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Viver não é sobreviver: para além da vida aprisionada

A iniciativa presente é das mais necessárias e dignas e vamos ver se o que eu tenho a dizer pode
contribuir um pouco para fortalecer este movimento tão importante.
Vou falar de algo simples que é a vida, não da vida em geral, mas da vida hoje, no contexto
contemporaneo, frente a duas tendências contrapostas que nos obrigam a repensar esse termo tão
antigo e cada dia mais invocado. A primeira dessas tendências pode ser formulada como segue: o
poder tomou de assalto a vida, isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência e as
mobilizou e colocou prá trabalhar em proveito próprio. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o
psiquismo até a inteligência, a imaginação, a criatividade. Tudo isso foi violado e invadido,
mobilizado e colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes.

Mas, o que são os poderes? Digamos para ir rápido, com todos os riscos da simplificação, as
Ciências, o Capital, o Estado, a Mídia, etc.. Mas, é uma resposta muito geral e excessivamente
molar pois, no fundo, o poder é muito mais esparramado, disperso, infinitesimal e molecular do que
esta frase poderia deixar supor. Em todo o caso, o que talvez seja relativamente novo é que estes
poderes se exercem de maneira positiva. Eles investem cada vez mais a vitalidade social de cabo a
rabo, intensificando-a, otimizando-a e, ao mesmo tempo, monitorando essa vitalidade social como
que por dentro, pilotando-a e integrando os seus elementos, ou seja, não é mais um poder que
reprime propriamente, mas que intensifica e incita.

Eu vou dar um pequeno exemplo: o trabalho dito imaterial, que hoje em dia ao invés de sapatos e
geladeiras, produz sobretudo imagens, informações e serviços. Ora, esse trabalho, ou melhor, a
produção desses bens requer dos trabalhadores de hoje não a sua força bruta, nem os seus
músculos, mas a sua inteligência, a sua imaginação, a sua criatividade, a sua afetividade, a sua
conectividade. Em suma, é a sua alma, é a sua vida que é requisitada no trabalho. Se antes, essas
dimensões vitais e essa inventividade pertenciam sobretudo a uma esfera subjetiva e privada, no
máximo ao campo das artes, elas são hoje um elemento essencial da produção e até mesmo a
principal fonte de valor. Ao mesmo tempo, o que nós consumimos hoje em dia, mais do que sapatos
e geladeiras, são estilos de ser, maneiras de viver, formas de vida, sentidos, subjetividade. Assim,
de uma ponta a outra do circuito econômico, isto é, da produção até o consumo, o que nos é hoje
extorquido e sequestrado, ora investido e intensificado, ora reformatado e revendido é a vida. Não
há como deixar de surpreender-se com isso.

A vampirização e a comercialização de formas de vida talvez explique uma parte da nossa


claustrofobia contemporanea. Se antes ainda tínhamos espaços preservados da ingerência direta
dos poderes, hoje estamos inteiramente submetidos. Se antes, o inconsciente e a natureza
pareciam ainda domínios invioláveis para o capital, hoje mesmo eles foram incorporados e postos
para trabalhar. Se numa sociedade dita disciplinar, ainda tínhamos a ilusão de transitar de uma
esfera institucional para a outra, com uma margem de manobra e um respiro, digamos, da família
para a escola, da escola para a fábrica, da fábrica para a caserna, da caserna para o hospital, numa
sociedade do controle como a nossa, essa margem de manobra parece ter se esvaído. Em suma, o
corpo, o psiquismo, a linguagem e a comunicação e mesmo a vida onírica, mesmo a fé, nada disso
preserva já qualquer exterioridade em relação aos poderes, não podendo, portanto, servir-lhes de
contrapeso ou de âncora crítica na resistência a eles. Os poderes operam de maneira imanente, não
mais de fora, nem de cima, mas como que por dentro, incorporando, integralizando, monitorando,
investindo de maneira antecipatória até mesmo os possíveis que vão se engendrando, ou seja,
colonizando o futuro.

É onde intervém o segundo eixo que eu gostaria de desenvolver, sobretudo em autores da


autonomia italiana. Autores que a partir de seu espinosismo e do seu marxismo singular, mesclaram
sua bagagem de luta muito concreta nos anos sessenta na Itália a uma apropriação original da
filosofia de Foucault e Deleuze. Eu resumo esse eixo da seguinte maneira: quando parece que está
tudo dominado, no extremo da linha se insinua uma reviravolta que ressignifica a própria dominação
como segunda. Eu explico: aquilo que parecia inteiramente submetido, como eu acabei de
descrever, aquilo que parecia subsumido, controlado, dominado, isto é, a vida, revela no processo
mesmo de sua expropriação, ela revela a sua positividade indomável.

Não se trata de romantizar a capacidade de revide e de resistência da vida nas relações de poder,
mas sim de repensar a relação entre os poderes e a vitalidade social na chave da imanência.
Poderíamos resumir este movimento do seguinte modo: ao biopoder, quer dizer, ao poder sobre a
vida, responde a biopotência, isto é, a potência da vida. Só que este responde não quer dizer uma
reação, já que a potência se revela como aquele avesso mais íntimo, imanente e coextensivo ao
próprio poder. Daí a dificuldade de separar o joio do trigo, de saber de que lado estamos, onde está
o poder e onde está a vida. Isso significa talvez que a própria vitalidade social, quando iluminada
pelos próprios poderes que a vampirizam, aparece subitamente como uma potência que já estava lá
desde sempre.

Potência primeira que o poder percebe e sobre a qual ele se constrói e se ancora. Potência primeira
que goza virtualmente de uma força soberana e constitutiva, inaugural e indomável. Ou seja, aquilo
que parecia inteiramente submetido ao capital ou reduzido à mera passividade, ou seja, a vida,
aparece agora ela mesma como um capital, ou melhor, uma fonte maior de produção de valor, como
reservatório inesgotável de sentido, de formas de existência, de direções que extrapolam em muito
as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos que pensavam pilotá-la. Mesmo
quando estes poderes se exercem nas suas modalidades mais acentradas, rizomáticas e
imanentes, ou seja, as forças vivas presentes na rede social deixam de ser reservas passivas à
mercê do monstro insaciável para se tornarem positividade imanente e expansiva que os poderes se
esforçam para regular, dominar ou controlar.

Nessa perspectiva, a produção do novo já não aparece como exclusivamente subordinada aos
ditames do capital, nem como proveniente do capital, muito menos dependentes da sua valorização.
Essa produção do novo está disseminada por toda a parte e constitui uma potência psíquica e
política, como diz o Maurício Lazaratto, baseado num sociólogo do século dezenove, chamado
Gabriel Tarde. Todos e qualquer um inventam na densidade social da cidade novos desejos e novas
crenças, novas associações e formas de cooperação. É uma maneira muito original de ler a
vitalidade social, que exige aqui um olhar menos reificado sobre os modos de dominação e como
que os escova à contrapelo, reencontrando a potência de variação e a força-invenção de que esses
poderes pretendem se apropriar. Força-invenção essa que não emana dos poderes.

Eu falei que a vida, ela mesma, tornou-se fonte de valôres. Em outros termos, se as maneiras de
ver, de sentir, de pensar, de morar, de vestir-se tornam-se objeto de interesse e investimento do
capital hoje em dia, elas passam a ser fonte de valor e elas mesmas se tornam um vetor de
valorização. Eu dou um exemplo simples: um grupo de presidiários ficou famoso ao compor e gravar
a sua música. O que eles estavam mostrando e vendendo era não só a sua música, nem só as suas
histórias de vida escabrosas, mas o seu estilo, sua singularidade, a sua percepção, a sua revolta, a
sua causticidade, a sua maneira de vestir-se, de morar na prisão, de gesticular, de protestar. Em
suma, a sua vida. Seu único capital sendo a sua vida no seu estado extremo de sobrevida e de
resistência. É disto que eles fizeram um vetor de valorização. É essa vida que eles capitalizaram e
que assim se autovalorizou e produziu valor.

Nas periferias das grandes cidades brasileiras, isto se amplia cada vez mais, uma economia
paralela, libidinal, grupal ou de gang, estética, monetária, política, feita destas vidas extremas. É
claro que num regime de entropia cultural como é o nosso, essa “mercadoria” interessa pela sua
estranheza, aspereza, diferença e visceralidade, ainda que também possa ser transformada em
mero exotismo de consumo descartável. É o caso do meu segundo exemplo, que é quase um
contraexemplo: alguns anos atrás, eu fui contactado por uma ONG de índios prá ajudar na vinda à
São Paulo de duas tribos do Xingú. Queriam marcar presença na comemoração dos quinhentos
anos do descobrimento, porém queriam marcar presença a seu modo, apresentando a força de seu
ritual e oferecendo ao presidente de então uma carta aberta em que declaravam nada ter a
comemorar. Eu acompanhei a viagem das duas tribos, Xavante e Meinar, que não se conheciam
entre si, uma tribo mais guerreira e a outra mais espiritual, num ônibus desde o Xingú até São
Paulo. Muitos deles nunca tinham visto uma cidade e, na minha qualidade de acompanhante e de
testemunha, eu segui o olhar deles sobre a cidade: de medo, de espanto, de fascínio. E eles
queriam que a sua apresentação para os brancos fosse um gesto de afirmação cultural, uma aposta
em sua sobrevivência no futuro. Mas, como evitar que o sentido ritual e político daquela
demonstração, uma vez levada a um palco iluminado, não se diluísse numa mera
espetacularização, inclusive televisiva?

A forma de vida que queria salvaguardar-se correu o rico de ser vista como folclore. É o que
aconteceu com a maravilhosa exposição de arte indígena que tive o privilégio de visitar junto com os
índios. Na saída dessa exposição, o cacique me desabafou, num rompante de niestzchianismo
tropical: “tudo isto é para mostrar a vaidade de conhecimento do homem branco, não a vida dos
índios”. Nunca ficou tão claro prá mim o quanto a assepsia do museu encobre de violência e
genocídio: as paredes brancas, a superfície lisa, as curvas e os corrimões metálicos, a luminosidade
cuidada. Tudo ali ocultava o quanto cada objeto exposto era o expólio de uma guerra. Não havia
uma gota de sangue em toda a exposição. A morte foi expurgada dali, mas também ali, nessa
museologização da cultura indígena, reencontramos o nosso vampirismo insaciável.

Quero acrescentar um último exemplo. Arthur Bispo do Rosário é um dos mais destacados “artistas”
da atualidade no Brasil. Se é que se pode chamar o seu trabalho, feito todo ele ao longo de dezenas
de anos de vida no hospício, de artístico. Ele, que tinha uma única obsessão na vida, a de registrar
a sua passagem pela Terra para o dia de sua ascenção aos céus, momento para o qual ele
preparou seu magestoso manto. Manto da apresentação, onde está inscrita parte da história
universal. Os museus, os críticos de arte, os colecionadores, os psicanalistas, o mercado, tomaram
de assalto essa vida singular e também o seu diálogo com Deus e toda essa missão celestial
tornou-se objeto de contemplação estética, como era de se esperar. Embora tenha semeado nos
modos de conceber a relação entre arte e vida a sua dose de estranheza.

Bem, destes tres exemplos saíram destinos variados: um bandido vira pop star dentro da cadeia; um
outro recusa justamente o mercado, com o qual ele mantém uma distância crítica; o louco é
catapultado para a esfera museológica; o índio se indigna com o modo como os brancos empalham
os signos de sua vida. Muito grosseiramente, eu diria que em todos eles o que está em jogo são
formas de vida ou a vida. Mas, ora a vida funciona como um capital, no sentido mais radical da
palavra, como fonte de valor, ora a vida é vampirizada pelo capital, chame-se ele de mercado, mídia
ou sistema da arte. Quando a vida funciona como capital, no sentido de fonte de produção e valor,
ela é capaz de reinventar as suas coordenadas de enunciação e é capaz de fazer variar suas
formas. Quando ela é vampirizada pelo capital, ela é rebatida sobre a sua dimensão nua, como diz
Agamben, de mera sobrevida, com o que nos transformamos, por exemplo, numa espécie de gado
cibernético ou cyberzumbis, como formulou Chatelêt no seu belo texto "Pensar e Viver como
Porcos".

Seria o caso agora de percorrer as duas vias maiores que eu indiquei: o poder sobre a vida e a
potência da vida, ou seja, o biopoder e as biopotências como numa fita de Moebius. Há uma espécie
de reversibilidade entre ambos. A partir dessa espécie de explanação um pouco genérica
poderíamos perguntar o seguinte: dado que o poder se encontra por toda parte e que a biopotência
é disseminada por todo lado, dada essa força-invenção presente em todo lugar, que novas redes de
vida vão surgindo? Que novas possibilidades de criar laço ou distância surgem a cada dia? Em que
sentido, por exemplo, o conceito de multidão, proposto por Tony Negri a partir de Espinosa, poderia
ajudar a pensar as sociabilidades emergentes neste contexto descrito.

A idéia de multidão é o contrário da idéia de massa. A multidão é heterogênea, plural, desprovida de


centro, de líder, de hierarquia, de uma direção unívoca, aliás, como se viu nas manifestações
recentes no Brasil. Ora, o que é comum na multidão tão heterogênea? Uma certa vitalidade
constituída de linguagem, de inteligência coletiva, de inventividade, de afetação recíproca, de
sensorialidade alargada. Poderíamos perguntar o que quer a multidão. Mais saúde, mais educação,
mais serviços, menos corrupção, mais transparencia, uma reforma do sistema político, ou algo mais
radical do que isto, menos quantificável, portanto, menos negociável, menos traduzível numa bateria
de propostas já previamente pronta. A saber, novas maneiras de exercer a sua potência, novos
modos de fazer valer seu desejo, novas formas de expressar sua libido coletiva, de redesenhar a
lógica da cidade, da coexistência, a lógica da ruptura, do dissenso, inclusive da irrupção do novo.

A multidão é um termo que tenta conjugar essas duas coisas: por um lado, o comum, por outro a
singularidade. A multidão é um conjunto de singularidades que não se tornam homogêneas, que não
são reduzidas a uma unidade. A multidão é justamente essa conjunção quase impensável de
multiplicidade e variação. É aquilo com o que o poder não sabe muito bem o que fazer. Ele tenta
regulá-la, tenta contê-la, modulá-la. Não tem nada a ver com a massa, a unidade, a medida, a
soberania no sentido clássico da palavra. E a multidão tem muito menos a ver com tudo aquilo que
pretende representá-la. Figuras políticas, midiáticas, que ora tentam falar em seu nome, ora tentam
expropriá-la da sua potência. Daí porque parte de uma resistência hoje passa pelo êxodo destas
instâncias que tentam falar em nome de um comum. E a resistência passa pela experimentação
concreta e imanente, pela constituição de novos espaços e novos tempos, pela invenção de novas
formas de cooperação e associação, pela constituição também de novos desejos, novas crenças,
como dizia o Gabriel Tarde.
Ora, nada disso é simples. Novos desejos… Eu vou me permitir um pequeno desvio a respeito
dessas expressão enigmática, mesmo que esse desvio soe totalmente deslodado neste contexto.
Uma autora espanhola, chamada Beatriz Preciado (?), que a nossa editora n-1 vai publicar em
breve, denuncia o que ela, Preciado, chama de regime farmacopornográfico. Ela mostra como
"durante o século XX, a libido, a consciência, a mesmo a heterossexualidade, a homossexualidade
foram sendo "transformadas em realidades tangíveis, em substancias químicas, em moléculas
comercializáveis, em corpos, em biotipos humanos, em bens de intercâmbio gestionáveis pelas
multinacionais farmacêuticas". O êxito da ciência estaria em transformar a depressão em Prozac, a
masculinidade em testosterona, a ereção em Viagra, etc. Diante dessa molecularização, e o termo é
concreto, não é uma metáfora, do biopoder, mesmo reconhecendo o valor da teorização dos
italianos que eu mencionei há pouco, ela considera provocativamente que a descrição dos teóricos
italianos se detém quando chega à cintura, donde a pergunta dela que vou ler para vocês rirem um
pouco: "mas, se fossem na realidade os corpos insaciáveis da multidão, seus paus e seus clitóris,
seus ânus e seus hormónios, suas sinapses neurosexuais, seu desejo e sua sexualidade, sua
excitação e sedução, o prazer da multidão, fossem eles o motor da criação de valor na economia
contemporânea? Se a cooperação fosse uma cooperação masturbatória e não simplesmente uma
cooperação entre cérebros?"

Mais radicalmente a questão se amplia: "ousemos as hipóteses: as verdadeiras matérias primas do


processo produtivo atual são a excitação, a ereção, a ejaculação, o prazer e o sentimento de
autocomplacência e de controle onipotente. O verdadeiro motor do capitalismo atual é o controle
farmacopornográfico da subjetividade, cujos produtos são a serotonina, a testosterona, os
antiácidos, a cortisona, os antibióticos, o estradiol, o álcool e o tabaco, a morfina, a insulina, a
cocaína, o viagra e todo aquele complexo material-virtual que pode ajudar na produção de estados
mentais e psicossomáticos de excitação, relaxamento e descarga, onipotência de controle total. Aqui
inclusive o dinheiro se torna o significante abstrato e psicotrópico. O corpo adicto e sexual, o sexo e
todos os seus derivados semióticos são hoje o principal recurso do capitalismo pós-fordista".
Dificilmente se encontrará descrição mais provocativa sobre o niilismo biopolítico e capitalístico
contemporianeo. Não por acaso, rigorosamente fiel à lógica de Moebius que eu descrevi no início, a
autora, ao mesmo tempo chama a atenção para a matéria que está aí sendo vampirizada pelo
capitalismo. Diz ela: "é a força orgásmica" ( ela ainda dá o nome em latim, porque quando criança
estudou em colégio religioso, onde ela pôde, como mocinha, paquerar todas as mocinhas livremente
). Diz ela: "essa potentia gaudeme ( ? ), que é a potência de excitação global de cada molécula viva
que, espinosamente falando, tende a uma ampliação ilimitada e dificilmente pode ser reduzida a um
objeto privado e comercializável, dada justamente essa sua natureza expansiva e que tende ao
comum. Mas, o biopoder se acapara desse corpo tecno-vivo, diz ela, desse tecno-eros e o que
estaria em jogo aí seria precisamente a força orgásmica, que segundo ela não pode ser pensada
como uma matéria inerte ou passiva a não ser quando ela é reduzida pela farmacopornografia,
quando é expropriada e reduzida ao que se poderia chamar de vida nua.

Bom, é óbvio que a descrição de Preciado, num certo sentido, crava na carne do presente e
percorre a latitude do biocorpo, às voltas com o que ela chama, a seu modo sempre polêmico, de
lucro ejaculante, do qual estariam por ora excluídas massas inteiras do planeta, para o bem e para o
mal.

Em todo o caso, para aleem da descrição viva de um contexto que nosso pudor tem dificuldade de
nomear, Preciado teve o mérito de oferecer o próprio corpo como uma espécie de laboratório, em
que ela experimenta voluntariamente certas derivas da sensibilidade e do erotismo a partir de um
protocolo de intoxicação voluntária à base de gel de testosterona. Ela esclarece em seu livro, que
pode ser lido como um manual de bioterrorismo de gênero na escala molecular, bem como um
exercício de desmontagem da subjetividade. Bom, se o capitalismo mobiliza tudo prá interromper,
ou melhor, ao mesmo tempo vampirizar e interromper a proliferação das intensidades do desejo…
Se o capitalismo esmaga as virtualidades não finalizadas do desejo, seria preciso retomar tudo isso
à luz de uma perspectiva que justamente coloca no centro a questão do desejo.

O desejo, segundo Deleuze e Guattari, é o irracional de toda a racionalidade. Implica uma ruptura de
causalidade. Rompe com causas e metas. A única causa do desejo é uma ruptura de causalidade e
embora se possa e se deva assinalar nas séries atuais os fatores objetivos que tornaram possível tal
ruptura, com elos mais frágeis, só o que é da ordem do desejo e de sua irrupção dá conta da
realidade. É uma posição assumida de maneira muito categórica por Deleuze e Guattari, desde o
Anti- Édipo até o final de sua obra. Eu vou pular aqui um pedaço que nos levaria muito longe.
Eu queria dizer que o desejo tem tudo a ver com a força do intempestivo, com os devires
minoritários, com as máquinas de guerra que vão se inventando em todos os contextos, inclusive
isso que vocês montaram aqui é uma máquina de guerra no interior de um campo muito mapeável.
O desejo tem a ver com todos esses acontecimentos que não podem ser reduzidos à história da
qual eles desviam. O desejo tem algo a ver com o corpo-sem-órgãos e com os agenciamentos que
fazem saltar pelos ares o esfriamento ou esse monitoramento biopolítico do sócius. Então, eu agora
vou dar um salto mortal antes de terminar, porque não é um salto de ampliação, mas um salto prá
um contexto muito singular da minha prática e que talvez tenha algo a ver com aquilo que vocês
estão tentando pensar e redesenhar. Eu trabalho já há mais de dezessete anos com uma
companhia teatral com os chamados usuários de saúde mental, numa atividade dita artística.
Companhia Teatral UEINZ. Vou falar muito pouquinho… Num extremo de vida nua, como a dos
ditos loucos, isto é, de uma vida precarizada ao máximo, desapossada de todos os penduricalhos
civilizatórios, submetida a todas as exclusões imagináveis, a todas as violências, aos
esmagamentos todos…como é que justo aí, nessa espécie de ponto zero social e psíquico, uma
subjetividade esquizo, ao invés de se tornar um obstáculo à criação estética, torna-se precisamente
a fonte maior, a matéria prima por excelência para a criação de uma obra. A vida no seu estado
extremo, tal como a do presidiário, mas mais radicalmente, revela como que o seu avesso
inesperado. Maneiras menores de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de vestir-se, de viver estão
em cena. O que é posto em cena é essa fronteira onde arte e vida se confundem, uma maneira de
representar sem representar, de estar no palco e se sentir em casa simultaneamente. De associar
dissociando, de dar a ver o horror da vida a partir de signos de gagueira, de extravio, de
desmanchamento, mas transmutando tudo isso em acontecimento jubiloso e estético. A partir da
vida nua e de um corpo que não aguenta mais as coerções e os adestramentos que sobre ele se
exercem. Não se trata aí de domesticar ninguém, de recorrer a formas de vida prontas que
compensem ou camuflem o desmanchamento, mas sim de sondar o âmago dessa
"passividade"para ali encontrar um poder de afetar e de ser afetado inimaginável. Na língua de
Espinosa, o poder de afetar e ser afetado equivale à potência. Portanto, como encontrar no âmago
da impotência, a potência máxima. Claro que a partir desse exemplo que é diminuto, é toda uma
ética que se desenha nas antípodas de qualquer fascismo ou normatização, seja nas suas versões
clássicas ou pós modernas ou pós humanas. Eu definiria essa ética da seguinte maneira: ter a força
de estar à altura da própria fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a
força. Isso é fascismo, cultivar apenas a força.

No fim da primeira apresentação que o nosso grupo fez há dezessete anos atrás, os atores
chegaram ao camarim eufóricos, felizes, preenchidos, gritando "estamos curados!" Não se trata de
acreditar nem de duvidar disso literalmente e sabe-se lá o que isso significa, mas eu diria que o
dispositivo teatro ajudou a curá-los e a nós também de uma série de cacoetes, por exemplo do
cacoete de reduzi-los a personagem exclusiva chamada doente ou doente mental, papel a que
muitas vezes eles mesmos se aferravam monocordicamente, embora quando um jornal da cidade
os chamou assim, a indignação tenha sido geral. Eles eram atores e não doentes mentais, doente
mental é o jornalista, obviamente. Seria preciso então deixar de representar monotonamente sempre
a mesma pecinha hospitalar e edipiana. Abrir portas e janelas, mudar de teatro, mudar de cena, o
que haveria de mais radicalmente analítico do que produzir uma outra cena, transformando as
coordenadas de enunciação da vida?

Eu vou em direção das minhas parcas conclusões. Talvez Foucault continue tendo razão. Hoje em
dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação, por exemplo de um povo contra o outro, e
contra a exploração de uma classe sobre a outra, é a luta contra certas formas de assujeitamento,
isto é, de submissão das subjetividades que prevalece. Como pensar as subjetividades em revolta?
Como pensar a capacidade de constituir territórios subjetivos que comportem linhas de fuga e
desterritorializações diversas? Não é fácil fazê-lo num momento em que, como diria Kafka, sofre-se
de enjôo marítmo mesmo em terra firme. Como mapear o sequestro social das vitalidades, mas
igualmente as estratégias de reavivação social de constituição de si, individual e coletiva?
Eu vou terminar com uma frase que o Kafka disse a um jovem poeta que o visitou e que trinta ou
quarenta anos depois – Kafka já havia morrido – resolveu publicar. E quando ele diz a Kafka:
vivemos num mundo destruído? Kafka responde: "Não vivemos num mundo destruído, vivemos num
mundo transtornado: tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado". Acabei!

Eu pulei uma última frase que vou ler… estou tentando abreviar o vosso sofrimento… Mas, eu vou
citar o Negri, com todas as reticências, mas é um pensador importante para o nosso terceiro
milênio…prá não ficar no veleiro destroçado como expressão final. O Negri diz uma coisa simples,
eu cito e termino com ele: "ao lado do poder há sempre a potência, ao lado da dominação há
sempre a insubordinação e trata-se de cavar, continuar a cavar a partir do ponto mais baixo. Esse
ponto é simplesmente aquele onde as pessoas sofrem… ali onde elas são mais pobres e mais
exploradas, ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e
onde, no entanto, ele existe pois tudo isso é a vida e não a morte.

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