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MASARYKOVA UNIVERZITA

FILOZOFICKÁ FAKULTA

ÚSTAV ROMÁNSKÝCH JAZYKŮ A LITERATUR


PORTUGALSKÝ JAZYK A LITERATURA

Marek Atanasčev

Santo Ofício - a força determinante em “O Judeu”


de Bernardo Santareno

Magisterská diplomová práce

Vedoucí práce: Mgr. Silvie Špánková, Ph.D.

Brno 2012
Prohlašuji, že jsem diplomovou práci vypracoval samostatně s
využitím pramenů uvedených na příslušném místě. Taktéž
prohlašuji, že se tištěná verze práce shoduje s verzí
elektronickou.

..........................................

Marek Atanasčev
Na tomto místě bych především chtěl vyjádřit svůj velký vděk paní Mgr.Silvii
Špánkové, Ph.D. za velmi vstřícné a pečlivé vedení práce. Děkuji Vám mnohokrát za
cenné rady, připomínky a velkou ochotu, které si nesmírně váţím.
Také děkuji všem vyučujícím, se kterými jsem měl tu čest se poznat během svého
vysokoškolského studia a kteří se naprosto zásadním způsobem zaslouţili o to, ţe jsem
byl schopen tuto práci napsat.
A také děkuji své rodině za podporu během psaní a během studia.
Índice

1 INTRODUÇÃO................................................................................................. 1

2 BERNARDO SANTARENO............................…………............................... 3

2.1 Teatro na época de Bernardo Santareno................................................. 3

2.2 Vida de Bernardo Santareno................................................................... 7

2.3 Teatro de Bernardo Santareno................................................................. 9

3 ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA, O JUDEU.......……………………………… 13

3.1 António José da Silva, o Judeu – a vida real.........…………….............. 13

3.2 Judeus – uma história antiga................................................................... 17

3.3 Inquisição................................................................................................ 25

3.4 Formação da Inquisição e cristãos-novos em Portugal........................... 28

4 O JUDEU........................................................................................................... 33

4.1 António José da Silva, o Judeu – a obra de Bernardo Santareno............ 33

4.2 O Judeu – a acção.................................................................................... 34

4.3 O Judeu – resumo da acção..................................................................... 37

5 SANTO OFÍCIO............................................................................................... 45

5.1 Santo Ofício – um tema ficcional na literatura portuguesa..................... 45

5.2 Santo Ofício – a força determinante em O Judeu................................... 48

6 CONCLUSÃO................................................................................................... 65

7 BIBLIOGRAFIA............................................................................................... 67
1 Introdução

A personagem de António José da Silva desempenha um papel importantíssimo


no campo teatral do século XVIII. Uma personagem iluminada, cujas obras teatrais
ainda hoje em dia dirigem as palavras às massas largas, sendo sempre actuais por
criticar os vícios humanos, chama atenção e causa admiração não só pela sua
contribuição cultural, mas também pela sua vida que é inseparavelmente relacionada
com um fenómeno fascinante que apavorava toda a Europa – a Inquisição.
Esta estreita relação entre a personagem e o Santo Ofício tornou-se inspiração
para muitos livros, filmes e peças de teatro os quais captam a vida desgraçada do
dramaturgo da origem judaica que viveu em plena altura da opressão inquisitoral que o
levou, por fim, até a morte no auto-de-fé.
Entre os autores que retratam o destino do pobre cristão-novo pertence também
António Martinho do Rosário, ou seja, Bernardo Santareno, autor que sentia uma
opressão parecida com aquela inquisitoral e que se decidiu lutar contra ela, utilizando a
mesma arma poderosa como o seu antecessor do século XVIII – o teatro.
O nosso trabalho, portanto, dedica-se à obra O Judeu de Bernardo Santareno que
em primeiro lugar tenta advertir para os problemas sociais e despertar a actividade da
sociedade portuguesa perante o sistema depravado do Estado Novo. Porém, a nossa
intenção principal é analisar e comentar o processo inquisitoral de António José da Silva
e toda a actividade do Santo Ofício de maneira como os apresenta o autor de O Judeu na
sua obra .
O primeiro capítulo do nosso trabalho dedica-se à situação do teatro português na
época contemporânea de Bernardo Santareno e ao contexto histórico que a influenciou.
Do próprio autor da peça e da sua obra tratamos no capítulo seguinte que apresenta os
aspectos que influenciaram o dramaturgo na sua formação e na sua relação com o teatro,
comentando os maiores temas da sua criação teatral.
Em seguida referir-nos-emos à vida real da personagem principal de O Judeu,
António José da Silva, e à sua origem judaica, esclarecendo os factos mais importantes,
do ponto de vista histórico, que formam o comportamento dos crentes judaicos mesmo
como da personagem principal.
Após uma apresentação dos factos históricos que contribuíram à formação dos
Tribunais inquisitorais em toda a Europa, dedicamo-nos ao estabelecimento do Santo
1
Ofício em Portugal e à relação entre este e os cristãos-novos. O quarto capítulo é
dedicado à acção de O Judeu, nesta parte do trabalho tratamos da estrutura da peça e
resumimos toda a acção, mencionando as partes mais importantes para o seu
entendimento.
Depois de uma curta referência à relação da história e ficção, prosseguiremos com
a análise do processo inquisitoral de António José da Silva e da actividade do Santo
Ofício na obra. Através dos discursos e da descrição da cena tentaremos identificar
aquelas que pensamos serem as marcas determinantes para o processo inquisitoral e
para a actividade da Inquisição no mundo de O Judeu.
Ao longo do trabalho tentaremos introduzir os factos novos relativamente à obra
de Bernardo Santareno, principalmente os factos históricos que desempenharam o papel
central na construção do universo da obra analisada.

2
2 Bernardo Santareno
2.1 Teatro na época de Bernardo Santareno

Antes de podermos analisar a obra de Bernardo Santareno, temos que perceber o


contexto histórico-cultural da época, na qual surgiu a sua obra, que de uma maneira
fundamental influenciou a produção teatral, mesmo como toda a sociedade portuguesa.
Principalmente, na segunda metade da década de 60 vivia-se em Portugal em
tempo de crise com uma grande esperança de que algo podia mudar, assim como
acontecia em todo o mundo ocidental, o que tinha a ver com a subida ao poder de
J.F.Kennedy1 nos EUA. A sociedade portuguesa confrontava-se naquela altura com a
árdua realidade quotidiana: guerra colonial, incapacidade económica do país, opressão
do Estado cada vez mais visível, conflitos de gerações e outros.
O teatro, como uma expressão artística que estabelece uma relação imediata com
o público e que pode reflectir criticamente a realidade nos seus símbolos mais ou menos
ocultos, apoiando assim o espírito liberal e o desejo de revolução contra o sistema
antigo, foi por estas razões um perigo para o regime do Estado Novo e foi
marcadamente vitimado pelos rigores da censura salazarista e caetanista.
Luiz Francisco Rebello afirma que “(...)durante quase meio século, entre 28 de
Maio de 19262 e 25 de Abril de 19743, uma censura tríplice – ideológica, económica e
geográfica – reprimiu, condicionou e restringiu o desenvolvimento do teatro em
Portugal.(...)”4
A censura ideológica, continua Rebello, deixava sair no palco só aquelas obras
que convinham ao regime e não perturbavam com as suas ideias a tranquilidade da
convivência social. As obras dos autores dramáticos, que muitas vezes foram presos e
até proibidos de desempenhar a profissão deles, antes da estreia sofriam várias leituras
pelos órgãos repressivos do Estado.5 José Oliveira Barata acrescenta ainda que “(...)a
primeira era feita por uma Comissão de Censura, que constituindo-se em verdadeira

1
J.F.Kennedy: John Fitzgerald Kennedy (1917-1963) foi 35° Presidente dos EUA entre 1961 e 1963 considerado
uma das maiores personagens do século XX.
2
28 de Maio de 1926: A Revolução de 28 de Maio de 1926 também conhecida pela denominação Revolução
Nacional, um golpe que pôs termo à Primeira República Portuguesa e que iniciou um processo que viria a acabar
com a implantação do regime ditorial do Estado Novo em 1933.
3
25 de Abril de 1974: Um golpe militar conhecido como a Revolução dos Cravos ou também conhecido pela
denominação de 25 de Abril que depôs o regime do Estado Novo.
4
REBELLO, L.F.: Combate por um teatro de combate. Lisboa: Seara Nova, 1977, pp. 25-40.
5
Ibidem. pp. 25-40.
3
Mesa Censória, cortava a seu belo prazer, quadros ‹‹menos recomendáveis›› ou,
inclusive, toda a peça.(...)”6
Ao falarmos da censura assim chamada económica, como continua Rebello,
podemos falar apenas das apresentações dos espectáculos do âmbito comercial,
marginalizando os grupos de teatro indipendentes, amadores e universitários que são
constituidos na maioria pelos jovens, mesmo como acontece também hoje em dia, e,
portanto, são consideradas como os detentores das ideias novas e das mudanças sociais
o que, claro, não convinha ao regime salazarista e caetanista.7 “(...)Entre o teatro para
vivos e o teatro digestivo – comercialmente gerido por grandes empórios teatrais – este
ganhava e era mais tolerado( embora também ele tivesse que prestar contas à
censura!),(...)”8 visto que os teatros comerciais apresentavam só as peças certificadas
que não causavam rebeliões contra o regime.
Finalmente, a censura geográfica reduzia a possibilidade de assistir a espectáculos
teatrais, concentrando a actividade teatral exclusivamente em Lisboa e no Porto.
Em consequência disto, a publicação de uma peça de teatro e também o próprio
processo de escrever tornou-se para um dramaturgo português muito difícil,
principalmente divido à censura ideológica, o que se reflectiu nas obras dos vários
autores do teatro, incluindo entre eles também Bernardo Santareno, como demonstra o
seguinte trecho da sua obra Português, Escritor, 45 Anos de Idade que foi escrita entre
os anos 1973 e 1974 e que apresenta vários paralelos com a própria vida não só do autor
“(...)mas de todos os que( artistas ) compreendiam o insustentável beco em que vivia a
cultura portuguesa(...)”9:

“(...)Tenho quarenta e cinco anos e... estou farto, cansado, já não acredito em nada. Esta
será a minha última peça. Estou desesperado, a vida dói-me horrivelmente. Sim, esta
representação é, gostaria que fosse, uma despedida. Uma despedida sem amor. Perdi tudo.
O que lhes possa acontecer a vocês, espectadores, mesmo aos mais jovens, já não me
interessa. Esperança, progresso, luta, futuro, beleza, camaradagem, povo, juventude... são
papéis rasgados para mim. Tiraram-me tudo. Já não posso mais. Esta, repito, será a minha
última peça. Uma peça autobiográfica.(...)”10

Perante esta situação adversa à produção teatral os dramaturgos não estavam


contentes e procuravam vários mecanismos de defesa. Optava-se pelas novas
6
BARATA, J.O.: História do teatro português. Lisboa: Universidade Aberta, 1991, p. 353.
7
REBELLO, L.F.: Combate por um teatro de combate. pp. 25-40
8
BARATA, J.O.: A presença do trágico em Bernardo Santareno. Coimbra: Separata de biblos, 1990, p. 213.
9
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. Porto: Contraponto, edições, 1983. p.26.
10
SANTARENO, B.: Português, Escritor, 45 Anos de Idade. Lisboa: Ática, 1974, p. 42.
4
possibilidades de continuar com o ofício teatral e com a sua função de intervir nas
questões sociais, superando as dificuldades resultantes da auto-censura oficial. Os
escritores unificaram-se, tendo o mesmo objectivo do esforço, e tentavam resolver a
situação dolente(sem qualquer maior sucesso) como comprovam, por exemplo, os
seguintes trechos da carta mandada pela Sociedade Portuguesa de Autores ao Secretário
de Estado da Informação:

“(...)Referimo-nos aos obstáculos de natureza administrativa que, habitualmente,


desfrontam as obras dramáticas dos autores portugueses e as impedem de cumprir o seu
normal destino – que é o de serem representadas.(...)

(...)O problema não é novo, e sobre ele se têm debruçado, com justificada inquietação, não
só especialistas de teatro – nomeadamente autores e críticos – mas ainda personalidades e
organismos oficiais. Ainda recentemente a ele aludiu o Presidente da Corporação dos
Espectáculos, no discurso que proferiu no seu acto de posse. Mas, porque tem vindo a
agravar-se de forma inquietante non últimos anos, não podia a Sociedade Portuguesa de
Autores alhear-se dele, nem o seu Conselho Direitor abster-se – sob pena de trair o mandato
que pelos autores nacionais lhe foi confiado – de chamar para ele a atenção de quem, como
V. Ex.a, superintende nesta matéria.(...)

(...)Já dizia Garrett, há quase século e meio, que a existência de um teatro português era
‹‹uma questão de independência nacional››, e isto porque ‹‹o teatro é um grande meio de
civilização, mas não prospera onde a não há: não têm procura os seus produtos enquanto o
gosto não forma os hábitos e com eles a necessidade››. Que deveremos então dizer se os
poderes públicos – a quem especialmente compete defender e preservar a produção
intelectual da Nação -, em vez de estimular o hábito e o gosto do teatro, antes os
desencorajam?(...)”11

Porém, tomando as experiências com as novas formas estéticas no estrangeiro, os


dramaturgos em Portugal “(...)encontraram na fábula histórica ou – como alguns
preferem na parábola histórica – uma forma (disfarçada é certo!) de recuperar as raízes
populares historicamente documentadas.(...)”12
Em consequência disto, vários dramaturgos portugueses consideravam na altura a
História como uma matéria que serve de um exemplo e que pode mediar uma lição aos
espectadores porque “(...)apesar da história não se repetir, o passado assume um enorme
peso na interpretação do presente.(...)”13
Portanto, a História no teatro português abriu aos dramaturgos um espaço ainda
não elaborado, oferecendo-lhes uma boa escala dos temas e novas interpretações. Pode-

11
REBELLO, L.F.: Combate por um teatro de combate. pp. 165-166.
12
BARATA, J.O.: História do teatro português. p. 356.
13
Ibidem. p. 356.
5
se dizer que se tratava “(...)antes de um novo olhar; preconizava-se uma nova praxis
teatral. Era evidente a lição de Brecht14.(...)”15
O teatro brechteano, também chamado o teatro épico ou teatro crítico, é aquilo
que por meio do carácter demonstrativo tenta mudar a percepção do espectáculo teatral
e força os espectadores à actividade.
Por este termo designa-se o estilo de encenação que sublinha o carácter histórico
da realidade apresentada, na qual se evidencia um acontecimento ou uma personagem
do passado numa luz social e histórica que é relativa e mudável. O público é provocado
para que mantenha um distanciamento em relação ao espectáculo, ou seja, o espectador
não deve deixar-se influenciar nem pela tragicidade, nem pela comicidade ou ilusão e
assim deveria chegar a conclusão que a sua própria realidade é histórica e pode ser
criticada e modificada.
O teatro de Brecht refere-se a uma estratégia dos símbolos: os actores apresentam
uma realidade através de um sistema de símbolos que são por um lado estéticos, isto
quer dizer que são enraizados num material ou numa arte cénica, mas também por outro
políticos – não só que representam passivamente uma realidade, mas também devem
criticá-la. Este sistema, portanto, não cria uma filosofia rígida que oferece aos
dramaturgos os esquemas semifabricados, pelo contrário criam-se possibilidades de
encenar as novas peças de acordo com as exigências da época do próprio autor de uma
peça e as ideologias que surgem nela.
Segundo José Oliviera Barata, entre os temas mais tratados na época do Estado
Novo, aqueles que mais ofereciam aos espectadores uma reflexão didáctica e seguiam
as regras brechtianas, pertenceram: o Sebastianismo, as revoluções e a Independência
Nacional e as figuras históricas, institucionalizados e marginais.
O Sebastianismo é um mito popular que se criou em Portugal depois da batalha de
Alcácer-Quibir, na qual desapareceu o rei D. Sebastião. Sem herdeiros ao trono, esta
batalha tornou-se fatal para o reino de Portugal, acabando por ser anexado pelo rei de
Espanha, D. Filipe, ao seu império. Durante o domínio espanhol criou-se o
Sebastianismo segundo o qual D. Sebastião retornaria para restaurar o império
português. Na altura de 60 em que se vivia em crise nacional, mesmo como tinha

14
Bertolt Brecht( 1898-1956 ): Um dramaturgo, encenador e poeta alemão. Os seus trabalhos dramáticos e
teóricos influenciaram fundamentalmente o teatro moderno em todo o mundo.
15
Ibidem. p. 356.
6
acontecido na época do domínio espanhol, a figura de D. Sebastião surgiu como um
símbolo de esperança e de uma nova Restauração de Portugal.
Às obras que tratam este tema pertencem El-Rei D. Sebastião( 1949 ) de José
Régio, O Indesejado( 1951 ) de Jorge de Sena e O Encoberto( 1969 ) de Natália
Correia.
As revoluções liberais que aconteceram em Portugal ao longo da sua história
serviam na época, à qual nos dedicamos agora, como exemplos dos movimentos
populares que tinham estabelecido as condições novas no país, aplicando assim do
ponto de vista liberal uma nova ordem justa. Os dramaturgos procuravam demostrar os
mecanismos destes eventos históricos, as suas causas e também as suas consequências.
No grupo dos autores e obras que tratam deste tema no teatro podemos enquadrar:
José Cardoso Pires e O Render dos Heróis( 1960 ), Luís Sttau Monteiro e Felizmente
Há Luar!( 1961 ), Miguel Franco e O Motim( 1963 ).
O terceiro grupo dos temas acima mencionados tenta captar as histórias
particulares das pessoas que se puseram contra a ordem oficial representada pelos
órgãos da opressão, sendo assim os verdadeiros combatentes pelo progresso e pela
justiça social. Estas histórias individuais possibilitaram aos dramaturgos retratar o
passado, aplicando um novo olhar ainda desconhecido e desconstruindo a imagem
histórica que tinha sido criada pelos apoiantes do regime para que obedecesse às
verdades convenientes da corrente oficial.
A este grupo pertencem os autores e as obras como: Romeu Correia e Bocage(
1965 ), Luzia Maria Martins e Bocage Alma sem Mundo( 1967 ), Fernando Luso Soares
e A outra Morte de Inês( 1968 ).
No terceiro grupo, além dos nomes mencionados, podemos enquadrar também a
personagem de Bernardo Santareno e a sua obra O Judeu( 1966 ), que será o objecto de
análise nas próximas páginas do trabalho apresentado.

2.2 Vida de Bernardo Santareno

António Martinho do Rosário nasceu no dia 19 de Novembro de 1920 em


Santarém. Mais tarde adopta o seu pseudónimo Bernardo Santareno, um símbolo da
homenagem da terra onde nasceu.
7
Aos 30 anos, em 1950, o escritor licenciou-se em Medicina na Universidade de
Coimbra, especializando-se em psiquiatria. Posteriormente começou a trabalhar em
vários navios-hospital e este trabalho inspirou-o a escrever um livro de crônicas, Nos
mares do fim do mundo, onde resume as suas impressões e experiências da viagem no
mar como médico e que publicou em 1959. A sua carreira medical, portanto, não lhe
impediu de dedicar-se à actividade literária e, principalmente, dramatúrgica que se
tornou com o andar do tempo a sua única profissão.
Em 1954, estreiou-se no campo literário com o conjunto de poemas chamado A
morte na raiz. No ano seguinte publica Romances do Mar e dois anos depois, em 1957,
seguem Os olhos da víbora.
Desde 1957, começa com a sua produção dramatúrgica. Neste ano foram
publicadas em conjunto as suas três primeiras obras teatrais: A promessa, O bailarino e
A excomungada.
Após esta data, a actividade de Santareno no campo teatral aumenta e a sua obra
torna-se imensa. Em 1959, escreve O Lugre e O Crime da Aldeia Velha. Em 1960,
seguem-se as obras António Marinheiro e Os Anjos e o Sangue. As peças O Duelo, O
Pecado de João Agonia e Irmã Natividade foram publicadas em 1961. Em 1962, surge a
peça Anunciação que é considerada a última obra da primeira fase da escrita de António
Martinho do Rosário.
Até 1962, segundo vários críticos16, a obra de Santareno baseava-se
principalmente na dramática tradicional. Alguns críticos afirmam que a pausa
significativa, que o autor fez desde 1962 até 1966, surgiu com o propósito de reflectir e,
a seguir, encontar novas formas teatrais europeias.
É preciso mencionar que, além da mudança formal que ocorreu durante o
intervalo na escrita do autor, as obras da segunda fase ligam-se mais tematicamente às
questões políticas e sociais. Ele próprio diz que:

“(...)O que há a fazer, para já, é construir um ideal-programa de teatro para as massas em
que a linha temática directiva assente sobre aqueles factos incontestáveis, aquelas verdades
que, qualquer que seja o ângulo político, religioso, sociológico ou ético sobre que sejam
observados, serão sempre sinal de injustiça: e testemunhar e desmascar e, sempre que
possível, anunciar a terapêutica.(...)”17

16
Como p.e. José Barato Oliveira e Luiz Francisco Rebello.
17
SANTARENO, B.: Manuscrito ‹‹cortado›› pela Censura. Publicado in Vértice, n.o 440-441, 1981. pp. 77-9.
8
É como se Santareno pensasse na responsabilidade do papel que desempenha o
autor teatral na época da opressão e crise humana e, portanto, com um grande empenho
opta por intervir e influenciar o ambiente na sociedade portuguesa, lutando desta
maneira contra o regime repressivo.
Esta afirmação é apoiado pelo facto que “(...)após a pausa de quatro anos, surgem
os frutos maduros e inovadores: O Judeu (1966 ), O Inferno ( 1967 ) e, finalmente, em
1969, A Traição do Padre Martinho.(...)”18
Em 1974, após um novo interregno temporal, o escritor publica mais uma peça de
grande importância. Trata-se da obra já acima mencionada Português, Escritor, 45 anos
de idade que apresenta várias marcas autobiográficas nas quais se evidencia uma grande
frustração e desespero do dramaturgo português da época. Esta obra, por criticar
abertamente o sistema de opressão do Estado, alcançou grande êxito após 25 de Abril.
No mesmo ano o escritor escreve ainda outros três quadros: Os vencedores de
esperança, A guerra santa e O milagre das lágrimas.
Um ano antes da sua morte, em 1979, o autor publica um conjunto teatral
chamado Os marginais e a revolução. Este conjunto reúne tematicamente quatro peças
de um acto: Restos, A Confissão, Monsanto e Vida breve em três fotografias.
O Punho, a última obra do escritor, surgiu em 1980. Neste mesmo ano no dia 30
de Agosto, aos sessenta anos de idade, António Martinho do Rosário faleceu no hospital
Santa Cruz, em Carnaxide – Lisboa. Bernardo Santareno morreu após uma vida cívica e
literária intensa, deixando uma marca significante na cultura portuguesa que toca vários
domínios da vida nacional. Além de um livro de crônicas, três conjuntos de poesia e
numerosas peças de teatro o autor escreveu em vários jornais e revistas como por
exemplo Jornal de Letras e Artes e Revista Autores. Ao longo da sua vida este grande
cidadão português da segunda metade do século XX lutou contra o regime e a sua
opressão, lutou com uma arma específica - com teatro.

2.3 Teatro de Bernardo Santareno

Como já foi mencionado acima, a avaliação da escrita de Santareno pode ser, por
um lado, dividida nos períodos diferenciados do ponto de vista da elaboração formal das

18
BARATA, J.O,: História do teatro português. p. 381.
9
suas obras. Isto quer dizer que no início da actividade teatral de António Martinho do
Rosário evidencia-se nas suas peças “a influência de modelos que poderíamos situar
próximo dos processos dramáticos naturalistas e realistas(...)”19 e que mais tarde o autor
opta pelas novas formas do teatro brechteano.
José Oliveira Barata afirma, parafraseando as suas palavras, que as fases ou ciclos,
a que por vezes se pretende reduzir a produção de Bernardo Santareno, se poderão
aceitar só por conveniência metodológica. Barata também sublinha o trabalho de Álvaro
Cardoso Gomes que procedeu a este tipo de tratamento, procurando traçar uma linha
evolutiva para o teatro de Santareno.20 O mesmo tratramento aplicamos também nós em
capítulo 2.2.
Por outro lado, temos que reparar em certa unidade temática que está presente,
mas também oculta sob várias técnicas teatro-textuais, em todas as peças do autor.
Trata-se do elemento do trágico, um arquétipo que faz parte da vida dos seres humanos
e, por seguinte, do teatro que tenta reflectir os seus destinos que sempre têm servido de
uma das maiores inspirações. Achamos que este elemento importante na obra do autor
resulta da sua profissão do médico, ainda por cima psiquiatra, que testemunhava todos
os dias a tragédia de várias pessoas e compartilhava com elas as suas dores. Isso
comprova a afirmação de José Oliveira Barata que declara que Santareno “como o
‹‹médico literário›› soube detectar, no agonismo de alguns ‹‹casos›› clínicos, a força
dramática que surge protagonizada em muitas das suas principais personagens.(...)”21
Portanto, o mundo trágico do autor está mergulhado dentro das influências
tradicionais e modernas europeias do teatro. O mundo onde cada um luta pela sua
própria sorte, muitas vezes ultrapassando os limites estabelecidos pela sociedade e,
consequentemente, tornando-se o marginal que demostra a podridão da sociedade e das
suas regras as quais podem ser vistos por alguns como patológicos. Trata-se da
“realização integral do homem, de harmonia procurada( através do desespero, da
luxúria, do crime e da santidade ).(...)”22 Cada um, então, escolhe o seu próprio caminho
como atingir o seu alvo – a felicidade completa e a harmonia.

19
Ibidem. p.
20
BARATA, J.O.: A presença do trágico em Bernardo Santareno. p. 219.
21
BARATA, J.O.: História do teatro português. p. 380
22
Ibidem. p.
10
E pode, na verdade, uma pessoa alcançar a felicidade completa através da luxúria
ou do crime? Ou através da santidade? Qual é o caminho que nos leva aos nossos
sonhos? E qual é aquele que conduz à beira do abismo?
Decifrando o núcleo duro do teatro de Santareno, descobrimos que o autor
interroga os espectadores e dá origem aos pensamentos e questões essenciais sobre a
nossa existência. O autor não só que sugere as perguntas, mas também ele próprio tenta
desta forma encontrar as respostas que não conhece. O que será caso não encontremos a
harmonia? “Na difícil busca do equilíbrio desejável, mas nem sempre alcançado, a
solução redentora, na maior parte das vezes, só é possível( e reparadora do equilíbrio
perdido ), no quadro de uma liturgia trágica de sangue, lágrimas e desespero.”23
As personagens que aparecem na obra de Bernardo Santareno são as pessoas reais,
no entanto, sem rosto usam as máscaras teatrais, lutando contra o mundo real com todos
os seus horrores de maneira como eles sabem. “Talvez por tudo o que sumariamente se
enunciou, se possa ver o teatro de Santareno como uma procura sistemática de
psicanalisar o pathos português.”24
Em consequência disto, os grandes núcleos temáticos na obra de Bernardo
Santareno são aqueles que circulam em volta da vida quotidiana e fazem parte
inseparável dela. Os temas como o amor ou a religião aparecem no teatro santareniano
representados de várias formas, assim como os oferece a própria vida. Encontramos,
portanto, “(...)o amor vivido( mal vivido ) e constantemente policiado por regras sociais,
dentro de comunidades com uma estrutura tipicamente fechada, onde as frustrações, o
ciúme, o sexo, a carne, o instinto humano, são os grandes polos de tensão para tragédias
portuguesas, onde Bem e Mal assumem valores determinantes.(...)”25
Bernardo Santareno demonstra como o amor ou a religião podem ser vistos,
interpretados e usados de duas partes opostas. A religião ou a fé pode apoiar os crentes,
mesmo como pode desenvolver-se no fanatismo cego. “O amor pode sublimar-se em
valores religiosos, o fanatismo pode levar( e leva regra geral ) ao desequilíbrio de
personagens que, diria o ‹‹médico››, passam a pertencer ao foro clínico.”26
Através destes extremos Santareno choca os espectadores, desnuda sem
contestação a sociedade portuguesa e comprova a existência dos “(...)conflitos, alguns

23
Ibidem. p. 384.
24
Ibidem. p. 385.
25
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 24.
26
Ibidem. p. 24
11
dos quais acabam por se resolver pelo suicídio, pela luta, pelo sacrifício do bom, numa
liturgia trágica de sangue, lágrimas e desespero(...)”27, alertando para que seja posto fim
a esta realidade cruel.

27
Ibidem. p. 25
12
3 António José da Silva, o Judeu
3.1 António José da Silva, o Judeu – a vida real

Ao entrarmos no capítulo três recuamos no tempo e vamos dedicar-nos a uma


época que pode ser chamada na história de Portugal como a época ou século de ouro
devido à riqueza proveniente das suas colónias, afastando-nos do século XX e de todos
os aspectos que estão relacionados com ele, apesar de podermos encontrar vários
paralelos.
Na segunda metade do século XVII a ciência chegou ao novo entendimento do
mundo através da observação e experimento que se estendeu quase em toda a Europa.
Este novo entedimento chegarou ao máximo no século seguinte. Os filósofos e
cientistas nessa altura davam ênfase à razão e habilidades humanas e tentavam encontrar
os novos métodos de pensar. Falava-se então do governo iluminista que foi iluminado
pela luz da razão que estimulava uma revolução contra o regime antigo não só nas
questões religiosas, que afirmavam o sentido da vida humana na salvação póstuma, mas
também nos aspectos sociais.
Principalmente, na França e na Inglaterra o iluminismo tornou-se praticamente a
única corrente intelectual que estabeleceu a nova forma da hierarquia social e do
sistema governamental, baseando-se sobretudo nas obras teóricas de John Locke28 e
Thomas Hobbes29 e abrindo a esfera política à burguesia, o que possibilitou uma relativa
estabilidade política internacional, divido à concentração intensificada nos assuntos
políticos do nível nacional.
Portugal era, porém, o caso especial. “O reinado de D. João V, para a história o
Magnânimo, caracteriza-se pelo esplendor fictício de uma administração que assentava,
por excelência, na riqueza do ouro que vinha do Brasil.”30
D. João V recebeu de herança um reino depois do domínio espanhol, que tinha
acabado em 1640. O seu reino apresentava várias marcas intensas do atraso quer social,
quer económico. A pobreza do país era visível em todos os lados e era preciso de

28
John Locke( 1632-1704 ): um filósofo inglês, ideólogo do liberalismo e um dos principais teóricos do contrato
social que assentou as bases ao sistema do poder moderno que se baseia nas ideias resultantes do iluminionismo.
29
Thomas Hobbes( 1588-1679 ): um matemático, teórico político e filósofo inglês. Foi o antecessor de Locke
que elaborou a sua ideia do contrato social.
30
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. pp. 18-19.
13
realizar reformas. “Nunca, porém, o caudal económico que as fontes do Brasil
forneciam foi bem aproveitado.”31
É de admitir que D. João V fez-se conhecido pelo seu grande ardor pela erudição
e cultura. Durante o seu reinado foi fundada a Biblioteca Universitária em Coimbra ou,
em 1720, a Academia Real da História e o próprio Rei estudava a matemática e
dedicava-se à observação astronómica e magnética. Geralmente, o interesse pela cultura
naquela altura crescia e o ouro que vinha do Brasil na maioria liquidava as despesas da
corte real que era mergulhada nas grandes festas. José Oliveira Barata afirma que “(...)a
vida real era já de si teatral. O tempo era favorável aos grandes divertimentos, para os
quais concorriam as companhias de teatro italianas, francesas ou espanholas, que
acabariam por vir a dar nova forma aos cânones da arte dramática.(...)”32
E precisamente nesta altura, relativamente favorável para com a arte e
inclusivamente com o teatro, que as elites consideravam na altura uma das maiores
atrações, surgiu também a obra de António José da Silva, o Judeu. Quem foi esta
personagem que é considerada o mais representativo autor dramático português da
primeira metade do século XVIII?
António José da Silva nasceu no dia 8 de Maio de 1705 no Rio de Janeiro como o
filho mais novo dos cristãos-novos João Mendes da Silva, advogado e poeta, e de
Lourença Coutinho.
Em 1712, a família dos cristãos-novos, uma família numerosa de médicos,
advogados e comerciantes, foi obrigada a mudar a sua residência para Lisboa por causa
de ter sido denunciada e presa pela inquisição que na altura perseguia e castigava
cristãos-novos não só pelo motivo da heresia, mas também por causa de confiscar todos
os seus bens visto que no ano seguinte os pais de António José foram condenados às
penas de abjuração, cárcere e hábito penitencial, e, principalmente, confisco de bens.
Isso foi a experiência malevolente do rapaz de oito anos que se pela primeira vez
encontrou com o poder do Santo Ofício. Nos seus olhos inocentes reflectia-se a injustiça
que se tornou fatal para ele. Não percebendo o delito cometido, descobriu que os seus
antepassados tinham sido judeus e, em consenquência disto, era mais tarde chamado o
Judeu pela sua ascendência hebraica que determinou e influenciou a sua vida como
nenhum outro elemento, levando-o até ao seu fim trágico.

31
Ibidem. p. 19.
32
Ibidem. p. 19.
14
Apesar das condições que não estavam benéficas, a família conseguiu a
acomodar-se na nova pátria. Com o andar de tempo o pai começou a advogar em Lisboa
e os seus filhos entraram na universidade. Nunca, porém, reestabeleceu-se na família a
tranquilidade completa. António José da Silva frequentava o curso de Cânones na
Universidade de Coimbra onde se enquadrou no grupo dos intelectuais entre os quais
pertencia por exemplo o conde de Ericeira, Francisco Xavier de Oliveira33 e o padre
Álvares de Aguiar. Mas a felicidade temporal na vida do Judeu como se atraisse atenção
das forças malignas e ele, mesmo como todos os seus próximos, ficou em situação
difícil novamente, em 1726, quando a mãe foi presa pelo Santo Ofício e mandada para o
degredo em Castro Marim. Os seus três filhos foram presos logo depois.
Depois do auto-de-fé de 13 de Outubro de 1726, António José da Silva abjurou do
judaismo. O rapaz foi condenado a cárcere e hábito penitencial perpétuo, saindo em
liberdade no dia 23 de Outubro. O pobre jovem, dominado pelo pavor de que pudesse
cair na mão da Inquisição novamente ou fazer mal aos seus parentes presos, evitava a
companhia dos seus próximos e andava na igreja, fingindo a sua fé cristã inquebrantável
perante os olhos nunca dormentes do Santo Ofício.
Em 1728, os seus irmãos foram libertados e a sua mãe saiu em liberdade um ano
depois.
Passo a passo António José da Silva encheu-se de coragem e, desde 1733 a 1738,
gozando da relativa liberdade e vida pública, escreve várias peças teatrais. O seu nome
relacionado com teatro ganhou fama e caiu nas graças da própria corte real. Mas o autor
não se contentou com o teatro de elites e queria dirigir a palavra ao povo geral.
Em 1733, o Judeu estreia com a obra A vida de D. Quixote e do Gordo Sancho
Pança à qual serviu de modelo a obra de Cervantes34 e no mesmo ano apresenta-se
ainda outra obra de António José: A Esopaida ou Vida do Esopo. Embora tenham sido
apresentadas estas obras que certamente deixaram na vida do Judeu os seus cartões de
visita, o maior marco significante foi sem qualquer dúvida o casamento com a prima
Leonor Maria de Carvalho, natural de Covilhã, que já tinha sofrido a opressão por parte
do Santo Ofício.

33
Francisco Xavier de Oliveira( 1702-1783 ): um escritor português, conhecido também como o Cavaleiro de
Oliveira. Uma das vítimas do Santo Ofício que o perseguiu e impediu-lhe viver em Portugal. Acrescentamos que
vamos tratar desta personagem mais detalhadamente nas próximas páginas do trabalho.
34
Miguel de Cervantes( 1547-1616 ): um romancista, dramaturgo e poeta castelhano. O escritor da obra Dom-
Quixote que se tornou com o andar de tempo uma grande inspiração para as gerações futuras dos escritores e
dramaturgos.
15
A mulher do comediógrafo já como criança tinha passado por vários cárceres da
Inquisição. A sua origem judaica obrigou-a, mesmo como os seus parentes, fugir da
Covilhã, com tudo isso acabou de ser julgada no tribunal inquisitoral de Valladolid. Ao
falarmos da união entre ela e António José, acrescentamos que o seu destino pára na
prisão tão como o destino do seu marido.
Mas voltemos à produção teatral do Judeu. Ele depois das primeiras apresentações
no Teatro do Bairro Alto começou a atrair espectadores de toda Lisboa, atraindo cada
vez mais também os ódios dos outros autores, proprietários dos teatros lisbonenses e
dos representantes do exército santo. Aumentando a sua actividade teatral, António José
da Silva, em 1735, apresenta a obra Os Encantos de Medeia e depois, em 1736, chegam
as representações de O Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta. Além
disso, em 1735, da união com Leonor de Carvalho nasce a filha Lourença.
Dois anos após o nascimento da filha, ao pináculo da fama do autor judaico, saem
no palco as obras As Guerras do Alecrim e da Mangerona e As Variedades de Proteu.
Ao ensaiar a oitava peça, Precipícios de Faetone, iniciou-se o último acto teatral
da vida de António José da Silva. “(...)Particular importância se costruma atribuir ao
papel desempenhado pela escrava negra que partilhava a intimidade da família e que,
segundo alguns, foi uma das testemunhas fundamentais que levaram à condenação do
dramaturgo, bem como dos restantes membros do seu agregado familiar.(...)”35 Há, na
verdade, várias opiniões que a escrava, Leonor Gomes, talvez, pelos motivos da
vingança tenha ido ao Tribunal do Santo Ofício levantar falsos testemunhos. Esta teoria,
porém, nunca foi comprovada por nenhuma prova explícita.
Seja como for, o Judeu foi preso de novo pela Inquisição junto com a sua esposa,
mãe e os outros parentes, entrando mais uma vez nos cárceres do Santo Ofício, e após
um longo processo foi no Auto-da-Fé, em 1739, acusado de relapso, convicto e
negativo.
António José da Silva, o Judeu, acaba na última cena da sua vida por ser
publicamente queimado, ficando “(...)o exemplo de um homem que, contra os rigores
do Santo Ofício, não transigiu no seu ideário de fé, assumindo a condição de cristão-
novo, quando era difícil fazê-lo.(...)”36

35
BARATA. J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 14
36
Ibidem. p. 17
16
3.2 Judeus – uma história antiga

A origem da questão dos cristãos-novos está relacionada com a chegada dos


judeus a Portugal, em 1492, quando foram deportados de Espanha.
A história deste povo abrange um período largo, mesmo como um grande espaço.
Parafraseando Paul Johnson, podemos dizer que escrever sobre a história dos judeus é
como se quiséssemos escrever sobre a história do mundo porque eles penetraram em
muitas sociedades e deixaram nelas uma marca profunda.37
Apesar disto, o início da história dos judeus os quais o destino levou até Portugal
podemos encontrar sem qualquer dúvida no Pentateuco38, os cinco primeiros livros da
Bíblia39. Aqui é captado o começo de uma nação que criou a sua identidade específica
antes das outras nações hoje em dia existentes. Considerando todos os factos históricos ,
temos de admitir que o povo judeu desempenha o papel da nação mais testa ao longo da
história. Onde tem origem esta grande resistência? O que diferencia os judeus das outras
nações e porque eles tiveram que sofrer por estas diferenças?
Na nossa opinião, para que possamos esclarecer estas questões, temos que
regressar ao próprio início da formação da primeira religião monoteística porque nele
ocorreram vários acontecimentos os quais estabeleceram tradições, ou seja a base
invariável de uma religião a qual influenciou a atitude do povo judaico, mesmo como
todos os seus representantes singulares.
Entre os anos 2000 e 1800 a.C., como está apresentado em Bíblia, o patriarca dos
hebreus Abraão deixa a sua velha pátria e parte com a sua família para que cumpra a
palavra de Deus que lhe revelou não só o seu destino, mas também o destino dos seus
descendentes:

“(...)Deixa o teu país, a tua parentela e a casa de teu pai, para o país que te mostrarei. Eu
farei de ti um grande povo, eu te abençoarei e engradecerei o teu nome; sê tu uma
benção.(...)”
“(...)Partiu Abrão, como lhe ordenara o Senhor, e Ló foi com ele. Abrão tinha setenta e
cinco anos quando saiu de Harã. Levou sua mulher Sarai, seu sobrinho Ló, todos os bens

37
Johnson, P.: Dějiny židovského národa. Praha: Rozmluvy, 2007. p. 15
38
Pentateuco: A palavra pentateuco significa em grego “os cinco rolos”. O Pentateuco é composto de Génesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
39
A Bíblia, além de ser o livro que trata das questões religiosas, é considerada a primeira crónica no mundo que
capta a história de uma nação. O valor da Bíblia como da fonte histórica está no centro de uma discussão
pertinaz já desde o início do século XIX. As opiniões fundamentais, baseadas nas teorizações religiosas,
consideram-na como uma obra de Deus, por outro lado a corrente crítica considera-a só como uma metáfora.
17
que haviam acumulado e os seus servos, comprados em Harã; partiram para a terra de
Canaã e lá chegaram.(...)”40

A primeira parte da Bíblia é em primeiro lugar uma declaração teológica na qual o


papel central é desempenhado por Abraão. Foi esta personagem que deu à luz duas das
mais importantes características do judaísmo e, em consequência disto, dos judeus: a
aliança com Deus e doação da Terra, porque, após a sua chegada a Canaã41, Abraão
recebe-a de Deus:

“(...)Naquele dia o Senhor fez a seguinte aliança com Abrão: Aos seus descendentes dei
esta terra, desde o ribeiro do Egito até o grande rio, o Eufrates: a terra dos queneus, dos
quenezeus, dos cadmoneus, dos hititas, dos ferezeus, dos refains, dos amorreus, dos
cananeus, dos girgaseus e dos jebuseus.(...)”42

Esta aliança, embora tenha uma concepção pessoal43, compreende o núcleo da fé


judaica. Abraão entrou em acordo com Deus, prometendo-lhe uma submissão completa
em troca da afeição especial. Estabelecendo a aliança entre eles, Deus torna-se o
governador absoluto dos filhos do patriarca os quais ganham a promissão de uma
protecção divina e prosperidade.

“(...)Multiplicarei grandemente a tua descendência, de tal modo que não se poderá contá-
la.(...)”44

Para que seja demostrada a obrigatoriedade e seriedade deste pacto entre o homem
e Deus, Javé45 ordenou a Abraão que todos os homens da sua progenitura, mesmo como
os seus descendentes, deviam ser circuncisados, como um símbolo da aliança entre eles.
Portanto, não só o acordo verbal, mas também o próprio corpo humano dá provas da
validade desta união.

40
Génesis ( 12:1-5 )
41
Canaã: Para os judeus a Terra de Israel. Hoje em dia a zona onde se localiza Palestina, o Estado de Israel e
Jordânia.
42
Génesis ( 15:18-21 )
43
Johnson, P.: Dějiny židovského národa. p. 28
44
Génesis ( 16:10 )
45
Jahve: O nome „Deus“ é escrito com as letras IHVH, que em hebraico significa “eu sou quem sou” e é lido
como “Jeová” ou “Javé”. No cristianismo aparace principalmente na proclamação Aleluia que pode ser traduzido
“Louvem Deus Javé”.
18
“(...)Esta é a minha aliança com você e com os seus descendentes, aliança que terá que ser
guardada: Todos os do sexo masculino entre vocês serão circuncidados na carne. Terão que
fazer essa marca, que será o sinal da aliança entre mim e vocês.(...)”
“(...)Qualquer do sexo masculino que for incircunciso, que não tiver sido circuncidado, será
eliminado do meio do seu povo; quebrou a minha aliança.(...)”46

Além disto, mencionámos outra característica. Abraão e os seus descendentes


foram escolhidos por Deus para desempenharem um papel especial num plano sobre-
humano o que se não pode desligar da doação da Terra porque as duas doações são, na
verdade, só um empréstimo do Senhor. Trata-se de dois resultados da sua benevolência
que pode ser retirada, mesmo como pode ser cancelado o próprio acordo. Então, o
essencial que resulta destas afirmações é, como menciona o livro Guerras e religiões,
Judaísmo, que “(...)na religião judaica toda a vida depende de um único Deus e tudo o
que é bom vem dele(...)”47 e pode ser também retirado. Em consequência disto, os
desejos de Deus dominam desde então as vidas do povo descendente de Abraão, o que
as influencia marcadamente como vamos explicar mais detalhadamente nas próximas
páginas do trabalho apresentado.
Abraão, seu filho Isaque e seu neto Jacó, que recebeu de Deus um novo nome
48
Israel após uma luta nocturna com um anjo, são três fundadores e patriarcas antigos
do povo judeu fiel à união divina. O último mencionado e os seus filhos deram origem
às 12 tribos do povo judeu que se chamavam os “filhos de Israel”.
A segunda fase da história antiga dos judeus tem a ver com a escravidão dos
hebreus no Egipto, onde se instalaram por causa da grande seca. O povo judeu sofreu
naquela altura e viveu uma vida desumana. Além disto, o politeísmo egípcio não
permitia aos descendentes de Abraão cumprir bem a palavra de Deus.
Os filhos de Israel tornaram-se libertos quando apareceu Moisés, entre 1304 e
1237 a.C. durante o reinado de Ramesse II. Esta personagem mítica libertou os seus
correligionários da escravidão, que pode ser considerada a primeira opressão na história
do povo hebreu, e todos sairam em busca da Terra Prometida49. O grande libertador
hebreu e mediador entre Javé e o povo judaico, conduziu os judeus através do deserto

46
Ibidem ( 17:10-14 )
47
Guerras e Religiões, Judaísmo: p. 17
48
O nome Israel oferece vários significados. Das fontes históricas é perceptível que o nome deriva de duas
palavras “Isra” e “El”. Os historiadores afirmam que a palavra “El” teve significado “Deus”, enquanto o
significado da primeira parte do nome “Isra” não está bem esclarecida. Em consequência disto a tradução do
nome Israel para português pode ser: “Aquele que luta ao lado de Deus”; “Aquele que luta contra Deus”.
49
Este acontecimento é considerado, segundo a tradição judaica, o início da história da nação Israelita e é
comemorado com o Pessah, anualmente festejado no tempo da Páscoa, que simboliza a liberdade que está no
direito de cada um.
19
para a terra prometida, recebendo as Tabuas da Lei no monte Sinai que foram colocadas
na Arca da Aliança onde, segundo a Bíblia, residia o próprio Deus.
A permanência dos hebreus no Egipto e o Êxodo têm valor fundamental na
evolução da religião e cultura judaica. Trata-se, na verdade, do capítulo principal na
história do povo judaico porque Deus salvou-o da dominação da nação mais poderosa
no mundo e deu-lhe a Terra. Ainda por cima, Paul Johnson no seu livro afirma que Deus
interviu activamente contra o exército do faraó tão fortemente que este acontecimento
tornou-se a motivação da existência espiritual para as próximas gerações50 o que
comprovam as palavras de Moisés:

“(...)Perguntem, agora, aos tempos antigos, antes de vocês existirem, desde o dia em que
Deus criou o homem sobre a terra; perguntem de um lado ao outro do céu: Já aconteceu
algo tão grandioso ou já se ouviu algo parecido? Que povo ouviu a voz de Deusa falando do
meio do fogo, como vocês ouviram, e continua vivo? Ou que deus decidiu tirar uma nação
do meio da outra para lhe pertencer com provas, sinais, maravilhas e lutas, com mão
poderosa e braço forte, e com feitos temíveis e grandiosos, conforme tudo o que o Senhor
fez por vocês no Egito, como vocês viram com os seus próprios olhos?(...)”51

A personagem de Moisés é considerada junto com Abraão a personagem central


na história dos judeus. Se considerássemos Abraão o patriarca do povo, deveriamos
chamar Moisés o seu formador.52 Ele recebeu de Deus, segundo a tradição, divinas leis,
chamadas Tora53 ou lei de Moisés, as quais nenhum homem pode mudar e que lhe
possibilitaram a formação das crenças, do moral, dos rituais e da organização civil do
povo hebreu. Ainda por cima, recebendo as leis de Deus, o mediador reestabelece
publicamente a aliança divina em nome de todo o povo que se decidiu a respeitar essa
lei que “(...)viria a ser a fonte de coerência e unidade do povo judeu em todos os tempos
e lugares.(...)”54

“(...)Vocês viram o que fiz ao Egito e como os transportei sobre asas de águias e os trouxe
para junto de mim. Agora, se me obedecerem fielmente e guardarem a minha aliança, vocês
serão o meu tesouro pessoal dentre todas as nações. Embora toda a terra seja minha, vocêsa
serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.(...)”55

50
Johnson, P.: Dějiny židovského národa. p. 36
51
Deuteronômio ( 4:32-34 )
52
Johnson, P.: Dějiny židovského národa. p. 37
53
Tora: Trata-se de um conjunto de 613 instruções, cujo núcleo são Dez Mandamentos, que está contido no
Pentateuco.
54
Guerras e religiões, Judaísmo. p.16
55
Êxodo ( 19:4-6 )
20
A marcha do povo durou quarenta anos, apesar de poder ser feita em duas
semanas, e nem o próprio Moisés viveu suficiente para ver a Terra Prometida. Esta
experiência, segundo a tradição judaica, purificou o povo hebreu da idolatria e formou-o
segundo as ideias de Deus.
Ao chegar a Canaã, o povo escolhido por Deus conquistou a Terra Prometida
segundo a ordem do Senhor. Porém, o povo judeu foi posto em perigo por causa dos
ataques de outros povos. Os 12 tribos israelitas, que eram divididos, tiveram que unir-se
sob o governo de um rei terrestre, apesar das leis da aliança que impedem a governação
terrestre devido à teocracia56, como comprova o seguinte trecho da Bíblia:

“(...)E disseram-lhe: “Tu já estás idoso, e teus filhos não andam em teus caminhos; escolhe
agora um rei para que nos lidere, à semelhança das outras nações”. Quando, porém,
disseram: “Dá-nos um rei para que nos lidere”, isso desagradou a Samuel; então ele orou ao
Senhor. E o Senhor lhe respondeu: Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo; não foi a
você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei.(...)”57

Então, no fim Saul, sendo escolhido por Deus, foi ungido rei por Samuel e a
confederação dos tribos converteu-se ao reino unitário que podia defrontar-se com os
seus inimigos.
O sucessor de Saul, David, conquistou Jerusalém, transformando-a em capital do
reino. David, cujo reinado é considerado ainda hoje em dia a altura mais favorável aos
judeus na sua história, levou para a nova capital a Arca da Aliança e o seu filho,
Salomão, guardou-a no primeiro templo erguido no território da capital.
Após a morte de Salomão, em 925 ou 926 a.C., o reino foi dividido novamente
em duas partes, em dois reinos independentes. O primeiro foi Israel que caducou depois
de ter sido invadido pelos assírios, em 722 a.C. Esta parte foi composta de dez tribos
que desapareceram da história para sempre, assimilando-se com a população assíria e
perdendo a sua própria identindade.
O segundo reino principalmente constituído pela tribo de Judá, da qual tinha
procedido o rei David, situou-se no Sul, em Jerusalém, e seguiu a lei de Moisés, embora
apresentasse muita decadência religiosa e, portanto, também política por haver no caso
do estado teocrático uma relação estreita entre as duas. Foi precisamente naquela altura

56
Teocracia: O governo do Deus. De facto, isto significa que Deus governa no mundo através das suas leis
incluidas em Tora que não tem que ser mudada por nenhum mortal. Talvez, seja melhor usar o termo
nomocracia, governo da lei. Ascrescentamos que esta lei religiosa causa vários problemas ao nível govermental
no estado Israel ainda hoje em dia.
57
Samuel I ( 8:5-7 )
21
quando surgiram os grandes profetas que profetizaram ao povo judaico um castigo por
não cumprir a palavra de Deus, o que levava consigo uma decadência moral, mesmo
como aconteceu antes com o reino de Israel e como profetizou Oséas:

“(...)Eles semeiam vento e colhem tempestade. Talo sem espiga; que não produz farinha.
Ainda que produzisse trigo, estrangeiros o devorariam. Israel é devorado; agora está entre
as nações como algo sem valor; foi para a Assíria. O jumento selvagem mantém-se livre,
mas Efraim vendeu-separa os seus amantes.(...)”58

O castigo chegou mais tarde representado pelo rei babilónio Nabucodonosor que,
em 587 a.C., saqueou Jerusalém, destruiu o templo e deportou a maioria os judeus para
a Babilónia. Outros habitantes exilaram-se para o Egipto ou países no Norte. Este novo
afastamento da Terra Prometida despertou um novo ardor da fé judaica.
Os judeus conseguiram libertar-se e voltar após cinquenta anos, quando o rei dos
persas, Ciro, conquistou Babilónia. Porém, grande número dos judeus ficou nas terras
estrangeiras na Diáspora que se tornou com o andar do tempo uma das características
mais relacionadas com o povo hebreu e que é nos seus olhos considerada uma danação
de Deus que afecta o povo pecador. Precisamente desde aquela época a maioria dos
judeus vive fora da Terra Prometida. Na verdade, é interessante que esta nação tem por
um lado uma relação tão profunda a uma terra e por outro apresenta um instinto
migratório extremamente forte.
Também temos que mencionar que já nesta época podemos encontrar as primeiras
marcas do anti-semitismo59, visto que os judeus, tendo ciência de serem só estrangeiros
e forasteiros60 num país desconhecido e de acreditarem na religião que naquela altura
existia já mais de mil anos, nunca tentaram adaptar-se ao novo ambiente e, portanto,
sempre foram considerados um elemento estrangeiro que se diferenciava por várias
tradições como, por exemplo, Shabat61 ou circuncisão.
Além disto, os judeus assumiam cargos importantes na administração do estado, o
que causava uma grande inveja entre o povo da localidade. Esta é uma outra das

58
Oséas ( 8: 7-9 )
59
Acrescentamos que o próprio termo tenha sido criado em 1879.
60
Esta articulação aparece muitas vezes no antigo testamento, visto que tem a ver com a submissão do povo
hebreu perante de Deus em troca do seu favor e também caracteriza a relação do povo hebreu a sua terra que
recebeu de Deus. A articulação podemos encontrar, por exemplo, em Crônicas:“(...)Diante de ti somos
estrangeiros e forasteiros, como os nossos antepassados.Os nossos dias na terra são como uma sombra, sem
esperança.(...)” Crônica I( 29:15 )
61
Shabat: Trata-se de uma festa semanal que ocorre aos sabados e simboliza a renovação do lar e da família com
base da criação do mundo, quando Deus descansou o sétimo dia.
22
características do povo judaico cujos representantes sempre conseguiram fazer sucesso,
como também comprova a personagem de José do Egito62 - oferece-se a questão se não
há uma estreita ligação entre o sucesso dos judeus e a sua religião, ou seja o seu codexo,
que seja elaborado de maneira que forme outra percepção do mundo, permitindo assim
aos seus crentes um desenvolvimento maior das suas habilidades.
Em 515 a.C., após o regresso dos judeus à Terra Prometida, foi reedificado o
templo. Naquela altura o poder do reino persa era máximo e até 332 a.C., quando o
Alexandre o Grande conquistou o reino dos persa, os filhos de Israel viveram numa
relativa paz devido aos governadores tolerantes.
Após a conquista de Alexandre o Grande, que foi bem recebido em Jerusalém, os
judeus encontraram-se pela primeira vez com a civilização europea, mais precisamente
a civilização helenística que foi após a morte do governador famoso implantada pelos
seus sucessores em todo o reino. Desta ligação sairam alguns resultados que foram por
um lado positivos, mas por outro deram lugar às novas tensões no mundo judeu daquela
época.
Primeiro, o Pentateuco foi traduzido em Alexandria para o grego63 o que
possibilitou um novo crescimento dos crentes em todo o mundo civilizado de então –
apesar da maioria dos gregos, que eram na altura livre-pensadores, não ter percebido o
livro que apresentava as ordens rigorosas do culto monoteístico.
E foi precisamente este livre-pensamento que atraía muitos dos filhos de Israel e
que se nos olhos de judeus ortodoxos tornou um insulto do seu sentimento religioso.
Com o andar do tempo, toda esta situação culminou nos desafios sangrentos entre a
parte reformista e parte ortodoxa, o que provocou uma intervenção militar do exército
dos selêucidas helénicos. Após este impacto foi proibido Shabat e circuncisão e no
templo foi erguida a estátua do Zeus. Portanto, os judeus foram forçados a venerar os
deuses gregos o que resultou de novo numa rebelião aberta, em 165 a.C. Os filhos de
Israel reconquistaram o monte santo e, depois, purificaram o templo. Estes

62
José do Egito: José do Egito foi o décimo filho de Jacó, considerado o fundador da tribo de José. Trata-se de
uma personagem muito importante na história dos judeus, visto que ganhou a confiança do faraó. A sua
personagem está relacionada com a instalação do povo hebreu no Egito.
63
Segundo a tradição, setenta sábios, isolados uns dos outros, fizeram simultaneamente setenta traduções
idênticas, no que ficou chamado Septuaginta ou Bíblia dos setenta. Outra tradição oferece a explicação que a
Bíblia foi traduzida pelos setenta sábios durante setenta dias e, por causa disto, a Bíblia ficou chamada
Septuaginta.
23
acontecimentos deram origem a uma outra tradição judaica - Hanuka ou Chanuka64 -
que se tornou uma das festas judaicas mais populares.
O conflito entre a parte reformista e ortodoxa, embora não pareça da primeira
vista, teve uma grande influência na percepção das outras religiões e, principalmente, no
aumento do anti-semitismo, visto que os judeus se tornaram um grupo ainda mais
fechado e mais conservador, sob o aspecto da religião, que não aceitava quase
nenhumas influências externas.
A terceira fase da antiga história do povo hebreu, que marcadamente influenciou e
determinou o comportamento dos seus representantes no futuro, começou um século
depois da purificação do templo, em 63 a.C., quando Jerusalém foi conquistada pelos
romanos que a carregaram de impostos. Estas medidas resultaram em outra emigração
dos judeus. A diáspora foi reforçada ainda mais depois de uma revolta contra os
romanos, em 70 d.C., quando o seu exército pôs cerco a Jerusalém que resultou numa
completa destruição da cidade e do templo, o centro da fé judaica. Em consequência
disto,“(...)o Judaísmo passou a ser basicamente centrado nas sinagogas.(...)”65
Entre os anos 128-132 d.C., durante o reinado do imperador Hadriano, ocorreram
várias acções apontadas para os judeus os quais, em consequência disto, tentaram opor-
se contra a dominação romana, em 135 d.C. Vendo que os esforços do imperador
levavam ao estabelecimento da cultura helénica e construção da polis, os filhos de Israel
levantaram-se em armas. A revolta teve duração de quatro anos e foi castigada com
dureza. A população judaica no território da Palestina reduziu-se marcadamente e
judeus perderam o seu reino de Israel.
Portanto, para o povo, que desde então não tinha a sua própria pátria e na maioria
era deslocado por todo o mundo, a religião, que se depois da perda do centro da fé
concentrava mais no estudo da Tora e podia ser praticada em qualquer lugar, tornou-se
ainda mais um mecanismo da sua própria defesa e um elemento que reúne os seus
crentes, mas também, por outro lado, diferencia.

64
Hanuka ou Chanuka: Também chamada A festa das luzes ou A festa da inauguração que ocorre em Novembro
ou Dezembro por um período de oito dias. Segundo a tradição, deveria acender-se em cada dia uma vela num
candelabro de oito ramificações. Nesta data os judeus trocam presentes entre si e dedicam-se as suas crianças.
65
Dias, E.M.: Criptojudeus portugueses, o fim de uma era. Lisboa: Peregrinação publications, 1999. p.
24
3.3 Inquisição

As primeiras comunidades cristãs, espalhadas por todo o império romano,


apresentavam uma escala bem ampla das várias escolas e correntes dos quais derivaram
muitos evangelhos contraditórios e, portanto, muitas percepções da religião cristã. Estas
percepções encontraram-se numa luta de ideias da qual saiu triunfalmente a igreja
católica com a face e rituais constantes, que conhecemos hoje em dia, e que tinha de
combater ao longo da sua história outras interpretações, do seu ponto de vista heréticas,
defendendo assim a sua imagem unitária.
Em consequência disto, foi criada a inquisição apoiada pela corrente oficial e mais
ortodoxa, cuja função principal era encontrar e identificar heréticos que proclamavam
um desvio relativamente ao dogma oficial religioso. Esta definicição do seu cargo
possibilitou-lhe dispor de um poder imenso, visto que a problemática dos heréticos era
muito complicada.
Apesar destes factos, estabalecer uma data precisa da fundação da institução
inquisitoral é praticamente impossível, visto que a sua formação está relacionada com
um longo processo de desenvolvimento da religião. O historiador russo Grigulevič
afirma que os teóricos inquisitorais afirmavam que a origem da inquisição tinha a ver
com o início da espécie humana no nosso mundo porque o próprio Deus interrogou66
Adão e Eva antes da sua expulsão de Éden, castigando-os assim pelo seu pecado.67 A
nosso ver, parece mais adequado colocar o início do processo da sua criação após o ano
1000 d.C., que pode ser considerado um ano revolucionário do ponto de vista religioso e
social.
Em toda a Europa antes daquele tempo espalhava-se a ideia do fim do mundo
apoiada por vários predicadores e profetas. Depois desse ano simbólico, que passou sem
maior mudança, aumentou o número dos oponentes da igreja que faziam críticas à sua
riqueza. Na verdade, tratava-se na maioria dos casos das classes mais baixas que perante
uma vida dura e desagradável aludiam à igualdade dos primeiros cristãos que tinham
vivido na pobreza. Desejava-se uma igreja pobre baseada na moral e igualdade social

66
O próprio termo inquisição, como menciona Grigulevič, deriva da denominação do inquisitor - isto quer dizer
investigador, promotor e juiz – cuja função principal era inquirere( inquirir e procurar ) as marcas da heresia. No
livro História da Inquisições: Portugal, espanha e Itália mencionam-se a mudanças do significado que ocorriam
ao longo do tempo.
67
Grigulevič, I.R.: Dějiny Inkvizice. Praha: Svoboda, 1973.
25
perante Deus, tendo vontade de romper as estruturas antigas feudais de convívio. Esta
atmosfera, portanto, tornou-se impulso para novas heresias que, ainda por cima, eram
apoiadas muitas vezes pelos governadores feudais os quais não queriam aceitar o papa e
o Estado da Igreja, que na altura desempenhava um papel da maior importância no
campo político europeu, como uma força política dominadora.
A Igreja, que declinava estas novas ideias de abdicar de todos os bens materiais e
viver na pobreza como um verdadeiro exemplo da religiosidade e modéstia, deixando
assim o seu poder determinante, reagia resolutamente e com dureza represava qualquer
marca das novas heresias. Já no início do século XI alguns dos heréticos, após a
ordenança de Roberto II68 de 1022, acabaram por serem queimados, o que se tornou
com o andar de tempo uma prática cada vez mais realizada.
Após dois séculos de várias rebeliões contra a Igreja católica de maior ou menor
importância, entre os anos 1209 e 1229, decorria a guerra contra os cátaros69 e neste
tempo podemos encontrar-nos pela primeira vez com a ideia de estabelecer os tribunais
especializados que procuravam heréticos. O movimento herético dos cátaros, ou seja
dos albigenses, além de ter proclamado as exigências da pobreza, declinava a essência
divina do Jesus Cristo. Porém, o que causou o verdadeiro pânico em Vaticano era o
facto que o movimento, que passou da teoria em prática e a sua popularidade crescia
com uma rapidez extrema, era apoiado por todas as classes sociais, incluindo os nobres
que se opuseram contra os mandados do papa Inocêncio III70. Em consequência disto, o
papa começou a organizar cruzadas contra estes novos inimigos da fé, como informa
Alexandre Herculano no seu livro A História da origem e estabelecimento da inquisição
em Portugal:

“(...)Entretanto sentia-se vivamente a necessidade de acudir ao mal. No terceiro concílio de


Latrão( 1179 ) decretaram-se providencias severíssimas contra as heresias que, pelo seu
incremento e pelas suas violencias dos seus sectarios, se tinham tornado mais perigosas.
Taes eram as dos patarenos, cataros, publicanos e outras que, principalmente, se
espalhavam pelas provincias d´Alby, Tolosa, Aragão, Navarra e Vasconia e que já

68
Robert II: Roberto II ( 972-1031 ), cognominado o Pio ou o Sábio, foi o segundo monarca de França da
dinastia capetiana.
69
Movimento dos cátaros: O nome do movimento deriva da palavra grega katháros o que significa puro. Trata-
se de um movimento religioso assentado desde o século XI no sul da França e no nord da Itália. O movimento é
também chamado pela denominação albigense, segundo o nome da cidade Albi que era considerada um dos
centros do catarismo.
70
Inocêncio III: Papa Inocêncio III ( 1160-1216 ), um dos mais importantes representantes da Igreja na idade
média, visto que convocou o IV concílio de Latrão, que resultou várias questões importantes nos campos
teológicos, e desempenhou o papel do político mais poderoso na altura do seu pontificado, convocando a cruzada
contra os Albigenses e a IV cruzada para ao Oriente.
26
empregavam violencias brutaes, ou para se defenderem ou para reduzirem ao seu gremio os
que se conservavam fiéis á doutrina catholica. A' guerra o concilio respondeu com a
guerra.(...)”71

O movimento, por fim, foi combatido de uma maneira brutal e os chefes da Igreja
começaram a pensar numa prevenção que assegurasse o estatuto quo invariável. Ubaldo
Allucingoli, ou seja o papa Lucio III72, chegou à conclusão que a melhor opção era que
os bispos, como os representantes eclesiásticos dignos de confiança, pudessem
investigar culpados da heresia, interrogá-los e decidir da sua culpa ou inocência.
Depois, os tribunais seculares deviam determinar um castigo correspondente com o
delito e assegurar a sua execução. É preciso dizer que “(...)a constituição promulgada
por Lúcio III em 1184 é considerada por alguns escriptores como a origem e germen da
Inquisição.(...)”73 Contudo, esta prática não se mostrou eficiente devido ao facto que os
bispos, por causa de outros deveres, não estavam suficientemente entusiasmados perante
a nova missão e, ainda por cima, havia muitas vezes uma interligação estreita entre eles
e os governadores locais, o que reduzia de uma maneira fundamental os seus esforços.
Em consequência disto, em face dos resultados insatisfatórios, decidiu-se que este
cargo devia ser entregue nas mãos dos verdadeiros profissionais que iam dispor de um
conhecimento teológico bastante profundo e ardor católico para poderem servir com
uma efectividade desejada. Portanto, em 1233, o papa Gregório IX74 incumbe função de
inquisitio75 à ordem dominicana que desde então pode fazer e desfazer sem a influência
ou regulamento por parte dos bispos ou outros representantes da Igreja, além do próprio
papa. Talvez, este acontecimento possamos considerar o complemento do processo da
criação da primeira inquisição, visto que preenche todas as características principais
desta instituição – inquirir as pessoas suspeitas da heresia sem limites, constituindo
“(...)um verdadeiro tribunal, com formulas especiaes de processo(...)”76 - que se ainda
no decorrer do tempo vão aprofundar e estender em toda e Europa, incluindo o território
português.

71
Herculano, A.: História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Disponível em:
http://purl.pt/12110. Tomo I, p. 30
72
Lucio III: Papa Lucio III ( 1100-1185 ), famoso principalmente pela bula que posibilitou à Igreja lutar contra
heresias.
73
Ibidem. p. 32
74
Gregório IX: Papa Gregório IX ( 1160-1241 ) é considerado o fundador da inquisição com a promulgação da
bula Licet ad capiendos de 1233. Além disto, canonizou S. Francisco de Assis e Santo António de Lisboa.
75
Inquisitio: Isto quer dizer procurar, inquirir e judicar.
76
Ibidem. p. 40
27
3.4 Formação da Inquisição e cristãos-novos em Portugal

Como já foi mencionado acima, a história da inquisição portuguesa começa de


facto no ano 1492 quando os judeus são expulsos da Espanha e chegam para Portugal.
Em consequência disto, cria-se a problemática dos cristãos-novos, como comprova
A.N.Riberio Sanches:

(...)Ainda que nos Reynados dos Reys D. Diniz, D. Affonso IVo, D. João Io, e D. Affonso
Vo houvesse em Portugal Judeos não se lê nas histórias delle o nome de Christão-velho,
nem de Christão-novo; Como naquelles tempos se consetião Judeos publicos com liberdade
da sua Religião, aquelle que se convertia á Ffé de Christo ficava reputado por Christiam
verdadeiro, e legitimo subdito do Estado: perdia o nome de sua Nasção, adquirindo o de
Portuguez.(...)”77

Depois da expulsão dos judeus de Espanha, milhares destes fugitivos78 entraram


em Portugal. Como informa Sanches, o rei D. João II79 na altura fazia guerra em África
e precisava do dinheiro. Então, permitiu-lhes a entrada com a condição de pagarem oito
cruzados por uma pessoa, prometendo que após oito meses ia possibilitar-lhes a partida
livre para África:

“(...)ElRey D. João o IIo permittio a muitos desta Nasção expulsada de Castella, que
ficassem por algum tempo em Portugal à condição que cada hum pagasse oito ducados de
ouro, e que depois do tempo que se lhes daria navios, e toda a commodidade para sahirem
delle, e que no cazo que se vissem em Portugal depois do tempo algum ou algús Judeos,
que ficarião Escravos. Cumprio ElRey D. João 2.o a dar navios nos Portos assinados para
que os Judeos sahissem do Reyno, e que ninguem os maltratasse, nem lhes impedisse sahir
fóra delle.(...)”80

Os judeus espanhóis, porém, queriam fixar sua residência em Portugal. No país


não havia inquisição, como no caso de Espanha, e a coroa portuguesa não perseguia os
praticantes de outras religões. Ainda por cima, muitos dos novos habitantes desejavam
voltar para Espanha que era mais acessível de Portugal do que da África.
É claro que uma imigração deste tipo, em massa, para um país, cujo número dos
habitantes de então não superava um milhão, resultou em vários conflitos e situações

77
Sanches, A.N.Ribeiro: Christãos-Novos e Christãos-velhos em Portugal( Origem da denominação ). Lisboa:
Sá da Costa Editação, 2010, p. 30.
78
O número preciso deles não é conhecido, mas os historiadores contemporâneos supõem que acerca de 120000
pessoas fugiram de Espanha.
79
D. João II: D. João II ( 1455-1495 ) foi o décimo-terceiro rei de Portugal, chamado também pelo seu cognome
O principe perfeito.
80
Ibidem: p. 30
28
complicadas. De repente, intensificou-se a atmosfera anti-judaica em todas as classes da
sociedade portuguesa. Haviam vozes que exigiam uma expulsão imediata dos
imigrantes para que tenha sido conservada a prosperidade do país e os valores religiosos
os quais podiam ser perturbados pelos filhos dos assassinos do Jesus Cristo – como
eram considerados segundo a tradição eclesiástica. Algumas vozes, por outro lado,
desejavam o estabelecimento da instituição inquisitoral de acordo com o modelo da
inquisição espanhola.
A situação dos judeus em Portugal piorou com o governo do rei D. Manuel I81
que, em 1496, contratou o casamento com a filha dos reis espanhois, Maria de Aragão,
os quais exigiam expulsão dos judeus, como afirma Alexandre Herculano:

“(...)D. Manuel enviara a Castella seu primo D. Alvaro a pedir a mão da D. Isabel, depois
de ter recusado a de D. Maria, e já então a corte castelhana quizera aproveitar o ensejo para
introduzi em Portugal o systema de intolerancia adoptado no resto da Peninsula. Era a
pretensão de Fernando e Isabel que se expulsassem os proprios judeus naturaes dos estados
do futuro genro.(...)”82

Em consequência disto, o rei proibiu de praticar o judaismo e ordenou cerrar


todas as sinagogas, mesmo como queimar os livros de orações. Além disto, os judeus
eram forçados a sair de Portugal ou abraçar a fé cristã.
Na verdade, o rei não queria perder a fortuna e o talento dos Judeus, portanto,
“(...)quando se aproximou a data do embarque para os que tinham recusado a aceitar o
catolicismo, o rei anunciou que não se dispunha de navios para os transportar e
determinou que se levasse a efeito um baptismo colectivo das cerca de 20000 pessoas
reunidas em Lisboa para aguardar a partida.(...)”83
Assim aconteceu que os judeus perderam a sua liberdade religiosa, visto que como
os cristãos-novos não podiam praticar os seus rituais, nem no segredo, sob ameaças da
pena severa. É preciso dizer, que isso foi o acontecimento que deu a origem
denominação Cristão-novo.
Em 1507, o rei Manuel II anulou todas as leis anteriores que limitavam os direitos
dos Cristãos-novos e prometeu-lhes que as leis represivas nunca mais iam ser
adoptadas. Ainda por cima, decidiu que os baptizados não iam ser perseguidos durante

81
D. Manuel I: D. Manuel I ( 1469-1521 ) foi o décimo-quarto rei de Portugal, conhecido também pelo seu
cognome O Venturoso ou O Bem-aventurado. Durante o seu reinado foram descobertos os caminhos marítimos
para a Índia e para o Brasil.
82
Herculano, A.: História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Tomo I, p. 141
83
Dias, E.M.: Criptojudeus portugueses, o fim de uma era. p. 14.
29
vinte anos seguintes “(...)para que tivessem tempo de se esquecerem das antigas crenças
e de se confirmarem na fé cristã.(...)”84 É de admitir que até à morte deste monarca
português e tomada da posse pelo seu filho D. João III85, em 1521, não havia nenhuma
opressão dirigida contra os cristãos-novos.
Alexandre Herculano designou na sua obra D. João III um fanatico”86 que tinha
um desprezo profundo pela raça hebreia. Todo o clero, mesmo como o povo que sofria a
sua influência e tinha inveja da riqueza dos cristãos-novos, desejava a institualização
dos tribunais inquisitorais no território português. D. João III aclamou esta ideia devido
ao seu ardor fanático e também por causa de querer dispor de uma arma que lhe
possibilitasse dominar a aristocracia de maneira como era em Espanha. Ainda por cima,
convinha-lhe a ideia de ter outra fonte do salário, devido ao terror que a inquisição
despertava entre os habitantes dos outros países, especialmente entre os cristãos-novos
que possuíam uma riqueza imensa, como já foi mencionado acima.
Como ainda declarou Alexandre Herculano: “Nas monarchias absolutas, quando
uma idéa fixa ou uma paixão violenta preponderam no animo do chefe do estado, é
quasi impossível que, mais tarde ou mais cedo, essa idéa ou essa paixão não venha a
traduzir-se em factos.”87 Portanto, apesar da promessa dada pelo rei Manuel, D. João III
pediu o papa de estabelecer a Inquisição em Portugal. Durante dez anos precedentes o
monarca depreciava os cristãos-novos, reconhecendo-os como representantes heréticos
que se revoltavam contra os valores católicos e semeavam cizânia entre os portugueses.
Como prova destas afirmações devia servir também o terramoto que ocorreu, em 1531,
em Lisboa e que pelos inimigos dos cristãos-novos foi proclamado um castigo divino
causado pela presença e protecção desta raça impura e maldita no país.
No dia 17 de Dezembro de 1531, o papa promulgou a bula, anunciando o
estabelecimento do Santo Ofício no território português e denominando Diogo da
Silva88 inquisitor que estava integralmente sob as suas ordens. Ao acontecer isso, foram
feitos as listas dos cristãos-novos mais ricos de todo o reino os quais deviam ser mais

84
Herculano, A.: História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Tomo I, p. 156
85
D. João III: D. João III ( 1502-1557 ) foi o décimo-quinto rei de Portugal, cognominado Piedoso por causa da
sua religiosidade profunda que, provavelmente, tenha resultado no estabelecimento da inquisição em Portugal.
Alexandre Herculano afirma, extraindo as informações seguintes das fontes mais velhas, que durante a vida do
seu pai haviam muitos que o conceituavam como intelectualmente imbecil ou que, pelo menos, o diziam.
86
Ibidem. p. 205
87
Ibidem. p. 213
88
Diogo da Silva: D. Diogo da Silva foi nomeado o primeiro inqusidor português, em 1531, mas logo após a sua
nomeação renunciou este título. Em 1536, foi nomeado o primeiro inquisidor-mor em Portugal, sendo o supremo
representante da inquisição portuguesa.
30
tarde encarcerados e afastados dos seus bens. Para que fosse assegurado o proveito
destas acções, foi impedida a saída dos conversos de Portugal e também o depósito do
seu dinheiro no estrangeiro. Não surpreende, portanto, a afirmação que se encontra
desde o início em Espanha, tal como em Portugal, a imagem da acção inquisitoral
arbitrária89 e, ainda por cima, da acção interessada.
Ao terem sido aceites as medidas mencionadas, no dia 14 de Junho de 1532 a bula
papal sobre a instituição dos tribunais inquisitorais em Portugal foi apresentada
publicamente e logo começou a confiscação dos bens dos cristãos-novos. Uma resposta
por parte dos oprimidos foi imediatamente lançada: “Um delegado, Duarte de Paz90, foi
enviado ao Vaticano para promover a causa dos cristãos-novos. Contudo, apesar de
largas quantias despendidas e longos episódios dilatórios por parte de Roma, a batalha
foi perdida.”91
No dia 22 de outubro de 1536 foi definitivamente estabelecida numa cerimónia
em Évora a inquisição no reino português “(...)perante o rei, o cardeal, o cabido, o
inquisidor-geral, o clero e o povo da cidade e dos ardores.(...)”92 e quatro anos depois,
no dia 20 de Setembro de 1540, teve lugar em Lisboa o primeiro auto-de-fé.
Desde então os cristãos-novos tornaram-se uma fonte de potenciais acusados que
não podia ser esgotada.93 As condições introduzidas pela inquisição fizeram com que o
judaísmo tenha se tornado uma religião menos visível mas que nunca tenha
desaparecido completamente. Para que pudessem manter a palavra dada a Deus, os
judeus, “(...)inseridos num ambiente cristão, viam-se obrigados a dar a aparência de
seguirem a mesma fé(...)”94, sempre receando de serem denunciados ao Santo Ofício,
que desejava eliminar a sua heresia e cuja actividade causava um temor omnipresente,
como descreve Cavaleiro da Oliveira em O Judeu, recitando os versos de António
Ferreira95:

89
Bethencourt, F.: História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália. Círculo de leitores, 1994, p.
90
Duarte de Paz: Duarte de Paz( ?-1541 ) foi um cristão-novo e diplomata que serviu ao D. João III mas em
segredo apoiava os seus correligionários. Depois de ter sido mandado para Roma, conseguiu a parar todas as
actividades da inquisição em Portugal até 1536.
91
Dias, E.M.: Criptojudeus portugueses, o fim de uma era. p. 16
92
Ibidem: p.
93
Bethencourt, F.: História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália. p.
94
Dias, E.M.: Criptojudeus portugueses, o fim de uma era. p. 20
95
António Ferreira: António Ferreira( 1528-1569 ) é considerado um dos maiores poetas do classicismo
renascentista português.
31
“(...)Assim vão as cousas em Portugal, no tempo em que, vivendo-as, delas dou testemunho
indignado:

‹‹A medo vivo, a medo escrevo e falo,


hei medo do que falo só comigo;
mas inda a medo cuido, a medo calo.››

Reconheceis estes versos? António Ferreira os gerou; mas assiná-los podia o Judeu, e com
ele muitos mais.(...)”96

96
Santareno, B.: O Judeu. Lisboa: Edições Ática, 1974. p. 80

32
4 O Judeu
4.1 António José da Silva, o Judeu – a obra de Bernardo Santareno

No capítulo I falámos sobre a opressão que os autores do teatro português sentiam


na altura do Estado Novo, visto que a censura não deixava subir ao palco as suas obras.
Dedicámo-nos também a Bernardo Santareno e aos outros escritores cujo desejo era
interagir na sociedade através do teatro brechtiano que apresenta certas características
relacionadas com a fábula histórica e crítica social.
Os teóricos de teatro afirmam que “(...)O Judeu de Santareno é uma das muitas
peças que reflecte os ensinamentos teóricos de Brecht e também de Piscator. O episódio
histórico, evocando uma das vítimas da Inquisição, propunha uma subleitura(...)”97 que
possibilitava demostrar os defeitos da sociedade contempôranea do autor, visto que a
história de certa maneira sempre se repete. Portanto, a luta de António José da Silva,
uma personagem significante no campo cultural e intelectual da primeira metade do
século XVIII, contra a opressão inquisitoral dava ao espectador possibilidade de
“(...)relembrar o passado para assumir crítica e militantemente o presente.(...)”98
Em consequência disto, o espectador consegue imediatamente estabelecer relação
“(...)entre o que se passa em cena e a realidade portuguesa dos anos 60 e 70. Neste
sentido O Judeu ‹‹aponta›› constantes situações à plateia e, quase sempre pela voz do
Cavaleiro de Oliveira, ‹‹comenta››, ‹‹analisa››, ‹‹solicita a reflexão›› perante quadros
que, embora situados no século XVIII, encontram correspondência relativa na nossa
actualidade.(...)”99 Portanto, pode-se dizer que o teatro torna-se mais uma vez um
espelho das deficiências sociais sempre actuais, exigindo dos espectadores pensarem na
acção e agirem.
Um dos elementos que certamente oferece aos espectadores a possibilidade de
comparar a sua actualidade com a história decorrente na cena é o facto que dentro da
obra aparecem os trechos das peças da própria personagem principal, António José da
Silva: “O Judeu recorre com alguma frequência ao efeito, sempre pleno de virtualidades
cénicas, de apresentar teatro no teatro.”100

97
BARATA, J.O.: História do teatro português. p. 392
98
Ibidem: p. 392
99
Ibidem: p. 392
100
BARATA. J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 79
33
Santareno através da obra do seu antecessor demostra em primeiro lugar, segundo
a nossa opinião, que há semelhanças entre o seu destino e de António José da Silva,
apesar do afastamento temporal de quase 200 anos. Em consequência disto, o autor do
século XX escolhe os trechos da obra de o Judeu, que abertamente falam e criticam
vários maus costumes sociais.
Bernardo Santareno, portanto, quer demostrar que o papel do dramaturgo com o
andar do tempo quase não muda e que as pessoas que o desempenham têm sido
“(...)sempre um potencial inimigo dos poderes instituídos. Trata-se de demonstrar que a
sátira de ‹‹o Judeu›› não caía em saco roto(...)”101 e é, de certo ponto de vista, actual
ainda na altura do Estado Novo. Ainda por cima, o autor moderno quer aludir à
possibilidade que o Judeu tenha sido perseguido e condenado pela Inquisição não só por
causa do seus ascendentes judaicos, mas também por causa da sua actividade literária.
Em consequência disto, é possível que o autor do século XX simplesmente queira
advertir o espectador que “(...)as barreiras entre o ‹‹real›› e o ‹‹imaginário›› são fluídas
e facilmente superáveis.(...)”102 Aquilo que se passa em cena pode acontecer na
realidade, visto que o teatro santareniano e também de António José da Silva são só um
reflexo do nosso mundo. Talvez, até possamos dizer que o autor da obra O Judeu quer
expressar a ideia que a brutalidade do século XVIII, apesar de quase 200 anos que
passaram desde o tempo no qual viveu António José da Silva, em Portugal nunca tenha
desaparecido – ao contrário, sobrevive mas tem outra face.

4.2 O Judeu – a acção

A peça é constituída por três actos que nos apresentam a vida de António José da
Silva. A vida desta personagem, desde a sua juventude retratada no acto I até a sua
morte no auto-da-fé no acto III, é o núcleo da história apresentada no palco e pode ser
considerada um ramo central do qual crescem outros ramos menores cuja função
principal é ampliar, completar e esclarecer o núcleo da história, seguindo o desejo e a
intenção do autor da obra que tenta, segundo as teorias teatrais de Brecht, influenciar e

101
Ibidem: p. 79
102
Ibidem: p. 79
34
comover os espectadores para que participem activamente na história apresentada no
palco.
Em consequência disto, ao falarmos sobre a estrutura da composição dos actos em
O Judeu, não podemos entender estrutura das cenas de maneira tradicional como nos
apresentam as formas clássicas que têm uma estrutura bem clara, possuindo um número
de cenas definido o qual se repete em cada acto, e que respeita rigorosamente as
unidades de tempo, lugar e acção.103 A obra de Santareno oferece-nos várias derivações
e o número de cenas varia em todos os actos, não respeitando nenhuma estrutura lógica
ou uma estrutura previamente determinada.
Como o autor conseguiu movimentar uma obra que, do ponto de vista estrutural,
parece ser uma mistura de cenas extremamente caótica e confusa? Como conseguiu
dominar este caos de cenas para que possa, ainda por cima, passar uma mensagem
segreta aos espectadores que devia despertar a sua consciência?
Os críticos consideram O Judeu como uma obra revolucionária - principalmente
do ponto de vista do uso das novas técnicas teatrais, até à altura da sua apresentação
nunca usadas, que têm a ver mais uma vez com as novas teorias teatrais que chegaram a
Portugal. Como afirma José Oliveira Barata: “A concentração de vários e diversos
lugares e momentos, dentro dos apertados limites do espaço cénico – qualquer que seja
– obrigou ao uso do código luminotécnico, como forma de ‹‹isolar›› o que mais
interessa em determinado momento.”104
Na verdade, Barata aproxima o uso do código luminotécnico de uma ‹‹luz que
fala››.105 Se lermos a obra de Santareno, embora o seu objectivo principal fosse com
certeza apresentar o auto no palco, claramente vamos conseguir orientar-nos dentro da
história da peça, visto que existem nela certos limites que ajudam o leitor a distinguir os
discursos e as cenas que se mutuamente sobrepõem.
O papel dos limites é desempenhado precisamente pela luz, como menciona
Barata, e não surpreende que a sua função aumenta no teatro ao vivo. A luz sublinha
marcadamente o discurso das personagens que se tornam sob a iluminação o centro de
toda a acção decorrente em cena. Portanto, através da luz o autor da obra faz sobressair

103
As unidades de tempo, lugar e acção: A unidade de acção forma uma intriga simples sem acções secundárias.
Da unidade de espaço resulta que a acção tem que desenrolar-se no mesmo espaço. A unidade de tempo afirma
que a duração de acção não deve execeder 24 horas. ( Pavis-Ubersfeld-Dohnalová, P.-A.-D.: Divadelní slovník.
Praha: Divadelní ústav, 2003. )
104
Ibidem: p. 48
105
Ibidem: p. 48
35
o que é fundamental para o espectador num determinado momento, embora haja mais
quadros retratados na cena que, ainda por cima, se podem desenrolar em vários locais e
vários tempos - em termos da história retratada. Isso comprovam as palavras de José
Oliveira Barata:

“(...)Por vezes outro papel parece destinado à planificação luminotécnica: contribuir para a
distanciação em que, por várias vezes, o espectáculo se empenha. A luz que abruptamente
passa da plenitude à escuridão, num determinado local da cena, enquanto outro foco
ilumina uma outra cena, em ‹‹local›› e ‹‹tempo›› diferentes, acaba por ser uma hábil (e
também poética) forma de resolver o sempre difícil problema das unidades de tempo, lugar
e acção.(...)”106

Como já foi mencionado no capítulo III, durante a vida de António José da Silva
começaram a aparecer em Portugal as primeiras opiniões iluministas que na altura
dominavam quase toda a Europa. Portanto, a luz que ilumina a escuridade no palco pode
ser considerada também um símbolo da luz da razão iluminista que desvela a
decâdencia de Portugal da época do Judeu. O seu esplendor, que passa de um momento
a outro da personagem de Cavaleiro de Oliveira e os outros iluministas à corte real junto
com Santo Ofício, demostra marcadamente duas divergências absolutas. Por um lado
tomamos conhecimento de um grupo social progressista que abertamente quer criticar e
proclamar as ideias liberais, por outro encontramo-nos com um reaccionarismo,
opressão e decadência extrema, o que chama a atenção do espectador, como novamente
comprova José Oliveira Barata:

“(...)A eficácia e funcionalidade da personagem exigem que o leitor a assuma como


símbolo. Símbolo da razão, da clarividência crítica, num século de obscurantismo. Símbolo
ainda de corajosa denúncia em tempos que aconselhavam prudente silêncio.(...)”107

Além disto, podemos ainda dizer que a luz, junto com a escuridade, estabelece
não só os limites criados para que seja garantida a diferença entre os espaços e tempos
mas também os limites sociais e ideológicos que são intensificados por uma distribuição
rigorosa da cena que separa as personagens as quais pertencem a certos círculos que se
diferenciam segundo o seu comportamento, pensamento e estatuto social. Porém, apesar
de serem separados, influenciam-se e marcadamente interagem de maneira como
acontece no mundo e na sociedade real.

106
Ibidem: p. 49
107
Ibidem: p. 52
36
Aceitando esta hipótese, acontece que dentro da obra podemos distinguir
claramente o círculo da corte real que influencia a acção do Santo Ofício, como afirma
José Oliveira Barata:

“(...)Convirá todavia reter que entre o poder de estado, representado pelo paço, e o poder
religioso, existia uma estreita ligação. Quase se pode dizer que é muito difícil, em termos
práticos (formalmente as fronteiras encontravam-se ‹‹teoricamente›› definidas!), dizer onde
acaba a decisão do paço e começa a execução inquisitorial. Daí que no esquema que
propomos tenhamos assinalado essa ligação por um ‹‹corredor de influência›› directo e bem
visível.(...)”108

Em consequência disto, podemos afirmar que existe também uma estreita relação
entre a acção do círculo do Santo Ofício e o círculo no qual se encontra António José da
Silva. A Inquisição através dos seus actos influencia e determina a atitude da gente
portuguesa e dos cristãos-novos, incluindo o Judeu, como vamos comprovar nas
próximas páginas do nosso trabalho.

4.3 O Judeu – resumo da acção

Acto I

Logo no início da peça, encontramo-nos com o jovem António José da Silva que
junto com a sua mãe Lorença de Coutinho e os outros cristãos-novos tornou-se objecto
do ódio da multidão que demostra uma aversão forte contra os judeus. Os dois são
condenados no auto-da-fé pelo Santo Ofício e são forçados caminhar penosamente
através da cidade, sempre afrontando o ódio do povo português que se está regozijar
com a sua tragédia e com o seu destino desagradável:

“(...)Súbita e total obscuridade no palco, logo desfeita pela luz dum projector que,
circunscritamente, ilumina o grupo formado pelo Judeu e por Lourença que veio colocar-
se junto e um pouco atras do filho. Ocupam uma zona de centro-fundo de cena e mimam a
‹‹marcha contra o vento›› pelas ruas de Lisboa.(...)

108
Ibidem: p. 63
37
(...)1.a Mulher velha
(Que, tal como as outras personagens que neste quadro vão surgindo, é do povo,
miserável. Persignando-se.) Credo, Santo Nome de Maria! Sus, daqui pra fora! Cães do
Diabo!... (António José e Lourença retomam a marcha: Ele à frente, com medo,
envergonhado; ela logo atrás, quase serena, resignada, mártir.)

1.a Mulher nova


(Aparecendo do lado oposto ao da 1.a Mulher Velha.)
Porcos judeus!! Furem os olhos à cabra! Cortem a língua ao chibo!...(...)”109

Toda a situação anterior é acompanhada por uma testemunha silenciosa, Cavaleiro


de Oliviera, que se apresenta após alguns instantes aos espectadores como uma
personagem que é exilada em Londres devido à perseguição inquisitoral. Apesar de não
estar contente de ficar nesta cidade, constata que é melhor respirar livremente num país
estrangeiro do que em Portugal dominado pela opressão do Santo Ofício. Deste
momento Cavaleiro torna-se um acompanhante que induz os espectadores nas situações
apresentadas no palco, comentando e completando, muitas vezes ironicamente, todas as
realidades e factos introduzidos na cena.

“(...)É agora que os espectadores vão conhecer o Cavaleiro de Oliveira que, nesta peça,
desempenhará o papel de narrador-comentador. Sentado numa velha mas bela e cómoda
cadeira da época, colocada à extrema direita, ou esquerda, num plano intermediário entre
o palco e a plateia, a luz vai-no-lo mostrando suave e gradualmente, até à perfeita
nitidez.(...)Dum modo geral, fala em tom displicente, um tanto desencantado, sempre à
beira do dito irónico, aceradamente lúcido: Através desta civilizada ironia, escoa ele
desesperos, dolorosas humilhações, fogos de paixão latente, indignadas rebeldias,
violências agressivas...(...)”110

Os seus primeiros comentários dedicam-se à situação desenvolvida numa sala


real. Através da sua fala tomamos conhecimento do carácter do rei D. João V e dos seus
conselheiros e descobrimos que o caso de António é tratado até na corte real. Depois, a
acção passa a uma outra sala onde nos encontramos com os representantes mais
importantes da Inquisição portuguesa. Chegamos a ser testemunhas da conversa entre os
inquisidores os quais falam sobre a sua missão e o delito do dramaturgo, concluindo que
“(...)o judeu, com justiça ou contra ela, cumprirá a penitência do Santo Ofício.(...)”111
Entretanto, a cena passa de novo ao jovem cristão-novo que, apesar de todas as
dificuldades e aflições, vive a sua vida estudantil ao lado dos seus colegas, tentando
escapar à realidade horrível através do teatro. Os seus amigos da escola apoiam-no e

109
Santareno, B.: O Judeu. 27-28
110
Ibidem. p. 38
111
Ibidem. p. 85
38
aplaudem as suas réplicas mas aparece um Estudante pálido que desperta mais uma vez
o medo de António, sendo considerado por Cavaleiro de Oliveira o medo que governa
em Portugal nessa altura.

“(...)Estudante Pálido apenas acentua mais o sorriso cruel; em movimentos pausados,


precisos, fecha a janela; desaparece. Silêncio. António José, a medo, volta-se e verifica a
saída dou outro. Então, numa corrida-descarga, vem até ao primeiro plano; tropeça e cai
de bruços. A luz de cena vai diminuindo, para toda se concentrar num foco dirigido à face
do Judeu: Olhos desorbitados, lábios entreabertos e trémulos, movimentos descomandados
das mãos. Possesso do medo, António José como que implora auxílio aos espectadores.

Cavaleiro de Oliveira
(Com desgosto e revolta.) Medo. O mesmo medo que enruga a mais pura alegria, que gera
cobras na cama dos amantes, que deita neve nos mais negros cabelos, que seca o leite no
peito das mães... No meu país quem governa é o medo!(...)”112

O primeiro acto acaba com a cena do auto-da-fé em Lisboa no qual participa o rei
D. João V e António José. Esta cena retrata, por um lado, a apatia do rei no que respeita
às questões financeiras e, por outro, o ódio da gente portuguesa apontada contra os
cristãos-novos, mostrando também o seu grande sofrimento.

Acto II

No início do segundo acto encontramo-nos pela primeira vez com Leonor que
chegou à casa do seu primo António José e da sua tia Lorença, depois de ter sido
perseguida pela Inquisição espanhola. Encontra-se novamente, pela primeira vez desde
a sua infância, com o Judeu que já finalizou o estudo e trabalha como advogado em
Lisboa. O cristão-novo, tendo compaixão com o destino trágico da sua prima, enamora-
se de Leonor a qual lhe dá trela.

“(...)Sai. António José e Leonor, cujas mãos se mantêm unidas pelo mútuo movimento de
dor, piedade e simpatia desesperada, ficam inquietos, perturbados: Separam-se.
Expectativa alvoroçada. Com dorida ternura, António José de novo busca, com as suas, as
mãos de Leonor, que consente. Suavemente, quase em atitude religiosa, o Judeu debruça-se
113
e beija os cabelos de Leonor.(...)”

112
Ibidem. p. 93
113
Ibidem. p. 112
39
Depois da cena inicial, aparece de novo a personagem de Cavaleiro que comenta o
amor dos jovens. Em seguida, este narrador atípico dedica-se às aventuras amorosas de
D.João V e ao tema do mal-estado de Portugal. Nesse momento misturam-se no palco
duas cenas ao mesmo tempo: a primeira do rei e as suas aventuras amorosas e a segunda
do Inqusidor-mor quando conversa com 1.o Inquisidor que duvida da sua missão. O
Inquisidor-mor tenta convencer o seu inferior sobre a necessidade do Santo Ofício,
defendendo o seu papel em Portugal. Entretanto, o amor de António e Leonor deu frutos
e os dois casam-se. Desta união amorosa nasce uma filha e a vida do casal passa sem
maior preocupação até ao momento quando de novo aparece na cena o Estudante pálido.

“(...)(Escuro na cela do Inquisidor-Geral. Luz sobre a rampa: Casamento simbólico de


António José e Leonor, segundo o rito judaico, fazendo Lourença de oficiante: Esta, na
parte mais alta da rampa, empunha uma taça cheia com vinho; na zona média estão, lado
a lado, António José e Leonor; mais abaixo, alguns Convidados e os Criados da Casa,
entre os quais a Escrava Negra. Vozes, expressões faciais, gestos e roupagens tudo terá
uma simplicidade ritual, hierática.)(...)
(...)António José e Leonor começam sobre a rampa, subindo, a ‹‹marcha contra o vento››,
que aqui será contra o tempo, marcando a sucessão do mesmo.(...)
(...)Leonor, com gestos e pela maneira de andar, mostrará aos espectadores a sua gravidez
crescente.(...)
(...)Chegados ao cimo da rampa, Leonor e António José saem do palco, por momentos.
Ouve-se ruído estridente dum choro de recém nascido.(...)
(...)De súbito, Leonor corre para ela e tirra-lhe a criança, indo esconder-se atrás do corpo
de António José: Aterrorizada. O Judeu, instintivamente, protege com o seu corpo os
corpos da mulher e da filha: Ansioso, a tremer, olha fixamente um sítio do palco onde, da
sombra, surgiu o rosto sibilino do Estudante Pálido, vestido agora como um pequeno
fidalgo da época. Olha, sempre sorrindo, para o grupo de António José com Leonor e, sem
uma palavra, lentamente, desaparece no escuro.(...)”114

Em consequência disto, Leonor tenta fazer compreender António a necessidade de


fugir de Portugal, tendo medo dos preconceitos invisíveis que por baixo do pano
dominam a sociedade lisbonense e que sempre põem em perigo as suas vidas. Porém, o
marido não dá ouvidos aos pedidos da sua esposa e afirma que consegue superar todos
os males dirigidos contra eles através do teatro e riso.

“(...)António José
(Febril.) Juro. Juro, Leonor, que mais esta peleja hei-de vencer. Hei-de trazê-los a mim,
hei-de conquistá-los!(...)Que ódio, o mais ramoso e torcido, o mais escuro e remoto, poderá
vencer o riso?! Rindo, comigo e pela minha voz, dirão: Esta cousa é aleivosa e injusta,
aquela outra mui digna e justa: esta nobre e verdadeira, aquela vil e mascarada; isto é limpo
e são, aquilo sujo e chagado... Como braços dum mesmo corpo, cabelos duma só cabeça,
olhos da mesma face, eu com eles seremos! Hei-de conquistá-los, hão-de amar-me!!(...)”115

114
Ibidem. pp. 130-134
115
Ibidem. pp. 137-138
40
Logo depois, começa na cena o teatro no teatro e é apresentada uma parte da obra
Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança de António
José a qual é seguida pelos Inquisidores e Estudante pálido e que critica os males de
Portugal. Assim, o Judeu cai nas graças do povo português mas, apesar disto, sempre há
línguas malignas que o dramaturgo não consegue silenciar.

Acto III

O terceiro acto começa na casa de António José quando a sua mãe Lorença tem
um sonho profético de uma previsão do sofrimento dos judeus nos campos de
exterminação nazis durante a II guerra mundial. Este sonho causa um grande medo de
Lorença e Leonor, enquanto a personagem principal sente-se forte porque acha que
conseguiu conquistar o povo lisbonense e cresceu em popularidade através do seu
teatro, afirmando que não acredita em pesadelos ao ver a admiração amável dos
portugueses.

“(...)António José
(Com quase raiva, numa afirmação desesperada; correndo de Lourença para Leonor.) O
que é um sonho, minha mãe? Que valimento, que peso tem um sonho?! Medos, profecias,
sonhos, fantasmas, presságios...? Sombras, nuvens negras, pobres e incorpóreas sombra que
a luz real do dia, a voz dos que me aclamam e glorificam... em um instante, esbandalha e
desfaz. Eu creio tão-só nos gritos que ouço, nos corpos que apalpo: E estes são meus! Só a
realidade conta, vale e pesa. A realidade é ser António José da Silva, o Judeu, um rei, no
Teatro do Bairro Alto. Um rei! O povo ama-me: Ri quando eu quero, e de quanto eu queira;
pensa o que eu mandar que ele pense.(...)”116

Ouvindo a proclamação de António, Cavaleiro de Oliveira primeiro apresenta a


nova peça de o Judeu e, depois, comenta o discurso anterior do dramaturgo, tentando
adverti-lo. O narrador enumera várias pessoas famosas as quais, apesar da sua fama
gloriosa, acabaram por serem condenados pelo Santo Ofício. Entretanto ouvem-se as
vozes do povo que proclama o desejo de entregar nas mãos do tribunal inquisitoral
Alexandre Gusmão que, ao enfrentar esta situação, “(...)termina olhando o povo que o

116
Ibidem. p. 161
41
vaia, com uma grande tristeza, compadecida e desanimada.(...)”117 Em consequência
disto, o comentador da acção omnipresente glosa a situação em cena e acusa a
Inquisição do mal-estado de Portugal.
Depois, é apresentada uma parte da obra Esopaida ou Vida de Esopo do Judeu,
que critica através da alegoria a sociedade portuguesa dominada pela decadência. A
peça é bem aceite pelo público, mesmo como por Cavaleiro que é encantado por ela o
que provoca as suas novas criticas ao Santo Ofício.
A cena passa ao momento no qual decorre a prova de uma nova obra de António
José – desta vez se trata da obra Guerras do Alecrim e Manjerona. O Judeu neste
momento disputa com os seus actores e tomamos conhecimento, através do discurso,
que a instituição inquisitorial luta contra eles, tentando obstaculizar a sua actividade
teatral. António, num discurso ardente, proclama que eles conseguem instalar na
sociedade a justiça porque possuem uma arma forte, o teatro.

“(...)Amassando, com as minhas mãos, a mentira, a fealdade, a traição, o despudor... – que


tudo isto sois e encarnais! – eu posso ensinar o Povo a conhecer o rosto autêntico da beleza,
da verdade, da coragem, da virtude... Posso! Este teatro é, tem de ser!, para mim, para vós
outros, como um sacramento: Mal pisamos este estrado, logo de cada um de nós se
descasca – seca, rugada, grossa, pestilenta – a crosta miserável das vidas que, lá fora,
obrigados somos de viver! E renascemos belos e justos, bons e puros. E damos, a quantos
nos vêem e escutam, a beleza, a justiça, a castidade... de que hão mister para bem viver. Isto
podemos: isto faremos!! Não com a inocência da pomba, não com os olhos da águia – que
estas não no-los permite a censura do Santo Ofício! - , mas com prudência da serpente:
Com riso, pelo riso. Que bandeira, vingança e rebeldia, o riso ser pode também!...(...)”118

Durante a apresentação de Anphitrião ou Jupiter e Alcmena encontramo-nos com


a actriz Petronilha, uma dama que Cavaleiro de Oliveira tinha conhecido já há muito
tempo e que é uma das amásias do rei D. João V que a mandou como uma espiã para o
Teatro de Bairro Alto. Descobre-se que o rei está zangado por causa das peças de
António, cheias das críticas dirigidas contra à sua atitude real, e durante a própria
encenação, que mais uma vez ataca o comportamento do rei, o monarca revela a sua
presença no auditório mas, no fim, acaba por rir, o que causa uma reacção e comentários
positivos por parte de Cavaleiro de Oliveira, embora o narrador tenha proclamado
pouco antes um futuro infeliz para o Judeu.
A sua previsão passa a ser verdadeira no momento em que o Estudante pálido vem
buscar António junto com os familiares do Santo Ofício. O protagonista torna-se
117
Ibidem. p. 165
118
Ibidem. pp. 181-182
42
prisioneiro e o espectador descobre que o cristão-novo foi denunciado pela escrava
negra que tinha trabalhado na sua casa e queria vingar-se porque a Leonor a tinha
batido, achando que a Escrava tinha roubado dinheiro. Do discurso sabe-se também que
a criada tinha sido dirigida ao Santo Ofício por Estudante pálido.

“(...)1.o Inquisidor
(Manso sempre.) Espera ainda. (A Escrava que, descontrolada, ia levantar-se, senta-se de
novo.) Dize: Porque tua ama Leonor te bateu, foi que tu aqui vieste fazer denúncia?
Vingança bem tirada e mui segura, deste modo acharias...?!

(...)
Escrava negra
Ela jura que eu lhe roubei dinheiro!... (Assomo de fúria:) Mente, mente!! Com quantos
dentes tem na boca peçonhenta, ela morde na verdade! Não roubei, meu Senhor, não
roubei! Olhos de víbora, poço de fel, matadora de Nosso Senhor...!
2.o Inquisidor
Sai agora. O Santo Tribunal está...

1.o Inquisidor
(Cortando.) Espera. E quem te mandou que ao Santo Ofício viesses?

Escrava Negra
Um bom, um abençoado Senhor que na rua me achou, fugida e mui dolora das chicotadas:
Logo com pomadas de botica me cobriu, e com mui doces palavras me consolou... Um
santo Senhor...

1.o Inquisidor
(Sombrio, ameaçador.) Dá-me o nome dele?

Escrava Negra
(Com medo.) Não sei... não disse...? Familiar contou ser... vosso... da sagrada e santíssima
e... Santa Inquisição...!? Bem parecido ele é, de doce fala e rico trajar... Ah, mui precioso
em tudo, todo de respeito ornado...! E a cara? De anjo que não de criatura humana, ele
parece e é! Mui mimoso e pálido de pele, o nariz com...(...)”119

Após o interrogatório da escrava, é interrogado também o companheiro da cela do


Judeu que o difamou. Cavaleiro de Oliveira diz que existe ainda possibilidade de que
António possa ser salvo pelo rei mas nem o próprio narrador acredita nisso.
Depois de ter proclamado as suas dúvidas, o comentador torna-se testemunha da
conversa entre D. João V e o Inquisidor-mor sobre a liberação de António José. Apesar
do poder absoluto do monarca que pode decidir qual será o destino do dramaturgo, no
fim, o rei acaba por ser convencido pelo Inquisidor-mor e, em consequência disto, o
Judeu é posto em tormentos durante os quais confessa o seu delito de ser judeu e
judaizante.

119
Ibidem. pp. 212-214
43
“(...)António José
(Ao sofrer, pela 2.a vez, as dores do tremendo esticão, não se domina: cede.) Confesso!...
Por amor de Deus, tirai-me daqui!... Confesso!... Quanto quiserdes, eu confessarei!...
Confesso!... Confesso!...

(...)
António José
(Ainda suspenso.) Por amor de Deus!... Confesso!... Confesso!...

(O Inquisidor-mor dá sinal ao Carrasco. Este faz deslizar a corda: Quando o corpo


traumatizado do Judeu chega ao chão, nele tombando dorido e inerte, nesse momento
apagam-se de súbito as luzes todas do palco. Obscuridade completa em cena. Luz sobre o
Cavaleiro de Oliveira. Durante algum tempo, ampliados pelo eco, ainda se ouvem os gritos
rasgados de António José: ‹‹Confesso!... Confesso!...››)(...)”120

A obra fecha-se com um discurso de Cavaleiro de Oliveira que apela aos


espectadores para não se esquecerem da história de António José da Silva, da sua
inocência, da sua juventude, do medo que viveu e que sempre enfrentava com uma
coragem impressionante, apesar da angústia que sentia. O narrador proclama para que
seja iluminado o povo de Portugal e desapareça o ódio.
A última cena mostra um padre secular que proclama publicamente os títulos da
acusação de António José que são acompanhados pelos gritos entusiásticos do povo.
Depois, “(...)ilumina-se o vitral do fundo: Este deixar-nos-á ver as chamas duma
fogueira, cada vez mais altas, até que por inteiro o enchem. Atingem o máximo, o canto
inquisitoral e o ódio sanguinário do povo.(...)”121

120
Ibidem. pp. 232-233
121
Ibidem. p. 240
44
5 Santo Ofício
5.1 Santo Ofício – um tema ficcional na literatura portuguesa

O fenómeno da Inquisição tornou-se para os escritores de todo o mundo uma fonte


inesgotável que encanta e desperta interesses dos leitores ainda hoje em dia. O
fenómeno que ultrapassou as fronteiras da Europa e foi exportado aos outros
continentes, graças à colonização, é, na verdade, um tema que tem sempre alguma coisa
para oferecer aos escritores e leitores, visto que penetrou todas as sociedades e causou
as impressões e sensações tão fortes que deixaram uma marca profunda em todos os
lugares onde a Inquisição apareceu e agiu. Como afirmou Moacyr Scliar:

“(...)A Inquisição é um tema fascinante. O efeito da Inquisição sobre o nosso país... São
duzentos anos de repressão, em que a população do Brasil colonial vivia sob permanente
ameaça. Quem sabe até que ponto esse fenómeno não condicionou o carácter
brasileiro?(...)”122

No capítulo III tratámos da Inquisição cuja função principal era combater as


heresias que ao longo da história apareciam em toda a Europa. Constatámos também
que a actividade do Tribunal inquisitoral em Portugal não se pode separar do elemento
dos cristãos-novos os quais no território português eram considerados no século XVIII
os maiores heréticos e, portanto, os inquisidores davam-lhes a maior atenção.
Comprovámos também que, além do facto que os cristãos-novos eram quase em
todos os casos judaizantes, possuíam uma riqueza imensa o que levava consigo uma
inveja enorme que chamava atenção não só da gente geral, mas também da Inquisição e,
muitas vezes, da corte real, incluindo o próprio rei. Na verdade, “(...)hoje, lendo os
processos de inúmeros condenados, vê-se que a fé nem sempre foi o motivo primeiro
que levou a Inquisição a perseguir e matar tantos inocentes. Não exagera Frei Pantaleão
de Aveiro quando trata os membros do Santo Ofício como “os carrascos da
Inquisição.(...)”123
Em consequência disto, quando falamos da literatura ficcional portuguesa que
trata do Santo Ofício quase não dá para separar esta instituição do fenómeno cristão-
novo. Parece que estes dois são inseparavelmente ligados um ao outro. Este facto

122
Pereira, P.: Inquisição: Entre história e ficção na narrativa portuguesa. Em Colóquio Letras, número 120.
Lisboa: Lisboa Codex, 1991. p. 122
123
Ibidem: p. 119
45
comprovam vários títulos que apareceram ao longo do desenvolvimento da literatura
portuguesa. Um dos exemplos que justifica a nossa afirmação é O Físico Prodigioso de
Jorge Sena que retrata uma história de um médico da Idade Média que acaba por ser
condenado pelo Santo Ofício por possuir poderes mágicos prestados pelo demónio.
Como explica Pereira, “(...)a associação do médico ao demónio que aparece na obra
nada tem de fantástico, uma vez que grande número de médicos judeus foram
condenados à fogueira sob a acusação de pacto com o diabo no período de vigência da
Inquisição em Portugal.(...)”124
Além deste título que foi publicado no século XX, há vários livros que captam o
tema da Inquisição e foram publicados ainda antes da extinção do Santo Ofício no
território português como, por exemplo, a Arte de Furtar(1652) ou Monstruosidades do
Tempo e da Fortuna(1662-1680). Muitos dos títulos foram publicados anónimos e
criticavam abertamente a actividade do tribunal inquisitoral o que, claro, causava fortes
reacções por parte dos seus oficiais. Com o andar do tempo, depois da extinção da
instituição inquisitoral após a Revolução Liberal no século XIX, o número da literatura
ficcional que tratava da Inquisição cada vez mais aumentava, visto que este tema
impressionava, como já foi mencionado, largas massas dos leitores. Saíram os títulos
como Cavar em Ruínas(1920) de Camilo Castelo Branco, Memorial do Convento(1982)
de José Saramago ou A Casa do Pó(1986) de Fernando Campos. Entre eles podemos
enquadrar também O Judeu, visto que todos estes títulos entreligam o facto histórico
com o elemento ficcional.
Na verdade, as obras acima mencionadas possuem vários graus de verdade
factual. Cada uma trata da questão inquisitoral de sua maneira e apresenta os factos
históricos diversamente. A posição perante esta problemática foi bem captada por
Nicolau Sevcenko:

“(...)A dimensão histórica presente em cada um desses textos é tão peculiar e elas são tão
adversas entre si, que o seu confronto suscita a inferência do grau complexo de
transformações estruturais que levam de um ao outro. Dessa forma, lê-se a história
simultaneamente ao acto de ler-se literatura, reproduzindo como que pelo avesso o
movimento de quem fez história fazendo literatura.(...)”125

124
Ibidem: p. 118
125
Ibidem: p. 119
46
Se falarmos, portanto, de O Judeu, é preciso mencionar que a obra de Santareno
“(...)ultrapassa os dados histórico-documentais de que podemos dispor sobre a vida de
António José da Silva. Para além disso, Santareno, não tendo como objectivo último um
trabalho rigorosamente histórico sobre a figura de ‹‹o Judeu››, acaba por fazer suas
algumas opiniões(...)”126 que têm a ver com o teatro de Brecht e a sua intenção de
mudar a sociedade portuguesa porque a sua obra simplesmente não é escrita por um
historiador mas por um dramaturgo cujo objectivo principal não é investigar e, em
consequência disto, não tem de passar rigorosamente os conhecimentos da história.
Como proclamou o teórico de literatura Robert Scholes na sua obra127, se
parafrasearmos as suas palavras, a história é um discurso narrativo que possui e respeita
outras regras que a ficção. Segundo a sua opinião o criador de um texto historiográfico
afirma que os acontecimentos apresentados no texto antes da sua apresentação na
verdade ocorreram.128 Portanto, se quiséssemos avaliar e interpretar um texto histórico,
seria conveniente procurar também outros textos que tratam destes acontecimentos. Por
outro lado, Scholes proclama que a situação da ficção é outra questão porque dentro da
ficção pode-se afirmar que os acontecimentos foram criados pelo e através do texto.
Estes acontecimentos não possuem nenhuma existência no tempo anterior.129
O sinónimo da palavra ficção que o dicionário130 oferece é inverdade, aparência,
ilusão ou abstracção. Se falarmos da ficção em termos da literatura, o termo é ligado ao
discurso que não se refere propriamente ao nosso mundo, ou seja, pode usar algumas
realidades do nosso mundo, não respeitando precisamente a sua função e inserção no
ambiente real, o que cria já mencionada inverdade ou abstracção.131 Por outras palavras:
as obras de literatura de ficção criam o seu próprio mundo sobre o qual referem. Estas
refêrencias que resultam do discurso e descrição – no caso do teatro do discurso e da
cena - não têm de estar obrigatoriamente de acordo com o contexto do mundo real que
se encontra fora do texto ou do palco.

126
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 79
127
Em Language, Narrative and Anti-Narrative.
128
Acrescentamos ainda que o ponto de vista histórico nem sempre é igual ou até verdadeiro, visto que depende
também da época e a atmosfera na qual o historiador escreve. A história muitas vezes se acomoda segundo os
mandamentos da política actual e também as opiniões do autor que tenta analisar os factos históricos com um
objectivo antecipadamente estabelecido.
129
Cohnová, D.: Co dělá fikci fikcí. Praha: Academia, 2009. p. 30
130
http://slovnik-cizich-slov.abz.cz/web.php/hledat?typ_hledani=prefix&cizi_slovo=fikce
131
Ibidem. pp. 32-34
47
Portanto, a obra constitui um mundo fechado no qual funcionam as regras e
relações independentes do nosso universo e, em consequência disto, o leitor ou
espectador, como acontece no nosso caso, sabe sobre este mundo só aquilo que lhe é
transferido através das refêrencias textuais. Por exemplo, no caso de O Judeu somos
capazes de descrever a personagem do Estudante pálido do ponto de vista fisionómico
mas nem sabemos qual é o seu nome, nem quantos anos tem porque não aparece na obra
nenhuma informação referente a esta questão.
Então, pode-se dizer que a ficção amplia o universo, criando novas personagens,
novas relações e novos acontecimentos. Principalmente, através das novas personagens
forma-se um novo mundo que de certa forma tenta completar a nossa realidade. Assim,
no caso da literatura de ficção que capta vários temas da história, é de admitir que esta
dá-nos possibilidade de reconquistar uma história perdida, uma história oculta sob um
aluvião de tempo que nunca conseguimos reconstruir absolutamente. A ficção quer
explicar-nos de certa maneira o nosso passado e aproximá-lo à nossa percepção actual,
dando-nos respostas às nossas questões e esclarecendo todas as causas e ideias ocultas
que influenciaram a sua evolução.
Porém, como já foi mencionado, o escritor não é historiador. Ao contrário, o autor
de uma obra literária pode fazer da sua obra uma propaganda das opiniões, ideias e
pontos de vista, tentando influenciar os leitores sobre as suas verdades exprimidas no
papel. Nesse momento a história torna-se um plano secundário. É o próprio autor que
cria o mundo dentro do texto, que pode respeitar voluntariamente a verdade histórica, e
só do leitor depende se o aceita ou não. Não deveríamos esquecer-nos disto.

5.2 Santo Ofício – a força determinante em O Judeu

Mencionámos na parte anterior que separar o elemento judaico da actividade


inquisitoral no caso de Portugal é quase impossível, visto que a acção do Santo Ofício
no território português dedicava-se praticamente exclusivamente aos cristãos-novos que
eram considerados os maiores heréticos que traíam a fé cristã.
Este facto reflecte-se marcadamente também na obra de Santareno que conheia
bem o processo de António José da Silva; e também o dos seus familiares mais

48
directos,132 mesmo como todas as circunstâncias ligadas à sua vida. É o facto
indiscutível que a vida do dramaturgo do século XVIII foi marcadamente influenciada
pela sua origem judaica e, em consequência disto, pela actividade inquisitorial:
“António José, Lourença Coutinho, Leonor, todos parecem sentir de forma especial o
anátema que sobre eles pesa: o ser judeu.”133 A origem judaica significa na obra de
Bernardo Santareno, mesmo como na realidade do século XVIII, o sinónimo da
desgraça e desespero, visto que causa um ódio insuperável que se sente fortemente ao
longo da peça e do qual os espectadores tomam conhecimento já no primeiro momento
na voz do Padre Pregador:

“(...)Padre Pregador
(Impondo silêncio.) Judeus conversos? Cristãos-novos? Que venham sus!... E são este
heresiarcas – verdugos do Senhor, matadores de Jesus! – que possuem a grossura desta
terra, onde habitam com mais folgança que muitos de vós, seus naturais: Os Judeus – eles
são praga, neste infeliz reino! – não lavram, nem plantam, nem constroem, nem
guerreiam... Qual quê?! Vivem do trabalho suado dos outros, sem esforço dos membros
próprios, ociosos e cozidos de todas as manhas!... Como os ratos correm ao queijo, eles vão
de desgraça em desgraça, de miséria em miséria: Enganam, corrompem, roubam... E desta
sorte, ainda por cima, acham mando, honra favor e dinheiro! Nunca houve, não há, nem
jamais haverá, nação mais inclinada à usura que a nação judaica: já o disse São Jerónimo, já
o gritava Santo Agostinho!(...)”134

Na verdade, a voz do Padre Pregador resume todas as culpas que se ligavam ao


povo judaico da Idade Média e do século no qual decorre a acção da peça. Os Judeus
eram vistos como uma “(...)raça de víboras(...)”135 culpada de todos os males. Como
uma prova exemplar desta culpa ilegítima, que é mencionada também por Grigulevič,
pode servir o ano 1505 quando os Judeus em Lisboa foram acusados de uma epidemia
da peste e má colheita. Em consequência disto, começaram os pogromes contra eles em
todo o reino. Os fanáticos pilhavam os bens dos cristãos-novos e mandavam-nos à
fogueira. Durante dois dias morreram mais de 3000 pessoas.136
É interessante o facto que Santareno menciona no discurso do Padre Pregador as
personagens de São Jerónimo e Santo Agostinho. Estes dois grandes teóricos da fé cristã
são também dois pilares nos quais se baseavam as justificações dos inquisidores perante
a questão da tortura e fogueira. Segundo as teses de Santo Agostinho, um castigo, seja
qual for, não deveria ser considerado um mal mas um acto de amor religioso. Este amor

132
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 66
133
Ibidem. p. 67
134
Santareno. B.: O Judeu. p. 11
135
Ibidem. p. 11
136
Grigulevič, I.R.: Dějiny Inkvizice. Praha: Svoboda, 1973. p. 259
49
compromete a obrigar uma alma errante a declinar das opiniões malignas. Como
proclamou Santo Agostinho, a ameaça da tortura ou da morte obriga a alma errante
escolher: pode seguir mau caminho, sofrer o tormento e morrer, ou pode desistir do
dogma falso voltar ao seio da Igreja.137 É de mencionar que os inquisidores muitas
vezes preferiam a primeira opção visto que esta alternativa levava consigo uma solução
permanente e, ainda por cima, possibilitava a confiscação de todos os bens do
condenado. A teorias de Santo Agostinho reflectem-se na rétorica do Inquisidor-mor na
cena em que tenta convencer o seu inferior sobre a necessidade e função do Tribunal em
Portugal:
“(...)Inquisidor-Mor
Eu amo e desejo os autos-de fé. Desejo-os com todas as potências do meu coração e da
minha consciência! Os autos-de-fé, os queimadeiros, são o reflexo, ainda que pálido e
distante, da face irada de Deus! São gritos vitoriosos da Justiça conspurcada, amostras
aparentes de quanto pode o inquisitoral exército, espectáculos do Medo! Crê, Diogo, que só
o medo tem poder para arrancar o Homem do braços malditos do Demónio! Pelo menos
neste passo da história do mundo. Sim, meu filho, mais que a tudo, eu amo as fogueiras do
Santo Ofício, os gritos de dor dos condenados, o cheiro das suas ardidas carnes, a luz
implacável e bela das chamas! Queria, queria com todas as minhas forças vê-las brilhar
neste reino endemoinhado, desde o Norte até ao Sul, cada vez mais numerosas, mais e
mais...!
(...)
O Santo Ofício os obrigará a bem escolher!! Supliciados injustamente? Vítimas inocentes
da Santa Inquisição? Muitos o terão sido e, por certo, muitos outros o virão a ser! Mas
estes mesmos não perdem, ganham: O seu sofrimento não é já penitência, antes ofertório de
mártires; do fogo, subirão até ao seio de Deus, ao canto da eterna glória. Nãosão vítimas,
Diogo, antes eleitos. (...)”138

O fanatismo do Inquisidor-Mor força o espectador a pensar na sua insensibilidade


extrema. Na verdade, esta personagem reflecte toda a crueldade dos inquisidores que
desempenhavam o seu papel dos defensores da fé e dos salvadores de almas com uma
vivacidade famigerada. Pelo seu fanatismo, o Inquisidor-Mor assemelha-se a Tomás de
Torquemada139 que durante a sua função, como afirma Grigulevič, entre 1480-1498
mandou mais de 100 mil pessoas à fogueira ou deixou-as sofrer no auto-de-fé, forçando-
as a usar o vestido penitencial, ou confiscou os seus bens.140 Os Inquisidores possuíam
um poder absoluto e ninguém, além do próprio papa, podia excomungá-los e demiti-los
do cargo: “A Inquisição existia como um verdadeiro estado dentro do Estado.”141

137
Ibidem. p.54
138
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. pp. 80-81
139
Tomás de Torquemada(1420-1498): Tomás de Torquemada foi um inquisidor-geral de Castela e Aragão que
é conhecido pela sua campanha contra os judeus e muçulmanos convertidos da Espanha.
140
Grigulevič, I.R.: Dějiny Inkvizice. p. 217
141
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 21
50
Porém, nem sempre todos os Inquisidores estiveram de acordo com a sua missão
no mundo terrestre. Com “(...)frio e sereno Inquisidor-mor, verdadeiro político a quem a
fé parece reforçar uma mística, contrasta o problemático e torturado 1.o Inquisidor que,
logo no início, se apresenta ao público como alguém que encerra em si um dilema
insanável(...)”142 como comprova o seguinte texto:

“(...)1.o Inquisidor
(Aparando o golpe, firme, a olhar o outro nos olhos.) Sou Inquisidor! Sirvo no Santo
Ofício há quase cinco anos: Vi bastante, meditei muito e algo aprendi...

Inquisidor-Mor
(Sem erguer os olhos do processo.) Viste pouco. Meditaste mal. Não aprendeste nada.

1.o Inquisidor
(A sofrer, baixando a cabeça.) Vi, meditei e aprendi quanto basta para ser capaz de
condenar à fogueira um homem, contra a minha consciência.

Inquisidor-Mor
(Força serena.) Onde reside então o erro, Diogo? Na tua consciência? (Cravando os olhos
nos do 1.o Inquisidor:) Ou na consciência do Santo Ofício?...

1.o Inquisidor
(Sincero, torturado.) Não sei... Não sei, Reverendo Padre.(...)”143

Para dizer verdade, ao termos estudado os materiais referentes ao tema da


Inquisição, não encontrámos nenhuma menção que tratava aos Inquisidores que se
tivessem oposto ao sistema ao qual tinham servido de maneira como acontece no caso
do 1.o Inquisidor em O Judeu. Isso não surpreende, visto que a ideia do Santo Ofício
que “perseguia tudo o que, de acordo com os seus princípios, parecia pôr em risco a
segurança e estabilidade de um saber marcadamente escolástico”144, como escreve José
Barata Oliveira, e que represava sem qualquer marca da empatia os seus inimigos é, em
termos da literatura, muito mais atractiva para leitores e principalmente muito mais
verdadeira.
Seja como for, em O Judeu encontramo-nos com três Inquisidores que
representam a cúpula do Santo Ofício em Portugal. Além desta cúpula, a qual
desempenha ainda o papel do Tribunal mais respeitoso que decide sobre do destino dos
acusados, aparece na obra também um outro fenómeno associado à Inquisição. Trata-se
dos seus familiares – denunciantes segredos, carcereiros e outros - que eram recrutados

142
Ibidem. p. 64
143
Santareno. B.: Judeu. p. 77
144
BARATA, J.O.: Para uma leitura de O Judeu de Bernardo Santareno. p. 21
51
de todas as classes sociais. Figuravam entre eles as pessoas da corte real, do âmbito
comercial e artístico, do exército e também das classes mais pobres. Os familiares
possuíam direitos especiais e caía sobre eles uma impunidade absoluta. Entre as
responsabilidades deles pertenciam, por exemplo, acompanhar as vítimas da Inquisição
durante a auto-de-fé.
O papel dos familiares na obra de Santareno é desempenhado principalmente pelo
Estudante pálido que odia António José e o persegue desde a sua junventude até a morte
na fogueira. Até podemos dizer que “ele é a projecção(simbólica, insistimos) do terror,
do medo institucionalizado e comandado pelos Santos Inquisidores.”145 Nesta
personagem reflectem-se todas as influências negativas que criavam na altura da
actividade inquisitoral uma atmosfera da incerteza e da desconfiança, apoiando assim
todas as condições convenientes às denúncias as quais eram na maioria inventadas ou
absurdas. Sobre o sentimento da incerteza e do medo que dominava todo o reino fala
também Cavaleiro de Oliveira.
Na verdade, haviam muitos casos quando os representantes da Inquisição ou os
denunciantes secretos aproveitaram esta situação e eliminaram através de uma denúncia
falsa os seus concorrentes ou inimigos. Nem sempre, portanto, a razão principal da
actividade inquisitoral resultava do ardor da fé que desejava encontrar os heréticos e
salvar as suas almas, como proclamava São Agostinho.
Temos de admitir que se tratava de um erro do sistema que centrava nas mãos dos
Inquisidores um grande poder, arriscando assim a sua moral perante uma tentação que
lhes este poder oferecia. Manter-se equânime num mundo terrestre cheio das ânsias,
paixões e sentimentos era para muitos uma tarefa irrealizável como demostra Bernardo
Santareno em O Judeu, apresentando aos espectadores a personagem do 2.o Inquisidor
que está ansioso pela sua vingança e pelos bens materiais:

“(...)1.o Inquisidor
(Sibilino.) Muitos nomes, Padre?...

2.o Inquisidor
(Hipócrita) Ai, muitos, desgraçadamente! Vós mesmo os verificareis: Dois padres da nossa
Católica Igreja – (intencional:) mais dois, Santo Nome de Deus! -, muita arraia-miúda,
alguma gente de nação, fidalgos também...

1.o Inquisidor
(Ambíguo, sempre.) Boa nova nos trazeis, Padre! Em tempo algum os cofres da Santa
Inquisição se acharam mais desprovidos e necessitados de substancial conforto... Boa nova!

145
Ibidem. p. 71
52
Alvíssaras vos dou, Padre, por mais esta vitória sobre os inimigos da Fé! O vosso zelo e
espiritual alegria, grande e alentador conforto são sempre para mim, acreditai. Mas neste
particular caso, redobradamente o são. De facto, cousa de muita admiração é ver a luz pura
do santo contentamento que vos anima, sabendo-se que, entre os denunciados, está
desgradaçamente o nome de vosso tio, D. Fernando Vaz! Ai, Padre, essa gloriosa vitória
sobre os afectos da carne, nunca eu a alcançarei!... (O 2.o Inquisidor, rubro de cólera,
‹‹apanhado››, todo se empertiga.) Homem suspeito, de duro coração, me pareceu sempre
vosso tio. Mas o sentir eu assim, me vinha de não ser ele meu parente carnal, que, sendo-o,
por certo de desigual modo o veria. Isto mesmo, esta vossa vitória sobre as forças do
sangue, é o que mais espanto me causa! Certo que as vis e mesquinhas vozes do mundo
dizem, e apregoam, ter sido D. Fernando Vaz a causa principal de vosso defunto pai ter
morrido sem reconhecer, a vós como filho bastardo, e a vossa virtuosa mãe como vítima
indefesa em vós o familiar afecto e mais suportável o triste desgosto.(O 2.o Inquisidor, mal
se contendo, a tremer, volta o rosto para o lado.)(...)”146

O Estudante pálido, além de retratar a figura do familiar, sendo assim ligado ao


medo e incerteza omnipresentes, é responsável pela condenação do dramaturgo da
origem judaica, visto que mandou a Escrava negra à Inquisição, como já foi
mencionado no resumo da obra.
Santareno capta bem o sistema que funcionava dentro da rede dos denunciantes os
quais o Santo Ofício dividia em duas categorias. Os primeiros apresentavam as
acusações concretas da heresia, enquanto os outros apresentavam os nomes que estavam
só suspeitos da heresia. Grigulevič afirma que a suspeição baseada nas hipóteses e
provas oblíquas como, por exemplo, um encontro casual com um herérico era
considerado um motivo suficiente para detenção.147
Além disto, Grigulevič continua que a denunciação, na verdade, era vista como
uma prova suficiente do delito que o acusado tinha cometido. O próprio acto de
denúncia era entendido como se tivesse sido quase um acto da providência mística, visto
que a Igreja considerava todos os crentes como os heréticos hipotéticos que o Diabo
sempre tentava seduzir. O denunciador era, portanto, um profeta que comunicava a
verdade. Em consequência disto, as investigações seguintes não deviam verificar a
denunciação mas obter uma confissão da culpa e da penitência por parte do acusado.148
Portanto, como já foi mencionado, o impulso para ser começado o próprio
interrogatório era uma denunciação. A parte do interrogatório da Escrava negra, que
aparece no terceiro acto de O Judeu, é na verdade uma das cenas mais impressionantes
relativamente à questão da elaboração dos factos históricos em toda a obra.

146
Santareno. B.: Judeu. p.77
147
Grigulevič, I.R.: Dějiny Inkvizice. p. 100
148
Ibidem. p. 100
53
Segundo as fontes que se dedicam à Inquisição e ao funcionamento dos seus
mecanismos, existiam vários manuais para Inquisidores que resumiam as experiências
dos processos precedentes, dando assim aos representantes do Santo Ofício conselhos
sobre a gerência dos processos. Porém, como informa Grigulevič, um dos mais famosos
Inquisidores, Bernard Gui149, declarou na sua obra Practica Inquisitionis Heretice
Pravitatis que era impossível inventariar um esquema de processo, visto que os filhos
do Diabo iam conseguir acostumar-se a ele e fugir às questões dos Santos Inquisidores.
Apesar disto, este teórico famoso da Inquisição sugeriu no seu manual um esquema
aproximativo para os seus colegas do Santo Ofício.150
O interrogatório começava com uma prestação de juramento. A testemunha ou o
acusado prometeu responder a todas as perguntas verdadeiramente. Depois disto, o
Inquisidor, caso considerasse o testemunho falso e não estivesse contente com as
respostas da pessoa interrogada, podia acusar a testemunha dum testemunho falso. A
testemunha, portanto, podia tornar-se facilmente uma vítima dos mecanismos da
Inquisição que a podia condenar à morte na cela da prisão inquisitoral ou ao uso do
hábito penitencial151. Às vezes acontecia que a própria testemunha foi torturada para os
Inquisidores conseguirem um testemunho conveniente aos seus objectivos.
Durante o próprio interrogatório, o interrogador nunca formulava as acusações
concretas mas fazia dezenas de várias perguntas, muitas vezes extremamente afastadas
do tema central da acusação, só para confundir o interrogado. A arte de liderar o
interrogatório, como afirma Grigulevič, era considerado a qualidade principal do
Inquisidor.152
Com os factos acima mencionados está familiarizado também o autor de O Judeu,
como comprova o seguinte trecho da cena do interrogatório da Escrava Negra:

“(...)2.o Inqusidor
(Para a Escrava.) Muito bom conselho tomaste, ao vires aqui confessar as culpas do teu
amo... o advogado António José da silva. Conveniente é que as tragas todas à memória, que
declares ao Santo Tribunal a verdade inteira delas. Deste jeito, salavarás a tua alma, e livre
serás da pena de excomunhão maior que o Santo Ofíico reserva para todos quantos,
havendo conhecimento de vizinhos, amigos, patrões ou familiares praticarem actos
suspeitos de heresia, não correm a denunciá-los, sem medo, egoísmo, ou quaisquer outros
considerandos. Bom conselho tomaste, pois.

149
Bernard Gui(1262-1331): Bernardo Gui foi um Inquisidor da Ordem Dominicana, bispo de Lodève e um
escritor prolífico. O seu nome está ligado ao terror inquisitoral e a sua personagem aparece também no livro O
Nome da Rosa de Umberto Eco.
150
Ibidem. p. 105
151
Ao tema dos castigos vamos dedicar-nos ainda nas próximas páginas do trabalho apresentado.
152
Ibidem. p. 104
54
(...)
2.o Inqusidor
Cuida então de estares atenta, para aqui dizeres com todaa miudeza...

1.o Inqusidor
(Frio e duro; interrompendo.) A verdade. Tão-só a verdade.

(...)
1.o Inqusidor
(Cortante, para a Escrava.) Apenas a verdade. Olha que, se mentes, tem por certo que este
Tribunal o há-de descobrir. (Pausa; ameaçador:) Castigada, e bem castigada, então
serias.(...)”
(...)
1.o Inqusidor
(Olhos de aço, lábios apertados.) Sair podes agora. Mas inda nã para a rua. Aqui ficarás
presa, até que a mesa do Santo Ofício o contrário decida.(A Escrava Negra está siderada
de terror espantado.)(...)”153

Além dos avisos sobre a veracidade da denúncia, a qual os padres sublinham sob a
ameaça de um castigo, e sobre o aprisionamento da Escrava Negra são de notar as
perguntas dos Inquisidores que se referem à comida e ao vestimento dos protagonistas
cristãos-novos. A Inquisição portuguesa foi estabalecida, como já mencionámos no
capítulo III, para represar as marcas da heresia que podiam aparecer em Portugal e,
principalmente, para olhar pela fidelidade dos cristãos-novos os quais tiveram que
declinar da sua fé antiga. Apesar de uma grande opressão e controle por parte da gente
portuguesa, como comprovámos, haviam sempre muitos que continuavam a praticar os
ritos judaicos em segredo.
Mas como os Inquisidores conseguiam controlar e descobrir os traidores da fé
quando os cristãos-novos falsos fingiam a sua fidelidade em público com uma prudência
extrema?
Quando desenvolvemos a questão da origem do judaismo, apresentámos alguns
factos referentes aos mandamentos religiosos que caracterizam e regulam a vida dos
judaizantes. Mencionámos os costumes como, por exemplo, o Shabat que ocorre todas
as semanas e durante o qual os crentes descansam. Todas estas tradições eram bem
conhecidas também durante a actividade inquisitoral no território português e, como
informa o historiador Chalupa, existiam vários signos seguros que chamavam atenção
dos familiares e outros denunciantes. Entre eles pertencem, por exemplo: a lavagem das
mãos antes da oração, vestir um vestido domingueiro ao sábado, o baptismo de crianças

153
Santareno. B.: O Judeu. pp. 206-207
55
com os nomes do antigo testamento, voltar a face dos mortos na direcção da parede
etc.154 Alguns deles aparecem também ao longo do interrogatório da Escrava Negra,
como comprova o seguinte trecho:

“(...)2.o Inqusidor
o
(Olha rápido e hostil para o 1. Inqusidor. Continua como se não tivesse havido
interrupção.) ...com toda a miudeza, quanto eu te perguntar. Os teus amos folgavam ao
sábado? Escusavam-se em dar seguimento, neste dia, a qualquer trabalho, mesmo que
preciso?

Escrava Negra
A senhora Lourença, sim. Cerrava-se no quarto a ler, e nada de mãos queria fazer: Nem
bordava, nem cozia as comedorias...

2.o Inqusidor
E as roupas? Era ao sábado que eles se vestiam as menos usadas, as mais preciosas? Cuida
de bem responder!

(...)
2.o Inqusidor
Lembrada estás de ver comer a teus amos cousas como carne de porco, lebre ou coelho,
peixe do que não tem escamas...? Pensa; quero que me digas tudo, e com mui rigor e acerto.

(...)
1.o Inqusidor
(Ataca, rápido; violência contida.) A senhora Lourença, não comia. E o filho?

2.o Inqusidor
o
(Olhos nos olhos do 1. Inqusidor.) Não. António José da Silva, em companha de sua mãe,
neste como em outros preceitos, cumprimento deu aos mandatos da heresia judaica.

(...)
2.o Inqusidor
Mas em essas vezes que lá ia, alguma daquelas rações o viste comer? Porco, peixe sem
escama, lebre...?

(...)
2.o Inqusidor
(Turvo.) Quando morreu o teu velho amo, o marido de Lourença Coutinho, alembrada estás
de ver que alguém lhe botasse entre os dentes, ou na cova língua, cousas como aljôfarm ou
dinheiros em ouro, ou moedas de prata?...(...)”155

Além disto, bons cristãos observavam se havia fumo sobre as chaminés dos seus
vizinhos conversos para que fosse claro se estes cumpriam a lei de Moisés, não
cozinhando nos dias do descanso obrigatório. As recusas das comidas preparadas com a

154
Chalupa, J.: Inkvizice: Stručné dějiny hanebnosti. Praha: Aleš Skřivan ml., 2007. pp. 116-117
155
Santareno. B.: O Judeu. pp. 206-210
56
carne de porco dava lugar a dúvidas mesmo como os jeitos especiais na preparação da
comida. O historiador Chalupa declara que os livros teóricos da Inquisição espanhola
apresentavam mais de trezentos conselhos segundo os quais se podia julgar uma pessoa
judaizante e, em consequência disto, acusá-la da queda da fé.156
Depois do interrogatório das testemunhas, iniciava-se o processo com o próprio
acusado que foi detido e posto na prisão. O autor mostra-nos primeiro a detenção do
protagonista e só mais tarde, através do discurso do Cavaleiro de Oliveira, explica a
razão desta acção, apresentando ao espectador o interrogatório da Escrava Negra que
tinha sido mandada à Inquisição pelo Estudante pálido.
Os presos eram metidos na prisão secreta do Santo Ofício onde estavam
completamente isolados do mundo exterior, muitas vezes numa cela húmida e escura.
Ainda por cima, os acusados eram muitas vezes manietados. A estada na prisão do
Santo Ofício podia durar praticamente (isso muitas vezes acontecia) até a morte do
prisioneiro, visto que as investigações não eram limitadas do ponto de vista temporal.
Um facto interessante é que isso era facilitado, como informa Grigulevič, pela
ordenança graças à qual os acusados pagavam a sua estada na prisão dos seus bens que
lhes tinham sido confiscados depois da sua detenção.157
Além disto, muitas vezes nas celas eram colocados junto com o acusado também
provocadores os quais fingiam ser os seus correligionários ou apoiantes mas na
realidade queriam acumular algumas novas provas contra os seus companheiros de cela.
Isso acontece no caso de António José que em O Judeu compartilha a sua cela com
Bento Pereira, um soldado de uma má fama:

“(...)(Obscuridade para o Cavaleiro de Oliveira. Luz sobre os cárceres do Santo Ofício:


António José da Silva, com a cabeça repousando sobre a grade, e um braço dela saindo
inerte; sempre vigilante, Bento Pereira, sentado no chão, não despega os olhos do
Judeu.)(...)”158

O interrogatório de António José, como uma pessoa acusada da heresia, é muito


diferente do interrogatório da Escrava Negra ou de Bento Pereira, o seu colega de cela.
É preciso sublinhar o facto que na maioria dos casos um Inquisidor não desejava
mandar os acusados ao queimadeiro mas principalmente empenhava-se por despertar no

156
Chalupa, J.: Inkvizice: Stručné dějiny hanebnosti. p. 117
157
Grigulevič, I.R.: Dějiny Inkvizice. p. 102
158
Santareno. B.: O Judeu. p. 220
57
herético o sentido de pena e por fazer voltá-lo ao seio da Igreja Santa – fosse qual fosse
a maneira de o conseguir. Se o herético confessou a sua culpa e o Tribunal considerava
o seu delito leve, o condenado obteve um castigo não muito duro. Porém, nunca mais
podia estar certo da sua liberdade e se traiu a fé cristã mais uma vez, caiu sobre ele um
castigo muito mais duro. Desde a sua saída da prisão a sua actividade era controlada
pelos familiares e outros representantes da Igreja.
Mas, apesar de conhecer todos estes perigos que ameaçam a vida de António José
e a sua família, o protagonista mostra o seu carácter invencível, que é tão típico para o
povo judaico, como já descrevemos no capítulo III, e tenta lutar contra a opressão
inquisitoral. Bernardo Santareno salienta e decanta esta atitude corajosa a qual provoca
uma actividade intensificada do Santo Ofício que no fim acusa a personagem principal
como um judaizante.
“(...)1.o Inquisidor
(Violento, tigrino.) Judeu e judaizante, isso és!! A tua pestilenta boca vomitou, enfim, essas
palavras malditas! Judeu e judaizante.(...)”159

No entanto, também é de admitir que o interrogatório das testemunhas e dos


acusados em certos pontos coincidiam. Tal como as testemunhas, por exemplo, o
acusado tinha que prestar juramento de responder às perguntas dos Santos Inquisidores
verdadeiramente. Também neste caso os representantes do Santo Ofício usavam vários
métodos, entre os quais pertencem já mencionadas acusações indirectas e perguntas
inúmeras, para conseguirem a confissão do acusado. Como afirma Grigulevič, usavam-
se vários meios aos quais pertenciam também mentiras, enganos e intimidações. Para
conseguirem o objectivo preestabelecido, os investigadores falseavam os factos e
afirmavam que o delito do acusado tinha sido comprovado pelas declarações dos seus
parentes ou vizinhos.160 Isso resultava muitas vezes nas confissões e nos castigos
pertencentes.
Porém, nem sempre os Inquisidores estavam tão benignos com as suas vítimas. Os
representantes do Santo Ofício possuíam também outros métodos como quebrar as
resistências dos heréticos. Era bem claro que a violência e tortura influenciavam a fé e o
comportamento dos seus acusados muito mais que todos os meios acima mencionados.

159
Ibidem. p.230
160
Grigulevič, I.R.: Dějiny Inkvizice. p. 105
58
Portanto, não surpreende que os Inquisidores aproveitavam destes recursos
frequentemente ad eruendam veritatem161.
É preciso dizer que embora existam várias lendas que descrevem a crueldade da
tortura inqusitoral, esta não foi inventada pelos Inquisidores e estava muito mais
moderada daquela que usavam as cortes seculares da época na qual surgiu a personagem
de António José da Silva.
Uma das razões que explica este facto interessante é que os corpos dos acusados
não deviam ser mutildas de maneira que apresentassem os signos permanentes da
tortura, visto que também podia acontecer que o acusado, apesar de pouca
probabilidade, acabou por ser considerado inocente e as suas feridas podiam nesse caso
chamar atenção indesejada. Além disto, como os acusados eram vistos como os
heréticos que tinham traído o próprio Deus, não era permitido derramar o sangue deles
porque isso aproximava-os do sofrimento de Jesus.
Em consequência disto, temos que aludir à cena quase no início do primeiro acto
de O Judeu na qual aparece jovem António José e “(...)a Escrava Negra tira-lhe as
ligaduras dos pulsos(...)” enquanto “(...)Lourença ajoelha-se também junto do filho,
cuida-lhe as feridas.(...)”162 Portanto, também Bernardo Santareno estava familiarizado
com o facto que nem todas as normas inquisitorais eram mantidas rigorosamente,
embora neste caso o autor principalmente adapte a situação para que sejam conseguidos
emoções por parte dos espectadores.
Além disto, temos de admitir que Santareno capta bem a tortura à qual é exposto o
protagonista no terceiro acto durante o interrogatório que surge depois da conversa entre
o Rei e Inquisidor-Mor que confessa perante D. João a sua certeza absoluta sobre a
culpa de António José. Apesar desta certeza firme, na cena seguinte a personagem
principal é torturada para que sejam comprovados os seus pecados por ele próprio.
Das fontes históricas, que se conservaram até hoje e tratam do processo da tortura,
tomámos conhecimento que os Inquisidores mostravam antes da tortura aos acusados
todos os instrumentos que serviam para este intento para que os torturados pudessem
reconsiderar a sua atitude e confessar as suas culpas. Este sistema reflecte-se também na
obra de Santareno:

161
Com alvo de descobrir a verdade.
162
Ibidem. p. 43
59
“(...)Inquisidor-Mor
Pelo lugar em que está e instrumentos que aqui vê, o réu pode entender qual a diligência
que, com ele réu, está mandado fazer; pelo que, para a poder escusar, mais uma vez
admoestamos com muita caridade, da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo, queira confessar
suas culpas, para com isso alcançar a misericórdia que nesta Mesa se dá aos bons e
verdadeiros confientes.(...)”163

Porém, como todo o processo decorria em segredo absoluto, muitas vezes


acontecia que o acusado nem sabia qual era o delito que tinha cometido, mesmo como
não sabia quem era a pessoa que o tinha denunciado. Então, não surpreende o facto que
durante a tortura, quando os padres apertavam cuidadosamente com o acusado, que
sofria dores extremas no pêndulo164 tal como António José, para confessar a culpa e
salvar a sua alma e, ainda por cima, denunciar os seus cúmplices, o pobre confessou não
só os seus pecados pequenos que não estavam relacionados com a acusação, como por
exemplo traição da esposa, mas também envolveu no processo as pessoas inocentes,
visto que queria terminar ou, ao menos, diminuir o seu sofrimento. Como afirma o
historiador Chalupa, a confissão neste caso era considerada ‹‹a rainha de todas as
provas››. Em consequência disto, se uma pessoa acabou por se confessar, não haviam
mais dúvidas sobre a sua culpa e os Inquisidores declararam um castigo pertencente:165

“(...)2.o Inqusidor
As culpas por que está preso e levado será a auto público de fé, todas elas conhecidas são já
deste Santo Tribunal. Cuide pois de as trazer à memória e de contritamente as confessar.

António José
Pois hei-de confessar culpas que me não carregam, nem a memória, nem a consciência?!
Quais sejam essas culpas, eu não sei.

(...)
António José
(Ironia desalentada.) Dizei-me vós primeiro quais as culpas que ao Santo Ofício aprazaria
ouvir-me confessar...?!

2.o Inqusidor
(Cravando os olhos cruéis nos de António José.) Tão-só aquelas mesmas que o réu
obstinadamente cuida em lhe esconder... Como negativo, relapso e pertinaz, que é!

(...)
Inquisidor-Mor
(Como uma lâmina; febre negra e fria nos olhos.) Obrigado se acha o preso a declarar,
diante deste Santo Tribunal, o nome, ou nomes, da pessoa, de que aprendeu os erros que ora

163
Ibidem. p. 229
164
Pêndulo: Um dos mais usados instrumentos da tortura inquisitoral que foi inventado em Itália onde era
conhecido sob denominação Strappato. O acusado foi pendurado com os seus braços maniatados atrás do corpo.
Depois disto, foi esticado, empuxando os artículos nos sues ombros o que causava uma dor extrema.
165
Chalupa, J.: Inkvizice: Stručné dějiny hanebnosti. p. 99
60
lhe apodrecem a consciência. Quando e aonda foi? Quais as pessoas que lá estavam
presentes? Quais as pessoas com quem comunicou professar os mesmos erros...?

(...)
António José
(Ainda suspenso.) Por amor de Deus!... Confesso!... Confesso!...(...)”166

Quias eram os castigos que o Tribunal inquisitoral aplicava?


Os condenados que confessaram a sua culpa dividiam-se em dois grupos. Já
mencionámos os castigos como flagelação, pagamento de uma multa ou confiscação de
bens. Estas penalidades aplicavam-se no caso dos condenados os quais, segundo as
opiniões dos seus juizes, cometeram os delitos leves. Os delitos mais graves eram
punidos pelos castigos entre os quais pertenciam, por exemplo, os castigos humilhantes
como o uso do hábito penitencial, assim chamado sambenito167. “(...Os condenados
eram obrigados a usá-lo durante um certo período de tempo, facto que constituía um
estigma social duradouro,(...)”168 como acontece também no caso do protagonista de O
Judeu:

“(...)1.o Inqusidor
Ontem ainda, aceitei dar audiência a um cristão-novo, um moço de vinte anos, que o Santo
Ofício teve preso meses e meses, torturou com tratos de polé, e por fim fez sair
reconsiliado... (amargo:) e penitente, com a obrigação de usar, sem interrupção, o hábito
infamante que vestiu no auto público da fé: Vinha rogar-me que o libertasse desta
penitência, pois que, sendo estudante em Coimbra, se sentia sem ânimo para assistir às
aulasm assim preparado...(...)”169

As pessoas que cometeram algum delito e saíram vivas depois do Tribunal Santo
tiveram que jurar a sua fidelidade à fé cristã. Na verdade, não se tratava de um gesto de
pouca importância. Se os penitentes quebraram o seu juramento seguiu-se um castigo
severo. As pessoas que foram condenadas por terem cometido um delito grave e que
traíram a fidelidade mais uma vez, eram consideradas relapsas e como assim foram
queimadas publicamente no auto-de-fé, mesmo como os acusados que não confessaram
a sua culpa.

166
Santareno. B.: O Judeu. pp. 229-232
167
Sambenito: O termo deriva das palavras ‹‹Saco benito››. Estes hábitos eram feitos de linho cru pintado de
amarelo. No caso dos reconciliados, era pintada uma cruz de Santo André; no caso dos condenados que se
tinham salvo com uma confissão nos últimos dias, eram pintadas chamas viradas para baixo; no caso dos
relaxados tinham o retrato pintado entre chamas e grifos, com o nome e as culpas inscritas em baixo.
168
Bethencourt, F.: História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália. p. 213
169
Santareno. B.: O Judeu. p. 82
61
Este facto consideramos um dos mais importantes para o destino de António José
da Silva, tal como para a obra O Judeu de Bernardo Santareno. Já no início deste
capítulo estabelecemos uma estreita relação entre a origem judaica e a desgraça que este
elemento despertava em Portugal durante a actividade inquisitoral. No capítulo III
tratámos da aliança divina que tinha sido assentada pelo povo judaico e Deus.
Comprovámos que esta aliança determina o comportamento dos judeus e que se trata
para eles do valor mais respeitado que não pode ser anulado170.
Depois do baptismo forçado, os judeus tornaram-se cristãos-novos os quais nem
anularam a aliança com Javé, nem rejeitaram as suas tradições e ritos, como comprovam
várias fontes históricas e como demostra Santareno na sua obra. Podemos mencionar ao
menos o casamento de António José e Leonor que decorre segundo as tradições
judaicas.
Portanto, se os judeus foram presos e a sua vida estava sob ameaça de um castigo
duro, nem podiam aceitar verdadeiramente a fé cristã como desejavam os representantes
da Inquisição, visto que havia sempre uma ameaça que nos olhos dos judeus era muito
mais grave e importante daquela terrestre.
Então, na verdade, podemos dizer que se trata de um problema que, do nosso
ponto de vista, não podia ter outra solução que a fuga, como propõe Leonor ao seu
marido, ou a morte do crente. Mas, como o protagonista possui um carácter
inquebrantável de judeu, a sua vida está em perigo ao longo de toda a acção da peça e,
no fim, o protagonista acaba por ser queimado durante o auto-de-fé.
Em consequência disto, a Inquisição na obra torna-se a força que determina e
limita a vida dos judeus e do próprio António José da Silva o qual simplesmente não
pode salvar a sua vida por causa de ser judeu, por causa de possuir esta característica
que se não pode retirar. Esta situação absurda é bem visível no primeiro acto quando
jovem António José recusa acreditar em Deus, estando absolutamente desesperado, e
quando a sua mãe lhe responde com os versos do Antigo Testamento:

“(...)Lourença
(Mística, mártir.) ‹‹Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não...

António José
(Interrompendo, com raiva.) Livro dos Salmos, 23,4! Não, mãe, estou farto! Farto da
‹‹Torah››, do ‹‹Talmude››, do ‹‹Zohar››... Não acredito, não creio em nada disso! Quero

170
Relembramos que a aliança divina pode ser anulada só por parte de Deus.
62
viver!! Não creio no Deus de Israel, não creio no Deus dos cristãos... Tenho medo de todos
os deuses, messias, profetas e santos. Medo! Peço-lhe, mãe... proíbo-a de tornar a falar-me
neles! Quero viver. Viver, viver, viver!...

(...)

Lourença
(A voz entrecortada de lágrimas, sem olhar para o filho. Com fé, força interior.) ‹‹Ainda
que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu Tu, Deus
de Israel, estás comigo.››(...)”171

Desde então, o pobre rapaz vive numa liberdade relativa, visto que recusou
acreditar em Deus, perdendo assim um dos traços que mais formam a sua personagem.
Porém, a sua origem não desaparece para muito tempo e ele proclama abertamente ser
judeu e, em consequência disto, estabelece-se de novo entre ele e a actividade da
Inquisição uma estreita relação que cada vez aumenta como um reflexo do seu orgulho
de ser judeu.
Portanto, podemos afirmar que a Inquisição torna-se um elemento omnipresente
na peça que cerca o protagonista tal como toda a sua família – quer através do ódio da
gente portuguesa, quer através do Estudante pálido que age como um familiar do Santo
Ofício. Isso comprova já o início da obra que surge propriamente no momento de um
auto-de-fé:

“(...)Durante alguns segundos, com o palco ainda em obscuridade completa, ouve-se o


EXURGE DOMINE ET JUDICA CAUSAM TUAM, cantado poderosamente por um coro
masculino. Sinos de catedral.
Luz sobre o púlpito. Silêncio. Todo o restante dispositivo cénico, tal como as personagens
que nele figuram, continua em obscuridade.(...)”172

O canto do coro masculino, que acompanhava os autos-de-fé (um verdadeiro


símbolo do poder inquisitoral) e que, portanto, pode ser de certo ponto de vista
considerado um elemento característico deste evento, surge logo no início da peça que
está ligado a uma escuridade a qual desaparece praticamente com a apresentação de
António José da Silva, uma existência iluminada, ao espectador:

“(...)Enquanto a luz de cena vai baixando e as invectivas da multidão se tornam mais


audíveis, misturando-se com o coral que canta o EXURGE DOMINE ER JUDICA
CAUSAM TUAM.

171
Ibidem. p. 52
172
Ibidem. p. 9
63
À medida que a obscuridade vao tomando o palco, ilumina-se o vitral do fundo: Este
deixar-nos-á ver as chamas duma fogueira, cada vez mais altas, até que por inteiro o
enchem. Atingem o máximo, o canto inquisitoral e o ódio sanguinátorio do povo.(...)”173

De novo aparece o canto poderoso que acompanha o auto-de-fé. Neste momento


intensifica mais uma vez a obscuridade no palco como se extingue a vida do
protagonista iluminado. Na verdade, a última luz que se vê são as chamas da fogueira
que simboliza o terror que domina o Portugal da época de o Judeu. Após a sua morte
não há mais luz na escuridade que tente lutar contra a opressão inquisitoral. As duas
cenas comprovam que o elemento do Santo Ofício abre e fecha a obra como se fosse um
círculo vicioso do qual as personagens não podem escapar. É o poder absoluto da
Inquisição que estabelece o início e o fim da vida do protagonista. É o poder
determinante que define a vida e o mundo de ficção que criou Bernardo Santareno na
sua obra O Judeu e que governava a vida da gente portuguesa no século XVIII.

173
Ibidem. p. 240
64
6 Conclusão

A personagem de António José da Silva, mesmo como o fenómeno do Santo


Ofício, deixaram na cultura portuguesa os marcos profundos que se podem registar
ainda hoje em dia, visto que a vida do dramaturgo e o fenómeno da Inquisição sempre
têm fascinado muitas pessoas, entre os quais pertencia também Bernardo Santareno.
O objectivo do trabalho presente foi o de analisar e comentar o processo
inquisitoral de António José da Silva e a actividade do Santo Ofício na obra O Judeu de
Bernardo Santareno, esclarecendo mais de perto os aspectos determinantes do
comportamento da personagem principal e os factos históricos que influenciavam a
acção inqusitoral no território português.
Como foi mencionado no capítulo 1, a situação do teatro português no século XX
era determinada pela censura que proíbia aos autores realizar o seu trabalho assim como
desejavam. Em consequência disto, os autores de teatro optavam por outros caminhos
como criticar os vícios da sociedade portuguesa. Este aspecto é visível também em O
Judeu, visto que o protagonista protesta contra a Inquisição através da sua obra teatral,
tal como o faz Bernardo Santareno. Estabelece-se, portanto, uma relação alegórica entre
o século XVIII e o século XX.
Para realizar a sua intenção de convencer o público sobre a necessidade de agir
contra o sistema depravado do Estado Novo, Santareno teve de criar um mundo
autentico que funciona – e funciona bem! – de uma maneira natural e lógica. Portanto, o
autor apresenta as personagens complexas que possuem todas as fraquezas e todos os
vícios humanos, formando assim uma autenticidade psicológica a qual se complementa
perfeitamente, como comprovamos, com a autenticidade histórica baseada num
conhecimento factual.
Bernardo Santareno, na verdade, parafrasea os acontecimentos históricos que,
ainda por cima, são sublinhados por um ambiente barroco formado através das sermões,
do teatro no teatro de António José da Silva, dos gritos do povo lisbonense, das
tradições judaicas, dos gestos e da expressão do rei D. João V, das fórmulas judiciais
proclamadas durante o processo inquisitorial e de muitos outros elementos – todos estes
constituem um universo que oferece novas explicações do passado, mostrando as causas
naturais e motivações lógicas, mesmo como as suas consequências, dos acontecimentos
históricos registados nas crónicas e outras actas históricas. E, portanto, não surpreende
65
que o espectador pode aceitar – e até aceita - com entusiasmo a história representada no
palco como uma história verdadeira.
Por outro lado, temos de admitir que Santareno, ao retratar os menores detalhes da
vida do protagonista, ultrapassa todos os dados histórico-documentais dos quais pode
dispor sobre a sua vida, o que pode paradoxalmente suscitar dúvidas sobre a veracidade
da história retratada. O autor da obra, não tendo como o seu objectivo um trabalho
rigorosamente histórico sobre a figura de António José da Silva, acaba por fazer as suas
próprias opiniões sobre o destino trágico de “o Judeu”, proclamando que este foi
queimado por causa da incomodidade da sua obra – uma opinião obediente à intenção
de Santareno. Apesar disto, esta afirmação é, na verdade, aceitável também de ponto de
vista histórico, visto que a Inquisição censurava muitos livros e castigava os seus
autores.
Porém, como comprovámos, a maior razão da actividade inquisitoral apontada
para a personagem de António José é a sua origem judaica e o facto de ser judaizante, o
que se evidencia como um elemento que nunca pode ser desfeito por fazer parte da
própria identidade do protagonista e por formá-la. Como descobrímos, isto se reflecte ao
longo de toda a acção da peça e resulta no esforço de resistir, assim como sempre
resistiam os judeus perante a opressão dirigida contra eles, como provam os factos
históricos que mencionámos no capítulo 3.
No entanto, em consequência do esforço de sobreviver do protagonista, aumenta a
actividade do Santo Ofício que está presente desde o início da peça até ao seu fim. A
oposição de António José mostra-se ineficaz, o que ainda mais sublinha a evidente
impossibilidade de agir contra a Inquisição que possue o poder absoluto no universo de
O Judeu.
O autor, portanto, demostra que o poder determinante do Santo Ofício define toda
a acção em O Judeu, controlando e reduzindo as vidas dos seus protagonistas e dos seus
inimigos, mesmo como o fazia poder absoluto do Estado que determinava a vida dos
cidadãos portugueses na altura do Estado Novo.

66
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