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GUIMARÃES ROSA

Grande sertão: veredas: o sertão


como símbolo do inconsciente
Enrico Lippolis
Tradutor (italiano/português) para o IEA-
USP. Professor de língua italiana.“Tese di
Laurea” defendida na “Università di Roma
La Sapienza”, intitulada: “João Guimarães
Rosa: O Homem do Sertão”.
RESUMO
A interpretação do sertão como símbolo do inconsciente, e da vereda como símbolo da consciência em Grande Ser-
tão: Veredas foi formulada inicialmente por Paulo Rónai num ensaio da coletânea Encontros com o Brasil, de 1958.
Partindo da definição junguiana de inconsciente como o ignoto do mundo interior, o romance nesse prisma se desvela
e estrutura como rede sutil de comunicação (e conflito) entre polaridades: vida e morte, Bem e Mal, mundo interior
e realidade social, norma interior e norma coletiva, consciente e inconsciente. O itinerário de Riobaldo pode ser
lido como uma busca de conciliação entre opostos, e o pacto com o diabo como a opção pelo poder em detrimento
do amor. Monólogo do Homem, do Brasil e do Mundo, o debate ético desencadeado pelo protagonista se torna
escolha entre a vida e a morte, com repercussões que envolvem tanto o destino individual quanto o coletivo.

Palavras-chave
Grande sertão: veredas; Consciência; Inconsciente; Amor e poder; Guimarães Rosa.
GUIMARÃES ROSA

ABSTRACT
The interpretation of sertão as a symbol of unconsciousness, and of veredas as a symbol of conscience in the Grande
Sertão: Veredas was initially proposed by Paulo Rónai in an essay published in the collection Encontros com o Brasil-
1958. Starting from Jungian definition of unconscious as the unknown of the inner world, the novel from this point
of view reveals and structures itself as a thin network of communication (and conflict) between polarities: life and
death, Good and Evil, inner world and social reality, inner law and collective law, conscience and unconscious.
The path of Riobaldo can be read as a research of conciliation of opposites, and the agreement with devil as the
choice for power, to the detriment of love. Monologue of Man, of Brazil and World, the ethic debate stirred up
from the protagonist becomes choice between life and death, with consequences that reflect both individual and
collective destiny.

Keywords
Grande sertão: veredas; Conscience; Unconscious; Love and power; Guimarães Rosa.

A interpretação do sertão como símbolo do dimensão do saber, e o sertão como dimensão do ig-
inconsciente e da vereda como símbolo da cons- noto, ao declarar ao senhor da cidade: “Vou lhe falar.
ciência, em Grande sertão: veredas, foi formulada Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão!
por Paulo Rónai sob a direta orientação de João Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas
Guimarães Rosa: pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas”.
O sertão acaba sendo caos ilimitado de que só uma Para Jung o inconsciente é “o ignoto do mundo inte-
parte ínfima nos é dado conhecer, precisamente a rior” (Jung, 2005, p. 20). E, na obra de Rosa, o ignoto
que se avista ao longo das veredas, tênues canais de concerne tanto o mundo interior do homem, quanto
penetração e comunicação. Assim, o sinal -:- entre os toda a Criação, como mistério que tudo envolve. Mas,
dois elementos do título teria valor adversativo, es- as repercussões mais imediatas deste mistério cós-
tabelecendo a oposição entre a imensa realidade ina- mico são interiores: “Sertão: é dentro da gente”. Se-
brangível e suas mínimas parcelas acessíveis.[...] E gundo essa leitura, o grande sertão e seus habitantes
também, segundo me confirmou certa vez o próprio invisíveis, Deus e o diabo, correspondem a realidades
Autor, entre o inconsciente e o consciente (Rónai, interiores da alma do homem, como Rosa sugeria na
1978, p. 156). entrevista a Lorenz (1994): “O sertão é a alma de seus
homens”, como confirma o próprio Riobaldo (“O dia-
Mais uma vez foi Candido (1956) o primeiro a bo vige dentro do homem”), e a que alude Candido
intuir a simbologia da vereda, quando afirma que no (1994, p. 89), assinalando uma dimensão psicológica
sertão “o narrador busca as veredas da verdade”. do pacto: “O pacto com o demônio representa as cau-
Seguindo o mesmo caminho, Oliveira (1970, p. dalosas águas turvas da personalidade”.
442) pondera: “Que será, pois, sertão? Símbolo de A minha hipótese é que Riobaldo vendeu de fato
toda a região escura, sua realidade não é só geográ- o coração e a alma ao diabo: a um diabo chamado am-
fica ou ecológica, e sim, psicológica. Sua consistência, bição. Nessa troca pagou um alto preço, sacrificando
existencial. [...] Grande sertão é o inconsciente”. E é os sentimentos mais genuínos da sua alma; e então sua
assim que o próprio Riobaldo apontará a vereda como existência toda (Heráclito, 1991, Fr. 85)1.

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Em Grande sertão o diabo como personificação po em relação ao homossexualismo. Quem, como ele,
do Mal tem características diversas, mas todas con- insiste em afirmar a sua individualidade e a sua dis-
fluem na destruição do homem e de seus valores: o tância dos sentimentos do bando, depois sufoca seus
diabo separa, confunde, promete fama e sucesso. Rio- sentimentos mais genuínos em nome do respeito às
baldo não se sente senhor das suas ações: de fato é o normas sociais. E dá lugar deste modo a um insanável
diabo no fim que as inspira e comanda, e é ele então dilaceramento interior e à perda irreversível da sua
o verdadeiro protagonista do romance. Protagonista identidade. O conflito entre indivíduo e sociedade é
que não tem rosto nem voz, mas que se manifesta na colocado por Jung (2005, p. 297) nesses termos: “Mas
conduta das personagens, nas suas dúvidas e lacera- tornar-se-á neurótico quem quiser fazer as duas coisas
ções; na escolha do mal. O diabo habita a confusão, ao mesmo tempo: seguir sua meta individual e adap-
simbolizada pelo “redemunho”: a cultura folclórica o tar-se à coletividade”.
imagina sentado no meio de um redemoinho, que é Se, antes do pacto, Riobaldo afirmava: “Eu gos-

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seu meio de locomoção. E diabo é também, etimologi- tava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo – queria
camente, o que separa: o pacto ameaça a integridade e que ele permanecesse longe de toda confusão e peri-
a inteireza do narrador. Trata-se de uma ameaça que, gos” - a partir do pacto estes escrúpulos são silencia-
no romance, se torna condenação definitiva a uma dos, e no fim Diadorim é deixado morrer. Riobaldo
morte em vida. Os dons que o diabo oferece não po- vende a alma ao diabo para tornar-se um chefe, para
dem ser senão efêmeros, se a contrapartida é o dilace- adquirir fama de comandante vitorioso eliminando
ramento interior e a perda do amor. No fim, Riobaldo seus inimigos, e então para entrar na restrita roda
consegue, através do pacto, eliminar seu antagonista dos detentores do poder (O liveira , 1970, p. 432;
e ganhar a guerra entre jagunços. Mas, como observa B olle , 2000, p. 13). O diabo então é também sím-
justamente Galvão (apud COUTINHO, 1983, p. 421), bolo da sedução do poder, entendido como domi-
[...] o diabo cumpre o prometido da maneira mais nação do homem sobre o homem.
dolorosa e mais inesperada para aquele que lhe ven- O que caracteriza o narrador é uma tendência à
deu a alma: Riobaldo acaba com Hermógenes, mas desresponsabilização: torna-se mais fácil, mesmo que
no mesmo ato Diadorim morre. Afinal, foi Riobaldo totalmente inútil, culpar o destino, o diabo ou Hermó-
o instrumento da morte de Diadorim: ele conduziu-o genes pelo mal que o aflige: “Quem que diz que na vida
para a morte. [...] Daí a culpa que menciona desde o tudo se escolhe? Eu estava ali era feito um escravo de
início da narração: culpa de ter vendido a alma ao morte, sem querer meu. Tem um ponto de marca, que
Diabo e assim ter levado o amigo à morte. dele não se pode mais voltar para trás. Tudo tinha me
torcido para um rumo só”. Culpar o destino pode ser
Riobaldo nunca admite sua culpa e sua responsa- um modo de projetar inconscientemente no mundo
bilidade em termos tão claros; tenta negar a existência externo, problemas de ordem interna. É um modo de
do diabo e consequentemente a efetiva realização do afastar responsabilidades que não fornece um alívio
pacto; e tende a culpar o destino pela morte do com- real, porque se torna condenação na ordem do ab-
panheiro. Porém a sua responsabilidade é evidente, soluto e aguça as fragmentações interiores. Amiúde,
principalmente porque em um momento crucial da como Riobaldo, atribuímos males e negatividade a
narração, Diadorim lhe oferecera a possibilidade de um objeto externo carregando-o de conteúdos que
uma mudança de rumo: “Menos vou, também, punin- pertencem à nossa pessoal zona de sombra. Um pro-
do por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que cesso parecido era definido por Jung “projeção da
por rumo de servir a você, Riobaldo, no querer e cum- sombra”, causa de muita dor no mundo e no conví-
prir”. Esta declaração de Diadorim é de importância vio entre os homens. Causa das guerras. Nesse con-
fundamental: em muitas ocasiões de fato Riobaldo texto o diabo é a personificação da sombra. A sombra
tem a tentação de subtrair-se ao destino de jagunço. coletiva gera as guerras, manifestações da violência
Quando porém Diadorim lhe revela a sua devoção, coletiva; não é casual que Hermógenes seja chamado
maior que o desejo de vingar a morte do pai, Riobal- por Riobaldo de “caramujo de sombra”. Em varias
do já está possuído pela perspectiva da glória pelas ocasiões ele sugere uma analogia ou um parentesco
armas, e não dá ouvido às palavras do amigo. Além que o ligaria ao Hermógenes, o qual “estava deitado
disso em Grande sertão o diálogo entre os dois per- ali, em mim encostado – era feito fosse eu mesmo”.
sonagens se fecha toda vez que ameaça versar sobre E Riobaldo, fazendo um pacto com o diabo, emula e
a natureza do sentimento que os envolve, pelo medo se equipara ao seu adversário, também pactário. Leite
por parte do Riobaldo de enfrentar o ignoto, ou seja o (1979), seguido por Meneses (2002), nos convida a ler
seu profundo sentimento de amor por outro homem: este romance como uma sessão psicanalítica.
que é medo também de enfrentar a censura do gru- Se Riobaldo se confrontasse com a percepção de

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Hermógenes como parte de si mesmo, ou como pro- que precisa optar entre soluções diferentes; e a en-
jeção inconsciente da sua sombra pessoal, seu destino cruzilhada da escolha é onde aparece o demo, em
provavelmente teria sido diferente, porque haveria de forma de dúvida, hesitação ou impulso decisivo.
se defrontar com a sua própria disposição ao mal, e as- Como por exemplo no momento em que ele assume
sim fazer uma escolha ética consciente. Ele certamente a chefia: “Não era de propósito; só disse, Quem é
é uma personagem literária, mas o seu papel de “pa- que é o Chefe? - eu era quem menos sabia – porque
ciente” da vida é imagem que fala sobre o profundo o Chefe já era eu”.
de cada um de nós. Talvez Riobaldo nos ensine, como Riobaldo geralmente se deixa levar por aconte-
anti-mestre, que não vale a pena matar inimigos se, cimentos externos e se deixa arrastar por forças des-
com isso, se põe em risco o amor da própria alma. A conhecidas internas. Ele é menos protagonista que
ambição e o poder são desumanizantes e constituem espectador passivo da sua vida. Propõe-se a con-
a sombra diabólica de Riobaldo. Antes de tornar-se templar as leis que regulam a conduta humana: “Eu
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o Urutu-branco, ele vive na indecisão e se deixa ar- queria decifrar as coisas que são importantes. [...]
rastar pelos acontecimentos, apesar do horror que a Queria entender do medo e da coragem, e da gã que
violência lhe desperta (mas não se deixa conduzir empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao
por este horror para tomar nova direção); uma vez suceder. O que induz a gente para más ações estra-
pactário, não terá mais dúvidas mas se deixará con- nhas [...]”, para em seguida admitir sua impotência
duzir por impulsos sombrios e fatais à sua realização perante o ignoto: “A gente vive não é caminhando
de ser humano. A essa altura, admite, quem manda- de costas?” Nesta pergunta está condensado todo o
va em mim, já eram os meus avessos. E a Riobaldo seu desespero, sua incapacidade de visão, sua falta
na velhice não restará que a reza para a salvação da de equilíbrio. E a fragilidade existencial do ser hu-
sua alma, praticando uma religiosidade defensiva e mano em geral.
exorcística que não o abre ao mistério de si mesmo O homem pode se abrir a situações e sentimen-
e da vida, mas se explicita como mero ritual apo- tos novos, e “caminhar de frente”, desde que tenha
tropáico. Nessa luta entre Bem e Mal, que tem como a coragem de desafiar o moralismo coletivo. Riobal-
palco o mundo inteiro em todas as épocas, reside a do afirma: O mais importante e bonito, do mundo,
palpitante autenticidade do mundo rosiano, e sua é que as pessoas não estão sempre iguais – elas vão
ressonância em nível universal. sempre mudando. Mas se deixa vencer pelo medo
Afirma Riobaldo: “As coisas que acontecem, é do novo, e prevalece nele o terror de errar, pela in-
porque já estavam ficadas prontas, noutro ar”. Mas capacidade de decifrar o signo das forças em jogo.
este “outro ar” é dimensão preclusa ao homem. Ao É sempre difícil reconhecer o signo das forças do
ser humano resta a habitabilidade precária e mi- inconsciente, e a variabilidade dos fatores psíqui-
noritária de veredas de sentido e de liberdade, no cos gera incertezas, como Jung (1999, p. 49-54) sabia
meio de um mare magnum de inconsciência: “Mas muito bem:
liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre As forças psíquicas não têm uma direção única e
caminhozinho, no dentro do ferro de grandes pri- muitas vezes até se dirigem umas contra as outras.
sões. Tem uma verdade que se carece de aprender, [...] Freqüentemente é difícil, ou mesmo impossí-
do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco vel, perceber a corrente fundamental e, com isto,
para a liberdade se fazer”. Esses pobres caminho- a direção certa: colisões, conflitos e enganos são
zinhos são as veredas da verdade que o indivíduo inevitáveis. [...] O consciente vê-se isolado num
pode encontrar e habitar no meio do caos e da des- mundo de fatores psíquicos. [...].
truição: como, no sertão geográfico, as veredas são
oásis habitáveis em meio ao deserto, assim o ho- A direção certa a que se refere Jung consis-
mem deve descobrir no seu mundo interno e ex- te na aderência àquilo que verdadeiramente nos
terno o seu locus amoenus, espaço de sentido e de pertence e àquilo que verdadeiramente somos. É a
afetividade realizada. A vereda é o que se opõe à consciência que deve procurar uma mediação com
ameaça do desequilíbrio e da falta de direção: é o essas forças: sem esse diálogo o inconsciente domi-
nicho de liberdade no meio de um universo poten- na a consciência, em vez de alimentá-la. O diálogo
cialmente perigoso. Nesses termos a vereda não é com o inconsciente é também o único modo para
somente “consciência”, mas a implica e a transcen- ampliar a consciência. E nisso consiste o objetivo
de; nas palavras de Gambini (2005): “Nós temos declarado de narrador, o seu desejo de saber. Mas
dentro de nós um olho d’água que não seca”. como estabelecer uma conexão com o inconscien-
É a inconsciência que domina Riobaldo nas en- te? Essa é uma das questões de Riobaldo:
cruzilhadas da existência, isto é, nos momentos em Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era

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para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; nes como lugar-tenente, e assim como o próprio Rio-
não era para à força se compor. Todos que malmon- baldo faz o pacto para poder eliminar outro pactário.
tam no sertão só alcançam de reger em rédea por Mas de modo geral o diabo rosiano é o Mal absoluto,
uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre "inimigo de Deus e do homem", como o escritor afir-
debaixo da sela. mou na entrevista a Lorenz (1994).
Ainda Riobaldo: "Em seguir, sem eu nem saber,
Se se interpreta a palavra “sertão” como incons- o roteiro de Deus nas serras dos Gerais...". O encontro
ciente, observo nesta frase uma perigosa dupla de ter- com Diadorim seguiu um roteiro divino. Mas a opção
mos: “dono” e “obedecendo”. Creio que não se deva pelo poder, e a morte de Diadorim em conseqüência
obedecer cegamente ao inconsciente, nem negá-lo, disso, seguiram um roteiro demoníaco.
nem tentar domá-lo (e neste último caso Riobaldo me Nunes (1994, p. 133), inspirando-se nos estudos
dá razão). Em todos esses casos o risco é de sermos de Jung, associa “Sofia” a Dona Rosalina, personagem

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dominados por ele, e de cairmos em poder da sua face de A estória de Lélio e Lina (Corpo de Baile): "Na
ora benéfica ora maléfica. Mais profícuo é que o ego se escala da simbologia amorosa em que devemos situá-
coloque à disposição do inconsciente de olhos abertos. la, Rosalina merece o lugar de Sofia, Sapientia, última
Do inconsciente pode advir a inspiração poética ou a etapa da cultura de Eros". E sobre Diadorim, Nunes
vontade autodestrutiva. Cada um de nós deve achar (1998, p. 34) escreve: "Natureza: Diadorim ensina Rio-
o “modo” deste diálogo, para evitar quer o monólo- baldo a vê-la".
go de uma falsa consciência, quer o monólogo de um Nunes (1998) baseia esta última afirmação nas
inconsciente desconexo. Para não sermos unilaterais, declarações de Riobaldo: "Mas eu gostava de Diado-
e bidimensionais. Ainda na tentativa de comprovar a rim para poder saber que esses Gerais são formosos.
validade da interpretação do sertão como inconscien- [...]. Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem
te, quero comparar agora outras duas observações do dono foi Diadorim". Se dona Rosalina representa a
Riobaldo: "Ou ele [o sertão] ajuda, com enorme poder, sabedoria no percurso de Lélio, poder-se-ia dizer que
ou é traiçoeiro muito desastroso. [...] Sertão nao é ma- Diadorim assume o papel de Sofia na vida de Riobal-
lino nem caridoso... ele tira ou dá, ou agrada ou amar- do. E também, a partir do pacto com o diabo, o papel
ga, ao senhor, conforme o senhor mesmo". de “voz da consciência” do narrador-protagonista,
Se a primeira frase sublinha como o inconscien- criticando-lhe os arbítrios. Em termos junguianos,
te pode ser benéfico (como no caso da inspiração) ou nesse romance o ego seria representado por Riobaldo,
maléfico (como no caso das psicoses), a segunda frase a sombra seria associada ao Hermógenes, e a alma a
afirma que tudo depende da atitude consciente pe- Diadorim. E para acessar a alma, antes de mais nada
rante o inconsciente. As duas frases dizem o que mais é necessário encarar e reconhecer os próprios diabos
de um século de experiência psicanalítica confirma. interiores, isto é a sombra, porque quem é dominado
Estou convencido de que o inconsciente seja sempre pela sombra perde a conexão com a sua própria alma.
“caridoso”, quando a consciência faz a sua parte e se Não é casual que, depois do pacto, Riobaldo afirme
dispõe ao diálogo com ele: assim interpreto a expres- ter parado de sonhar: isto é, ele perde a conexão com
são “conforme o senhor mesmo”; tudo depende do o seu inconsciente. Ele pára de sonhar e perde de vista
tipo de atitude consciente. Também estou convencido Diadorim, porque perdeu o contato com os conteúdos
de que exista uma tendência das forças psíquicas a mais nobres da sua alma.
alcançar o equilíbrio. Isso é evidente por exemplo na A história deste "espírito atormentado", como
função compensatória assumida por alguns sonhos e Rosa define Riobaldo (em carta ao tradutor francês J. J.
fantasias. Roberto Gambini2 explica que Jung concebe Villard, 21 nov. 1962), é a de um homem que se deixa
a psique como um sistema auto-regulatório. vencer pelo medo: medo do poder diabólico, medo de
O inconsciente é regido por uma espécie de dire- ser homossexual, medo de errar. Mas, desta forma, por
triz teleológica que tem como fim a realização de si. E causa de um monólogo que, por medo, nunca se torna
creio que também a sua face diabólica seja um modo diálogo autentico, nem consigo mesmo nem com Dia-
de provocar uma resposta e um diálogo por parte do dorim, Riobaldo se deixa seduzir pela quimera diabó-
ego: isto é, uma reação. No fim o “diabo” também po- lica e efêmera do poder; e permanece entre os limites
deria ter uma função positiva neste âmbito. O diabo da aceitação e das regras sociais, perdendo assim o
imaginado por Rosa em Grande sertão, porém, nun- amor da sua vida. Em Grande sertão: veredas a sede
ca é positivo. No romance a sua positividade relativa de poder, o desejo de vingança e a conveniência ma-
é mencionada somente uma vez: na hipótese de que tam o amor. Eis a atitude prevalente de Riobaldo em
Deus o use para combater o mal com o mal, assim relação a Diadorim: "Ia, por paz de honra e temência,
como Joca Ramiro se serve de um sombrio Hermóge- sacar esquecimento daquilo de mim" – condenando-se

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assim a uma morte em vida, e a uma saudade insaná- qualquer palavra". Em termos junguianos, entre a
vel, em nome de um falso senso de honra e da obser- persona ou máscara social e a anima, Riobaldo esco-
vância a normas sociais e religiosas. A Riobaldo falta lhe a persona, traindo assim seus sentimentos mais
a coragem de trilhar um caminho contra as regras da profundos e sua identidade essencial. A traição do
coletividade, que o obrigaria ao isolamento e à falta de próprio sentimento de amor é o incêndio e a disso-
pontos de referência habituais. E ele sabe disso, e indi- lução do oásis-vereda existencial. Nas palavras de
retamente o confirma: "Homem com homem, de mãos Gambini (comunicação pessoal): "L’hybris di Rio-
dadas, só se a valentia deles for enorme". É difícil ter baldo consiste nel disprezzare Eros".
esta valentia, e na maioria das vezes prevalece o medo Em Grande sertão se opera uma trágica e final
de viver, e de enfrentar o ignoto contra tudo e todos ruptura entre homem e Deus, entre Riobaldo e Eros.
em nome dos sentimentos da própria alma. Riobaldo Aterrorizado pela possibilidade de ser homossexual,
procura negar o seu sentimento por Diadorim, porque ele expõe Diadorim ao perigo e o perde. Riobaldo
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estigmatizado pela sociedade; isso também é vender- nega a sua alma em nome da persona e da sombra.
se: não ao diabo mas a um seu parente próximo, que se No seu caso vender a alma ao diabo significa ter pri-
chama aceitação social. Jung (2005, p. 285) se dedicou vilegiado o poder, perdendo assim a humanidade.
intensamente a esses problemas e nos deixou a respei- Quem evita esse corajoso reconhecimento, e ignora
to reflexões fundamentais: ou nega a existência efetiva do diabo como mal inte-
Nada pode poupar-nos do tormento da decisão ética. rior, cai inexoravelmente nas mãos dele. E Riobaldo
Mas por mais rude que isto possa parecer, é necessá- sabe disso: A gente sabendo que ele não existe, aí é
rio, em certas circunstancias, ter a liberdade de evitar que ele toma conta de tudo.
o que é reconhecido como moralmente bom, e fazer Candido (1991, p. 90) escreve: "Viver é muito pe-
o que é estigmatizado como mal, se a decisão ética o rigoso – repete Riobaldo a cada passo; não só pelos
exigir [...]. O individuo, porém, é, em regra geral, de acidentes da vida, mas pelas dificuldades em saber
tal modo inconsciente, que não percebe suas possibi- como vivê-la". No fim Riobaldo se demonstra incapaz
lidades de decisão; por isso procura ansiosamente as de vivê-la, por falta de uma direção interior e pela au-
regras e as leis exteriores às quais possa ater-se nos sência de uma consciência que sempre implica uma
momentos de perplexidade. escolha de valores. A deliberação consciente lhe per-
mitiria não ser espectador passivo da sua existência
“Consciência” é também aceitar o fato que o ser antes de fazer o pacto com o diabo, e não ser o carrasco
humano tem direito ao erro: para usar uma expressão de si mesmo em conseqüência do pacto.
do filosofo Luigi Pareyson, “è meglio il male libero che Se o sertão interior não pode ser domado, assim
il bene imposto” (Pareyson, 1995). Mas o homem como não é possível cavalgar um tigre, ao homem
sempre corre o perigo de sacrificar seus sentimentos resta a esperança de saber decifrar sua linguagem,
profundos no altar do moralismo de grupo. Obedecer de achar um sentido para a experiência, e de saber
a um bem imposto não é certamente sinal de consci- identificar as misteriosas forças em ação: achar o ru-
ência nem de responsabilidade, mas uma forma de se mozinho forte das coisas, caminho do que houve e do
entregar a uma condição infantil e passiva perante os que não houve.
acontecimentos. É a escolha de um caminho já traçado A ética, mais do que a ontologia, é a maior preo-
por outros, e por isso mais tranqüilizador, e também cupação de Riobaldo, como Candido (1971, p. 88) con-
menos corajoso. O ideal da E eu infalibilidade, por firma: "O intuito fundamental é o angustiado debate
outro lado, é ilusória promessa diabólica e pretensão sobre a conduta e os valores que a escoltam". E que
que está na origem da violência; e torna-se por certo esse debate permeia a obra de Rosa como um todo, o
falibilidade. Já observei como Riobaldo vive constan- atesta Oliveira (1970, p. 84):
temente no terror de errar, correndo o risco de cair na O ideal que informa a arte de Guimarães Rosa é o do
inação. E surge mais um problema: o mal do Riobaldo homem harmonioso. Ele sabia que o ser humano
não é um mal livre, mas um mal imposto por forças não se desenvolve por igual, nele ficando sempre
inerentes à sua personalidade inconsciente. Ele não amplas áreas de sombra a serem iluminadas. De
questiona o lado diabólico do seu mundo interior em onde a perversidade, o crime, - os seres incomple-
procura de respostas. E, estabelecer um diálogo hones- tos, que povoam a sua ficção. [Ele] acreditava na
to com o diabo, isto é, se examinar verdadeiramente salvação do homem, através do aperfeiçoamento
e corajosamente, lhe permitiria libertar-se do seu es- da consciência individual. Poderia repetir, como
tado de opressão interior e abrir-se ao diálogo com Goethe: “De que me serve fabricar um bom ferro
Diadorim. Prevalece porém esta atitude: "Eu tinha se o meu interior está cheio de escória?” Rosa acre-
de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar ditava na eficácia da vida ética (grifos nossos).

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Essa é a luta entre o bem e o mal, entre a luz e tem de esforçar-se por chegar a ser" (B ussolot -
a sombra, que envolve Riobaldo assim como cada t i , 2003, p. 258).
um de nós. A expressão “seres incompletos” me pa- Querer ser mais do que si próprio, por outro
rece extremamente apropriada: a trágica grandeza lado, é claramente uma ilusão diabólica, e uma hybris.
de Grande sertão nasce de um desejo de plenitude, Escolhendo este objetivo, Riobaldo sofre sua grande
de clareza, de completude, que no fim é sempre ne- derrota: a morte de Diadorim. A sua segunda derrota
gado e dolorosamente frustrado. É essa a frustração é ter se casado com Otacília. Como sublinha Aguiar
que Proença (1958, p. 14) descobre até na etimologia (2001, p. 75): "O encontro de Otacília foi para Riobaldo
do nome dessa personagem: “Riobaldo: Rio-baldo”. uma neutralização do pânico provocado pela desco-
Somos finitos e temos saudade do infinito que nos ori- berta do amor por Diadorim".
ginou, e cujo símbolo encerra o romance. Aspiramos a E a terceira derrota é a de não ter conseguido
uma harmonia superior vivendo na imperfeição. Mas admitir claramente suas culpas e então se perdoar.

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nessa tensão dolorosa e nessa saudade radical reside (Perdoar-se só é possível somente após uma admissão
também toda a beleza, vitalidade e poesia dos seres consciente da culpa). Nestes casos, nem a religião pode
humanos. É saudade humana de uma pátria espiritu- ajudar muito. E, no caso do Riobaldo, no fim a religião,
al, ou de uma vereda interior em que possamos reco- como eu já referi, é vivida exclusivamente como exor-
nhecer-nos e em que possamos nomear as coisas. Não cismo, espécie de rito mágico para proteger-se do so-
podemos realizar a perfeição nesta vida, mas a tensão frimento e do mal com suas personificações.
em direção ao infinito é ao mesmo tempo dolorosa e Riobaldo, mesmo admitindo que existem muitas
vital. E é o anseio de Riobaldo: "Eu queria poder sair coisas importantes que não têm nome, sofre também
para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação de ânsia de onisciência, que é uma forma de hybris.
em incerteza. [...] A gente quer Céu é porque quer um Se, ao invés de se questionar sobre as razões do so-
fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo". frimento do mundo e de colocar enigmas insolúveis,
Essa é a saudade frustrada de Riobaldo. Como escreve ele tivesse começado por uma reflexão sobre o seu
Arrigucci (1994, p. 29), porém, sofrimento e os caminhos dos seus sentimentos, e ti-
cada vez mais, Riobaldo se desgarrará da origem e vesse conversado sobre isso com Diadorim enquanto
do absoluto a que aspira; por isso, cada vez mais será era tempo, Riobaldo teria podido descobrir que Dia-
[...] o homem desterrado de sua verdadeira pátria, dorim era mulher, ou teria podido se confrontar com
errante numa travessia solitária, sem retorno possí- o seu homossexualismo. Em todo caso, se colocaria
vel – homem moderno, descentrado e sem volta a na condição de fazer uma livre escolha. Ainda nas
uma verdadeira casa, que já não pode existir. palavras de Jung (1999, p. 62): "A deliberação ética só
existe onde o conflito é consciente em todos os seus
De fato assistimos a um processo de gradual de- aspectos". Também o desejo de onisciência impede ao
sumanizacão do protagonista que se torna trágico em- Riobaldo de viver sua vida e seu amor, porque o afasta
blema da fragmentação interior do homem moderno. de seus problemas reais.
O verdadeiro problema de Riobaldo não é tanto Candido (1995, p. 172) escreve: "Riobaldo seria
o fato de ter dúvidas, mas a maneira como as resolve: um instrumento de forças que o transcendem". Se o
o pacto significa que ele deixará prevalecer dentro de bem e o mal são forças inerentes à natureza humana,
si a crueldade sobre a compaixão, a sede de glória so- amiúde inconscientes, a consciência deve sempre fa-
bre o desejo de fugir da guerra com Diadorim. Riobal- zer uma opção, e assumir na maioria dos casos uma
do parece oscilar entre dois objetivos profundamente função de filtro seletivo. O diálogo entre consciência
diversos: "Eu queria ser era eu mesmo / Eu queria ser e inconsciente é necessário para o enriquecimento da
mais do que eu". consciência; e é a única esperança que temos de não
Se a primeira frase revela o objetivo do homem sermos tragados pelo inconsciente. A propósito da ne-
harmonioso, a segunda é proferida por Riobaldo no cessidade desse “diálogo interior”, um dos nomes do
momento em que faz o pacto com o diabo. A primei- diabo elencados por Riobaldo é “O Solto-Eu”. Colocar
ra frase é filosoficamente associada ao conceito de em conexão e comunicação as partes “soltas” e desa-
“verdadeiro si mesmo”: este é um ideal de identidade tadas que compõem a nossa personalidade é extrema-
essencial e de completude que o homem mira desde mente árduo, também porque implica uma distancia
séculos, começando pelo atman dos Upanishad e che- tanto necessária quanto improvável: "Sei o grande ser-
gando ao Self de Jung. A propósito de outra afirmação tão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota,
parecida do Riobaldo, "eu somente queria era – ficar esses pássaros, apalpando ares com pendurado pé,
sendo", Rosa forneceu esta explicação ao seu tradu- com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas".
tor alemão: "Cada um de nós ainda não é o que 'é', É a visão do alto que alcançam somente homens fora

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do comum, mas que é objetivo de muitos. E é através deira que é. [...] Com Deus existindo, tudo dá espe-
do coração que o homem pode librar-se nesse vôo rança: o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, a
contemplativo em busca dos valores da vida. Assim vida é burra. É todos contra os acasos. Tendo Deus,
Diadorim ensina ao Riobaldo: "Não sabe que quem [...] no fim dá certo.
é mesmo inteirado valente, no coração, esse também
não pode deixar de ser bom?" O adjetivo “inteirado” é Deus então é garantia de equilíbrio e esperan-
muito importante, porque remete ao ideal de integra- ça de solução dos conflitos no mundo e na vida do
ção, inteireza e integridade da personalidade. A ima- homem. Segundo a concepção do narrador, cada ser
gem do coração reaparece em outra importantíssima humano é originariamente destinado a um papel es-
assertiva do protagonista: pecifico no mundo, e é portador de uma lei interior
Ah, um recanto tem, miúdos remansos, aonde o de conduta individual. Mas Riobaldo desconhece
demônio não consegue espaço de entrar, então, em esse papel, ou o descobre quando já é demasiado tar-
GUIMARÃES ROSA

meus grandes palácios. No coração da gente. Meu de. O homem é parte de um desígnio transcendente,
sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha e tem que descobrir e reconhecer em si mesmo a sua
dizia: - Tento, cautela, toma tento, Riobaldo: que o colocação harmônica no universo. Mas este desenho-
diabo fincou pé de governar tua decisão! desígnio, que “tem que ter” para compensar o lado
destrutivo do cosmos, é um enigma de difícil decifra-
É a voz do coração, que se opõe ao predomínio ção. Isso faz de Grande sertão: veredas um clássico
diabólico sobre a vontade e personalidade de Riobal- universal: todos nós somos potencialmente Riobal-
do. O regozijo é a conseqüência palpável da eliminação do e podemos nos reconhecer nele: porque cada um
do conflito. O coração aqui se torna função unificadora de nós se apóia sobre verdades parciais e é presa de
da personalidade, vereda e locus amoenus incorruptí- preocupações e conflitos que constituem seus limi-
veis e inalienáveis, imunes às fragmentações e feridas tes. Existe uma norma individual que o homem deve
causadas pela luta entre forças opostas. Outra confir- conscientemente seguir para tornar-se parte integran-
mação vem do Riobaldo: "Meu coração é que entende, te e funcional do universo, e que é o signo do divi-
ajuda minha idéia a requerer e traçar". Por que Rio- no no homem: mas é difícil identificar os sinais e o
baldo nunca interpela seu coração para dirimir suas sentido do próprio caminho individual como parte de
dúvidas? Por que não permanece fiel a essas suas uma totalidade, e acessar a norma interior que trans-
palavras? Por que não se volta para seu coração nos cende a mutabilidade dos acontecimentos. A totalida-
momentos cruciais (nas encruzilhadas) da vida? Con- de é visão fugaz raramente intuível, no seu desenho,
tudo ele sabe e comunica ao ilustre interlocutor que para quem a vive de dentro como “parte”. À parte é
o coração tem uma função de orientação e representa negado ou parcialmente negado o todo, exceto para
a diretriz mestra para a conduta individual; sabe en- poucos homens iluminados.
tão que o coração é a chave de acesso àquela “norma” O ego de Riobaldo é cego: "O real não está na
interior a que tanto aspira. De fato é essa a visão de saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no
Riobaldo sobre o papel do homem no mundo, e sobre meio da travessia. [...] Eu atravesso as coisas – e no
a dificuldade de individuar este papel: meio da travessia não vejo". Se a realidade se dispõe
O que há é uma certa coisa – uma só, diversa para no meio da travessia, Riobaldo não a vê; e nesse espa-
cada um – que Deus está esperando que esse faça. ço intermédio também se encontraria Deus: "Traves-
[...] Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei sia, Deus no meio". Riobaldo então não vê a realidade
para achar, era uma só coisa – a inteira – [...]. A que e não vê Deus. A dúvida de Riobaldo sobre a efetiva
era: que existe uma receita, a norma dum caminho existência do diabo, contém no fundo a dúvida sobre
certo, estreito, de cada uma pessoa viver, mas a gen- a efetiva existência de Deus. Isto também faz de Ri-
te mesmo, no comum, não sabe encontrar. obaldo um nosso irmão. E ���������������������������
ele ao menos tenta enxer-
gar, e tenta fazê-lo desesperadamente. Prado Jr. (1968,
“A inteira”: assim Riobaldo se refere a esta nor- p. 10), analisando o comportamento inconsciente
ma, orientação interior e essencial que é associada ao de Riobaldo, observa que por parte do narrador de
ideal de integridade e inteireza: visão existencial de Grande sertão se verifica a tentativa de reconciliação
um indivíduo não interiormente dividido, como a eti- com um si mesmo que se perdera na inconsciência e
mologia da palavra “indivíduo” indica. É essa norma com o qual perdera todo contacto no mais profundo
a “direção certa” a que Jung antes se referia. de sua própria identidade.
Diz ainda Riobaldo: Riobaldo procura o sentido da vida: "Que o que
Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida gasta, vai gastando o diabo dentro da gente, aos pou-
de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doi- quinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor".

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notas
“Razoável” quando se descobre o sentido da dor.
Mas nenhum filósofo nos deu até hoje uma explica- 1 Lutar contra o coração é difícil pois se paga com a alma.
Agradeço Adélia Bezerra de Meneses por essa indicação.
ção deveras convincente sobre a origem do mal e do
2 Trabalho inédito.
sofrimento (Ricoeur, 1988).
Há sofrimentos que não conseguimos explicar.
Temos então de admitir também uma ausência de
sentido nesta realidade, e uma coexistência de senti- Referências
do e de falta de sentido. Isto dificulta mais ainda a
tarefa de quem se propõe de achar um sentido para AGUIAR, Flávio. Grande sertão em linha reta. In: ______.
DUARTE, Lelia P.; Alves, Maria Theresa A. (Orgs.). Ou-
a própria vida. Não é por acaso que o adjetivo razoá- tras margens. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
vel tenha sido colocado por Rosa somente a partir da ARRIGUCCI JR., Davi. O mundo misturado. Novos Estu-
terceira edição do livro, como se tratasse de uma re- dos. São Paulo, n. 40, 1994.

GUIMARÃES ROSA
flexão e discriminação posteriores (Sperber, 1982, BOLLE, Willi. GRANDESERTÃO.br ou: a invenção do Brasil.
In: LANCIANI, Giulia (Org.). João Guimarães Rosa: il che
p. 79). Os cavalos que morriam "não entendiam a dor delle cose. Roma: Bulzoni, 2000.
também", assim como nós permanecemos atônitos BUSSOLOTTI, Maria Aparecida F. M. (Org.). Correspon-
perante a dor e o mal. dência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-
1967). Belo Horizonte/Rio de Janeiro: UFMG/Nova Frontei-
Em Grande sertão “tudo é misturado”, e o uni- ra/ABL, 2003.
verso revela uma face ora benéfica ora maléfica e po- CANDIDO, Antonio. Grande sertão: veredas. Suplemento
tencialmente diabólica, tornando-se complexo jogo Literário do Estado de São Paulo, 06 out. 1956.
de espelhos sob o signo da contradição permanente: ______. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In:
______. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
a ambigüidade e a perplexidade impregnam todos
______. O homem dos avessos. In: ______. , In: Tese e antíte-
os níveis da realidade, e impedem uma comunicação se. São Paulo: Nacional, 1971.
duradoura entre as criaturas. O sentimento de comu- COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Ja-
nhão entre o homem e o mundo é sempre acenado neiro/BSB: Civilização Brasileira/INL, 1983. (Fortuna Crítica;
6)
mas nunca estavelmente realizado. Rosa afirma a Lo-
GAMBINI, Roberto. A alma da água. Mesa-redonda. IV Se-
renz (1994): "O sertão é o terreno [...] onde o interior mana Cultural - Festa de Manuelzão. Andrequicé, 2005.
e o exterior não podem ser separados". Mas o sertão, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes,
que aqui potencialmente é o espaço da conciliação e 1991.
da totalidade, no desfecho desse romance se corrom- JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Petrópolis:
Vozes, 1999.
pe em pântano, “vereda morta” de água estagnante e
______. Aion. Petrópolis: Vozes, 2005.
da ambigüidade irresolvida. Veredas Mortas é também
­­­­­­______. Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova
o primeiro título que foi dado ao livro, e é o nome do Fronteira, 2005.
lugar onde Riobaldo faz o pacto, enveredando assim LEITE, Dante Moreira. Grande sertão: veredas: a ficção de
pela morte e tendo que renunciar a uma vida plena- Guimarães Rosa. In: ______. O amor romântico e outros te-
mas. São Paulo: Nacional/Edusp, 1979.
mente vivida.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA,
Grande sertão: veredas é a luta de uma consciên- Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
cia para emergir, e o homem é teatro de um conflito 1994. v.1.
entre forças transcendentes, opostas e sem fisionomia MENESES, Adélia Bezerra de. Grande sertão: veredas e a psi-
canálise. Scripta. Belo Horizonte, v. 5, n. 10, 2002.
nítida. A
���������������������������������������������
tentativa de emersão por parte da consciên-
NUNES, Benedito. O amor na obra de Guimarães Rosa. In:
cia no fim naufraga: prevalece o sentimento de cisão, ______. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
de incompletude e de inconsciência. Mesmo que a ______. O mito em Grande sertão: veredas. Scripta. Belo Ho-
vida não seja “entendível”, a esperança é que o ser hu- rizonte, n. 3,1998.
mano defenda, cultive e amplie as veredas de sentido OLIVEIRA, Franklin de. Guimarães Rosa. In: COUTINHO,
Afrânio (Org.). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Sul-
que atravessam o seu sertão interior; que nunca fuja americana, 1970.
daquela tensão entre os opostos, que é a vida; e que PAREYSON, Luigi. Ontologia della libertà. Il male e la
nunca desista da busca de um equilíbrio, individual e sofferenza. Einaudi, 1995.
coletivo, que seria o resultado da cooperação entre o PRADO JR., Bento. O destino decifrado. Cavalo azul. São
Paulo, v. 3, 1968.
consciente e o inconsciente (Jung, 2005, p. 290).
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Trilhas do grande sertão.
Nas palavras de Oliveira (1970, p. 435): Grande Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do MEC, 1958.
sertão é um monólogo do Brasil inteiro: Brasil que RICOEUR, Paul. O mal. Um desafio à filosofia e à teologia.
ainda não conseguiu decidir-se entre o Bem e o Mal Campinas: Papirus, 1988.
– impotente para encontrar o seu destino. Prisionei- RÓNAI, Paulo. Trajetória de uma obra. In: ______. Seleta de
João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
ro de perplexidades. Enleado na impotência. Grande SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento.
sertão é um monólogo do mundo inteiro. São Paulo: Ática, 1982.

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