no nosso país têm servido a manipulação e o controlo, tal o
domínio da linguística mentalista ou cognitiva, sendo que “os linguistas
portugueses pouco ou nada têm contribuído para o verdadeiro ensino da
Linguística no nosso país, se por Linguística entendermos, como eu
entendo, multiplicidade disciplinar e diversidade teórico-metodológica.”
(idem: 430). No panorama de desenvolvimento da linguística em Portugal,
o domínio do Departamento de Linguística Geral e Românica (DLGR) da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde a influência das
ideias de Chomsky primeiro se fez sentir e se tem mantido constante, tem
sido determinante para a difusão e hegemonização do paradigma
mentalista, ao contribuir para a formação, nos diferentes níveis, de um
vasto número de linguistas. Para além de ser, no país, o departamento que
mais linguistas congrega e que, portanto, maior produtividade apresenta em
termos de produção de dissertações de mestrado e de doutoramento, o
DLGR tem ainda tido papel activo na Associação Portuguesa de
Linguística, ao nível da sua direcção. Sintomaticamente, a produção que
em linguística se tem vindo a registar nas áreas da análise do discurso, da

68
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

pragmática, da linguística textual ou de teorias funcionalistas de descrição


gramatical tem sido feita à margem da investigação produzida pelo DLGR,
em departamentos da Universidade do Porto, da Universidade de Aveiro,
da Universidade Nova de Lisboa, ou até em outros departamentos da
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como o Departamento de
Estudos Anglísticos e o Departamento de Estudos Germanísticos. Nestes
dois últimos casos, temos um modelo relacional de saberes semelhante ao
que encontramos um pouco por toda a Europa, em que o paradigma de
conhecimento mentalista ou cognitivo é fundamentalmente dominante em
departamentos de linguística da língua materna, mas não necessariamente
em departamentos de línguas estrangeiras.
Do ponto de vista da investigação e da apresentação de resultados de
investigação, os encontros nacionais da APL têm sido ao longos dos anos
uma importante fonte de disseminação e hegemonização do conhecimento
linguístico de cariz cognitivo. Isso foi sempre patente não só nas sessões de
comunicações seleccionadas, mas fundamentalmente nas sessões plenárias,
a cargo de linguistas convidados. Para a questão que me interessa aqui é
fundamentalmente importante a conferência plenária final do XIX
Encontro Nacional, em 2003, intitulada “O problema da unificação em
Linguística: a resposta generativista”, da autoria de Inês Duarte, em que se
constrói como divergência o que é convergência e como crítica o que é
resultado de “redefinitions” e “new discoveries”, para usar as palavras de
Searle de há pouco (Searle, 2002). Curiosamente, o que está em causa neste
texto não é o problema da unificação da linguística, isto é, da unificação
numa só disciplina, num só paradigma de conhecimento, de uma visão da
língua tanto como realidade mental como realidade social. Não é, portanto,
a problemática da unificação da linguística, mas da unificação em
linguística, querendo com isso dizer que “o programa de investigação
generativista, em particular na formulação iniciada nas Rules and

69
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Representations, de 1980, e nas Lectures on Government and Binding, de


1981, bem como nas sucessivas reformulações teóricas sofridas desde
então, constitui a primeira resposta promissora ao problema da unificação
interna ao campo da Linguística.” (Duarte, 2004: 27).
A unificação é, neste caso, a unificação de uma teoria, de um
paradigma, de um regime de verdade, esquecendo que outros existem e
reforçando o carácter mental da língua: “A trave-mestra da resposta
unificada proposta pelo programa generativista é a teoria selectiva da
aquisição a que já me referi, a qual, de resto, só é possível pela mudança do
foco da investigação para o sistema mental que subjaz à nossa actividade
de falantes, mudança que caracterizou o programa desde quase o seu
início.” (idem: 31).

4. Implicações
Repare-se que o que está aqui em causa não é a contestação ou a
negação da validade do conhecimento produzido naquele que se apresenta
como paradigma dominante nos estudos linguísticos, como não está em
causa a qualidade do trabalho dos linguistas, portugueses ou de outras
nacionalidades, que têm contribuído para o seu desenvolvimento. Como
refere John Searle num dos artigos que já citei (Searle, 1972), não há
dúvida de que o trabalho de Noam Chomsky sobre a natureza da linguagem
humana produziu um avanço ímpar no desenvolvimento do conhecimento
em linguística. Não é essa asserção e outras com ela relacionadas que está
em causa; o que está em causa é o silenciamento e a discriminação que o
trabalho nesse paradigma tem potenciado, pela imposição, ainda que não
consciente em alguns casos, mas premeditada em outros, de um regime de
verdade nas várias estruturas da vida institucional, académica e de
investigação, de que é exemplo e, nesta apresentação, exemplo final, o

70
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

financiamento de projectos de investigação pelas agências financiadoras,


como é o caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia, em Portugal.
No Concurso Para Projectos de Investigação em todos os Domínios
Científicos – 2006, o último que a FCT abriu, foram submetidos para
avaliação 26 projectos no domínio científico da linguística. Desses foram
propostos para financiamento 12 projectos, e recusados 14, por um júri
internacional coordenado por Greg Carlson (“Professor, Linguistics, Brain
& Cognitive Sciences and Philosophy”, como o próprio se identifica na sua
página pessoal) e composto ainda por Louise McNally e Georg A. Kaiser.
Como se diz no edital do concurso
(http://alfa.fct.mctes.pt/apoios/projectos/#como_sao_avaliadas): “A
avaliação das candidaturas a projectos de investigação é efectuada por
painéis de avaliadores independentes, envolvendo peritos nacionais e
estrangeiros de reconhecido mérito e idoneidade, constituídos para cada
concurso, por área científica, e compostos por um mínimo de três
elementos.”
Quais os critérios que levaram a que a constituição de um júri
supostamente independente apenas contemplasse linguistas do mesmo
paradigma de conhecimento e da mesma área disciplinar, sintaxe e
semântica, é algo de difícil compreensão para quem favorece princípios de
isenção e transparência neste tipo de avaliações. Sem qualquer comentário
relativamente a este concurso, à qualidade dos projectos submetidos, ao
teor desses mesmos projectos ou aos investigadores e às instituições
responsáveis pelas suas candidaturas, deixem-me só listar os títulos de cada
um dos projectos incluídos nos dois grupos, os 12 propostos para
financiamento e os 14 recusados. Note-se como, para além do denominador
comum aprovados, num caso, e reprovados, no outro, os projectos de cada
um dos grupos parecem ter outros denominadores comuns: com excepção
do projecto CARDS-Cartas Desconhecidas, do primeiro grupo, e dos

71
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

projectos Dicionário de Sufixos do Português (DISPOR) e Formalização


do Português, do segundo grupo, todos os restantes projectos se enquadram
ou nos pressupostos de uma linguística de cariz formalizante, sistémico e
de pendor cognitivo, ou nos pressupostos de uma linguística de cariz
antropológico e social, de descrição do uso. Nos termos chomskianos, os
projectos aprovados favorecem o estudo da língua-I, os recusados o da
lingua-E. Ao serviço da separação entre os projectos e, consequentemente,
à glória de uns e ao infortúnio dos outros encontra-se uma das
características fundamentais do discurso científico atrás referidas: o
elevado teor de especialização terminológica e o pendor abstracto das
formulações dos títulos dos projectos aprovados.

Projectos Aprovados
Analisador Morfológico Semântico
Aquisição do Português Europeu: recursos e resultados linguísticos
CARDS-Cartas Desconhecidas
Compreensão na leitura. Processamento de palavras, frases e textos.
Constituintes Silenciosos na Gramática do Português
Dicionário ortográfico e de pronúncias do português europeu
DUPLEX - Duplos e Expletivos na Sintaxe Dialectal do Português
Europeu
LEXICON - Dicionário de Grego-Português
O tempo e o modo em português
Padrões de Frequência na Fonologia do Português - Investigação e
Aplicações
Predicados complexos: tipologia e anotação de corpus (PREPLEXOS)
TAPA-PE - Teste de Avaliação da Produção Articulatória em Português
Europeu

Projectos Recusados
A Estrutura Idiomática da Língua Portuguesa
Bibliotecas e literacia, imaginários e identidades em sociedades de
fronteira: Guarda e Castelo Branco
Convergência e Divergência entre o Português Europeu e o Português
Brasileiro
Desenvolvimento de competências linguísticas e metalinguísticas em
contexto multicultural
Dicionário de Sufixos do Português (DISPOR)
Ex-votos do Alentejo: um estudo linguístico, portal para o cidadão

72
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Formalização do Português
Formas de tratamento em português europeu
Mudanças Linguísticas em curso em Alunos do Ensino Superior
Nomes vulgares da fauna e flora dos Açores
Observatório de Neologia do Português – ONP
Os repertórios de gestos emblemáticos nas comunidades de língua
portuguesa: Portugal e PALOP
PastiGe - Pastiche (d)e Géneros de texto
Textos, Turistas e interculturalidade na experiência turística em
Portugal

5. Conclusão
Como é óbvio, qualquer princípio de categorização tem por detrás
uma ideologia do assunto que gera essa categorização. Para alguns
linguistas, colegas meus, a enunciação da existência de uma dualidade
paradigmática no seio da linguística, assimetricamente constituída no
acesso aos sistemas de oportunidade e de poder, será algo que está longe de
corresponder a uma descrição factual da panorama da ciência linguística, e
apenas motivações ideológicas poderão explicar a insistência com que falo
deste assunto, esquecendo eles e elas que a sua própria posição sobre o
assunto também é ideologicamente motivada. Mas motivação ideológica
por motivação ideológica, eu pessoalmente prefiro a ideologia da
pluralidade e da diferença, pois considero que o conhecimento progride
mais por diferenciação e confronto do que por hegemonização de práticas e
pressupostos.
Nesse sentido, com o exemplo dos projectos de investigação, como,
aliás, com o exemplo dos cursos de licenciatura e das publicações, o que
prentendi demonstrar foi o modo como, uma vez instaurado, um regime de
verdade se encontra em constante exercício de hegemonização e de
controlo, mesmo que muitas vezes esse controlo esteja fora do seu domínio
directo. Mas aí, mais do que teórica, a questão é política, ou melhor, é do
domínio das políticas das teorias, e sobre isso já falei num outro contexto.

73
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Referências
Beaugrande, R. de (1998): Performative speech acts in linguistic theory: The rationality
of Noam Chomsky. Journal of Pragmatics, 29: 765-803.
Chomsky, N. (1965): Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, Mass.: The MIT
Press.
Chomsky, N. (1968): Language and Mind. New York: Harcourt Brace Jovanovich, Inc.
Chomsky, N. (1979): Language and Responsibility. New York: Pantheon Books.
Duarte, I. (2004): O problema da unificação em Linguística: a resposta generativista.
Actas do XIX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística,
Lisboa, 2003. Lisboa: APL, pp. 25- 44.
Fairclough, N. (1992): Discourse and Social Change. Cambridge: Polity press.
Fairclough, N. (2003): Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research.
London: Routledge.
Foucault, M. (1971): L’ordre du discours: Leçon inaugurale au Collège de France
prononcée de 2 décembre 1970. Paris: Gallimard.
Foucault, M. (1980): Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1972-
1977. Ed. by C. Gordon. New York: Pantheon Books.
Gouveia, C. A. M. (2006): A linguística e o consumidor: teoria, política e política da
teoria. Actas do XXI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de
Linguística, Porto, 2005. Lisboa: APL, pp. 427- 433.
Searle, John R. (1972): Chomsky Revolution in Linguistics. New York Review of Books,
18 (12 ), 29 de Junho.
Searle, John R. (2002): End of the Revolution. New York Review of Books, 49 (3 ), 28
de Fevereiro.
Smith, N. & Wilson, D. (1972): Modern Linguistics The Results of Chomsky's
Revolution.
Harmondsworth: Penguin Books.

74
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Espaços de verdade. A partir de Michel Foucault.


Ricardo Julião

No ano lectivo de 1973-1974 Foucault ministra um curso no Collège


de France com o título Le Pouvoir Psychiatrique durante o qual procura
executar uma arqueologia do saber psiquiátrico e uma genealogia tanto da
prática disciplinar, quanto da instituição hospitalar psiquiátrica. No decurso
dessa análise, mais precisamente na aula de 23 de Janeiro de 1974,
Foucault faz um desvio no seu excurso para realizar uma pequena história
da noção de verdade, “Alors, là, je voudrais ouvrir une parenthèse et insérer
une petite histoire de la vérité en général”.17 É sobre o conteúdo
apresentado nesse parêntesis que o nosso texto irá incidir. Gostaríamos de
apresentar como hipótese de trabalho que a distinção realizada pelo autor
entre verdade-demonstração e verdade-acontecimento poderá ter um papel
operativo para a filosofia da ciência ao realizar uma genealogia e
arqueologia das modalidades, espaços e actores legitimamente
reconhecidos para proferirem enunciados científicos verdadeiros.
Com este desvio, Foucault procurou inventariar duas séries da
história da verdade no pensamento ocidental de modo a tornar visível a
trama, e espessura, existente entre um regime de investigação científico,
anónimo e universal, e por outro lado, um regime experiencial, singular e
contextual, caracterizado por rituais específicos de produção de verdade.
De modo a melhor visualizar o seu contributo para a epistemologia e
história da ciência, começaremos por ilustrar quais as correntes
epistemológicas contemporâneas mais significativas na abordagem ao
problema do conhecimento e da verdade.

17
Foucault, Michel; Le Pouvoir Psychiatrique; Cours au Collège de France. 1973-1974, p. 233, Paris,
ed. Seuil/Gallimard, 2003.

75
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O problema do conhecimento é um tema central no pensamento


filosófico. A tradição filosófica considera o desejo de conhecer uma
característica constitutiva do ser humano, Aristóteles enuncia-o logo no
primeiro livro da sua Metafísica. Esse desejo não é um problema, o
problema surge quanto ao estatuto do conhecimento e no modo correcto de
o adquirir. A partir dessa problemática diferentes questões se levantam. Por
um lado a questão do estado cognitivo adequado ao estatuto do
conhecimento, por outro a questão do conteúdo do que é conhecido. Em
ambas atitudes existe a pressuposição de base de uma correlação natural
entre o sujeito e o conhecimento. No primeiro caso é colocado na primeira
linha de investigação a questão da crença e convicção do estado cognitivo
do sujeito, no segundo é trazido para a linha da frente a questão do
conteúdo de verdade: depende este do estado cognitivo do sujeito ou é uma
característica objectiva independente do sujeito? Dentro destas duas
grandes linhas de investigação vários matizes foram surgindo, dos quais
podemos salientar como centrais na epistemologia contemporânea sobre a
questão da verdade, os seguintes: uma linha de investigação comummente
designada de teoria da verdade como correspondência, uma outra definida
como coerentista e uma última de orientação pragmática. Sintetizemos um
pouco cada uma delas. De salientar que nenhuma destas posições coloca
em causa a natural adequação entre o sujeito de conhecimento e o próprio
conhecimento, isto é, a existência de um desejo e intimidade natural entre
sujeito e conhecimento.
A posição epistemológica que considera a verdade como
correspondência parte do suposto da existência de um mundo independente
do sujeito ao qual se pode ter acesso através de juízos que ligam os
conceitos à realidade. A actividade central nesta concepção é o juízo. A
rectidão do juízo na relação que este estabelece entre os conceitos e o
mundo determina o conteúdo de verdade do que é conhecido. Por outro

76
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

lado, na concepção de verdade coerentista o elemento central é a estrutura


lógica dos enunciados e a relação que é estabelecida entre cada enunciado
de uma proposição, ou conjunto de proposições, de cariz científico. A
coerência e consistência interna do conjunto de enunciados geram a
verdade das proposições. Por último, a versão pragmatista da verdade
caracteriza-se pela capacidade operativa e utilitária desta: são verdadeiros
os conteúdos, ou enunciados, que satisfação as expectativas que se
encontrem em apreço numa determinada linha de investigação. Tanto na
posição coerentista quanto pragmatista da verdade, a existência de uma
realidade independente do sujeito não é um problema central, visto o
conteúdo de verdade do conhecimento não depender da independência
desta relativamente a este.18
Por outro lado, e numa direcção distinta, Foucault distingue o desejo
natural de conhecimento da vontade de saber. Recuperando algumas das
afirmações de Nietzsche, onde este considera o conhecimento não tanto um
instinto natural do ser humano assente numa afinidade electiva entre sujeito
e conhecimento, mas antes como um epifenómeno resultante do confronto
entre diferentes instintos humanos que visam estabilizar e controlar a
realidade caótica do mundo, Foucault analisa a história do conhecimento e
da verdade a partir das categorias políticas do poder, da estratégia e das
tácticas, pois considera que o conhecimento não é desejado por si mesmo,
mas antes, deriva de elementos extra-cognitivos, mais precisamente, de
elementos jurídico-políticos de exercício de poder. Nesta linha de
interpretação, Foucault apresenta uma leitura da história da verdade neste
curso de 1973-1974 assente em duas tecnologias de produção de verdade: a
verdade-demonstração e a verdade-acontecimento.
A verdade-demonstração é um conhecimento assente na figura
formal do inquérito e da investigação, enquanto a verdade-acontecimento é
18
Para um aprofundamento destas diferentes linhas de investigação epistemológicas, ver Jonathan
Dancy, Epistemologia Contemporânea, Edições 70, tradução de Tereza Louro Pérez, Lisboa, 1990.

77
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

uma verdade experiencial, uma prova pela qual o sujeito passa de modo a
se produzir a verdade sobre ele próprio ou o tema em apreço.19 A primeira
destas duas séries encontra-se associada ao conhecimento científico e a
segunda ao conhecimento das ciências do homem. É precisamente sobre a
função do conhecimento, e por conseguinte sobre o conteúdo de verdade do
mesmo na história do pensamento ocidental, que Foucault se distancia da
interpretação tradicional. Na série verdade-demonstração, a verdade
encontra-se por todo o lado aguardando ser descoberta ou revelada. O
factor essencial nesta tecnologia de acesso à verdade é o sujeito possuir os
instrumentos correctos para investigá-la, as categorias necessárias para
pensá-la e a linguagem adequada para enunciá-la. Possuindo o sujeito estes
requisitos, a verdade pode ser alcançada. O sujeito desta verdade é, por
conseguinte, universal e anónimo, ahistórico e totalmente racional, assim
como a verdade que aguarda em todo o lado ser descoberta. Deste modo,
nenhuma realidade, assim como nenhuma verdade sobre a mesma, se
encontra excluída a priori da investigação científica. Por conseguinte, a
principal característica do conhecimento científico, e da noção de verdade a
ele associada, na leitura de Foucault é a geografia deste ser global.

...um saber como aquele que denominamos ciência, é um saber


que supõe a existência por todo o lado, em todos os lugares e tempos,
da verdade... para o saber científico existe, com certeza, momentos
onde a verdade se capta mais facilmente, pontos de vista que
permitem aperceber mais facilmente, ou com mais firmeza, a verdade;
existem instrumentos para a descobrir onde ela se esconde, onde ela
se recolhe. Mas em geral, para a prática científica, existe sempre a
verdade: a verdade encontra-se sempre presente em todas as coisas,
19
Estas duas séries da história da verdade encontram-se temazatizados de um modo mais desenvolvido, e
usando uma terminologia um pouco diferente, num conjunto de conferências proferidas por Foucault na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de Maio de 1973, com o título A
verdade e as formas jurídicas. Utilizámos a tradução realizada por Roberto Machado e Eduardo Morais
para a Nau Editora, 3ª edição, Rio de Janeiro, 2002.

78
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ou sob todas as coisas; podemos colocar a questão da verdade a


propósito de tudo e mais alguma coisa.20

Por outro lado, a tecnologia de verdade-demonstração encontra de


modo mais premente, segundo Foucault, o seu campo de aplicação a partir
do século XII com a estatização dos modos de inquérito e investigação
levados a cabo nos processos disciplinares contra hereges, criminosos e
todo o tipo de suspeitos transgressores da normalidade. Esses processos de
investigação tinham como condição de possibilidade a ausência de prova
concreta ou testemunha ocular do acontecimento em litígio, pelo que todo
um mecanismo de fiscalização e de recolha de informação politicamente
orientado se foi insidiosamente instituindo. Este procedimento determinou
uma certa forma de saber e da verdade, permitiu a formulação de regras de
investigação precisas e um alargamento geográfico totalizante na procura
da verdade. Trata-se de uma metodologia antiga assente na demonstração
necessária, de raiz aristotélica, e alegadamente desinteressada quanto a aos
seus objectivos, que acabou por ser absorvida por tácticas e estratégias de
poder jurídico-político. Ao invés de se encontrar ao serviço do amor pelo
conhecimento, a tecnologia da verdade-demonstração encontra-se ao
serviço de uma racionalidade política de longo alcance, sem projecto
absolutamente definido, mas amplamente produtivo de dispositivos de
inquérito e investigação.
Ao contrário da verdade-demonstração, a verdade-acontecimento não
se caracteriza por ser uma verdade universal, disponível em toda a
realidade, sempre à mão, passível de ser descoberta em qualquer objecto e

20
“... un savoir comme celui que nous appelons scientifique, c'est un savoir qui suppose, au fond, qu'il y
a partout, en tout lieu et le temps, de la vérité... c'est que pour le savoir scientifique il y a bien sûr des
moments où la vérité se saisit plus facilement, des points de vue qui permettent d'apercevoir plus
aisément ou plus sûrement la vérité; il y a des instruments pour la découvrir là où elle se cache, là où elle
est reculée ou enfouie. Mais, de toute façon, pour la pratique scientifique en général, il y a toujours de la
vérité; la vérité est toujours présente en toute chose ou sous toute chose, à propos de tout et de n'importe
quoi l'on peut poser la question de la vérité.” Le Pouvoir..., p. 235; tradução minha

79
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

por qualquer sujeito apetrechado com os requisitos acima indicados; é, pelo


contrário, uma verdade contextualizada e local, à qual o acesso é restrito e
onde apenas um pequeno grupo de iniciados numa tecnologia precisa e com
treinos específicos, tanto éticos quanto técnicos, pode aceder. Podemos
afirmar que nesta série da verdade, a sua geografia é local, a sua
metodologia assenta num ritual, e a verdade apresentada é mais provocada
do que encontrada. De modo a captá-la é necessário criar em seu redor uma
atmosfera específica que, segundo Foucault, é da ordem da guerra, e onde a
relação estabelecida entre sujeito e objecto não é da ordem do
conhecimento, mas de poder, de dominação, de controlo. Ao ser, idêntico e
universal da verdade-demonstração, contrapõe Foucault o acontecer,
descontínuo, plural e local, da verdade-acontecimento.

Podemos denominar essa verdade descontínua, verdade-


relâmpago, por oposição à verdade-céu que se encontra presente
universalmente sob a aparência das nuvens. Temos então duas séries
na história ocidental da verdade. A série da verdade-descoberta,
constante, constituída, demonstrada, e uma outra série que é a série
da verdade que não é da ordem daquilo que é, mas da ordem daquilo
que aparece, uma verdade dada, não na forma da descoberta mas, na
forma do acontecimento, uma verdade que não é constatada, mas que
é suscitada, perseguida: mais produzida do que apofântica; uma
verdade que não se dá pela mediação de instrumentos, mas que se
provoca por rituais, que se capta através de manhas, que se apreende
segundo as ocasiões. Não se trata para esta [tecnologia de] verdade
de um método, mas de estratégia. Entre esta verdade-acontecimento e
aquilo que ela apreende, a relação não é da ordem sujeito/objecto.
Por conseguinte não é uma relação de conhecimento, é antes uma
relação de choque, é uma relação da ordem do relâmpago, do clarão.
É uma relação da ordem da caça, uma relação em todo o caso

80
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

arriscada, reversível, belicosa; é uma relação de dominação e de


vitória, uma relação não de conhecimento, mas de poder.21

É a história da trama que se constituiu entre estas duas séries que


Foucault diagnostica neste pequeno parêntesis. Como a série da verdade-
demonstração sedimentou-se e foi adoptada pelo pensamento ocidental
como o valor cognitivo central no pensamento ocidental, Foucault
direcciona o olhar para a série verdade-acontecimento levantando os
elementos arcaicos que esta mantém na tecnologia da verdade-
demonstração. A sua tarefa consiste, por conseguinte, em

Mostrar que a demonstração científica no fundo não é senão


um ritual, que o suposto sujeito universal de conhecimento na
realidade não passa de um indivíduo historicamente qualificado
segundo um certo número de modalidades e que, na realidade, a
descoberta da verdade é uma certa modalidade de produção de
verdade; rebater, deste modo, aquilo que se dá como uma verdade de
constatação ou como uma verdade de demonstração, sobre o solo dos
rituais, o solo das qualificações do indivíduo cognoscente, sobre o
sistema da verdade-acontecimento; é isto que designo arqueologia do
saber.
Por outro lado, existe um outro movimento a realizar, o de
mostrar como, no decurso da nossa história,..., e de um modo cada
21
Cette vérité discontinue, on pourrait l'appeler la vérité-foudre par opposition à la vérité-ciel qui, elle,
est universellement présent sou l'apparence des nuages. L'on a donc deux séries dans l'histoire
occidentale de la vérité. La série de la vérité découverte, constante, constituée, démontrée, et puis une
autre série, qui est la série de la vérité qui n'est pas de l'ordre de ce qui est, mais qui est de l'ordre de ce
qui arrive, une vérité, non pas donnée dans la forme de la découverte mais dans la forme de
l'événement, une vérité qui n'est pas constatée mais qui est suscitée, traquée: production plutôt
qu'apophantique; une vérité qui ne se donne pas par la médiation d'instruments, mais qui se provoque
par de rituels, qui se capte par des ruses, qui se saisit selon des occasions. Il ne sera donc pas question
pour cette vérité-là de méthode, mais de stratégie. Entre cette vérité événement et celui qui en est
saisit, qui la saisit ou qui en est frappé, le rapport n'est pas de l'ordre de l'objet au sujet. Ce n'est pas,
par conséquent, un rapport de connaissance; c'est plutôt un rapport de choc; c'est un rapport de l'ordre
de la foudre ou de l'éclair; c'est un rapport de l'ordre de la chasse, un rapport en tous cas risqué,
réversible, belliqueux; c'est un rapport de domination et de victoire, un rapport, donc, non pas de
connaissance, mais de pouvoir. Le Pouvoir..., p. 237; tradução minha.

81
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vez mais acelerado depois da Renascença, a verdade-conhecimento


adquiriu as dimensões que sabemos e que podemos hoje verificar;
mostrar como é que ela colonizou e parasitou a verdade-
acontecimento, como é que acabou por exercer sobre esta uma
relação de poder que é provavelmente irreversível, que é neste
momento, em todo caso, um poder dominante e tirânico; como é que
essa tecnologia da verdade demonstrativa colonizou efectivamente, e
exerce actualmente, uma relação de poder sobre a verdade que se
caracteriza por uma tecnologia ligada ao acontecimento, à estratégia,
à caça. É a isto que podemos denominar genealogia do conhecimento,
o reverso histórico indispensável à arqueologia do saber. 22

Podemos afirmar que Foucault considera como categoria


fundamental na produção da verdade não tanto o sujeito portador de
categorias universais, mas antes o espaço de luta onde o sujeito se encontra,
mais concretamente, os espaços que esse sujeito habita e por onde circula.
É o espaço que determina a verdade e não o sujeito. De certo modo a
verdade é um atributo espacial, local. Diferentes espaços, diferentes
verdades, e por conseguinte, diferentes sujeitos. Não é o olhar do sujeito
sem espaço e tempo, fora da história e das suas contingências, mas antes o
espaço temporalmente determinante, aberto a ocasiões propícias, saturado
de estratégias e manhas que configura a produção de uma verdade exterior

22
Montrer que la démonstration scientifique n'est au fond qu'un rituel, montrer que le sujet supposé
universel de la connaissance n'est en réalité qu'un individu historiquement qualifié selon un certain
nombre de modalités, montrer que la découverte de la vérité est en réalité une certaine modalité de
production de la vérité; rebattre ainsi ce qui se donne comme vérité de constatation ou comme vérité
de démonstration, sur le socle des rituels, le socle des qualifications de l'individu connaissant, sur le
système de la vérité-événement, c'est cela que j'appellerai l'archéologie du savoir. Et puis, il y a un
autre mouvement à faire, qui serait de montrer comment précisément, au cours de notre histoire, au
cours de notre civilisation, et d'une manière de plus en plus accélérée depuis la Renaissance, la vérité-
événement, comment elle a fini par exercer sur elle un rapport de pouvoir dominant et tyrannique,
comment cette technologie de la vérité démonstrative a effectivement colonisé et exerce maintenant
un rapport de pouvoir sur cette vérité dont la technologie est liée à l'événement, à la stratégie, à la
chasse. C'est cela que l'on pourrait appeler la généalogie de la connaissance, envers historique
indispensable à l'archéologie du savoir. Le Pouvoir..., pp. 238 – 239.

82
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ao próprio sujeito. Esse olhar necessita de um treino23 específico para a


captar, de estratégias para a apreender, de um local para a receber, de
tácticas para a circunscrever e produzir. Existe, por conseguinte, uma co-
pertença entre sujeito e verdade: tanto a verdade é produzida por um
conjunto de tácticas e estratégias, quanto o sujeito é determinado por estas.
Se a tradição filosófica pensou o sujeito como intrinsecamente capaz de
verdade, Foucault considera a verdade intrinsecamente produtora de
sujeitos. Desse modo o local onde a verdade é enunciada, ou visualizada, o
sujeito que a enuncia e os modos de a tornar visível, isto é, as técnicas,
estratégias e encenações para a apresentar, são os momentos centrais na
constituição da verdade. Como exemplo desta relação, Foucault apresenta o
caso da histeria e da loucura. Por um lado, estas duas patologias surgem
cientificamente determináveis a partir do momento em que se constrói um
espaço específico onde possam ser visualizadas, por outro o sujeito
científico (o médico) que as enuncia como verdadeiras doenças possui um
treino específico do “olhar” para as enunciar e as apreender, assim como o
sujeito patológico (o paciente) vê agregada a si uma verdade construída e
encenada. Nesta relação de poder vai-se construindo uma subjectividade, a
do paciente, que vê “colada” a si uma patologia, um desvio, cientificamente
justificada. Desse modo passa a reconhecer-se como portador de uma
doença que o identifica no mais íntimo de si mesmo. Subjectividade
científica e patológica. Objectividade da doença e do sujeito patológico.
Com esta análise Foucault tenta apresentar que a loucura, tal como a
conhecemos e apreendemos, surgiu num determinado espaço que se
encontra temporalmente determinado. Sem a construção desse espaço,
assim como do sujeito que o habita erraticamente e do sujeito que sabe a

23
de virtudes epistémicas, como Lorraine Daston e Peter Galison denominam o treino e actividade do
cientista de modo a objectivar um conhecimento verdadeiro. vide Lorraine Daston & Peter Galison,
Objectivity, pp. 39-42. Zone Books, New York, 2007.

83
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

verdade dessa errância, não haveria um conteúdo de verdade científico,


justificação necessária para futuras acções políticas de terapia globalizada.
Como conclusão podemos afirmar que, para Foucault, a verdade
científica não se encontra arredada das relações de poder, antes é um
produto destas:

a “verdade não existe fora do poder ou sem o poder... A


verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de
verdade: isto é, o tipo de discursos que ela acolhe e faz funcionar
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são
valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm
o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”24

24
Foucault, Michel, Verdade e Poder, in Microfísica do Poder; tradução de Lilian Holzmeister e
AngelaLoureiro de Souza. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado, Edições
Graal, Rio de Janeiro, 1979.

84
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Pensar para além da verdade. A ficção na história, na


sociedade, na filosofia.
Eduardo Pellejero25

Não, este mau gosto, esta vontade de verdade,


de «verdade a qualquer preço», esta loucura
juvenil no amor pela verdade desgosta-nos:
somos demasiado experimentados para tal,
demasiado sérios, demasiado alegres,
demasiado escaldados, demasiado profundos...
Já não acreditamos que a verdade continue a
ser verdade quando se correm os véus; vivemos
demasiado para acreditar nisto.
Nietzsche

A sobredeterminação da filosofia pela vontade de verdade remonta a


Platão. No livro X da República tem lugar a cena originária de uma história
de exclusões, que começa com a expulsão dos falsários da cidade. O
carácter ficcional ou mimético da poesia, ameaça causar estragos nas
almas dos homens e induzir a desagregação do corpo social. A ficção está
longe da verdade, e isso para Platão não pode pressagiar nada de bom.
O filósofo teme nos falsários um inimigo poderoso, e na ficção uma
força subversiva irredutível. A fundação da cidade pelo filósofo,
portanto, implica, em nome da verdade, a excomunhão dos poetas e dessa
potência do falso que Platão não entende, ou não quer entender, mas que
certamente não menospreza do ponto de vista da sua potência política.
E assim começa esta história.
O questionamento da verdade como valor, contudo, e muito
especialmente como valor filosófico, não desconhece um lugar importante
no pensamento contemporâneo. Prolongamento inevitável do projecto
25
Pós-doutorando, CFCUL.

85
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

crítico da modernidade, devemos a Nietzsche o haver assentado as bases


dessa problematização, que remete a verdade à vida, invertendo a escala de
valores e desfazendo a subordinação acostumada da vontade e do
pensamento ao verdadeiro.
Depois de Nietzsche, continuarão a existir a posteriori o verdadeiro
e o falso, mas já não como valores absolutos, senão apenas como
expressões de uma vida mais ou menos intensa, mais ou menos gregária,
mais ou menos artística. Isto é, a verdade deixará de ser algo em si, algo
incondicionado, absoluto ou universal; estará a partir de então sujeita ao
devir.
Neste sentido, por exemplo, Foucault vai propor uma história da
verdade, indicando dos níveis de instauração desta como valor: 1) em
primeiro lugar, a vontade de verdade impõe sistemas de exclusão
(históricos)26, apoiando-se sobre suportes institucionais (práticas
pedagógicas, sistemas de edição, bibliotecas, laboratórios)27; e 2) em
segundo lugar, a vontade de verdade é elevada, pelo discurso filosófico, a
um ideal transcendente ou transcendental (como lei do discurso),
fortalecendo as formas de controlo discursivo historicamente determinadas
pelas formas de exclusão28. Isto é, a verdade, como produto de uma relação
de forças, dá lugar – de facto – a um discurso que a legitima – de direito –,
num círculo vicioso mas efectivo, que projecta os seus efeitos ao longo da
história material e intelectual do ocidente.
Independentemente das problematizações, reavaliações e
desconstruções da própria ideia de verdade às quais há dado lugar29, a
crítica abre assim o caminho para um novo paradigma de pensamento
conceptual, que alenta, não a procura da verdade, senão a produção de

26
Foucault, L’ordre du discours, París, Gallimard, 1986; p. 15.
27
Ibidem., pp. 20-21.
28
Ibidem., pp. 47-48.
29
Cf. Jaspers, Nietzsche, trad. castellana de Emilio Estiú, Buenos Aires, Sudamericana, 1963; pp. 257-
339.

86
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ficções (regulativas, heurísticas, críticas, vinculadoras, etc.). Nietzsche não


põe em questão as noções tradicionais de verdade e racionalidade sem pôr
ao mesmo tempo em questão a própria concepção da filosofia na sua
tradição histórica.
Para além da verdade enquanto horizonte insuperável, as categorias
do pensamento aparecem como enganos necessários para a vida, metáforas
sedimentadas – cunhadas face a uma necessidade – que têm (ou tiveram)
utilidade, e constituem (ou constituíram) instrumentos para se apoderar de
algo. De repente, a filosofia já não trata da verdade, senão de ficções (cito
Nietzsche): «Parménides disse “que não se pensa no que não é”; nós
estamos no outro extremo, e dizemos: “o que se pode pensar, com
segurança, terá que ser uma ficção”»30.
Deste modo, o filósofo reconhece em si o poeta que expulsara
outrora da cidade e procura desfazer esse caminho sem angústias; retorna à
aparência, mas na aparência já não há nada que lamentar (nenhuma
ausência, nenhuma carência, nenhuma negatividade). A ilusão referencial
desfez-se e já não dispõe, no exercício da filosofia, de mais critério que a
intensificação e o debilitamento da vida que as ficções produzidas possam
vir a propiciar.
Neste mesmo sentido, a filosofia devém mais autónoma que nunca,
mais afirmativa que nunca, mais alegre, se é possível, por isso mesmo,
também.

Talvez pudéssemos ver (enviesadamente) um novo avatar desta


crítica da vontade de verdade no anúncio do fim dos grandes relatos que
Lyotard realizava em 1984. De repente, tanto os enunciados científicos
como as instituições que regem o laço social viam oscilar o solo sobre o

30
Nietzsche, KSA 6, 22 (Jaspers, op. cit., p. 318).

87
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

qual se levantavam há alguns séculos, reconhecendo nos meta-relatos que


as diferentes filosofias da história lhes ofereciam apenas uma forma
privilegiada da ficção. Na mesma medida, a verdade e a justiça viam
dissolver-se as suas referências fundamentais em nuvens de jogos
narrativos incomensuráveis.
Tal como o anúncio da morte do homem por Michel Foucault,
porém, isto não significava o fim destes relatos enquanto que tais, nem o do
seu funcionamento efectivo dentro das sociedades contemporâneas, senão
apenas o fim da validade destes relatos como princípios imediatos de
legitimação, isto é, como reguladores universais da acção e do pensamento.
Lyotard notava que, no meio da crise e contra o movimento de
desregulação que a mesma comportava, o poder tentava a qualquer custo
forçar «a comensurabilidade dos elementos e a determinabilidade do todo».
Os grandes relatos não só não iriam deixar pacificamente o campo de
batalha, senão que, pelo contrário, iriam ganhar uma força inesperada nos
anos seguintes (da elevação a «paradigma insuperável do capitalismo
reinante» à declaração de uma «guerra de civilizações», passando muito
especialmente pelo renovado projecto da «unificação europeia»).
Algo, contudo, tinha mudado para sempre. Os novos relatos de
legitimação já não iriam poder reclamar-se da necessidade (e da
veracidade) da que gozavam no contexto das filosofias da história. Isto é,
poderiam reger uma sociedade de facto, mas nunca por direito.

A crítica dos grandes relatos, contudo, não implica o


desconhecimento da importância do trabalho da expressão para a
intensificação e a estilização da vida. O pensamento em geral e a filosofia
em particular encontrarão um espaço para a luta sobre este preciso terreno,
propondo ficções alternativas às ficções hegemónicas.

88
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Quero dizer que o pensamento apontará a partir de certo momento à


construção de um universo antagónico a esse universo de ficções maiores
que o poder produz e reproduz para governar.

Longe de constituir uma prática a-política ou um discurso errado, a


ficção trava uma relação complexa com a verdade e atravessa a realidade
no seu conjunto, determinando aspectos centrais das nossas sociedades
contemporâneas.
Neste sentido, Jacques Rancière chega a falar de uma «política-
ficção», e recorda que, entre as causas que produzem o movimento do
corpo político, Hobbes colocava em primeiro lugar frases como «há que
escutar a voz da consciência antes que a da autoridade» ou «é justo
suprimir os tiranos», expressões que não designam propriamente nada, mas
que armam, por exemplo, as mãos dos tiranicidas31. Indo mais longe,
Rancière chega a afirmar que só há história (acontecimentos políticos,
revoltas, revoluções) porque os homens se reúnem e dividem de acordo a
nomes, porque se chamam a si próprios e chamam os outros com nomes
que não têm «a menor relação» com os conjuntos de propriedades que
supostamente designam, isto é, porque procedem a actuar politicamente
guiando-se por ficções32.
Trata-se de uma ideia que nos lembra com alguma felicidade o
conceito bergsoniano de fabulação. Bergson via no fundamento das
sociedades humanas, com efeito, não uma ideia racional ou uma
representação adequada, senão uma série de representações fictícias
(deuses da cidade, antepassados familiares, etc.), que pela sua intensidade

31
Cf. Jacques Rancière, Les noms de l’histoire: Essai de poétique du savoir, Paris, Seuil, 1992; pp. 43-
46.
32
Ibidem., p. 74.

89
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

teriam levado os indivíduos a pensar noutra coisa que em si próprios e a


agenciar-se como grupo.
Oportunamente, Deleuze extrairá da lição antropológica de Bergson
todos os corolários políticos. Livre da sua sujeição à verdade, o pensamento
redescobre a ficção como uma força entre outras, e, ainda melhor, na ficção
reconhece a sua própria potência expressiva, para além da representação
objectiva do real.
Do que se trata então é de trabalhar pela emergência de
agenciamentos colectivos inéditos, que respondam a novas possibilidades
de vida, das quais o pensamento desejaria ser a expressão. Trata-se de
propiciar a aparição de forças sociais concretas, correspondentes a uma
nova sensibilidade e inspiradas por esta. E trata-se de fazê-lo, já não através
da consciencialização de um povo ou de uma classe mais ou menos
comprometida, senão trabalhando directamente, através dos conceitos, na
construção de novas formas de agenciamento da multidão, das que se
espera que comportem mudanças a todos os níveis.
Não é questão de escapar do mundo que existe (nem pela destruição
da verdade da qual se reclama nem pela postulação de uma verdade
superior), senão de criar as condições para a expressão de outros mundos
possíveis, os quais, pela introdução de novas variáveis, venham a
desencadear a transformação do mundo existente. Como uma
materialização privilegiada do pensamento político, a filosofia aparece
assim como um agenciamento de enunciação colectiva, com relação a um
povo que está ausente, que falta, isto é, para uma congregação da multidão
segundo novas linhas e novos objectivos.

É neste mesmo sentido que o problema da ficção se torna tão


importante para a redefinição do que significa pensar na filosofia de

90
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Foucault. Com efeito, o próprio Foucault assume de bom grado que na sua
vida não escreveu outra coisa que ficções. Mas com isto não pretende dizer
que tenha estado sempre fora da verdade, que tenha errado
sistematicamente, senão que fez trabalhar de certo modo a ficção na
verdade, que tratou de induzir efeitos de verdade com um discurso de
ficção, ou seja, com um discurso que não se regia pelos critérios do
verdadeiro de uma época dada.
Isto é, Foucault procura suscitar, no meio dos discursos que se
reclamam da verdade, Foucault procura ficcionar algo que não existe ainda.
Por exemplo, ficciona-se a história a partir de uma realidade política que a
torna verdadeira. Ou ficciona-se uma política que não existe ainda a partir
de uma verdade histórica. Nesta medida, mesmo fazendo história, mesmo
fazendo filosofia, Foucault sente que o que faz implica uma ruptura
fundamental, não se reconhecendo nem na tradição da história, nem na
tradição da filosofia. Foucault dizia: «não me gabo de fazer uma filosofia
verdadeira (...) eu estaria antes no simulacro da filosofia»33.
Agora, isto não significa que Foucault se considere um literato.
Digamos que pratica uma espécie de ficção-filosófica, uma espécie de
ficção-histórica ou de ficção-crítica (assim como Deleuze dizia praticar
uma espécie de ficção-científica) (cito Foucault): «De certa maneira, eu sei
muito bem que o que eu digo não é verdade. Mas o meu livro teve um
efeito sobre a maneira na qual as pessoas percebiam a loucura. E, então, o
meu livro e a tese que desenvolvi têm uma verdade na realidade de hoje”34.
33
Foucault, Langage et littérature, Conférence à l’Université Saint-Louis, Bruxelles, 1964, 23 pp. (Texto
inédito): «Or, cet épaississement, cette multiplication des actes critiques s’est accompagné d’un
phénomène qui est un phénomène presque contraire. Ce phénomène c’est, je crois, celui-ci: le personnage
du critique, de «l’homo criticus», qui a été inventé à peu près au XIX e siècle, entre Laharpe et Sainte-
Beuve, est en train de s’effacer au moment même où se multiplient les actes de critique. C’est-à-dire que
les actes de critique, en proliférant, en se dispersant, s’égaillent en quelque sorte, et vont se loger, non
plus dans des textes qui sont préposés à la critique, mais dans des romans, dans des poèmes, dans des
réflexions, éventuellement dans des philosophies. Les vrais actes de la critique, il faut les trouver de nos
jours dans des poèmes de Char, ou dans des fragments de Blanchot, dans des textes de Ponge, beaucoup
plus que dans telle ou telle parcelle de langage qui aurait été, explicitement, et par le nom de leur auteur,
destinés à être des actes critiques».
34
Foucault, Dits et Écrits III, p. 801.

91
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Como víamos, a verdade não era, para Nietzsche, algo dado que
bastaria descobrir, senão algo que tem que ser criado e que proporciona
nome a um processo que, em si mesmo, não tem fim. Ficcionar uma
verdade constitui, neste sentido, uma determinação activa do pensamento
(ao contrário da tomada de consciência de algo que em si mesmo seria fixo
e determinado).
E não é outro o sentido que o trabalho crítico e filosófico tem para
Foucault (cito): «Eu trato de provocar uma interferência entre a nossa
realidade e o que sabemos da nossa história passada. Se resulta, esta
interferência produzirá efeitos reais sobre a nossa história presente. A
minha esperança é que os meus livros ganhem a sua verdade uma vez
escritos, e não antes. Exemplo. «Escrevi um livro sobre as prisões. Tratei
de pôr em evidência certas tendências na história das prisões. “Uma
tendência apenas”, poderiam repreender-me: “Logo, o que diz não é
completamente verdade”. Está bem. (...) Mas faz dois anos, na França,
houve uma agitação nas prisões, os detidos revoltaram-se. Em duas destas
prisões, os prisioneiros liam o meu livro. Da sua cela, alguns detidos
gritavam o texto do meu livro aos seus camaradas. Eu sei que pode soar
pretensioso, mas isto é uma prova de verdade – de verdade política,
tangível, de uma verdade que só começou a ser tal uma vez que o livro foi
escrito»35.

O risco da ficção volta a assombrar o trabalho historiográfico na obra


de Michel de Certeau. Considerando a historiografia como um misto de
ciência e de ficção, Certeau está interessado (como no caso de Rancière)
em reinscrever a historiografia num género, ou, melhor, numa actividade
genérica mais ampla: a «dos relatos que explicam o-que-passa». Deste

35
Foucault, Dits et Écrits III, p. 807.

92
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ponto de vista, a ficção e a historiografia comungam numa actividade


social comum: reparar os desgarros entre o passado e o presente, assegurar
um sentido que supere as violências e as divisões do tempo, isto é, “criar
um teatro de referências e de valores comuns que garantam ao grupo uma
unidade e uma comunicabilidade simbólicas”36. Repolitização da
historiografia, então (logo, das ciências em geral), que apostando à
confrontação da historiografia com a sua própria história, procura desfazer
o caminho de progressiva diferenciação que, a partir do século XVIII, veio
separar as «letras» das «ciências», vendo-se cindida «entre os dois
continentes aos quais estava ligado o seu papel tradicional de ciência
“global” e de conjunção simbólica social»37 (ruptura institucionalizada pela
organização universitária no século XIX).
Mas ao mesmo tempo reivindicação da ficção, que sendo
reconhecida como a parte reprimida deste discurso, vê recuperar certa
legitimidade no campo da historiografia que assombrava até então.
Os nomes que demarcam este duplo movimento, que deita abaixo a
muralha «que as ciências positivas estabeleceram entre o “objectivo” e o
imaginário, ou seja, entre o que controlavam e o “resto”»38, são para
Certeau os de Bentham, Freud e Foucault.
Já falamos de Foucault. Jeremy Bentham, por seu lado, pertence a
uma das linhas mais prolíferas da tematização filosófica da ficção (linha
que Wolfgan Iser remonta ao empirismo de Bacon, de Locke e de Hume, e
à que darão consistência e continuidade – já sobre outros horizontes
filosóficos – os trabalhos de Hans Vaihinger e de Nelson Goodman).

36
Michel de Certeau, Histoire et psychanalyse: entre science et fiction, Paris, Gallimard, 2002; p. 60.
37
Ibidem., p. 81.
38
Ibidem., p. 107.

93
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Desta perspectiva, há uma inversão na atitude da ciência em direcção


às ficções: de uma forma de decepção passa a ser um constituinte básico do
conhecimento 39. E, se até finais do século XVIII a crítica da ficção era um
mecanismo de defesa próprio de toda a epistemologia empírica (Bacon), e
em geral a ficção era vista como «um devir louco do princípio de
associação» (Locke), a ficção jogava porém um papel prático nos sistemas
filosóficos, mesmo que negativo, contribuindo para solidificar a
normalidade por confrontação com o que era considerado uma patologia40.
Mais positivo é o papel que a ficção jogava em Hume, para quem, na
medida em que constituem formas de conhecimento que poderiam
plausivelmente ser postuladas mas não satisfatoriamente provadas, as
premissas epistemológicas aparecem como «ficções da mente» (o princípio
de causalidade, por exemplo), o que lhe permite pôr em causa o empirismo
epistemológico da sua época.
Um papel não menos importante tem a ficção para Bentham, para
quem a crítica das ficções (legais) é dirigida, menos contra a ficção em si,
que contra certos modos nos quais esta é usada (pelos advogados, por
exemplo). Em si mesma, a ficção não só não é estranha ao real , senão que
o sobredetermina sobre o plano da praxis, na medida em que, primeiro, os
corpos reais nunca são dados de modo puro, mas sempre em estado de
condicionalidade (condições que Bentham denomina entidades fictícias), e,
segundo, a ficção inclui também todas as formas da modalidade (para
Bentham, mesmo a existência é «uma entidade fictícia; está em qualquer
entidade real; e qualquer entidade real está nela»)41.

39
Iser, The fictive and the Imaginary. Charting Literary Anthropology, The Johns Hopkins University
Press, Baltimore – London, 1993; p. 87
40
Ibidem., p. 111.
41
Ibidem., p. 126: “O que acontece no curso da realização é que a realidade é gradualmente substituída
pelo mundo. A realidade é dada; o mundo é feito. O mundo vem ao ser por obra das obras, numa
unidade coerente que envolve a realidade física dos corpos”.

94
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O direito de cidadania da ficção na república filosófica, em todo o


caso, volta a ser reclamado pela filosofia de Hans Vaihinger, para quem,
longe de se opor à realidade, a ficção interfere com a realidade, em ordem a
servir um propósito que, por sua vez, não é parte da realidade; isto é, as
ficções «de um ponto de vista teorético, são vistas directamente como
falsas, mas são justificadas e podem ser consideradas ‘praticamente
verdadeiras’ porque realizam certos serviços para nós». Vaihinger abre a
sua Filosofia do como se postulando a origem das ideias nas necessidades
éticas e intelectuais, «como ficções úteis e valiosas para a humanidade» e,
neste sentido, propõe uma «fenomenologia» da consciência idealizante ou
ficcionalizante
Vaihinger propõe, de facto, uma lei de deslocamentos eidéticos que
dão conta do funcionamento da razão, onde a ficção joga as vezes de
elemento desestabilizador dos dogmas assim como de espaço de variação
das hipóteses, permitindo uma partilha graduada da estrutura da ideia para
além qualquer ossificação possível.

Em resumo, vemos que do «como se» kantiano aos múltiplos usos de


«entidades fictícias» em Bentham, passando pela proliferação
vaihingeriana de tipos e modelos, a ficção assume cada vez mais
importância no pensamento: «A ficção devém o camaleão do
conhecimento, o que quer dizer que, como uma espécie de kit de reparação
da conceptualização, deve transcender inevitavelmente os conceitos que
procura envolver. Compensando a debilidade dos conceitos, a tematização
da ficção diagnostica as deficiências que estão na base da respectiva teoria,
e, neste sentido, a indeterminabilidade da ficção tematizada pode reclamar
a sua verdade. Esta verdade, contudo, parece ser inacessível ao
conhecimento e, consequentemente, a ficção é sempre identificada com a

95
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

mentira, pelo menos enquanto o conhecimento permanece incontestado


como marco de referência»42.

As tradições de Vaihinger e Bentham, em todo o caso, virão


alimentar a outra grande linha que Certeau assinalava no seu trabalho sobre
a ficção: a psicanálise. O próprio Freud, com efeito, reclama-se de um certo
pragmatismo vaihingeriano, e, como assinala Certeau, «volta sobre as
configurações simbólicas que articulavam as práticas sociais nas
sociedades tradicionais. O sonho, a fábula, o mito: estes discursos
excluídos pela razão esclarecida devêm o próprio espaço onde se elabora a
crítica da sociedade ».
O efeito imediato do freudismo, deste ponto de vista, seria colocar
em questão a distribuição estabelecida do espaço epistemológico, esta
configuração que rege, há três séculos, as relações da história e da
literatura. As ficções teóricas ou as novelas com função teórica (mitos43)
que propõe a psicanálise, mostram que «no discurso freudiano, com efeito,
é a ficção que retorna na seriedade científica, não só enquanto objecto de
análise, senão enquanto forma»44.

Lacan, por seu lado, se reclama de Bentham. Nessa tradição, Lacan


procura livrar a ficção de qualquer conotação de engano ou ilusão, para
afirmar – «de modo aforístico» – que a verdade revela um ordenamento ou,

42
Ibidem., pp. 165-166.
43
Lacan dizia que Freud era um dos poucos autores contemporâneos capazes de criar mitos. Jacques
Lacan, Séminaire sur l'«éthique de la psychanalyse», 1959-1960, Paris, Seuil, 1986.
44
Cf. Certeau, op. cit., p. 110: “Freud fala ironicamente dos seus Estudos sobre a histeria como de
histórias de doentes (Krankengeschichten) que se lêem como romances (Novellen) desprovidos do
carácter sério da cientificidade (Wissenschaftlichkeit), e designa como romance o seu Moisés (Der
Mann Moses). Cf. Sigmund Freud et Arnold Zweig, Correspondance, Paris, Gallimard, 1973, p. 162
(21 février 1936), etc.”.

96
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

melhor, uma estrutura de ficção (isto é, ganha forma para além dos critérios
que definem o verdadeiro e o falso num momento histórico dado).
Esta ideia surge pela primeira vez no Seminário sobre «A Carta
roubada» e atravessa todos os seminários de Lacan, marcando
profundamente o seu discurso sobre a ética da psicanálise, e fazendo
balançar a oposição entre ficção e realidade (dando continuidade, nisto, à
experiência freudiana) (cito Lacan): «É em relação a esta oposição entre o
fictício e o real, que a experiência freudiana vem ocupar o seu lugar, mas
para mostrar-nos que uma vez feita esta divisão, esta separação, operada
esta clivagem, as coisas não se situam de nenhuma maneira aí onde se
poderia esperar; que a característica do prazer, a dimensão do que o
encadeia ao homem, encontra-se inteiramente do lado do fictício enquanto
o fictício não é por essência o que é enganoso, senão que é, falando
propriamente, isso a que chamamos o simbólico».

Em todo o caso, para além dos diversos valores epistemológicos que


a ficção possa ter chegado a investir, assistimos a um deslocamento
historicamente observável da ficção enquanto representação à ficção
enquanto intervenção (cito Iser): «Em lugar de reparar a epistemologia, a
ficção – na história da sua afirmação – devém uma precondição para a
acção pragmática»45.
Noutras palavras: ao mesmo tempo que o conhecimento (e a
referencialidade) encontra os seus limites na ficção, o conhecimento
começa a revelar (a descobrir) necessidades antropológicas46.
Neste sentido, já não só de um ponto de vista teorético, senão sobre o
horizonte amplo da praxis, o modelo do verdadeiro é substituído por uma
certa potência do falso, da qual ainda não tomamos a medida. E não se trata
45
Iser, op. cit., p. 168.
46
Ibidem., p. 170.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de uma fantasia, de um mero devaneio da razão, senão de um verdadeiro


programa filosófico-político, que pondo a referencialidade em causa não
pressupõe nenhuma forma de idealismo.

Evidentemente, a dos falsários é uma corporação vasta e desigual.


Do plagiário ao artista, a distância é longa e está graduada por uma
verdadeira multidão de personagens singulares. Pior ainda: entre estas
personagens as fronteiras são lábeis; como bons falsários gostam de vestir
disfarces, pôr máscaras, viver todas as vidas.
A esta altura, como poderão ver, a cena do reencontro do filósofo
com o poeta, numa cidade que durante séculos se amuralhou por detrás da
fábula de um mundo objectivo, verídico e necessário (quando na realidade
descansava «nos seus sonhos sobre o lombo de um tigre»), não tem a forma
reconciliadora de Ulisses regressando à sua Ítaca natal, desmascarando
metodicamente os pretendentes, reinstaurando a ordem das coisas , e
revelando finalmente o seu verdadeiro ser.
Digamos que é, antes, como no mais estranho dos filmes de Orson
Welles47. Noutra ilha (na Ibiza) alguém («um charlatão») promete-nos a
verdade (mesmo quando se trata de «um filme sobre enganos, fraudes e
mentiras»), a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade durante
dez páginas. Ficção sobre a verdade da ficção, então.
Como filósofo (como charlatão, dirão vocês) o meu trabalho consiste
em tratar de fazê-la real. Não que a realidade tenha algo que ver com essa
ficção (como diz Welles, «a realidade é a escova de dentes que nos espera
em casa, um bilhete de autocarro, um cheque... e a sepultura»).
Pelo contrário, aquilo com o que Nietzsche e Bergson, Rancière e
Lyotard, Deleuze e Foucault, Certeau, Freud, Lacan, e os seus honráveis
47
F for Fake (1976). Dirección: Orson Welles. Producción: François Reichenbach. Con: Orson Welles,
Oja Kodar, Joseph Cotten, Elmyr de Hory, Clifford Irving, François Reichenbach, Gary Graver.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

antepassados empiristas e neokantianos, e nós próprios, claro, «mentirosos


profissionais», aquilo com que nós trabalhamos, digo, é a aparência, a
mentira, a ilusão.
A arte e a filosofia, o poeta e o rei, reencontram-se neste ponto cego
da razão, e procuram controlar os seus efeitos sobre a sociedade e as
ciências, sobre o saber e o poder, sobre os corpos e a linguagem. Os nomes
pomposos com que falamos destas coisas não chegam para ocultar a sua
íntima natureza.
O próprio Picasso disse-o: a arte, disse, é uma mentira. O próprio
Nietzsche disse-o: a filosofia, disse, é uma mentira. Só que se estas
mentiras são penduradas num museu o tempo suficiente, se estas mentiras
são abraçadas pelas pessoas ou propagadas de boca em boca, como um
rumor, ou como uma conjura, podem chegar a tornar-se realidade.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Proust e os Signos: as Categorias, a Lei, a Loucura.


Catarina Pombo Nabais48

Proust e os Signos é o primeiro livro que Deleuze dedica à


literatura e a um autor literário. É talvez por essa razão que ele regressa
duas vezes a este texto. À primeira edição de 1964, ele acrescenta, em
1970, a Segunda Parte «A Máquina Literária», e, em 1973, a Conclusão
«Presença e Função da Loucura, a Aranha», a qual, antes, tinha sido
publicada separadamente num volume colectivo em Itália49. É importante
sublinhar que a primeira edição era constituída por um único texto e que as
edições posteriores são acrescentos não só de uma «Segunda Parte» mas
também de uma «Conclusão» que, não fazendo sistema entre si, foram no
entanto publicadas como um todo homogéneo. Este processo de reescrita
de Proust e os Signos era quase inevitável. Tratava-se do seu primeiro livro
sobre literatura e cada deslocamento nos outros territórios do pensamento
obrigava Deleuze a reformular a sua aproximação primitiva a Proust.
O facto de se encontrarem neste livro três aproximações
completamente diferentes de À Procura do Tempo Perdido, faz de Proust
e os Signos um laboratório único para acompanhar as metamorfoses no
pensamento deleuziano50. O próprio Deleuze reconhece o regime não
homogéneo no movimento do seu pensamento. Em resposta à questão se se
deveria considerar a sua obra como um todo ou como rupturas, Deleuze
declara : «três períodos, já seria bom. De facto, comecei por livros de
história da filosofia (...). Eu e Félix Guattari tentámos fazer uma filosofia,
48
Pós-doutoranda, CFCUL.
49
Sagi e Ricerche di Letteratura Francese, XII, Bulzoni ed., 1973.
50
Pensamos evidentemente também em Crítica e Clínica como sendo um outro exemplo de um livro
sobre a literatura que deixa ver estas mudanças. No entanto, Crítica e Clínica é um conjunto de textos
de assuntos muito diferentes que estão agrupados depois de uma primeira publicação em revistas,
prefácios, etc., enquanto que Proust e os Signos é uma obra que pensa sempre o mesmo objecto: À
Procura do Tempo Perdido.

100
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

em Anti-Édipo e Mil Planaltos, sobretudo em Mil Planaltos (...). Uma


filosofia, foi portanto para mim como um segundo período que nunca teria
começado ou terminado sem Félix. De seguida, suponhamos que foi um
terceiro período onde se tratava para mim de pintura e de cinema, de
imagens em aparência»51. No momento desta entrevista, já existiam
diversas leituras que consideravam a sua obra como dividida em dois
períodos : antes e depois de Anti-Édipo. Mas eis que Deleuze acrescenta
um terceiro período aos dois grandes períodos que ele sabia estarem
estabelecidos: «finalmente, todos esses períodos se prolongam e se
misturam, vejo agora melhor nesse livro sobre Leibniz ou sobre a Dobra»52
. Deleuze reconhece descontinuidades. Ele relaciona-as sobretudo a
encontros, com Félix Guattari, com o cinema ou com a pintura de Bacon.
O seu espinozismo fundamental, isto é a sua ética da imanência e dos
encontros felizes, impede-o de explicar as suas rupturas internas como
mudanças teóricas, como fracturas paradigmáticas. E, no entanto, a nossa
leitura do pensamento da literatura em Deleuze não só supõe mas torna
também visíveis muito mais diferenças no interior dos seus textos. O que
pretendemos é sublinhar ainda mais essas descontinuidades.

Apesar da aparência de uma simples amplificação em progresso


que se prolonga por quase dez anos, as três edições do livro de Deleuze
sobre Proust exprimem três universos quase não comunicantes. É como se
Proust e os Signos condensasse, nessas três partes, quase todas as grandes
rupturas do pensamento de Deleuze dos anos sessenta e do início dos anos
setenta. A partir de um único e mesmo objecto, À Procura do Tempo
Perdido, Deleuze propõe, em três edições distintas, conceitos, modelos,
categorias completamente diferentes. Essas descontinuidades tornam
manifestas diferenças muito subtis, distanciamentos microscópicos, os

51
PP, pp. 185/7.
52
PP, p. 188.

101
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

quais são o efeito de revoluções enormes no conjunto da obra de Deleuze.


Existem diferentes abordagens do conceito de signo, diferentes
classificações das faculdades, diferentes explicações do processo de
fabulação, de composição, da própria escrita. Proust e os signos é uma
verdadeira obra de formação, um livro-vida, uma quase repetição de À
Procura do Tempo Perdido. Marcel Proust é o monumento cumprido de
uma fusão absoluta entre a experiência da escrita e uma forma de vida. Era
necessário repensar À Procura do Tempo Perdido cada vez que o modo de
compreender essa fusão mudava no pensamento de Deleuze. É como se, na
qualidade de ponto de partida, Proust e os Signos devesse ser reescrito para
que Deleuze pudesse acreditar na densidade e na continuidade do seu
próprio desenvolvimento.

Proust e os Signos é portanto uma obra exemplar. Ela torna visível


a existência de enormes descontinuidades no pensamento de Deleuze,
diferentes modos de ler a obra de arte literária, e, ao mesmo tempo, a
aparência de uma continuidade harmoniosa. Se pensarmos, por exemplo,
na própria definição do livro escrito por Proust, vemos imediatamente
surgir três concepções diferentes. Em primeiro lugar, À Procura do Tempo
Perdido é apresentado como uma narrativa de aprendizagem, onde a tarefa
do narrador é a de explicar os conteúdos escondidos nos signos, até à
revelação da essência, que ele descobre ao longo de uma aprendizagem ;
num segundo momento, na edição de 1970, ele é definido como uma
máquina de produção da verdade, que funciona na base de uma série de
transgressões das leis do desejo ; finalmente, na terceira parte, este livro é
pensado pela figura de uma teia feita pelo Narrador-aranha, enquanto
corpo-sem-órgãos.
Mas o lugar onde a descontinuidade em Proust e os Signos é mais
flagrante, e, ao mesmo tempo, mais sintomática, é a tipologia dos signos –
centro fundamental de todo o livro. Nas três partes de Proust e os Signos o
102
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sistema de signos é sempre um elemento de uma constelação mais ampla.


Os signos não se deixam pensar senão em articulação com o sistema das
faculdades, as dimensões do tempo, os graus de verdade e os modos de
incarnação da essência. Essa constelação, no entanto, não se faz sempre da
mesma maneira. E o que é mais estridente é o facto de que a classificação
dos signos, ou mais ainda, a sua simples enumeração, mudar como um
movimento de redução das entidades. Em 1964, a exposição do sistema
dos signos, das formas do tempo, do jogo das faculdades e dos tipos de
incarnação da essência faz-se segundo um regime a quatro termos. Já não é
o caso na segunda parte – «A Máquina Literária», de 1970. Aqui, Deleuze
segue um modelo ternário. Finalmente, a Conclusão, de 1973, está
construída sobre um regime a dois termos, isto é, segundo um modelo
binário. Sem que nunca Deleuze o reconheça, existe uma evidente redução
do número dos signos a considerar, à medida que passamos da primeira à
terceira edição. Deleuze apresenta quatro tipos de signos na primeira parte
(mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos). Na segunda parte,
acrescentada na edição de 1970, já só existem três tipos, os quais ele
denomina por «ordens de signos». Deleuze não recusa os tipos anteriores.
Ele reagrupa os quatro tipos da edição de 1964 em duas ordens (a primeira,
composta de signos naturais e artísticos, a segunda de signos mundanos e
amorosos), para acrescentar uma terceira ordem (designada «a universal
alteração»), à qual correspondem os signos de envelhecimento, de doença
e de morte. Ele passa, em 1970, de quatro tipos a três ordens de signos.
Finalmente, na Conclusão, acrescentada em 1973, Deleuze já só fala de
duas ordens de signos, ou melhor, de dois tipos de delírio de signos –
interpretação de tipo paranóia, e reivindicação do tipo erotomania ou
ciúmes.
Poderemos dizer que é a forma dos objectos pensados que
determina os regimes da sua pensabilidade? Será que, à medida que os

103
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

domínios analisados se reduzem nos seus elementos, Deleuze é ele mesmo


forçado a reduzir o número de categorias necessárias à análise desses
mesmos domínios? Estas hipóteses, apesar de sedutoras, não têm qualquer
verosimilhança. O objecto fundamental é sempre o mesmo : À Procura do
Tempo Perdido. Os domínios analisados são sempre os mesmos : os
signos, as faculdades, os graus de verdade, os modos da essência, as
dimensões do tempo. Trata-se sempre de uma tentativa visando desenhar o
mapa completo dos signos e fazer o sistema da semiologia de Proust.
Não se trata portanto de uma correspondência entre o objecto e o
seu modelo de pensabilidade. Porquê então apresentar esse sistema,
primeiro a quatro, depois a três e, finalmente, a dois termos? Tratar-se-á de
um procedimento de simplificação progressiva, de depuração, até a uma
fórmula final condensada? Não, nós não acreditamos nesta solução. Não se
trata nem de uma relação directa entre o objecto e o seu modelo, nem de
uma purificação da estrutura dessa descrição. Não é uma questão nem de
dimensão do domínio analisado, nem de simplificação do pensamento. Não
pode ser senão uma questão de ponto de vista, de modelo de representação
do pensamento na sua relação signos-faculdades. De facto, a primeira
parte, escrita logo depois do livro sobre Kant e da sua doutrina das
faculdades, segue, no seu sistema de signos a quatro tempos, o sistema das
faculdades de Kant. Não nos devemos surpreender de encontrar assim essa
correspondência entre os quatro tipos de signos e as faculdades da
sensibilidade, da imaginação, da memória e do pensamento. A segunda
parte, de 1970, reproduz com as suas três ordens de signos a estrutura
triádica de Lacan (a divisão entre o simbólico, o real e o imaginário); e a
terceira, de 1973, na distinção entre signos de tipo paranóia e do tipo
erotomania ou ciúmes, retoma o modelo binário da esquizoanálise
apresentada pela primeira vez em Anti-Édipo (loucura/delírio ;
paranóia/esquizofrenia ; molar/molecular).

104
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Acreditamos que é assim que se explica que, na primeira edição, os


signos sejam referidos sobretudo às faculdades e aos modos de incarnação
da essência, que, na segunda edição, os signos sejam derivados de
diferentes figuras da lei na sua relação com o desejo, e, finalmente, na
terceira edição, que os signos reproduzam a oposição
esquizofrenia/paranóia, enquanto delírio não-édipiano dos signos.
Enunciemos brevemente essa transformação de paradigmas ou de modelos
da relação signos-faculdades.
Na primeira parte de Proust e os Signos, há uma correspondência
perfeita entre os quatro tipos de signos e o sistema das faculdades, as
dimensões do tempo, as formas de incarnação da essência e os graus de
verdade. Assim, há dois grupos de signos, os materiais (mundanos,
amorosos e sensíveis), e os imateriais ou desmaterializados (artísticos).
Eles reenviam a quatro faculdades distintas (inteligência para os signos
mundanos e amorosos, memória involuntária e imaginação para os signos
sensíveis, e pensamento puro para os signos artísticos) bem como a quatro
dimensões do tempo (tempo que perdemos, tempo perdido, tempo que
reencontramos e tempo reencontrado). Cada tipo de signo implica, por sua
vez, quatro tipos de verdade (verdade do vazio, da estupidez e do
esquecimento dos signos mundanos ; verdade múltipla, aproximativa e
equívoca dos signos amorosos – as leis da mentira e os segredos da
homossexualidade ; verdade do nada e da eternidade dos signos sensíveis e
verdade da eternidade absoluta e espiritual dos signos artísticos). Cada
verdade, por sua vez, corresponde a quatro relações de essência aos signos
(implicação, explicação, envolvimento e desenvolvimento). A cada tipo de
signo corresponde ainda uma modalidade, a qual exprime o grau de
individualidade da incarnação de essência (de um lado, a contingência :
generalidade do grupo para os signos mundanos, generalidade serial para
os signos amorosos ; de outro lado, a necessidade : a individualidade

105
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

específica para os signos sensíveis, individualidade singular para os signos


artísticos). É uma verdadeira tábua dos signos que se apresenta, construída
pedaço a pedaço como uma equivalência da tábua das categorias da
Crítica da Razão Pura de Kant53 lida segundo o modelo estruturalista em
Ciências Humanas dominante nos anos sessenta.
Podemos dizer que um sistema transcendental da experiência
estética organiza esta primeira versão de Proust e os Signos. Quatro tipos
de signos, quatro faculdades, quatro formas do tempo, quatro momentos do
sentido para a essência. Não é possível determinar qual destas dimensões
da experiência – semiótica, epistemológica, fenomenológica, ontológica –
é a condição final, o fundamento da arte. Há uma génese comum e
simultânea dos objectos conhecidos, dos modos de apreensão, das
temporalidades vividas e das essências descobertas.
Na segunda edição, de 1970, que corresponde à Segunda Parte sob
o título geral de «A Máquina Literária», as correspondências são ainda
visíveis, apesar dos seus elementos terem mudado. A própria estrutura da
divisão também mudou. Os signos, as faculdades, o tempo, a verdade, a
essência, já não são divisíveis em materiais ou imateriais, mais um
elemento decisivo foi introduzido : a morte. A estrutura binária
(material/imaterial) que suportava o regime a quatro tempos incorporou
este terceiro elemento, na forma daquilo que Deleuze designa como o
envelhecimento e o caminho vertiginoso em direcção ao fim. Este
elemento obriga portanto a repensar todo o sistema a três tempos. Existem
agora cinco tipos de signos (o quinto é o do envelhecimento, de morte e de
doença), que correspondem a três ordens de signos (materiais, imateriais e
de morte). Os signos estão em relação, já não com as faculdades, mas com
três tipos de máquinas (produção de objectos parciais, produção de

53
Na primeira parte, precisamente, Deleuze deixa surpreender este paralelismo com Kant : «implicação
e explicação, envolvimento e desenvolvimento: tais são as categorias de À Procura do Tempo
Perdido» (PS, p. 109).

106
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ressonâncias e produção da alteração universal e de morte), as quais são


produção de verdade. Assim, existem três ordens de verdades: verdade das
leis gerais dos prazeres e das dores, verdade singular das reminiscências e
das essências, verdade da universal alteração, da morte e da produção de
catástrofe. Existem também três dimensões do tempo – tempo perdido,
tempo reencontrado e tempo da alteração universal. Quanto às faculdades,
elas são projectadas sobre os planos do real (sensibilidade), do simbólico
(percepção) e do imaginário (imaginação e pensamento). Não podemos
deixar de ver a presença de Lacan nessa arquitectónica a três termos, assim
como no papel que tem aí a relação entre o desejo e a lei manifesta nos
novos signos – os de morte, de envelhecimento, de doença.
A segunda parte de Proust e os Signos, acrescentada na edição de
1970, é um momento único no movimento do pensamento de Deleuze. É
quase um texto impossível, construído sobre planos teóricos pouco
comunicantes. Ele contém os grandes temas psicanalíticos que tinha
adoptado nos livros escritos exactamente antes, e trabalha já dentro dos
conceitos que vão produzir a ruptura teórica que encontraremos em Anti-
Édipo dois anos depois. Vemos aí, lado a lado, mundos que se vão separar
cada vez mais. Por um lado, encontra-se a trindade lacaniana do simbólico-
imaginário-real. Encontra-se também o conceito de «instinto de morte»
como princípio transcendental, tal como ele organiza a análise dos
dispositivos de denegação e de suspense em Apresentação de Sacher-
Masoch e as três sínteses do tempo em Diferença e Repetição. Por outro
lado, tudo se organiza em redor dos conceitos de «máquina» e de
«transversalidade» os quais, em 1972, se vão tornar o fundamento do
vitalismo do desejo de Anti-Édipo.
O ponto mais extremo desta descontinuidade diferida, desta
clivagem em suspenso, deixa-se ver no conceito central desta segunda
edição do livro sobre Proust: o conceito de «lei». A lei funciona aí em

107
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vários planos. Ela é, ao mesmo tempo, o modo de unidade dos vários


estratos de À Procura do Tempo Perdido, o lugar de engendramento do
sistema dos signos, e ainda o princípio real das sínteses do tempo. Em cada
um dos planos, uma única e mesma tese: a lei é vazia, é pura forma. A lei
determina aquilo que unifica, aquilo que engendra ou aquilo que funde sem
nunca se dar enquanto tal54. A lei produz ligações, produz repetição,
produz apagamento, mas não tem uma matéria que possa ser conhecida, ela
não é causa de nada. É para pensar este carácter paradoxal da lei que
Deleuze a define ao mesmo tempo como instinto de morte e como
máquina. A lei é movimento forçado sem matéria, e, ao mesmo tempo,
repetição pura sem conteúdo. Ela pune, produz sofrimento, inscreve nos
corpos a sua vontade de nada. Em cada um dos casos, se funciona em
vazio, ela aplica mesmo assim aos corpos as mais duras das sanções 55. A
lei existe primeiro no supliciado. Ela é a sua culpabilidade, a sua dor.
Deleuze retoma assim a tese lacaniana sobre o paradoxo da lei. O
estrato simbólico, que se opõe ao imaginário e ao real, é herdeiro do
instinto de morte. E toda a segunda parte Proust e os Signos será uma
meditação sobre esta relação entre lei e morte, entre a ordem e o instinto de
morte.
Máquina e instinto de morte tornam-se os dois lados do simbólico.
Esta mesma relação entre máquina e instinto é retomada para as duas
outras dimensões da trindade lacaniana. O real é a máquina Hábito, o
imaginário é a máquina Éros-Mnémosine. Basta rebater esta trindade sobre
as três sínteses do tempo, como Deleuze as formula em Diferença e

54
«Enquanto rege um mundo de fragmentos não totalizáveis e não totalizados, a lei torna-se potência
primeira. A lei já não diz o que é bem; mas é bem o que diz a lei. Ela adquire uma unidade
formidável : já não há leis específicas de tal ou tal maneira, mas a lei, sem outras especificações. É
verdade que essa unidade formidável é absolutamente vazia, unicamente formal, uma vez que não nos
faz conhecer nenhum objecto distinto, nenhuma totalidade, nenhum Bem de referência» (PS, p. 158).
55
«Não nos fazendo nada, ela (a lei) só nos ensina aquilo que ela é marcando a nossa carne, aplicando
desde logo em nós a sanção ; e eis o fantástico paradoxo, não sabemos o que a lei queria antes de
receber a punição, não podemos portanto obedecer à lei senão sendo culpados (...). Incognoscível, a
lei só se faz conhecer aplicando as mais duras sanções ao nosso corpo supliciado» (PS, p. 159).

108
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Repetição, para reescrever toda a leitura de Proust. O tempo a quatro


modos, da edição de 1964, torna-se um sistema ternário. O Hábito constitui
o fluxo contínuo do passado puro, o Éros é a fundação do tempo sobre um
presente vivo, o Thanatos é a terceira síntese, é o tempo como forma pura.
Thanatos adquire um papel central. Thanatos é apenas uma das máquinas,
a máquina que apaga. O instinto de morte é, assim, apenas uma das três
sínteses do tempo, a da forma pura do tempo. Mas, porque ele é o sem
fundo, ele reúne os outros dois como a sua verdade incondicionada.
Thanatos fá-lo funcionar na pura forma56. Thanatos é por conseguinte a lei
última, onde todas as outras leis convergem. E é a lei final porque é puro
forma, pura máquina.
É sempre Lacan quem inspira o mais fundamental: a estrutura
triádica das máquinas. Há três máquinas, a máquina do real fragmentado, a
máquina do desejo quem põe em ressonância estas partes parceladas, e a
máquina do simbólico, que produz o movimento forçado pela ideia de
morte. Deleuze chama a primeira, sob a inspiração de Mélanie Klein,
«máquina dos objectos parciais», a que produz fragmentos sem totalidade,
vasos sem comunicações e cenas compartimentadas. Ao segundo tipo de
máquina, ele chama «máquina de ressonâncias»57. A terceira é a mais
complexa. Deleuze não tem nome simples para a designar. É anunciada por
toda a parte como o ponto de resolução das duas outras máquinas, das duas
outras ordens do tempo58. É a ideia de morte quem se vem revelar como
56
«A primeira síntese exprime a fundação do tempo sobre um presente vivo, fundação que dá ao prazer o
seu valor de princípio empírico em geral, ao qual é submetido o conteúdo da vida psíquica no Id. A
segunda síntese exprime o fundamento do tempo por um passado puro, fundamento que condiciona a
aplicação do princípio de prazer aos conteúdos do Moi. Mas a terceira síntese designa o sem-fundo, onde
o fundamento ele mesmo nos precipita : Thanatos é descoberto em terceiro lugar como esse sem-fundo
para lá do fundamento de Éros e da fundação do Hábito. (…) De uma certa maneira a terceira síntese
reúne todas as dimensões do tempo, passado, presente, futuro, e fá-las jogar agora na pura forma» (DR,
p. 151).
57
«As mais célebres são as da memória involuntária, que fazem ressoar dois momentos, um actual e um
antigo» (PS, p.181).
58
«A contradição aparece aqui sob a sua forma mais aguda : as duas primeiras ordens eram produtivas, e
era por isso que a sua conciliação não colocava qualquer problema em particular ; mas a terceira,
dominada pela ideia de morte, parece absolutamente catastrófica e improdutiva. Podemos conceber uma
máquina capaz de extrair qualquer coisa a partir deste tipo de impressão dolorosa, e de produzir certas

109
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

uma terceira máquina. Thanatos é a máquina última e primeira. Deleuze


termina assim o seu sistema das máquinas de Proust. Retoma, termo a
termo, a trindade de Lacan.
A equivalência entre, de um lado, a forma pura e vazia do tempo e,
do outro, o instinto de morte, ocupa já o centro de Diferença e Repetição59.
É apenas a ideia de máquina que não estava ainda presente neste livro de
1968. Ela aparece pela primeira vez em Lógica do Sentido para pensar a
relação entre o inconsciente e o sentido como produção60. Mas a sua
introdução no texto de 1970 sobre Proust vai dar ao conceito de instinto de
morte na sua relação com a lei incognoscível o papel de um novo centro de
À Procura do Tempo Perdido. Da edição de 1964 a esta segunda parte
acrescentada em 1970, de um regime a quatro tempos a uma trindade
generalizada, Deleuze desloca o seu empirismo transcendental para um
vitalismo das máquinas. Este texto é efectivamente o anúncio de Anti-
Édipo e de toda a sua política das máquinas desejantes.
Vejamos agora a terceira edição. Recordemos que esta terceira
edição se reduz às poucas páginas de um texto que Deleuze tinha
publicado em Itália e que acrescenta como sendo a «Conclusão» de todo o
livro. Tomemos em consideração, em primeiro lugar, o tema das
faculdades. A percepção, a imaginação, a inteligência e o pensamento
cruzam-se com os signos segundo o tipo de delírio. De facto, o pensamento
é a faculdade do delírio de interpretação, enquanto que a percepção e a
imaginação são as faculdades do delírio de reivindicação do tipo
erotomania ou ciúmes. O terceiro Proust e os Signos caracteriza-se por
dois regimes de signos : discursivo ou lógico; e não discursivo ou
verdades? Enquanto não a concebermos, a obra de arte reencontra a mais grave das objecções» (PS,
p.190).
59
«A fórmula proustiana ‘um pouco de tempo em estado puro’ designa primeiro o passado puro, o ser em
si do passado, ou seja a síntese erótica do tempo, mas designa mais profundamente a forma pura e vazia
do tempo, a síntese última, a do instinto de morte que conduz à eternidade do retorno no tempo» (DR,
p.160).
60
Em Lógica do Sentido, Deleuze diz que Freud é «o prodigioso descobridor da maquinaria do
inconsciente através do qual o sentido é produzido (...). Produzir o sentido é a tarefa de hoje» (LS, p. 91).

110
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

patológico. A diferença faz-se, assim, no interior dos dois níveis da


realidade, de um lado, a superfície da normalidade, onde o discurso é
possível, e, de um outro lado, a profundidade da loucura, onde não há
senão não-linguagem. Os primeiros dividem-se entre voluntários e
involuntários, e estes dividem-se por seu turno entre signos de violência e
signos de loucura. Os últimos reenviam seja ao delírio de interpretação,
seja ao delírio de reivindicação do tipo erotomania ou de ciúmes. O tempo,
em 1973, diz respeito ao discurso e varia segundo a intensidade, a
velocidade e o ritmo (tempo de denegação e tempo de distanciação para
um discurso ainda do logos, e tempo inesperado da loucura). A verdade, tal
como a essência, já não é problematizada, mas podemos dizer que, se há
verdade e essência, elas são as do delírio, do discurso da loucura, do
Narrador-aranha que faz a sua teia.
A singularidade da terceira edição Proust e os Signos é por
conseguinte a aplicação da teoria da esquizofrenia de Anti-Édipo à teoria
dos signos que Deleuze crê encontrar na obra de Proust. O regresso à
pergunta dos signos faz-se à luz da teoria da esquizoanálise de 1972, a qual
pensa a relação do indivíduo ao real como se fazendo pelo delírio61. A
partir da teoria do delírio de Anti-Édipo, Deleuze pergunta se, em À
Procura do Tempo Perdido, não há também um delírio, neste caso um
delírio dos signos. A resposta é afirmativa. Para compreender esta
dicotomia, Deleuze retoma a distinção presente em Anti-Édipo entre
esquizofrenia e paranóia. É assim que Deleuze propõe dois delírios de
signos: os interpretativos de tipo paranóia, e os reivindicativos do tipo
erotomania ou ciúme62. A distinção dos dois tipos de delírio de signos faz-
61
As grandes linhas da terceira parte de Proust e os Signos encontram-se já nas referências a Proust em O
Anti-Édipo. Os temas da homossexualidade sem relação à lei, a teoria dos signos do delírio, o conceito
do narrador como teia de aranha e corpo-sem-órgãos são pensados pela primeira vez no capítulo
« Psicanálise e Familiarismo », sobretudo pp. 80-84.
62
«Nos finais do século XIX e princípio do século XX, a psiquiatria estabelecia uma distinção muito
interessante entre dois tipos de delírio dos signos (...). Não dizemos que Proust aplica aos seus
personagens uma distinção psiquiátrica que se elaborava no seu tempo. Mas Charlus e Albertine,
respectivamente, traçam caminhos em À Procura do Tempo Perdido que correspondem a esta distinção

111
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

se então entre paranóia, enquanto perseguição por um outro, e erotomania


e ciúme, enquanto perseguição de outro. Na última edição de Proust e os
Signos, em 1973, encontramo-nos completamente mergulhados na
apoteose do delírio. Deleuze já só fala agora de esquizofrenia, dos
signos da loucura, dos dois regimes do pensamento (discursivos e lógicos/
não discursivos e patológicos) e de uma comunicação tornada
«aberrante»63.
É o próprio Deleuze, já em 1972, em Anti-Édipo, quem nos revela
o leitmotiv de toda esta enorme mudança teórica que se descobre em 1973
com a terceira parte de Proust e os Signos: «estamos na idade dos objectos
parciais, dos tijolos e dos restos (...). E é impressionante, na
máquina literária de À Procura do Tempo Perdido, a que ponto todas as
partes são produzidas como lados dissimétricos, direcções quebradas,
caixas fechadas, vasos não comunicantes, compartimentações, onde
mesmo as contiguidades são distâncias (...). É a obra esquizóide por
excelência»64. Abruptamente, À Procura do Tempo Perdido é apresentado
como o próprio monumento de um objecto literário esquizóide. Vemos
bem em que medida, para compreender a terceira (e última) edição do livro
sobre Proust, devemos passar pelo programa de uma
esquizoanálise formulado neste livro de 1972.
Deleuze e Guattari já nos tinham explicado, em Anti-Édipo, que a
esquizofrenia era a própria realidade do desejo e que o desejo era
produção. O desejo é primeiro máquina, produção de desejo não como
falta mas como superabundância de desejo. A máquina literária que
constitui À Procura do Tempo Perdido é, por conseguinte, a loucura e
responde a um funcionalismo onde o sentido, o signo e a interpretação são
menos importantes que o seu uso, a sua função e a sua distribuição.

de um modo muito preciso» (PS, p. 215).


63
Cf. PS, p. 210.
64
AO, pp. 50-1.

112
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Semiologia funcionalista à escala molecular. Signo investido do interior,


na sua cadeia genética: signo económico, social, político, histórico,
cultural, religioso. Signo do fora. Signo desejante, signo delirante. A
pergunta de Anti-Édipo: «como começa um delírio?», serve portanto na
perfeição para compreender o enredo de Proust e os Signos de 1973, ou
seja, o enredo do delírio dos signos, o delírio de interpretação do Narrador-
aranha. Uma vez mais, o regresso a Proust e os Signos em 1973 desenha-se
como a exemplificação literária da teoria do desejo e da esquizofrenia de
Anti-Édipo.
Na pergunta «que presença da loucura em À Procura do Tempo
Perdido?» já não se trata, nem do tema da aprendizagem e da verdade,
como na primeira parte, nem do tema da lei do mundo fragmentário, como
na segunda parte. Estamos de facto face a uma teoria intensiva das
faculdades, as quais já não dizem respeito à semelhança como actividade
racional por excelência da consciência. Trata-se agora de faculdades
delirantes que entram em devir com a matéria de que são portadoras. As
faculdades tornam-se assim não-discursivas, e a sua função mecânica é
impessoal: já não as faculdades de um eu, mesmo sem consciência
(segunda parte do livro sobre Proust), mas o acontecimento «faculdades»
que fazem multiplicidades com a matéria de um «fora» que elas
percepcionam.
Podemos então concluir que, depois da primeira edição, em que se
percebe uma profunda leitura estruturalista de Kant, segue-se uma segunda
edição em que o universo édipiano explica não só a tonalidade lacaniana da
segunda edição de Proust mas também a violência anti-psicanalítica que
atravessa toda a sua terceira edição. É portanto todo um conjunto de
paradigmas literários diferentes que se manifesta nestas diversas maneiras
de explicar a unidade da obra de Proust. Na primeira edição em 1964,
inspirada pelo universo de Saussure e Barthes, À Procura do Tempo

113
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Perdido é visto do interior de uma perspectiva kantiana. Este livro é a


consequência dessa harmonia discordante entre as faculdades e o seu
reenvio estruturalista aos signos que define a própria experiência da arte,
tal como é apresentada em Nietzsche e a Filosofia e A Filosofia Crítica de
Kant. Na segunda edição, o olhar psicanalítico impõe a explicação da
unidade da obra pela sua relação à lei, ao interdito. É o horizonte de
Apresentação de Sacher-Masoch, de Diferença e Repetição e de Lógica do
Sentido, que o faz regressar a Proust em 1970, fazendo da segunda edição
de Proust e os Signos um caso limite de uma aproximação édipiana à
natureza da ficção literária. Na terceira edição, ou seja após a publicação de
Anti-Édipo, isto é, no momento de ruptura com as categorias de Freud e de
Lacan, Deleuze projecta sobre À Procura do Tempo Perdido o ponto de
vista do seu novo programa esquizoanalítico.
Por que razão chamou Deleuze a estes dois retornos ao livro sobre
Proust, um em 1970, outro em 1976, neste último caso retomando um texto
que ele tinha escrito e publicado em 1973, com títulos tão imponentes
como «Segunda Parte» e «Conclusão»? Uma Segunda Parte que em nada
continua a Primeira e uma Conclusão que não é senão um campo de
batalha, uma clivagem conceptual, um verdadeiro plano de composição em
plena acção? Por que não simplesmente anexá-los, considerá-los um
suplemento, como ele tinha feito antes em Lógica do Sentido, com todos os
textos que ele tinha publicado entretanto? Não podemos deixar de pensar
que tal é o resultado da vontade de Deleuze de redimir o facto das suas
descontinuidades remeterem, não para objectos diferentes, mas para
diferentes modos de pensar esses objectos.

BIBLIOGRAFIA
Proust et les Signes, Paris : Minuit, 1976.
Différence et Répétition, Paris : P.U.F., 1968.

114
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Logique du Sens, Paris : Minuit, 1969.


Pourparlers, Paris : Minuit, 1990.
L’Anti-Œdipe, Paris : Minuit, 1972.
Pourparlers, Paris : Minuit, 1990.

115
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Merleau-Ponty e a experiência da afectividade na


criança.
Irene Pinto Pardelha65

0.

Em 1951, Merleau-Ponty lecciona, na Sorbonne, um seminário que


tem como objectivo explorar a forma como a criança se relaciona com os
outros. Este seminário, publicado com o título “Les relations avec autrui
chez l’enfant” na compilação de textos que fazem parte de Parcours,
exprime-se numa linguagem fundamentalmente descritiva, à semelhança de
outros textos do autor, como La Structure du comportement ou as notas
postumamente publicadas dos cursos do Collège de France sobre a noção
de Natureza. Ao longo das páginas apresentadas observamos que o
aparelho crítico em torno do qual se esboça a afectividade infantil é
fundamentalmente psicológico. No entanto, como Merleau-Ponty explica, a
Psicologia oferece apenas uma abordagem intelectual do problema e, para
compreender o alcance da experiência da alteridade infantil é necessário
considerar sobretudo o seu aspecto emocional. O objectivo desta
comunicação é compreender como é que o outro aflora na vida da criança
como um alter ego, para isso, a compreensão da imagem especular será
aqui de especial interesse.

65
Doutoranda da Universidade de Évora.

116
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1. Crítica às noções clássicas de psiquismo e de corpo próprio

Wolfgang Köhler dizia que para compreender o fenómeno da


animalidade não podíamos colocar ao animal problemas que não fossem os
seus. A conduta do animal só nos aparece como absurda se exigirmos dele
o desempenho de funções que não são próprias da sua espécie. Neste
sentido, o comportamento que o animal dirige ao mundo está dependente
da estrutura sobre a qual assenta e, por isso, não podemos esperar que um
cão abra uma fechadura.
O olhar humano adulto, intencionalmente antropomórfico, processa-
se através de operações comparativas, incapazes de escapar a uma tipologia
de superior e inferior. O erro cometido contra o comportamento animal
verifica-se por isso também quando analisada a conduta da criança. Neste
caso, as respostas da criança só parecem rudimentares porque as questões
que lhe são postas são próprias da idade adulta. Torna-se assim insolúvel
um estudo que pretenda analisar o comportamento infantil por analogia ao
do adulto: da comparação surge a incompreensão e o desajuste entre duas
formas de tratar o mundo. Apesar da criança e do adulto viverem no
mesmo mundo, o horizonte de experiência mundana de uma é diferente da
do outro; eles tratam o mesmo mundo (i. e. o mundo de todos, o horizonte
interpessoal de todas as experiências possíveis) através de um aqui e agora,
ao qual cada um só pode responder munido das suas vivências pessoais. No
entanto, o comportamento humano realiza-se, como Merleau-Ponty nos
explica, por antecipação e regressão. Na conduta do adulto está patente a
vivência infantil e a conduta da criança antecipa a maneira como o adulto
dá forma ao seu mundo sem que, contudo, possamos pensá-la como uma
espécie de esboço. Ela é, por assim dizer, a forma como a criança faz uso
da sua vida, como ela estrutura o seu mundo.

117
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Até à fase de latência, não podemos considerar que a conduta infantil


seja realmente intelectual. A sua experiência é antes de mais afectiva e não
podemos pensar que a criança constitua o mundo do fundo da sua
interioridade, do alto seu psiquismo. Apenas numa fase mais avançada da
sua vida, o indivíduo pode supor que todo o corpo que se exprime como o
seu seja habitado por uma consciência, porque uma operação lógica como
esta pressupõe o desenvolvimento de um sistema de pensamento, cuja
existência, como dissemos, não podemos comprovar nos primeiros anos da
vida da criança.
Merleau-Ponty sente-se, por isso, no direito de reformular a ideia da
Psicologia clássica, que define o psiquismo ou a esfera psíquica como
aquilo que é dado a um só. Pois, se partimos do princípio que o psiquismo
é uma interioridade impenetrável a qualquer conteúdo externo, ele é
incomunicável e, por conseguinte, a experiência do outro torna-se
impossível. Neste sentido, para que o fenómeno afectivo seja possível, i. e.
para que a criança esteja apta a desenvolver uma percepção do outro, é
necessário, antes de mais, que ela não seja impermeável a uma experiência
exterior. Que a interacção entre a criança e o seu meio mais próximo seja
fundada a partir da noção de conduta, pois «é na sua conduta, na maneira
como o outro trata o mundo que eu vou poder encontrá-lo»66.
Contudo, a revisão do conceito de psiquismo não é o único requisito
necessário para compreender o fenómeno da afectividade infantil. Através
da forma como estrutura o mundo, pelo comportamento, a criança habita-o,
ela vive nas coisas e nos outros. Há assim interacção e transferência de
intenções. A situação de indistinção entre a criança e o seu mundo familiar
exige uma redefinição da noção clássica de corpo próprio. O
desenvolvimento de uma estrutura comportamental não pode ser fundada

66
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, Lagrasse,
Éditions Verdier, 1997, p. 176.

118
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

apenas na apreensão cenestésica do seu corpo, porque a contribuição dos


dados dos sentidos não pode ser rejeitada na configuração geral da
existência da criança. O corpo-próprio deve ser compreendido, segundo
Merleau-Ponty, como «estrutura corporal», porque não se limita a ser uma
massa de sensações, mas a instituição humana de um sistema, de uma
totalidade onde as experiências de interoceptividade e de exteroceptividade
devem ser compreendidas segundo uma lógica de reciprocidade. Porque,
«instituição, no sentido forte, é esta matriz simbólica que faz com que haja
abertura de um campo, de um futuro através de dimensões, daí a
possibilidade de uma aventura comum e de uma história como
consciência»67.

2. A experiência interoceptiva do corpo-próprio e do outro

A organização da experiência do outro, i. e. da afectividade


acompanha o desenvolvimento do esquema corporal. No entanto, o
esquema corporal não nos é dado de uma vez por todas. Ele é uma forma
dinâmica, que se desenvolve e se reorganiza tendo como objectivo uma
melhor organização da experiência humana. A instituição de uma vida
humana não segue os passos de um programa pré-estabelecido, na medida
em que o desenvolvimento se dá, segundo Merleau-Ponty, como «uma
estruturação (Gestaltung, Neugestaltung) progressiva e descontínua do
comportamento»68.
Se podemos, por isso, identificar diversas etapas na vida do
indivíduo, isso não implica que não possam ocorrer regressões ou
antecipações relativamente umas às outras. A infância não é assim uma

67
M. MERLEAU-PONTY, L’Institution. La Passivité, Paris, Éditions Belin, 2003, p. 45.
68
M. MERLEAU-PONTY, La Structure du Comportement, Paris, PUF, 2002, p. 192.

119
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

preparação da vida adulta, mas uma antecipação sobre ela. Neste sentido,
Merleau-Ponty constata que «a criança é sempre [prematura] e o próprio
nascimento é prematuro, já que a criança vem ao mundo num tal estado,
que a vida independente neste meio novo não é possível para ela»69.
Lançada num mundo para o qual não possui a chave de
compreensão, a criança tem como único recurso um corpo, que, como já
vimos, se define através de um sistema que comporta uma experiência
interna e externa. No entanto, o esquema corporal infantil não consegue
ainda tirar proveito de todos os seus recursos, e não conseguirá fazê-lo
enquanto o desenvolvimento natural do seu corpo não for capaz de fundir
os dados da experiência interna com os da experiência externa. A
organização do esquema corporal depende, por isso, não apenas das
sensações interoceptivas que a criança tem do seu corpo, mas da adaptação
dos órgãos dos sentidos ao meio físico onde se situa. Dependendo da
constituição biológica do indivíduo, o desenvolvimento da
exteroceptividade é tardio relativamente aos dados da percepção interna.
Não podemos, com isto, afirmar que a percepção externa esteja ausente na
primeira fase do desenvolvimento da criança, contudo ela ainda não se
encontra suficientemente organizada para poder colaborar de forma
efectiva na experiência afectiva infantil.
Neste sentido, tendo como base o desenvolvimento privilegiado das
sensações internas nos primeiros seis meses da vida da criança, Merleau-
Ponty defende que enquanto os dados da percepção externa não puderem
ser identificados com os da interoceptividade, «o corpo interoceptivo
funciona como exteroceptivo»70. O desenvolvimento do esquema corporal,
apesar de dependente da imersão da criança no mundo, é organizado
apenas de maneira interoceptiva. Não há, por assim dizer, um verdadeiro

69
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 205.
70
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 183.

120
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

contacto com o exterior, no sentido de um sujeito que apreende um objecto,


pois tudo é sentido a partir de dentro.
Por conseguinte, segundo Merleau-Ponty, «a percepção do corpo-
próprio está em avanço sobre o reconhecimento do outro e se as duas
formam um sistema, é um sistema articulado no tempo»71. O que quer dizer
que, se a percepção do outro está unicamente dependente dos dados da
experiência dos sentidos, ela não está verdadeiramente presente na primeira
fase da vida da criança. Nesta linha de análise, até aos seis meses, o
esquema corporal infantil não estaria ainda apto para distinguir entre um eu
e um outro, ou seja entre uma experiência de si e uma experiência daquilo
que escapa aos limites do seu próprio corpo.
Não obstante, poderíamos falar de uma percepção interoceptiva do
outro, onde este não seria verdadeiramente sentido como alter ego, uma
vez que a criança não consegue ainda sentir-se a si mesma como um ego. O
outro é sentido primeiramente como conduta, porque as diferentes atitudes,
das diferentes pessoas que rodeiam a criança, são sentidas internamente
pelos diversos estados do seu corpo. Podemos, por isso, descrever esta fase
através de uma pré-comunicação de intenções entre a criança e o seu meio
afectivo, onde identificaríamos «não um indivíduo em face de um
indivíduo, mas uma colectividade anónima, uma vida a muitos sem
distinção»72. A reciprocidade comportamental entre a criança e as pessoas
que a rodeiam inscreve-se numa estrutura indistinta e, por isso, experiência
afectiva infantil dá-se como um fenómeno global. A forma plena como a
criança vive o seu mundo (de coisas e de afectos) pode ser exemplificada
através da sensação de incompletude infantil (Wallon) experienciada pelo
bebé nas primeiras semanas: ele não chora porque vê alguém partir ou
porque alguém o coloca de volta no berço, mas porque a sua solidão é

71
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 181.
72
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 179.

121
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sentida interiormente como uma falta. Ou seja, «a criança não percebe


verdadeiramente as pessoas que estão ali, ela “fica” incompleta quando
alguém vai embora»73.

3. A contribuição da imagem especular na percepção do corpo


próprio e do outro

A imagem oferecida pelo espelho introduz uma revolução na


compreensão do fenómeno da afectividade infantil. Por intermédio do
espelho, a criança compreende que também há um espectáculo visível de si
mesma, a que os outros podem assistir, tal como ela assiste ao espectáculo
dos outros. Ela compreende que o seu ego interoceptivo é também um ego
visual. A imagem do espelho introduz, portanto, a possibilidade de
identificação, mas ao mesmo tempo uma cisão, na medida em que a partir
do momento em que a criança se reconhece na imagem, a sua existência
real desenrolar-se-á sempre por referência a um ideal.
No entanto, a síntese entre a imagem especular e o seu corpo-próprio
é um processo complexo para a criança e, daí que, a identificação do outro
no espelho e a distinção entre o modelo e a imagem sejam para ela
processos mais simples de compreender. Por exemplo, aos seis meses a
criança, apesar de não se reconhecer no espelho, já consegue distinguir
entre a imagem do seu pai e o pai quando este lhe fala. Para ela é mais fácil
identificar o pai do que a si mesma no espelho porque a imagem visual
paterna faz parte das condutas que até ali ela encontrou no mundo. A
distinção entre o modelo e a imagem é feita tendo como base o
reconhecimento de que aquele que lhe fala é o mesmo que ela pode tocar.
No entanto, a imagem visual do seu próprio corpo é ínfima
relativamente à imagem interoceptiva que tem dele. O espelho dá-lhe pela

73
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 186.

122
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

primeira vez uma visão completa do corpo-próprio e, neste sentido, a


imagem especular coloca à criança duas dificuldades essenciais: identificar
o seu corpo interoceptivo ao seu corpo visual e, por fim, compreender que
ela é vista pelos outros onde ela se sente, sob o aspecto visual que lhe
oferece o espelho.
No fundo, o problema colocado pelo espelho resume-se ao seguinte:
a criança não se vê onde se sente e não se sente onde se vê. A resolução
deste problema implica que a criança seja capaz de (cito Merleau-Ponty)
«deslocar a imagem do espelho, reenviá-la do lugar aparente que ela ocupa
no fundo do espelho, até ela, e que ela a identifique à distância com o seu
corpo interoceptivo»74. Ou seja, implica que a criança seja capaz de fundir
os dados da interoceptividade com os dados da exteroceptividade.
É necessário também compreender que a identificação não anula a
independência relativa que a imagem especular tem relativamente ao
modelo real, na medida em que ela introduz uma espécie de existência
fantasmagórica, uma quasi-existência marginal. Esta quase-presença é
sentida pela criança também no que respeita à apreensão do seu próprio
corpo através da imagem dada pelo espelho. Ela começa por compreender a
imagem especular como uma espécie de duplo do seu corpo. E, por isso,
sente que pode estar em vários sítios ao mesmo tempo.
Se através da ubiquidade a criança sente que também habita a
imagem no espelho, é porque a imagem especular participa de forma global
na existência do próprio corpo. Da mesma forma podemos compreender o
reconhecimento do outro como experiência afectiva: «A criança sente-se a
si mesma no corpo do outro como se sente na sua imagem visual»75. O
fenómeno do outro pode assim ser compreendido no seio da indistinção

74
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 193.
75
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, pp. 199-200.

123
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

entre três termos fundamentais: o corpo visual da criança, o seu corpo


interoceptivo e o outro.
Por intermédio da imagem especular a criança assume-se como ser
visual, dando-se conta que, se é visível para si é visível para os outros.
Neste sentido, como Lacan também refere, a imagem especular é «matriz
simbólica» tanto da percepção do corpo-próprio como da percepção do
outro. No entanto, ela possui uma função «desrealizante», na medida em
que nos arranca à nossa realidade imediata por referência do ego
interoceptivo a um ego ideal. Há, por isso, alienação do ego interoceptivo
no ego especular, tanto quanto há alienação de mim no outro. Nas palavras
de Merleau-Ponty, a partir do momento em que a criança compreende que a
imagem visual é o correspondente externo do seu corpo vivido
interiormente, «o ego deixa de se confundir com o que sente ou deseja em
cada momento, e a este ego vivido se sobrepõe um ego construído, um ego
visível de longe, um ego imaginário, o que os psicanalistas chamam de
super-ego. A partir daqui, a atenção da criança é captada por este ego acima
de mim, ou por este ego diante de mim»76.
Neste sentido, concluímos que a experiência da imagem especular
deve ser compreendida como antecipação pela infância da compreensão do
fenómeno de alteridade. A imagem no espelho é um pré-outro. Ou seja, a
imagem do espelho «é matriz simbólica onde o ego se precipita numa
forma primordial antes de se objectivar na dialéctica de identificação com o
outro»77.

76
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 204.
77
M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 203.

124
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Afinal o que significa o inconsciente? Michel Henry


leitor de Freud.

Nuno Miguel Proença∗

Estou desde finais de 2007 como pós-doutorando do Centro de


Filosofia das Ciências e tenho estado interessado pelas obras de Michel
Henry e de Henry Maldiney em que estão presentes perspectivas filosóficas
sobre a origem da Psicanálise. É por essa razão, e porque me interessa a
maneira como as noções de «pulsão», de «afecto» e de «inconsciente» se
elaboraram na filosofia antes de serem empregues pela psicanálise que me
interessei por um texto de Michel Henry de que vos proponho hoje uma
apresentação. Tem por título «Significação do conceito de inconsciente
para o conhecimento do homem»78. Encontra-se numa recolha de textos
com o título «Auto-doação» e é oriundo de uma conferência pronunciada
por Henry na Academia das Ciências de Moscovo, no dia 31 de Maio de
1986, aquando de um colóquio com o título «O Inconsciente».
Permitam-me que comece por uma série de perguntas às quais
certamente já encontraram resposta. Seremos capazes de enumerar de cor
as palavras que conhecemos ? Quem é que está actualmente consciente da
série de termos e da significações destes, que conhece numa língua, a
começar pela língua natal ? E se nos sentássemos a escrever uma a uma as
palavras que conhecemos, de quantas nos lembraríamos de facto ? De um
número certamente inferior àquelas que de facto sabemos. Onde é que se
encontram as palavras que às vezes nos faltam, e que conhecemos, e que
procuramos e que não encontramos ou que encontramos às vezes enleadas

Pós-doutorando, CFCUL.
78
«Signification du concept d’inconscient pour la connaissance de l’homme», in Auto-donation, Paris,
Beauchesne, 2004, pp. 87-110. A tradução dos trechos citados é da nossa responsabilidade.

125
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

no novelo de outras tantas? Uma resposta seria simples, aparentemente :


encontram-se na nossa memória, claro, mas algures nela onde, por uma
razão qualquer, não acedemos só pela vontade e da qual, por isso, parece
que não estamos conscientes. A meu ver estas perguntas permitem-nos
entender aquilo que Freud nos apresenta com o nome de inconsciente, não
aquilo a que o próprio dá o nome, num texto de 1926 sobre « A
manipulação da interpretação dos sonhos», de misterioso inconsciente, mas
a série de materiais que a um momento ou outro escapa à nossa consciência
apesar de determinar os conteúdos desta, e sobretudo aqueles que parecem
excedê-la: lapsos, afasias, actos falhados, inibições, fobias, esquecimentos,
erros sucessivamente renovados, por exemplo, e, claro, entre outras coisas,
os sonhos. Ora, é precisamente a possibilidade dos conteúdos de
consciência serem determinados por materiais não conscientes que parece
levantar um problema à filosofia e nomeadamente à filosofia do
conhecimento na qual a consciência tem um papel predominante.
O esclarecimento fenomenológico de Michel Henry sobre a
Significação do conceito de inconsciente para o conhecimento humano
desconstói a incompatibilidade aparente entre as hipóteses freudianas para
a constituição de uma psicologia do inconsciente e as restantes ciências
humanas no sentido em que situa as primeiras na continuação do momento
metafísico que serve de fundamento às segundas. Mas porquê?
«A questão do conhecimento do homem é muito particular,
simultaneamente solidária e diferente da questão do conhecimento em
geral. O conhecimento é as mais das vezes o conhecimento de algo que é
em-si estranho ao próprio conhecimento, algo de opaco e de cego que
precede, ao que parece, o olhar que o conhecimento fará incidir sobre ele e
que, graças a esta, será tirado do seu lugar natural para ser levado, nela e
por ela, até à luz. O ente da natureza, a pedra, o átomo, a molécula, banham
numa espécie de noite original e cósmica que quase não se pode pensar e

126
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de onde o conhecimento os vem arrancar para os projectar perante este


olhar da consciência de modo a oferecê-los a esta. O homem, pelo
contrário, se o considerarmos no que tem de específico, quer dizer naquilo
que o diferencia de qualquer outro ente, não precisa, para aceder à luz da
fenomenalidade, de intervenção de um princípio que não seja ele e que
viria subtraí-lo posteriormente a uma dimensão anterior de escuridão, é ele-
próprio esta luz, ele próprio o conhecimento, é «consciência»»79. A tese
assim resumida parece simples de entender : a Humanitas do homem seria
assim definida como «fenomenalidade, mais precisamente, como
fenomenalização da fenomenalidade e assim em oposição radical com
aquilo que pelo contrário se encontrara em-si desprovido do poder de
cumprir a obra da manifestação. No pensamento de Descartes, esta
oposição é a da alma e do corpo»80.
A consideração é bastante geral mas é importante. Não só porque,
como relembra M. Henry, «antes da psicanálise e como seu antecessor
incontornável, o conceito de inconsciente vai também levantar-se e
aparecer em todo o lado na filosofia clássica ocidental como recusa ou
consequência do cogito de Descartes»81, mas também porque, no
seguimento — pelo menos histórico— disto, o inconsciente vai ser
apresentado por Freud como aquilo que da vida psíquica excede a
actualidade da manifestação consciente. A ideia de que Freud é um
herdeiro tardio do desenvolvimento da metafísica Ocidental é a tese de
fundo da Genealogia da psicanálise que Michel Henry escreveu poucos
anos antes da conferência pronunciada em Moscovo e que reencontramos
neste texto.
O primeiro texto de Freud ao qual Henry presta atenção é de 1912 e
tem por título «Abrégé de psychanalyse» e é importante por verificar a
79
M. Henry, «Signification du concept d’inconscient pour la connaissance de l’homme», in Auto-
donation, Entretiens et conférences, p.87.
80
Ibid.
81
Ibid., p.88.

127
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

hipótese de que a noção de consciência com a qual Freud trabalha e a partir


da qual elabora as suas hipóteses é aquela que o senso comum herdou de
forma mais ou menos esclarecida da tradição metafísica. « A primeira
indicação de Freud, diz Henry, não deixa de parecer decepcionante ou até
mesmo desconcertante». E o que é que escreve o Freud de 1912 ? Escreve
que «não é preciso explicar aqui aquilo a que damos o nome de consciente
e que é o consciente dos filósofos e do grande público». Uma segunda
resposta, escreve Henry, impressiona pelo contrário pela sua clareza.
Depois de ter contestado a identificação filosófica tradicional entre
«psíquico» e «consciente», a Nota sobre o inconsciente em psicanálise de
1912 declara de forma categórica : «Chamemos pois « consciente » a
representação que está presente à nossa consciência e que percebemos
como tal e digamos que é este o único sentido do termo « consciente»». A
partir desta definição de consciente, escreve Henry, chegamos depressa ao
inconsciente pelo caminho que é o de Freud : «Se de facto a essência da
consciência reside na representação, quer dizer na posição frente a si sob
forma de um redobrar ou de um desdobrar, qualquer representado, quer
dizer o poisado em frente, o que é visto e conhecido – no texto de Freud :
«A representação que está presente à nossa consciência e que percebemos
como tal» - encontra-se afectada pela finitude que é própria a qualquer
representação como tal e que é a do espaço de luz aberto por ela. Noutros
termos: só me posso representar uma coisa de cada vez, claro com uma
zona de co-apresentação marginal sempre co-dada mas em todo o caso
estreita e já afogada na sombra. Se portanto ser, é ser consciente e, se ser
consciente é ser representado, então a quase totalidade deste ser fica fora da
representação efectiva ou actual»82. Não estamos longe da constatação de
há pouco de que conhecemos muitas mais palavras do que aquelas que
somos capazes de enumerar. Sobretudo se tivermos em mente a ideia de

82
Ibid. p.88.

128
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

que as palavras são acompanhadas de representações e estas de palavras. Se


prosseguirmos a leitura do texto de Henry damo-nos assim conta de que
«podemos ainda exprimir esta finitude ontológica radical ao dizer que da
representação está excluído quase todo o representado». E é de facto aquilo
que encontramos, dito de outra forma, no texto de Freud que Henry cita:
«Podemos ir mais longe, escreve Freud, e admitir, como esteio da tese de
um estado psíquico inconsciente, que a consciência não comporta a cada
momento senão uma conteúdo mínimo de tal forma que, à parte este, a
maior parte daquilo a que chamamos conhecimento consciente se encontra
necessariamente, durante os mais longos períodos, em estado de latência,
portanto num estado de inconsciência psíquica. Se tomássemos em
consideração a existência de todas as nossas lembranças latentes, passaria a
ser perfeitamente inconcebível contestar o inconsciente» («O
Inconsciente», in Metapsicologia). Henry chama no entanto a nossa
atenção para as insuficiências desta hipótese que, no seu entender, Freud
partilha com a filosofia e a psicologia do seu tempo e nomeadamente com
Bergson e que retoma a resposta clássica que à pouco demos às nossas
perguntas iniciais: as lembranças nas quais já não pensamos são
conservadas no inconsciente. «Mas a memória é compreendida por Freud,
no entender de Henry, da mesma maneira que por toda a esta filosofia e
toda esta psicologia, como uma faculdade representativa»83. É aí que
residem as dificuldades da demonstração freudiana: «não é pois só às
lembranças, mas a todas as representações, a todas as que ultrapassam o
campo reduzido da actualidade consciencial, que se aplica esta
demonstração com a sua consequência: a sua hipóstase sob forma de
representações virtuais num inconsciente grosseiramente realista inventado
com o propósito de as receber nele»84. Esta hipótese deveria então rejeitar-

83
Ibid. p.89.
84
Ibid., p.90.

129
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

se por não parecer trazer nada de novo, nem à metafísica nem às ciências
humanas.
Segue, nos termos de Henry, uma desconstrução da metafísica da
representação e do objectivismo que caracteriza o conhecimento que só se
baseia nela e que a psicanálise partilha porque o conceito de inconsciente
que é o dela a determinado momento resulta desta mesma metafísica. Só
que, escreve Henry, «Desconstruir não quer dizer rejeitar pura e
simplesmente e desconhecer o mundo da representação, o próprio mundo.
Desconstruir quer dizer trazer à luz um fundamento mais profundo sobre o
qual se eleva a representação e sem a qual não seria nada». E talvez a
psicanálise tenha um papel a desempenhar ao termo desta desconstrução. E
mais adiante: «o fundamento derradeiro da representação e assim do
pensamento no sentido em que habitualmente é entendido e nomeadamente
no «penso, sou», só se obtém pela exclusão e mesmo pela expulsão da
representação e assim do próprio pensamento»85. Ora, o que esta
desconstrução traz à tona, não é a recusa psicótica da vida psíquica, nem
uma detestação do pensamento, é antes o que a afectividade tem de não
erradicável. «Aquilo a que os psicólogos chamam afecto, sentimento, etc. é
sempre só a objectivação posterior daquilo que é edificado interiormente
em nós próprios, como se edifica o primeiro aparecer, a essência original
da Psique, quer dizer, a prova de si mesmo in-ekstática que encontra a sua
efectuação fenomenológica e assim a sua substancialidade fenomenológica
na afectividade de que falamos»86. Já agora permitam-me que vos leia a
maneira como Henry fala desta afectividade transcendental que desvela por
uma leitura de Descartes das duas primeiras Meditações Metafísicas e das
Paixões da Alma, a mesma leitura com que inaugura a Geneaologia da
Psicanálise: «Transcendental, a afectividade não é aquilo a que chamamos
um afecto, um sentimento, o sofrimento ou a angústia ou a alegria, mas
85
Ibid., p.95.
86
Ibid. p.98.

130
OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

aquilo que faz com que algo como o afectivo em geral seja possível e
alastre a sua essência em todo o sítio em que se cumpre, antes da ek-stase
do mundo, a primeira implosão de si da experiência, o pathos primitivo do
ser e dessa forma de tudo o que é e será»87. E essa afectividade escapa à
radicalidade da dúvida que incide sobre o conteúdo das representações e
sobre tudo aquilo que se dá no horizonte onde se ex-põe o que o espírito
pode ver, com os sentidos ou o intelecto. Resta um video videor, diz
Descartes «parece-me que vejo. Ora, continua Henry, falaciosa ou não, a
visão não deixa de existir enquanto dela se faz prova, em cada ponto do seu
ser, na sua afectividade e por ela. Sentimus nos videre diz Descartes»88. A
qualidade afectiva da vista, independentemente da verdade dos conteúdos
que são os seus e enquanto estando relacionada com os conteúdos do
mundo, é verdadeira, tão verdadeira como o horror, «intacto no seu próprio
ser, na carne da sua afectividade, mesmo que o mundo da representação se
tenha dissipado na ilusão do sonho» que a suscitou.
É precisamente a partir desta «dimensão de experiência na qual o que
deve ser entendido como Fundo da Psique se sente a si-próprio numa
imediação radical, antes da «relação a» um «ob-jecto», antes do surgimento
de um mundo e independentemente dele» que Henry vai esclarecer a
significação da hipótese do inconsciente, noutro momento da sua
elaboração. «Se a Psique se revela originalmente a si-própria na imediação
do afecto e do seu pathos, independentemente do afastamento da
objectividade e antes de qualquer representação, então toda […] [a]
problemática [de um inconsciente das representações latentes na qual se
encontra tudo aquilo que escapa à realidade psíquica] se desmorona. Por
duas razões. «Por um lado, diz Henry, o psíquico não é constituído em si-
próprio […] como ser representado, também não tem de conservar esta
estrutura, que não é a sua, quando se encontra posto fora da actualidade
87
Ibid.
88
Ibid., p.99.

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fenomenológica da consciência, quer dizer, precisamente fora do ser


representado. O conceito de representação inconsciente é absurdo. Por
outro lado, é esta essência interior e original da Psique que tem de ser por
fim pensada por si-própria se quisermos adquirir um conhecimento novo e
mais profundo do homem, que não o reduza, como na filosofia tradicional
da consciência ou nos seus rebentos positivistas, ao sujeito vazio ou ao
conteúdo morto de uma representação»89. E nesse caso, o que é que resta da
alma? «O que está sempre em posse da alma, diz Henry, relembrando
Descartes não é o conteúdo representativo das ideias, é o poder de as
formar. Assim sendo, a análise, deixando o universal da representação deve
virar-se para estas determinações essenciais da Psique que são Força e
Poder». Mas em que sentido é que estes dois termos são entendidos no
texto de Henry? «O nosso corpo, por exemplo, é o conjunto dos poderes
que temos sobre o mundo ao qual nos abre por todos os sentidos e pela sua
motricidade. Mas só é tal porquanto é capaz de se apoderar de cada um dos
seus poderes de forma a coincidir com eles e a pô-los à obra. Uma tal
coincidência não é mais do que a subjectividade original e essencial que é a
prova imediata dos seus poderes, o saber deles portanto, mas um saber que,
em vez de os representar, se identifica com eles e com a possibilidade de
princípio de os manifestar – um saber fazer, portanto»90. E também, agora
no que diz respeito à Força: «Temos experiência da uma força com a qual
coincidimos e que por esta razão podemos pôr em obra. O meu corpo
original é um posso que sou, é um fazer imediatamente provado e vivido na
praxis subjectiva do mundo». E já agora, antes de voltarmos às
consequências para a avaliação da significação do conceito de inconsciente,
«não há passagem, aliás enigmática, do subjectivo ao objectivo, mas um só
movimento que nos é dado duas vezes, a primeira na sua realidade sob
forma desta praxis vivida, a segunda na objectividade de uma
89
Ibid., p.100
90
Ibid., p.101.

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representação mundana»91 que, poderíamos dizer, é o movimento duplo que


compõe o trabalho da objectivação própria às ciências humanas.
Tendo isto em mente, é fácil de entender o que Henry diz de seguida:
«O conceito freudiano de inconsciente não é só uma consequência e um
avatar da metafísica da representação, implica, de forma mais essencial, a
sua rejeição. Assim se desvela a sua significação profunda, aquela que nos
conduz para fora da representação em direcção ao domínio irrepresentável
da vida, do qual acabamos de reconhecer o primeiro traço: o da acção, da
força, da praxis. Esta inflexão do conceito freudiano de inconsciente em
direcção às camadas originais e fundamentais da nossa experiência deixa-se
adivinhar na Nota sobre o inconsciente em psicanálise de 1912»92. É a
«eficiência dos pensamentos inconscientes durante o seu estado de
inconsciência, é portanto a actividade enquanto actividade inconsciente,
quer dizer, produzindo-se e desdobrando-se independentemente da
consciência representativa enquanto tal e antes dela, que tem agora o
papel de argumento principal» para a justificação da hipótese do
inconsciente, já não é o reaparecimento dos conteúdos de memória ao cabo
de um certo tempo, e de forma involuntária, depois de terem permanecido
em latência. A tese de um «inconsciente eficiente» é também aquela
segundo a qual «não só a acção só é possível em estado de inconsciência,
como só se efectua como tal, fora da representação, precisamente enquanto
poder em coerência consigo na imanência radical da Noite de uma
subjectividade primordial onde não há nem afastamento nem distância em
relação a si, nem intencionalidade nem objecto, onde a luz da objectividade
e da consciência representativa não se levanta nem nunca chega. Ora,
continua Henry, esta Noite original não é nem a da cegueira nem a do caos,
sede dos instintos irracionais cuja ameaça sempre suspensa sobre o mundo
luminoso dos homens se trata de conjurar. E é por isso que na Noite reside
91
Ibid. p. 102.
92
Ibid.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

algo de fundamental para conhecimento humano, mesmo para o


conhecimento científico. Nesta Noite «habita um saber primitivo e
essencial, o saber da vida, o saber-mover-as-mãos, o saber-mexer-os-
lábios, o saber-mover-os-olhos que precede, por exemplo, qualquer leitura,
tornando assim possível a aquisição do saber científico, precedendo-o
consequentemente e fundando-o propriamente. Um tal saber, em virtude do
qual eu me levanto e ando, acompanha a humanidade desde as origens, e
permite-lhe habitar a terra. É um saber que é um saber-fazer, um saber do
fazer e que consiste nesse próprio saber. Por esta razão chamamos-lhe
praxis e compreendemo-lo não como aquilo que se trataria de reduzir e de
eliminar progressivamente enquanto incompreensível e irrepresentável –
que penetra pouco a pouco a luz da consciência. É precisamente um
irrepresentável em si, irredutível ao saber do conhecimento científico, o
que este pressupõe em todas as suas tramitações como condição
despercebida mas incontornável do seu acesso a tudo o que ele sabe e antes
de mais a tudo o que faz»93. É a este irrepresentável que uma metafísica da
representação dá o nome de inconsciente.
Se quisermos estabelecer, com Michel Henry, a significação positiva
do conceito de inconsciente, temos portanto de entender duas coisas.
Primeiro este inconsciente «não serve de argumento a nenhum
irracionalismo, antes constitui o fundamento e a condição inicial de
qualquer saber, mesmo do saber científico»94. Depois, que o «Fundo da
Psique humana não poderia ser um inconsciente absoluto que nada
distinguiria de um ente natural, tal como a pedra»95. O inconsciente antes se
refere « a uma primeira esfera de experiência e precisamente à própria
experiência na sua forma inicial – o que Freud reconhece, escreve Henry, à
sua maneira na Psicopatologia da vida quotidiana quando, ao propor uma

93
Ibid., p.103.
94
Ibid.
95
Ibid., p.104.

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teoria geral das concepções mitológicas, religiosas e metafísicas do mundo,


as explica como projecção exterior da realidade psíquica e assim como
desvelo perante a consciência representativa. A projecção supõe o
conhecimento obscuro daquilo que projecta»96. O trecho da obra de Freud
que Henry cita diz de facto o seguinte: «O conhecimento obscuro dos
factores e dos factos psíquicos do inconsciente (por outras palavras: a
percepção endopsíquica destes factores e destes factos) reflecte-se […] na
construção de uma realidade supra-sensível, que a ciência transforma
numa psicologia do inconsciente»97.
Em termos fenomenológicos, o que é que isto quer dizer, e como é
que se funda? Esta afirmação deve poder indicar uma forma de experiência
que, apesar de estranha à ek-stase da objectividade, e à posição das
representações como objectos, não deixa por isso de ser uma experiência
efectiva. Ora, pergunta Henry, será que existe uma fenomenalidade
irredutível ao mundo? A resposta, que é afirmativa, passa de novo pela
noção de inconsciente tal como a apresenta Freud: por ser constituído no
seu Fundo pelo afecto, o inconsciente verifica essa hipótese de uma
experiência efectiva não objectiva. No artigo com o título «Inconsciente»,
Freud escreve o seguinte, que Michel Henry cita: «é da essência de um
sentimento o ser apercebido, logo ser conhecido pela consciência » e
também «Não há, em sentido próprio, afectos inconscientes como há
representações inconscientes»98. Enquanto é representado pelo afecto, o
inconsciente não tem nada de inconsciente. E, como lembra Henry, é o
sentido profundo da doutrina ao mesmo tempo que o da terapia que se
encontra aqui em questão»99 e que a análise do recalcamento ilustra. Este,
explica, incide sempre em realidade sobre a associação de uma
representação e de um sentimento, associação que tem por efeito quebrar. É
96
Ibid.
97
Freud, Psychopathologie de la vie quotidienne, Paris, Payot, 276.
98
Freud, Métapsychologie, Paris, Gallinard, 1968, p.82 e 84.
99
Ibid., p.105.

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a representação à qual o sentimento estava fenomenologicamente associado


que é recalcada e assim empurrada para o inconsciente. Separado desta, o
sentimento liga-se a outra representação, que é tomada doravante pela
consciência como a manifestação desta última […]. Ora, neste processo de
desestruturação e de reestruturação que é o do recalcamento, o sentimento
nunca deixou de ser conhecido, só o seu sentido, neste caso a representação
à qual estava primitivamente associado, é «desconhecida». O trecho de
Freud que Henry cita (e que eu não retomo) sublinha as consequências que
isto tem em termos dos procedimentos terapêuticos necessários para
restabelecer a ligação inicial e que permitem uma liquidação adequada da
tensão afectiva, por uma lado, e, por outro, a constituição de uma história
essencial da afectividade a partir da análise do destino das pulsões, a
história das ligações sucessivas e das sucessivas transformações dos afectos
de alguém à medida que se instauram «relações sucessivas significativas
com o mundo da representação antes d(a afectividade) ser de uma certa
forma conduzida à sua essência própria: o que acontece quando se levanta a
angústia, não a angústia perante o objecto (Realangst) mas a angústia pura,
ou se preferirmos a angústia perante a pulsão»100.
Se retomarmos a questão da significação filosófica do conceito de
inconsciente para o conhecimento humano, podemos então dizer, com
Henry, que «aqui se dá a pensar a ligação essencial Força/Afecto que
constitui o Fundo da Psique, ao mesmo tempo que o da psicanálise»101 e
que se deixava entrever nas análises sobre o corpo e a potencialidade. «O
Fundo da Psique, de facto, é a pulsão, mas esta não é propriamente psíquica
senão enquanto afecto, o qual é precisamente o «representante» do sistema
bio-energético do organismo na Psique»102. A hipótese mantém-se desde o
Esquisso de uma psicologia científica e vai atravessar a obra de Freud
100
Ibid., p.106.
101
Ibid.
102
Ibid. Henry parece, no entanto, não ter em consideração que para além do afecto, também a própria
representação é um representante da pulsão.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

apesar de algumas transformações. E qual é esta hipótese? É a de que o


sistema bio-energético tem dois tipos de neurónios de que resultam a
afecção interna e a afecção externa do indivíduo vivo»103 como diz Michel
Henry. A afecção ou a excitação interna não é mais do que a pulsão e «não
vêm do mundo exterior, mas do interior do organismo vivo» e por isso não
se lhe pode fugir, contrariamente ao que se passa com a excitação externa
em presença de um perigo, por exemplo, que, provocando a fuga, liquida o
afluxo de energia que provoca. Como pulsão, a afecção interna é afecção
de um eu por si-próprio ou a sua auto-afecção, de maneira que, sublinham e
Freud e Henry, é permanente por «nunca agir como uma força de impacto
momentânea, mas sempre como uma força constante »104, por outro lado
não oferece a possibilidade de se lhe escapar, «porque o eu não pode
escapar a si-próprio»105, por mais que se esforce por isso, nas formas tão
frequentes de negativismo e de detestação de si tão características dos
estados psicóticos, como relembra Freud num texto sobre a «Denegação».
E por isso, na leitura de Henry, a pulsão, no fim de contas não designa em
Freud uma moção particular, mas o facto de nos auto-impressionarmos a
nós-próprios sem que nunca se possa escapar a si-próprio e, enquanto esta
auto-impressão é efectiva, o peso e o encargo de nós-próprios»106.
Então, e para terminar, retomando a exposição de Michel Henry, «a pulsão
é o que ela é sobre o fundo nela do afecto e da essência da afectividade nele
– da essência da vida. A partir desta essência da vida que é a pulsão, é fácil
compreender o conjunto dos fenómenos da Psique mas sem dúvida também
os da cultura e da civilização em geral, porquanto as diversas culturas e
civilizações que já existiram à superfície da terra representam as diversas
vias desenhadas e abertas pela necessidade com vista à sua satisfação»107.

103
Ibid., p.106.
104
Ibid.
105
Ibid., p.107.
106
Ibid. p.107.
107
Ibid.

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E, por último, retomando a questão inicial, e tentando responder-lhe, «a


significação do conceito de inconsciente para o conhecimento do homem,
consiste em remeter, no ser deste, para um domínio mais profundo que o da
consciência clássica, quer dizer do pensamento entendido como
conhecimento objectivo, como representação. O mundo da representação e
das suas determinações só é inteligível a partir de uma instância que lhe é
irredutível, a das pulsões, dos desejos, da necessidade, da acção, do
trabalho, que lhe dão a sua forma, uma forma mais antiga do que a do
pensamento e que este só pode reencontrar posteriormente. A reflexão
sobre o afecto e as pulsões não tem por efeito cortar-nos do mundo onde
vivem os homens, mas pelo contrario, fazer-nos voltar às suas raízes para
exibir o naturante verdadeiro, a autêntica ratio»108.

108
Ibid., p.108.

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