CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos li-
bertos e sua volta à África. [2ª edição, revista e ampliada]. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 279 p. OTERO, Solimar. Afro-Cuban Diasporas in the Atlantic World. Rochester: University of Rochester Press, 2010. 247 p.
Hoje, as diferentes regiões da diás- sador norteamericano Lorenzo
pora africana são pensadas como par- Turner. Na década seguinte Pierre tes de um todo historicamente inter- Verger começou a aprofundar a ques- ligado, inclusive por viajantes e ma- tão com mais detalhe, apontando para rinheiros negros que circulavam en- o grande número de africanos que tre os diversos portos durante o tem- saíram do Brasil, expulsos ou de moto po da escravidão. Em grande medi- próprio, após a Revolta dos malês e da, esse paradigma ganhou visibili- documentando a existência, nos anos dade através de Paul Gilroy, cujo in- 1950, de uma identidade brasileira em fluente livro O Atlântico Negro várias cidades do Golfo do Benim, a (1993), examinou a comunicação di- qual persiste até hoje. nâmica entre intelectuais e artistas Nos anos a seguir, outros traba- negros em diferentes partes do Atlân- lhos acadêmicos vieram à luz, sendo tico anglófono. Contudo, nos estudos o mais notável, sem dúvida, Negros, afro-brasileiros o tropo do viajante estrangeiros: os escravos libertos e negro já era conhecido, desde Nina sua volta à África, da antropóloga Rodrigues, que, no alvorecer do sé- Manuela Carneiro da Cunha. Origi- culo XX, descreveu, num trecho co- nalmente lançado em 1985, mas es- movente de Os africanos no Brasil, gotado há anos, acaba de ganhar uma o embarque de um grupo de velhos bela reedição pela Companhia das africanos para Lagos após a Aboli- Letras. A preocupação central da au- ção. O tema das idas e vindas de li- tora é traçar os contornos da identi- bertos entre a Bahia e Lagos seria dade fragmentada dos retornados, retomada nos anos 1940 pelo pesqui- comparando suas experiências nos
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dois lados do Atlântico. Tratados que “não gozavam nem do status de como forasteiros no Brasil, também brasileiro nem das garantias de es- foram percebidos como estrangeiros trangeiros protegidos por seu país de – e se sentiram como tal – depois do origem” (p. 101). retorno à África. No Brasil, eram su- Em 1835, após a Revolta dos balternos, unidos entre si pela expe- malês, o governo provincial da Ba- riência da escravidão e da luta pela hia chegou a cogitar a deportação de alforria e ascensão social, mas, uma todos os africanos libertos, mas, ten- vez na África a bagagem cultural ad- do expulsado alguns considerados quirida no Brasil resultou ser uma suspeitos de conspirar, acabou se li- ferramenta muito útil no contexto mitando à implementação de restri- colonial africano. ções para dificultar a vida dos que A autora divide a obra em duas ficaram. Essa medida foi complemen- partes, na primeira analisa experiên- tada pela aplicação mais sistemática cia do africano no Brasil, com ênfase de uma lei imperial existente desde na Bahia, e na segunda aborda o mun- 1831, que proibia o desembarque de do dos retornados na África, com des- africanos libertos em qualquer porto taque para a cidade de Lagos, na atu- nacional. Ou seja, a lei de 1835 pro- al Nigéria. O primeiro capítulo exa- curou incentivar o africano a sair do mina a questão étnico-racial no Bra- país depois de liberto, enquanto a de sil escravista, discutindo as divisões 1831 impossibilitava sua volta. Para e as solidariedades entre pardos, cri- Cunha, esse momento marcou o iní- oulos e as diversas nações africanas, cio de um agravamento progressivo as diferentes experiências de escra- da situação dos africanos libertos no vos no meio rural e na cidade, a al- Brasil, que se acelerou com o fim do forria e os vários caminhos para con- tráfico e, paradoxalmente, não melho- segui-la. No segundo capítulo, a au- rou com o movimento abolicionista. tora explora um tema essencial para No imaginário da elite brasileira, o o seu argumento: a precariedade ju- negro, especialmente o africano, era rídica e social do africano liberto no concebido como sinônimo de escra- Brasil. Os libertos aqui nascidos, vo, incompatível com os avanços so- embora estigmatizados pelo tempo ciais representados pela transição ao vivido sob cativeiro, desfrutavam de trabalho livre, enquanto a importação certos direitos, como o de votar em de trabalhadores europeus era vista eleições primárias, se candidatar para como um símbolo de modernização ser vereador ou entrar nas forças ar- e progresso. Esse crescente clima de madas, mas esses meios de inclusão marginalização do negro, mais inten- política eram vedados aos africanos, so para o africano, teria sido o pano
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de fundo do movimento de retorno à gos, saros e agudás, conhecidos co- África. letivamente como “repatriados”, pas- Na segunda parte do livro, Cunha saram a constituir elites em relação à desloca sua atenção para a cidade de população nativa, ajudados pela fa- Lagos. Quando foi tomada pelos bri- miliaridade com os costumes e idio- tânicos em 1851, Lagos era o maior mas europeus. porto de embarque de escravos na Os saros, que falavam inglês e África ocidental. A intervenção, um seguiam o protestantismo do coloni- ano após a lei Eusébio Queiroz, foi zador, tinham certas vantagens, mas, justificada pelos ingleses como mais na disputa pelas oportunidades de um passo no combate para acabar emprego da emergente economia lo- com o tráfico negreiro. Em 1861, a cal, os brasileiros tinham habilidades cidade se tornou oficialmente um pro- mais rentáveis, consequência de seus tetorado da Coroa Inglesa. Para o afri- anos de trabalho no Brasil. Os ofíci- cano liberto que queria se reinstalar os dos homens – pedreiros, mestres de no continente natal, a cidade passou obras, marceneiros, sapateiros, ferrei- a representar um porto seguro: era o ros e diversos outros artesãos –, bem único lugar na região que oferecia como os das mulheres – lavadeiras, alguma proteção contra o risco real costureiras e quituteiras – eram valo- de reescravização. Inicialmente, o rizados pelos novos governantes. obá de Lagos cobrava um imposto Outros agudás se tornaram negocian- alto de desembarque aos retornados, tes de exportação, tratando principal- mas em 1857, com o fim da cobran- mente com o Brasil, para onde envia- ça, a cidade se tornou cada vez mais vam produtos como noz-de-cola, pano atraente para libertos chegando das da costa, sabão preto e azeite de dendê. Américas. Este último, com a extinção do tráfi- Os retornados do Brasil ficaram co, se tornou o produto mais exporta- conhecidos como agudás, provavel- do da região, em demanda no merca- mente uma corruptela de Ajudá, o do europeu como combustível e lubri- antigo nome dado pelos portugueses ficante industrial, bem como na fabri- para Uidá, onde a primeira colônia cação de velas de estearina. Com o de libertos do Brasil surgiu. Outro descobrimento de petróleo, entretan- grupo importante era formado pelos to, o preço de azeite de dendê caiu. saros, ou seja, africanos livres que ti- Mas a partir dos anos 1870 surgiu uma nham vivido em Serra Leoa após se- demanda por outro produto do rem resgatados de navios negreiros dendezeiro: o óleo extraído da amên- capturados no alto mar pelos cruzei- doa do caroço, utilizado na fabricação ros ingleses. Na nova colônia de La- de sabão e de margarina.
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Assim como no tempo do tráfico e o bumba-meu-boi. Com o passar do de escravos, no comércio dos produ- tempo, essa primeira manifestação tos do dendezeiro, Lagos era apenas o sofreu uma mudança de gênero, sen- porto de desembarque de mercadoria do reconfigurada como a “Senhora” que chegava do interior, por interme- do Bonfim. Apesar de pequenas mu- diação de atravessadores. Para o danças como esta, a persistência de retornado que procurava entrar nesse costumes brasileiros ao longo das lucrativo mercado, pertencer a um dos décadas, assim como o uso de sobre- subgrupos iorubás estabelecidos nos nomes aqui adotados e da língua por- locais de produção possibilitava apro- tuguesa eram a cola que ligava os veitar contatos preexistentes na cria- agudás, simultaneamente marcando- ção de uma rede de negócios. Esse os como estrangeiros em relação ao quadro de comércio internacional fa- resto da sociedade de Lagos. cilitava o movimento de libertos entre Não obstante essa coesão, a comu- Lagos e Brasil, mas com o tempo a nidade agudá também era heterogênea. economia da colônia passou a ser cada Os falantes de iorubá eram majoritá- vez mais atrelada ao comércio com a rios, mas também havia haussás, nupes metrópole inglesa. Em decorrência (chamados tapas na Bahia), ibos etc. disso, o número de navios que faziam Além do mais, os próprios iorubás o percurso entre o Golfo do Benim e o eram uma aglutinação de várias Brasil foi-se reduzindo. Ao longo do subetnias: oiós, ijebus, ijexás etc., com tempo, isto prejudicou a manutenção os egbás, vítimas da última fase do trá- dos laços entre os agudás e os afro- fico, sendo os mais numerosos. Um descendentes no Brasil. dos subgrupos agudás, inclusive, não Na sociedade lagosiana, os agudás compartilhava as heranças culturais se organizaram em grandes redes de brasileiras do resto, pois tinha sido clientelismo, também criando socie- escravizado em Cuba. Apesar dessa dades de ajuda mútua que assemelha- grande diferença, os agudás cubanos vam, nesse sentido, o papel desem- foram absorvidos, em grande medi- penhado pelas irmandades católicas da, pela comunidade “brasileira”, no Brasil. Através desses mecanis- devido às semelhanças linguísticas mos, os recém-chegados a Lagos se entre o português e o espanhol e à articularam com os retornados já es- religião comum, o catolicismo. tabelecidos. A coesão da comunida- O papel aglutinador do catolicis- de girava em torno da memória com- mo na comunidade agudá é o tema partilhada do Brasil, fato evidente na do quarto e último capítulo. Para Cu- perpetuação de festas populares bra- nha, a dimensão religiosa constitui o sileiras como a do Senhor do Bonfim mais importante sinal diacrítico da
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identidade agudá, em oposição ao d’Água, que deu título ao romance de protestantismo inglês adotado pelos Antônio Olinto. saros de Serra Leoa. O capítulo co- Apesar de se identificarem inten- meça traçando os primórdios da pre- samente com o catolicismo, os agudás sença católica na cidade de Lagos. resistiram a determinados preceitos, Um grupo missionário de Lyons, a como a monogamia e a proibição ao Societé des Missions Africaines culto a “falsos ídolos”. Em relação á (doravante SMA), fundou a primeira primeira questão, na impossibilidade missão católica da região em Uidá, de prevalecer, os missionários fazi- em 1861, mas em Lagos o cenário am vistas grossas, mas foram mais missionário era constituído apenas insistentes em relação à segunda, sem, por protestantes, sem sequer um pa- porém, muito sucesso. Recusando-se dre católico. Havia um religioso lei- a abandonar seus “fetiches”, os fieis go, um africano liberto que realizava argumentavam que “é preciso ter fe- ritos católicos extraoficialmente, mas tiches como se tem amigos. Quanto com a presença da SMA no Daomé mais os temos, melhor, se um não nos os agudás de Lagos reivindicaram sua ajudar, o outro o fará” (p. 196). Por própria missão, pedido que foi aten- outro lado, eram entusiásticos em dido em 1868. relação a outra questão cara aos mis- Em 1879, com recursos financei- sionários, a criação de uma escola, ros doados por agudás abastados, desde que a língua das aulas fosse o deu-se início às obras de uma igreja português. À medida que a presença – que substituiria uma estrutura mais inglesa na região foi se firmando, en- rudimentar coberta de palha –, sob a tretanto, a língua do colonizador se direção do agudá Lázaro Borges da tornou cada vez mais importante e Silva. Inaugurada em 1881 e batiza- acabou sendo adotada na escola ca- da oficialmente como Holy Cross tólica nos anos 1880. O uso do por- Church (Igreja da Santa Cruz), a igre- tuguês no cotidiano da comunidade ja foi sempre chamada de “catedral” agudá, porém, perdurou até pelo me- pelos agudás, apesar de Lagos estar nos os anos 1920. Mesmo nos anos ainda longe de tornar-se uma diocese. 1970, quando a autora realizava seu Admirada pelos ingleses, a igreja se trabalho de campo, ainda se encon- tornou um símbolo da importante travam pessoas que se lembravam de contribuição agudá à arquitetura lo- provérbios, canções e expressões idio- cal, evidente também em muitas cons- máticas levadas do Brasil. truções privadas, como a residência Negros, estrangeiros é um traba- do comerciante João Esan da Rocha, lho interdisciplinar que utiliza dados popularmente conhecida como a Casa históricos e informações etnográficas
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para desenvolver um olhar teórico Nesse sentido, também é oportu- sobre diásporas e a construção de na a publicação do livro Afro-Cuban identidades híbridas transnacionais. Diasporas in the Atlantic World, uma Nesse sentido, o livro antecipou a adaptação da tese de doutorado da importância do viajante negro para a folclorista Solimar Otero, professora diáspora africana que entraria em da Louisiana State University, sobre moda na década seguinte, também os agudás oriundos de Cuba. Com prevendo ideias sobre a fragmenta- apenas um trabalho anterior sobre o ção do sujeito e a natureza relacional assunto, os retornados cubanos per- da identidade que se tornariam cen- maneceram muito tempo na sombra trais em discussões pós-modernistas. de estudos sobre seus pares brasilei- Da perspectiva historiográfica, são os ros.1 Como Cunha, Otero cruza tra- capítulos sobre Lagos que mais cha- balho de campo etnográfico com uma mam a atenção. Fruto de minuciosa perspectiva histórica. Contudo, en- pesquisa documental em diversos ar- quanto em Negros, estrangeiros a quivos no Brasil e no exterior, essa análise dos motivos para as travessi- parte do livro permanece uma refe- as de retorno aponta para a precarie- rência ímpar. A nova edição brinda o dade política e econômica do africa- leitor com raras imagens históricas do no liberto na sociedade escravista, acervo da SMA e fotos da arquitetu- para Otero as idas a Lagos represen- ra agudá da autoria de Pierre Verger tam o retorno à pátria. E enquanto tiradas em meados do século XX. Cunha ressalta o papel do catolicis- Outra novidade é a inclusão de diver- mo em consolidar uma identidade sas fotos oitocentistas de africanos no agudá fundamentada na diferença, Brasil. Sentimos um pouco a decisão Otero se detém sobre a importância de retirar um apêndice que fazia parte da religiosidade tradicional em rein- da primeira edição, com valiosas esti- tegrar os retornados na sociedade do mativas do fluxo de libertos que to- seu continente natal. maram rumo à África e do crescimen- No primeiro capítulo, Otero apre- to da população agudá. Mas este pe- senta um panorama do período do trá- queno detalhe em nada diminui a imen- fico clandestino de escravos para sa satisfação de ver este clássico dos Cuba, que terminou apenas em mea- estudos afro-brasileiros de volta às li- dos dos anos 1860. Como no Brasil, vrarias, sobretudo neste momento nos em Cuba havia uma população con- estudos da diáspora africana, quando siderável de africanos livres, conse- a importância do viajante negro no mundo atlântico está sendo cada vez 1 Rodolfo Sarracino, Los que volvieron a mais reconhecida. África, Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1988.
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quência das apreensões de navios trocentos africanos libertos. No mes- negreiros pelos ingleses. Otero cita o mo ano, deixou a ilha voluntariamen- caso de Nicolás Lucumí, um egbá te um grupo de setenta a oitenta li- evangelizado ainda em Abeokuta e bertos a bordo do bergantim San An- capturado durante o ataque daomea- tonio, segundo Otero, rumo a Lagos. no àquela cidade em 1855. Nicolás Lagos ocupa um lugar central na teve a perspicácia de enviar uma car- análise da autora, não apenas por ser ta a sua família, que acionou os mis- o porto de embarque para o cativo e sionários de Abeokuta, com o resul- de desembarque para o retornado, tado de que o influente missionário mas porque, para a autora, a cidade saro, Samuel Crowther (futuro pri- teria sido o lugar de nascimento da meiro bispo anglicano na África), população lucumí, como os iorubás bancaria sua passagem de volta. Mas eram conhecidos em Cuba. Seguin- trata-se de um caso excepcional. As- do as ideias de Lorand Matory sobre sim como no Brasil, a grande maio- o papel de Lagos na construção de ria dos africanos livres de Cuba per- identidades iorubás diaspóricas, 2 maneceu a serviço do governo ou de Otero amplia bastante o horizonte particulares por muitos anos antes de temporal, sustentando que “uma di- vivenciar a plena liberdade. áspora lagosiana estava sendo forma- Fosse africano livre ou liberto, o da entre as classes populares da Ha- retornado de Cuba geralmente paga- vana urbana entre 1825 e 1860” (p. va ele mesmo sua passagem com ca- 43). Mas essa tese se apoia numa úni- pital acumulado ao longo de anos de ca fonte, de 1854, relativa a um pe- trabalho ou, às vezes, com lucros pro- queno grupo de 23 libertos que, após venientes de investimentos em imó- mais de vinte anos em Cuba, voltou à veis ou em escravos. Havia também África. Nos depoimentos, a metade os que tinham a sorte de acertar na deste grupo reivindicou ser “natural” loteria, porém não era muito comum. de Lagos. Enquanto essa informação Devido à proximidade de Cuba com é adotada pela autora de forma acrí- as colônias britânicas no Caribe, a tica, paira um silêncio total sobre a viagem para Lagos frequentemente acontecia em navios ingleses com 2 J. Lorand Matory, Black Atlantic Religion: escalas em Londres. Como no Bra- Tradition, Transnationalism and sil, o movimento de retorno se inten- Matriarchy in the Afro-Brazilian Candom- sificou depois de revoltas escravas. blé, Princeton: Princeton University Press, 2005, cap. 1; idem, “The English Em 1844, após a conspiração deno- Professors of Brazil: on the Diasporic minada La Escalera, teriam sido de- Roots of the Yoruba Nation”, Comparative portados para a África cerca de qua- Studies in Society and History, v. 41 (1999), pp. 72-103.
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vasta literatura historiográfica que Essa sensibilidade ter-se-ia enrai- demonstra que a maioria dos iorubás zado no pensamento cultural dos io- embarcados para Cuba nesse perío- rubás. A cidade de Lagos, ou Ekó do veio das regiões do interior con- como era então conhecida, foi fun- turbadas por guerras ao longo da pri- dada a partir dessa diáspora primor- meira metade do Oitocentos. Otero dial e agregava características cosmo- sequer comenta a evidência contrá- politas impostas por sua localização ria apresentada no seu próprio texto, geográfica, na fronteira com o reino como a do retornado Nicolás Lucumí, do Benin, a nordeste, e ao norte, com que, como vimos acima, era de Egba.3 os territórios de Egbado e Awori. No No segundo capítulo, a análise da século XIX, quando começaram as autora se desloca para o contexto soci- guerras civis no interior dos territóri- al de Lagos. O ponto de partida é um os iorubás, Lagos absorvia algumas questionamento do significado, na das pessoas deslocadas por esses con- cultura iorubá, dos conceitos de di- flitos. Nesse período também, com áspora e de dispersão. Segundo ela, a sua ascensão econômica como porto importância desses conceitos antecede do comércio negreiro, a cidade pas- em muito o tráfico de escravos, eviden- sou a ser o ponto de dispersão para a ciado pelo próprio mito de origem dos maioria dos iorubás vendidos para as iorubás, em que o pai ancestral, Odu- Américas. O caráter cosmopolita da duwa, manda seus dezesseis filhos cidade teria incentivado uma flexibi- lidade em relação às práticas cultu- saírem de Ile-Ife para diferentes re- giões para fundar os reinos iorubás, rais de outras etnias, o que faria os assim alimentando uma sensibilida- cativos exportados receptivos a no- de diaspórica singular na criação de vas práticas e costumes, entre elas, cultura e de história (p. 39). preceitos religiosos. A tendência de acrescentar práticas religiosas, ao in- vés de vê-las como mutuamente in- compatíveis, seria essencial para a 3 Entre outros, ver Toyin Falola e Matt adaptação à vida no outro lado do mar Childs (orgs.), The Yoruba Diaspora in the Atlantic World, Bloomington: Indiana e novamente durante o processo de University Press, 2004; e Jesús Guanché, readaptação depois do retorno. Africanía y etnicidad en Cuba: los com- ponentes étnicos africanos y sus múltiples Na organização social dessa cida- denominaciones, Havana: Editorial de de multiétnica, que agrupava migran- Ciencias Sociales, 2009. Neste último, tes do interior e do outro lado do mar, entre 112 variações do etnônimo lucumí encontradas na literatura, como lucumí o babá isale (cargo indicado pelo efon, lucumí ijesá, lucumí oyó etc, não chefe de uma cidade para representá- consta nenhuma referência a Ekó, o nome lo oficialmente em outro lugar) assu- nativo de Lagos.
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miu importância especial, atuando também de caráter etnográfico, o en- como chefe dos seus conterrâneos, foque se desloca para a religiosidade que estabeleciam residência na vizi- agudá. Volta à cena o príncipe saro nhança da sua casa. Assim nasceram Olosí, com vários depoimentos fas- e cresceram bairros étnicos dentro do cinantes, inclusive sobre a participa- perímetro urbano de Lagos. Os ção paralela em diferentes cultos. agudás e os saros também tinham – e Aqui também ouvimos a voz de um têm – seus chefes. Cada segmento da agudá brasileiro, Paul Lola Bamgbosé sociedade iorubá é organizado de for- Martins, que detém um posto impor- ma hierárquica: comerciantes se or- tante no culto aos ancestrais, egungun ganizam de acordo com o tipo de (o babá egun do Brasil). Seus depoi- mercadoria (vendedores de tecidos, mentos são de interesse especial para de farinha etc.), famílias designam o público brasileiro, por ser ele bis- seus chefes, grupos religiosos tam- neto do retornado Rodolfo Manoel bém o fazem etc. Esta análise, um dos Martins de Andrade, ou Bamboxê pontos mais fortes do livro, é basea- Obitikô, que também deixou descen- da em entrevistas etnográficas com dentes na Bahia, onde exerceu um um filho do chefe dos saros, Prince papel influente nos primeiros tempos Olusí, que através de sua família do Terreiro da Casa Branca. Nesta participa ativamente da governança parte do livro, também ouvimos as tradicional da ilha de Lagos. vozes de duas netas de Hilario Cam- A partir desses dados, Otero su- pos, um babalaô nascido em Cuba que gere que as formas de organização publicamente se apresentava sempre social dos iorubás influenciaram a como católico. criação de redes de sociabilidade en- Essas duas irmãs são as únicas tre os lucumís em Cuba, a exemplo descendentes de retornados cubanos dos cabildos, e que a mesma tendên- que aparecem no livro, o que enfra- cia a transportar e reconfigurar estru- quece a etnografia, em termos empí- turas sociais já conhecidas provavel- ricos. A análise de como “nostalgia, mente se reproduzia em outras partes memória e o papel da imaginação ali- da diáspora. Diante da tremenda im- mentam o senso de pertencimento” portância da hierarquia até hoje nos (p. 5), em vez de dizer respeito às terreiros de candomblé, e historica- “diásporas afro-cubanas no mundo mente dos sistemas de organização de atlântico” do título, é reduzida às par- instituições como os cantos de traba- cas memórias de duas idosas sobre lho e as juntas de alforria no Brasil, um avô que faleceu quando eram ain- esse argumento é bem plausível. da crianças. O papel da imaginação No terceiro e quarto capítulos, na construção das memórias por elas
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compartilhadas permanece elusivo. ria presentes em textos citados na pró- Não há evidência de como essas me- pria bibliografia da autora – lançam mórias se entrelaçam com – ou se dúvida em relação a suas interpreta- afastam de – acontecimentos na ções sobre a influência de Hilario micro-história da trajetória familiar. Campos na sociedade lagosiana. São escassos os dados biográficos Tradições orais são fontes precio- apresentados sobre Hilario Campos sas, mas além de proporcionar fatos (1878-1941): nasceu em Matanzas, valiosos, no sentido literal, elas tam- falava mais espanhol do que iorubá bém são narrativas metafóricas, reple- e, junto com duas irmãs, migrou a tas de omissões e inserções seletivas. Lagos como homem jovem (p. 101), O silêncio dos descendentes de onde constituiu família e, em momen- Hilario Campos sobre a família bra- to indeterminado, fundou um centro sileira com o mesmo sobrenome se cultural para retornados de Cuba, o oferece como um ponto de partida Afro-Cuban Lodge (p.73). para reflexões férteis sobre as rela- Otero retrata Hilario Campos ções entre as duas famílias e suas como um homem de grande prestígio possíveis alianças e concorrências, na comunidade agudá, “fundador de bem como as dinâmicas entre agudás um bairro inteiro” (p. 86), que teria brasileiros e cubanos de modo mais dado nome a uma praça importante geral, nada disso, infelizmente explo- no centro do bairro agudá, o Campos rado aqui. Square (p. 88). Porém, na verdade, a Negros, estrangeiros e Afro- praça foi batizada quando Hilario Cuban Diasporas in the Atlantic Campos ainda era uma criança em World são livros que, de certa forma, Cuba, em homenagem a um retornado se espelham, não apenas por se trata- brasileiro com o mesmo sobrenome. rem de agudás, mas porque ambos Romão Campos, que morava na ci- procuram compreender a construção dade desde pelo menos os anos 1860, dessa identidade diaspórica. Porém, tinha uma loja de tecidos e ferragens na praça, que em 1885 já levava seu nome.4 Essas informações – a maio- Lagos Standard, 15/1/1886, apud Verger, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de To- 4 Lagos Land Registry, “Plan of the Town of dos os Santos, 4ª ed., Salvador: Corrupio, Lagos, 1885”, apud Jean Herskovits 2002, p. 660. Romão Campos morava em Kopytoff, A Preface to Modern Nigeria: the Lagos desde pelo menos os anos 1860, “Sierra Leonians” in Yoruba, 1830-1890, recebendo um terreno do obá em 1868: Madison: University of Wisconsin Press, Lagos Land Registry, Dosomu Crown 1965, pp. 91-3; A. B. Laotan, The Torch Grants, vol. 3, 1/mar/1868-18/mar/1869. Bearers, or, Old Brazilian Colony in Lagos, Agradeço a Kristin Mann por disponibi- Lagos: Ife-Olu Printing Works, 1943, p. 12; lizar esta informação.
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enquanto Cunha a enxerga através da tima autora, até a publicação do seu lente do eterno forasteiro, Otero dá livro, a história dos agudás era “pra- destaque ao sentimento de pertenci- ticamente desconhecida” (p. 10). O mento transatlântico. Outra diferen- desconhecimento, entretanto, é da ça reside na base empírica das pes- academia anglófona. Na esperança de quisas. Se Cunha surpreende o leitor que isso seja revertido, ficamos no com a fartura, Otero promete mais do aguardo de uma tradução para o in- que cumpre. De acordo com esta úl- glês de Negros, estrangeiros. Lisa Earl Castillo lisa.earl.castillo@gmail.com Bolsista Fapesp de Pós-Doutorado Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP