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Ivo
DOSSIÊ
Anete B.L. Ivo*
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O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO ...
Pereira, 2004, 2006) na agenda pública de países orientado para a competitividade, estabilidade e
da América Latina e no Brasil, pelo novo crescimento, ou de retomada do protagonismo do
intervencionismo do Estado. Diante da crise es- Estado nacional. A segunda parte sintetiza as te-
trutural do capitalismo contemporâneo e os resul- ses do desenvolvimento dos anos cinquenta até o
tados apresentados pelas economias de países la- início dos anos setenta. Abrange tanto a formula-
tino-americanas – que combinam crescimento com ção do ISEB como a crítica ao paradigma do de-
distribuição, com base num papel ativo e central senvolvimento periférico, com base na coalizão das
do Estado –, pretendo trazer, neste artigo, uma classes, formulado pela escola paulista
contribuição de natureza mais sociológica, afinada [F.H.Cardoso; E. Faletto (1970), F. Oliveira [1972]
com a historicidade de processos de longo prazo, 1976]. Na sequência, o artigo apresenta as inflexões
em vista de retraçar um fio condutor de inflexões e dos anos oitenta, marcadas, no âmbito internacio-
rupturas do pacto prevalecente entre Estado, bur- nal, por um diagnóstico conservador da
guesia e trabalhadores assalariados (que sustentou governabilidade, que fundamentou a ruptura do
o projeto nacional-desenvolvimentista dos anos pacto distributivo do Estado de Bem-estar pela tese
trinta aos setenta). Tais inflexões possibilitam ob- do déficit fiscal. Tal diagnóstico conflitou, interna-
servar novos arranjos, atores e dimensões entre mente, com o processo de redemocratização das
Estado, mercado e sociedade, no encaminhamen- instituições jurídicas e políticas do país, orienta-
to da questão social, no contexto pós-consenso de do por diversos e novos atores sociais em luta por
Washington. Esse resgate ultrapassa abordagens direitos da cidadania, como um novo projeto de
exclusivamente econômicas (objetivos da estabili- Estado, mais próximo de um regime de bem-estar
dade e da capacidade competitiva do país), ou res- assentado numa concepção de universalidade do
tritas ao papel intervencionista do Estado brasilei- direito social. A esse diagnóstico conservador das
ro, de uma perspectiva exclusivamente agências multilaterais seguem-se, nos anos noven-
institucional, privilegiando dimensões sociais nas ta, mudanças do ajuste estrutural do Estado, vol-
temáticas do conflito e no seu contraponto, ou seja, tadas para a estabilidade e em favor de uma
a temática da integração social, que envolve, de desconcentração do Estado nacional pela via da
um lado, a justiça redistributiva e, de outro, o ho- descentralização das políticas e dos objetivos do
rizonte da política voltada para o objetivo de bem- desenvolvimento endógeno, local e sustentável. A
estar social e da cidadania, sustentadas por coali- quarta parte discute o tema da “integração social”,
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zões e contradições de classes. A sequência não é orientado pela agenda do pós-consenso de Wa-
linear, mas mediada por contradições, avanços e shington e por organizações multilaterais, restrito
recuos entre historicidades de atores internos, lo- a um consenso ampliado de combate à pobreza e
cais e nacionais, e os agentes externos, nem sempre dissociado da dimensão estruturante do mercado
convergentes com os objetivos nacionais e os proje- de trabalho (Ivo, 2001). A conclusão do artigo in-
tos mais singulares de diferentes atores locais. daga se a intervenção estratégica do Estado em
O artigo se estrutura em quatro partes e uma políticas sociais massivas pró-pobres, como via de
conclusão. A primeira resgata algumas linhas enfrentamento das desigualdades estruturais, so-
interpretativas sobre os dilemas entre tradição e ciais e territoriais, aponta para um novo modelo
modernidade no Brasil, expressas no sistema agrá- de desenvolvimento de caráter mais redistributivo
rio colonial, no patrimonialismo e nas relações ra- e voltado para objetivos de bem-estar. Ou seja,
ciais e escravistas. Voltar a esses antecedentes aju- destaca o debate atual do novo desenvolvimento
da a requalificar interpretações críticas sobre a na implantação de políticas sociais focadas “sobre
dualidade estrutural e a discussão do os mais pobres”, como políticas de integração so-
“neodesenvolvimentismo” hoje, ultrapassando cial, as quais estariam condicionando padrões de
perspectivas que entendam o desenvolvimento um crescimento sustentado pelo mercado interno,
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segundo as novas teses das agências oficiais e mul- relações primárias de proteção, sem o filtro da
tilaterais. Até que ponto esses fatores distinguem racionalidade moderna –, era incompatível com o
um novo papel do Brasil na nova ordem mundial? funcionamento da burocracia e das regras demo-
cráticas do Estado moderno. Robert Wegne (2009)
considera que Sérgio Buarque de Holanda não
O LEGADO: antecedentes da noção do desen- enxerga possibilidades de que “a cordialidade se
volvimento, entre tradição e modernidade2 transformasse em civilidade. [...] que exige algum
tipo de racionalidade e abstração.” (p.218).
Diferentes interpretações da sociedade bra- Na linha de discussão sobre os óbices à
sileira antecederam o debate sobre o papel estraté- modernização brasileira, incluem-se, também, in-
gico do Estado nacional, orientado pelo pensamen- terpretações e estudos relativos à herança das rela-
to “desenvolvimentista” da década de 50-60. A tra- ções escravistas, patrimoniais e agrárias, próprias
dição das ciências sociais buscava entender os fun- ao sistema colonial, que seriam impeditivas da
damentos da sociedade brasileira, a relação entre a plena adoção de atributos racionais da sociedade
tradição e a modernidade, que impedia o projeto capitalista. A interseção entre raça e classe, no Bra-
racional civilizador, no sentido de assimilação de sil, foi objeto de pesquisas da escola paulista so-
atributos de uma sociedade com traço fortemente bre relações raciais, liderada por Florestan
iluminista, assentada no triunfalismo da Razão e Fernandes e alguns dos seus discípulos: Fernando
influenciada pelo “desejo do outro” europeu. Henrique Cardoso, Otávio Ianni, Maria Sylvia de
Nessa linha, o retorno a algumas das teses Carvalho Franco, entre outros.4
de Gilberto Freire, em Casa Grande & Senzala Do ponto de vista sociológico, as preocupa-
[1933] e de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes ções e os diagnósticos sobre a tradição traziam
do Brasil [1936] ajuda a recompor algumas linhas implícita a perspectiva de “mudança provocada”,
desse dilema.3 Freire analisa as origens do expressão usada pelos sociólogos dos anos 50, o
patriarcalismo da família brasileira, base de orga- que, segundo Villas Boas (2006), “traduzia o dese-
nização e dominação da estrutura fundiária e jo de intervir [...] para mudar a feição das institui-
escravocrata colonial, centrado no domínio do ções, das mentalidades, da distribuição de poder,
patriarca sobre parentes, filhos, esposa, escravos impondo a regularidade nova à conduta cotidiana
etc., destacando a integração de tais elementos, de homens e mulheres” (p.13). Tal racionalização
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heteronomia presente na “situação de castas”, que para o consumo interno e que, de acordo com o
impedia o negro de assimilar suas condições de autor, tem papel subalterno. Para ele é a esse “se-
“classe”, Fernandes destacava os processos de tor inorgânico” e subalterno e a essa grande maio-
“desajuste estrutural” e o “isolamento sociocultural” ria “desqualificada” que a nação brasileira “deve
dos traços da tradição e da discriminação em rela- seguir” no futuro, conforme analisa Ricúpero
ção às conquistas civilizadas. (2009, p.235). Talvez esteja em Caio Prado Junior
a síntese das principais contradições da sociedade
Resulta deste processo o “desajustamento estru- brasileira, entre as instituições políticas coloniais
tural”, a “desorganização social” típicas dos des-
cendentes dos africanos, relegados a viver um e a estrutura socioeconômica do país. Tais contra-
estado de marginalidade social, verdadeiros pros- dições vão fundamentar os dilemas futuros do
critos das conquistas civilizadas. O preconceito
encaminhamento da questão social brasileira, ca-
e outras expressões de discriminação exerceram
a função “de manter a distância social” e de re- racterizada pelo enorme contingente de trabalha-
produzir o “isolamento sociocultural”, tendo em dores empobrecidos e desprotegidos de direitos
vista a preservação das “estruturas sociais arcai-
cas”. (Arruda, 2009, p.317-318). sociais do mercado informal e por uma sociedade
profundamente desigual no acesso aos direitos. Na
Diferentemente dessas interpretações, que sua análise, Caio Prado destaca “um desacordo
discutem as relações socioculturais e políticas da fundamental entre o sistema econômico legado pela
modernidade brasileira, Caio Prado Junior [1933] colônia e as novas necessidades de uma nação livre
constrói uma interpretação histórica singular da e politicamente emancipada”. Suas interpretações
sociedade brasileira, orientada pela categoria suscitaram debates nos círculos da esquerda brasi-
marxiana de “formação social”. Enfatiza a relação leira, exatamente porque confrontavam com a tese,
entre a colônia e a nação, ou a passagem entre a então predominante, de que a revolução econômica
condição de colônia para a formação da nação, e e nacional brasileira implicava a superação dos con-
reconhece, nessa relação, impasses para a transi- siderados traços “feudais”, como etapa necessária,
ção5 modernizadora. e viam, na burguesia nacional, o ator central do pro-
Com base numa abordagem econômica da jeto de desenvolvimento nacional.6
ordem colonial brasileira, Caio Prado Júnior anali- Caio Prado Junior, no seu livro A Revolu-
sa o “sentido do projeto colonial” que orienta a ção Brasileira [1966], considera equivocada a trans-
formação da colônia na direção de uma constru- posição de um processo de transição de épocas
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ção da nação. Para ele, a formação brasileira só pode passadas, ocorrido em outras sociedades europeias,
ser entendida pelo “sentido da colonização” volta- do feudalismo para o capitalismo, para países como
do para fora, cujo objetivo era fornecer produtos o Brasil. Para ele, a burguesia nacional não existia
para o mercado externo e atender aos interesses da e nem poderia ser um ator central do projeto de
coroa portuguesa. Esse “sentido colonial” forma- desenvolvimento e modernização nacional, porque
va a totalidade entre as partes constitutivas da eco- estava bloqueada internamente pelas estruturas de
nomia e da política colonial brasileiras, articula- dominação tradicionais, e, externamente, pela de-
das à metrópole. Prado Junior reconhecia também pendência do capital internacional. Com essas te-
uma desarticulação entre a produção voltada para ses, Caio Prado Junior deixa um lastro histórico
fora, que ele chama de setor orgânico da sociedade sobre os vínculos da dependência dos processos
colonial agroexportadora, e o setor inorgânico, de acumulação no país que, certamente, constitu-
constituído pela maior parte da população voltada íram-se em referenciais importantes para a crítica
5
O uso da categoria marxiana “formação social” busca 6
Parte da esquerda brasileira, sob a liderança do Partido
apreender a complexidade das sociedades históricas onde Comunista Brasileiro (PCB), acreditava que as classes
sobrevivem diferentes modos de produção que, articu- empresariais, aliadas aos trabalhadores, poderiam adotar
lados, produzem uma totalidade histórica complexa e posições nacionalistas e produzir, ao mesmo tempo, uma
contraditória. revolução burguesa e nacional.
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mentos, indicados no Plano de Metas (1956-1961) Inerente à tese sobre a singularidade do sub-
de Juscelino Kubitschek. O Plano contemplou um desenvolvimento latino-americano, multiplicaram-
conjunto integrado de investimentos com metas se argumentos sobre a persistência de uma “cultu-
para o setor público e privado e pouco estímulo ao ra da pobreza”, que se constituía em freio para o
setor agrário, tendo sido bem sucedido, do ponto desenvolvimento. A tese do “círculo vicioso da
de vista do crescimento econômico, à custa de alto pobreza” de Nurkse (1963), por exemplo, argumen-
endividamento público. Bresser Pereira (2004) as- tava que os países subdesenvolvidos tinham uma
sim define a noção estratégica de desenvolvimen- renda per capita muito baixa e voltada totalmente
to formulada pelos intelectuais do ISEB: para o autoconsumo, o que impossibilitava a capa-
cidade de inversão, fazendo com que a pobreza se
É o processo de acumulação de capital; acumula- perpetuasse.14 Considerava que a via para romper
ção de progresso técnico e elevação do padrão de
vida da população de um país, que se inicia com a tal “ciclo vicioso” seria a atração de investimentos
revolução capitalista e nacional; é o processo de estrangeiros, empréstimos no exterior e assistên-
crescimento sustentado da renda dos habitantes
cia técnica de organismos internacionais. A hipó-
de um país sob a liderança estratégica do Estado
nacional e tendo como principais atores os em- tese era a de que, uma vez estabelecido o polo
presários nacionais. O desenvolvimento é nacio- moderno, seus efeitos positivos se expandiriam, e
nal porque se realiza nos quadros de cada Estado
nacional, sob a égide de instituições definidas e a produção, o consumo e os valores se moderniza-
garantidas pelo Estado. (p.57-58). riam. Ou seja, o progresso técnico e econômico
liquidaria os vínculos da tradição, e o país se ins-
talaria num processo de mudanças que acabaria
A teoria da modernização e a noção de por estabelecer e consolidar a democracia repre-
marginalidade da Cepal11 sentativa (Nun, 2001, p.12-13).
A literatura sociológica brasileira dos anos
O paradigma da modernização, no pós-guer- sessenta e setenta discutiu a natureza e a
ra, converteu-se numa referência central do pensa- especificidade do “desenvolvimento capitalista
mento latino-americano. Segundo Nun (2001, periférico” e seus efeitos sobre a matriz das rela-
p.10), para os economistas, essa modernização sig- ções sociais excludentes, a exemplo das teorias da
nificava a busca do crescimento sustentado do “massa marginal” [Nun, 1969], da “teoria da de-
produto per capita. Para os cientistas políticos, a pendência” [Cardoso; Faletto, 1970], e da crítica
institucionalização de uma democracia represen-
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órico e metodológico, deu largas margens à utiliza- tese sobre os dilemas da tradição e do capitalismo:
ção das abordagens marginalista e keynesiana.
Segundo Oliveira, os estudiosos da depen- A originalidade consistiria talvez em dizer-se que
[...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá
dência latino-americana – orientados segundo a introduzindo relações novas no arcaico e repro-
relação entre centro e periferia e pela constituição duzindo relações arcaicas no novo, um modo de
compatibilizar a acumulação global [...]. Essa
de um “modo de produção subdesenvolvido” –, à
forma parece absolutamente necessária ao siste-
exceção da tese de Cardoso e Faletto, deixaram de ma em sua expansão concreta no Brasil, quando
tratar aspectos relativos às contradições de classes se opera uma transição tão radical de uma situa-
ção em que a realização da acumulação dependia
e às estruturas de dominação que conformam o quase que integralmente do setor externo, para
processo de acumulação próprio a países periféri- uma situação em que será a gravitação do setor
interno o ponto crítico da realização, da perma-
cos, como o Brasil:
nência e da expansão dele mesmo. Nas condi-
ções concretas descritas, o sistema caminhou
[...] toda a questão do desenvolvimento foi vista inexoravelmente para uma concentração da ren-
sob o ângulo das relações externas e o problema da, da propriedade e do poder. (p.28-29, grifos
transformou-se, assim, em uma oposição entre do autor).
nações, passando despercebido o fato de que,
antes de oposição entre nações, o desenvolvimen- Para Oliveira, a conversão de enormes con-
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desde a época colonial, mantiveram à parte “ho- gênero; de ambientalistas, entre outras) em redes
mens livres”, moradores do campo e das cidades, também nacionais e pontos da agenda local, que
considerados como “desocupados”, “vadios”, “va- se entrecruzam com as condições de classe e de
gabundos”, “marginais” ou “resíduos”, frente aos reprodução das camadas populares trabalhadoras,
setores hegemônicos da economia. em níveis de extrema pobreza.
José Murilo de Carvalho (2000) aproxima a tran- A transição brasileira, nesse contexto dos
sição da questão social brasileira à experiência conser- anos 80, orientou-se pelas lutas para expansão dos
vadora da Alemanha, “onde houve aliança dos se- direitos da cidadania, num contexto de mobilização
nhores de terra com o Estado e os industriais” (p.28). nacional por democratização da sociedade e das
instituições políticas de um Estado de direitos e
liberdade de expressão. A sociedade civil se dife-
INFLEXÕES DO PARADIGMA DO DESENVOL- renciou sob a influência de novos atores sociais: o
VIMENTO NOS ANOS OITENTA E NOVENTA: a novo sindicalismo, os novos movimentos sociais
democracia e os ajustes estruturais e as pressões de organizações não-governamentais,
que se expandem desde 1986, os intelectuais, a
O projeto de democratização nacional e a emer- Igreja, os partidos de esquerda de oposição ao re-
gência de novos atores sociais gime militar, a imprensa, e, também, a formação de
um novo empresariado paulista moderno, produ-
A década de oitenta, considerada a “década tor de bens de capital. Esse segmento de classe
perdida” da perspectiva do projeto modernizador, constituiu-se especialmente no governo Geisel, e
pela estagnação econômica dos países da América começa a se autonomizar na formulação crítica de
Latina – com retração da produção industrial, políticas e defesa de interesses “nacionais”.20 O
volatilidade dos mercados e redução do ritmo do Estado desloca-se do seu papel racionalizador da
crescimento –, expressa uma crise do modelo e a mudança e do progresso técnico-industrial para
emergência de novos atores no cenário nacional, atuar prioritariamente como mediador dos confli-
orientada por um processo de resistência política tos dos distintos interesses da sociedade civil, (em-
e pressões para reconhecimento de direitos da ci- presários, trabalhadores e movimentos sociais), que
dadania. Do ponto de vista político, o período ca- pressionam por direitos civis, políticos e sociais.
racterizou-se por um alto nível do conflito social, A alta mobilização dos atores sociais e partidos en-
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des, observa-se, no âmbito internacional, uma rup- formulado em meados da década de setenta pelas
tura do pacto redistributivo que sustentou o Esta- agências multilaterais, aponta como fatores
do de Bem-estar em muitos países e cujos efeitos determinantes da crise: a crise fiscal provocada por
sociais, nos anos 90, mostraram-se mais graves nas demandas crescentes; excesso de democracia,
sociedades latino-americanas, devido ao caráter provocando crise de autoridade; e o
ainda incompleto dos regimes de bem-estar social provincianismo dos Estados nacionais, fatores
nesses países. que, da perspectiva neoliberal, dificultavam a
A oposição dos liberais ao pacto livre circulação de capitais. Esse diagnóstico cons-
redistributivo dos regimes de bem estar não é ta do relatório de Michel Crozier,24 Samuel
nova e expressa tensões clássicas entre forças li- Huntington e Joji Watanuki The Crisis of
berais e socialistas, que postulam por maior ou Democracy, encomendado pela Comissão
menor liberalização de mercados, maior ou me- Trilateral em 1975, voltado para orientar interes-
nor grau de interferência do Estado na regulação ses do capitalismo global, articulando os interes-
do capital e em favor da “desmercadorização”21 ses dos países do Norte (especialmente Estados
da força de trabalho, questões que integram o Unidos e Europa) e Ásia (Japão). Ele orientou as
conflito distributivo (Ivo, 2007). recomendações do Consenso de Washington e as
A crítica liberal ao modelo de bem-estar, na reformas e ajustes do Estado, em diversos países,
década de 50, considerava que as políticas nos anos 90. Os autores desse relatório consideram
redistributivas eram incompatíveis com o crescimen- a incontrolabilidade da crise fiscal nos centros do
to econômico estável e representavam pressão infla- capitalismo avançado como fator inflacionário e de
cionária de difícil controle para os Estados nacio- ingovernabilidade dos Estados nacionais, provoca-
nais (Perrin, 1969). O crescimento acelerado da eco- do pelo welfare. Sugerem medidas restritivas à de-
nomia até os anos setenta neutralizou essas criticas. mocracia pela reforma das instituições políticas sob
Na contramão da crítica dos liberais, na década de hegemonia do mercado, em favor da estabilidade
sessenta, setores da esquerda, dos trabalhadores e econômica e do combate à inflação.
das diversas minorias organizadas em matéria de Em 1981, a Organização para a Cooperação
“igualdade” e direitos, criticavam o regime, exigin- e o Desenvolvimento Econômico – OCDE
do expansão de benefícios e cobertura de direitos (Organization for Economic Co-operation and
civis e sociais, pela pressão dos movimentos soci- Development – OECD),25 que representa interesses
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do Estado (social) protetor de caráter universalista reestrutura na década de 90, reforça a função coer-
para um Estado de assistência focalizada sobre os citiva do Executivo como gestor do ajuste fiscal e
mais pobres, etc. reconverte os princípios universalistas da Consti-
No plano econômico, priorizaram-se políti- tuição de 88, relativo às políticas de seguridade de
cas monetárias voltadas para garantir estabilidade e direitos básicos universais, em ações de combate à
condições necessárias à liberalização e mobilização pobreza pela via de programas estratégicos de assis-
de capitais, especialmente financeiros. Um dos ato- tência social focalizada.
res internacionais centrais dessa mudança é o Fun- Essa transição desloca a “temática do con-
do Monetário Internacional (FMI),26 que, na década flito” (redistributivo) relativo às classes e ao pa-
de noventa, orienta e controla os Estados nacionais drão da integração social para “o tema dos proce-
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dimentos gerenciais” da eficácia da alocação de
O Fundo foi criado em 1944 para evitar desequilíbrios no
balanço de pagamento dos países membros, atuando na benefícios, transferindo princípios estratégicos do
formulação de uma política monetarista e no
monitoramento dos programas de ajustes estruturais, na mercado (eficiência e competitividade) para o Es-
assistência técnica e treinamento aos países membros. tado-gerente reformado, executor das metas de es-
Nos anos noventa, transformou-se em ator internacional
central da nova ordem neoliberal no monitoramento e tabilidade e controle das contas públicas, exercido
controle das contas públicas nos diversos países, em fun-
ção da administração da dívida externa. por uma burocracia estatal moderna e eficiente, que,
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A epistemologia emancipatória e participativa Nancy Frazer (1997), da teoria social crítica reno-
para um novo paradigma de desenvolvimento vada da Escola de Frankfurt, encaminham a supe-
ração da polarização das pautas redistributivas,
Esse movimento de desconcentração do inerente à noção marxiana da classe social, com as
Estado e de emergência desses novos atores e mo- lutas por reconhecimento, associadas à dimensão
vimentos, na década de oitenta, é acompanhado, weberiana do status. A. Honneth, fazendo das
também, de uma crítica epistemológica ao caráter normas implícitas do reconhecimento o fundamen-
dedutivo e estrutural da noção de desenvolvimen- to dos vínculos sociais, produz as bases de uma
to como “um modelo universal” e único, regido legítima crítica social (Géguen; Malochet, 2012,
pelo mercado e pela democracia liberal (ou mode- p.46). Nancy Fraser considera que o retorno à teo-
los autoritários), como se só existisse um tipo de ria do reconhecimento ocorreu pela ênfase cultu-
regulação para os conflitos sociais em todas as so- ral das sociedades contemporâneas (cultural turn).
ciedades e em todos os seus segmentos. Para a autora muitas reivindicações de justiça não
Essa crítica buscava superar a perspectiva exigem apenas melhorias econômicas, mas o reco-
homogeneizadora do desenvolvimento das déca- nhecimento de identidades e diferenças culturais.
das de 50 e 60, como modelo universal, e é pensa- Ela, no entanto, critica as teorias do reconhecimento
da também por alguns “[...] como um projeto de restritas às dimensões culturais, morais e
humanidade solidária inerente a todos os atores identitárias, por desconhecerem a dimensão
sociais com capacidade autotransformadora para redistributiva da justiça. Frazer considera que a
o desenvolvimento” (Prieto, 2010, p.82). Na reali- questão da justiça, nas sociedades contemporâne-
dade, parte dessa epistemologia se constitui nas as, caracteriza-se pela articulação de dois tipos de
lutas por emancipação dos novos movimentos so- “injustiça”: a do tipo socioeconômico, manifesta
ciais (NMS) por igualdade e reconhecimento das pela exploração do trabalho e pelas condições de
diversidades, frente às múltiplas formas de exclu- reprodução material; e as do tipo cultural e simbó-
são social e cultural (de gênero, de raça, de reli- lico, submetidas a formas de dominação cultural,
gião, de gerações etc.), associadas às lutas sindi- desqualificação e invisibilidade social (1997).
cais e dos trabalhadores por justiça redistributiva. A construção dos Fóruns Mundiais na luta
Essas lutas pressionaram por políticas públicas de antiglobalização, nos anos 2000, aparece como
acesso a bens públicos e fundiários (movimentos arena ampla e emblemática de articulação de redes
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dos sem-terra, movimentos urbanos pela moradia, de atores sociais em escala internacional. As
sem-teto, etc.), por melhoria das condições de vida organizações não governamentais e outros
(movimentos contra a carestia, entre outros) e por movimentos sociais comprometidos com a
acesso a serviços públicos urbanos, etc. (Gohn, formulação de novos entendimentos e alternativas
1985; Jacobi, 1989; Sherer-Warren, 2000, 2003). ao desenvolvimento transnacionalizam as redes de
A superação dessa polarização tem sido inúmeros movimentos sociais na crítica ao regime
encaminhada, ao menos, por duas perspectivas. de acumulação globalizado e ao “modelo único”
Primeiramente, encaminha-se para um esforço (Sherer-Warren, 2000, 2003; Gohn, 1985, 2008).
metodológico de transversalidade, no sentido de Uma segunda dimensão da transversalidade
articular as dimensões de trabalho e classe, que é observada a partir da dimensão do território, dos
envolvem redistribuição, com dimensões agentes e dos destinos locais nas suas interfaces e
estratificadas das desigualdades e vulnerabilidades arranjos no âmbito das escalas produtivas dos gran-
sociais, em termos de atributos socioculturais (esco- des projetos ou de políticas locais. Para outros, as
laridade, raça, gênero gerações e território), na dinâ- alternativas do “modelo” visam a considerar a
mica de conformação dos mercados de trabalho. permeabilidade de arranjos entre atores na cons-
Os autores Axel Honneth [1992] 2002 e trução de pautas políticas locais ou regionais, em
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cada país, de acordo com suas singularidades his- territorial de base rural, Wanderley (2000) mostra
tóricas, tal como analisaram Danielle Leborgne e como a opção prioritária por políticas agrícolas
Alain Lipietz para os contextos pós-fordistas na gerou problemas de exclusão de áreas e grupos
Itália (Leborgne; Lipietz, 1991a, 1991b), e José socialmente marginalizados, e a necessidade
Ricardo Ramalho (2005), que discute a formação consequente de integração de espaços e popula-
de novos padrões de participação e a formação de ções na dinâmica econômica e social, assegurando
redes sociopolíticas que se constituem nas locali- a preservação dos recursos naturais como
dades onde ocorrem as atividades industriais. patrimônio de toda a sociedade, além da supera-
Esses arranjos mobilizam atores distintos, ção das desigualdades e da pobreza.
quer se considerem áreas metropolitanas, quer se Assim, do ponto de vista político, o territó-
trate das tipicamente rurais. Nas áreas metropoli- rio incorpora um movimento de mão dupla. De
tanas, o desenvolvimento local contempla arran- um lado, ele se constitui como um espaço de reali-
jos e interesses entre empresas industriais, traba- zação de projetos coletivos e, do outro, ele é o lu-
lhadores e agentes locais. Boschi e Gaitán (2008) gar de intervenção das políticas, dos poderes pú-
destacam que alguns acordos têm grande impor- blicos e dos agentes produtivos. Dessa perspecti-
tância na geração de bem estar para os assalaria- va, um projeto de desenvolvimento local, resulta
dos, a exemplo dos “[...] acordos institucionais do da convergência das demandas e iniciativas locais
mercado de trabalho [...] por meio das negociações e da interferência dos grandes projetos nacionais e
entre os diversos atores envolvidos, no desdobra- supranacionais (Wanderley, 2000). É na tensão
mento de estratégias de qualificação da mão de desses arranjos e escalas entre diferentes agentes
obra.” A singularidade e inovação desses acordos que se conformam e constroem as tendências e
explora a dimensão participativa de empresários e possibilidades do (novo) desenvolvimento, no
trabalhadores “além da fábrica” (Ramalho e âmbito dos lugares e do território. O modelo de
Santana, 2003), considerando os destinos regio- desenvolvimento territorial oficial, promovido pelo
nais, a exemplo da análise sobre a experiência da Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
Comissão Tripartite do ABC paulista (Ramalho; à Fome (MDS), concilia combate à pobreza, segu-
Jacome, 2010) e dos distritos automotivos da bai- rança alimentar e nutricional, proteção ambiental
xada Fluminense (Jacome; Cunha; Ramalho; e geração de renda. O território torna-se, portanto,
Santana, 2006). Por outro lado, o impacto de gran- “um novo espaço de construção de projeto e arti-
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O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO ...
tulação dos sujeitos pelo universalismo econômi- redistributivo, podem induzir uma perspectiva
co liberal do mercado, ou pelo essencialismo dos “comunitarista romântica”, afastada da dimensão do
movimentos identitários. conflito e das instituições do Estado. Ao considerar
A perspectiva reformista do Estado, dos o mercado como a via principal da integração social,
anos 90, orientada para a desconcentração do Es- os processos cooperativos podem ocultar relações
tado em benefício de políticas descentralizadas, assimétricas, de atores hegemônicos do financiamento,
também reforça o papel do local e da transferindo os riscos dos empreendimentos e do
microeconomia na sustentabilidade de um desen- fluxo financeiro para os setores populares.
volvimento endógeno, econômico e social, local e A ideia de sustentabilidade associada ao
regional, como possibilidade inovadora e de desenvolvimento endógeno anuncia uma nova
governança local. utopia de equilíbrio entre crescimento econômico,
Essa dupla matriz – que caminha em para- equidade social e proteção do meio ambiente
lelo e segundo marcos políticos e ideológicos dis- (Lebauspin, 2010), mas mostra também a comple-
tintos, ou seja, aquela dos novos movimentos so- xidade e a polissemia implícitas nesses processos,
ciais emancipatórios e a dos dispositivos que podem “fetichizar o lugar do conflito dos agen-
normativos da reforma institucional – produz uma tes, em favor do mercado.
“convergência contraditória”, que expressa movi- Para alguns (Veiga, 2005; Sachs, 2002, 2004),
mentos de hegemonia e contra-hegemonia, nos a sustentabilidade do desenvolvimento, combina-
quais a polissemia inscrita nas categorias interme- da ao paradigma da igualdade e da proteção social,
diárias de governança, capital social, capital hu- anuncia uma nova utopia da sustentabilidade, ca-
mano, redes sociais, inovação, etc. expressa um paz de agregar projetos coletivos. Assim, a noção
“giro linguístico” (Ianni, 1999) pelo qual essas de “desenvolvimento sustentável”, desde fins do
noções são mediadoras da transformação das rela- século XX, vem se constituindo num paradigma
ções sociais e de poder. aglutinador de projetos críticos ao modelo de cres-
Na linha institucional, na década de noventa, cimento econômico, associando a ele a defesa do
alguns autores (Coleman, 1990; Putnam [1994] meio-ambiente e o princípio da equidade social, e
1996; Baas, 1997; Joseph, 1998; Bullen; Onyx, recolocando o tema da integração social pela via
1998, etc.) destacam os determinantes culturais e da luta contra a pobreza como condição fundamen-
societários como lastro para o desenvolvimento tal do novo desenvolvimento sustentado.29
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breza, com base num empreendedorismo social, e a vo” para a de “sujeito ativo”, protagonista da mu-
via compensatória da transferência de renda a famí- dança social [mobilidade]. Isso implica, para Sen,
lias em condições de extrema pobreza. Qual o al- o acesso e o desenvolvimento de capacidades es-
cance do ponto de vista da desmercadorização, ine- tratégicas das camadas populares.
rente à regulação do Estado com base nas políticas Essa tese orienta os relatórios das Nações
sociais? Unidas (PNUD, 1997) quanto a uma nova pers-
pectiva do desenvolvimento social e humano, e
dá base para a construção de metodologias de
A agenda para os “pobres viáveis”: o mensuração da pobreza segundo “Necessidades
empreendedorismo como via de superação da Básicas”,30 o Índice de Desenvolvimento Humano
pobreza nos anos 2000 (IDH), induzindo políticas públicas que enfatizam
o acesso dos “pobres” a capacidades básicas (edu-
A inserção dos países na dinâmica da acu- cação, saúde, poder, etc.). Acompanhando a pers-
mulação globalizada dificultou a conciliação das pectiva de Sen, o PNUD definiu, na década de 90,
tarefas regulatórias do Estado nacional como pro- o “desenvolvimento humano” como um processo
vedor do desenvolvimento com equidade, num de: alargamento das escolhas pessoais em termos
ambiente democrático. Os efeitos dessocializadores de acesso à vida longa e saudável; aquisição de
(desemprego, precarização, insegurança e empo- conhecimentos; e acesso a recursos necessários a
brecimento de setores médios urbanos) gerados pela um padrão de vida adequado. Agregou a essas es-
reestruturação produtiva e a aplicação rigorosa do colhas valores políticos e humanitários, como: li-
ajuste fiscal pressionaram os liberais para uma re- berdade política, direitos humanos e oportunida-
visão crítica quanto à temática da integração. Aí se des dos indivíduos e cidadãos serem criativos,
insere o que estamos chamando de pós-consenso fomentando a “inovação”.
de Washington, priorizando a agenda internacio- Esse paradigma assenta-se na perspectiva li-
nal “da luta contra a pobreza”, nos anos 2000. Ela beral de autonomia do sujeito “empoderado” – o
integrou os Objetivos do Milênio (2000) formula- “pobre” – e não se refere às condições estruturais
dos pelo Programa das Nações Unidas para o De- determinantes da pobreza. Ele tem influenciado a
senvolvimento (PNUD), que estabeleceu metas para concepção das políticas sociais contemporâneas, com
os países membros de: acabar com a extrema po- base nos paradigmas de capital humano, do capital
203
O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO ...
trabalho) em “ativos” e “bens de capital” do em- senso de Washington orienta-se pela aplicação dos
preendimento, orientados para superar sua con- programas focalizados de transferência de renda,
dição de vulnerabilidade social e pobreza. Se- como “assistência aos mais pobres”. A reorientação
gundo o Banco Mundial, à mobilização desses da política social centrada no combate à pobreza,
“ativos” (propriedades) – que, em realidade, se por essa via, busca reduzir os efeitos adversos dos
constituem em recursos de sobrevivência dos ajustes estruturais e da reestruturação produtiva,
trabalhadores do setor informal –, agregam-se institucionalizando-se à margem do campo da pro-
outros “capitais” sociais e culturais, segundo teção social.31
Moser (1996), como a solidariedade familiar e O desenho da nova política, no contexto
as redes comunicativas, consideradas pela eco- de hegemonia neoliberal, implicou distensão da
nomia popular como “oportunidades” no enca- relação pilar entre proteção social e emprego,
minhamento das soluções para as condições de rompendo o modelo que caracterizou a constru-
pobreza. Ou seja, as formas de resistência dos tra- ção parcial do Estado social.32 Essa mudança se
balhadores autônomos da economia informal são fez através de um novo modelo de focalização
ressignificadas como “virtudes do capital”. da política social, que envolve responsabilida-
A estratégia orientada para a microeconomia é des partilhadas entre Estado e sociedade, no en-
a via liberal para os “pobres viáveis”, aqueles com caminhamento da assistência aos mais pobres.
possibilidade de se transformar em “cidadãos em- A ideia é fortalecer a capacidade dos pobres de
preendedores e consumidores”, pela via de integração lutar contra pobreza, integrados à dinâmica do
ao mercado. Sem desconhecer a potencialidade dos mercado, potencializando, ao mesmo tempo, o
empreendimentos solidários e da microeconomia consumo interno. Essa mudança obedece a al-
no fomento ao mercado interno e mesmo a supera- guns princípios: o estratégico (flexibilidade e
ção de situações de pobreza, a tese da auto-organi- segmentação da focalização); o societário, de ca-
zação estratégica do setor popular ativo transforma ráter local (partilha de responsabilidades entre
“os pobres viáveis”, aqueles inseridos no mercado, público e privado via sistemas de governança lo-
em agentes financeiros e consumidores no âmbito cal); o da racionalidade econômica do mercado
local, pelo acesso ao crédito e ao consumo, assu- (mediante a transferência direta de renda aos
mindo também os riscos do endividamento no beneficiários dos programas, que se transformam
médio prazo. Portanto, a mobilização das variáveis em consumidores).
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societais e culturais como fontes de desenvolvimento O centro da política social, no contexto atu-
pode ocultar o caráter conflitual do mercado em fa- al, desloca a dimensão mais universalista de direi-
vor das “virtudes morais” da “cooperação”, tos e redistribuição da riqueza nacional para o trata-
reconvertidas, então, em bens do mercado. Trata-se mento compensatório da assistência a partir dos seus
de reorientar a sociabilidade do setor popular, trans- efeitos – a pobreza, a miséria –, aprofundando o
formando quaisquer tipo de “inserção” em “bem” conflito redistributivo na base da pirâmide da ren-
de mercado e em supostas virtudes da “integração 31
O campo de atuação das políticas sociais, no Brasil, após a
social” [pelo mercado]. Constituição de 1988, estrutura-se em torno de três núcle-
os de direitos (IPEA, 2003): (i) aquele dos direitos sociais
básicos estruturados no aparelho do Estado; (ii) os vincu-
lados constitucionalmente, que respondem pela garantia
dos direitos sociais básicos constitucionais, mas não estão
protegidos de cortes orçamentários (Ex. Programa de Re-
A agenda pública para os “pobres não-viá- forma Agrária; Fome Zero); e (iii) e os programas
veis”, na luta contra pobreza dos anos 2000: emergenciais dirigidos a atenuar situações de vulnerabilidade
social de segmentos específicos (Ivo, 2004a).
os programas de transferência de renda 32
Esse Estado foi apenas parcialmente implantado no
Brasil. Os direitos sociais restringiam-se à camada de
trabalhadores assalariados do mercado de trabalho for-
A segunda via que encaminha a temática da mal. A Constituição de 88 universalizou o direito à as-
sistência como política securitária de proteção a todos os
integração social no contexto da agenda pós-Con- cidadãos.
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Anete B. L. Ivo
da, entre “pobres” e “quase pobres”, ou seja, pesso- mínimo e a recuperação de postos de trabalho pro-
as em condição de pobreza e trabalhadores assalari- tegidos, juntos, influenciaram a queda dos indica-
ados. Como indica Lautier (1999), “desvinculando dores de desigualdades de renda. Isso teve impac-
a pobreza dos seus determinantes estruturais, se- to político e simbólico, especialmente no ambiente
param-se os indivíduos submetidos a essa condi- internacional, consolidando a “prova da eficácia”
ção dos seus lugares no sistema produtivo”. do modelo de transferência de renda em favor do
Assim, o encaminhamento da integração soci- mercado, o que estaria favorecendo a mobilidade
al com base na erradicação da pobreza desvincula os social e a expansão de uma nova classe média,
“pobres” do sistema de proteção social, e da festejada pelos agentes do mercado.
estruturação do mercado de trabalho, passando a as- Do ponto de vista analítico, no entanto, é
sistência a constituir-se como um atributo individual importante considerar o illusio que reafirma o mer-
“moral” dos “mais” necessitados. Essa reconversão cado como instância justa e autorregulável. Em pri-
transforma o princípio da universalidade dos direi- meiro lugar, a renda, apesar de relevante, não é su-
tos sociais em programas e medidas técnicas e es- ficiente para determinar mudança de classe social.
tratégicas de selecionar, controlar e atribuir benefí- Nos setores populares, ela é extremamente variável,
cios a grupos de famílias, não se constituindo em em função da incerteza e da vulnerabilidade do
direitos (Ivo, 2001, 2004a), ainda que operem o alí- trabalho informal. A incorporação de capital cul-
vio das condições de extrema pobreza. tural constitui-se também, segundo Bourdieu, em
A responsabilidade do Estado no provimen- fundamento da hierarquia social, definindo as con-
to do bem-estar é reorientada para a norma da efi- dições distintas de apropriação de bens materiais
ciência na seletividade e acompanhamento das e ideais, como analisa Souza (2010). Do ponto de
condicionalidades. Institui-se, assim, um novo vista da relação de trabalho, a renda não explicita
paradigma da “justiça social com eficácia” (Ivo, a precarização das relações de trabalho, os déficits
2011), pelo gerenciamento da distribuição dos de educação e o capital cultural, valorizando mais
mínimos sociais para os que realmente precisam, o aumento do consumo. O triunfalismo do “con-
evitando-se, de acordo com essa tese, supostos sumo dos pobres” reproduz outra illusio, a que
desvios nos gastos sociais. No caso do Brasil, o considera que a nova “classe média” formaria ago-
Programa Bolsa Família manteve, nos últimos anos, ra a espinha dorsal da estrutura social brasileira.
um patamar de 0,4 % do PIB, e a expansão e o
205
O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO ...
nos direitos da cidadania e nos objetivos mais ar a relevância da agenda social do desenvolvimen-
amplos da seguridade econômica e alimentar, sem to hoje implica analisar um padrão decisivo do
desconhecer as melhorias no alívio das famílias Estado na distribuição e no enfrentamento da di-
em condição de pobreza.34 mensão estruturante e qualificada de inserção pelo
Diante da intervenção do Estado em políti- mercado de trabalho e na proteção sustentada em
cas massivas dirigidas aos segmentos mais pobres direitos sociais, ou na regulação das relações não
– o que resultou num padrão de crescimento com mercantis (base de que tratam as políticas sociais).
redistribuição, em países da América Latina –, al- Conquanto se reconheçam resultados positivos no
guns autores e agências (CEPAL, 2010; Delacourt, alívio à pobreza, políticas vigorosas de proteção e
2009) indagam se estamos voltando a políticas integração social não se restringem a programas
keynesianas centradas num papel central e governamentais de transferência de renda, mas
intervencionista do Estado como indutor de um dependem das condições estruturais da distribui-
desenvolvimento sustentado na consolidação do ção, da qualidade das políticas públicas e da qua-
mercado interno. Nesse caso, as políticas massivas lidade de inserção dos indivíduos na esfera do
de transferência de renda teriam fomentado a eco- trabalho, eixo fundamental da integração social.
nomia popular na constituição de um processo de Os dispositivos normativos das agências multila-
desenvolvimento endógeno. terais e dos agentes dos governos, relativos à tese
Bresser Pereira35 (2006) e Renato Boschi e da “eficiência do gasto social”, geraram uma “co-
Flávio Gaitán (2008),36 como outros economistas, munidade epistêmica” (para usar expressão de
reabrem o debate sobre um neodesenvolvimentismo Palier; Prévost, 2006), que reforça a eficácia da
no Brasil, que articula instituições de governo e “focalização” na sustentação de um desenvolvimento
instituições econômicas na coordenação de um “moralmente” mais justo, uma vez que orientado
acordo nacional para crescimento e distribuição. para os que mais precisam. A aplicação massiva
Boschi e Gaitán (2008) advertem que esse acordo das políticas de transferência de renda e seus efei-
“[...] não significa subsumir a política ao domínio tos sobre o mercado interno e sobre indicadores de
da economia, senão [...] reclamar a necessidade de desigualdades, ainda que tenham resultado também
cada sociedade de estabelecer acordos mínimos que e, sobretudo, da ação de outras políticas (como a
permitam o desenvolvimento e o bem-estar” (p.313). aplicação de direitos básicos constitucionais, a apo-
Nesse sentido, eles reconhecem que a agenda so- sentadoria rural e o aumento do salário mínimo),
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O PARADIGMA DO DESENVOLVIMENTO ...
This paper aims at historicizing the Cet article cherche à historiciser les contextes
contexts that reorient the concept of qui réorientent la notion de développement au
development in Brazil, from the 30s to the 80s, Brésil, des années 30 aux années 80, en passant
going through the neoliberal adjustment of the par l’ajustement néolibéral des années 90 pour en
90s, to the current inflections that question if arriver aux inflexions actuelles qui se demandent
the new massive and strategic interventionism si l’interventionisme massif et stratégique de l’État
of the State in social policies for the poorest points au sein des politiques sociales en faveur des plus
to a new model of development. The analysis pauvres est le signe d’un nouveau modèle de
presents inflections of the cepalino model, développement. L’analyse montre des inflexions
Cepal’s theory (Economic Commission for Latin du modèle cépalien des années 50-60 et essaie de
America) of the 50s and 60s, in order to prioritize donner la priorité à des dimensions sociales dans
the social dimensions to mediate contradictions la médiation des contradictions entre l’économie,
amongst economics, politics and institutional la politique et l’institutionnel. Le fil conducteur
affairs. The leading thread adopts two analytical suit deux vecteurs d’analyse: le thème du conflit
vectors: the topic of conflict (redistribution) and (redistributif) et celui de l’intégration. Le premier
integration. The former is established on class se base sur les coalitions de classes et les conflits
coalitions and confrontation between national entre les acteurs nationaux et les agences
actors and multilateral agencies; integration, in multilatérales; et celui de l’intégration, à l’opposé
the counterface of the conflict, takes into du conflit, qui considère l’ouverture des politiques
consideration the opening of public policies as publiques, mais aussi l’innovation acteurs sociaux
well as the innovation of social and political et politiques dans de nouveaux arrangements qui
actors in new arrangements oriented to the visent des objectifs de bien-être social et de
objectives of the social welfare and citizenship, citoyenneté de manière plus soutenue.
from a more supported perspective.
Anete B.L. Ivo - Socióloga. Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da UFBA. Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da UFBA. Titular da Cátedra Simon Bolivar
(Université de Paris III, 2000). Professora visitante da Université Paris XII (2006). Pesquisadora visitante do
CREDAL-CNRS (1991). Editora do Caderno CRH (1996 a março de 2012). Seus trabalhos tratam sobre
modernidade, questão social, Estado, espaço público e local governance. Publicou, entre outros, Metamorfo-
ses da Questão Democrática (Buenos Aires, 2001) e Viver por um fio [...] (Annablume, 2008). Em co-autoria
com Ruthy Laniado, The Brasilian Approch to Crisis: [...] In: U. Schuerkens. Socio-economic Outcomes of the
Global Financial Crisis (Routledge, 2012) e The Transformation of the Social Issue: [...]. In: U. Shuerkens.
Globalization and Transformations of Social Inequality (Routledge, 2010).
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