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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CENTRO DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA

LINGUÍSTICA TEXTUAL

Autoria:
Rosângela Hammes Rodrigues
Nívea Rohling da Silva
Vidomar Silva Filho
Linguística Textual


Período
Rosângela Hammes Rodrigues
Nívea Rohling da Silva
Vidomar Silva Filho

Florianópolis - 2009
Governo Federal
Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro de Educação: Fernando Haddad
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Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a Distância


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ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica
R696l Rodrigues, Rosângela Hammes
Linguística textual / Rosângela Hammes Rodrigues, Nívea Rohling
da Silva, Vidomar Silva Filho. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2009.
158p. : 28cm
ISBN 978-85-61482-19-0
Inclui bibliografia
UFSC. Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância

1. Linguística. 2. Análise do discurso. 3. Ensino a distância. I. Silva, Nívea


Rohling da. II. Silva Filho, Vidomar. III. Título.

CDU: 801

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da


Universidade Federal de Santa Catarina.
Sumário
Apresentação....................................................................................... 7

Unidade A: Primeiros passos e objeto(s) de pesquisa........... 9


1  Panorama histórico da Linguística Textual.......................................... 11
2  Concepções de texto...................................................................................17

Unidade B: Padrões de textualidade.........................................25


3  Noções Gerais.................................................................................................27
4  Coesão textual................................................................................................37
4.1 Coesão referencial��������������������������������������������������������������������������������������������41
4.2 Coesão sequencial��������������������������������������������������������������������������������������������48
5  Coerência ........................................................................................................61
5.1 Elementos linguísticos������������������������������������������������������������������������������������62
5.2 Conhecimento de mundo�����������������������������������������������������������������������������64
5.3 Inferências ����������������������������������������������������������������������������������������������������������67
5.4 Focalização����������������������������������������������������������������������������������������������������������69
5.5 Relevância������������������������������������������������������������������������������������������������������������73
6  Intencionalidade e aceitabilidade...........................................................79
7  Informatividade.............................................................................................87
8  Situacionalidade............................................................................................97
9  Intertextualidade....................................................................................... 101

Unidade C: Abordagens atuais................................................. 113


10  Referenciação............................................................................................ 115
11  A noção clássica de anáfora e a perspectiva socio-
cognitiva sobre os anafóricos............................................................. 121
12  As formas nominais referenciais........................................................ 125
Unidade D: O texto na sala de aula......................................... 137
13  O texto nas aulas de Língua Portuguesa......................................... 139
14  O que é texto para o aluno?................................................................. 145

Considerações Finais.................................................................... 153

Referências Bibliográficas........................................................... 155


Apresentação
Caros alunos,

A
presentamos a vocês o livro impresso da disciplina de Linguística Tex-
tual, que faz parte do conjunto de disciplinas da quarta fase do Curso
de Licenciatura em Letras – Português na modalidade a distância.

Este livro tem por objetivo abordar o histórico dos estudos da Linguística Textu-
al e, principalmente, seus conceitos mais importantes para a formação do pro-
fessor. Além disso, objetiva discutir a questão do texto na disciplina escolar de
Língua Portuguesa. Para dar conta do objetivo proposto, o livro está organizado
em quatro Unidades. Na Unidade A, apresentamos um breve panorama histó-
rico da Linguística Textual e discutimos as concepções de texto que foram cons-
truídas durante o percurso de consolidação dessa área, e que fizeram com que
a disciplina fosse adotando, em sua trajetória, um caráter dinâmico e multidis-
ciplinar. Na Unidade B, introduzimos o conceito de textualidade e desenvolve-
mos os padrões de textualidade. A partir dessa Unidade, incluímos, ao final das
seções, uma orientação mais específica para a formação do professor, a qual re-
laciona os conceitos teóricos abordados com a prática de ensino-aprendizagem
dos conteúdos na disciplina de Língua Portuguesa. Na Unidade C, abordamos
um dos temas mais recentes de estudo da Linguística Textual, a referenciação.
E, por fim, na Unidade D, relacionamos mais especificamente o estudo teórico
do texto com o ensino-aprendizagem do texto nas aulas de Língua Portuguesa.

Nosso objetivo final é que este livro seja um meio eficaz para introduzir os
conceitos fundantes desse importante campo de estudo que é a Linguística
Textual, bem como demonstrar a articulação desses conceitos com o ensino-
aprendizagem das práticas de leitura, escuta e produção textual na disciplina
de Língua Portuguesa.

Rosângela Hammes Rodrigues

Nívea Rohling da Silva

Vidomar Silva Filho


Unidade A
Primeiros passos e objeto(s) de
pesquisa

Duas jovens lendo (Pablo Picasso, 1934)


Nesta Unidade, vamos apresentar uma introdução aos estudos da
disciplina de Linguística Textual.

Os objetivos visados são:

ӲӲ Conhecer a trajetória da Linguística Textual;

ӲӲ Conhecer as diferentes concepções de texto, sujeito e língua


que nortearam a pesquisa nessa disciplina;

ӲӲ Refletir criticamente sobre as implicações teórico-metodológi-


cas das diferentes concepções de texto nas práticas de lingua-
gem em sala de aula.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a Unidade em dois


capítulos: no primeiro, apresentaremos o histórico da disciplina; no se-
gundo, abordaremos o objeto da Linguística Textual, por meio da dis-
cussão dos conceitos de texto que se constituíram na disciplina.
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01
1 Panorama histórico da
Linguística Textual
O texto foi e é objeto de investigação de diferentes disciplinas teóricas.
Podemos observar que, no campo dos estudos da linguagem, a primeira dis-
ciplina a se ocupar do texto foi a Retórica, seguida da Estilística e da Filologia.
Também se ocupam do texto disciplinas de outros campos do conhecimen-
to, como o da Teoria Literária, da Antropologia, da Sociologia etc. Neste Li-
vro, vamos abordar o estudo do texto no campo da Linguística e, em especial,
em uma dada disciplina, a Linguística Textual. É preciso ressaltar que, embo-
ra todas essas disciplinas de algum modo partam do texto como unidade da
interação humana, ou tomem o próprio texto como objeto de investigação,
elas constroem objetos teóricos distintos. Por isso, Marcuschi, em livro pio-
neiro de Linguística Textual no Brasil, destaca que a Linguística Textual não Linguística de Texto: o que
é e como se faz (1983).
é Teoria da Literatura, nem Estilística, nem Retórica, embora reconheça o
parentesco entre essas disciplinas. Para o autor, a Linguística Textual constitui
uma linha de investigação interdisciplinar dentro da Linguística.

Até os anos sessenta do século vinte, no campo da Linguística, com a


primazia dos estudos imanentes da língua, as unidades de análise foram o
fonema, o morfema, a palavra, a oração, enfim, as unidades da língua vista
na sua condição de sistema, de estrutura. O interesse pelo estudo do texto
nesse campo surge somente a partir do final da década de sessenta, quando
começam a aparecer novas pesquisas, cujo objetivo era olhar o texto não
por meio da ampliação e/ou alteração das teorias já existentes, calcadas nos
estudos imanentes da língua, mas por meio de uma nova teorização, cons-
truída a partir do estudo do texto. Essa nova posição desenvolveu-se espe-
cialmente na Europa continental, principalmente na Alemanha.

“Em linguística estrutural [...], chama-se imanente toda pesquisa que


define as estruturas de seu objeto apenas pelas relações dos termos in-
teriores deste.” (DUBOIS et al, 1993 [1973], p. 331). Por exemplo, a estru-
tura fonológica de uma língua é definida pelas oposições dos fonemas
entre si, sem levar em conta a realização concreta da fala e os partici-
pantes da interação.

11
Linguística Textual

Em síntese, os estudos imanentes da língua são aqueles que olham a


língua como estrutura, abstraída das condições de uso, focalizando a
relação entre elementos dessa estrutura.

Segundo Bernárdez (1982), a linguística do texto como tal aparece


pela primeira vez na segunda metade dos anos sessenta, em vários tra-
balhos, mas independentes entre si: Das direkte Objekt in Spanischen, de
Eugenio Coseriu
Horst Isenberg; Pronomina und Textkonstitution, de Roland Harweg; e
O autor se refere à parole Semantische Relationen im Text und im System, de Erhard Agicola. Tam-
na dicotomia saussuria-
na do signo linguístico: bém nessa época, mais especificamente em 1966, é publicado o livro
langue/parole. Podemos Linguistik der Lüge, de autoria do alemão Harald Weinrich . Já a pri-
observar que o autor
discute o paradigma meira aparição do termo linguística do texto, de acordo com Bernárdez
epistemológico vigente (1982), ocorreu um pouco antes, em 1956, no texto Determinación y
da Linguística da época,
que toma como objeto de Entorno, de Eugenio Coseriu. Nesse texto precursor, o autor discute a
estudo a langue (língua necessidade de se realizar também uma linguística da parole, dado que
como estrutura).
a linguística da langue já se encontrava constituída nos estudos linguís-
ticos. E, salienta que o produto da fala (parole) é o texto; logo, havia
essa necessidade de uma linguística do texto. Ainda segundo Bernárdez
(1982), as idéias de Coseriu não encontraram continuidade imediata,
pois os estudos iniciais do texto (o que se denominou como a primeira
De fato, o conceito de tex- fase da Linguística Textual) não buscaram estudar o texto como produ-
to de Coseriu se aproxima
mais das concepções con- to da fala, ou seja, como produto de uma atividade linguística concreta
temporâneas de texto. dos falantes, mas, antes, explicar fenômenos sintáticos e semânticos que
não podiam ser descritos adequadamente no nível da oração, como a
correferencialidade.

A correferencialidade ocorre quando, no texto, dois itens lexicais têm


uma identidade referencial, ou seja, referem-se ao mesmo objeto no
mundo. Vejamos um exemplo: O Presidente Lula sobrevoou as cida-
des catarinenses afetadas pela enchente. Ele ficou sensibilizado com
a situação. O pronome anafórico Ele retoma o antecedente O Presiden-
te Lula. A anáfora e o antecedente são correferenciais, o que equivale a
dizer que há uma identidade referencial entre anáfora e antecedente.

Capa do livro Linguistik der Lüge

12
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01
Por essas diferenças teóricas iniciais da Linguística Textual, autores
como Fávero e Koch (1988 [1983]) consideram que, embora a origem
do termo linguística do texto seja da obra de Coseriu, o uso desse termo
no sentido que lhe foi atribuído nos estudos iniciais do texto aparece
pela primeira vez na obra Linguistik der Lüge, de Weinrich.

Assim, desde suas origens, a Linguística Textual propõe que se tome


o texto como objeto de estudo (embora com enfoques diversos, como
veremos a seguir, o que determina diferentes concepções do que seja um
texto). Objetiva ainda que se reintroduzam nos estudos da linguagem
o sujeito e a situação de interação, que, grosso modo, foram excluídos Ingedore G. V. Koch

das pesquisas da linguística estrutural. De acordo com Fávero e Koch


(1988[1983], p. 11), essa disciplina busca “tomar como unidade básica,
ou seja, como objeto particular de investigação, não mais a palavra ou a
frase, mas sim o texto, por serem os textos a forma específica da mani-
festação da linguagem”.

No Brasil, os estudos com enfoque no texto surgem na década de Leonor L. Fávero

1970 e têm forte inspiração em estudos de autores europeus: Weinrich;


Beaugrande e Dressler, entre outros, da Alemanha; Van Dijk, da Ho-
landa; Charolles, Combettes e Adam, da França; e Halliday e Hasan, da
Inglaterra. Todavia, é a partir da primeira metade da década de oitenta Autor da teoria das
sequências textuais (ou
que há uma efervescência de pesquisas com foco nesse ramo da ciência tipos textuais). Essa noção
linguística. Isso se deve, em grande parte, aos trabalhos dos pesquisado- será discutida na discipli-
na de Linguística Aplicada.
res Ingedore Villaça Koch, Leonor Lopes Fávero, Luiz Antônio Marcus-
chi, entre outros.

Segundo pesquisadores da área, no seu processo de constituição, a


Linguística Textual passou por três momentos distintos – que marcam
a ampliação do seu objeto de análise (da análise transfrástica para o es-
tudo do texto nas suas condições de produção) e seu afastamento pro-
gressivo teórico e metodológico das influências da linguística estrutural:

a) a análise transfrástica;

b) a construção de gramáticas textuais; Luiz Antônio Marcuschi

c) a construção de teorias de texto.

13
Linguística Textual

É importante destacar que não há consenso entre os autores se hou-


ve uma cronologia na passagem de um momento para outro. Por exem-
plo, Conte (apud FÁVERO e KOCH, 1988) salienta que se trata antes de
uma distinção tipológica, pois entre esses momentos não houve suces-
são temporal, mas diferentes desenvolvimentos teóricos. De todo modo,
há consenso entre os autores de que houve uma progressiva passagem
de uma teoria da frase para uma teoria de texto. A seguir, apresentare-
mos breve síntese desses três momentos da Linguística Textual.

ӲӲ Análise transfrástica – Trata-se do momento da análise das re-


gularidades que transcendem os limites da frase; parte-se desta
em direção ao texto. Segundo Fávero e Koch (1988), o enfoque
é o estudo das relações que podem ocorrer entre as diversas
frases que compõem uma sequência significativa no texto. Nes-
se estudo, destacam-se as relações referenciais, em particular
a correferência, que é compreendida como um dos principais
fatores de coesão textual.
A coesão textual será dis-
cutida na Unidade B. ӲӲ Gramáticas textuais – É o momento que tem como finalidade
refletir sobre os fenômenos linguísticos inexplicáveis por meio
de uma gramática da frase. A elaboração de gramáticas textuais
objetiva: a) verificar o que faz com que um texto seja um texto,
isto é, determinar seus princípios de constituição; b) levantar
critérios para a delimitação de textos; e c) diferenciar os tipos
de texto. (FÁVERO; KOCH, 1988). Embora nesse momento
houvesse a busca pela construção do texto como objeto da Lin-
guística, a sua compreensão ainda se pautava nos preceitos da
“O aspecto pragmático linguística imanente. Por exemplo, postular a construção de
da linguagem concerne
às características de sua gramáticas do texto pressupõe a existência de um sistema está-
utilização (motivações vel e abstrato, comum a todos os textos realizados.
psicológicas dos falantes,
reações dos interlocutores
ӲӲ Teorias de texto – Nesse momento, a tendência dominante é
[...].” (DUBOIS, 1993 [1973],
p. 480). construir teorias de texto que privilegiem os aspectos prag-
máticos. Assim a investigação se estende do texto ao contexto,
compreendido como as condições externas de produção e re-
cepção (interpretação) dos textos.

Foi a partir da década de oitenta que o foco se voltou para o estudo


do texto inserido no contexto pragmático; em outras palavras, começou

14
Panorama histórico da Linguística Textual Capítulo 01
a ser de interesse da Linguística Textual a análise dos textos nas condi-
ções de interação. Isso levou os estudiosos da área a adotar em suas pes-
quisas o conceito de textualidade, em que está imbricado um conjunto
A textualidade e os
de padrões que contribuem para a construção e legibilidade do texto.
padrões de textualidade
serão abordados na Uni-
Analisando o percurso inicial da Linguística Textual por meio de dade B.
seus diferentes momentos, podemos observar que, mesmo objetivando,
desde as origens, construir um estudo do texto alternativo às teorias
imanentes da língua, pelo menos nas fases iniciais, esse estudo ainda
se realizou abstraído das condições de produção do texto e dos partici-
pantes da interação; ou seja, também o texto foi analisado de um modo
bastante imanente.

Atualmente, os estudiosos da área têm-se dividido em dois gran-


des focos: o da cognição e o da enunciação. Analisando o percurso da
disciplina, observamos que, de uma abordagem ao texto centrada mais
na imanência, no produto e na construção de uma teoria geral do texto,
a Linguística Textual, hoje, busca analisar o texto nas suas condições de
produção, a partir de duas visadas: de uma parte, analisar como o sujei-
to se apropria dos conhecimentos textuais e como os ativa na interação Podemos levantar a
(foco da cognição); de outra, como as questões de ordem social e dis- questão de que os estu-
dos atuais estabelecem
cursiva interferem nos processos interacionais e, logo, nos processos de um quarto momento da
produção e interpretação de textos (foco da enunciação). Linguística Textual.

De acordo com Koch (2004), na vertente cognitiva, a partir da dé-


cada de oitenta, inicia-se o interesse pelo processamento cognitivo do
texto, especialmente a partir dos estudos de Teun A. van Dijk e Walter
Kintsch. Essa vertente intensifica-se na década de noventa, porém, ago- Você pode conhecer mais
sobre o trabalho de van
ra, com forte apelo sociocognitivo. Nos estudos cognitivos da década Dijk no próprio website
de oitenta, as pesquisas centram-se nas questões relativas ao processa- dele: http://www.discur-
sos.org/
mento cognitivo do texto (o que implica a consideração da produção e
compreensão do texto), às formas de representação do conhecimento
na memória, à ativação dos sistemas cognitivos por ocasião do proces-
samento, às estratégias sociocognitivas e interacionais imbricadas no
processamento textual (KOCH, 2002). Os trabalhos de ordem socio- Ver discussão na Unidade
B e, especialmente, na
cognitiva abordam os processos de referenciação e de inferenciação. Unidade C.

Já na vertente enunciativa, as pesquisas têm abordado questões de


ordem interacional, tendo como foco de interesse, por exemplo, a rela-

15
Linguística Textual

ção entre oralidade e escrita e os gêneros do discurso, que são concebi-


Os gêneros do discurso se- dos como mediadores das atividades de linguagem (KOCH, 2002).
rão abordados na Unidade
B e, mais detalhadamente,
na disciplina de Linguísti- A partir desse breve olhar para a trajetória da Linguística Textual,
ca Aplicada. observamos que ela vem se consolidando como uma disciplina multi-
disciplinar, dinâmica e funcional e que tem sido motivadora de uma
profusão de pesquisas com enfoque no texto. Segundo Koch (2002), ini-
cialmente essa disciplina era de inclinação gramatical (análise transfrás-
tica), depois pragmático-discursiva e, atualmente, tornou-se um campo
de forte tendência sociocognitiva. Entendemos que o caráter multiface-
tado e complexo do texto é, de certa maneira, responsável pelos rumos
que a Linguística Textual tem tomado como campo de estudo, confi-
gurando-a como um campo transdisciplinar e que intensifica cada vez
mais seu diálogo com as demais ciências.

Neste Capítulo, apresentamos o panorama histórico da Linguística


Textual. No próximo Capítulo, apresentaremos as principais concep-
ções de texto desenvolvidas nessa Disciplina.

16
Concepções de texto Capítulo 02
2 Concepções de texto
Embora tenhamos uma noção intuitiva do que seja um texto, que
saibamos que não se interage do mesmo modo e nem com a mesma
finalidade em uma consulta médica, em uma conversa de bar, ou diante
de um romance, de um e-mail de um amigo, de uma bula de remédio, de
um boleto bancário, de uma charge etc., construir uma definição teórica
do que seja um texto depende de uma série de fatores, como, por exem-
plo, o próprio desenvolvimento teórico da disciplina e a concepção de
língua e de sujeito que se tenha como fundamento teórico.

Neste Capítulo, vamos abordar algumas concepções de texto cons-


truídas pela Linguística Textual, pois a noção do que seja um texto so-
freu mudanças acentuadas nos estudos dessa disciplina, como resultado
dos fatores anteriormente indicados: o próprio desenvolvimento teórico
da disciplina e a concepção de língua e de sujeito. Primeiramente, vamos
apresentar as concepções de texto dos diferentes momentos da Linguís-
Estamos aqui nos refe-
tica Textual. Em seguida, vamos cotejar essas concepções e relacioná-las rindo aos dois primeiros
com as noções de língua e de sujeito que as sustentam. momentos da Linguística
Textual, abordados no
Durante os períodos da análise transfrástica e da elaboração das Capítulo 1.
gramáticas textuais, época em que emergiram com muita força as pes-
quisas de sintaxe gerativa, o texto foi concebido, de modo geral, como
conjunto de sequências linguísticas. De acordo com Fávero e Koch (1988 A sintaxe gerativa foi
abordada na disciplina
[1983]), nessa fase os conceitos mais recorrentes de texto foram: frase de Sintaxe em: MIOTO, C.
complexa; signo linguístico primário e global; cadeia de pronominali- Sintaxe do Português.
Florianópolis: UFSC/CCE/
zações ininterruptas; unidade superior à frase; sequência coerente de LLV, 2009.
enunciados. As propriedades organizadoras da definição de texto desse
primeiro momento, segundo Bentes (2001), estavam expressas na forma
de organização do material linguístico.

Desse período, o conceito de texto mais difundido no Brasil é o que


relaciona o conceito de texto de Isenberg (sequência coerente de enun-
ciados) com a noção de textualidade. Por exemplo, Koch e Travaglia
(1989, p. 26, grifos nossos), ao discutirem a questão da coerência do tex-
to, definem que “textualidade ou textura é o que faz de uma sequência
linguística um texto e não uma sequência ou um amontoado aleatório
de frases ou palavras”. Costa Val (1991, p. 5, grifos nossos), ao anali-

17
Linguística Textual

sar a textualidade nas redações de vestibular, chama de “textualidade ao


conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto,
e não apenas uma sequência de frases”.

Analisando outras definições de texto dessa época, percebemos que


o termo enunciado é intercambiado pelo termo frase, demonstran-
do a relação entre eles. Nessas definições de texto, o enunciado é
tomado como uma unidade menor que o texto e conceituado como
“manifestação particular [...] de uma frase.” (DUCROT, 1987 [1984],
p. 164). Por exemplo, se duas pessoas (ou uma mesma pessoa em
tempos diversos) pronunciam “Faz bom tempo”, trata-se de dois
enunciados, pois proferidos por diferentes sujeitos em diferentes
momentos, de duas ocorrências da mesma frase (entendida como
uma estrutura lexical e gramatical).

Terceiro momento da
Linguística Textual.
Durante o momento das teorias de texto, tendo em vista a influência
da Pragmática e das Teorias do Discurso, enfim, da crescente ampliação
do escopo dos estudos linguísticos (da língua como sistema para a lín-
gua em uso), passou-se a considerar, na elaboração do conceito de texto,
aspectos relacionados à produção e à recepção dos textos, ancorados em
Observe que o autor está
elaborando o conceito de situações de uso da linguagem. Dessa maneira, de uma estrutura, de um
texto de modo dialógico. produto pronto e acabado, o texto passou a ser visto como um elemento
Nesta parte da citação,
ele está se contrapondo importante nas atividades de comunicação. Podemos apresentar, como
à concepção de texto representantes desse momento, os conceitos de texto de Luiz Antônio
baseada na teoria gerati-
vista, que postulava como Marcuschi (1983) e Ingedore Grunfield Villaça Koch (1997).
escopo da descrição de
uma gramática textual o Para Marcuschi (1983, p.10-11),
texto como uma unidade
abstrata, como um texto o texto não é uma unidade virtual e sim concreta e atual; não é uma
potencial. Em seguida, simples sequência coerente de sentenças e sim uma ocorrência comu-
vai questionar o conceito
de texto como conjunto nicativa. [...]. Trata-se de uma unidade comunicativa atual realizada tanto
coerente de enunciados. no nível do uso como ao nível do sistema. Tanto o sistema como o uso
Ambos são conceitos de têm suas funções essenciais.
texto do primeiro e segun-
do momentos da Linguísti-
ca Textual.
Para Koch (1997, p. 22), o texto pode ser conceituado como

uma manifestação verbal constituída de elementos linguísticos selecio-


nados e ordenados pelos falantes durante a atividade verbal, de modo a

18
Concepções de texto Capítulo 02
permitir aos parceiros, na interação, não apenas a depreensão dos con-
teúdos semânticos, em decorrência da ativação de estratégias de or-
dem cognitiva, como também a interação (ou atuação) de acordo com
práticas socioculturais.

Atualmente, segundo Costa Val (2004, p. 1), a partir dos avanços


das teorias de texto, pode-se definir texto como “[...] qualquer produção
linguística, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que possa fazer sen-
tido numa situação de comunicação humana, isto é, numa situação de
interlocução”. Assim, tanto um romance como uma conversa cotidiana
são textos. Para que tenha o estatuto de texto, segundo a autora, basta ao
objeto que este faça sentido em determinada situação de interlocução.
Para Costa Val (2004), essa concepção de texto traz duas implicações:

1) Nenhum texto tem sentido em si mesmo; Esta discussão pode ser


exemplificada na análise
2) Todo texto pode fazer sentido, numa dada situação, para deter- de texto do Capítulo sobre
minados interlocutores. Situacionalidade.

Nessa definição de texto de Val, bem como na de Koch, Marcuschi e


na maioria das definições de texto da Linguística Textual, o concei-
to de texto se fecha para os textos mediados pela linguagem verbal.
No entanto, é relevante também incluir na teorização os textos me-
diados pelas outras materialidades semióticas, como a pintura, por
exemplo. Essa inclusão não tira a força da noção de que a produção
de texto (em qualquer materialidade semiótica) é a realização de um
ato (ou ação) sobre o outro, o interlocutor, mediado pela linguagem.

Koch (2002) observa que as várias concepções de texto que vêm


acompanhando (e delineando) a história da Linguística Textual levaram
essa disciplina a assumir formas teóricas distintas. A autora resume tais
concepções da seguinte forma (KOCH, 2002, p. 151):

1. Texto como frase complexa (fundamentação gramatical);

2. Texto como expansão tematicamente centrada de macroestruturas


(fundamentação semântica);

3. Texto como signo complexo (fundamentação semiótica);

19
Linguística Textual

4. Texto como ato de fala complexo (fundamentação pragmática);

5. Texto como discurso “congelado” – produto acabado de uma ação


discursiva (fundamentação discursivo-pragmática);

6. Texto como meio específico de realização da comunicação verbal


(fundamentação comunicativa);

7. Texto como verbalização de operações e processos cognitivos (funda-


mentação cognitivista).

Analisando as concepções de texto apresentadas, podemos obser-


var, de modo geral, a existência de duas vertentes básicas:

a) O texto visto como produto, ainda na sua imanência, que é o


conceito básico de texto do primeiro e segundo momentos da
Linguística Textual;

b) O texto visto como unidade de comunicação (interação), na


sua relação com as condições de produção, que é o conceito
básico de texto do terceiro momento e dos estudos atuais da
Linguística Textual.

Em relação à primeira vertente, notamos que, de modo geral, as


definições acerca do texto revelam um olhar para o texto como produ-
Embora, desde o início, a to acabado, ou estrutura acabada, resultante da competência textual (e
Linguística Textual bus- idealizada) do falante. As propriedades definidoras do texto estão ex-
casse uma teoria não
imanente ao texto, que pressas principalmente na forma de organização do material linguístico.
se constituísse como uma A ênfase recai no aspecto material e/ou formal do texto: sua extensão,
alternativa aos estudos
estruturais da língua, seus constituintes, a relação interna entre esses constituintes. Além dis-
como vimos no Capítulo 1, so, segundo Bernárdez (1983), muitas vezes, o texto é visto como uma
de fato, ela não conseguiu
se desvencilhar, nas fases unidade linguística superior do sistema linguístico, o que mostra ainda
iniciais, da forte tradição a influência do estruturalismo nos estudos iniciais do texto. Por essas
estruturalista nos estudos
linguísticos. razões, Marcuschi (1983) afirma que são definições imanentes de texto,
pois partem de critérios internos ao texto para defini-lo.

Já na segunda vertente, o texto passa a ser visto como unidade co-


municativa (BERNÁRDEZ, 1983), e não mais como unidade linguísti-
ca. Passa, portanto, a ser tomado como parte das atividades mais gerais
de comunicação. Os critérios para a definição de texto são temáticos e
transcendentes ao texto (à imanência do texto) (MARCUSCHI, 1983).

20
Concepções de texto Capítulo 02
Por isso, passa a ser central na definição de texto a consideração das con-
dições de produção e recepção de textos, ou seja, a situação de interação
e os interlocutores, pois “o texto não existe fora de sua produção ou de
sua recepção” (LEONTÉV, 1969 apud FÁVERO e KOCH, 1988, p. 22).

Nas diferentes vertentes teóricas acerca da linguagem, aquele que


se enuncia é definido e conceituado de diversas formas: falante, lo-
cutor, enunciador, interactante, produtor de texto etc. Embora re-
conheçamos que essa diversidade reflete concepções teóricas dis-
tintas, para efeitos didáticos, de modo geral, usaremos os termos
produtor ou autor, considerado como aquele que se responsabili-
za pelo texto enunciado. Da mesma forma, aquele a quem o texto se
destina será nomeado como interlocutor ou ouvinte/leitor. Quan-
do nos referirmos a ambos, usaremos o termo interlocutores.

Nessa vertente conceitual, a elaboração do conceito de texto leva


em conta que:

a) a produção textual é uma atividade verbal, isto é, os falantes, ao pro-


duzirem um texto, estão praticando ações, atos de fala [...];

b) a produção verbal é uma atividade verbal consciente, isto é, trata-se


de uma atividade intencional, por meio da qual o falante dará a en-
tender seus propósitos, sempre levando em conta as condições em
que tal atividade é produzida [...];

c) a produção textual é uma atividade interacional, ou seja, os interlocu-


tores estão obrigatoriamente, e de diversas maneiras, envolvidos nos
processos de construção e compreensão de um texto [...] (BENTES,
2001, p. 254-255).

Segundo Koch, o conceito de texto depende das concepções que se


tem de língua e de sujeito. Na concepção de língua como representação do
pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer,

o texto é visto como um produto – lógico – do pensamento (repre-


sentação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor/ouvinte senão
‘captar’ essa representação mental, juntamente com as intenções (psi-
cológicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente pas-
sivo (KOCH, 2002, p. 16).

21
Linguística Textual

Círculo de Bakhtin
é a expressão cunha- As diferentes concepções de língua, introduzidas brevemente na
da por pesquisadores disciplina de Estudos Gramaticais (veja em: GÖRSKI, E. Estudos
contemporâneos para Gramaticais. Florianópolis: UFSC/CCE/LLV, 2007), serão também
se referir ao grupo de
discutidas na disciplina de Linguística Aplicada. No entanto, é pre-
intelectuais russos que
se reunia regularmente ciso salientar que as concepções de língua e de sujeito apresentadas
no período de 1919 a por Koch vêm das reflexões do Círculo de Bakhtin.
1929, do qual fizeram
parte Bakhtin, Voloshi-
nov e Medvedev. A
opção pelo nome de Na concepção de língua como código – ou seja, como apenas um
Bakhtin para se referir instrumento para a comunicação – e do sujeito como pré-determinado
ao grupo deve-se, pro-
pelo sistema,
vavelmente, à autoria
de algumas obras de
o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a
Voloshinov e Medve-
ser decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o co-
dev, atribuídas também
a Bakhtin por alguns es- nhecimento do código, já que o texto, uma vez codificado, é totalmente
tudiosos, e pelo fato de explícito. Também nesta concepção o papel do ‘decodificador’ é essen-
a maioria dos textos do cialmente passivo (KOCH, 2002, p. 16).
Círculo ser de autoria
de Bakhtin. É desse gru- Na concepção de língua como interação (dialógica), na qual os su-
po de estudiosos que jeitos são vistos como agentes sociais, “o texto passa a ser considerado o
se desenvolve a con-
cepção de linguagem próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que
como interação. Os li- – dialogicamente – nele se constroem e são construídos” (KOCH, 2002,
vros mais conhecidos p. 17). Como afirma Geraldi (1993 [1991], p. 102), “o outro é a medida:
no Brasil são Marxismo
é para o outro que se produz o texto. E o outro não se inscreve no tex-
e filosofia da linguagem
(VOLOCHINOV), Esté- to apenas no seu processo de produção de sentidos na leitura. O outro
tica da criação verbal insere-se já na produção, como condição necessária para que o texto
(BAKHTIN) e Questões exista”. Em outras palavras: ao elaborar o texto, nós o fazemos pensando
de literatura e estética
(BAKHTIN). no interlocutor (quem ele é, o que sabe etc.) e nos efeitos de sentido que
queremos produzir sobre ele (informar, convencer, esclarecer, ameaçar
etc.).

Em resumo, podemos associar as duas primeiras concepções de


texto apresentadas por Koch (2002) com a primeira vertente conceitual
de texto, ou seja, o texto como produto acabado. Por outro lado, a tercei-
ra concepção de texto da autora (texto como lugar de interação) pode

22
Concepções de texto Capítulo 02
ser correlacionada com a segunda vertente conceitual de texto, isto é, o
texto como unidade da comunicação discursiva, como lugar de interação. Nessa segunda verten-
te, podemos observar a
Neste Unidade, apresentamos o histórico da Linguística Textual influência dos estudos
do Círculo de Bakhtin.
e as principais concepções de texto desenvolvidas pela área. Na próxi- Conceitos centrais de sua
ma Unidade, vamos discutir questões ligadas mais especificamente à teoria, como interação,
dialogismo, gêneros do
constituição do texto, ou seja, à textualidade. discurso, esferas sociais,
são fundamentais para a
construção do conceito de
texto dessa vertente.
Leia mais!
Sobre a trajetória da Linguística Textual, indicamos a leitura do artigo
de Ingedore Villaça Koch (1999) intitulado O desenvolvimento da Lin-
güística textual no Brasil, publicado pela revista DELTA, disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-44501999000300007
&script=sci_arttext>. Acesso em: 10/6/2009.

Para aprofundamento sobre as concepções de texto, indicamos a leitura


do capítulo Concepções de língua, sujeito, texto e sentido, publicado no
livro Desvendando os segredos do texto (2002), também de autoria de
Ingedore Villaça Koch.

João Wanderley Geraldi

23
Unidade B
Padrões de Textualidade

As fiandeiras (Velasquez, 1655)


Nesta Unidade, vamos abordar os padrões que constituem a tessitura
dos textos, chamados de padrões de textualidade, os quais serão relidos à
luz dos aspectos enunciativos do texto (objeto de estudo de uma das ver-
tentes atuais da Linguística Textual) e à luz dos gêneros do discurso.

Apesar de o estudo dos padrões de textualidade estar ligado a um


momento de pesquisa clássico da Linguística Textual, consideramos que
o aprofundamento dessa temática, contraposta e complementada hoje
com os estudos dos gêneros do discurso, é extremamente relevante para
a formação do professor de Língua Portuguesa (e do professor de um
modo geral), pois lhe fornece base teórica necessária para o trabalho
com determinados aspectos do ensino-aprendizagem das práticas de
escuta, leitura e produção textual. Por essa razão, ao final de cada Se-
ção, também serão apresentadas algumas orientações pedagógicas para
o trabalho em sala de aula. Salientamos que essa opção de abordagem
teórica, ainda que indicada por alguns autores da Linguística Textual,
não foi desenvolvida até o presente. Optamos por fazê-lo aqui, pelas
razões acima indicadas.

Os objetivos previstos para esta Unidade são:

ӲӲ Reconhecer os padrões de textualidade;

ӲӲ Identificar o papel dos padrões de textualidade na tessitura dos


textos;

ӲӲ Reconhecer a importância do conhecimento dos padrões de


textualidade para o trabalho com o ensino-aprendizagem das
práticas de escuta, leitura e produção textual nas aulas de Lín-
gua Portuguesa.

Para atingir os objetivos propostos, dividimos a Unidade em sete


capítulos: no primeiro capítulo da Unidade, discutimos o conceito de
textualidade e apresentaremos uma visão geral dos padrões de textuali-
dade; nos demais capítulos, cada um desses padrões será abordado em
mais detalhes.
Noções gerais Capítulo 03
3 Noções Gerais
Na década de oitenta, no Brasil, os aspectos mais focalizados nas
pesquisas em Linguística Textual foram os padrões de textualidade, a
partir do conceito introduzido por Robert-Alain de Beaugrande e Wolf-
gang Dressler, em 1981, no livro Introduction to text linguistics. Para os
autores, o texto pode ser definido como uma ocorrência comunicativa
que reúne/satisfaz sete padrões constitutivos da textualidade, que são:
Dressler e Beaugrande

a) coesão;

b) coerência;

c) intencionalidade; No Brasil, a textualidade


foi articulada por muitos
d) aceitabilidade; pesquisadores com a
noção de texto como se-
e) informatividade; quência de enunciados. O
exemplo mais eloquente
f) situacionalidade; dessa perspectiva teórica
é o conceito de Koch e
Travaglia (1989, p. 26):
g) intertextualidade. “textualidade ou textura é
o que faz de uma sequên-
No livro citado, os autores não apresentam explicitamente um con- cia linguística um texto e
ceito de textualidade, mas, pela análise da obra e dos padrões de textu- não uma sequência ou um
amontoado aleatório de
alidade propostos, podemos definir a textualidade como o conjunto de frases ou palavras”.
características manifestas/percebidas no texto, em uma dada situação de
interação, que fazem com que o mesmo seja compreendido pelos interlo- Esses padrões já foram
introduzidos na disciplina
cutores como um todo significativo, na situação de interação considerada. de Produção Textual Aca-
dêmica I. Veja em: ZAN-
Assim, dada a relevância dos padrões de textualidade para a com- DOMENEGO, D.; CERUTTI-
preensão de como se constitui o texto e sua interpretação, eles serão RIZZATTI, M. E. Produção
Textual Acadêmica I.
o objeto de estudo desta Unidade. No entanto, à guisa de introdução, Florianópolis: UFSC/CCE/
faremos já aqui uma breve exposição de cada um deles, segundo a con- LLV, 2008.
cepção de Beaugrande e Dressler (2002 [1981]):
Como a obra de Beau-
ӲӲ Coesão – Diz respeito às formas como os componentes do tex- grande e Dessler de 1981
to de superfície, isto é, as palavras que efetivamente ouvimos que citamos é uma versão
digitalizada de 2002, va-
ou vemos, conectam-se em uma sequência veiculadora de sen- mos usar esta data como
tido. Para isso, a coesão deve se relacionar com os outros pa- referência nas citações, se-
guida da data da primeira
drões de textualidade; edição entre colchetes.

27
Linguística Textual

ӲӲ Coerência – Diz respeito às formas nas quais os componentes


do mundo textual, isto é, a configuração de conceitos e relações
que subjazem ao texto de superfície, são mutuamente acessí-
veis e relevantes. A coerência não é uma mera característica dos
textos, mas antes o resultado de processos cognitivos entre os
usuários de textos;

ӲӲ Intencionalidade – Diz respeito à atitude do produtor de que


o conjunto de ocorrências deva constituir um texto coeso e co-
erente, eficiente ao cumprir as intenções do produtor. Relacio-
na-se às intenções do autor, que podem ser: informar, impres-
sionar, convencer, pedir, ofender etc.;

ӲӲ Aceitabilidade – Diz respeito à atitude do interlocutor do tex-


to de que o conjunto de ocorrências deva constituir um texto
coeso e coerente e que tenha algum uso e relevância para o in-
terlocutor;

ӲӲ Informatividade – Diz respeito ao grau de informação contido


em um texto: se as ocorrências do texto apresentado são espe-
radas versus não-esperadas, ou conhecidas versus desconheci-
das/incertas.

ӲӲ Situacionalidade – Diz respeito aos fatores que tornam um


texto relevante para uma dada situação de ocorrência. O sentido
e a compreensão do texto são decididos pela situacionalidade.

ӲӲ Intertextualidade – Diz respeito aos fatores que fazem a com-


preensão de um texto dependente do conhecimento de um ou
mais textos já existentes.
Robert de Beaugrande dis-
ponibiliza grande parte de Esses padrões de textualidade têm sido rediscutidos recentemen-
sua produção teórica em
seu sítio pessoal: http:// te, uma vez que, à época, foram interpretados e aplicados por pesqui-
www.beaugrande.com/ sadores no estudo do texto concebido como produto. Beaugrande, no
livro New foundations for a science of text and discourse: freedom of
access to knowledge and society through discourse (Novos fundamentos
para uma ciência do texto e do discurso: liberdade de acesso ao conhe-
cimento e à sociedade através do discurso) (2004 [1997]), aborda essa
problemática. Discute, inicialmente, o fracasso de se estudar o texto a
partir de sua descrição formal como conjunto de frases, porque o texto

28
Noções gerais Capítulo 03
é, em essência, uma unidade funcional. Dessa constatação, lembra o
autor, o foco passou da elaboração de gramáticas do texto para o estu-
do da textualidade.

Apesar disso, o autor salienta que essa passagem não foi suficien-
temente longe, pois os padrões de textualidade propostos na obra de
sua autoria e de Dressler (1981) foram equivocadamente interpretados
a partir de uma perspectiva formal (texto produto, abstraído das con-
dições de produção) e à luz dos estudos estruturalistas, fazendo-se uma
correlação entre os padrões de textualidade e os níveis linguísticos, com
vistas a analisar os textos: Passou-se a associar coesão com morfologia, Segundo o estruturalismo,
sintaxe e gramática; coerência com semântica; intencionalidade, aceita- a língua é uma estrutura
composta de diferentes
bilidade e situacionalidade com pragmática; informatividade com tópi- níveis hierarquizados.
co/comentário e tema/rema; e intertextualidade com estilística. Cada nível é uma camada
de análise, possui suas
Essas correlações, segundo o autor, são inadequadas, pois os níveis regras e é formado por
unidades, cujas combina-
linguísticos foram descritos em termos formais e no isolamento da lin- ções formam as unidades
guagem nela própria como um sistema virtual (abstrato). A associação do nível superior. Por
exemplo, a combinação
dos padrões de textualidade a níveis linguísticos fez com que se olhasse dos fonemas (nível fonoló-
o texto como produto, a partir de sua imanência, e incentivou que se tra- gico) produz os morfemas
(nível do morfema).
tasse cada padrão de textualidade isoladamente, sem correlação com os
outros. Além disso, esses padrões de textualidade foram relidos como ca-
racterísticas do texto em si e como critérios/fatores para se avaliar se um
dado texto particular era coeso ou não, coerente ou não, por exemplo.

Para Beaugrande (2004 [1997]), esses padrões deveriam ser vistos


de modo funcional, integrado e em uma perspectiva transdisciplinar,
pois o texto é um evento comunicativo em que convergem questões de
ordem linguística, cognitiva e social. Portanto, “a textualidade é não só
a qualidade essencial de todos os textos, mas também uma realização hu-
mana sempre que um texto é textualizado [...] um texto não existe como
texto a não ser que alguém o esteja processando.” (BEAUGRANDE,
2004 [1997], cap. I, §41). Em outras palavras, os sete padrões de textua-
lidade não são critérios/regras para identificar textos e não-textos – pois
não existem não-textos –, mas são princípios que orientam o processa-
mento (produção) do texto e sua interpretação e com os quais se atribui
textualidade a um artefato. Um texto como produto é um mero artefato,
segundo o autor, que se transforma em um texto no ato da interação.

29
Linguística Textual

Vale destacar que, dado o sentido que se cristalizou em torno do ter-


mo textualidade, como resultado das abordagens que tomaram o texto
como produto, surge, em muitas pesquisas recentes, o termo textualização,
com o objetivo de evidenciar um afastamento teórico em relação a essa
noção de textualidade, que a instancia no texto como produto e a toma
como fundamento para estabelecer a fronteira entre um texto e um não-
texto. Na perspectiva da textualização, o sentido do texto não reside na
sua materialidade, pois está atrelado às condições de produção do texto,
ou seja, às condições cognitivas e sociais que estão imbricadas nos eventos
comunicativos. Assim sendo, “o sentido do texto não está no texto, não é
dado pelo texto, mas é produzido por locutor e alocutário a cada interação,
a cada ‘acontecimento’ de uso da língua” (COSTA VAL, 2008, p. 60). Pode-
mos observar que esse conceito de textualização converge para a noção de
textualidade conforme proposta por Beaugrande e Dressler (2002 [1981]).

Com as crescentes pesquisas acerca dos gêneros do discurso no


campo da Linguística Aplicada e na vertente enunciativa da Linguística
Textual, os padrões de textualidade podem ser relidos à luz dos gêneros.
Os estudos sobre os gêneros do discurso intensificam-se no Brasil desde
a década de noventa, em decorrência, dentre outros fatores, dos estudos
do texto a partir de suas condições de produção e da publicação dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) pelo MEC.

De modo sucinto, segundo Bakhtin (2003 [1979]), os gêneros cons-


tituem-se a partir do surgimento e da (relativa) estabilização de novas
situações sociais de interação e, uma vez constituídos, medeiam as inte-
rações dessa situação social. Tomemos, como exemplo, o caso do gênero
bula de medicamento. Originalmente destinada a servir para comuni-
cação entre o laboratório e o profissional de saúde, a bula era vertida
em estilo técnico e bastante hermético. Em tempos recentes, devido ao
interesse do paciente em acompanhar a prescrição médica, ou, talvez,
devido ao reconhecimento do fenômeno da automedicação, o estilo da
bula passou a ser cada vez mais acessível ao cidadão comum e já existem
muitas bulas didaticamente escritas na forma de perguntas e respostas.

Cada gênero tem sua concepção de autor e interlocutor, tem uma


finalidade discursiva própria e apresenta certo modo de composição
textual e estilo particular. Por exemplo, o mesmo indivíduo assume pa-

30
Noções gerais Capítulo 03
péis de autor bastante diversos ao escrever um romance ou uma tese;
um artigo científico e um livro didático dirigem-se a interlocutores dis-
tintos; a finalidade discursiva do artigo científico (apresentar resultados
de pesquisa) é diferente daquela que tem o livro didático (apresentar
conteúdos escolares aos alunos e mediar seu ensino-aprendizagem); o
artigo científico e a notícia têm estilos diferentes, mesmo que ambos
sejam redigidos na variedade linguística de prestígio.

Os gêneros do discurso são concebidos como modos sociais de in-


teração sócio-historicamente constituídos, pois conduzem o processo
de produção e interpretação de textos. Segundo Bakhtin, não consegui-
mos interagir com pertinência em dada situação se não dominarmos o
gênero dessa interação. No processo de produção, os gêneros balizam
o autor: Em que esfera social se encontram autor e interlocutor? Em
qual interação social? Qual a finalidade dessa interação? Quem é o in-
terlocutor previsto? O que dizer e como dizer? No ato da leitura, se não
soubermos a que gênero relacionar o texto que estamos lendo, teremos
dificuldade em interpretá-lo. Será um artigo assinado? Uma crônica?
Um editorial? Esses três gêneros circunscrevem diferentes situações de
interação e, por isso, apresentam diferentes finalidades discursivas, o
que gera expectativas distintas para o interlocutor e diferentes possibili-
dades de interpretação dos textos a eles vinculados.

Nessa conceituação de gênero, podemos propor que os padrões de


textualidade são balizados pelos gêneros, pois estes vão orientar diferen-
ças de textualização dos textos que se inscrevem em diferentes gêneros.
Até mesmo os padrões que foram inicialmente compreendidos como
ligados à materialidade do texto – a coesão e a coerência – constituem
ações linguísticas e discursivas mobilizadas com vistas a cumprir o pro-
pósito discursivo dos interlocutores dentro de determinado gênero.

A construção da coesão dos textos, por exemplo, é largamente


orientada pelos gêneros. É possível perceber nos fragmentos de texto a
seguir a diferença de manifestação linguística da coesão em um artigo
de divulgação científica e em um anúncio, que está ligada ao estilo de
cada um dos gêneros.

1) Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mos-


trou que nossas noções de espaço e tempo como entidades rígi-

31
Linguística Textual

das e imutáveis são ilusões causadas pelo fato de que os nossos


movimentos são muito lentos, se comparados à velocidade da
luz. Se nos movêssemos a velocidades comparáveis, mas me-
nores, veríamos as coisas encolhendo e o tempo passaria mais
devagar para elas. Entre as conseqüências, Einstein demonstra
a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possível
a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein
redefine a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A ex-
pansão do Universo e os buracos negros são descritos por essa
teoria. (BRUM, E. O senhor do universo. In: Época, nº 429, 7
ago. 2006, p. 78-88.)

2) Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que


se deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mun-
dos de faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os
peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava para
os perus, andava na chuva. Todas estas coisas que as crianças
fazem e os adultos desejam fazer e não fazem, por vergonha.
Sua vida escorria feliz por cima do desejo. (ALVES, Rubem.
Pinóquio às avessas: uma estória sobre crianças e escolas para
pais e professores. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.)

Como destacam Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 4, §41,


grifo dos autores),

se a textualidade assenta-se sobre continuidade [...], os usuários de


texto veriam, naturalmente, as situações e eventos do texto e do mun-
do como relacionados. Lacunas perceptíveis poderiam ser preenchidas
mediante atualização, isto é, fazendo inferências sobre como o texto-
mundo está evoluindo.

Dessa forma, mediante análise dos tempos verbais, o lei-


tor pode concluir, no primeiro caso (artigo de divulgação cien-
tífica), que o tempo presente é usado para expressar as verdades
gerais da ciência. Já no segundo trecho (conto), os verbos no pre-
térito imperfeito descrevem a situação inicial de uma narrati-
va, anterior ao conflito. Então, leitores familiarizados com o gêne-
ro conto sabem que a situação descrita eventualmente será, total ou
parcialmente, alterada.

32
Noções gerais Capítulo 03
Segundo Koch (1991 [1989]), a recorrência de termos verbais é um
mecanismo de coesão, pois indica se se trata de um sequência de comen-
tário (demonstra, redefine) ou de relato (assobiava, andava, escorria). Essa questão será abor-
dada no Capítulo sobre
Sobre a relação entre gêneros e textualidade, Matencio (2006) con- coesão.

sidera que os estudos dos gêneros têm o potencial de promover refle-


xões acerca das relações entre a materialidade linguística e textual e o
contexto histórico de produção de sentidos, e possibilita que se conside-
re, a um só tempo:

(i) as instâncias ou esferas sociais que delimitam historicamente os dis-


cursos e seus processos, particularmente no que se refere às relações São exemplos de esferas
sociais a escola, a ciência,
entre instituições, lugares e papéis sociais e às suas representações;
o jornalismo, a arte, a
religião etc.
(ii) as práticas discursivas efetivamente em construção nessas instân-
cias num aqui-agora, num dado evento de interação, ou seja, a
assunção efetiva de lugares e papéis comunicativos, as representa-
ções das ações que se deve empreender e dos modos pelos quais
elas podem se materializar numa forma linguageira;
A autora não relaciona os
(iii) os processos de textualização que daí resultam, isto é, a pro- padrões de textualidade
com a noção de gêne-
dução de ações linguageiras, por um eu e por um tu, no aqui- ros. No entanto, o modo
agora. (MATENCIO, 2006, p. 139-140, grifo nosso). como apresenta a exem-
plificação torna a relação
Vejamos, na citação de Costa Val a seguir, como podem ser apreen- pertinente.
didos os padrões de textualidade, tal como propostos por Beaugrande
e Dressler (2002 [1981]) e retomados nos estudos mais atuais, a partir
da exemplificação da relação desses padrões em um texto de um dado
gênero, o catálogo telefônico:
O exemplo da autora é se-
Um catálogo telefônico, que não apresenta as marcas linguísticas de melhante ao proposto por
coesão responsáveis pela textura, tal como concebem Halliday & Hasan Beaugrande (2004 [1997]),
no qual a autora se baseia.
(1976), é analisado por Beaugrande (1997) como produto que se textu-
aliza num rico processo linguístico, cognitivo e cultural, à medida que a
ele aplicamos os sete princípios: com a coesão, conectamos suas formas
e padrões (nomes e números dispostos em lista); com a coerência, conec-
tamos seus significados; considerando a intencionalidade, supomos que
ele tenha algum propósito e interpretamos o que os produtores pode-
riam pretender significar e conseguir com aquela disposição formal e se-
mântica; atentando para a aceitabilidade, assumimos o que pretendemos
com ele e o que nos dispomos a fazer para tomá-lo como texto; buscan-
do informatividade, trabalhamos no sentido de interpretar os conteúdos

33
Linguística Textual

que ele nos apresenta a partir dos nossos conhecimentos anteriores; em


termos de situacionalidade, relacionamos o evento-texto às circunstân-
cias em que interagimos com ele, considerando como sua configuração
pode torná-lo útil e pertinente aos objetivos que temos em mente; ao in-
teragir com ele, inevitavelmente, recorremos à nossa experiência anterior
com outros textos, processando-o, pois, em função da rede de intertextu-
alidade em que o situamos. (COSTA VAL, 2000, p. 47-48).

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem

Como vimos neste Capítulo, segundo Beaugrande (2004 [1997]),


não existem não-textos. Isso porque quando as pessoas interagem,
elas buscam a resposta do interlocutor e, para isso, procuram cons-
truir um texto que atinja essa intencionalidade. Essa posição pode
levantar questionamentos para o professor de Língua Portuguesa,
tais como: Se não existe o não-texto, se tudo é texto, se não exis-
te texto sem coerência e sem coesão, uma vez que os padrões de
textualidade estão sempre presentes, então, não há nada mais a
fazer com os textos produzidos por meus alunos? Veja a resposta
de Beaugrande (2004 [1997]) e Costa Val (2000):

“Os padrões são aplicáveis sempre que um artefato seja textualiza-


do, mesmo que alguém julgue o resultado ‘incoerente’, ‘não inten-
cional’, ‘inaceitável’ etc. Esses julgamentos indicam que o texto não
é apropriado (adequado para a ocasião), ou eficiente (fácil de lidar),
ou eficaz (proveitoso para o objetivo proposto); mesmo assim é um
texto. Normalmente, as perturbações e irregularidades são descon-
sideradas, ou, na pior das hipóteses, interpretadas como sinais de
espontaneidade, estresse, sobrecarga, ignorância, e assim por dian-
te, e não como perda ou negação da textualidade”. (BEAUGRANDE,
2004 [1997], cap. 1, § 52).

“Acredito, pelo contrário, que este modo de compreender a textua-


lidade abre perspectivas mais promissoras para o ensino e gostaria,
agora, de mostrar as possibilidades de aplicação que vejo para este
quadro teórico nas salas de aula de Língua Portuguesa.” (COSTA VAL,
2000, p. 48-49).

34
Noções gerais Capítulo 03
Na sequência de seu artigo, a autora apresenta um texto de um
aluno produzido em situação de exame e mostra como o professor
pode interpretar diferentemente um texto de um aluno quando ele
o olha não como um artefato, mas como “resultado de uma ativida-
de linguístico-cognitiva socialmente situada”. O texto analisado é:

Meu amigo

Eu queria ter um amigo e minha mãe o expulsou de casa.

Lá fora tinha um pouco de gente e eu vendi o cachorro.

E à noite caiu um temporal. E a mãe teve que pagar um prejuízo


maior, teve de trocar o telhado da casa.

Costa Val demonstra que quando resgatamos as condições de pro-


dução desse texto entendemos por que o aluno textualizou esse
texto. Veja a análise completa que ela faz desse texto, lendo o artigo
da autora, que se encontra na webteca desta disciplina.

Em resumo, quando o professor olha o texto de seu aluno a partir


das condições de produção, ele consegue entender por que o aluno
textualizou determinado texto e tem condições de indicar caminhos
para que esse aluno, no ato da reescritura de seu texto, consiga ade-
quá-lo àquelas condições de produção, de modo que ele seja aceitá-
vel para aquela situação de interação. Vamos voltar a essa discussão
na disciplina de Linguística Aplicada, quando discutirmos a noção
de gêneros e os processos de reescritura de textos em sala de aula.

Neste Capítulo, exploramos o conceito de textualidade e aborda-


mos brevemente os padrões de textualidade. Nos Capítulos seguintes
desta Unidade serão apresentados mais detalhadamente os sete padrões
de textualidade.

35
Coesão textual Capítulo 04
4 Coesão textual
Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. 4, §1) afirmam que “co-
esão e coerência são noções centradas no texto, designando operações
dirigidas aos materiais do texto”. À primeira vista, parece que, para os
autores, a coesão é um fenômeno que deve ser analisado no texto de Neste Capítulo apresen-
superfície e explicado a partir dele. Essa impressão, contudo, logo se taremos a coesão textual
sob a perspectiva da Lin-
desfaz quando os autores discutem longamente a relação entre coesão e guística Textual da década
processamento cognitivo do texto. de oitenta. Na Unidade C,
no capítulo sobre referen-
ciação, a coesão será re-
Apesar de a concepção cognitiva de coesão apresentada por Beau- tomada sob a perspectiva
grande e Dressler (1981) estar até mais afinada com as tendências cog- dos estudos mais recentes
da Linguística Textual. Esse
nitivas de abordagem do texto, no restante deste Capítulo, adotaremos percurso tem por objetivo
como referência obras de Ingedore Koch, especialmente Koch (1989), evidenciar a trajetória da
Linguística Textual, desde
por serem essas obras seminais e que muito contribuíram para popula- sua fase cognitivista até a
rizar entre nós o conceito de coesão textual e tiveram uma importância fase sociocognitiva.
capital para a Linguística Textual no Brasil.

Neste livro, dadas as condições materiais deste suporte, os exemplos


apresentados são apenas de textos escritos. No entanto, ressaltamos
que os padrões de textualidade referem-se também aos textos ver-
bais orais e aos mediados por outros sistemas semióticos.

Texto 1

Pinóquio às avessas
Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se
deleitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de
faz de conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz
achatado nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava
na chuva. Todas estas coisas que as crianças fazem e os adultos dese-
jam fazer e não fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima A história original de Pinóquio foi
do desejo. escrita em 1881, na Itália, por Carlo Loren-
zini, sob o pseudônimo de Carlo Collodi.
A história versa sobre um boneco de
Não sabia que uma conspiração estava em andamento. Tudo come- madeira que queria se tornar um menino
çara bem antes, quando um nome lhe fora dado. Nome do pai. Claro, de verdade e alcança seu objetivo através
da Fada Azul.

37
Linguística Textual

confissão de intenções: que o menino sem nome e sem desejos acei-


tasse como seus o nome e desejos de um outro que ele nem mesmo
conhecia. Filho, extensão do pai, realização de desejos não realizados,
sobrevivência do seu corpo, uma pitada de onipotência, uma gota de
imortalidade.

“Que é que ele vai ser quando crescer? Médico? Diplomata? Cientista?”

E as conversas se prolongavam, temperadas com sorrisos e boas inten-


ções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo em que pai e
mãe esperavam colher/ acolher/ encolher o menino dos desejos simples...

Até que chegou o dia em que lhe foi dito: “É preciso ir para a escola.
Todos os meninos vão. Para se transformarem em gente. Deixar as coisas
de criança. Em cada criança brincante dorme um adulto produtivo. É
preciso que o adulto produtivo devore a criança inútil.”

E assim aconteceu. Há certos golpes do destino contra os quais é inútil lutar.

O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de heróis,


frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subiria, as fun-
duras de mares onde nunca desceria, a distância de galáxias, o ‘SE’, par-
tícula apassivadora, o “se”, símbolo de indeterminação do sujeito, nomes
de cidades de países longínquos, suas populações e riquezas, fórmulas
e mais fórmulas...

Sabia que tudo aquilo deveria ter um motivo. Só que ele não entendia.
O desejo permanecia selvagem. E disto eram prova aquelas notas ver-
melhas no boletim, testemunhas de como o menino cavalgava longe
do desejo dos outros, conspiradores secretos, escondidos na monoto-
nia dos currículos que não faziam o seu corpo sorrir...

“Pra que serve tudo isto?”, ele perguntava. E o pai respondia, sábio e
paciente: “Um dia você saberá. Por ora basta de saber que papai sabe o
que é melhor para seu filho...”

O menino cresceu. E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se


encontrar com dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, que se
puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o qual ele
nunca ouvira falar. Eles disseram de heróis em aventais brancos caval-
gando microscópios e telescópios, brandindo máquinas fantásticas e
aparelhos misteriosos, em meio a líquidos mágicos que faziam viver e
morrer, encastelados em templos onde as coisas visíveis ficavam invi-
síveis e as coisas invisíveis ficavam visíveis, e lhe disseram de prodígios
de verdade, e lhe perguntaram se ele não desejava se transformar num

38
Coesão textual Capítulo 04
mago, num artista... A recompensa? O Poder, o conhecimento de segre-
dos que ninguém conhece, a glória, ser olhado por todos como um ser
diferente, sublime, superior. Se os seus prodígios fossem maiores que
os de todos, ele poderia aparecer no palco supremo da ciência, em país
distante, onde os mortais se revestem de imortalidade...

O menino grande se lembrou dos sonhos do menino pequeno. E sorriu.


Finalmente, chegara o momento da sua realização. Estranhou que os
narizes dos respeitáveis cavalheiros tivessem crescido enquanto fala-
vam. Mas, logo o tranquilizaram: “É só para te cheirar melhor, meu filho...”

Começaram as transformações. Primeiro os olhos. Já não refletiam ou-


tros olhares e nem borboletas... Aprenderam a concentração, a discipli-
na. Depois o corpo, que desaprendeu a dança, o voo dos papagaios
e o brinquedo. Era necessário dedicar-se totalmente. Os pensamentos
abandonaram as fantasias e os contos de fadas. Passaram a morar no
mundo das fábulas e dos experimentos. Até o prazer da comida se sa-
tisfez com os sanduíches rápidos do almoço, e na cama o corpo se es-
queceu do corpo...

E aprendeu coisas preciosas. Que o corpo do cientista é neutro. Que ele não
se comove por considerações de valor ou prazer. Que está acima da vida e
da morte (isto é coisa de políticos, militares e clérigos), em dedicação total
ao saber. Bastava-lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência.

Mas tantos sacrifícios acabaram por receber merecida recompensa. A


sorte soprou, favorável, e de seu corpo diferente surgiu uma nova ma-
gia, e o palco da imortalidade lhe foi aberto. Lá, perante todos, compre-
endeu que valera a pena. Duas lágrimas lhe rolaram pela face.

Já não era o menino de outrora, carne e osso , crescera. Estava diferente.


Os aplausos de madeira enchiam a sala. Era a glória. E foi então que o mi-
lagre aconteceu. O recinto se encheu de suave luminosidade, e a Mosca
Azul, que até então só habitava os seus sonhos, veio de longe e roçou
o seu rosto com suas asas. E a grande transformação aconteceu. Era um
boneco de madeira, inteligência pura, sem coração. E os milhares de
bonecos, iguais, de pé, não paravam de tamanquear os seus aplausos
ao novo irmão, enquanto gritavam o seu nome: “Pinóquio, Pinóquio,
Pinóquio...”.

ALVES, Rubem. Pinóquio às avessas: uma estória sobre crianças e escolas


para pais e professores. Campinas, SP: Verus Editora, 2005.

39
Linguística Textual

No Texto 1, os elementos destacados em roxo e em negrito são


exemplos de mecanismos de coesão textual. Koch (2004, p. 35) define
coesão como “[...] a forma como os elementos linguísticos presentes na
superfície textual se interligam, se interconectam, por meio de recur-
sos também linguísticos, de modo a formar um ‘tecido’ (tessitura), uma
unidade de nível superior à da frase, que dela difere qualitativamente”.
Ela é responsável, em grande medida, pela legibilidade do texto, uma
vez que explicita as relações semântico-discursivas entre os elementos
linguísticos que compõem o texto.

As palavras destacadas em roxo correspondem a elementos que


fazem referência a outro elemento do texto. Na maior parte do texto,
desenvolve-se um processo de retomada do item Pinóquio, que ocorre
desde o título do texto, Pinóquio às avessas, até o fechamento do texto,
Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio... Há também referências a outros itens le-
xicais textualizados no texto, como é o caso de corpo do cientista, que é
retomado pelos pronomes ele e lhe em: Que o corpo do cientista é neutro.
Que ele não se comove por considerações de valor ou prazer. [...] Bastava-
lhe ser um devotado servidor do progresso da Ciência [...]

Já as palavras destacadas em negrito correspondem a elementos


que atuam na sequenciação no texto, ou seja, fazem o texto progredir,
como, por exemplo: E as conversas se prolongavam, temperadas com sor-
risos e boas intenções, enquanto silenciosas se teciam as malhas do desejo
em que pai e mãe esperavam colher/ acolher/ encolher o menino dos de-
sejos simples [...].

Fazer a retomada de um item lexical (palavras destacadas em roxo)


ou realizar a sequenciação do texto (palavras destacadas em negrito)
são dois grandes movimentos de coesão textual, que têm a função de
estabelecer relações semântico-discursivas entre os segmentos do texto,
de modo que o processo de construção do texto, por meio de retomadas
e sequenciações, constitua-se como uma unidade de sentido.

A partir da análise das formas e/ou do funcionamento dos meca-


nismos de coesão na construção da textualidade, muitos autores têm
tentado classificar esses mecanismos. Por exemplo, Koch (1991 [1989])
propõe a existência de duas grandes modalidades de coesão, observadas
a partir de sua função na construção da textualidade: 1. Coesão referen-

40
Coesão textual Capítulo 04
cial; e 2. Coesão sequencial, que se subdividem em novos agrupamentos.
Já Fávero (1991), por sua vez, apresenta a seguinte proposta de classifi-
cação, também baseada, segundo a autora, na função que esses mecanis-
mos estabelecem na construção do texto: 1. Coesão referencial; 2. Coesão
recorrencial e 3. Coesão sequencial. Essa classificação, como a de Koch
(1991[1989]), também se subdivide em novas unidades.

Neste Capítulo, seguiremos a apresentação da coesão textual a par-


tir do agrupamento proposto por Koch (1991[1989]), a saber, a coesão
referencial e a coesão sequencial.

4.1 Coesão referencial


De acordo com Koch (1991[1989]), a coesão referencial é aquela
em que um componente da superfície textual faz remissão a outro(s)
elemento(s) do universo textual, ou seja, é aquela que marca as retoma-
das dos referentes textuais ao longo do texto. Koch (1991[1989]) chama
de forma referencial ou forma remissiva o componente que faz referência
a outro elemento do texto e de elemento de referência ou referente textual
a forma que é referenciada.

No Texto 1, as ocorrências dos pronomes sua e lhe (formas refe-


renciais/remissivas) fazem referência a outro elemento do texto. O
pronome possessivo sua (Sua vida escorria feliz por cima do desejo) e o
pronome pessoal lhe (Tudo começara bem antes, quando um nome lhe
fora dado), como formas referenciais/remissivas, retomam o referente
textual ativado anteriormente: Pinóquio às avessas. Do mesmo modo,
as formas remissivas menininho de carne e osso, menino sem nome e sem
desejos, filho, extensão do pai, ele, menino de carne e osso, menino de
outrora retomam o referente textual Pinóquio. Entretanto, essas reto-
madas, no processo coesivo, não têm somente a função de estabelecer
a ligação com o referente, pois esse referente não é idêntico: ele muda
ao longo do texto, e as retomadas coesivas apontam para essa mudança;
Essa questão será retoma-
logo, o processo coesivo não tem implicações somente na interligação, da na Unidade C.
mas também na ressignificação do referente. Por exemplo, Pinóquio é
retomado, mas também ressignificado como menininho de carne e osso
e, no final, como boneco de madeira, inteligência pura, sem coração.

41
Linguística Textual

De acordo com Koch (1991[1989]), a referência/remissão a um refe-


rente textual pode ser exofórica ou endofórica. A exofórica ocorre quan-
do a remissão é feita a algum elemento de referência da situação comu-
nicativa, isto é, quando o referente está fora do texto. Já a endofórica, por
sua vez, ocorre quando o referente está expresso no texto. Se o referente
textual preceder a forma referencial/remissiva, tem-se a anáfora; se vier
Nas pesquisas atuais, após a forma referencial/remissiva, tem-se a catáfora.
utiliza-se o termo anáfora
para se referir aos dois No Texto 1, temos um exemplo de anáfora em: [...] dois cavalheiros
processos. Assim, na Uni-
dade C, aprofundaremos o bem vestidos e de fala branda, que se puseram a contar estórias de um
conceito de anáfora. mundo encantado sobre o qual ele nunca ouvira falar. Eles disseram de
heróis em aventais brancos cavalgando microscópios e telescópios, bran-
dindo máquinas [...], uma vez que se e eles fazem referência/remissão a
dois cavalheiros e essa retomada está textualizada após o referente tex-
tual. Já em Tudo começara bem antes temos um caso de catáfora, pois a
forma remissiva/referencial Tudo é resumitiva de um referente que será
explicitado em seguida: quando um nome lhe fora dado.

Koch (1991[1989]) agrupa os mecanismos de coesão referencial a


partir de duas grandes modalidades: formas remissivas não-referenciais
e formas remissivas referenciais. A seguir, apresentaremos uma síntese
desses agrupamentos.

4.1.1 Formas remissivas não-referenciais

As formas remissivas não-referenciais, de acordo com Koch


(1991[1989], p. 33, grifos da autora), “não fornecem ao leitor/ouvinte
O conceito de arti-
go exposto por Koch quaisquer instruções de sentido, mas apenas instruções de conexão (por
(1991[1989]) é mais amplo ex., concordância de gênero e número) e podem ser presas ou livres”.
que o apresentado nas
gramáticas tradicionais.
Nesse caso, outras ca- As formas remissivas não-referenciais presas, segundo Koch
tegorias – pronomes e (1991[1989], p. 34), “são as formas que vêm relacionadas a um nome
numerais – da gramática
tradicional podem assumir com o qual concordam em gênero e/ou número, antecedendo-o e ao(s)
a “função de artigo”, que é possível(eis) modificador(es) de nome dentro do grupo nominal e que,
acompanhar um nome e
seus modificadores. embora não sendo (a priori e sempre) artigos, exercem, nessas condi-
ções, a ‘função artigo’, isto é, pertencem ao paradigma articular funcio-
nalmente definido”.

42
Coesão textual Capítulo 04
Podem desempenhar a função de formas não-referenciais presas os
artigos, os pronomes adjetivos (demonstrativos, possessivos, inde-
finidos, interrogativos) e os numerais cardinais e ordinais (KOCH,
1991[1989]).

No Texto 1, podemos observar como a coesão referencial se realiza por


meio de artigos definidos (o, a, os, as) e indefinidos (um, uma, uns, umas).
No seguinte fragmento, o sintagma nominal (SN) nome é introduzido pela
primeira vez pelo artigo indefinido um: Tudo começara bem antes, quando
um nome lhe fora dado. O artigo indefinido geralmente é utilizado como
catafórico e indica que o sintagma, o termo nome, está sendo introduzido
no texto pela primeira vez. Já na inserção subsequente do mesmo sintagma,
utiliza-se o artigo definido, que é anafórico, como em: [...] aceitasse como
seus o nome e desejos de um outro que ele nem mesmo conhecia.

Em síntese, a sequência de uso de artigos nesse exemplo – primei-


ramente o uso de artigo indefinido e, a seguir, o uso de artigo definido
– não é aleatória, trata-se de uma regra do emprego dos artigos como
formas remissivas. Koch (1991[1989], p. 35) descreve essa regra da se- Sobre essa regra de fun-
guinte maneira: “[...] um referente introduzido por um artigo indefinido cionamento dos artigos, é
importante que o profes-
só pode ser retomado por um SN introduzido por artigo definido [...]. sor, no ensino-aprendiza-
Já um SN introduzido por um artigo definido só pode ser retomado por gem da produção textual
escrita, ressalte esse uso
outro SN introduzido por um artigo definido [...]”. de artigos como um fator
relevante nos processos
Outra forma remissiva não-referencial presa com função de artigo de referenciação no texto.
são os pronomes adjetivos. Os pronomes adjetivos são elementos de re-
tomada quando acompanham o núcleo do SN. Nesses casos, não só o
adjetivo tem função coesiva, como também o sintagma; já os pronomes
substantivos, como veremos ao abordar as formas remissivas não-refe-
renciais livres, são essencialmente coesivos. A diferença entre pronomes
adjetivos e pronomes substantivos pode ser observada na comparação
das seguintes pronominalizações no Texto 1: Sua vida escorria feliz por
cima do desejo e Tudo começara bem antes, quando um nome lhe fora
dado. Na comparação desses exemplos, podemos observar que o pro-
nome adjetivo sua apresenta uma função coesiva somente na interde-
pendência com o núcleo do SN vida. Já o mesmo não ocorre com o
pronome substantivo lhe, que por si só assume a função coesiva.

43
Linguística Textual

Para Koch (1991[1989]), os pronomes adjetivos que assumem função


de artigo são os pronomes demonstrativos este, esse, aquele, tal; os
pronomes possessivos meu, teu, seu, nosso, dele; os pronomes inde-
finidos algum, todo, outro, vários, diversos etc.; os pronomes interro-
gativos quê, qual; e o pronome relativo cujo.

Podemos verificar, no Texto 1, alguns exemplos de pronomes adje-


tivos que assumem a função de artigo: o pronome demonstrativo aquela
e o pronome possessivo seu: E disto eram prova aquelas notas vermelhas
no boletim, testemunhas de como o menino cavalgava longe do desejo dos
outros, conspiradores secretos, escondidos na monotonia dos currículos
que não faziam o seu corpo sorrir.

Koch (1991[1989]) aponta ainda os numerais cardinais e ordinais


como elementos que podem exercer a função de artigo nos casos em
que acompanham um nome. No Texto 1, observamos o seguinte exem-
plo: [...] E aconteceu que, em meio às suas rotinas, veio a se encontrar com
dois cavalheiros bem vestidos e de fala branda, [...].

Vimos até aqui que algumas categorias gramaticais como artigo,


pronome adjetivo e numerais assumem a função de formas remissivas
não-referencias presas, pois estão, como o próprio nome diz, “presos” a
um nome dentro de um grupo nominal e que, nesses casos, têm função
de artigo. Junto com o nome, nos textos, são formas referenciais que
estabelecem a coesão textual.

Contrariamente às formas presas, as formas remissivas não-referen-


Na sequência, faremos ciais livres, segundo Koch (1991[1989], p. 34), “são aquelas que não acom-
uma breve exposição dos
mecanismos que operam panham um nome dentro de um grupo nominal, mas que são utilizadas
como formas não-referen- para fazer remissão, anafórica ou cataforicamente, a um ou mais consti-
ciais livres mais recorren-
tes em língua portuguesa, tuintes do universo textual”. Em outros termos, uma forma remissiva não-
como é o caso dos prono- referencial livre assume sozinha o papel de forma referencial/remissiva,
mes de 3ª pessoa e pro-
nomes substantivos. Em com vistas ao estabelecimento da referência no texto. Koch (1991[1989])
Koch (1991[1989]) há uma denomina genericamente essas formas de pronomes ou pro-formas.
explanação mais detalha-
da sobre as possibilidades Os elementos gramaticais que podem assumir a função de formas
de formas remissivas não-
referenciais livres. remissivas não referenciais livres, exercendo a função de pronomes (pro-

44
Coesão textual Capítulo 04
formas) são: pronomes pessoais de 3ª pessoa: ele, ela, eles, elas; pronomes
substantivos; numerais cardinais e ordinais; advérbios pronominais; ex-
pressões adverbiais; formas verbais remissivas (KOCH, 1991[1989]).

O papel dos pronomes é de extrema importância no processo co-


esivo. No caso das formas remissivas não-referenciais livres, temos o Chamado na literatura de
pronominalização (anafó-
pronome de 3ª pessoa (ele, ela, eles, elas) como um importante elemento rica e catafórica) (KOCH,
de coesão, tendo em vista que essa categoria gramatical fornece ao lei- 2002).

tor/ouvinte o elemento de referência, como podemos ver em: O menino


cresceu. [...] se puseram a contar estórias de um mundo encantado sobre o
qual ele nunca ouvira falar. Nesse exemplo, o pronome de 3ª pessoa ele faz
remissão ao referente menino.

Os pronomes substantivos, como já dito, são formas que não acom-


panham um SN e que assumem a função referencial de forma indepen-
dente do SN. Koch (1991[1989]) aponta alguns pronomes substantivos
como exemplos de formas remissivas não-referencias livres: pronomes
demonstrativos, possessivos, indefinidos, interrogativos e relativos.

No Texto 1, temos o seguinte exemplo: O desejo permanecia sel-


vagem. E disto eram prova aquelas notas vermelhas no boletim [...]. O
pronome demonstrativo isto (preposição de + pronome isto = disto) faz
remissão ao referente O desejo permanecia selvagem. Podemos observar
que o pronome substantivo disto carrega, sozinho, a função de estabe-
lecer a coesão, ou seja, não está acompanhando um SN, por isso, nesse
caso, trata-se de um uma forma remissiva livre. Observamos também
que esse pronome opera somente na conexão do texto e não na amplia-
ção de sentido, por isso é uma forma remissiva não-referencial. Outro
exemplo de pronome substantivo como forma remissiva não-referencial
livre é o uso do pronome relativo (que, o qual, quem). Vejamos os se-
guintes exemplos:

a) em: O recinto se encheu de suave luminosidade, e a Mosca Azul,


que até então só habitava os seus sonhos [...], o pronome relativo
que faz referência à Mosca Azul;

b) em: [...] se puseram a contar estórias de um mundo encantado


sobre o qual ele nunca ouvira falar, o pronome o qual se refere a
um mundo encantado.

45
Linguística Textual

Em resumo, as formas remissivas não-referenciais (presas e livres),


como elementos coesivos, operam somente na conexão do texto, ou
seja, não apresentam ao leitor/ouvinte indicações de sentido.

4.1.2 Formas remissivas referenciais

Na Seção anterior, vimos que as formas remissivas não-referenciais


(presas e livres) operam somente na conexão do texto, ou seja, não apre-
sentam ao leitor/ouvinte indicações de sentido. Já as formas remissivas
referenciais, a seu turno, não somente estabelecem a conexão textual,
como também possibilitam indicações de sentido no nível da referên-
cia (KOCH, 1991[1989]. Assim, a diferença entre as formas remissivas
não-referenciais e as formas remissivas referenciais está na questão de
como estabelecem a referência. As formas remissivas não-referenciais
têm como prerrogativa estabelecer a conexão referencial entre partes do
texto, como em: O menino cresceu. [...] ele nunca ouvira falar. O prono-
Na Unidade C as formas re- me ele está no lugar de menino. Não há, nessa remissão, uma ampliação
missivas referenciais serão de sentido, trata-se de uma remissão estritamente linguística. Já em um
revistas sob o olhar dos
estudos da referenciação, menininho, de carne e osso e boneco de madeira há uma relação de co-
que representam as pes- nexão referencial, mas também uma implicação de sentido importante
quisas mais recentes sobre
os processos de estabele- para a construção semântico-discursiva do referente do texto.
cimento de referência no
texto. Conforme Koch (1991[1989]), as formas remissivas referenciais e
marcam no texto a partir do uso de expressões nominais definidas; no-
minalizações, expressões sinônimas ou quase sinônimas, nomes genéricos,
hiperônimos, formas referenciais com lexema idêntico ao núcleo do SN
antecedente, formas referenciais cujo lexema é uma categorização da par-
te antecedente do texto, formas referenciais metalinguísticas e elipse.

As expressões nominais são definidas pela autora da seguinte ma-


neira: “trata-se de grupos nominais introduzidos pelo artigo definido [e
indefinido], que exercem função remissiva” (KOCH, 1991[1989], p. 45).

Na Unidade C aprofunda- Logo no início do Texto 1, temos o referente Pinóquio às avessas,


remos a discussão sobre que é retomado por expressões nominais como um menininho, de carne
os efeitos de sentido que
o uso de expressões nomi- e osso; o menino sem nome e sem desejos; o menino grande. Tais expres-
nais produz no texto. sões nominais são constituídas de artigo (definido ou indefinido) mais
SN e operam não só na coesão do texto, como também na ampliação de
sentidos no texto.

46
Coesão textual Capítulo 04
O uso de expressões nominais no Texto 1 é fundamental para a
construção dos sentidos do texto. Podemos dizer até que são as próprias
expressões nominais que delineiam a coerência do texto, uma vez que o
uso de expressões nominais como o menino de carne osso; menino sem
nome e sem desejos; e o menino grande expressa a mudança que se opera
no referente Pinóquio e faz com que o texto progrida com relação ao
desfecho da narrativa.

Seguem, agora, exemplos de coesão realizados por meio de nomi-


nalizações, expressões sinônimas ou quase sinônimas, nomes genéricos,
hiperônimos e formas referenciais metalinguísticas, extraídos de Koch
(1991[1989], p.46-47):

ӲӲ Nominalizações: referem-se às formas nominalizantes (nomes


deverbais), através das quais se remete ao verbo e argumentos
da oração anterior: Os grevistas paralisaram todas as atividades
da fábrica. A paralisação durou uma semana;

ӲӲ Expressões sinônimas ou quase sinônimas: A porta se abriu


e apareceu uma menina. A garotinha tinha olhos azuis e longos
cabelos dourados.

ӲӲ Nomes genéricos (ex. coisa, pessoa, fato, fenômeno): A mul-


tidão ouviu o ruído de um motor. Todos olharam para o alto e
viram a coisa se aproximando;

ӲӲ Hiperônimos (ou indicadores de classe): Vimos o carro do mi-


nistro aproximar-se. Alguns minutos depois, o veículo estaciona-
va adiante do Palácio do Governo;

ӲӲ Formas referenciais metalinguísticas: Então o marido ergueu-


Koch alerta que há di-
se dizendo: “Vai embora mulher, não existe mais nada entre nós.” ferentes tipos de elipse.
Esta frase ficou martelando-lhe na cabeça por um longo tempo. Para saber mais sobre
esse assunto, ver Koch
E, por fim, no grupo de formas referenciais, temos a elipse, que con- (1991[1989]).
siste em uma substituição por zero, a qual é simbolizada por ∅. Em
outras palavras, na utilização de elipse ocorre um apagamento de ou-
tro segmento (HALLIDAY; HASAN apud KOCH, 1991[1989]). A elipse
pode ser nominal, verbal e frasal. No Texto 1, podemos destacar o uso de
elipse verbal, que se realiza nas desinências verbais, como podemos veri-

47
Linguística Textual

ficar em: Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que
se deleitam nas coisas simples que a vida dá. ∅ Ria nos seus mundos de
faz de conta, ∅ voava nas asas dos urubus, ∅ assustava os peixes, nariz
achatado nos vidros dos aquários, ∅ assobiava para os perus, ∅ anda-
va na chuva. Nesses exemplos, os verbos no pretérito imperfeito – ria,
voava, assustava, assobiava e andava – atuam na retomada de um meni-
ninho, de carne e osso, substituindo o pronome pessoal de 3ª pessoa ele.

Até aqui apresentamos o conceito de coesão referencial, como tam-


bém expusemos algumas manifestações desse tipo de coesão a partir
das formas remissivas não-referenciais e referenciais. A seguir, nesse
mesmo percurso, apresentaremos a coesão sequencial.

4.2 Coesão sequencial


A coesão sequencial consiste em estabelecer conexão e interrelação
entre partes do texto, com o objetivo de possibilitar a progressão textual.

Koch (2004, p. 35) conceitua a coesão sequencial da seguinte ma-


neira:

A coesão sequencial diz respeito aos procedimentos linguísticos por


meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos do texto (enuncia-
dos, partes de enunciados, parágrafos e mesmo sequências textuais),
diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmático-discursivas, à
medida que se faz o texto progredir.

A progressão textual pode acontecer com ou sem o uso de ele-


mentos recorrentes, ou seja, retomando ou não itens lexicais já textu-
alizados no texto (KOCH, 1991[1989]). Aos casos em que se utilizam
tais elementos de recorrência, Koch (1991[1989]) chama de sequencia-
ção parafrástica; aos casos em que não há elementos de recorrência, a
autora chama de sequenciação frástica. A partir dessa distinção, Koch
(1991[1989]) agrupa a coesão sequencial em parafrástica e frástica. A
seguir, faremos uma apresentação desses agrupamentos.

4.2.1 Coesão sequencial parafrástica

De acordo com Koch (1991[1989], p. 51), “tem-se coesão sequen-


cial parafrástica quando, na progressão do texto, utilizam-se procedi-

48
Coesão textual Capítulo 04
mentos de recorrência”, tais como: recorrência de termos; recorrência de
estruturas – paralelismo sintático; recorrência de conteúdos semânticos
– paráfrase; recorrência de recursos fonológicos e recorrência de tempo e
aspecto verbal. Esses mecanismos de coesão sequencial parafrástica são
explicados por Koch (1991[1989], p. 51-54) da seguinte forma:

ӲӲ Recorrência de termos: quando há reiteração de um mesmo


item lexical. Ex.: E o trem corria, corria, corria...
Exemplo extraído de Koch
ӲӲ Recorrência de estruturas – paralelismo sintático: quando se (1991[1989], p. 51).
utilizam as mesmas estruturas sintáticas, que são preenchidas
com itens lexicais diferentes. Ex.: Vejamos o seguinte exemplo,
extraído do Texto 3, que se encontra no Capítulo sobre coerência.

Rua
torta.
Lua
Morta [...].
ӲӲ Recorrência de conteúdos – paráfrase: quando o mesmo con-
teúdo semântico é apresentado sob formas estruturais diferen-
tes. É importante ressaltar que a reapresentação de conteúdo
traz alterações semânticas (ajustamento, síntese, previsão).
Podemos apontar algumas expressões linguísticas que intro-
duzem paráfrases, como: isto é, ou seja, quer dizer, melhor di-
zendo, em síntese, em resumo, em outras palavras etc. Vejamos Trecho extraído da Unida-
o seguinte exemplo: [...] Em resumo, quando o professor olha o de B deste Livro.

texto de seu aluno a partir das condições de produção, ele conse-


gue entender por que o aluno textualizou determinado texto [...].

ӲӲ Recorrência de recursos fonológicos: quando há igualdade de


metro, ritmo, assonâncias, aliterações. Vejamos o exemplo:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
(Fernando Pessoa)

49
Linguística Textual

ӲӲ Recorrência de tempo verbal: quando há indicação de que se


trata da sequência de comentário ou de relato. Sequência de
Trecho extraído do Texto 1. relato: Era uma vez um menininho”. Sequência de comentário:
Obama se beneficiou do “timing” da crise [...].
Trecho extraído do Texto 2.
Dentre os mecanismos de coesão sequencial parafrástica, destacamos
a recorrência de tempo verbal, pois ela está na fronteira entre a coesão
frástica e a parafrástica. Segundo Weinrich (apud KOCH, 1991[1989]),
existem dois tipos de atitude comunicativa: comentar e narrar. De acordo
com Koch (1991[1989]), em português, são tempos do mundo comenta-
do: o presente do indicativo, o pretérito perfeito, o futuro do presente; e tem-
pos do mundo narrado: o pretérito perfeito simples, o pretérito imperfeito;
o pretérito mais-que-perfeito e o futuro do pretérito do indicativo.

No Texto 1, a recorrência de tempos verbais é um importante ele-


mento de sequenciação textual. Tendo em vista que se trata de uma nar-
rativa, há a predominância de verbos do mundo do narrar, conforme
apresentado anteriormente. Esses verbos do mundo do narrar são al-
ternados ao longo do texto para que, por meio da mudança dos tempos
verbais, a própria narrativa tome corpo e movimento. Inicialmente, te-
mos um menininho, de carne e osso, que é introduzido por uma recor-
rência de verbos no pretérito imperfeito: Era uma vez um menininho, de
carne e osso, igual a tantos que se deleitam nas coisas simples que a vida
dá. Ria nos seus mundos de faz de conta, voava nas asas dos urubus,
assustava os peixes, nariz achatado nos vidros dos aquários, assobiava
para os perus, andava na chuva. Todas estas coisas que as crianças fazem
e os adultos desejam fazer e não fazem, por vergonha. Sua vida escorria
feliz por cima do desejo.

Depois, ao passo que se desenrola a narrativa, o tempo verbal se


altera para marcar o início da ação, uma vez que na narrativa há uma
ação/evento que se desenrola em um tempo e em um espaço. Essa ação
se circunstancia através da mudança dos tempos verbais; passa-se, en-
tão, da recorrência do pretérito imperfeito para a recorrência do preté-
rito perfeito: Até que chegou o dia em que lhe foi dito: “É preciso ir para
a escola”. [...] E assim aconteceu. O menino de carne e osso aprendeu [...].

Na sequência, há novas alternâncias dos tempos verbais (entre elas


o uso do mais-que-perfeito) até que, por fim, novamente volta-se à re-

50
Coesão textual Capítulo 04
corrência do pretérito imperfeito: Era um boneco de madeira, inteligência
pura, sem coração. E os milhares de bonecos, iguais, de pé, não paravam
de tamanquear os seus aplausos ao novo irmão, enquanto gritavam o seu
nome: “Pinóquio, Pinóquio, Pinóquio...” Assim, no desfecho da narrativa,
há um retorno ao uso do tempo verbal utilizado no início do texto (pre-
térito imperfeito). As alternâncias marcam a ação ocorrida e o desfecho
é marcado pela retomada do tempo verbal utilizada no início do texto.
Essas alternâncias verbais na narrativa marcam o movimento do texto e,
fundamentalmente, expressam a mudança sofrida pelo personagem Pi-
nóquio. Assim, a transformação do menino de carne e osso para o menino
de madeira é textualizada não só por meio de formas nominais, como
também através da alternância dos tempos verbais. Em síntese, podemos
dizer que a recorrência de tempos verbais, juntamente com as formas
nominais, além de estabelecer a coesão textual, incide na construção da
coerência do texto, corroborando para a construção de sentidos do texto.

4.2.2 Coesão sequencial frástica

Na coesão sequencial frástica, segundo Koch (1991 [1989], p.55), “a


progressão se faz por meio de sucessivos encadeamentos, assinalados por
uma série de marcas linguísticas através das quais se estabelecem, entre
os enunciados que compõem o texto, determinados tipos de relação”.

De acordo com a autora, os mecanismos de sequenciação frástica


constituem fatores de coesão textual uma vez que garantem:

a) a manutenção do tema;

b) o estabelecimento de relações semânticas e/ou pragmáticas en-


tre os segmentos (maiores ou menores) do texto;

c) a ordenação e articulação de sequências textuais.

Os mecanismos de coesão sequencial frástica são: procedimentos de


manutenção temática; progressão temática; e encadeamento. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/
folha/pensata/elianecan-
tanhede/ult681u464302.
shtml.> Acesso em: 20 jan.
Observemos, primeiramente, o Texto 2, que servirá de base para os 2009.
exemplos que serão posteriormente apresentados.

51
Linguística Textual

Texto 2

Obama: além de tudo, sortudo


George W. Bush foi um dos presidentes mais populares dos EUA, com
índices de aprovação que chegaram a bater em 90% depois do 11 de
setembro, mas sai da Casa Branca pela porta dos fundos, com uma crise
financeira internacional sem precedentes, com as contas dos EUA de
pernas para o ar e com a biografia para sempre manchada por ter inva-
dido o Iraque em cima de uma mentira – a das armas químicas, afinal
inexistentes – e passando por cima da ONU. Quantos soldados america-
nos pagaram e quanto a economia do país pagou por isso?

Barack Obama, o senador negro, nascido no Havaí, filho de queniano,


é um salto histórico enorme. Um salto de qualidade, pela simbologia,
pela concretização de uma mudança profunda que é política, social e
cultural. Mas é também um salto no escuro. Aos 47 anos, é bastante jo-
vem para o desafio, jamais ocupou cargos executivos de ponta e era um
desconhecido não apenas no mundo, mas dentro dos próprios EUA, até
sair da cadeira de senador e bater a então imbatível Hillary Clinton nas
primárias do Partido Democrata.

Para fazer um bom governo, um governo tão extraordinário quanto sua


eleição, Obama conta com fatores objetivos e subjetivos. O mais objeti-
vo de todos é a força política: ele venceu com uma margem expressiva
e surpreendente de votos, contrariando as sempre apertadas eleições
americanas (vide a do próprio Bush...), vai unir um democrata na Casa
Branca com uma sólida maioria democrata no Congresso, contrariando
a tradição, e chega ao poder da maior, ou única, potência, com uma
simpatia internacional poucas vezes vista.

Além disso , Obama se beneficiou do “timing” da crise: ela se alastrou pelo


mundo e foi aguda durante a campanha, mas está ficando sob controle e
tende a amenizar por gravidade no início do seu governo. Ou seja: a crise
de certa forma prejudicou as pretensões do republicano John McCain,
correligionário de Bush, e favoreceu Obama, que é democrata e baseou
o discurso na “mudança”, na capacidade de tirar o país do atoleiro. E ele,
ao assumir em 20 de janeiro de 2009, já deverá encontrar um ambiente
econômico muito mais sereno, ou pelo menos muito menos assustador.
E poderá capitalizar indiretamente o clima do “pior já passou”.

Seu desafio será recolocar as contas públicas, o balanço de pagamen-


tos e os indicadores macroeconômicos americanos no lugar. Mas sem

52
Coesão textual Capítulo 04
o desespero da crise de setembro e outubro. Não será fácil, e o risco de
frustração realmente existe, mas é possível e bem provável que a situ-
ação no início do seu governo esteja muito melhor do que no fim do
mandato Bush. O primeiro passo é acertar na equipe, com os homens e
mulheres certos nos lugares certos.

Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além de todos os pre-
dicados concretos, tem também aquele que é fundamental: sorte. A ex-
pectativa é que assuma justamente quando o pior da crise já tiver passa-
do, prontinho para fazer o que é preciso fazer e colher no final os louros.

Se a fase aguda da crise parece estar passando, isso vale também para o
Brasil, onde Lula mantém seus 80% de popularidade, os indicadores da
indústria ainda não acusaram o golpe e tudo indica que, entre mortos e
feridos, a campanha de Dilma Rousseff em 2010 vai muito bem, obrigada.

Lá nos EUA, como aqui no Brasil, Obama e Lula têm muitas coisas em
comum. Uma delas é essa: sorte, uma incomensurável sorte. Ótimo. Que
isso reflita positivamente para os EUA, para o Brasil e principalmente
para o mundo.

Eliane Cantanhêde é colunista da Folha, desde 1997, e comenta gover-


nos, política interna e externa, defesa, área social e comportamento. Foi
colunista do Jornal do Brasil e do Estado de S. Paulo, além de diretora de
redação das sucursais de O Globo, Gazeta Mercantil e da própria Folha
em Brasília. E-mail: elianec@uol.com.br

A manutenção temática em um texto ocorre através do uso de termos


pertencentes a um mesmo campo lexical. Vejamos o exemplo: Barack
Obama, o senador negro, [...] bastante jovem para o desafio, jamais ocupou
cargos executivos de ponta e era um desconhecido não apenas no mundo,
mas dentro dos próprios EUA, até sair da cadeira de senador e bater a en-
tão imbatível Hillary Clinton nas primárias do Partido Democrata.

Os itens lexicais destacados em roxo são termos recorrentes no Esse conceito é desen-
volvido na disciplina de
campo político. Por isso, por meio desses termos, ativa-se um esquema Semântica. Veja: PIRES,
cognitivo (frame) na memória do leitor, o que lhe possibilita o estabele- Roberta. Semântica.
Florianópolis: UFSC/CCE/
cimento das inferências, bem como a possibilidade de avançar nas pers- LLV, 2009.
pectivas sobre o que deve vir a seguir no texto.

A manutenção temática está, pois, ligada à progressão temática, que,


por sua vez, está relacionada à maneira como se estabelece a organiza-

53
Linguística Textual

ção e a hierarquização das unidades semânticas no texto. Vejamos no


Texto 2 como se organiza a progressão temática. Esse texto tem como
acontecimento desencadeador a eleição presidencial nos EUA em 2008.
A partir desse evento, a colunista manifesta seu posicionamento sobre as
condições em que se deu a eleição de Barack Obama, bem como sobre as
condições favoráveis em que se encontra Obama para assumir o governo.

Logo no título, Obama, além de tudo, sortudo, a autora anuncia a


probabilidade de Obama ter um bom início de governo. Isso porque, de
acordo com a autora, há um conjunto de fatores que beneficiam Obama.
Um desses fatores destacados no texto é a força política de Obama, con-
forme podemos verificar no seguinte fragmento: “[...] ele venceu com
uma margem expressiva e surpreendente de votos, contrariando as sem-
pre apertadas eleições americanas (vide a do próprio Bush...), vai unir
um democrata na Casa Branca com uma sólida maioria democrata no
Congresso, contrariando a tradição, e chega ao poder da maior, ou única,
potência, com uma simpatia internacional poucas vezes vista.”

Outro fator apontado é a crise financeira mundial, como podemos


observar em: “Além disso, Obama se beneficiou do ‘timing’ da crise: ela se
alastrou pelo mundo e foi aguda durante a campanha, mas está ficando
sob controle e tende a amenizar por gravidade no início do seu governo.
[...] E ele, ao assumir em 20 de janeiro de 2009, já deverá encontrar um
ambiente econômico muito mais sereno, ou pelo menos muito menos as-
sustador. E poderá capitalizar indiretamente o clima do ‘pior já passou’.”

Além desses predicados concretos, a autora apresenta um terceiro,


a sorte do presidente eleito. A sorte atribuída a Obama é o fio condutor
das considerações tecidas pela colunista, bem como o fator preponde-
rante, segundo ponto de vista defendido pela autora, para um bom iní-
cio de governo: “Tudo somado, temos que Barack Hussein Obama, além
de todos os predicados concretos, tem também aquele que é fundamen-
tal: sorte. A expectativa é que assuma justamente quando o pior da crise
já tiver passado, prontinho para fazer o que é preciso fazer e colher no
final os louros.”

Para manifestar seu posicionamento, a autora organiza o texto da


seguinte maneira:

54
Coesão textual Capítulo 04
ӲӲ Título – Apresenta a primeira inserção do atributo sorte de Ba-
rack Obama, o qual será retomado no decorrer do texto e no
seu fechamento;

ӲӲ 1º e 2º parágrafos - Estabelecem uma comparação entre as


condições em que o presidente dos EUA, George W. Bush, as-
sumiu a presidência e as condições em que encerrou seu man-
dato e apresentam Barack Obama e as condições em que se deu
sua eleição à Presidência dos EUA;

ӲӲ 3º, 4º e 5º – Aprofunda a análise sobre o cenário em que se de-


senrolou a eleição presidencial, tece considerações sobre o fu-
turo governo (os desafios) do recém-eleito Barack Obama, que
é figura central do texto. Apresenta e desenvolve os fatores que
beneficiam o presidente eleito quando assumir a presidência;

ӲӲ 6º – Inclui um novo fator com o qual Barack Obama conta para


seu governo: a sorte, a partir do qual a autora constrói seu posi-
cionamento no texto. É o fator preponderante, segundo ponto de
vista defendido pela autora;

ӲӲ 7º – Apresenta uma comparação entre a crise nos EUA e no Bra-


sil;

ӲӲ 8º – Estabelece uma comparação entre Barack Obama e Lula


com relação ao atributo sorte: ambos possuem uma incomensu-
rável sorte no governo. Com essa posição a autora produz o fecha-
mento do texto.

ӲӲ Biografia resumida da colunista.

O que objetivamos mostrar com essa reflexão é que no Texto 2 te-


mos um tema geral, que se organiza de forma funcional em subtemas,
que convergem para o tema geral.

Até aqui apresentamos aspectos relacionados à manutenção e à pro-


gressão temática em um texto. Agora, discorreremos sobre a coesão se-
quencial por encadeamento. Segundo Koch (1991[1989]), os sucessivos
encadeamentos que se marcam no texto fazem com que ele se desenrole
sem rodeios e sem retornos que provoquem lentidão no fluxo informa-
cional. A coesão por encadeamento se caracteriza pelo estabelecimento de

55
Linguística Textual

relações semânticas e/ou discursivas entre orações ou sequências maiores


de texto (KOCH, 1991[1989]). A autora destaca que conectores de diver-
sos tipos configuram-se como responsáveis pela sequenciação frástica.

A seguir, apresentaremos exemplos de conectores que corroboram


para o estabelecimento da sequenciação e de determinadas relações no
texto (extraídos do Texto 2, destacados em roxo:

ӲӲ Se: estabelece uma relação de implicação entre um antecen-


dente e um consequente – Se a fase aguda da crise parece estar
passando [...] os indicadores da indústria [...];

ӲӲ e, também, como, além de: esses conectivos somam argumen-


tos em favor de determinado argumento – Lá nos EUA, como
aqui no Brasil, [...];

ӲӲ mas: introduz uma oposição com relação ao que se disse ante-


riormente. Seu desafio será recolocar as contas públicas, o balan-
ço de pagamentos e os indicadores macro-econômicos americanos
no lugar. Mas sem o desespero da crise de setembro e outubro;

ӲӲ Até, quando – imprime o sentido de tempo – A expectativa é que


assuma justamente quando o pior da crise já tiver passado, [...].

A coesão por encadeamento pode ocorrer por meio de justaposição


ou de conexão (KOCH, 1991[1989]). Sobre o encadeamento por justapo-
sição Koch (1991[1989], p. 60) escreve:

A justaposição pode dar-se com ou sem uso de partículas sequencia-


doras. A justaposição sem partículas, particularmente no texto escrito,
extrapola o âmbito da coesão textual [...], diz respeito ao modo como
os componentes da superfície textual se encontram conectados entre
si através de elementos linguísticos. Inexistindo tais elementos, cabe ao
leitor construir a coerência do texto, estabelecendo mentalmente as
relações semânticas e/ou discursivas. Nesses casos, o lugar do conec-
tor ou partícula é marcado, na escrita, por sinais de pontuação (vírgula,
ponto e vírgula, dois pontos, ponto) e, na fala, pelas pausas.

Podemos verificar como ocorre o estabelecimento da coesão através


do encadeamento por justaposição no seguinte exemplo, extraído da Uni-
dade A deste Livro: Primeiramente, vamos apresentar as concepções de tex-
to dos diferentes momentos da Linguística Textual. Em seguida, vamos cote-

56
Coesão textual Capítulo 04
jar essas concepções e relacioná-las com as noções de língua e de sujeito que
as sustentam. No exemplo apresentado, temos justaposição com sinais de
articulação que estabelecem um sequenciamento coesivo e que funcionam
como marcadores de ordenação de tempo e/ou espaço, mais precisamente,
como indicadores de ordenação textual. Em textos de gêneros didáticos
e acadêmicos, esses marcadores de ordenação são recorrentes, tendo em
vista que possibilitam a sinalização da organização do texto para o leitor.

Outro processo de encadeamento por justaposição ocorre por


meio de marcadores de metanível (ou nível dos enunciados metacomu-
nicativos) que, de acordo com Koch (1991[1989], p. 61), “funcionam
como sinais demarcatórios e/ou sumarizadores de partes ou sequências
textuais”. Podemos observar esse processo coesivo no seguinte trecho Ex.: por consequência, em
extraído da Unidade A deste livro: Essa posição pode levantar questio- virtude do exposto, dessa
maneira, em resumo, essa
namentos para o professor de Língua Portuguesa, tais como: [...], que su- posição etc.).
mariza parte do que foi dito no texto.

Já o encadeamento por conexão, por sua vez, ocorre quando se uti-


lizam conectores interfrásticos que estabelecem entre diversas partes
do texto diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmáticas. Nesse
caso, operam não somente as conjunções, mas também as locuções con-
juntivas, prepositivas e adverbiais, que têm a função de interconectar
enunciados (KOCH, 2004).

Segundo Koch (1991[1989], p. 62),

Trata-se de conjunções, advérbios sentenciais (também chamados de


advérbios de texto) e outras palavras (expressões) de ligação que esta-
belecem, entre orações, enunciados ou partes do texto, diversos tipos
de relações semânticas e/ou pragmáticas.

As relações de sentido estabelecidas entre os elementos textuais através Trazemos aqui um exemplo
de relação lógico-semân-
dos conectores podem ser lógico-semânticas ou discursivo-argumentativas. tica de temporalidade.
Contudo, vale destacar que
As relações lógico-semânticas, segundo Koch (1991[1989], p. 62), Koch (1991[1989]) apre-
ocorrem “[...] entre orações que compõem um enunciado e são esta- senta as seguintes relações
lógico-semânticas: relação
belecidas por meio de conectores ou juntores de tipo lógico”. Podemos de condicionalidade; rela-
apontar, no Texto 1, exemplo de mecanismo de coesão sequencial por ção de causalidade; relação
de mediação; relação de
conexão do tipo lógico-semântico, que estabelece uma relação de tempo- temporalidade; relação de
ralidade: Primeiro os olhos. Já não refletiam outros olhares e nem borbo- conformidade.

57
Linguística Textual

letas... Aprenderam a concentração, a disciplina. Depois o corpo, que de-


saprendeu a dança, o voo dos papagaios e o brinquedo. O uso do numeral
primeiro e do advérbio depois tem a função de fazer o texto progredir,
bem como imprimir uma continuidade temporal das ações.

Já as relações discursivo-argumentativas, segundo Koch


(1991[1989], p. 65), “são responsáveis pela estruturação de enunciados
e textos, por meio de encadeamentos sucessivos [...]”.

A autora estabelece a seguinte diferença entre as relações lógico-


semânticas e as discursivo-argumentativas:

Lógico-semânticas: trata-se de uma relação estabelecida entre o con-


teúdo de duas orações.

Discursivo-argumentativas: produzem-se dois (ou mais) enunciados


distintos, encadeando-se o segundo sobre o primeiro, que é tomado
como tema. Os encadeamentos podem ocorrer entre orações de um
Trazemos aqui um exemplo mesmo período, entre dois ou mais períodos e, também entre parágra-
de relação discursivo-argu- fos de um texto. Além disso, esses operadores introduzem no enuncia-
mentativa de conjunção.
Koch (1991 [1989]) apre- do uma orientação argumentativa (KOCH, 1991[1989], p. 65).
senta as seguintes relações
discursivo-argumentativas: Podemos apontar, no Texto 2, alguns exemplos de mecanismos de
relação de conjunção; coesão sequencial por conexão que se utilizam de operadores discursivos,
relação de disjunção ar-
gumentativa; relação de como além de e também. Em “Tudo somado, temos que Barack Hussein
contraconjunção; relação de Obama, além de todos os predicados concretos, tem também aquele que
explicação ou justificativa;
relação de comprovação; é fundamental: sorte”, temos a locução conjuntiva além de, que caracte-
relação de conclusão; rela- riza uma relação de conjunção que, segundo Koch (1991[1989), ocorre
ção de comparação; relação
de generalização/extensão; quando o elemento coesivo liga enunciados que constituem argumentos
relação de contraste; relação para uma mesma conclusão. Outros operadores que estabelecem rela-
de correção/redefinição.
ções de conjunção são: também; não só... mas também; tanto... como;
além de; além disso; ainda.

Já em “Barack Obama, [...] é um salto histórico enorme. Um salto de


qualidade, pela simbologia, pela concretização de uma mudança profun-
da que é política, social e cultural. Mas é também um salto no escuro,” o
operador discursivo mas estabelece uma relação de contrajunção, pois
contrapõe enunciados de orientações argumentativas diferentes. Ou-
tros operadores que estabelecem relação por contrajunção são: porém,
contudo, todavia, entretanto. Vejamos outro exemplo de operador dis-

58
Coesão textual Capítulo 04
cursivo de contraconjunção: Tanto favoritismo, porém, tem despertado
preocupação entre os eleitores de Obama.

O uso do operador argumentativo mas possibilita à autora ma-


nifestar oposição contrária ao que vinha sendo dito antes, ou seja, as
perspectivas favoráveis ao candidato Barack Obama são contrapostas,
através desse operador. É interessante também mostrar que esse opera-
dor se repete ao longo do texto, o que aponta para uma forte orientação
argumentativa do texto. Em alguns gêneros jornalísticos (comentário,
artigo, carta do leitor, editorial), podemos observar que os operadores
de contraconjunção desempenham um importante papel na constru-
ção argumentativa, na medida em que contribuem para a construção da
orientação apreciativa do autor no texto.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

É importante salientar que, não raras vezes, os livros didáticos redu-


zem os mecanismos de coesão textual aos pronomes e às conjun-
ções, quando, na verdade, os recursos coesivos são extremamente
variados. Vejamos um pequeno trecho extraído de um livro didático
de sétima série do Ensino Fundamental, que exemplifica o que afir-
mamos:

Conjunções:

As conjunções são importantes elementos de coesão. No texto,


além de ligar orações, elas estabelecem relações entre parágrafos,
auxiliando-nos a expressar com clareza nossas idéias.

A parte de gramática que estuda as conjunções é a Morfologia


(Morfo = forma + logia = tratado, ciência).

Essa informação encontra-se em uma caixa de texto, no capítulo sobre


uso da língua e no tópico sobre conjunções, que trabalha com compo-
sição de períodos a partir de indicação de determinadas conjunções.

Se a informação fornecida sobre a coesão não está incorreta, por ou-


tro lado, é extremante pobre e vaga. Provavelmente, o aluno não vai

59
Linguística Textual

aprender a função e o uso dos mecanismos coesivos. Conjunções e


pronomes são elementos coesivos no texto. Fora dele, perde o sen-
tido falar de coesão. Se atentarmos melhor, veremos que o que o
autor quer trabalhar na seção são as conjunções e não os mecanis-
mos de coesão. Provavelmente seja por isso que os autores de livros
didáticos somente falam de coesão quando abordam pronomes e
conjunções. Se o tema fosse, de fato, a coesão, outros recursos de-
veriam ser explorados, como os grupos nominais definidos, as elip-
ses, a manutenção e a progressão temática etc. Mas esses recursos
somente conseguem ser demonstrados nos textos.

Um trabalho produtivo com a coesão como padrão de textualidade


somente se efetiva no ensino-aprendizagem das práticas de escuta,
leitura e produção textual. Na leitura, o professor pode orientar seu
aluno para a importância de saber retomar o referente para a com-
preensão das partes do texto, para os efeitos de sentido e os acentos
de valor que se marcam nas retomadas do referente (por exemplo,
tem um acento de valor bastante diverso retomar, em um texto, o
referente celular antigo por esse modelo e aquele tijolão).

Da mesma forma, na reescritura dos textos, o professor, via media-


ção com o aluno, pode observar se os mecanismos de coesão usa-
dos pelo aluno estão adequados ou não, se produzem ou não os
efeitos de sentido desejados pelo aluno.

Neste Capítulo, exploramos a coesão textual e seu papel na constru-


ção da textualidade. No capítulo a seguir, dando continuidade à expo-
sição dos padrões de textualidade, apresentaremos a coerência textual.

60
Coerência Capítulo 05
5 Coerência
Para Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §6), coerência é
o padrão de textualidade que está relacionado às formas mediante as
quais conceitos e relações subjacentes ao “texto de superfície são mutu-
amente acessíveis e relevantes”. Os autores definem o
texto de superfície como
Os conceitos, por sua vez, são definidos pelos autores como “confi- “as palavras que efetiva-
mente ouvimos ou vemos”
gurações de conhecimento (conteúdos cognitivos) ativáveis ou recupe- (BEAUGRANDE; DRESSLER,
ráveis na mente”, e as relações são “ligações entre conceitos que ocorrem 2002 [1981], cap. I, §4).
juntos em um mundo textual”. Assim, a coerência, conforme definida
por Beaugrande e Dressler, não é uma propriedade do texto em si, mas
essencialmente um conjunto de processos cognitivos que constroem a
interpretação do texto. Portanto, em termos gerais, todos os elementos
que colaboram para que um texto se constitua como interpretável para
o interlocutor podem ser analisados como fatores de coerência.

Considerando que a coerência não está no texto em si (artefato),


mas é estabelecida no momento da interação, os fatores que contribuem
para a coerência textual dizem respeito tanto aos aspectos imanentes ao
texto, quanto ao interlocutor, ao produtor do texto e à situação de inte-
ração em que eles se encontram. O estabelecimento da coerência depen-
derá, portanto, não apenas do esforço do interlocutor em construir sua
interpretação do texto, mas também da capacidade do produtor do tex-
to de prever quanto de conhecimento seu interlocutor pretendido pos-
sui a respeito dos processos de textualização e dos gêneros do discurso.

Koch e Travaglia resumem que o estabelecimento da coerência do


texto depende: Como no capítulo anterior,
também optamos por usar
a) de elementos linguísticos (seu conhecimento e uso), bem como, evi- neste Koch e Travaglia
dentemente, da sua organização em uma cadeia linguística e como e como referência.
onde cada elemento se encaixa nessa cadeia, isto é, do contexto lin-
guístico; b) do conhecimento de mundo (largamente explorado pela
semântica cognitiva e/ou procedural), bem como o grau em que esse
conhecimento é partilhado pelo(s) produtor(es) e receptor(es) do texto,
o que se reflete na estrutura informacional do texto, entendida como a
distribuição da informação nova e dada nos enunciados e no texto, em
função de fatores diversos; c) de fatores pragmáticos e interacionais,

61
Linguística Textual

tais como o contexto situacional, os interlocutores em si, suas crenças


e intenções comunicativas, a função comunicativa do texto. (KOCH e
TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 47-48, grifos dos autores).

Os autores examinam a contribuição, para a construção da coerência,


dos seguintes fatores: conhecimento linguístico, conhecimento de mun-
do, conhecimento partilhado (entre produtor e interlocutor), inferências,
focalização, relevância, fatores de contextualização, informatividade, in-
tertextualidade, situacionalidade, intencionalidade e aceitabilidade.

Neste Capítulo, vamos discutir o papel dos seguintes elementos


para a construção da textualidade: elementos linguísticos, conheci-
mento de mundo, inferências, focalização e relevância.

Os fatores informatividade, intertextualidade, situacionalidade, in-


tencionalidade e aceitabilidade, como constituem padrões de textuali-
dade, serão apresentados em capítulos específicos desta Unidade. Esses
fatores também contribuem para a construção da coerência porque for-
necem, de diferentes maneiras, elementos para a constituição do entrela-
çamento de conceitos e relações que constituem o aparato sociocognitivo
de que se vale o leitor/ouvinte para elaborar sua interpretação do texto.

5.1 Elementos linguísticos


Como vimos no Capítulo 4 sobre coesão textual, pronomes, con-
junções e variadas formas de retomada lexical permitem a criação e
manutenção de uma rede coesiva que contribui para que o texto seja
percebido como uma unidade textual. Assim, os elementos linguísticos
formam a base da coesão. Da mesma forma, o estabelecimento da coe-
rência também depende fortemente do léxico e da sintaxe. Esta, contu-
do, não pode ser entendida tão-somente em seu sentido estrito, como
In: RICARDO, Cassiano. Um
uma estruturação das frases, com termos dispostos linearmente e uni-
dia depois do outro. São
Paulo: Companhia Editora dos por relações de dependência estrutural, marcadas ou não por co-
Nacional, 1947.
netivos. É o que se evidencia no poema Serenata Sintética, de Cassiano
Ricardo, cuja sintaxe se constrói essencialmente por via de paralelismos:

62
Coerência Capítulo 05
Texto 3
Movimento poético sur-
Serenata Sintética gido no Brasil, na década
de 50, cujas característi-
Rua cas incluem “abolição do
verso tradicional, falta de
torta. linearidade, ausência de
pontuação, ruptura com
Lua a sintaxe; aproveitamento
morta. do espaço – do ‘branco da
página’ – e a disposição
geométrica das palavras
Tua no papel; a exploração do
porta. significante quanto aos
seus aspectos sonoros,
visual e semântico [...]”
Esse poema, que se enquadra dentro da proposta estética do Con- (JORDÃO, R.; OLIVEIRA, C.
cretismo, caracteriza-se pela ausência de conectivos (preposições, con- B., 2005. p. 301)

junções) e pelo uso de sentenças nominais (sem verbos). A coesão é


criada pelo jogo de repetições próprio do texto poético: métrica regular
(versos monossílabos), rimas em versos alternados (AB AB AB), alitera-
ções (/r/ e /t/), estrofes de mesmo tamanho (dois versos).

Em termos lexicais e sintáticos, também se dá um jogo de repeti-


ções que contribui para a coesão do texto: em cada estrofe, há um carac-
terizador (torta, morta, tua) e um substantivo caracterizado (rua, lua,
porta).

São os elementos linguísticos que, num primeiro momento, garan-


tem a coerência do poema, ao remeter o interlocutor a um ambiente
Algumas possibilidades de
noturno (serenata, lua) e externo (rua), assim como a um contexto de interpretação que o léxico
história de amor (serenata, tua porta). Mas esses elementos também po- oferece só podem ser
rejeitadas a partir de ou-
dem remeter o leitor a outros níveis de interpretação do texto. O adjeti- tros fatores de coerência,
vo sintética corresponde ao caráter minimalista do poema, mas também como a situacionalidade e
a relevância.
pode referir-se a fabricado, industrial, artificial. Em um plano interpre-
tativo, o adjetivo torta refere-se ao formato sinuoso da rua. Mas torto
também pode ser entendido como errado, duvidoso. Daí que a rua torta
possa ser entendida como os próprios descaminhos do eu-lírico ou de
quem está por trás da porta. No texto poético, o eu-
-lírico é a voz que se dirige
O adjetivo morta, em um plano de interpretação, refere-se à ausên- ao leitor; corresponde,
grosso modo, ao narrador
cia de vida. Temos então um sentido trivial: A lua, efetivamente, é um do texto narrativo.
astro sem vida. Mas morto também evoca o sentido de desaparecido.

63
Linguística Textual

Então, nesse plano interpretativo, a lua já se esconde além do horizonte


e se tem uma noite sem lua, escura, portanto, misteriosa. O pronome
tua parece referir-se, num primeiro plano, à amada do eu-lírico. Mas
Considerando que sere- também podemos supor que o eu-lírico dirige-se ao leitor. Nesse caso,
natas são, normalmente, o pronome tua referir-se-ia à pessoa do leitor. A negação dessa hipó-
feitas por homens para
agradar a mulheres, su- tese, como veremos adiante, exige a ativação de outros conhecimentos
põe-se que o eu-lírico seja além do sistema linguístico. A palavra porta, que, em um plano inter-
um homem e a amada,
uma mulher. Mas ressalte- pretativo, é apenas a entrada para uma casa, comporta grande variedade
se que, do ponto de vista de outros significados, entre os quais acesso. Então, tua porta pode ser
estritamente linguístico,
nem o sexo da pessoa interpretado também como acesso a ti, acesso ao teu coração. Por fim,
amada se pode garantir. retornando ao título, a expressão serenata sintética tanto pode referir-se
ao conteúdo do poema – elementos mínimos de uma serenata – como
ao poema em si, ele próprio bastante sintético.

Observamos que os elementos linguísticos do texto, ao evocar con-


ceitos e relações variadas, permitem a criação de um mundo textual, nos
termos de Beaugrande e Dressler (2002); ou, mais propriamente, devido
Uma importante implica- ao caráter ambíguo do texto poético, variados mundos textuais.
ção escolar dessa questão
é a necessidade de os
alunos terem acesso a
conhecimentos variados, 5.2 Conhecimento de mundo
obtidos por meio da in-
teração com documentá- Um mesmo texto poderá parecer trivial ou impenetrável para dife-
rios, filmes, jornais, livros,
visitas a museus, expo- rentes interlocutores, dependendo de quanto conhecimento a respeito
sições de arte, parques do assunto do texto eles possuam. Essa situação mostra que a construção
ecológicos etc. Em escolas
que possuam recursos de da coerência de um texto é grandemente determinada pelos conheci-
informática, também se mentos de mundo prévios do interlocutor. Por isso, pessoas que possuem
pode acessar uma varie-
dade de sítios eletrônicos conhecimentos de assuntos variados têm melhor compreensão dos tex-
que permitem acesso tos em geral e estabelecem a coerência textual com maior facilidade.
a museus e galerias de
arte virtuais, assim como Segundo Koch e Travaglia (1999 [1989]), os pesquisadores costu-
a materiais em domínio
público (livros e filmes, mam diferenciar o conhecimento em: conhecimento enciclopédico (ba-
por exemplo). ckground knowledge) e conhecimento ativado (foreground knowledge). O
primeiro tipo de conhecimento representa aquilo que está guardado na
memória de longo prazo. Já os conhecimentos do segundo tipo são tra-
zidos à memória presente, ou operacional. Uma distinção importante
entre os dois tipos de memória é que, na memória de longo prazo, os
conhecimentos encontram-se mais organizados e integrados entre si,

64
Coerência Capítulo 05
formando redes conceituais, enquanto que, na memória operacional, os
itens não estão tão integrados e, assim, são mais facilmente esquecidos. Esta questão também está
relacionada ao letramento.
Esse conhecimento guardado na memória de longo prazo é aquilo a O conceito de letramento
emerge na década de 80
que normalmente nos referimos como conhecimento de mundo e envol- como reconhecimento
ve uma ampla gama de informações de natureza bastante diversa, entre das diferentes práticas
sociais de uso da leitura
as quais se poderia incluir: e da escrita mais comple-
xas que a codificação e
ӲӲ propriedades dos seres e seu comportamento; decodificação (aprendiza-
gem do sistema de escrita;
ӲӲ memória de fatos passados, com variados níveis de relevância, alfabetização no sentido
estrito do termo). Assim,
desde aqueles essencialmente pessoais até os eventos históricos; vale destacar que, em uma
sala de aula, incluem-se
ӲӲ gêneros do discurso; elementos da cultura do próprio grupo diferentes sujeitos. Os
social e de outros grupos; alunos ali agrupados estão
inseridos em diferentes
práticas de letramento, o
ӲӲ relação entre conhecimento científico e cotidiano; que tem implicações nas
práticas de linguagem
ӲӲ relação entre ficção e realidade etc. na disciplina de Língua
Portuguesa.
Para exemplificar como o conhecimento de mundo é relevante na
construção da coerência, vamos analisar seu papel na letra da música De
frente pro crime, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc (1975):
BOSCO, J. Caça à raposa.
Texto 4 São Paulo: RCA Victor,
1975. 1 disco: 33 1/3 rpm,
estéreo. LP 31.84.
De frente pro crime
1 Tá lá o corpo estendido no chão
2 em vez de rosto uma foto de um gol
3 em vez de reza uma praga de alguém
4 e um silêncio servindo de amém
5 O bar mais perto depressa lotou
6 malandro junto com trabalhador
7 um homem subiu na mesa do bar
8 e fez discurso pra vereador

9 Veio camelô vender anel,


10 cordão, perfume barato
11 baiana pra fazer pastel
12 e um bom churrasco de gato

65
Linguística Textual

13 quatro horas da manhã baixou


14 o santo na porta-bandeira
15 e a moçada resolveu parar
16 então...

17 Tá lá o corpo estendido no chão


18 em vez de rosto uma foto de um gol
19 em vez de reza uma praga de alguém
20 e um silêncio servindo de amém
21 Sem pressa foi cada um pro seu lado
22 pensando numa mulher ou num time
23 olhei o corpo no chão e fechei
24 minha janela de frente pro crime

O corpo no chão (verso 1) poderia ser de alguém dormindo, de al-


guém embriagado, de uma vítima de acidente. Entretanto, nosso conhe-
cimento de mundo nos leva a pensar em morte por causa da palavra
crime no título da canção.

No verso 2, um desafio à construção da coerência: Como a face de


alguém vira uma foto de um gol? A morte, obscena, precisa ser tirada
das vistas. Daí cobrir-se o morto com algo que esteja à mão. Nesse caso,
usou-se um jornal que trazia estampada a foto de um gol. Observe-se
que isso só é inferível por um leitor que conheça o fato de que é – ou,
pelo menos, costumava ser – usual cobrir cadáveres ainda não recolhi-
dos, como sinal de respeito.

Logo a seguir, nos versos 3 e 4, uma aparente incoerência: Se não


há reza, mas praga, por que amém (verso 4), que é fecho próprio de ora-
ções? A ativação do conhecimento de que amém significa “assim seja”
reinstaura a coerência: Um dos circunstantes pragueja contra a crimina-
lidade, contra a polícia ou contra o próprio morto; o silêncio dos demais
sugere uma concordância com essa fala ou com o próprio assassinato
– trata-se de “um marginal a menos”.

Outros conhecimentos de mundo precisam ainda ser mobilizados


para a construção da coerência. Por exemplo, compreender a relação
dos versos de 5 a 15 com o restante do texto implica ter alguma ciência
sobre a banalização da morte no ambiente das metrópoles brasileiras.

66
Coerência Capítulo 05
5.3 Inferências
Estreitamente ligada ao conhecimento de mundo está a construção
de inferências. Segundo Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), inferir é
suprir conhecimento de que já se dispõe a fim de organizar um mun- A inferência também é
trabalhada na disciplina
do textual: “Esta operação [inferir] envolve suprir conceitos e relações de Semântica. Veja: PIRES,
apropriados para preencher uma lacuna ou descontinuidade em um Roberta. Semântica.
Florianópolis: UFSC/CCE/
mundo textual.” (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002 [1981], cap. V, LLV, 2009.
§32). Portanto, o processo de inferenciação consiste em suprir, com base
em elementos textuais e no conhecimento de mundo, uma informação
necessária ou pertinente ao estabelecimento de relações entre entidades
no texto ou entre essas e o mundo.

Os autores descrevem a inferenciação como um processo ativo,


guiado pelas metas do produtor e do interlocutor: “[...] a inferencia-
ção é sempre dirigida para a resolução de um problema, no sentido de
[...] transpor um espaço onde a trilha não alcança”. (BEAUGRANDE e
DRESSLER, 2002 [1981], cap. V, §32)

As inferências são sempre motivadas por necessidades do leitor/


ouvinte em obter sentido, criar coerência. Citando Charolles (1987),
Koch e Travaglia dizem que

o processo de interpretação e reinterpretação é comandado pelo prin-


cípio da coerência, que leva aquele que interpreta o texto a construir
relações que não estão expressas nos dados do texto: estas relações são
as inferências, que podem ou não ser linguisticamente fundadas. (KOCH
e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 70).

Nos modelos teóricos que buscam explicar o processo de compreen-


são de textos, um problema a ser resolvido é a limitação das inferências
apenas àquelas que sejam necessárias ou de alguma forma relevantes à
construção da interpretação do texto. Koch e Travaglia (1999 [1989], p.
73) indicam alguns possíveis mecanismos de limitação das inferências:

a) O contexto, que pode ser o contexto lingüístico (ou co-texto) e o


contexto de situação (contexto sócio-cultural, circunstancial) [...];

b) A cooperação retórica, em termos de aceitação de argumentos;

c) A força ilocucionária do enunciado e a tarefa do ouvinte (ou leitor);

67
Linguística Textual

d) A focalização, a que Charolles (1987) se refere como filtragem pelo alto.

É importante destacar que as inferências podem variar drasticamen-


te entre interlocutores e são profundamente dependentes das expectativas
do leitor/ouvinte. Estas, por sua vez, são guiadas por diversos fatores, que
incluem os objetivos e o contexto imediato da interação, o gênero do dis-
curso e mesmo questões de intertextualidade. Um bom exemplo de como
a intertextualidade pode guiar a inferência está na leitura/audição de Pelos
vinte, composição de Paulinho da Viola e Sérgio Natureza (1978):
PAULINHO DA VIOLA. Pau-
linho da Viola. São Paulo: Texto 5
EMI/ODEON, 1978. 1 disco:
33 1/3 RPM, estéreo. Pelos Vinte

Você me deixou pelos vinte


No golpe da sorte
Entre a rosa e a preta
Na mesa da vida
Você me deixou sem saída
Sinuca de bico
A preta e a rosa
Na noite perdida
Você me deixou sem escolha
Com bolha no dedo
E o taco mais fraco
Com medo de errar
Você só deixou a tabela
E eu disse comigo
O efeito foi feito
Pra gente tentar
Tentei no capricho e matei sem perdão sua pose
A black e a rose
E a black outra vez
Enfim terminado este jogo
Chamei pelo cara do tempo
E tirei da caçapa o suor que suei

68
Coerência Capítulo 05
O texto descreve um jogo de bilhar tenso, ganho pelo eu-lírico após
uma jogada arrojada. Salvo por pistas sutis – como os versos Na mesa
da vida e Na noite perdida, que parecem remeter a contextos existenciais
mais amplos –, o texto parece definitivamente referir-se a bilhar. Entre-
tanto, vários leitores/ouvintes veem no texto a alegoria de uma relação
amorosa tensa, da qual o eu-lírico se vê livre.

Finalmente, considerando que, como dizem Beaugrande e Dressler, Isso possivelmente se dá


porque quem conhece
inferir é suprir conhecimento, leitores/ouvintes que possuem conheci- outras canções gravadas
mentos de mundo mais amplos serão capazes de construir inferências por Paulinho da Viola
sabe que ele não costu-
mais amplas, que permitirão outras possibilidades de coerência, leituras ma trabalhar com temas
mais ricas. Na análise do texto De frente pro crime, por exemplo, mostra- banais (como seria a mera
descrição de um jogo
mos como o conhecimento de mundo permitiu elaborar algumas inferên- de bilhar) e que muitas
cias que serviram para integrar em um mundo textual coerente itens que de suas músicas têm por
tema o amor.
ficariam sem uma explicação plausível, como o verso em vez de rosto uma
foto de um gol. Mas, além dessas inferências, muitas outras podem ser
feitas, de forma a ampliar a compreensão do texto, atribuindo-lhe outros
sentidos. Por exemplo, a partir do fato de que o morto foi coberto com
jornal e não com material mais nobre, pode-se inferir que se trata, prova-
velmente, de alguém pobre. A partir da informação de que os populares,
ao deixar o local do crime, vão pensando em uma mulher ou um time de
futebol, é possível inferir que a morte já não os sensibiliza, banalizou-se.

5.4 Focalização
Segundo Koch e Travaglia (1999 [1989]), a focalização está direta-
mente ligada com o conhecimento de mundo e o conhecimento com-
partilhado. Nas interações, tanto o produtor quanto o interlocutor foca-
lizam sua atenção em apenas uma pequena porção do conhecimento de
que dispõem a respeito do assunto. Entretanto, para que a compreensão
se dê de forma adequada, é necessário que esse recorte do conhecimento
seja realizado de forma semelhante pelos participantes. Ou seja, é neces-
sário que os mesmos objetos de discurso sejam enfocados. Nas intera-
ções conversacionais, isso envolve mecanismos de negociação:

Os falantes agem como se estivessem focalizados semelhantemente,


quer estejam ou não (princípio da cooperação), e tendem a estabelecer
um campo comum. Caso não estejam focados semelhantemente, as di-

69
Linguística Textual

ferenças de focalização causam problemas de compreensão que só são


detectados se ocorrerem problemas maiores de compatibilidade (KOCH
e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 82).

Já nas interações mediadas por textos escritos, é bastante comum


que o produtor e o leitor não tenham possibilidade de negociar a fo-
calização. Daí a necessidade de que o produtor forneça os elementos
que permitam ao leitor decidir sobre o que está sendo focalizado num
dado momento. Há variadíssimas formas para isso. Observemos, por
exemplo, como, no primeiro parágrafo do conto Pinóquio às avessas,
reproduzido abaixo, o menininho de carne e osso vai ganhando forma
não como um menino específico, mas como uma entidade prototípica
de uma infância idealizada. Isso é conseguido, entre outros meios, pelo
uso do pretérito imperfeito para falar de ações corriqueiras do menino:

Era uma vez um menininho, de carne e osso, igual a tantos que se de-
leitam nas coisas simples que a vida dá. Ria nos seus mundos de faz de
conta, voava nas asas dos urubus, assustava os peixes, nariz achatado
nos vidros dos aquários, assobiava para os perus, andava na chuva. To-
das estas coisas que as crianças fazem e os adultos desejam fazer e não
fazem, por vergonha. Sua vida escorria feliz por cima do desejo.

Essa focalização do menino como uma espécie de representante


genérico de toda a infância é importante para que se realizem os efeitos
de sentidos pretendidos por Rubem Alves (entre os quais se inclui cer-
tamente uma crítica à educação escolar).

Para a focalização, os conhecimentos compartilhados sobre os gê-


neros do discurso também têm grande relevância. No exemplo acima,
Rubem Alves abre o texto com Era uma vez, que remete o leitor ao conto
de fada. Portanto, um leitor proficiente saberá que a história que lerá é
ficcional. Então, focalizará as personagens não como pessoas reais, mas
imaginárias. Por outro lado, quando esse leitor proficiente iniciar a leitura
de um artigo assinado no jornal, a focalização já iniciará com o próprio
suporte do texto, o jornal, passando pela seção em que o artigo é publica-
do, por seu título, pelo conhecimento do que é o jornalismo e o gênero ar-
tigo assinado etc. Saberá que um artigo de jornal é diferente, por exemplo,
de um artigo publicado em revista científica (são dois gêneros distintos) e
também bastante diferente de uma matéria publicada em uma revista de
fofocas. Além disso, se uma notícia estiver publicada na seção de esportes,

70
Coerência Capítulo 05
nosso leitor hipotético construirá sentidos diferentes para a palavra con-
fronto do que se essa notícia estiver publicada na seção policial.

Falando sobre as interações conversacionais, Koch e Travaglia (1999


[1989]) destacam que as pistas para focalização podem ser linguísticas ou
não-linguísticas, como aquilo que os falantes veem durante a interação.
Nas interações mediadas pela escrita, elementos sígnicos não-linguísticos,
como desenhos e fotografias, também podem auxiliar a focalização.

As focalizações são fortemente dependentes do contexto e dos obje-


tivos da interação. Por exemplo, se um jornalista escrever uma notícia a
respeito de um encontro de líderes políticos, escolherá quais aspectos do
evento é relevante noticiar, norteado pela situação imediata da interação
de seu texto e pelas condições que o gênero lhe permite: onde e quando foi
o evento, quem participou, qual o assunto, qual a opinião dos líderes pre-
sentes, a que eventos correlatos fará referência, e assim por diante. Se um
A ideia de que a conver-
dos debatedores for um ministro que, nas horas vagas, dedica-se a esportes sação opera segundo
de risco, tal fato não será, provavelmente, enfocado pelo jornalista – a não princípios cooperativos é
de Grice (1975). Segundo
ser que, durante o evento, o gosto pela aventura do ministro fique evidente. o autor, a comunicação
Poderá, então, servir até para que o jornalista enriqueça seu texto com um humana baseia-se em
regras tácitas de coopera-
detalhe bem-humorado. O leitor, por sua vez, ainda que saiba dos gostos ção mútua. Uma delas, por
esportivos do ministro, tenderá a não focalizar esse conhecimento para exemplo, permite pressu-
por que, salvo indicação
sua construção da coerência do texto, a não ser que o jornalista o explore. em contrário, tudo que o
interlocutor diz é verda-
Como mencionado acima, tanto nas interações orais como naquelas deiro e deve ser tomado
como tal.
mediadas pelo texto escrito, opera-se uma espécie de princípio coopera-
tivo segundo o qual os interlocutores realizam a mesma focalização. Ou,
Retornaremos a essa dis-
mais propriamente falando, realizam focalizações coerentes, uma vez que cussão na Unidade C deste
os objetos discursivos – que não se confundem com os objetos do mundo Livro-texto.
físico – jamais podem ser exatamente os mesmos. Mas esse princípio coo-
perativo não raro é violado, muitas vezes intencionalmente. Às vezes, para
A Notícia, 28 fev. 2009.
instigar a curiosidade do leitor ou para fazer um jogo lúdico, o escritor
Disponível em http://www.
faz com que ele dirija sua focalização equivocadamente, como ocorre no clicrbs.com.br/
anoticia/jsp/default2.}
título da matéria a seguir, publicada no jornal A Notícia:
jsp?uf=2&local=18&
source=a2421066.
xml&template=4187.
dwt&edition=11806&
section=888.
Acesso em: 6 mai. 2009.

71
Linguística Textual

Texto 6

Ronaldo estreia... a caixa de multas


Atacante “esticou” a folga e será punido pelo Corinthians.

A diretoria do Corinthians anunciou ontem que o atacante Ronaldo será


punido pelo clube por não se apresentar no horário marcado na noite
de quinta-feira, em Presidente Prudente (SP).

Depois da folga da tarde, os atletas tinham de voltar ao hotel até as 23


horas – o astro do elenco desobedeceu à determinação e só retornou
de madrugada.

Em nota oficial, o clube não especificou qual será a punição, mas deixou
claro que ele realmente se atrasou, confirmando os boatos de que teria
aproveitado a noite da cidade do interior paulista. A polêmica surge às
vésperas da partida que pode colocar o Corinthians na liderança, contra
o Marília, amanhã, às 19h10.

Durante a manhã de ontem, Ronaldo não participou das atividades com


os outros atletas, no Estádio Eduardo José Farah. Mas, de acordo com o
técnico Mano Menezes e com a nota oficial, a ausência do jogador no
treino já era prevista. Ele realizou treinamento específico com fisiotera-
peutas na concentração.

Quando apresentado oficialmente no Corinthians, em 12 de dezembro


do ano passado, o Fenômeno declarou, ao lado do presidente Andrés
Sanches, que gostaria de ser mais um no elenco e não aceitaria ter pri-
vilégios. Só que o fato de ele não treinar com o restante do grupo na
manhã de ontem indica um benefício após noite mal dormida.

Segundo o técnico Mano Menezes, o tratamento do craque separada-


mente, em sala de fisioterapia montada pelo time num dos quartos do
hotel, já estava programado pela comissão técnica. Mesmo assim, a van
que leva os jogadores ao treinamento esperou pelo atacante até 9h20 –
o treino estava marcado para as 9 horas.

Recém-contratado pelo clube, o jogador Ronaldo ainda não estre-


ara em partidas oficiais, havendo grande expectativa com relação a isso.
Valendo-se desse fato, o jornalista cria um efeito lúdico com o desvio de
focalização. As reticências (e talvez a quebra de linha), sugerindo uma
pausa de suspense, servem para indicar ao leitor que não se trata de ca-
sualidade, mas de efeito intencional.

72
Coerência Capítulo 05
Citando Grosz (1981), Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 82) des-
tacam que a focalização “não só torna a comunicação mais eficiente,
como, na verdade, a torna possível”. A focalização constitui, portanto,
uma condição necessária para a construção de coerência, ao permitir
que o produtor do texto e seu leitor/ouvinte selecionem porções de co-
nhecimento para construção do texto e de sua interpretação.

5.5 Relevância
Citando Giora (1985), Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 95) afir-
mam que “uma das principais condições para o estabelecimento da coe-
rência é a de relevância discursiva”. Ou seja, um texto mostra-se coerente
quando é possível interpretar as partes que o compõem como tratando
todas de um mesmo tópico discursivo.

Como observam Koch e Travaglia (1999 [1989]), a relevância não é


percebida linearmente no texto entre pares de sentenças, mas entre um
conjunto de sentenças e um tópico discursivo. Assim, é possível que
diferentes conjuntos de sentenças tratem de diferentes tópicos discur-
sivos, mas, para que a condição de relevância seja atendida, é preciso
que um tópico maior os agrupe todos. Como afirmam os autores, “para
que diferentes tópicos discursivos possam [...] preencher o requisito de Veja, por exemplo, a análi-
relevância, eles devem ser relacionados por um hipertópico discursivo se da progressão temática
do Texto 2.
subjacente em termos de ‘aboutness’ (ser sobre algo)” (KOCH e TRA-
VAGLIA, 1999 [1989], p. 95-96).

Em não havendo conexão aparente entre o tópico desenvolvido por


um segmento de texto e o tópico principal, é comum que o autor negocie
isso com seu interlocutor mediante um marcador de digressão. Na conver-
sação, servem a esse propósito expressões como por falar nisso, aliás, entre
outras. Mas, muitas vezes, as quebras sequer são sinalizadas na oralidade Trecho de comentário
publicado no blog Me-
espontânea, porque o contexto informa ao interlocutor que o segmento de mórias fracas. Disponível
diálogo (a digressão) não tem relação com o tópico em desenvolvimento. em http://memoriasfra-
cas.com/2008/10/22/
fios-cabos-adaptadores-
Em contexto escrito, costumam existir marcadores específicos para gadgets/. Acesso em 27
início e fim da digressão, como no texto a seguir, onde o marcador Inclusive abr. 2009.
marca o início de uma pequena digressão, enquanto Mas voltando ao assun-
to marca a volta ao tópico principal do texto, que é a relação do autor com

73
Linguística Textual

dispositivos eletrônicos. Neste mesmo texto, os travessões também foram


usados para marcar uma outra digressão, esta no meio de um período.

Texto 7

Fios, cabos, adaptadores, gadgets


22 DE OUTUBRO DE 2008

Na última semana, fui a São Paulo cobrir o TechEd, evento da Micro-


soft voltado para desenvolvedores. Inclusive, você pode ver alguns de
meus posts sobre o evento no WinAjuda. Mas voltando ao assunto, foi
um cobertura voltada para o mercado de tecnologia e envolvia equi-
pamentos tecnológicos. Numa manhã, enquanto eu, Carlos Cardoso e
Thiago Mobilon tomávamos café no hotel – acho que foi o café da ma-
nhã mais demorado da minha [sic] –, esse último soltou uma pérola.
Mobilon comparou a necessidade de arrumação de uma mulher com
a necessidade que um geek tem de se manter conectado e cheio de
equipamentos. [...]

Koch e Travaglia (1999 [1989]) sugerem que, no texto jornalístico


MATENCIO, M., L. M. Práti-
cas discursivas, gêneros do escrito, as digressões podem ser destacadas na forma de quadros com
discurso e textualização. comentários e informações complementares (por exemplo, as informa-
In: Estudos Linguísticos,
São Paulo, v. XXXV, p. 138- ções apresentadas por meio de mapas e infográficos). Segundo os auto-
145, 2006. Disponível em: res, se tais informações aparecessem no meio do texto da reportagem
<http://www.gel.org.br/
estudoslinguisticos/edicoe- ou da notícia, nos pontos em que se lhes faz referência, representariam
santeriores/ digressões. Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos considerar
4publica-estudos-2006/sis-
tema06/mdlmm.pdf>. que muitas das notas de rodapé em textos científicos também represen-
Acesso em: 30 abr. 2009. tam digressões, como podemos confirmar no trecho do texto a seguir,
de autoria de Matencio (2006):

Texto 8
Na minha exposição, salientei aquelas que considero serem, de uma
perspectiva bakhtiniana, as contribuições mais relevantes dos estudos
dos gêneros para a reflexão sobre os processos de textualização. Antes
de passar às minhas considerações finais, gostaria de dizer que a imensa
popularidade desses estudos parece-me, também, perigosa, na medida
em que pode obscurecer as diferenças nas abordagens12 e, sobretudo,
dar a ilusão de que não há mais nada de novo a dizer.

74
Coerência Capítulo 05
Notas

[...]
12
A preocupação de “limpar o campo”, de delimitar, de uma vez por todas, a
questão, parece ter sido, aliás, a preocupação de muitos dos trabalhos sobre os
gêneros que circularam em fins dos anos 90, quando se tentava distinguir tipo
textual e gênero; mais recentemente, a preocupação de discussões que procu-
ram identificar as distinções entre trabalhos que se dedicam ao estudo dos gê-
neros textuais e aqueles que tratam dos gêneros do discurso parece responder
ao mesmo tipo de inquietação.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

a) Como se pode ver a partir do pequeno exemplo explorado no item


5.1, os elementos linguísticos abrem muitas possibilidades interpre-
tativas, variadíssimas formas de construir a coerência. Portanto, no
ensino-aprendizagem de leitura, o professor precisa estar especial-
mente atento à polissemia dos termos e expressões, especialmente
nos textos em que predomina a função poética da linguagem. Uma
boa idéia pode ser examinar atentamente o léxico antes de apre-
sentar o texto aos alunos e, possivelmente, recorrer ao dicionário à
busca de sentidos menos convencionais. Possíveis exercícios envol-
veriam: leitura de textos poéticos, investigando diferentes possibili-
dades interpretativas; escritura de poemas explorando a polissemia
de termos como forma de criar jogos de sentidos.

E é ainda importante, no ensino-aprendizagem da leitura, que o


aluno leia o texto situado genericamente, ou seja, que ele saiba a
que gênero o texto pertence, pois gêneros distintos arregimentam
diferentes possibilidades de interpretação. Por exemplo, enquanto
os textos dos gêneros da arte buscam a polissemia, ou seja, várias
possibilidades de leitura, os textos legais buscam o fechamento dos
sentidos, logo, uma leitura mais parafrástica.

b) A focalização também é importante para a construção da coe-


rência textual. Assim, no ensino-aprendizagem de produção textu-
al, são importantes os procedimentos destinados a levar os alunos
a focalizarem seu texto. Tradicionalmente, a orientação para que o
aluno ‘delimite o assunto’ ou ‘defina um recorte’ servem para isso.

75
Linguística Textual

Entretanto, essa delimitação é quase impossível quando não estão


claras as condições de produção, que, em, em grande medida, estão
ligadas aos gêneros do discurso: Em que espaço social de interação
estão escritor e leitor? Que autoria assumirá o aluno-autor? Quem
será seu leitor previsto? Quais são os objetivos do texto, ou seja, o
que o aluno-autor quer enunciar, por que e que reação-resposta
ele espera de seu leitor? Quais conhecimentos de mundo ele pode
esperar que o leitor possua? Como essa reação-resposta e esse co-
nhecimento de mundo previsto podem orientar o processo de tex-
tualização? Onde, quando e como o texto será publicado? Da mes-
ma forma, nos processos de leitura, é importante a focalização, que
pode começar justamente pela exploração do gênero do discurso,
com perguntas semelhantes às que se apresentam anteriormente.

c) A elaboração de inferências é essencial para a compreensão do


texto e para a construção da coerência, permitindo que se lhe atri-
buam outros sentidos. Por isso o ensino-aprendizagem pode prever
questões que levem os alunos a inferir informação não explícita no
texto. Pensando especificamente na polissemia do texto literário, os
alunos podem ser encorajados a expandir sua compreensão bus-
cando inferir as motivações das personagens, a moral da história, e
assim por diante.

d) A percepção da relevância – tomada como a integração da in-


formação ao tópico discursivo – é essencial para a construção da
coerência. No ensino-aprendizagem de leitura, é preciso exercitar
essa percepção. No caso de contos, crônicas, romances, mediante
perguntas bem colocadas, é possível levar os alunos a uma interpre-
tação mais apurada da história. Pode-se, por exemplo, perguntar:

“O que esse fato revela a respeito da personagem X?”, “Qual a re-


levância dessa característica da personagem X no desenvolvimen-
to da história?”, “Por que a personagem X agiu assim?”. No caso de
artigos de opinião, podem-se fazer perguntas que levem os alunos
a perceber como a argumentação se constrói, mormente, median-
te raciocínios lógicos e exemplificações. Na mediação da produção

76
Coerência Capítulo 05
Na mediação da produção escrita, igualmente, os alunos devem ser
orientados a selecionar informações que sejam pertinentes à cons-
trução de textos coerentes e adequados à situação de interação.

e) Dado o caráter determinante dos conhecimentos de mundo na


construção de coerência, o ensino-aprendizagem de leitura pode
prever estratégias para facilitar a ativação desses conhecimentos.
Isso pode ser conseguido com perguntas dirigidas pelo professor à
turma antes, durante e após a leitura do texto. Por exemplo, antes
da leitura do texto De frente pro crime, poder-se-ia perguntar aos
alunos se a reação das pessoas perante as mortes violentas varia ao
longo do tempo e conforme a classe social da vítima. Também seria
possível pedir aos alunos que pensassem sobre o que acontece no
cenário de um assassinato na rua enquanto a polícia não recolhe o
cadáver. O professor também pode buscar formas de suprir o co-
nhecimento de mundo de que os alunos não disponham. Há várias
estratégias para isso, desde informar diretamente aquilo que os alu-
nos não sabem até pedir-lhes previamente que realizem pesquisas
sobre o tema. Da mesma forma, destaca-se a importância do conhe-
cimento de mundo no processo de produção textual.

Neste Capítulo, examinamos o papel, para a construção da co-


erência, dos elementos linguísticos, do conhecimento de mundo, das
inferências, da focalização e da relevância. Nos Capítulos seguintes,
apresentaremos os fatores informatividade, intertextualidade, situacio-
nalidade, intencionalidade e aceitabilidade, que, da mesma forma, têm
grande relevância para a coerência.

77
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06
6 Intencionalidade e
aceitabilidade
Quando o autor produz um texto, tenciona que este seja entendido
como tal, porque tem metas na interação. Existe, via de regra, um ob-
jetivo para a enunciação. O autor quer influenciar de alguma forma o
interlocutor: informar-lhe algo, fazer-lhe uma promessa, dar-lhe uma
ordem, obter dele uma informação etc. Isso não implica, obviamente,
que os esforços do autor sempre produzam o efeito desejado. Às vezes,
alguma dificuldade do interlocutor em lidar com o texto ou algum pro-
blema na textualização pode causar resultados inusitados. Vejamos, a
esse respeito, esta fotografia de um aviso pintado na parede externa de
um restaurante ou bar: Disponível em: http://
blog-do-rona.blogspot.
com/2007/03/zaco-e-sua-
Texto 9 flor.html. Acesso em: 4
mai. 2009.

A intenção do anunciante, aparentemente, era informar a potenciais


clientes que ali se vendia guaraná afrodisíaco, para – é claro – melhorar POSSENTI, S. “Quase
suas vendas. A forma como redigiu o aviso, entretanto, deu margem a gols de placa”. Dispo-
nível em http://terra-
leituras e reações bastante diversas. A imagem do anúncio circulou, via magazine.terra.com.br/
internet, por todo o Brasil e foi alvo de pilhérias. Todavia, o professor interna/0,,OI1575149-
EI8425,00.html. Acesso
Sírio Possenti fez uma análise do anúncio, mostrando que o suposto em: 4 mai. 2009.
erro é, na verdade, um gol de placa em termos de criatividade frente a um

79
Linguística Textual

problema linguístico. Já o escritor Ronaldo Monte, inspirado pelo anún-


MONTE, R. Zíaco e sua flor. cio, escreveu um breve conto, que simula uma narrativa mítica. Como
Disponível em: <http://
blog-do-rona.blogspot. se vê, o autor do aviso – por desconhecimento da palavra afrodisíaco em
com/2007/03/zaco-e-sua- sua forma escrita – produziu um texto cujos efeitos foram muito além
flor.html>. Acesso em: 4
mai. 2009 . do que ele tencionava.

Esse desejo do autor de produzir um texto que cause algum efeito


sobre o interlocutor é chamado de intencionalidade, que é definida por
Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap.I, §13) como

[a] atitude do produtor de que o conjunto de ocorrências deva consti-


tuir um texto coeso e coerente, instrumental ao cumprir as intenções do
produtor; por exemplo, distribuir conhecimento ou alcançar uma meta
específica em um plano.

Contudo, como já vimos, a coerência não está no texto, mas é cons-


truída pelo leitor/ouvinte na interação. Portanto, o sucesso da intenção
do autor é altamente dependente das condições oferecidas por seu inter-
locutor, entre as quais sua maior ou menor disposição para aceitar o tex-
to como coeso, coerente e relevante para a situação. Essa disposição do
leitor/ouvinte constitui a aceitabilidade, assim descrita por Beaugrande
e Dressler (2002 [1981], cap. I, §14):

[...] atitude do receptor do texto de que o conjunto de ocorrências deva


constituir um texto coeso e coerente que tenha algum uso e relevância
para o receptor; por exemplo, adquirir conhecimento ou fornecer coo-
peração em um plano. Essa atitude é responsiva a fatores como tipo de
texto, cenário social ou cultural e a busca por metas.

No caso do anúncio do suco de guaraná a flôr de zíaco, por exem-


plo, tanto Sírio Possenti quanto Ronaldo Monte mostram-se coopera-
tivos como leitores. Para eles, o texto tem grande aceitabilidade. Mas,
enquanto Monte constrói uma coerência alternativa para a frase a flôr de
zíaco, Possenti a lê como um erro, ainda que inteligente:

Acho que esse é um bom exemplo de erro inteligente. É um erro, claro,


mas é brilhante. Lembra as etimologias populares (aviso breve, assustar
o cheque), tentativas de dar sentido a palavras ou a expressões opacas. É
um erro comparável aos gols perdidos por Pelé. (POSSENTI, 2007).

Koch e Travaglia (1999 [1989]) afirmam que tanto a intencionali-


dade quanto a aceitabilidade podem ser tomadas em sentido amplo ou

80
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06
em sentido restrito. Em sentido restrito, a intencionalidade manifesta-se
como a intenção do autor de produzir um texto dotado de coesão e coe-
rência. Já a aceitabilidade, em sentido restrito, constitui a disposição do
interlocutor em aceitar essas intenções do autor, tomando o texto como
coeso, coerente e relevante. Portanto, em sentido restrito, o produtor e
o leitor/ouvinte “agem como se o texto fosse coerente, numa espécie de
atitude cooperativa: Um sempre quer produzir um texto que faça sen-
tido e o outro sempre vê a produção do primeiro como algo que ele fez
para ter sentido” (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989]).
Esse parece ser o caso do
Em sentido amplo, a intencionalidade abrange todas as formas de anúncio analisado. Mesmo
com os erros linguísti-
que o locutor lança mão para realizar os seus propósitos comunicativos. cos, autor e interlocutor
E a aceitabilidade, em sentido amplo, corresponde a uma disposição do tentam ser cooperativos.
Entretanto, nem sempre
leitor/ouvinte em compartilhar com o locutor esse propósito mais geral o interlocutor mostra
de estabelecer e manter a comunicação. Portanto, segundo Koch e Tra- cooperação. Muitas vezes,
os desvios de norma-
vaglia (1999 [1989], p. 80), intencionalidade e aceitabilidade, em sentido padrão são motivos para
amplo, “são as duas faces constitutivas do princípio da cooperação”. Tão o interlocutor não apenas
não aceitar a intenção do
forte é esse princípio cooperativo que o leitor/ouvinte tolera eventuais autor, como para desqua-
problemas na coesão ou na coerência, a fim de manter a comunicação, lificá-lo.
como destacado por Beaugrande e Dressler (2002 [1981], Cap. 1, §13):

Em certa medida, a coesão e a coerência podem, por si sós, ser tomadas


como metas operacionais sem cuja consecução outras metas discur-
sivas podem ser bloqueadas. Contudo, os usuários de textos normal-
mente mostram tolerância em relação a produtos cujas condições de
ocorrência tornam difícil manter coesão e coerência juntas [...], especial-
mente na conversação informal.

No texto a seguir, de Luiz Fernando Veríssimo (1982), é possível per-


ceber como as personagens do texto buscam interagir cooperativamente. VERÍSSIMO, L. F. In: NOVA-
ES, C. A. et al. Para gostar
Para isso, as intenções comunicativas de um devem ser aceitas pelo outro, de ler. v. 7. Crônicas. São
mesmo que seja preciso tolerar eventuais falhas na construção da coerência. Paulo: Ática, 1982. p. 35-37

Texto 10

Comunicação
É importante saber o nome das coisas. Ou, pelo menos, saber comuni-
car o que você quer. Imagine-se entrando numa loja para comprar um...
um... como é mesmo o nome?

81
Linguística Textual

“Posso ajudá-lo, cavalheiro?”

“Pode. Eu quero um daqueles, daqueles...”

“Pois não?”

“Um... como é mesmo o nome?”

“Sim?”

“Pomba! Um... um... Que cabeça a minha. A palavra me escapou por


completo. É uma coisa simples, conhecidíssima.”

“Sim senhor.”

“O senhor vai dar risada quando souber.”

“Sim senhor.”

“Olha, é pontuda, certo?”

“O quê, cavalheiro?”

“Isso que eu quero. Tem uma ponta assim, entende?

Depois vem assim, assim, faz uma volta, aí vem reto de novo, e na outra
ponta tem uma espécie de encaixe, entende? Na ponta tem outra volta,
só que esta é mais fechada. E tem um, um... Uma espécie de, como é
que se diz? De sulco. Um sulco onde encaixa a outra ponta, a pontuda,
de sorte que o, a, o negócio, entende, fica fechado. É isso. Uma coisa
pontuda que fecha. Entende?”

“Infelizmente, cavalheiro...”

“Ora, você sabe do que eu estou falando.”

“Estou me esforçando, mas...”

“Escuta. Acho que não podia ser mais claro. Pontudo numa ponta, certo?”

“Se o senhor diz, cavalheiro.”

“Como, se eu digo? Isso já é má vontade. Eu sei que é pontudo numa


ponta. Posso não saber o nome da coisa, isso é um detalhe. Mas sei exa-
tamente o que eu quero.”

“Sim senhor. Pontudo numa ponta.”

“Isso. Eu sabia que você compreenderia. Tem?”

82
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06
“Bom, eu preciso saber mais sobre o, a, essa coisa. Tente descrevê-la ou-
tra vez. Quem sabe o senhor desenha para nós?”

“Não. Eu não sei desenhar nem casinha com fumaça saindo da chaminé.
Sou uma negação em desenho.”

“Sinto muito.”

“Não precisa sentir. Sou técnico em contabilidade, estou muito bem de


vida. Não sou um débil mental. Não sei desenhar, só isso. E hoje, por acaso,
me esqueci do nome desse raio. Mas fora isso, tudo bem. O desenho não
me faz falta. Lido com números. Tenho algum problema com os números
mais complicados, claro. O oito, por exemplo. Tenho que fazer um rascu-
nho antes. Mas não sou um débil mental, como você está pensando.”

“Eu não estou pensando nada, cavalheiro.”

“Chame o gerente.”

“Não será preciso, cavalheiro. Tenho certeza de que chegaremos a um


acordo. Essa coisa que o senhor quer, é feito do quê?”

“É de, sei lá. De metal.”

“Muito bem. De metal. Ela se move?”

“Bem... É mais ou menos assim. Presta atenção nas minhas mãos. É as-
sim, assim, dobra aqui e encaixa na ponta, assim.”

“Tem mais de uma peça? Já vem montado?”

“É inteiriço. Tenho quase certeza de que é inteiriço.”

“Francamente...”

“Mas é simples! Uma coisa simples. Olha: assim, assim, uma volta aqui,
vem vindo, vem vindo, outra volta e clique, encaixa.”

“Ah, tem clique. É elétrico.”

“Não! Clique, que eu digo, é o barulho de encaixar.”

“Já sei!”

“Ótimo!”

“O senhor quer uma antena externa de televisão.”

“Não! Escuta aqui. Vamos tentar de novo...”

83
Linguística Textual

“Tentemos por outro lado. Para o que serve?”

“Serve assim para prender. Entende? Uma coisa pontuda que prende.
Você enfia a ponta pontuda por aqui, encaixa a ponta no sulco e prende
as duas partes de uma coisa.”

“Certo. Esse instrumento que o senhor procura funciona mais ou menos


como um gigantesco alfinete de segurança e...”

“Mas é isso! É isso! Um alfinete de segurança!”

“Mas do jeito que o senhor descrevia parecia uma coisa enorme,


cavalheiro!”

“É que eu sou meio expansivo. Me vê aí um... um... Como é mesmo o nome?”

Visando obter do cliente a informação de que precisa (o produto


que o cliente deseja) e diante da hesitação do cliente, o vendedor ins-
tiga-o com perguntas gentis, mas cada vez mais curtas: Posso ajudá-lo,
cavalheiro?; Pois não?; Sim? É como se houvesse urgência em obter logo
a informação para dar sequência à interação comunicativa.

Em vista de sua dificuldade em lembrar o nome do objeto, o cliente


fornece outro tipo de informação, a de que esqueceu o nome do objeto
que deseja comprar. Sua intencionalidade, neste ponto, desloca-se da meta
de nomear o objeto para outra meta: mostrar, nas entrelinhas, que não é
alguém mentalmente insano, mas que simplesmente esqueceu o nome de
algo. Essa estratégia discursiva é importante para manter alta a aceitabili-
dade do vendedor, que precisa acreditar que o cliente realmente está ten-
tando ser cooperativo. O vendedor aquiesce com Sim senhor duas vezes,
para mostrar que ainda está aberto o canal de comunicação entre eles.

Diante da dificuldade em que se vê, o cliente muda ligeiramente a


meta inicial, que era lembrar o nome do objeto e passa a perseguir uma
meta alternativa: fazer com que o vendedor lhe dê essa informação. Para
isso, a intencionalidade do seu texto agora é, mediante uma descrição da
forma do objeto, fazer com que o vendedor o identifique. A princípio,
a aceitabilidade desse texto parece ser reduzida, porque o vendedor dá
respostas curtas e evasivas: Infelizmente, cavalheiro; Estou me esforçan-
do, mas... Se o senhor diz, cavalheiro.

84
Intencionalidade e aceitabilidade Capítulo 06
Essa última resposta irrita o cliente, que percebe que a aceitabilidade
de seu texto está se reduzindo. Novamente, ele precisa mudar sua meta na
interação, de forma a não deixar que a comunicação se interrompa. Daí
a necessidade de convencer o vendedor a aceitar o seu texto. Isso é feito
de duas formas: acusar o vendedor de que ele não está se esforçando o
suficiente (Isso já é má vontade) e insistir que é alguém capaz de produzir
um texto coerente. A intencionalidade do parágrafo em que o cliente diz
ser técnico em contabilidade e estar muito bem de vida é basicamente essa.

Vendo que o foco da conversação mudou do objeto para ele pró-


prio e que o vendedor continua pouco cooperativo, o cliente muda no-
vamente de meta e pede que o vendedor chame o gerente. Isso tem sobre
o vendedor o efeito de aumentar sua cooperação – talvez por medo de
ser repreendido. E ele passa a perseguir juntamente com o cliente a meta
de identificar o objeto. Portanto, sua intencionalidade na interação tam-
bém muda: se sua meta anterior era ver-se livre do cliente (daí a opção
por frases curtas, evasivas), passa a ser agora identificar o objeto. Para
isso, ele confirma que entendeu as informações dadas pelo cliente e faz
perguntas para obter novas informações: Muito bem. De metal. Ela se
move?; Tem mais de uma peça? Já vem montado?

E a aceitabilidade de discurso do vendedor também aumenta: Perce-


bendo a mudança na intencionalidade do vendedor, o cliente não mais o
acusa de falta de cooperação, porque aceita as perguntas que ele faz como
relevantes para identificar o objeto. Por fim, o objeto é identificado, meio
por acidente, enquanto cliente e vendedor agem de forma cooperativa.

O exemplo anterior ilustra como os padrões de aceitabilidade e in-


tencionalidade são mobilizados conjuntamente em interações coopera-
tivas. Quando o objetivo maior é obter um modelo global da situação,
eventuais desentendimentos são ignorados ou negociados, de forma a
garantir a comunicação. Mas, especialmente em interações conversacio-
nais, a intencionalidade e a aceitabilidade também vão sendo construí-
das dinamicamente, conforme a interação progride.

85
Linguística Textual

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Como vimos, tanto a intencionalidade quanto a aceitabilidade têm


estreita ligação com a construção de coerência. Por isso, no ensino
de produção escrita ou oral, o professor pode orientar seus alunos
a pensar em qual a intencionalidade de seu texto (que efeitos que-
rem provocar nos interlocutores, como desejam que seu texto seja
entendido), de forma a mobilizar os recursos linguístico-discursivos
nessa direção. Por outro lado, nas atividades de recepção (leituras,
assistir a vídeos), os alunos podem exercitar a aceitabilidade, sendo
orientados pelo professor a procurar determinar as possíveis inten-
ções dos locutores.

86
Informatividade Capítulo 07
7 Informatividade
Como já mencionado brevemente em Capítulo anterior, a infor-
matividade é um dos padrões de textualidade. Ela está relacionada à
quantidade de informação nova ou inesperada que um texto traz ao lei-
tor/ouvinte. Segundo Beaugrande e Dressler (2002[1981]), ao se ava-
liar a informatividade de um texto, costuma-se enfatizar o conteúdo.
Isso ocorre porque o fator dominante para a textualidade parece ser a
coerência, uma vez que se aloca mais atenção para a sua construção.
Entretanto, destacam os autores que os textos podem ser informativos
relativamente a qualquer subsistema linguístico (sintaxe, fonética etc.).

Beaugrande e Dressler associam a informatividade à Teoria da In-


formação, que se baseia em probabilidade estatística. Segundo essa te-
oria, “quanto maior o número de alternativas possíveis em um dado
ponto, maior será o valor de informação quando uma dessas alternativas
for escolhida” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 2002 [1981], cap. VII, §2).
Entretanto, como destacam os autores, esse tipo de procedimento estatís-
tico não pode ser aplicado à comunicação linguística natural, porque não
é possível contar todas as possibilidades. Além disso, as escolhas de itens
não dependem apenas do contexto linguístico imediatamente anterior.

Mesmo assim, segundo Beaugrande e Dressler, vale a pena consi-


derar a informatividade a partir da noção de probabilidade (presente
em noções como ‘expectativa’, ‘padrão’, ‘preferência’, ‘predição’). Assim,
os autores substituem a noção de probabilidade estatística pela probabili-
dade contextual e propõem três níveis gerais de informatividade:

a) Apresentam informatividade de nível 1 ou de primeira or-


dem as ocorrências (palavras, expressões etc.) cuja probabi-
lidade em um dado contexto é tão alta que são considerados
casos triviais e recebem pouca atenção. Incluem-se aqui as cha-
madas palavras funcionais (artigos, preposições etc.) e outras
informações evidentes, como as placas indicativas de banheiro
masculino ou feminino;

b) Apresentam informatividade de nível 2 ou de segunda ordem


as ocorrências cuja probabilidade é menor, mas cuja aparição

87
Linguística Textual

no texto não chega a causar surpresa, sendo interpretadas com


relativa facilidade. A comunicação normal envolve majorita-
riamente ocorrências com esse nível de informatividade;

c) Apresentam informatividade de nível 3 ou de terceira or-


dem as ocorrências muito improváveis, que causam surpresa
ou confusão no ato da leitura. Sua interpretação demanda, por
parte do interlocutor, grande quantidade de esforço cognitivo.
Em contrapartida, são dados que provocam mais interesse. Os
autores citam como exemplo desse tipo de ocorrência as des-
continuidades (aparente falta de informação no texto) e as dis-
crepâncias (quando padrões exibidos pelo texto não se ajustam
ao conhecimento armazenado pelo leitor).

Para Beaugrande e Dressler (2002 [1981]), quando ocorrências de


terceira ordem, mediante esforço cognitivo, são integradas à continui-
dade do texto e aos padrões do conhecimento armazenado pelo leitor,
tem-se um processo de rebaixamento da informatividade. Quando isso
não é possível, o resultado é uma impressão de falta de sentido.

Pode também acontecer que ocorrências de primeira ordem so-


fram um processo de alçamento em sua informatividade. Os autores ci-
tam como exemplo a frase que inicia um texto em um livro de ciências:
O mar é água apenas no sentido de que água é a substância predominan-
te. Na verdade, é uma solução de gases e sais, juntamente com um grande
número de organismos vivos... A afirmação inicial de que o mar é água
parece trivial, mas logo essa informação recebe um alçamento quando
se informa que o mar não é exatamente água, mas uma solução de gases
e sais, mais organismos vivos.

Vemos, portanto, que as questões relativas à informatividade po-


dem ser decisivas para a coerência, uma vez que, na escuta ou na leitura,
o ouvinte ou o leitor precisa ajustar a informatividade dos elementos do
texto, de forma a:

a) rebaixar a informatividade de algumas ocorrências com in-


formatividade de terceira ordem, de forma a integrá-las ao
mundo textual;

88
Informatividade Capítulo 07
b) aumentar a informatividade de algumas ocorrências de pri-
meira ordem de informatividade, para integrá-las ao mundo
textual como informação não trivial.

Por outro lado, na escrita ou na fala, o autor também deve ajustar


a informatividade, de forma a prover informação que seja, ao mesmo
tempo, interessante e acessível aos leitores. Para fazê-lo, precisa calcular
como são seus leitores pretendidos (o quanto já sabem, qual sua capaci-
dade de realizar inferências etc.)

A seguir, apresentamos o conto Boi de guia, para uma breve análise


que, esperamos, mostrará alguns desses ajustes de informatividade e sua In: CORALINA, Cora. Es-
tórias da casa velha da
relação com a construção da coerência do texto: ponte. São Paulo: Global,
1986.
Texto 11

Boi de guia
O menino tinha nascido e se criado em Ituverava, da banda de Minas.
O pai era um carreiro de confiança, muito procurado para serviços de
colheitas. Tinha seu carro antigo, de boa mesa rejuntada, fueirama firme,
esteirado de couro cru, roda maciça de cabiúna ferrada, bem provido o
berrame de azeite e com seu eixo de cotão cantador que a gente ouvia
com distância de légua. Desses que antigamente alegravam o sertão e
que os moradores, ouvindo o rechinado, davam logo a pinta do carreiro.

O pai tinha o carro e tinha suas juntas redobradas em parelhas certas, capri-
chadas, bois erados, retacos, manteúdos, de grandes aspas e pelagem lim-
pa. Era só o que possuía. O canto empastado onde morava, família grande,
meninada se formando e sua ferramenta de trabalho — os bois e o carro.

Trabalhava para os fazendeiros de roda, principalmente na colheita de café e


mantimentos, meses a fio, enchendo tulhas e paióis vazios. Quando acaba-
va o café, era a cana, do canavial para os engenhos, onde as tachas ferviam
noite e dia e purgavam as grandes formas de açúcar, cobertas de barro.

O candeeiro era ele, pirralho franzino, esmirrado, de cinco anos.

Os pais antigos eram duros e criavam os filhos na lei da disciplina. Na


roça, então, criança não tinha infância. Firmava-se nas pernas, entendia
algum mandado, já tinha servicinho esperando.

Aos quatro anos montava em pêlo, cabresteava potranquinha, trazia be-


zerro do pasto, levava leite na cidade e entregava na freguesia.

89
Linguística Textual

Era botado em riba do selote, não alcançava estribo. Se descesse, não


subia mais. Punha o litro nas janelas.

O cavalo em que montava era velho, arrasado, manso e sabido. Subia


nas calçadas, encostava nos alpendres, conhecia as ruas, desviava-se das
buzinas e parava certo nos fregueses.

Quando de volta, recolhendo a garrafada vazia, gritava desesperada-


mente:

— Garrafa do leite.. . garrafa vaziiia!...

Um da casa, atordoado com a gritaria, se apressava logo a entregar o


litro requerido.

Ajudava o pai. Desde que nasceu, contava ele. Nunca se lembra de ter
vadiado como os meninos de agora. Quando começou a entender o
pai, a mãe, os irmãos, o cachorro e o mundo do terreiro, já foi fazendo
servicinho. Catava lenha fina, garrancheira pra o fogão, caçava pela sa-
roba os ninhos das botadeiras, ia atrás dos peruzinhos e já quebrava
xerém às chocas de pinto. Do pasto trazia os bois de serviço. Seu gosto
era vir pendurado no chifre do guia barroso — tão grande, tão forte,
tão manso — sempre remoendo seus bolos de capim, nem percebia o
fanico do menino que se pendurava nele e, se percebia, também não se
importava, não dava mostras.

Acostumou-se com os bois e os bois com ele. Sabia o nome de todos e


os particulares de cada um. Chamava pra mangueira. O pai erguia nos
braços possantes e passava as grandes cangas lustrosas; encorreiava os
canzis debaixo das barbeias, enganchava o cambão, encostava o coice,
prendia a cambota. Passava mão na vara, chamava. As argolinhas reti-
nham e o carro com sua boiada arrancavam a caminho das roças.

Com cinco anos, era mestre-de-guia, com sua varinha argolada.

Às vezes, o serviço era dentro de roças novas, de primeira derrubada,


cheia de tocos, tranqueirada de paulama, mal-encoivaradas, ainda mais
com seus muitos buracos de tatu.

O carreador, mal-amanhado, só dava o tantinho das rodas. Os bois que


agüentassem o repuxado, e o menino, esse, ninguém reparava nele. Aí
era que o carro vinha de caculo. A colheita no meio da roça. Chuvas se
encordoando de norte a sul, ameaçando o ar do tempo mudado e o
fazendeiro arrochando pressa.

90
Informatividade Capítulo 07
A boiada tinha de romper a pulso. O aguilheiro na frente, pequeno, des-
calço, seu chapeuzinho de palha, seu porte franzino, dando o que tinha.

Sentia nas costas o bafo quente do guia. Sentia no pano da camisa a


baba grossa do boi. O pai atrás, gritando os nomes, sacudindo o ferrão.
A boiada, briosa e traquejada, não queria ferrão no couro, a criança atra-
palhava. Aí, o guia barroso dava um meneio de cabeça, baixava a aspa
possante e passava a criança pra um lado.

O menino tornava à frente. Outra vez a baba do boi na camisa, o grito


do carreiro afobado, o tinido das argolinhas e a grande aspa passando a
criança pra um lado.

O pai gritou frenisado:

— Quem já viu aguiero chamá boi de banda… Passa pra frente,


porqueira.

— Nhô pai, é o boi que me arreda…

— Passa pra frente, covarde. Deixa de invenção, inzoneiro…

O menino enfrentou de novo. O homem sacudiu a vara pondo reparo.


A argola retiniu, as juntas arrancaram. O barroso alcançou a criança. Ia
pisar, ia esmagar com sua pata enorme e pesada.

Não pisou, não esmagou. Virou o guampaço num jeito e passou a crian-
ça pra um lado sem magoar. Aí o velho carreiro viu…, viu o boi pela
primeira vez…

Sentiu uma gastura e pela primeira vez uma coisa nova inchando seu
coração no peito e alimpou uma turvação da vista na manga da camisa.

As várias ocorrências do texto que informam que o menino traba-


lha desde muito pequeno poderiam entrar em contradição com nosso
conceito moderno e urbano de infância como fase da vida em que se
brinca e estuda e não se trabalha. Para evitar que essa informação a res-
peito do menino – absolutamente necessária para o desenvolvimento da
história, mas que não é o tema central da narrativa – assuma o nível
3 de informatividade, tornando-se surpreendente, o narrador informa
aos leitores que os pais antigos eram duros e criavam os filhos na lei da
disciplina e que na roça, criança não tinha infância, trabalhando desde
a mais tenra idade. Temos, portanto, um rebaixamento da informativi-
dade das ocorrências textuais que mostram o menino fazendo trabalhos

91
Linguística Textual

de adulto e sendo tratado com severidade pelo pai, apesar de ter apenas
cinco anos. Assim, essas informações podem ser integradas facilmente à
compreensão que o leitor vai construindo do texto. Da mesma forma, a
delicadeza do boi barroso com o menino, ainda que contradiga um tanto
nosso conhecimento a respeito de animais de trabalho, também não se
torna surpreendente porque o leitor já foi previamente informado de que
o menino acostumou-se com os bois e os bois com ele e de que o boi bar-
roso, apesar de grande e forte, era também tão manso. Novamente aqui,
temos uma ocorrência muito relevante para a construção da história – a
delicadeza de um animal enorme –, mas que não pode parecer inusitada
demais, para não ganhar centralidade excessiva na atenção do leitor.

Por outro lado, quando a história se encaminha para o seu clímax,


seu ponto de maior interesse, o leitor se depara com a informação de que
o velho carreiro viu o boi pela primeira vez. Cria-se, então, uma aparente
incoerência, uma discrepância que o leitor tem que resolver, porque, já
consta do seu conhecimento armazenado, a partir da leitura do texto,
que o boi pertencia ao homem. Da mesma forma, o leitor também é sur-
preendido com a informação de que o velho carreiro – mostrado como
um homem ríspido, calejado pelo trabalho árduo – se emociona, sentin-
do uma gastura e uma coisa nova inchando seu coração no peito, e chora.
Aqui o leitor não recebe ajuda do narrador para fazer o rebaixamento
da informatividade dos itens. Precisa fazê-lo sozinho. Exige-se aqui sua
atenção justamente porque esse é o ponto central da história. Mediante
inferências diversas, o leitor pode concluir que:

a) o velho carreiro aprende com o boi a delicadeza, aprende que


ser forte não implica ser rude;

b) obviamente, o que o carreiro vê pela primeira vez não é o boi;


mas, num certo sentido a si próprio, a forma como sua exis-
tência bruta transformou-o também num ser bruto. Porém, é
o gesto inusitado do boi que desencadeia essa súbita revelação.
Por isso, a afirmação de que o homem viu o boi;

c) o resultado dessa revelação é um choque para o homem. Daí as


lágrimas, às quais ele está tão pouco afeito que as percebe como
uma turvação da vista.

92
Informatividade Capítulo 07
Cora Coralina recria a fala de pessoas do campo, com seu léxico
de difícil acesso para um leitor urbano. Isso provoca grande número de
ocorrências com informatividade de terceiro nível. É interessante per-
ceber que o conto pode ser compreendido sem que se tenha que buscar
no dicionário o significado de todos esses itens. Ou seja, o leitor não
precisa rebaixar a informatividade de todas as ocorrências, mas somente
daquelas que, se não integradas ao mundo textual, impossibilitarão a
construção adequada da coerência.

Ao final da leitura, o título do conto – que inicialmente parece tri-


vial, servindo apenas para fazer referência a uma personagem da his-
tória – pode receber um alçamento na sua informatividade: O boi de
guia não guia apenas os outros bois no carreador; guia também o velho
carreiro na trilha do autoconhecimento. Assim, podemos ver como
os gêneros do discurso
interferem no modo da
O controle da informatividade é também muito importante nos construção da informativi-
textos de divulgação científica jornalística e naqueles dirigidos a espe- dade do texto.
cialistas. A esse respeito, consideremos o texto a seguir:
BRUM, E. O senhor do
Texto 12 universo. In: Época, nº 429,
7 ago. 2006, p. 78-88.
O que é a Teoria da Relatividade?
Em sua teoria da relatividade especial de 1905, Einstein mostrou que
nossas noções de espaço e tempo como entidades rígidas e imutáveis
são ilusões causadas pelo fato de que os nossos movimentos são muito
lentos, se comparados à velocidade da luz. Se nos movêssemos a velo-
cidades comparáveis, mas menores, veríamos as coisas encolhendo e o
tempo passaria mais devagar para elas. Entre as consequências, Einstein
demonstra a equivalência entre energia e matéria, algo que só é possí-
vel a altíssimas energias. Na relatividade geral, de 1916, Einstein redefine
a gravidade como sendo a curvatura do espaço. A expansão do Univer-
so e os buracos negros são descritos por essa teoria.

Para um especialista, o Texto 12 será muito pouco informativo, por-


tanto, não causará grande interesse. Para um leigo, entretanto, espera-
se que apresente um nível de informatividade suficientemente elevado
para se mostrar interessante. Observemos que a autora do texto regulou
a informatividade de forma que o texto possa ser compreendido sem

93
Linguística Textual

que se entre em detalhes sobre itens de grande complexidade, como a


curvatura do espaço e os buracos negros.

Já o texto a seguir, resumo de uma dissertação na área de ortodon-


COELHO-FERRAZ, M. J. P. tia, deve apresentar um nível de informatividade não muito alto para
Avaliação cefalométri-
ca da posição do osso leitores especialistas. Todavia, para o leitor comum, esse nível de infor-
hióide em respiradores matividade é tão elevado que boa parte do resumo se mostra incompre-
predominantemente
bucais. 2004. Dissertação ensível.
(Mestrado em Ortodontia).
Faculdade de Odontologia Texto 13
de Piracicaba, Universida-
de Estadual de Campinas,
Campinas, SP, 2004. Resumo
O complexo craniofacial contribui como um elemento adicional impor-
tante no processo de diagnóstico ortodôntico e ortopédico funcional
dos maxilares. No presente trabalho realizou-se a avaliação cefalométrica
da posição do osso hióide em relação ao padrão respiratório em 28 indi-
víduos com padrão respiratório predominantemente nasal e de 25, com
padrão respiratório predominantemente bucal. Todos eram do gênero
feminino, leucodermas e com Classe I de Angle, cujas idades médias fo-
ram de aproximadamente 10 anos. As medidas cefalométricas Ar-Pog,
PP-Me, ENP-PM, S-PM, Ângulo Goníaco, BaN.PM, PTM.PM, PO.PM foram
utilizadas como parâmetro de identificação da morfologia mandibular.
As medidas cefalométricas horizontais, verticais e angulares, incluindo o
Triângulo Hióideo (Bibby & Preston, 1981) foram utilizadas com a finali-
dade de determinar a posição do osso hióide. Estabeleceu-se uma com-
paração entre os grupos por meio do teste t de student com nível de
significância de 5%, bem como correlação de Pearson entre as variáveis.
Observou-se que não ocorreram diferenças estatísticas significativas para
a posição mandibular e posição do osso hióide e o tipo do padrão respi-
ratório. O limite ântero-posterior do espaço aéreo superior representado
pelo Atlas-Espinha Nasal Posterior (AA-ENP) também foi constante para o
grupo com respiração predominantemente nasal e bucal, com um valor
médio de 32,87mm ± 3,34 e 32,86mm ± 2,18, respectivamente. No Triân-
gulo Hióideo, o coeficiente de correlação de 0,40 foi significativo entre
AA-ENP e C3-H (distância entre o ponto mais anterior e inferior da terceira
vértebra cervical e o corpo do osso hióide) demonstrando uma relação
positiva entre os limites ósseos do espaço aéreo superior e inferior. Para
as medidas cranianas houve uma correlação significativa de 0,50 e 0,43
entre as medidas Ar-Pog e a distância horizontal do osso hióide e PP-Me

94
Informatividade Capítulo 07
e distância vertical do osso hióide, respectivamente, sugerindo uma re-
lação entre a posição do osso hióide com a morfologia mandibular. Os
resultados permitiram concluir que o osso hióide mantém uma posição
estável para garantir as proporções corretas das vias aéreas e não depen-
de do padrão respiratório predominante.

Os exemplos apresentados neste Capítulo mostram como o ajuste


da informatividade pelo autor tem grande relevância para permitir que
o leitor construa uma interpretação adequada do texto. Como destacam
Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 81), “a informatividade exerce [...] im-
portante papel na seleção e arranjo de alternativas no texto, podendo
facilitar ou dificultar o estabelecimento da coerência”.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Nossa discussão sobre o padrão da informatividade comporta va-


riadas implicações para o ensino-aprendizagem, entre as quais po-
deríamos destacar:

a) No ensino-aprendizagem de produção textual, os alunos podem


ser orientados a regular a informatividade em seus textos, de
forma a causar interesse. Se um texto traz apenas itens triviais,
óbvios, sua informatividade é reduzida e, consequentemente, é
também reduzido o interesse que possa ter para os leitores. Por
outro lado, elementos no texto cuja informatividade seja muito
alta tendem a tornar o texto incompreensível caso o leitor não
tenha condições de, mediante inferências, obter um rebaixa-
mento da informatividade;

b) No ensino-aprendizagem de leitura, o professor pode auxiliar os


alunos no ajuste da informatividade dos textos. Pode chamar a
atenção para as pistas que lhes permitirão construir as inferên-
cias necessárias ao rebaixamento da informatividade. Por outro
lado, deve mostrar que certos itens que, à primeira vista, pare-
çam triviais, podem ter alta informatividade, especialmente em
textos literários;

95
Linguística Textual

c) Na seleção de textos literários, a informatividade deve ser levada


em conta. Há textos de fácil leitura, mas de baixa informativida-
de e, consequentemente, pouco indicados para desenvolver nos
alunos uma relação prazerosa com a leitura. Por outro lado, tex-
tos cuja leitura requer a elaboração de inferências para regular a
informatividade são mais difíceis, mas também mais interessan-
tes, porque o leitor consegue assumir uma postura mais ativa na
construção da coerência. Então, vale a pena investir na leitura de
textos literários mais densos, de autores menos óbvios.

96
Situacionalidade Capítulo 08
8 Situacionalidade
Segundo Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. I, §19), a situa-
cionalidade “diz respeito aos fatores que fazem um texto relevante para
uma situação de ocorrência”. Consideremos, por exemplo, o seguinte
texto, afixado em um ponto de ônibus e copiado por um dos autores
deste livro em 30 abr. 2009:

Texto 14
ROÇO, FAÇO CAPINAS E CORTO GRAMA

ENSINO LER (TIPO REFORÇO PARA CRIANÇAS)

(TAMBÉM INGLÊS BÁSICO)

FAÇO UM PREÇO CAMARADA

[Segue-se um número de telefone móvel e um nome masculino]

O autor do texto afixou-o, estrategicamente, num local de grande


circulação de pessoas, inclusive escolares. Em termos de conteúdo, esse
anúncio soa estranho, porque o leitor fica a imaginar por que o autor
oferece serviços tão díspares como cortar grama e dar aulas de inglês
básico. Entretanto, considerando-se a situação de enunciação, o texto
se mostra relevante: seu autor, que tem variados serviços a oferecer, faz
isso a um público igualmente variado.

É interessante observar-se, conforme já apontado por Beaugrande e


Dressler (2002 [1981]), que a situacionalidade afeta também os meios de
coesão. As escolhas do autor contribuem para que o anúncio possa ser
lido fácil e rapidamente não só pelos usuários do ponto de ônibus, mas
também pelos passantes: o texto, escrito em letras relativamente grandes,
é econômico e disposto de tal forma que cada bloco de informações ocu-
pe uma linha, e são dadas, praticamente, só as informações essenciais.
As explicações de que as aulas de leitura são apenas para reforço escolar
e que o inglês é básico são antes uma demonstração eloquente da hones-
tidade do anunciante do que indício de prolixidade. Já a oferta de um
preço camarada também visa a seduzir um público que não deve dispor
de muitos recursos, uma vez que são usuários de transporte coletivo.

97
Linguística Textual

Como ocorre com a intertextualidade, a situacionalidade também


requer mediação, pois os usuários de texto precisam alimentar seus mo-
delos das situações comunicativas com seus próprios conhecimentos,
crenças e metas, juntamente com dados oriundos da própria situação.
Beaugrande e Dressler (2002 [1981], cap. VIII, §1) sugerem que tais da-
dos podem servir para monitoramento da situação – quando a função do-
minante do texto é “produzir uma explicação imediata razoável do mo-
delo de situação” – ou para gerenciamento – quando a função dominante
é “guiar a situação em uma maneira favorável às metas do produtor de
texto”. Mas, alertam os leitores de que as fronteiras entre monitoramento
e gerenciamento podem ser difusas. Isso é notório no caso dos implíci-
tos. Por exemplo, quando alguém comenta que o ambiente está abafado
(monitoramento), pode estar tentando convencer o interlocutor a tomar
alguma providência a respeito, como abrir uma janela (gerenciamento).

Uma vez que a relevância de um texto é sempre orientada pela si-


tuacionalidade, textos considerados incoerentes a partir de uma visão
estrita da articulação entre suas frases – ou ainda quando se concebe
a coerência como sendo interna ao texto – podem tornar-se coerentes
quando se levam em conta as condições de sua enunciação (KOCH e
TRAVAGLIA, 1999 [1989]). No Texto 14, por exemplo, a frase (TAM-
BÉM INGLÊS BÁSICO) está entre parênteses, que são utilizados, nor-
malmente, para marcar a inserção de um item desvinculado da estrutu-
ra sintática do restante do período e de ocorrência opcional. Como as
aulas de inglês parecem ter o mesmo status dos demais serviços ofere-
cidos, gera-se uma certa incoerência, porque não parece que essa infor-
mação seja realmente opcional. Uma possível explicação para o uso dos
parênteses é uma espécie de paralelismo com a frase anterior, ENSINO
LER (TIPO REFORÇO PARA CRIANÇAS), porque as aulas de inglês
também seriam oferecidas a crianças.

A situacionalidade é especialmente importante ao se decidir qual sen-


tido atribuir a uma palavra polissêmica ou a frases que comportam mais
de um sentido. Os fatores situacionais (propósitos, lugar e tempo da inte-
ração, status dos interlocutores etc.) ajudam a desfazer ambiguidades. Por
exemplo, numa conversa entre médico e paciente, durante uma consulta,
a queixa sinto um aperto no coração será entendida de forma bastante dife-

98
Situacionalidade Capítulo 08
rente do que seria numa situação em que duas professoras de uma comu-
nidade pobre conversassem sobre as carências materiais de seus alunos.

Uma questão importante a ser considerada relativamente à situacio-


nalidade é que o contexto, que provê as condições de interpretação do tex-
to, é também ele próprio parcialmente criado pelo texto. Como destacam
Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 78), “[...] se, por um lado, a situação co-
municativa interfere na maneira como o texto é constituído, o texto, por
sua vez, tem reflexos sobre a situação, já que esta é introduzida no texto
via mediação.” Assim, à medida que o texto é lido ou à medida que o di-
álogo transcorre, as condições contextuais vão sendo alteradas, de forma
mais ou menos intensa. Dessa forma, especialmente nas interações con-
versacionais, o contexto não pode ser visto como algo estático, mas como
um conjunto de condições mutáveis, em interação dinâmica com o texto.

A esse respeito, é importante destacar ainda que o contexto só se


apresentaria como um conjunto de condições objetivas para um obser-
vador fora do contexto de interação. Para o participante de uma intera-
ção, o contexto para construção da coerência é subjetivamente constru-
ído, a partir de dados selecionados, conscientemente ou não, dentre um
conjunto bastante amplo de dados sobre o espaço, o tempo e as condi-
ções sociais e psicológicas da interação. Essa construção subjetiva, indi-
vidual do contexto ajuda a explicar por que duas pessoas podem cons-
truir interpretações bastante diversas dos mesmos dados linguísticos.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Dada a relevância do contexto para a leitura do texto, evidencia-se


a importância de dois procedimentos no ensino-aprendizagem de
leitura. Primeiro, é preciso deixar claro quais os objetivos da leitura,
porque este é um importante dado contextual a guiar a interpreta-
ção. Segundo, frequentemente é preciso prover aos alunos as con-
dições em que dado texto foi inicialmente produzido e publicado.
Por exemplo, ao explorar com alunos de ensino médio poemas da
primeira fase da poesia modernista, é necessário explicitar as con-
dições políticas e artísticas daquele momento. Tome-se, como ilus-
tração disso, o poema Amostra da poesia local, de Murilo Mendes:

99
Linguística Textual

Tenho duas rosas na face,


Nenhuma no coração.
No lado esquerdo da face
Costuma também dar alface.
No lado direito não.

Se o contexto de produção dos poemas-piada do Modernismo não


for explicitado, esse texto poderá parecer somente engraçadinho ou
até tolo, em vez de contestador e anárquico.

Da mesma forma, pode ser necessário explicitar o contexto das char-


ges, uma vez que elas estão, quase sempre, fortemente calcadas na
situação de produção. Por exemplo, quem vir a charge que aparece
no Texto 15, no próximo Capítulo, sem conseguir situá-la em relação
ao contexto de produção, terá uma dificuldade em construir uma
interpretação coerente para os vários elementos: o título EPIDEMIA,
os homens com feições de porcos, a menção às perdas das cotas de
passagens, o verbo contaminar... Explicitado o contexto de produ-
ção – especificamente, o mundo às voltas com uma possível epide-
mia de gripe suína e um escândalo relativo a mau uso de passagens
aéreas por deputados e senadores – torna-se possível integrar essas
informações em um todo coerente.

100
Intertextualidade Capítulo 09
9 Intertextualidade
O conceito de intertextualidade foi introduzido nos estudos lite-
rários por Júlia Kristeva para se referir à relação que um texto mantém
com outros textos: “[...] todo texto se constrói como mosaico de cita- Você encontra mais infor-
mações acerca da autora
ções, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar em Teoria da Literatura IV.
da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade.” (KRIS- Veja em: KAMITA, S. Teoria
da Literatura IV. Florianó-
TEVA, 1974, p. 64, grifos da autora). Segundo Proença Filho (1990), polis: UFSC/CCE/LLV, 2009.
esse conceito foi proposto pela autora como substituto do conceito de
dialogismo de Bakhtin.

Na concepção do Círculo de Bakhtin, a linguagem é essencialmen-


te dialógica, pois os nossos discursos nascem de outros discursos
já-ditos e orientam-se para a reação-resposta do interlocutor, que
é já um outro discurso. “A orientação dialógica é naturalmente um
fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de
qualquer discurso vivo.” (BAKHTIN, 1993, p. 88). Tradicionalmente, a noção
de tipo textual refere-se a
conjuntos de textos com
Como as relações dialógicas, segundo Bakhtin (1993 [1975]), se re- características formais
alizam não somente com relação a enunciados (textos) já-ditos, mas assemelhadas ou, ainda,
às sequências textuais de
também com relação à possível reação-resposta do interlocutor, e que os textos são compos-
como a noção de dialogismo é condição de existência de qualquer tos, segundo a teoria de
J. M. Adam. Beaugrande
discurso, salientamos que o conceito de intertextualidade não pode e Dressler (2002 [1981],
ser tomado como sinônimo do de dialogismo, uma vez que a inter- cap. 1, §22), por exemplo,
referem-se aos tipos textu-
textualidade refere-se a uma relação entre textos já materializados. ais como “classes de textos
com padrões típicos de
características”. Nesta Dis-
ciplina e na de Linguística
Como vimos no Capítulo 3, a intertextualidade é um dos padrões da Aplicada, privilegiamos a
noção bakhtiniana de gê-
textualidade. Segundo Beaugrande (2004 [1997]), ela diz respeito aos nero do discurso, que leva
fatores que fazem a utilização de um texto dependente do conhecimento em conta as condições de
enunciação. A discussão
de um ou mais textos encontrados anteriormente. O autor sugere que sobre gêneros do discurso,
o padrão da intertextualidade é mobilizado quando o produtor ou o tipologias textuais e tipos
textuais será desenvolvida
ouvinte/leitor conecta o evento atual de produção ou recepção de texto na disciplina de Linguística
com experiências anteriores, especialmente com textos do mesmo tipo Aplicada.
textual e mesmo domínio discursivo. Alguém que esteja familiarizado,
por exemplo, com a leitura de manuais de instrução encontrará e enten-

101
Linguística Textual

derá no manual as informações relativas ao funcionamento do seu gra-


vador de DVD mais facilmente do que alguém que jamais tenha lido um
manual, pois fará a leitura desse manual ancorado na relação intertextu-
al que estabelecerá entre esse texto e os outros do mesmo gênero a que já
teve acesso. Por outro lado, um servidor que trabalhe há muitos anos no
serviço público terá, muito provavelmente, maior facilidade de escrever
um ofício do que um servidor jovem, recém-admitido. Enquanto aquele
já tem grande familiaridade com esse gênero – quais suas características
estilísticas, quais seus usos, quem são os interlocutores –, este talvez te-
nha apenas uma noção mais geral sobre a configuração’ textual.

Beaugrande e Dressler (2002 [1981]) afirmam que a mobilização


do conhecimento intertextual pode ser descrita como um processo de
mediação: o locutor/interlocutor alimenta seu modelo da situação co-
municativa com suas próprias crenças e conhecimentos advindos de in-
terações anteriores mediadas por textos. Segundo os autores, a extensão
dessa mediação é variável:

Um exemplo de mediação extensa é o desenvolvimento e uso de tipos


textuais, que são classes de texto que têm certas características visando
a determinados propósitos. A mediação é bem menor quando as pesso-
as citam trechos de certos textos bem específicos ou a eles se referem,
como discursos ou obras literárias famosas. A mediação é muito peque-
na em atividades tais como a réplica, a refutação, o relato, o resumo ou a
avaliação de outros textos, como se costuma encontrar especialmente
na conversação (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002 [1981], cap. IX, §1).

Os autores destacam que, apesar de a organização da conversação


ser bastante influenciada pela intencionalidade e a situacionalidade, ne-
nhum desses fatores pode dar conta por completo das escolhas de con-
teúdo dos interlocutores:

Um texto deve ser relevante aos outros textos no mesmo discurso e


não apenas para as intenções dos participantes e para o contexto situ-
acional. Tópicos devem ser selecionados, desenvolvidos e mudados. Os
textos podem ser usados para monitorar outros textos ou os papéis e
crenças implicados por esses textos (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002
[1981], cap. IX, §13).

Para Koch e Travaglia (1999 [1989], p. 88), a intertextualidade in-


clui “fatores relativos a conteúdo, fatores formais e fatores ligados a tipos

102
Intertextualidade Capítulo 09
textuais”. Segundo os autores, os fatores associados a conteúdo são os
mais notórios e estão associados ao conhecimento de mundo. Os auto-
res citam o exemplo das matérias jornalísticas relativas a um fato desta-
cado, publicadas durante vários dias, e dizem que cada novo texto assu-
me que os leitores conheçam os textos anteriores sobre o mesmo tema.
Um exemplo disso é a charge a seguir, que só será compreensível por
quem tenha acompanhado as notícias recentes (de abril e maio de 2009) Jornal A Notícia, 1 maio
sobre: a) o escândalo relativo ao mau uso de verbas para passagens aé- 2009. Disponível em:
<http://www.clicrbs.
reas por parte de deputados federais; b) a epidemia de gripe suína que com.br/anoticia/jsp/
atinge vários países. default2.jsp?uf=2&local
=18&source=a2494953.
xml&template=4188.
Texto 15 dwt&edition=12231
&section=882>.
Acesso em 1 mai. 2009.

Opera-se aqui uma relação intertextual característica do gênero


discursivo charge. O leitor só construirá adequadamente uma interpre-
tação para este texto se teve acesso (em jornais, na TV, em conversas
informais etc.) a outros textos nos quais aparecem os temas da febre
suína e do escândalo das passagens aéreas. E o efeito cômico e crítico
da charge constitui-se justamente pelo atravessamento desses discursos,
retomados de forma inusitada.
Ivan Pinheiro Themudo
Outro exemplo bastante interessante de intertextualidade de con- Lessa (1935) é jornalista e
escritor brasileiro.
teúdo é uma frase criada por Ivan Lessa. Nos anos 70, o governo da
ditadura militar criou o slogan Brasil, ame-o ou deixe-o, num recado
direto aos descontentes com a situação política do País. Lessa cunhou
uma resposta bemhumorada e corajosa: O último a sair, apague a luz do
aeroporto, publicada originalmente no jornal O Pasquim. Reenunciado

103
Linguística Textual

hoje, o anti-slogan de Lessa não ofereceria as mesmas possibilidades de


interpretação a alguém que desconhecesse o slogan dos militares, assim
como o contexto em que foi enunciado. É interessante observar ainda
que o leitor pode intertextualizar a frase de Lessa também com o reca-
do que usamos comumente: O último a sair apague a luz. Isso ajuda a
reforçar o efeito cômico, pelo atravessamento de mais um discurso, esse
da esfera do cotidiano.

A intertextualidade formal diz respeito à imitação da forma de tex-


tos específicos ou do estilo de um autor. Um exemplo frequente dessa
modalidade de intertextualidade é a paródia, que imita as características
formais do texto-base, mas viola o seu conteúdo. No exemplo a seguir,
José Paulo Paes parodia com elementos mínimos a Canção do exílio,
Poeta, ensaísta, crítico também reproduzida na sequência:
literário e tradutor.
Texto 16
Canção do exílio facilitada

lá?
ah!

sabiá...
papá...
maná...
sofá...
sinhá...

cá?
bah!
PAES, J. P. Canção do exílio facilitada. Disponível em <http://
www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/exilio/exilio_facil.htm>. Acesso
em 29 de abril de 2009.

Texto 17

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,


Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

104
Intertextualidade Capítulo 09
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,


Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,


Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,


Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
DIAS, G. Canção do exílio. In: JORDÃO, R.; OLIVEIRA, C. B. Letras &
contextos: língua, literatura e redação. São Paulo: Escala Educa-
cional, 2005. p. 75.

No poema de Paes, o conteúdo do texto-base é retomado na com-


paração entre a terra natal (lá) e o país estrangeiro (cá). A saudade do
Brasil e o desgosto com o país estrangeiro, tópicos centrais do poema de
Dias, são magistralmente sintetizados por Paes nas duas interjeições ah!
e bah!. Formalmente, tem-se uma retomada das rimas em a, abundantes
em Canção do Exílio (e servindo, segundo algumas interpretações, para
dar um tom lamentoso ao poema). É importante observar que, ao pa-
rodiar o texto de Dias, Paes não parodia somente a forma e o conteúdo,
mas também o próprio contexto discursivo no qual a Canção do Exílio
se insere: o do nacionalismo romântico da primeira metade do século
XIX. Novamente, se o leitor desconhecer Canção do exílio, suas possi-

105
Linguística Textual

bilidades de interpretação do poema Canção do exílio facilitada serão


bastante comprometidas.

Por fim, a intertextualidade por fatores tipológicos, para Koch e Trava-


glia (1999 [1989], p. 92), dá-se em termos de retomada da “estrutura que
caracteriza cada tipo de texto” ou de “aspectos formais de caráter linguís-
tico próprios de cada tipo de texto”. Segundo os autores, “para que um tex-
to seja bem compreendido e visto como coerente, é preciso que apresente
certas características próprias do tipo de texto do qual ele é apresentado
como sendo um exemplar” (KOCH e TRAVAGLIA, 1999 [1989], p. 92).

Entretanto, é ilusória a ideia de que existam tipos textuais com


características formais definidas. Mesmo Beaugrande e Dressler (2002
[1981]), que também adotam o conceito de tipo textual, apontam pro-
blemas nele:

A questão dos tipos textuais oferece um severo desafio à tipologia lin-


güística, isto é, a sistematização e classificação de amostras de língua/lin-
guagem. Na lingüística mais antiga, foram estabelecidas tipologias para
os sons e formas da língua [...]. Mais recentemente, a lingüística tem-se
preocupado com tipologias de sentenças. Outra abordagem é a constru-
ção de tipologias interculturais para línguas de construção semelhante
[...]. Todas essas tipologias dedicam-se a sistemas virtuais, que são o po-
tencial abstrato das línguas; uma nova tipologia deve lidar com sistemas
reais nos quais as seleções e decisões já foram feitas [...]. A principal difi-
culdade nesse novo domínio é que muitas instâncias reais não manifes-
Veremos, na disciplina tam características completas ou exatas de um tipo ideal. As exigências
de Linguística Aplicada, ou expectativas associadas com um tipo textual podem ser modificadas
que o conceito de tipo de ou mesmo superadas pelas exigências do contexto de ocorrência [...].
Bakhtin não se refere ao
resultado de uma taxio- (BEAUGRANDE e DRESSLER, 2002, cap. IX, §3, grifo dos autores).
nomia (classificação) dos
textos, mas a uma tipifi- Portanto, parece mais adequado falar-se, hoje, em intertextualidade
cação social dos textos/ de gêneros discursivos, uma vez que esse conceito prevê maior flexibili-
enunciados, resultado das
atividades humanas. dade: “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativa-
mente estáveis de enunciados, sendo isso que denominados gêneros do
discurso” (BAKHTIN, 1997 [1952/1953], p. 280, grifos do autor). Como
os gêneros são apenas relativamente estáveis, oferecem um contorno ge-
ral para a interação. Assim, a situacionalidade, a intencionalidade e a
aceitabilidade, entre outros aspectos, podem exercer decisiva influência
sobre as escolhas de forma e conteúdo.

106
Intertextualidade Capítulo 09
Muitos gêneros do discurso sequer apresentam características for-
mais fixas, definindo-se como tais pela recorrência de outros elementos,
que não a forma, como aqueles ligados à dimensão social do texto. So-
mente para citar um exemplo, a crônica, tradicionalmente enquadrada
pelas tipologias de texto como um tipo textual narrativo, frequentemen-
te não tem estrutura narrativa. E, quando a tem, sua distinção em re-
lação ao gênero conto frequentemente só se dá pela esfera discursiva e
pelo suporte. Enquanto o conto é da esfera da literatura, a crônica é um
gênero da esfera jornalística, publicado em jornais e revistas.

Outra razão para preferirmos o conceito de gênero do discurso é


que a noção de gênero compreende, para além dos elementos formais
do texto, os parâmetros da interação: em que esfera social o texto foi
produzido, quem são os interlocutores, qual a relação entre eles, qual São exemplos de esferas
sociais a escola, a ciência,
a modalidade (oral, escrita, mista) etc. Portanto, quando o autor pro- o jornalismo, a arte etc
duz um texto, faz isso situado não apenas nas características formais
do gênero de seu texto, mas também com base em seu conhecimento
daquela forma de interação. Já o leitor/ouvinte também precisa identifi-
car o gênero discursivo para, a partir das condições gerais da interação,
interpretar e atribuir sentido aos dados linguísticos. Por exemplo, para
a compreensão adequada do poema de Drummond (1967) a seguir, é
necessário que o leitor tenha conhecimento dos gêneros do discurso so- ANDRADE, C. D. de. Obra
completa. Rio de Janeiro:
neto e carta pessoal: Aguilar, 1967. p. 349.

Texto 18
Carta
Há muito tempo, sim, que não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: Olha, em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:


são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

107
Linguística Textual

A falta que me fazes não é tanto


à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto


a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

O conhecimento do gênero do discurso soneto permite ao leitor


identificar o texto como poético e, como tal, dotado de características
recorrentes nos gêneros da poesia, como estas:

a) Uso de linguagem figurada;

b) Subjetividade;

c) Lirismo;

d) Criação de realidades alternativas.

Já o conhecimento do gênero do discurso carta pessoal implica sa-


ber, entre outras coisas:

a) que a situação de interação mediada por textos desse gênero


normalmente envolve pessoas com algum tipo de ligação afeti-
va (parentes, amigos, amantes), que se encontram relativamen-
te distantes;

b) que o conteúdo dos textos normalmente diz respeito à vida


pessoal, a pequenos eventos do cotidiano, a novidades;

c) que é frequente o uso da primeira e da segunda pessoa do singular,


para fazer referência, respectivamente, ao autor e ao destinatário.
Segundo Bakhtin (2003
[1979]), teríamos os casos São os conhecimentos relativos ao gênero soneto – notadamente a
de gêneros híbridos, possibilidade de se criar mundos alternativos – que permitem que leitor
gêneros intercalados e
reacentuação de gêneros. construa a compreensão de que a pessoa a quem o eu-lírico se dirige é,
No exemplo, ocorre uma possivelmente, sua mãe, já morta há bastante tempo. Enfim, é a noção
reacentuação de gêneros,
pois um texto de um acerca da situação social de interação que orienta o leitor a tratar o texto
gênero x (soneto) assume como um soneto e não uma carta pessoal, apesar da relação intertextual
feições de um gênero y
(carta). entre esses dois gêneros, e o texto em questão apresentar feições de carta.

108
Intertextualidade Capítulo 09
Em casos como este do exemplo, Marcuschi (2002) sugere que use-
mos a expressão intertextualidade intergêneros (FIX, 1997 apud MAR-
CUSCHI, 2002), que designa, segundo o autor, o aspecto da hibridiza-
ção ou mescla de gêneros em que um gênero assume a forma de outro.
A nosso ver, não é um gê-
A intertextualidade é uma característica bastante relevante nos tex- nero que assume a forma
de outro, mas um texto
tos científicos. A ciência, em nossos dias, é essencialmente uma ativida- de um dado gênero que
de coletiva. Daí a necessidade de os autores fazerem referências frequen- se faz passar por outro, ou
apresenta características
tes a outros textos, entre outras coisas, para mostrar que o seu trabalho de outro gênero.
encontra amparo no contexto geral da ciência atual. É o que se podemos
ver no trecho a seguir, extraído de uma monografia de especialização:
Extraído de: FREITAS, C.
Texto 19 A. A. Carga imediata em
implantes dentários.
Segundo Faccio (1999), anteriormente ao desenvolvimento do concei- 2004. Monografia (Espe-
cialização Lato Sensu em
to de osteointegração, os implantes eram normalmente submetidos à Implantodontia). Centro
carga imediata. Entretanto, segundo Rosenlich (apud FACCIO, 1999), a de Ciências da Saúde, Uni-
técnica provocava grande número de complicações e falhas, não sen- versidade Federal de Santa
Catarina, 2004. p. 10.
do bem aceita pela comunidade odontológica. Ocorria que, com os
implantes laminados não se obtinha uma boa estabilidade primária e
isso impedia a osteointegração. Segundo Brunski (apud TARNOW et al.,
1997), micromovimentos de amplitude superior a 100µm fazem com
que a ferida óssea sofra um processo de cicatrização fibrosa, ao invés de
se ter uma osteointegração do implante.

A partir dos estudos de Brånemark e colaboradores, definiram-se os cri-


térios necessários a osteointegração: máximo cuidado para minimizar
dano aos tecidos circundantes por contaminantes ou trauma térmico
ou cirúrgico. Segundo Adell et al. (1981, p. 412),

qualquer divergência em relação ao princípio de menor trauma possível


na instalação dos implantes aumenta o risco de perda de osteointegra-
ção e subseqüente ocorrência de uma estreita zona periimplantar de
tecido conjuntivo de cicatrização. Isto se aplica especialmente aos efei-
tos do trauma térmico.

Observemos que, para que o leitor possa realizar mais facilmente as


intertextualizações, o autor apresenta paráfrases de outros textos, Faccio
(1999) e Tarnow (1997), cujos autores fizeram eles próprios referências a
textos de outros autores (Rosenlich e Brunski, respectivamente). Quando o
autor deseja que seu interlocutor faça diretamente a intertextualização, com

109
Linguística Textual

menos mediação sua, apresenta uma cópia literal de parte do texto visado,
como se vê na citação a Adell et al. (1981). Assim, favorecendo a intertex-
tualidade, ao mesmo tempo em que facilita ao interlocutor a construção
da interpretação do texto, o autor também obtém suporte científico ao seu
trabalho, inserindo-o em no contexto discursivo mais amplo da ciência.

Os exemplos oferecidos neste Capítulo mostram que a intertextua-


lidade pode ser bastante necessária à construção da coerência. Frequen-
temente um texto não pode ser adequadamente compreendido sem
acesso a outro. E o conhecimento intertextual é relevante não só para o
leitor/ouvinte, mas também para o produtor de texto: Este, ao elaborar
seu texto, precisa prever os conhecimentos intertextuais que o seu inter-
locutor deverá/poderá mobilizar. Além disso, muitas vezes, a rede inter-
textual é uma garantia para o dizer do autor: No caso da monografia, a
rede intertextual garante ao autor sua inserção na comunidade científica
e, ainda, valida seu dizer; no gênero artigo assinado, da esfera jornalís-
tica, essa rede intertextual é um dos lugares da ancoragem discursiva do
ponto de vista que o articulista defende em seu texto.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Podemos citar alguns exemplos interessantes de intertextualidade


nos textos apresentados neste livro. Um deles é o seguinte trecho
extraído do texto Pinóquio às avessas, apresentado no capítulo so-
bre coesão: “É só para te cheirar melhor, meu filho...”, na qual ocorre
em jogo intertextual com a fala do Lobo Mau no conto Chapeuzinho
Vermelho. Vale destacar que o próprio texto Pinóquio às avessas é
construído a partir de uma relação intertextual com o livro clássico
Pinóquio. Sem a percepção dessa relação intertextual, a construção
de sentidos, no texto de Rubem Alves, seria bastante diversa daquela
que o autor intentou. Outro exemplo de intertextualidade com Pinó-
quio pode ser conferido no sítio do youtube: http://www.youtube.
com/watch?v=DWRfv8jUE7E. Acesso em: 10/6/2009. Nesse vídeo,
podemos verificar a inserção de Pinóquio, assim como diversos per-
sonagens de contos de fada, na história de Shrek. Aliás, a persona-

110
Intertextualidade Capítulo 09
gem Shrek é um exemplo muito feliz de intertextualidade e de des-
construção da clássica figura de herói, caracterizando a figura do an-
ti-herói. A partir desses exemplos, sugerimos ao professor que o con-
ceito de intertextualidade seja trabalhado inclusive na perspectiva
dos multiletramentos, inserindo textos que circulem em diferentes
portadores de texto (vídeo, livro, internet). Isso porque, como vimos
neste Capítulo, tanto a compreensão quanto a produção de textos
depende do conhecimento de outros textos, tanto em termos de seu
conteúdo, quanto de seus aspectos formais e do gênero do discurso.

Ao término deste capítulo sobre intertextualidade, também finali-


zamos a Unidade B. Nesta Unidade, discutimos o que é textualidade e
cada um dos padrões de textualidade, mostrando seu papel na tessitura
do texto. Juntamente com a apresentação desses padrões, fomos tam-
bém contraponto um outro conceito, o de gêneros do discurso.

Resumindo o que apresentamos nesta Unidade acerca dessa con-


traposição e complementação, os padrões de textualidade e os gêneros de
discurso se interceptam em muitos pontos; podemos dizer que os gêne-
ros norteiam e dão acabamento aos padrões de textualidade. Por exem-
plo, gêneros literários e gêneros científicos textualizam de modo diverso
a relação intertertextual. Se nos textos literários essa relação com o ou-
tro texto não precisa ser explicitada, ou seja, o autor não precisa dizer
que faz remissão a outro texto e a qual texto, nos textos científicos essa
relação precisa ser explicitada. Como podemos ver no Texto 18, o autor
da monografia explicita os textos a que se refere, e o faz por ser uma
condição dada pelo gênero: marcar as fronteiras entre o seu discurso e o
do outro, atribuindo a autoria desse outro discurso citado.

Mesmo entre gêneros de uma mesma esfera, podemos observar os


padrões de textualidade agindo de modo diverso. Por exemplo, os recur-
sos coesivos se textualizam de modo bem diverso entre os gêneros da
poesia e os gêneros romance e conto. Observe, por exemplo, a diferença
do uso recursos coesivos no conto Pinóquio às avessas (Texto 1) e no
soneto Carta (Texto 18).

Na Unidade a seguir, serão tratados os estudos da referenciação.

111
Linguística Textual

Leia mais!
Para um aprofundamento sobre o conceito de textualidade indicamos a
leitura do texto: Texto, textualidade, textualização, de autoria de Maria
da Graça Costa Val. In: FERRARO, Maria Luiza et al. (Org.). Experi-
ência e prática de redação. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008, p.
63-86.
Para uma maior compreensão sobre os princípios de coesão e coerência
textual, recomendamos a consulta ao livro: FÁVERO, L. L. Coesão e
coerência textuais. São Paulo: Ática. 1991.

112
Abordagens atuais
Unidade C

Trecho de “A paixão segundo G. H. de Clarice Lispector”


Ao discutirmos o histórico da Linguística Textual na Unidade A,
registramos que, atualmente, os estudos da área estão voltados para dois
campos de investigação: o da cognição e o da enunciação. Vimos que,
no campo da enunciação, as pesquisas têm abordado temáticas de or-
dem interacional, tais como os gêneros do discurso e a relação entre
oralidade e escrita, e que, no campo da cognição, abordam-se questões
relativas ao processamento sociocognitivo do texto: formas de represen-
tação do conhecimento na memória; ativação dos sistemas cognitivos
por ocasião do processamento; estratégias sociocognitivas e interacio-
nais imbricadas no processamento textual; processos de referenciação e
inferenciação. Como algumas das temáticas ligadas ao campo enuncia-
tivo da Linguística Textual serão abordadas na disciplina de Linguística
Aplicada, nesta Unidade focalizaremos uma das temáticas do campo da
cognição: a referenciação.

O objetivo desta Unidade é:

ӲӲ desenvolver a prática de análise de textos a partir dos conceitos


de referenciação e de fenômenos anafóricos;

ӲӲ observar o papel da referenciação na construção dos sentidos


do texto.

Para atingir o objetivo proposto, dividimos a Unidade em três Capí-


tulos: No primeiro Capítulo da Unidade, apresentaremos o conceito de re-
ferenciação; nos dois Capítulos subsequentes, abordaremos a perspectiva
sociocognitivista sobre a referenciação e as formas nominais referenciais.
Referenciação Capítulo 10
10 Referenciação
A relação entre língua, mundo e significação caracteriza uma ques-
tão teórica que há muito tem sido foco de interesse dos estudos linguís-
ticos. Essa questão tem como principal objetivo saber como a língua
refere (ou representa) as coisas do mundo. Sobre isso Blikstein (apud
KOCH, 2004, p. 51) questiona: “Até que ponto o universo dos signos
linguísticos coincide com a realidade ‘extralinguística’? Como é possível
conhecer tal realidade por meio dos signos linguísticos? Qual o alcance
da língua sobre o pensamento e a cognição?”.

Nos estudos linguísticos, há, no mínimo, duas perspectivas que


enfocam tal problemática. Uma delas é a noção clássica de referência,
tal como é tomada por estudiosos racionalistas. A outra é a proposta
nomeada referenciação, que, nos últimos anos, vem-se opondo à pri- Estamos nos referindo à
ideia segundo a qual a
meira corrente. As teorizações sobre referenciação têm sido desenvolvi- língua é um sistema de
das principalmente por Apothéloz e Reichler-Bégueli (1995); Dubois e etiquetas que se ajustam
mais ou menos bem às
Mondada (1995); Koch (2002); e Koch e Marcuschi (1998). coisas, concepção que
caracteriza a história do
Koch (2002) define essas noções da seguinte forma: pensamento ocidental
(MONDADA; BUBOIS,
ӲӲ Referência – Consiste em considerar que há um mundo extra- 2003) e que remete à te-
oria do mundo na mente
mental dado a priori, a ser internalizado. Tal concepção persis- (SMITH, 1980).
te entre os cognitivistas clássicos e os racionalistas. A referência
caracteriza-se por ser um significado linguístico do referente,
ou seja, uma representação extensional de referentes do mun-
do extramental.

ӲӲ Referenciação – Parte do pressuposto de que existe uma realida-


de extramental, porém sua apropriação assume implicações so-
ciais e culturais, que são chamadas de versões públicas de mundo.
A referenciação consiste em uma atividade discursiva em que
a realidade é mantida, construída, reconstruída e alterada pela
forma como os sujeitos sociocognitivamente interagem com o
mundo. Em outros termos, os sujeitos interpretam o mundo
através da interação com o entorno físico, social e cultural.

Na perspectiva clássica de referência, as entidades designadas nas


situações enunciativas referenciais são os objetos-do-mundo que são re-

115
Linguística Textual

ferenciados, daí a possibilidade de vê-los dentro ou fora do texto. A no-


ção de referência está ligada a uma visão referencial (representativa) da
língua, ou seja, a língua, de certa forma, representa as coisas do mundo.

Já na perspectiva da referenciação, as entidades passam a ser obje-


tos-de-discurso, tendo em vista que o referente não está dado, a priori,
para ser representado. Mas, no dizer de Koch (2004, p. 53), que reinter-
preta Blinkstein, “a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente,
ou seja, a realidade se transforma em referente por meio da percepção/
cognição”, ou, ainda, “o referente é fabricado pela prática social”. Segun-
do Koch (2004), a referenciação implica uma visão de linguagem não-
referencial, o que leva Mondada e Dubois (apud KOCH, 2004) a propor
uma instabilidade das relações entre as palavras e as coisas.

Desse modo, nos estudos clássicos sobre referência, o referente são


coisas do mundo, que são referenciadas (etiquetadas) pela língua. Já no
quadro teórico da referenciação, o referente são as realidades sócio-his-
tóricas e culturalmente situadas, que são construídas e categorizadas nas
atividades discursivas. Nas palavras de Koch (2004, p. 78), os referentes
“são, na verdade, objetos-de-discurso que vão sendo construídos e re-
construídos discursivamente durante a interação verbal”.

Sobre essa discussão, vale destacar o que diz Marcuschi (2005, p.


72, grifos do autor):

Se o fato de não podermos dizer que o mundo em si é inevitável, isso


não significa que o mundo conhecido seja simples produto de nossas
atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para alvoroço: o mundo
extramental existe. Contudo [...] todos os objetos de nosso conhecimen-
to são produzidos no discurso, embora não se achem confinados ao
discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados. Também po-
demos acrescentar que, se por um lado, o mundo é independente de
nossas crenças e sensações, por outro, nossas crenças e sensações não
são totalmente independentes dele. Mas isso não justifica uma teoria
da verdade como correspondência. Significa que não se pode imaginar
que a língua seja um simples, acabado e eficiente instrumento a priori
para construir ou retratar o mundo, e que o mundo, tampouco, está aí
pronto, discreto e mobiliado a priori para ser designado. Com isso, nos
afastamos tanto do anti-realismo como do relativismo sem precisar ad-
mitir o realismo externalista pura e simplesmente.

116
Referenciação Capítulo 10
Assim, para Marcuschi (2005, p. 93), os objetos-de-discurso são
“[...] ‘objetos constitutivamente discursivos’, isto é, gerados na produção
discursiva”. Ou ainda, de acordo com Mondada (apud MARCUSCHI,
2005, p. 93),

[...] é no e pelo discurso que são postos, delimitados, desenvolvidos,


transformados, os objetos de discurso que não lhe preexistem e que
não têm forma fixa, mas ao contrário emergem e se elaboram progres-
sivamente na dinâmica discursiva.

Koch (2004) também compartilha da visão dos autores citados, ao


afirmar que os objetos-de-discurso são dinâmicos e, após serem introdu-
zidos no discurso, são constantemente ativados, reativados, transforma-
dos, desativados e recategorizados.

Ainda sobre a diferenciação entre objeto-do-mundo e objeto-de-dis-


curso, Koch (2004, p. 57) diz que, nos estudos da referenciação, quando se
menciona o termo referência, este não é compreendido no sentido que lhe
é mais tradicional, como representação extensional de referentes do mun-
do extramental, mas como aquilo que “[...] designamos, representamos,
sugerimos quando usamos um termo ou criamos uma situação discursiva
referencial com essa finalidade: as entidades designadas são vistas como
objetos-de-discurso e não como objetos-do-mundo” (KOCH, 2004, p. 57).

Assim, podemos observar que a distinção entre objeto-do-mundo


e objeto-de-discurso, nos estudos da Linguística Textual, está ligada à
investigação sobre como se opera cognitivamente esse processo de ca-
tegorização do mundo. Isso nos mostra que há um deslocamento nos
estudos sobre referência, uma vez que o conceito de referenciação assu-
me a perspectiva de que a linguagem não se constitui em um sistema de
etiquetas para referenciar as coisas do mundo, mas, conforme propõem
Mondada e Dubois (2003), em uma atividade intersubjetiva em que os
sujeitos constroem versões públicas de mundo em suas práticas discur-
sivas, sociocognitivas e culturalmente situadas.

Nessa perspectiva, não existe um mundo que se dá a conhecer da


mesma forma por todos os sujeitos. O que ocorre é que os sujeitos ca-
tegorizam o mundo a partir de suas práticas sociocognitivas e criam
versões públicas de mundo.

117
Linguística Textual

Essa perspectiva pode ser demonstrada por meio da análise do ví-


deo Chico Bento no Shopping. Chico Bento, como sabemos, é um me-
Este vídeo encontra-se nino da região rural. Nessa história, Chico Bento visita um shopping na
disponível no sítio do
Youtube em: <http:// companhia de seu primo. Antes mesmo de entrar no shopping, ele acha
www.youtube.com/ estranho o fato de as pessoas da cidade ficarem presas dentro de um
watch?v=ntXCiB0Ehfk>.
Acesso em: 20/6/2009. prédio num dia tão lindo de sol: Vixi como isso é grande sô. He, He, He,
mai ocêis da cidade são burro mesmo né! Solzão lá fora! O solzão lá e ocêis
inventaram de ponhá esse forro pra deixa escuro e dispois enchê de luz...

Logo no início de sua visita, a personagem tentar subir a escada ro-


lante que estava descendo e estranha o fato de não sair do lugar, apesar
de seu esforço: Eu devo de tá fraco memo, subo, subo e não saio do lugá.

Depois, ao chegar no piso superior, Chico fala sobre sua impressão


do shopping: Arre mas que sem graceira esse treco de shopping. Só tem gen-
te e loja, gente e loja... Nesse momento, observa que as palavras que se en-
contram nas vitrines das lojas e os próprios nomes das lojas são diferentes
da escrita que ele aprendeu na escola, uma vez que há muitos termos em
inglês, o que é próprio do ambiente de shopping. Sobre essa observação,
Chico Bento tece a seguinte consideração: Acho que fui enganado, a fesso-
ra me ensinô tudo errado, num intendu nada que tá escrivinhado por aqui.
A personagem caipira Chico Bento foi
criada em 1961. Maurício de Sousa,
Outro momento da história que julgamos relevante para se pensar como
autor-criador da personagem, teve os sujeitos interagem diferentemente com a realidade é quando Chico
como inspiração um tio-avô, sobre
quem ouvia muitas histórias contadas Bento é abordado por um vendedor que lhe oferece sapatos:
pela sua avó.
– Hum, ficou lindo, divino, vai levar?

– Bão, já que o senhô insísti eu levo... Inté, einh...

– Ei, e o dinheiro?

– Dinhero? Eu tô duro.

– Segurança, atrás dele...

Nesse momento, a personagem não entende por que o vendedor


lhe oferece os sapatos e depois os pede de volta: – Que coisa feia, dá e
despois toma.

Uma das últimas aventuras de Chico Bento é quando ele se banha


totalmente nu na fonte de águas do shopping, achando que se trata de
um lago. Por fim, quando já havia retornado ao sítio, um amigo lhe per-

118
Referenciação Capítulo 10
gunta sobre o shopping. Chico Bento faz a seguinte descrição do shop-
ping, a partir de sua visita,

– E como que é lá nesse tar de shopping hein?

– Tem umas loja debaixo do forro iluminado, apesar da luz do sor


lá fora; uma escada que come butina; e um laguinho mixuruca i
sem pêxe.

– Só isso?

– [...] Mas não tem nada não, um dia esse povo da cidade cria juízo e
imita nóis.

Essa história bem-humorada do passeio de Chico Bento no shop-


ping ilustra a maneira como os sujeitos constroem a realidade a partir
de suas vivências. Assim, no processo de referenciação do objeto-de-dis-
curso shopping center, algo que pareça completamente inaceitável para
indivíduos que vivem na zona rural pode parecer absolutamente normal
para as pessoas que moram na zona urbana e vice-versa, tendo em vista
as diferentes vivências com o entorno físico e social desses indivíduos.

Neste Capítulo, discorremos sobre uma importante temática do


campo da cognição: a referenciação e, para isso, foi fundamental mos-
trar a distinção entre a noção de referência e a de referenciação. No pró-
ximo Capítulo, continuaremos a abordar os estudos sobre os processos
anafóricos no quadro dos estudos mais recentes da Linguística Textual,
fazendo, para isso, um contraponto com os estudos sobre a coesão da
década de 80, explanados na Unidade B deste Livro.

119
A noção clássica de anáfora e a perspectiva
sociocognitiva sobre os anafóricos Capítulo 11
11 A noção clássica de anáfora e
a perspectiva sociocognitiva
sobre os anafóricos
O conceito sobre coesão textual apresentado na Unidade B deste Li-
vro leva-nos a discutir, de forma mais aprofundada, o fenômeno da aná-
fora, abordado de distintas formas pela Linguística Textual. No intuito
de sistematizar os diferentes conceitos sobre o tema, é possível estabele-
cer dois grupos: um que corresponde à concepção de anáfora ancorada
em uma leitura clássica e mais restrita do fenômeno, e outra, ancorada
em trabalhos mais recentes de base sociocognitiva, em que o fenômeno
é compreendido de forma mais abrangente.

A noção de anáfora tradicionalmente postulada em trabalhos se-


minais como de Halliday e Hasan (1976) é de fenômeno linguístico que
possibilita o estabelecimento de uma relação semântica entre itens le-
xicais de um texto. A anáfora, portanto, constitui um importante ele-
mento de coesão e operador de progressão de suma relevância para a
tessitura do texto.

Segundo a concepção clássica de referência, ocorre anáfora quan-


do um item do texto não pode ser interpretado semanticamente por si
mesmo, mas remete a outro(s) item(ns) do texto ou do contexto neces-
sários a sua interpretação (KOCH, 1991 [1989]). Nessa concepção mais
pontual, a anáfora é essencialmente ligada à coesão textual, sendo um
elemento estritamente responsável pelas retomadas de itens já textuali-
zados no texto, ou seja, um caso de continuidade tópica.

Além disso, nessa perspectiva, a anáfora precisa ser correferencial e


ter um antecedente explícito, como podemos verificar no exemplo a seguir:
Trecho extraído do Texto 1,
O menino de carne e osso aprendeu coisas curiosas: nomes de heróis,
apresentado na Unidade B
frases que teriam dito, as alturas de montes onde nunca subiria, as funduras deste Livro.
de mares onde nunca desceria, a distância de galáxias, o ‘SE’, partícula apas-
sivadora, o “se”, símbolo de indeterminação do sujeito, nomes de cidades de
países longínquos, suas populações e riquezas, fórmulas e mais fórmulas...
Sabia que tudo aquilo deveria ter um motivo. Só que ele não entendia.

121
Linguística Textual

No exemplo apresentado, a anáfora ele retoma o antecedente O me-


nino de carne e osso. Essa anáfora refere-se explicitamente ao sintagma
nominal (SN) antecedente: assim, a anáfora e o antecedente são correfe-
renciais, o que equivale a dizer que há uma identidade referencial entre
eles. Essa anáfora é chamada de anáfora pronominal, por ser representa-
da por pronome. Além disso, é também considerada uma anáfora dire-
ta, pelo fato de retomar um referente previamente introduzido no texto,
estabelecendo uma relação correferencial entre anáfora e antecedente.
Segundo Marcuschi (2005, p. 55), “a anáfora direta seria uma espécie de
substituto do elemento por ela retomado”.

Nessa acepção com que tem sido concebida, a anáfora é conceitu-


ada como um elemento que estabelece um continuum e que tem essen-
cialmente como tarefa a retomada de elementos, ou, ainda, nos termos
de Marcuschi (2005), realiza um processo de reativação de referentes
prévios.

A partir, porém, dos estudos sobre referenciação, foi introduzida na


Linguística Textual a discussão sobre a complexidade imbricada nos pro-
cessos de referenciação textual, uma vez que nem sempre há uma relação
biunívoca entre anáfora e antecedente. Ou seja, nem todas as anáforas são
diretas, desempenhando o papel de estar em lugar de, como tradicional-
mente tem sido tomado esse processo. E nem todas as informações para
a interpretação de um texto estão situadas no contexto imediato. Assim, a
ativação do conhecimento partilhado entre os interlocutores – a memória
discursiva de que tratam Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) – tornou-
se um fator relevante a ser considerado nos processos anafóricos.

Dessa forma, o uso de anafóricos parece extrapolar a função de re-


tomada referencial, assumindo um importante papel no processo de re-
ferenciação e na construção de sentidos do texto. Trata-se, na verdade, de
conceber como processo anafórico o fenômeno que, até então, eviden-
temente havia no texto, mas não era assim categorizado. Podemos per-
ceber que o conceito de anáfora foi ampliado, passando a ser concebido
também como elemento responsável pelas recategorizações de referentes
no texto. Os estudos mais recentes sobre o processo anafórico mostram
que há casos de anáforas em que não são ativados elementos já textuali-
zados. O que se dá é um processo de ativação de referentes novos.

122
A noção clássica de anáfora e a perspectiva
sociocognitiva sobre os anafóricos Capítulo 11
Exemplo disso são as formas nominais anafóricas que, segundo
Koch (2002), operam na recategorização dos objetos-de-discurso, isto é,
na maneira como esses objetos serão reconstituídos, de forma a atender
os propósitos comunicativos dos interlocutores. Ao recategorizar, muitas
vezes através do uso de metáforas, a forma nominal anafórica assume
papel crucial, que, segundo Cavalcante (2003), contribui para evidenciar
informações relativas ao ponto de vista do produtor sobre o referente.

Isso se confirma no Texto 1, no qual o referente Pinóquio, que está


presente no título do texto e também no final do mesmo, é, no decorrer
do texto, retomado através de formas nominais anafóricas (anáforas le-
xicais) e também por anáforas gramaticais (uso de pronomes, por exem-
plo), como podemos observar no quadro a seguir:

Anáforas lexicais Anáforas gramaticais


menininho de carne e osso
o menino sem nome e sem desejos
filho
extensão do pai
realização de desejos não realizados
o menino de carne e osso
ele
o menino
lhe
o menino grande
o menino de outrora
boneco de madeira
inteligência pura
sem coração
novo irmão
Quadro 1: Exemplos de anáforas lexicais e gramaticais presentes no Texto 1.

Observamos, a partir do quadro, que o uso de anáforas lexicais e


gramaticais implica uma diferença significativa na construção de senti-
do. Enquanto as anáforas gramaticais apenas correferenciam o referente
Pinóquio às avessas, ou seja, substituem o referente, as anáforas lexicais,
por seu turno, ressignificam-no. Ao ser retomado pelas anáforas lexi-
cais, o referente é recategorizado, o que extrapola um mero processo de
retomada referencial.

No Texto 1, as formas nominais anafóricas são elementos funda-


mentais na construção de sentido, tendo em vista que são responsáveis
por caracterizar a mudança por que passa a personagem do texto. Ini-
cialmente tomada como menino de carne e osso, a personagem passa por

123
Linguística Textual

um processo gradual de transformação, até que, ao final do texto, ela é


nomeada como Pinóquio – o boneco de madeira. Esse processo ocorre
tendo em vista que os objetos-de-discurso são dinâmicos e, após serem
introduzidos, são constantemente ativados, reativados, transformados,
desativados e recategorizados (KOCH, 2002).

Sobre a maneira como Pinóquio é categorizado e recategorizado,


vale destacar o que diz Koch (2004) sobre os processos de construção
de referentes textuais. De acordo com a autora, quando um referente é
introduzido/ativado no modelo textual, tal ativação pode ser ancorada
e não-ancorada.

Conforme Koch (2004, p. 64),

A introdução será não-ancorada quando um objeto-de-discurso total-


mente novo é introduzido no texto, passando a ter um ‘endereço cog-
nitivo’ na memória do interlocutor. [...] Tem-se uma ativação ‘ancorada’
sempre que um novo objeto-de-discurso é introduzido, sob modo do
dado, em virtude de algum tipo de associação com elementos presen-
tes no co-texto ou no contexto sociocognitivo, passível de ser estabele-
cida por associação e/ou inferenciação.

No Texto 1, o objeto-de-discurso Pinóquio às avessas, ao longo do tex-


to, vai sofrendo recategorizações de diversas ordens, por meio de formas
nominais anafóricas. Logo no início do texto, à medida que o leitor lê o
título, Pinóquio às avessas, opera-se uma série de inferências sobre a história
clássica de Pinóquio. Já o item lexical às avessas (modificador do SN), a seu
turno, produz a mobilização de inferências que possibilitam a ativação de
sentidos que remetem o leitor à informação de que, no decorrer do texto,
haverá uma recategorização do referente (a figura clássica de Pinóquio).

É possível perceber ainda que, no Texto 1, os elementos coesivos


estão intimamente ligados à intertextualidade, haja vista que Pinóquio
às avessas remete ao texto clássico, Pinóquio, em que o caminho é o in-
verso: tem-se um menino de madeira que almeja tornar-se um menino
de carne e osso.

Assim, tendo em vista o relevante papel das formas nominais nos


processos de referenciação, a seguir apresentaremos um detalhamento
dessas formas.

124
As formas nominais referenciais Capítulo 12
12 As formas nominais
referenciais
No Capítulo sobre coesão textual, em que discorremos sobre as for-
mas remissivas referenciais, mencionamos o uso das expressões nomi-
nais. Nesta Seção, retomaremos o uso dessas expressões, porém, agora,
sob o olhar dos estudos da referenciação.

A expressão formas nominais ou expressões nominais referenciais Veja como a noção de


tem sido atribuída às formas linguísticas constituídas, basicamente, retroação relaciona-se
com a coesão referencial
de um determinante (definido ou demonstrativo), seguido de nome (recorrência) e a noção de
(KOCH, 2002). Essas formas nominais referenciais são responsáveis por prospecção com a ideia de
sequenciação, conforme es-
dois grandes processos de construção do texto (e, consequentemente, tudamos no capítulo sobre
do estabelecimento de sentidos no texto): retroação e prospecção. coesão textual.

Koch (2006, p. 2) apresenta as formas nominais referenciais como


uma categoria maior, que inclui diferentes tipos de anafóricos. De acor-
do com a autora, as formas nominais referenciais são “[...] os grupos
nominais com função de remissão a elementos presentes no co-texto
ou detectáveis a partir de outros elementos nele presentes”. Na acepção
Em Linguística Textual, co-
da autora, a retomada é vista como uma “[...] atividade de continuida- texto significa o entorno
verbal do texto, mais espe-
de de um núcleo referencial, seja numa relação de identidade ou não.”
cificamente, os segmentos
(KOCH, 2004, p. 60). Isso reforça o que mostramos até aqui: a anáfora textuais precedentes e
subsequentes de uma dada
pode dar-se com ou sem absoluta identidade a referentes anteriormente
frase ou palavra do texto.
expressos. Segundo Cavalcante (2003), no primeiro caso, pode haver
simplesmente correferência entre a expressão anafórica e seu antece-
dente textual, ou ocorrer a recategorização deste. Então, na retomada
não referencialmente estrita, essas formas anafóricas operam na recate-
gorização dos objetos-de-discurso, isto é, na maneira como esses objetos
serão reconstituídos, de forma a atender os propósitos comunicativos
dos interlocutores (padrões de intencionalidade e aceitabilidade).

Koch (2005) defende que, além da função de reconstrução dos obje-


tosdo-discurso, as formas nominais, de modo geral, têm uma orientação
argumentativa. Nas palavras da autora: “[...] uma das funções textual-
interativas específicas é a de imprimir aos enunciados em que inserem,
bem como ao texto como um todo, orientações argumentativas confor-
mes à proposta enunciativa do seu produtor” (KOCH, 2005, p. 35).

125
Linguística Textual

A seguir, pontuaremos, de modo mais sistemático, a classificação


das anáforas na visão de Koch (2006). A primeira grande diferencia-
ção proposta pela autora está nas anáforas correferencias e não-corre-
ferenciais. As anáforas correferencias são aquelas nas quais ocorre uma
retomada de antecedentes textuais. Essas anáforas, que podem ocorrer
sem recategorização do referente ou com recategorização do referente,
são classificadas da seguinte maneira.
Os exemplos de formas
nominais anafóricas expos- 1) Anáforas correferenciais sem recategorização:
tos neste Capítulo foram
extraídos de Koch (2006). ӲӲ Por repetição: Durante a conferência, o Professor Doutor
José Mendonça pediu a palavra. O professor insinuou que o
conferencista estava cometendo um sério engano. Ou: Duran-
te a conferência, o Professor Doutor José Mendonça pediu a
palavra. Mendoncinha insinuou que o conferencista estava
cometendo um sério engano. Ocorre quando o núcleo da
forma nominal repete o antecedente que está sendo reto-
mado, seja de forma parcial ou na íntegra.

ӲӲ Por sinonímia: A polêmica parecia não ter fim. Pelo jeito,


aquele bate-boca entraria pela noite adentro, sem perspecti-
vas de solução. Nesse caso, a retomada de um antecedente
ocorre através de expressões sinônimas ou parassinônimas
(quase-sinônimas).

2) Anáforas correferenciais com recategorização:

ӲӲ Uso de hiperônimo: A aeronave teve de retornar à pista. O


aparelho (aeronave) estava com defeito. Ocorre quando a
anáfora por hiperonímia funciona necessariamente por re-
corrência a traços lexicais, isto é, o hiperônimo contém, em
seu bojo, todos os traços lexicais do hipônimo.

ӲӲ Uso de nomes genéricos: trata-se da retomada do referente


por meio de nome genérico: coisa, pessoa, negócio, criatura.
Exemplo:

Mistério no zôo
A polícia que investiga as mortes dos animais do Zoológico de São
Paulo trabalha com duas hipóteses: envenenamento criminoso

126
As formas nominais referenciais Capítulo 12
ou transmissão do veneno via ratos. Na última semana, a polícia
apreendeu em uma loja de São Paulo frascos de um veneno cuja
fabricação e venda estão proibidos no Brasil. O material apre-
endido contém a mesma substância encontrada nas vísceras dos
animais mortos, o fluoracetato de sódio. (in: Época, 16 fev. 2004)
ӲӲ Uso de descrições nominais (definidas e indefinidas): trata-se
de uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes
de caracterizar o referente. Exemplo:

O prefeito é especialmente exigente para liberar novos empreendi-


mentos imobiliários, principalmente quando estão localizados na
franja da cidade ou em áreas rurais.[...]. “O crescimento urbano tem
de ser em direção ao centro, ocupando os vazios urbanos e aprovei-
tando a infra-estrutura, não na área rural que deve ser preservada”,
repete o urbanista que entrou no PT em 1981 como militante
dos movimentos populares por moradia. (Quem matou Toni-
nho do PT? In: Caros Amigos nº 78, setembro de 2003, p. 27)

Já as anáforas não-correferenciais são aquelas em que não há iden-


tidade estrita com um antecedente textual. Essas, a seu turno, são agru-
padas da seguinte forma:

1) Anáforas indiretas - quando um novo objeto-de-discurso é in-


troduzido, sob modo do dado, em razão de algum tipo de rela-
ção com elementos presentes no co-texto ou no contexto socio-
cognitivo. Koch (2006) considera a anáfora associativa como
um subtipo da anáfora indireta. No exemplo a seguir, temos um
caso de anáfora indireta, em que vagões e bancos são ingredien-
tes de trem, nas palavras de Koch (2006):

Uma das mais animadas atrações de Pernambuco é o trem do forró.


Com saídas em todos os fins de semana de junho, ele liga o Recife à
cidade de Cabo de Santo Agostinho, um percurso de 40 quilômetros.
Os vagões, adaptados, transformam-se em verdadeiros arraiais.
Bandeirinhas coloridas, fitas e balões dão o tom típico à decoração.
Os bancos, colocados nas laterais, deixam o centro livre para as
quadrilhas.

2) Anáforas rotuladoras (encapsulamento anafórico) - trata-se


de formas híbridas, referenciadoras e predicativas, que consis-
tem em uma seleção particular e única dentre uma infinidade

127
Linguística Textual

de possibilidades lexicais para referenciar o objeto. No exem-


plo a seguir, temos um caso de anáfora rotuladora, em que um
desafio assim funciona como uma paráfrase resumitiva de toda
uma setença anterior.

É fácil apontar as razões de sucesso – ou fracasso – de um projeto após


sua conclusão. O complicado é antecipá-las. Os executivos da Petro-
brás, a maior empresa brasileira, enfrentaram um desafio assim há
quatro anos, quando iniciaram a implantação do programa de gestão
R/3 da SAP, batizada de projeto Sinergia. (In: Exame, 18 fev. 2004)

Para ilustrar melhor essa discussão sobre os fenômenos anafó-


ricos, apresentamos análise dos processos de referenciação em um
texto jornalístico.
Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/ Texto 20
folha/pensata/valdocruz/
ult4120u463723.shtml.
Acesso em: 20 jan. 2009. Só dá Obama
Se a eleição para presidente dos Estados Unidos fosse apenas na Califór-
nia, mais precisamente em San Francisco, o democrata Barack Obama
poderia dormir tranquilo nessa terça-feira, dia quatro de novembro, já
montando sua equipe de governo e delineando suas primeiras medidas.
Por aqui, aonde quer que você vá, praticamente todo mundo diz que vai
votar ou já até votou no candidato democrata. Por sinal, os eleitores
de Obama estão votando em peso antecipadamente. Na seção de vota-
ção aqui de San Francisco, filas enormes estão se formando, avançando
até para fora do prédio. Tem gente que fica até na chuva aguardando sua
hora de votar. E se você começa a perguntar, de dez eleitores nas filas na
última segunda-feira, nove afirmavam que votariam em Barack Obama.
Não é nenhuma surpresa. A Califórnia, governada pelo republicano Arnold
Schwarzenegger, é dada como Estado definido a favor de Barack Obama.

Esse favoritismo do democrata está se repetindo em boa parte dos


Estados Unidos. Tanto favoritismo, porém, tem despertado preocupa-
ção entre os eleitores de Obama. Quase todos falam abertamente que
estão preocupados com alguma surpresa na data final de votação. É
comum ouvir por aqui que muita gente diz uma coisa para pesquisado-
res, mas depois na hora de votar muda de idéia. Fui testemunha de pelo
menos um caso em que o eleitor chegou decidido a votar em Obama,
mas mudou de lado durante o período em que passou na fila esperan-
do seu momento de depositar seu voto.

128
As formas nominais referenciais Capítulo 12
Enfim, nessa reta final, os eleitores de Barack Obama simplesmente
não estão acreditando que podem ser testemunhas de um fato históri-
co, como muitos analistas não cansam de repetir por aqui, da eleição de
um afro-americano presidente dos Estados Unidos. Alguns deles,
como um motorista de táxi, me disse que às vezes acha que está so-
nhando com o que pode acontecer nesse ano, com Obama ganhando
a presidência americana. O risco é esse sonho virar pesadelo. Até aqui,
parece improvável. Mas eleição, todos sabem, é como mineração, di-
riam os mineiros. Você só sabe o resultado exato depois da apuração.

Valdo Cruz, 46, é repórter especial da Folha. Foi diretor-executivo da


Sucursal de Brasília durante os dois mandatos de FHC e no primeiro
de Lula. Ocupou a secretaria de redação da sucursal e atuou como
repórter de economia. Escreve às terças.

E-mail: valdo@folhasp.com.br

No período de campanha eleitoral para a presidência dos EUA, o


candidato Barack Obama foi focalizado como um referente do mundo
extramental, cujos atributos foram negociados, via construção de ver-
sões públicas de mundo. No processo de referenciação desse objeto-de-
discurso em específico, destacamos, para as finalidades deste Capítulo,
o uso de formas nominais referenciais de implicação anafórica.

De acordo com Koch (2002), as formas nominais referenciais de-


sempenham importantes funções cognitivo-discursivas, dentre elas a de
ativação e reativação de um referente na memória discursiva dos interlo-
cutores. Elas atuam como forma de remissão a elementos anteriormente
apresentados no texto ou sugeridos pelo co-texto precedente, possibili-
tando a reativação na memória do interlocutor, ou seja, na alocução ou
focalização na memória ativa deste.

Diante disso, podemos dizer que as nomeações atribuídas ao pre-


sidente Barack Obama, em primeira instância, constituem-se em estra-
tégias de ativação desse referente, veiculando informação nova. Depois
de tais formas serem repetidas, reintroduzidas várias vezes no discurso,
elas passaram a constituir estratégias de reativação desse referente, veicu-
lando atributos a ele no limite do dado.

Centramos o foco de análise nas anáforas lexicais, tendo em vista que,


em grande parte das vezes, elas trazem consigo progressão referencial, exi-

129
Linguística Textual

gindo compartilhamento de versões públicas de mundo. Assim, foi possível


apreender os novos olhares, sociocognitivamente negociados, sobre esse ob-
jeto-de-discurso em particular: o presidente norte-americano Barack Obama.
No Texto 20, podemos observar, na maioria das vezes, o uso de for-
mas nominais de implicação anafórica, de natureza correferencial e recate-
gorizadora, tendo em vista que remetem ao objeto-discurso já textualiza-
do e imprimem ao referente a construção de um novo olhar. No processo
de referenciação do objeto-de-discurso Barack Obama, destaca-se o uso
de formas nominais, dentre elas o uso de descrições nominais definidas
(Determinante + Nome + Modificadores), como em: um afro-americano
presidente dos Estados Unidos; o democrata Barack Obama.
Segundo Koch (2002), o uso de uma descrição definida implica
sempre uma escolha dentre as propriedades ou qualidades capazes de
caracterizar o referente. Tal escolha se dá em virtude do contexto e, so-
bretudo, é determinada pelo querer-dizer do autor. Ainda, de acordo
com a autora, trata-se da ativação, dentre os conhecimentos pressupos-
tos como partilhados com o(s) interlocutor(es), de traços do referente
que o autor procura ressaltar (KOCH, 2002).
No caso do objeto-de-discurso Barack Obama, observamos duas
ancoragens para o uso de formas nominais de implicação anafóricas,
que estão ligadas às intenções que o autor pretende ressaltar no texto:

ӲӲ Formas nominais de implicação anafórica que focalizam a ori-


gem étnica do objeto-de-discurso:
Enfim, nessa reta final, os eleitores de Barack Obama simplesmente
não estão acreditando que podem ser testemunhas de um fato histó-
rico, como muitos analistas não cansam de repetir por aqui, da elei-
ção de um afro-americano presidente dos Estados Unidos.

ӲӲ Formas nominais de implicação anafórica que focalizam a ori-


gem política do objeto-de-discurso:
Esse favoritismo do democrata está se repetindo em boa parte dos
Estados Unidos.

Assim, ao referenciar o objeto-de-discurso por meio de descrições


definidas – candidato democrata; afro-americano presidente dos Estados
Unidos –, as formas nominais de implicação anafórica cumprem sua fun-
ção de especificar o referente e, além disso, operam, de forma significa-
tiva, na introdução do ponto de vista do autor, recategorizando o objeto.

130
As formas nominais referenciais Capítulo 12
O uso de sintagmas com formas definidas cumpre a função de explicitar
o compartilhamento de uma determinada visão de mundo entre autor e
leitor. Desse modo, a forma definida introduz o já-sabido, o já-comparti-
lhado entre os interlocutores, o que supõe uma construção sociocogniti-
va da referência, com base em uma memória discursiva compartilhada.
Encerramos aqui a unidade que tratou sobre referenciação. A se-
guir, na última unidade deste Livro-texto, faremos uma discussão sobre
o lugar do texto na sala de aula, pois os estudos da Linguística Textual
aqui explanados constituem-se em ferramentas teóricas que podem me-
diar a prática docente na disciplina de Língua Portuguesa.

Implicações para o processo de ensino-aprendizagem:

Os estudos sobre referenciação, principalmente, no que se refere


aos processos anafóricos, são conhecimentos relevantes para o pro-
fessor, tendo em vista que a partir de tais conceitos ele poderá com-
preender melhor os textos produzidos pelos alunos e o percurso de
leitura dos mesmos. Tendo uma maior compreensão de alguns pro-
cedimentos de ativação e de recategorização de referentes por meios
de processos anafóricos, o professor poderá orientar melhor os alu-
nos na revisão de textos, bem como na ampliação da construção de
sentidos na prática de leitura. Vejamos o exemplo de uma produção
de texto em situação de vestibular, que exemplifica o que afirmamos:

Proposta de produção textual: Em fevereiro de 2009, o mundo


ficou espantado com a violência sofrida por uma advogada brasilei-
ra em Dübendorf, cidade da Suíça. Ela teria sido agredida e muito
machucada por neonazistas, num ataque brutal de xenofobia (des-
confiança, temor ou antipatia por estrangeiros). A jovem advogada
teria, inclusive, sofrido um aborto de gêmeos, sendo encaminhada
para o hospital em estado de choque. Até o presidente Lula declarou
publicamente seu horror diante do acontecido. Poucos dias depois,
contudo, o mundo inteiro se revoltou, ao descobrir que tudo era
uma grande inverdade. Todos nós, certamente, conhecemos vários
mentirosos. Por que eles existem? O que é, afinal, a mentira: doença,
problema moral, necessidade irresistível, brincadeira? Ou o ato de
mentir é provocado por todas essas razões?

131
Linguística Textual

Produção textual de um candidato:

O fim da mentira

A mentira não pode ser qualificada como uma ação negativa ou po-
sitiva por si só. Para julga-la é necessário analisar o contexto em que
ela ocorre. Há vários motivos que podem levar uma pessoa a mentir,
porém devemos analisar as circunstâncias que levam a tal atitude e
as consequências que dela advêm.

Existem situações em que a mentira se torna necessária e/ou con-


veniente, ganhando um aspecto positivado, seja para evitar o sofri-
mento das pessoas, seja para proteger-se em determinadas ocasi-
ões entre outros casos. Pode-se imaginar um policial, quando fora
de suas funções, abordado por bandidos e questionado sobre sua
profissão. Neste caso é uma questão até de sobrevivência.

Entretanto, sobre um enfoque contrário, muitos males podem surgir


pela prática de mentir. A sociedade e o próprio indivíduo que mente
podem ser prejudicados. Há condutas que pela gravidade são classi-
ficadas e punidas como crimes, dada sua repercussão. O falso teste-
munho, a falsa denúncia, o estelionato são alguns dos exemplos de
condutas que a lei se preocupou em evitar.

Todavia, as relações individuais podem incentivar a mentira ou manter


seu hábito . Pode haver com seu uso uma ingênua brincadeira, apenas
para descontrair, como pode tornar-se compulsória em pessoas acos-
tumadas a aferir vantagens com facilidade, tornando-se uma doença

Logo, a mentira não pode ser classificada sem se analisar cada caso.
Trata-se de um meio, e não um fim em si mesma.

(Disponível em: http://educacao.uol.com.br/bancoderedacoes/reda-


cao/ult4657u426.jhtm. Acesso em: 04 mai. 2009.)

Podemos dizer que o texto escrito pelo candidato é coerente e apre-


senta razoável nível de informatividade. O que poderia ser retomado

132
As formas nominais referenciais Capítulo 12
com o candidato, se fosse uma situação de ensino-aprendizagem
(além de aspectos mais pontuais de concordância, pontuação, acen-
tuação etc.), inicialmente, é o título do texto: O fim da mentira. Isso
porque o título apresenta um duplo sentido, haja vista que o ter-
mo fim remete tanto à ideia de finalidade como à de término. Ao
ler o texto, percebemos que o título tem mais relação com a noção
de finalidade, pois o candidato tece considerações sobre os diver-
sos motivos (finalidades) da prática de mentira. Não descartamos
a hipótese de que o duplo sentido do título possa ter sido criado
intencionalmente pelo autor do texto, porém, se for o caso, ele pre-
cisaria ter sinalizado melhor no texto tal intenção, já que no texto
não é mencionada a questão do término da mentira, mas somente a
questão das finalidades do ato de mentir.

O candidato introduz o objeto-de-discurso mentira já no título do


texto, uma vez que esse objeto-de-discurso já havia sido previa-
mente apresentado no contexto comunicativo por meio da propos-
ta de produção textual. No decorrer do texto, o objeto-de-discurso
é retomado: ato de mentir, atitude, prática de mentir, exemplos de
conduta, seu hábito etc. Nesse processo de referenciação, observa-
mos o uso de anáforas correferenciais sem recategorização, mas por
repetição: a mentira; anáforas lexicais: ela, la; e também elementos
responsáveis pela mudança do referente, as anáforas correferenciais
recategorizadoras (aquelas em que não há identidade estrita com
um antecedente textual), como o uso de descrição nominal: seu há-
bito, seu uso; uso de nomes genéricos: condutas; uso de encapsu-
lamento anafórico: exemplos de condutas.

Enfim, ao ser retomado pelo candidato, o objeto-de-discurso é reca-


tegorizado e isso constitui o próprio ponto de vista do candidato, que
se propõe a mostrar os diferentes tipos de mentira de acordo com a fi-
nalidade da mesma, conforme podemos observar em: A mentira não
pode ser qualificada como uma ação negativa ou positiva por si só.

133
Linguística Textual

Sobre a maneira como o candidato elabora seu texto, do ponto de


vista da referenciação, podemos dizer que, inicialmente, ele apresen-
ta o objeto-de-discurso como é qualificado pelo compartilhamento
sociocognitivo, na ordem do dado, destacando a ação negativa. Ao
passo que retoma e recategoriza, através de sua orientação argu-
mentativa, ele consegue ir apresentando novos olhares para esse
objeto-de-discurso. Contudo, esses novos olhares também têm uma
ancoragem na memória discursiva dos interlocutores daquela situa-
ção comunicativa. Para exemplificar nossa afirmação, tomemos como
exemplo a afirmação de que é possível mentir por questões de sobre-
vivência: Existem situações em que a mentira se torna necessária e/
ou conveniente, ganhando um aspecto positivado, seja para evitar
o sofrimento das pessoas, seja para proteger-se em determinadas
ocasiões entre outros casos. Pode-se imaginar um policial, quando
fora de suas funções, abordado por bandidos e questionado sobre
sua profissão. Neste caso é uma questão até de sobrevivência.

A partir dessa textualização do candidato, podemos observar o uso


do argumento de que a mentira é utilizada como uma estratégia
de sobrevivência. Esse argumento é compartilhado sociocognitiva-
mente por indivíduos que moram em centros urbanos, onde a vio-
lência leva à autodefesa e, portanto, a mentir por sobrevivência. Em
resumo, podemos dizer que as demais formas de se compreender a
mentira, propostas pelo candidato, são construtos sociocognitivos
e historicamente situados que são introduzidos e ressignificados na
discursivização do candidato. Por fim, observamos também que, ao
final de seu texto, ele retoma coerentemente seu ponto de vista:
Logo, a mentira não pode ser classificada sem se analisar cada
caso. Trata-se de um meio, e não um fim em si mesma.

Desse modo, ao seguir uma mesma proposta de produção textu-


al, cada candidato textualizou diferentemente o seu texto, fazendo
isso a partir de suas práticas sociocognitivas e historicamente situ-
adas. Para cumprir seus propósitos discursivos, os candidatos inse-
riram em seus textos títulos que estabelecem relação intertextual

134
As formas nominais referenciais Capítulo 12
com outros textos já ancorados na memória discursiva dos interlo-
cutores. Vejamos outros títulos dados a seus textos pelos candida-
tos: Em Mentira tem perna curta, a intertextualidade ocorre com o
dito popular; em Atire a primeira pedra, aquele que nunca mentiu!
observamos um intertexto com o texto bíblico; já o título Mentir ou
não mentir? pode estar relacionado à famosa fala de Hamlet, per-
sonagem criada por William Shakespeare: Ser ou não ser, eis a ques-
tão; por fim, no título As mentiras: mais quatro anos, temos uma
referência à política com enfoque nas discussões ligadas a escânda-
los financeiros, como, por exemplo, a chamada CPI do Mensalão.

Ressaltamos a importância de que o professor, nas práticas de produ-


ção textual escrita, chame a atenção dos alunos em relação ao esta-
belecimento de títulos em seus textos, uma vez que o título não é um
elemento meramente ilustrativo, mas uma forma de materializar os
sentidos que se desejam produzir, pois é a “porta de entrada” do tema
que será tratado no texto. Não raras vezes, percebemos, nos textos de
alunos e tantos outros, que a expectativa que se estabelece a partir de
determinados títulos não se confirma com a leitura integral do texto.

Ao analisar juntamente com seus alunos a produção escrita destes, o


professor também pode chamar a atenção para os efeitos textuais e dis-
cursivos obtidos pela retomada dos objetos-de-discurso mediante aná-
foras correferenciais recategorizadoras. Tradicionalmente visto apenas
como uma forma de ‘enriquecer o texto’, o uso de sinônimos, parassinô-
nimos, nomes genéricos, encapsulamentos anafóricos, na verdade, pro-
move ressignificações dos referentes, além de fazer o texto progredir.

Leia mais!
Para um aprofundamento sobre o conceito de referenciação e de fenôme-
nos anafóricos, sugerimos livros mais atuais de Ingedore Koch:

KOCH, I. G. V. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins


Fontes, 2004.
______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

135
O texto na sala de aula
Unidade D

Garota escrevendo (Henriette Browne, séc. XIX)


Nas três Unidades anteriores, abordamos a origem da Linguística
Textual e seus desdobramentos teóricos, os diferentes conceitos de tex-
to, os padrões de textualidade e a referenciação.

Nesta Unidade, vamos ver o lugar e o papel que o texto teve/tem


nas aulas da disciplina de Língua Portuguesa e observar que o lugar e
o papel do texto na sala são norteados pelas concepções de texto do
professor, que balizam diferentes abordagens da disciplina e, logo, dife-
rentes abordagens de práticas de leitura/escuta e produção textual. Tudo
isso vai acabar se refletindo na concepção de texto que o aluno vai cons-
truir durante seu processo de escolarização e que se textualiza em suas
produções de texto.

O objetivo desta unidade é, a partir dos estudos que realizamos


sobre a Linguística Textual:

ӲӲ analisar qual o lugar e o papel do texto nas aulas de Língua Portu-


guesa e qual a concepção de texto do aluno da Educação Básica.

Assim sendo, a unidade encontra-se dividida em dois Capítulos,


em que discutiremos cada um dos tópicos destacados no objetivo: o lu-
gar do texto na sala de aula e as concepcões de texto dos alunos.
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 13
13 O texto nas aulas de Língua
Portuguesa
Se tomarmos a definição de texto como unidade da comunicação
discursiva, como lugar e meio da interação, a sala de aula é espaço de
constituição de textos, pois os processos de ensino-aprendizagem são
mediados pela interação professor-aluno, aluno-professor e aluno-
aluno. Na aula de História, por exemplo, professor e aluno constroem
textos nas interações em sala de aula, interagem com textos didáticos,
filmes etc. Em resumo, podemos dizer que toda a mediação dos conte-
údos/conhecimentos da disciplina e sua aprendizagem efetuam-se por
meio de textos. No dizer de Geraldi (1997, p. 23),

[...] qualquer que seja a disciplina objeto de nosso ensino/aprendizagem,


ele [o texto] está sempre presente. No sentido que atribuímos à sala de
aula como espaço de interação verbal [e, por essa razão, diálogo entre su-
jeitos, professores e alunos, ambos portadores de diferentes saberes] aluno
e professor confrontam-se por meio de seus textos com saberes e conhe-
cimentos. No sentido que atribuímos a sujeito, como herdeiro e produtor
de herança cultural, alunos e professores aprendem e ensinam um ao ou-
tro com textos, para os quais vão construindo novos contextos e situações,
reproduzindo e multiplicando os sentidos em circulação na sociedade.

Relacionando esse conceito de texto às aulas de Língua Portuguesa,


hoje o texto assume (ou deveria assumir) ainda outra função, pois, além de A história da constituição
ser a unidade mediadora dos processos interacionais e de construção do da disciplina de Língua
Portuguesa na escola, suas
conhecimento, é também unidade de ensino-aprendizagem, ou seja, cons- finalidades, seus conteúdos
titui-se também como conteúdo de ensino-aprendizagem dessa disciplina. e o texto como unidade de
ensino serão aprofundados
na disciplina de Linguística
A disciplina de Língua Portuguesa foi introduzida no sistema esco-
Aplicada.
lar brasileiro no final do século XIX, época de declínio e saída do currí-
culo escolar das disciplinas de Gramática (do latim), Retórica e Poética.
Soares (2002) salienta que a criação dessa nova disciplina não possi-
bilitou a configuração de novos objetivos e conteúdos, pois houve um
processo de fusão dos conteúdos das disciplinas de Gramática, Retórica
e Poética, que migraram para essa nova disciplina, e com a prevalência
dos estudos gramaticais sobre os de leitura e escrita. Desde as origens da
disciplina de Língua Portuguesa, a escuta, a leitura e a produção textual

139
Linguística Textual

(oral e escrita) não se constituíam como a base dos conteúdos de ensi-


no-aprendizagem; em decorrência, o texto não era a unidade central de
trabalho, uma vez que as práticas de linguagem não eram o foco central
e os estudos gramaticais operacionalizavam-se nos limites da frase.

A partir de 1980, começa a se delinear, inicialmente na academia,


um movimento de análise da função da disciplina de Língua Portugue-
sa, seus conteúdos e metodologias, alicerçado em “uma concepção de
linguagem e de ensino alternativa à tradicional” (BRITTO, 1997, p. 99).
Como resultado dessa reflexão, consolida-se, pelo menos em nível pro-
posicional e oficial, uma nova proposta de ensino-aprendizagem: de um
ensino gramatical para um ensino operacional e reflexivo da linguagem
(BRITTO, 1997), alavancada pelos estudos de autores como Franchi,
Possenti e Geraldi. Nessa proposta, os dois grandes eixos norteadores
Os livros O texto na sala de dos conteúdos da disciplina passam a ser:
aula, organizado por Geral-
di (1984), e Portos de Passa- 1) o uso da linguagem, concretizado por meio das práticas de es-
gem (1991), de autoria de
Geraldi, são obras basilares cuta/leitura e produção textual (oral e escrita);
para essa nova concepção
de ensino-aprendizagem 2) a reflexão sobre a linguagem, concretizada por meio das práti-
da disciplina de Língua Por- cas de análise linguística (GERALDI, 1984, 1991).
tuguesa. O primeiro livro
atualmente é reeditado
pela Editora Ática. Logo, a unidade de trabalho na sala de aula passa a ser o texto, se,
como já dito, tomarmos o texto na concepção de unidade de interação.
Por isso, Geraldi (1993 [1991], p. 105) salienta que “se quisermos traçar
uma especificidade para o ensino de língua portuguesa, é no trabalho
com textos que a encontraremos. Ou seja, o específico da aula de portu-
guês é o trabalho com textos”.

Geraldi (1993 [1991]) lembra que, mesmo o texto não tendo a cen-
tralidade nas aulas de Língua Portuguesa, nem por isso ele deixou de es-
tar presente, embora de modo mais marginal, como já dito, e com uma
forma de inserção muito particular, à qual se opõe essa nova proposta
de ensino da disciplina de Língua Portuguesa. Vejamos, então, como era
essa presença do texto na sala de aula.

Nas aulas de leitura, o texto aparecia como modelo para o aluno,


em vários sentidos:

140
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 13
a) Objeto de leitura vozeada (oralização do texto escrito): A re-
comendação era para que o professor lesse o texto em voz alta para
a classe e, em seguida, chamasse aluno por aluno para ler trechos
do texto. A melhor leitura era aquela que se aproximasse mais do
modelo, ou seja, da leitura do professor;

b) Objeto de imitação: O texto era lido como modelo para a produ-


ção dos textos dos alunos ou para falar bem a língua. O objetivo do
texto lido, nesse caso, não era fornecer ao aluno conteúdos para a
produção textual, mas ser modelo de estilo. Os alunos tinham de se
aproximar do estilo dos autores desses textos;

c) Objeto de fixação de um sentido: O significado de um texto era


aquele da leitura privilegiada do professor ou de um crítico literá-
rio por ele escolhido. A leitura não era concebida como produção
de sentidos (no plural) com base nas pistas fornecidas pelo texto e
no estudo dessas pistas, mas como uma leitura do texto. (GERALDI
(1993 [1991]), p.106-108).

A análise dessa prática de leitura de textos (normalmente textos


literários ou fragmentos destes) na escola mostra que a concepção de
texto que a sustenta é a de modelo ao qual se deve aderir. Ao interlocu-
tor atribui-se papel passivo, pois ou o sentido está (somente) no autor,
ou no texto produto, ou em um leitor privilegiado (professor ou crítico
literário); o conhecimento e as experiências do leitor, fundantes no ato
da interação mediada pela leitura, são anuladas em favor de uma leitura
modelar: de reconhecimento de significados, de compreensão passiva, e
não de produção de sentidos.

No entanto, partindo-se da concepção de linguagem como intera-


ção, consideramos que nem o autor é a fonte única do dizer, nem o leitor
é a fonte única dos sentidos de sua leitura, e nem o sentido está pron-
to e acabado no texto, pronto para ser decodificado. O texto é o lugar
onde o encontro do autor e do interlocutor se materializa e onde se dá a
negociação dos sentidos. Além disso, textos de diferentes gêneros apre-
sentam-se ao leitor como possibilidades de interação diferentes, pois as
pessoas escutam/leem para aprender (textos didáticos), para se orientar
no espaço (textos de sinalização), para se informar (textos jornalísticos),
para se entreter (textos ficcionais), para ter notícias de amigos (cartas,
e-mails), para selar acordos (contratos) etc. Essas diferenças, também

141
Linguística Textual

marcadas na textualização, requerem práticas de ensino-aprendizagem


de leitura que levem em conta essa diversidade.

A análise das práticas escolares demonstrou que a descontextuali-


zação e a falta de sentido das atividades de leitura também norteava as
atividades de produção textual, além de ser, muitas vezes, uma atividade
bastante periférica em face dos outros conteúdos. Talvez se possa afir-
mar que foi nas atividades de escrita que o texto mais se distanciou da
concepção de lugar de interação para a compreensão de determinado
espaço a ser preenchido com palavras. Ainda nos falta um estudo mais
aprofundado para entender todas as razões do distanciamento do texto
como atividade de interação nas aulas de produção textual, mas algu-
mas hipóteses podem ser levantadas:

Embora, muitas vezes, o a) A prevalência dos estudos gramaticais, que sempre foram
professor justifique que en-
vistos como os “verdadeiros conteúdos da disciplina de Lín-
sina categorias gramaticais
para que o aluno aprenda a gua Portuguesa”: Essa prevalência pôs o ensino da produção de
escrever melhor.
textos como uma atividade menos importante na escola, logo,
muito menos focada pelo professor;

b) Os limites dos estudos gramaticais: de modo resumido, po-


demos dizer que as unidades de trabalho da gramática são a
palavra e a oração. Esse limite imposto pelo objeto fez com que
o olhar do professor também se voltasse para o limite da oração
no texto do aluno, o que produziu certos modos de orientar e
avaliar os textos, com enfoque prevalente para a correção da
norma padrão, da concordância, da regência e da ortografia, e
Não estamos defendo a com a quase desconsideração dos aspetos ligados à interação e
desconsideração dessas à textualidade, como progressão temática, adequação do estilo
questões; o que queremos
mostrar como equivocada e do conteúdo do texto ao interlocutor etc.;
é a centralização do pro-
cesso ensino-aprendiza- c) A produção e apresentação de modelos de textos: Como fo-
gem de produção textual mos discutindo ao longo deste livro, as textualizações são bas-
nesses aspectos.
tante diversas, resultado das atividades humanas e das condi-
ções sociais e interativas, tipificadas historicamente nos gêneros
do discurso. Entretanto, na escola, sedimentou-se um processo
de produção escrita centrado em torno de uma tipologia textu-
al (narração, descrição e dissertação) totalmente desvinculada
das atividades efetivas de leitura e escrita fora da esfera escolar.

142
O texto nas aulas de Língua Portuguesa Capítulo 13
Essas atividades de redação desconsideram os parâmetros de
interação (salvo o aluno escrever esse texto para o professor
de Língua Portuguesa), pois o texto é produzido de modo as-
séptico: esses parâmetros de interação não têm qualquer efeito
sobre o processo de produção do texto. Ainda, todo o processo
de ensino-aprendizagem volta-se para o produto e não para o
processo de interação e de textualização.

Por essas razões, Geraldi (1993[1991]) estabeleceu dife-


rença entre redação e produção textual, que, frise-se, não é uma
distinção terminológica, mas conceitual: na redação, o aluno
produz um texto para a escola; na produção textual, o aluno
produz um texto na escola. O argumento do autor para essa dis-
tinção repousa no fundamento de que como sempre se produz
um texto para o outro, a partir de um lugar social, para dizer-
lhe algo e obter sua resposta, na escola, esse parâmetros devem
ser os norteadores do processo de produção textual, cabendo
ao professor o papel de mediador e de leitor privilegiado (mas
não único) do texto do aluno. Já na redação escolar, como es-
ses parâmetros não são norteadores dos textos dos alunos, nor-
malmente “há muita escrita e pouco texto (ou discurso)” (1993
[1991, p.137). Nas palavras do autor,

Conceber o texto como unidade de ensino/aprendizagem é entendê-lo


como um lugar de entrada para este diálogo com outros textos, que reme- Essa mesma visão baliza
muitos professores de
tem a textos passados e que farão surgir textos futuros. Conceber o aluno línguas estrangeiras, que
como produtor de textos é concebê-lo como participante ativo deste di- afirmam que não podem
álogo contínuo: com textos e com leitores. Substituir “redação” por produ- trabalhar com atividades
de escuta, leitura e produ-
ção de textos implica admitir esse conjunto de correlações, que constitui as ção nas fases iniciais, pois
condições de produção de cada texto, cuja materialização não se dá sem seus alunos ainda não têm
“instrumentos de produção”, no caso, os recursos expressivos [recursos lin- domínio da gramática da
língua, que é necessária,
guísticos] mobilizados em sua construção (GERALDI, 1993[1991], p. 22). segundo visão deles, para
aprender a falar e escrever.
d) A escrita como treino: A escrita como treino prévio para o No entanto, Bakhtin (2003
domínio da produção escrita também norteou as atividades [1979]) diz que nós não
aprendemos uma língua
de ensino, como uma espécie de estágio ordenado necessário por meio de palavras e
para que o aluno pudesse aprender a escrever: primeiro apren- orações isoladas, mas
por meio dos enunciados
der e treinar as letras, as sentenças, os parágrafos, como condi- (textos), nos processos
ção prévia necessária, para depois aprender a produção textual. interacionais.

143
Linguística Textual

Dessa percepção equivocada temos como decorrência muitos


exercícios de aprender a escrever (por exemplo, preencher lacu-
nas com dadas palavras, escrever frases ou parágrafos a partir
de um dado comando) e poucas atividades de produção de textos.

Essa visão de necessidade de etapas prévias para a aprendizagem da


produção escrita reflete-se também na leitura e na alfabetização. Como
consequência, apresentam-se ao aluno textos acessíveis (sejam livros de
literatura, sejam livros didáticos), o que significa, na maioria das vezes:
redução da riqueza lexical dos textos, redução da complexidade sintá-
tica, com a prevalência de frases simples, redução da complexidade se-
mântica e dos processos de textualização de um modo geral. Todos esses
Poderíamos dizer, em úl- processos de redução da configuração composicional, semântica, sintá-
tima análise, que há uma
redução dos princípios de tica e lexical dos textos têm como resultado a apresentação, ao aluno, de
interação e dos padrões textos assépticos e sem relação com os textos efetivamente produzidos
de textualidade. Por essas
razões, são modelos de nas interações sociais.
textos que não servem
para a interação. A exposição do aluno a esses textos para as atividades de leitura e
produção textual faz com que o discente construa uma concepção de
texto que não é a de meio, lugar de interação, mas de estruturas textuais
vazias a serem preenchidas com palavras, sem relação com a possibi-
lidade de interação. Por isso, Geraldi (1993[1991], p.137) afirma que
os textos produzidos por alunos expostos a esses modelos de textos têm
muita escrita e pouco texto. O autor, nos livros O texto na sala de aula
e Portos de passagem, analisa textos de alunos que claramente revelam
marcas dessa concepção de texto. Vamos ver um caso semelhante no
próximo Capítulo.

144
O que é texto para o aluno? Capítulo 14
14 O que é texto para o aluno?
Para demonstrar a situação descrita no capítulo anterior, inicial-
mente, vamos analisar dois textos, retirados do artigo A produção tex-
tual do aluno antes e depois do contato com a cartilha: um caminho de
volta (2003), de autoria de Noris Eunice Pureza Duarte.

Texto 21

Transcrição do texto:

um dia o rafael viu o amigo que se


cama Pedro Julho o Rafael
comvidou o Pedro Julho para
brimcar no parque de diverçoes
i ai o rafael dise sim vamos
na montainha rusa e depois
eles foram no trem fantasma depois
eles foram para a casa descansar
e depois éra ora de aumosar
e depois éra ora de ir para a
escola e os dois na escola o que
vose aicha de a gente brimcar no
recreio em rafael sim nos vamos
brimcar no recreio i chegou a
hora do recreio e a profefora deichou
eles irem pro recreio i ai eles
brimcaram no recreio e depois
eles foram para a casa!
Inicialmente, levantaremos algumas das condições de produção
desse texto, fornecidas pela autora do artigo: ele foi produzido por uma
criança de classe média na pré-escola, antes da aprendizagem formal da
alfabetização, e é resultado de processos de textualização de relatos de
experiências vividas e de histórias, que as crianças eram estimuladas a
fazer. No texto o aluno engaja-se em um projeto discursivo, como res-
posta à solicitação da professora, e relata aos colegas e à professora como
foi o dia de duas crianças, Rafael e Pedro Júlio. A história narrada pelo

145
Linguística Textual

aluno focaliza três momentos do dia das crianças: no período da manhã,


no parque de diversões; no período do almoço, em casa; e no período
da tarde, na escola. Observamos que a criança produz um texto com
uma história com bom grau de informatividade, com progressão temá-
tica, com introdução, inclusive, do discurso das personagens. Do ponto
de vista formal, falta-lhe ainda domínio da pontuação, da acentuação,
da paragrafação, do modo de introdução do discurso relatado no texto
escrito e de algumas relações fonema-grafema. Ainda percebemos forte
influência da oralidade no texto: Por exemplo, os mecanismos coesivos
e aí; e depois são próprios dos textos orais, onde estabelecem a sequen-
ciação temporal entre partes narradas de uma história.

Certamente, há ainda um caminho de aprendizagem a ser percor-


rido pela criança, que é o domínio dos aspectos ligados à modalidade
escrita dos textos. Há, portanto, o papel de mediação do professor, como
Na disciplina de Psicologia agente de aprendizagem daqueles aspectos da textualização escrita que o
educacional: desenvol- aluno ainda não domina. Entretanto, percebemos que a criança efetiva-
vimento e aprendizagem
será discutido o conceito mente engajou-se em um projeto discursivo proposto pela professora e
de Vygostky de mediação, produziu um texto com um bom nível de legibilidade; relaciona-se com
bem como seu papel nos
processos de ensino-apren- o texto escrito como meio de interação com o outro e se responsabiliza
dizagem da criança. pelo seu dizer, o que faz emergir uma forte presença autoral no texto.

Comparemos, agora, esse texto com o que se segue:

TEXTO 22

Transcrição do texto:

O rato e o menino
O menino não gosta do rato.
O menino esmagou o rato.
O menino matou o rato.
O menino tropesou no pau e esmagou o rato.
O menino levou o rato pra rua.
O rato ficou triste.
O menino sentiu pena do rato.
O menino ficou amigo do rato.
O menino cuida do rato.

146
O que é texto para o aluno? Capítulo 14
Passemos agora à apresentação das condições de produção do Tex-
to 22: Ele foi produzido por uma criança de classe média na primeira
série do Ensino Fundamental, na época do aprendizado formal da alfa-
betização. Observemos a textualização que o aluno produziu. Seguindo Os dados referem-se ao
o que reforça Beaugrande (2004 [1997]) a respeito dos padrões de textu- período em que o Ensino
Fundamental era com-
alização, não podemos dizer que o que a criança produziu seja um não- posto de quatro ciclos de
texto, pois esses padrões orientam quaisquer textualizações. No caso do dois anos, totalizando oito
anos de escolaridade.
texto em questão, o aluno dá uma resposta ao que lhe foi endereçado:
escrever um texto e tenta dar conta dessa demanda.

Apesar disso, há problemas de textualização, que afetam a legibilida-


de do texto. Por exemplo, o leitor da história do menino e do rato terá difi-
culdades para construir coerência, pois há contradições no que ela conta:
primeiramente, a criança apresenta a informação de que o menino não
gosta do rato e que esmaga e mata o rato, o que levanta o leitor à inferência
de que o menino matou o rato por não gostar dele. Posteriormente, sem Como vimos na Unidade
B, a inferência é um dos
qualquer notificação ao leitor, há a informação de que a criança trope-
fatores responsáveis pela
çou no pau e esmagou o rato. Essa informação, por sua vez, pode levar o coerência.
leitor a inferir que o menino esmagou o rato acidentalmente, o que entra
em choque com a hipótese anterior sobre a motivação do menino. Na se-
quência, a criança fica amiga do rato e cuida dele, o que leva o leitor a ter
de inferir que o rato esteja vivo. Ou seja, a leitura do texto não permite que
o leitor construa um mundo textual coerente e o resultado é cômico (ainda
que não pareça ter sido essa a intenção do autor).

Segundo Charolles (1988 [1978]), também um estudioso da co-


erência, um texto é coerente quando satisfaz a quatro metarregras de
coerência:

ӲӲ A metarregra de repetição;

ӲӲ A metarregra de progressão;

ӲӲ A metarregra de não-contradição;

ӲӲ A metarregra de relação.

Assim, para que um texto seja coerente para o leitor, é preciso que,
no seu desenvolvimento, não se introduza nenhum elemento semântico
que contradiga um conteúdo posto ou pressuposto por uma ocorrência

147
Linguística Textual

anterior, ou dedutível desta por inferência (metarregra da não-contra-


dição). Se essa contradição não for intencional e não sinalizada para o
leitor, ela acarreta problemas de coerência interna no texto, como esta
que se apresenta no texto da criança, pois o rato está morto e vivo ao
mesmo tempo. Esse problema de contradição afeta o levantamento das
inferências no texto, bem como a focalização, que, como vimos na Uni-
dade B deste Livro, são elementos importantes para que o interlocutor
construa a coerência do texto.

Quanto aos aspectos linguístico-textuais, observamos a repetição


da estrutura frasal, extremamente simples, e a retomada dos referentes
o menino e o rato pela repetição constante dos termos o rato e o meni-
no, que inicia todas as frases do texto, dispostas uma abaixo da outra.
Observamos, ainda que a criança aprendeu o uso das letras maiúsculas
em início de frases e o uso do ponto para sinalizar o fim da frase. Além
disso, apresenta, no que textualizou, um bom domínio das relações fo-
nema-grafema (talvez justamente porque haja pouco texto, pouco dis-
curso, como diz Geraldi (1993 [1991)). Apesar disso, o texto, como dito,
apresenta problemas de legibilidade.

As perguntas que se pode e deve fazer são: A criança vê o texto escri-


to como lugar de interação com o outro e de mediação de sentidos? Que
concepção de texto escrito essa criança construiu? E, ainda, de onde vem
essa concepção de texto? Para responder a essas questões, temos de ana-
lisar não apenas a situação imediata do texto, escrever um texto a partir
de uma gravura, mas analisar a situação mais ampla: de modo especial,
que textos estão mediando a aprendizagem da escrita dessa criança.

Segundo Duarte (2003), o processo de alfabetização desse aluno


foi mediado por uma cartilha elaborada pelas professoras da escola, que
privilegia:

a) a gradação das dificuldades de aquisição da escrita – “primeiro


as vogais e depois as consoantes, distribuídas em 42 graus de
dificuldades (dentre eles os dígrafos, os encontros consonan-
tais, os sons do X)” (DUARTE, 2003) –;

b) a exploração do aspecto visual, através de propostas para que


as crianças desenhem determinadas cenas, ilustrem determi-

148
O que é texto para o aluno? Capítulo 14
nadas frases propostas para leitura ou escrevam palavras a par-
tir de gravuras;

c) a segmentação de palavras em sílabas e recomposição dessas


sílabas em palavras. De modo geral, a unidade de trabalho para
essas atividades é a frase, com a inclusão de alguns textos para
leitura, como os que seguem:

A horta
Helena mora no sítio.
Lá, ela cuida da sua horta.
Caio viu o cavalo.
Helena cultiva legumes e verduras.
Ele dá comida ao cavalo.
Sua horta é muito bonita.
O cavalo come, come.
Helena só come legumes e verduras de sua
(apud DUARTE, 2003)
horta.
Como Helena é educada!
(apud DUARTE, 2003)

Mesmo uma leitura apressada mostra que esses textos foram cons-
truídos para uma finalidade específica, que é o trabalho com a relação
Não negamos a necessida-
entre fonemas e grafemas. São textos fabricados para esse fim; não têm de e a importância de se
uma proposta interativa que não seja treinar uma dada relação fonema- trabalhar com as relações
fonema-grafema, que são
grafema . Além disso, são norteados pela concepção equivocada de que constitutivas do texto
há necessidade de simplificação das complexidades linguístico-textuais escrito; o que questiona-
mos é o modo como esse
para a criança aprender a escrever. Esses textos não preenchem uma fun- trabalho é conduzido.
ção interativa e se apresentam absolutamente pobres no que se refere à
informatividade, à intertextualidade, à organização textual e frasal, à co-
Queremos ressaltar que
esão e à referenciação, à seleção vocabular etc. não culpamos o profes-
sor em particular pela
Agora, podemos responder as questões levantadas anteriormente. situação descrita neste
A criança se apropriou de uma concepção de texto dada pela escola: o Capítulo, mas a concepção
vigente de alfabetização e
texto não como lugar de interação e mediação, mas como espaço em de texto da/na escola, que
branco para ser preenchido com frases soltas. se encontra reproduzida
em seu trabalho. Por isso,
por mais que ele tente
Para terminar a discussão desses dois textos, apresentamos a últi-
inovar (no caso, criar uma
ma informação sobre eles: Os textos 21 e 22 foram escritos pela mesma cartilha apropriada para
seus alunos), os resulta-
criança. O Texto 21 foi produzido na fase pré-escolar e o Texto 22 no ano
dos não são promissores
seguinte, na primeira série do Ensino Fundamental. Agora, podemos le- do ponto de vista de um
trabalho de Língua Portu-
vantar outra pergunta: O que a criança perdeu acerca da noção de texto
guesa centrado no texto.
durante seu curto processo de escolarização formal?

149
Linguística Textual

Objetivando complementar o que discutimos até aqui, apresenta-


mos parte dos resultados de pesquisa realizada por Silva (2008) sobre
a concepção de texto de alunos do Ensino Fundamental. A pesquisa foi
realizada no ano de 2006, com 21 alunos de uma sétima série do Ensino
Fundamental de uma instituição de ensino da rede particular de um
município do Estado de Santa Catarina. Um dos instrumentos de pes-
quisa foi a realização de entrevista escrita com esses alunos, com vistas
à apreensão, entre outros, do conceito de texto desses alunos. Uma das
sete questões postas para os alunos foi: O que você entende por texto? As
respostas, após analisadas, foram agrupadas em três categorias, confor-
me quadro a seguir

O que você entende por texto?

G1

“É uma redação. Uma forma de se comunicar e expressar.”


“É uma forma de se expressar em letras, expressar sentimentos, e
outros.
“Texto para mim euma opinião ou expressão de várias frases juntas
descrita em um papel.
“Texto e aonde eu posso me expressar.
“Explicações onde expresse sentimentos. Exemplo cartas e redações.”
“Uma redação.”
“Redações, onde você pode expressar seus sentimentos.”
“Forma de se expressar em letras.”

G2

“Historias, poemas, redações etc... Qualquer coisa que tenha muitas


palavras.”
“Eu entendo que é um monte de letras que se unem e ficam pala-
vras que as palavras fazem um texto para nós lermos.”
“Um conjunto de frases que sempre trazem algo de bom para no s.
“São palavras representando histórias reais ou não.”
“Uma redação... uma coisa que você lê ou escreve.”

150
O que é texto para o aluno? Capítulo 14
G3

“Uma redação, uma história, uma carta.”


“Redação, poesia...”
“Pode ser uma redação, poema, história, lembrete etc...”
“Onde tem uma história, redação, carta ...”
“Uma história que conta alguma coisa que alguém contou ou a
própria história.”
“Histórias e documentarios de jornais e revistas.

Quadro 2: A concepção de texto de alunos de ensino fundamental (SILVA, 2008).

Se nos textos 21 e 22 analisamos a concepção de texto do aluno a


partir do texto produzido pelo próprio aluno, agora vamos analisar a
concepção de texto por meio do que ele define como sendo texto.

A partir das respostas dos estudantes à questão O que você entende


por texto?, primeiramente, é possível perceber a incidência relevante da
utilização do termo redação, que reflete a concepção de produção textu-
al ainda vigente na escola.

Nas respostas do primeiro grupo (G1), percebemos a concepção de


texto como expressão do pensamento, uma vez que há um enfoque na
noção de linguagem como forma de expressão, centrando-se na pessoa
do produtor, como podemos verificar no segmento: Texto e aonde eu
posso me expressar. O segundo grupo (G2), por sua vez, materializa uma
perspectiva bastante fragmentada de texto, dividindo-o em unidades
como frases, palavras, revelando uma concepção de texto como partes
que se somam para formar um todo. A resposta a seguir é ilustrativa
dessa perspectiva: Eu entendo que [texto] é um monte de letras que se
unem e ficam palavras que as palavras fazem um texto para nos lermos.

Já o terceiro grupo (G3) de alunos revela uma concepção mais in-


terativa de texto, uma vez que o texto não é visto como conjunto de
palavras e frases, mas como produto cultural que circula socialmente e
como meio, lugar de interação com o outro, como podemos perceber
nas duas respostas que seguem: Histórias e documentários de jornais e
revistas; e Uma história que conta alguma coisa que alguém contou ou

151
Linguística Textual

a própria história. Nesse caso, podemos nos perguntar se essa concep-


ção de texto foi construída pelos alunos a partir do ensino operacional
e reflexivo da linguagem pautando o trabalho de professores, ou se é
resultado das práticas de letramento nas quais se encontram inseridos
esses alunos.

Ao contemplar a voz de alunos de Ensino Fundamental sobre a


concepção de texto na esfera escolar, consideramos que as concepções
(vozes) dos estudantes refletem (e refratam) as concepções de texto que
estão inseridas no âmbito da escola, e, mais precisamente, na disciplina
de Língua Portuguesa.

O retrato que apresentamos neste Capítulo objetivou mostrar que


concepções de texto ainda medeiam as aulas de Língua Portuguesa. Es-
peramos que esse Capítulo sirva como ponto de partida e porto de passa-
gem para uma reflexão mais apurada sobre as práticas de ensino-apren-
dizagem de escuta, leitura e produção textual (oral e escrita) na escola,
que será desenvolvida na disciplina de Linguística Aplicada. Fica o con-
vite para a construção de um novo caminho em sala de aula, com o texto
na sua condição de enunciado e como a unidade efetiva de trabalho do
professor, enfim, a disciplina escolar de Língua Portuguesa concebida a
partir da proposta do ensino operacional e reflexivo da linguagem, apre-
sentada no Capítulo anterior.

Leia mais!
Para aprofundamento desta unidade, indicamos duas obras seminais que
tratam das questões do texto nas aulas de Língua Portuguesa, ambas de
autoria de João Wanderley Geraldi:

GERALDI, J. W. Portos de passagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,


1993[1991].
______. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. 3. ed. Cas-
cavel: Assoeste, 1985 [1984]. (Atenção: como já dito, esta obra hoje é
editada pela editora Ática.)

152
Considerações Finais
Ao longo deste livro, aprofundamo-nos nos estudos da disciplina de
Linguística Textual: Conhecemos o histórico da disciplina, os conceitos
de texto que emergiram em suas diferentes fases e vertentes, apropria-
mo-nos do conceito de textualidade, correlacionamo-no ao conceito de
gêneros do discurso, abordamos cada um dos padrões de textualidade e
estudamos as pesquisas recentes sobre textualização. Vimos o funciona-
mento de todos esses conceitos por meio da análise de textos, momento
em que pudemos observar e apreender o modo de textualização de cada
um dos padrões que estudamos. Além disso, pudemos compreender a
importância desses conceitos para a formação teórico-metodológica do
professor de Língua Portuguesa. A correlação entre conhecimento teó-
rico e conhecimento didático foi estabelecida na leitura e discussão das
implicações pedagógicas apresentadas ao final dos capítulos.

Discutimos ainda o lugar e o papel do texto nas aulas de Língua Por-


tuguesa: como o texto foi visto como (não-)conteúdo de ensino, como se
estabeleceram as práticas de leitura/escuta e produção textual na escola,
como as concepções de texto com as quais a escola trabalha são apropria-
das pelos alunos conceitualmente (saber dizer o que é texto) e procedi-
mentalmente (ler e escrever textos). Assim sendo, se a escola trabalha com
uma concepção de texto dissociada dos processos interacionais, o aluno
não se apropria da escrita e do texto como meio e lugar de interação.

Finalmente, vimos uma nova proposta para a disciplina de Língua


Portuguesa, o ensino operacional e reflexivo da linguagem, que toma as
práticas de escuta, leitura e produção textual (oral e escrita) como efe-
tivos conteúdos de ensino-aprendizagem. E vimos que, nessa proposta,
o texto, tomado na sua condição de enunciado, é o ponto de partida e
chegada dos processos de ensino-aprendizagem.

Assim, esperamos que, por meio deste livro, tenhamos tido a opor-
tunidade de estabelecer uma interação prazerosa e proveitosa e que o
diálogo aqui iniciado tenha continuidade em muitos outros momentos.

Os autores

153
Referências
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