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As práticas religiosas africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de Janeiro –


1900 á 1910

Caio Sérgio de Moraes Santos e Silva

Monografia do Curso de História da Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Bacharel/Licenciado em História.

Orientador: Profª Fabiane Popinigis

Seropédica
2013
ii

As práticas religiosas africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de Janeiro – 1900


á 1910

Caio Sérgio de Moraes Santos e Silva

Orientador: ___________________________________

Monografia do Curso de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,


como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel/Licenciado em História.

Aprovada por:

___________________________________________
Presidente, Prof.

_____________________________________
Prof. Dr.

_____________________________________
Prof. Dr.

Seropédica
2013
3

AGRADECIMENTOS

Primeiramente gostaria de agradecer a Deus por ter me concedido saúde, força, calma
e sabedoria para enfrentar os momentos adversos durante esta caminhada. Aos meus pais que
não mediram esforços para que eu pudesse alcançar os meus objetivos e realizar os meus
sonhos. Um agradecimento em especial a minha Dinda que me apresentou e me fez amar a
História, e ao meu Dindão que sempre esteve presente nos momentos de alegria e dificuldade.
Agradeço também a todos os meus familiares que rezaram e torceram por mim.
Aos meus amigos Vinícius, André, Érick, Niel, Jéssica, Pedro e Thales que
compreenderam as minhas ausências em alguns momentos importantes devido aos meus
estudos. Um forte abraço á aqueles que foram a minha família durante esses quatro anos de
graduação: Marcinho, Jamaica, Danilo, Evandro, Agostinho, Juh, Igor, Felipe, México, Kiko,
Marquinho, Jaja, Dan, Fernando, Bruninha, Rafa e todos os que fizeram dessa minha jornada
na Rural algo inesquecível. Ao meu amigo Max que sempre se mostrou solícito a me ajudar
nos momentos em que eu precisava e também meu companheiro de pesquisa e de produções
acadêmicas.
Aos meus professores de graduação em especial aos professores Alain Kaly e Felipe
Magalhães que me aconselharam e trouxeram para os debates em sala de aula questões
pertinentes que contribuíram para o desenvolvimento da minha pesquisa. Um agradecimento
mais que especial a minha orientadora Fabiane Popinigis que sempre ofereceu oportunidades
para meu crescimento acadêmico, e que desde a formação do projeto desta pesquisa esteve
presente e solícita na construção e desenvolvimento deste trabalho.
4

MORAES, Caio Sérgio.


As práticas religiosas africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de Janeiro-
1900 á 1910/ Caio Sérgio de Moraes. Seropédica: UFRRJ/ICHS, 2013.

Número de páginas pré-textuais algarismos romanos, Número de Páginas


Textuais algarismos arábicos: il.
Orientador: Fabiane Popinigs
Monografia (Bacharelado/Licenciatura) – UFRRJ/ Instituto de Ciências
Humanas e Sociais/ Departamento de História, 2013.
Referências Bibliográficas: f. (indicar os limites da paginação da bibliografia
em algarismo arábico, por exemplo, 51-53)
1. Classificação temática geral. 2. Classificação temática específica. 3. Tema
principal. 4. Campo Temático. I. Último Nome, Pré-nome e nome do Orientador.
II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto Ciências Humanas e
Sociais, Curso de História. III. Bacharelado/Licenciatura.
5

As práticas religiosas africanas (candomblé) na Primeira República no Rio de Janeiro-1900 á


1910

Autor

Orientador:___________________________________

Resumo da Monografia do Curso de História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais,


da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Bacharel/Licenciado em História.

Este trabalho tem como objetivo analisar a participação de pessoas pertencentes às


classes altas da sociedade nas rodas de candomblé, num período que tais práticas religiosas
passavam por um momento de discriminação perante as leis da República brasileira. A
identidade das pessoas que frequentavam as roda de candomblé e utilizavam de seus artifícios
para suprir suas necessidades do cotidiano, num momento político em que o Rio de Janeiro
atravessava um período de transformações e de combates das classes pobres por seus direitos
e costumes. Ainda nessa pesquisa será abordado o processo histórico de construção de práticas
religiosas ligadas ao culto de divindades africanas no Rio de Janeiro, papel dos feiticeiros na
sociedade carioca, o combate contra o charlatanismo e o confronto entre as diversas classes
sociais.
Palavra-chave: Candomblé, espaço de sociabilidade, charlatanismo.

Seropédica
04/2013
6

The african religious (candomblé) in the first Republic in Rio de Janeiro – 1900 - 1910

Autor

Orientador:___________________________________

Abstract da Monografia do Curso de História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais,


da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Bacharel/Licenciado em História.

This work has as objective to analyze the participation of people that belonged to the
upper classes of the society on the “rodas de candomblé”, in a period when this religious
practices were passing through a moment of discrimination before the Brazilian Republic’s
laws.
The identity of the people that frequent the “rodas de camdomblé” and who were those people
that were using candomblé’s skills to surpass their daily needs.
In a political moment that Rio de Janeiro was running through a transformation period and for
the combat of lower classes for their rights and customs.
In this research still will be approach the historical process of religious practices’ constructing
connected to African divinity’s cult in Rio de Janeiro, the wizards’ importance on carioca’s
society, the combat against quackery and the importance of a confrontation between many
social classes.

Key-words: Candomblé, quackery, sociability’s space

Seropédica
2013
7

Conteúdo

Introdução............................................................................................................................... 8
Capitulo 1 - De Daomé a Bahia: O culto aos Voduns .......................................................... 11
A influência Nagô ................................................................................................................ 17
Capitulo 2 - Feiticeiros, mandingas e charlatanismo. .......................................................... 21
Capítulo 3 - A Revolta da vacina e a mítica de Obaluâie .................................................... 34
Revolta da Vacina ................................................................................................................ 36
Motivos e Cidadania............................................................................................................. 39
Conclusão ............................................................................................................................. 44
Bibliografia ............................................................................................................................. 46
8

Introdução

Há uma casa de pretos na Travessa do Castelo onde se pratica a liturgia jeje-nagô, culto
fetichista, cerimônia cheia de complicações e de mistérios, onde se evocam almas do outro mundo e
são manipulados “despachos”, feitiços que, quando postos nas encruzilhadas dos caminhos, têm a
propriedade de criar malefícios, modificar vontades, corrigir a linha sinuosa que dirige o destino dos
homens. Chama o povo a esses núcleos de evocação e de magia onde o homem de cor, em geral,
predomina, canjerês, candomblés ou macumbas. O espírita convicto diz sempre quando deles fala:
espiritismo de terreiro ou, então, baixo-espiritismo.1

Logo que iniciei minha caminhada pelo curso de graduação em história, os estudos
sobre o continente africano despertaram meu interesse. Entretanto, intrigavam-me, sobretudo,
as religiões de origem afro-brasileiras, em especial o candomblé e a umbanda. Ao longo do
curso, aprofundei meu interesse em pesquisar sobre as práticas religiosas de origem africana
no Rio de Janeiro.

Investigando os estudos referentes ao assunto, percebi que em relação à Bahia existe


uma ampla gama de trabalhos, escritos por pessoas de formação acadêmica distintas, como
antropólogos, sociólogos, fotógrafos e historiadores,2 o que não ocorre na mesma escala no
caso da historiografia sobre o tema para o Rio de Janeiro. Na primeira república a política
higienista aplicada pelo governo do Rio de Janeiro, a despeito das disputas iniciais, revelou-se
cada vez mais hostil às práticas que eram comuns às classes populares no seu cotidiano.3 Assim,
embora a primeira constituição republicana garantisse a liberdade de credo as práticas do

1
EDMUNDO, Luiz, 1880-1961. O Rio de Janeiro do meu tempo / Luiz Edmundo. -- Brasília : Senado Federal,
Conselho Editorial, 2003. Pag135
2
REIS, João José. Domingos Pereira Sodré: um sacerdote na Bahia oitocentista. Revista Afro-Asia, edição:34,
2006; ALBUQUERQUE, Wlamyra R de. Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia: identidade cultural na
Primeira República. Revista Afro-Asia, edição: 18, 1996.;RODRIGUES, Raimundo Nina. O animismo fetichista
dos negros baianos. Salvador, s.ed., 1935. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil – contribuição a
uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1971.
3
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdadede Letras, Pós-
Graduação, Ano X, nº14, 2006; FESTA EIDENTIDADE NACIDADE E NOINTERIOR: A Flor da União: Festa
e Identidade nos Clubes Carnavalescos do Rio de Janeiro (1889-1922); CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e
botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas, SP: Editora da
Unicamp,2008; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1989.; CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da
Folia.Uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
9

candomblé eram discriminadas de forma legal, pois “praticar o espiritismo, a magia e seus
sortilégios” estava presente no código penal da então nova República.4

Ao iniciar a pesquisa para a realização da monografia intitulada “As práticas


religiosas africanas no Rio de Janeiro durante a Primeira República” surgiram outros
aspectos sobre a temática além dos que estava investigando. Neste trabalho procurou-se
analisar em especial os motivos que levavam pessoas pertencentes à elite carioca a
frequentarem as rodas de candomblé, num período em que tais práticas religiosas passavam
por um momento de discriminação perante as leis da República brasileira.

A pesquisa me levou aos lugares de encontro de pessoas pertencentes às “classes


perigosas”5, como ex-escravos africanos, libertos, pessoas descendentes desses escravos
que continuavam a seguir práticas culturais de seus ancestrais em meio à sanha civilizatória
republicana. Essas práticas culturais não estavam presentes somente nos pontos de encontro
como os terreiros, as casas de reza ou as “casas das Tias”, que eram pontos de circulação
dos mais diversos indivíduos da sociedade do Rio de Janeiro, mas em outros locais de
circulação dos negros como os locais de trabalho ou nas manifestações culturais da época.6

Tenho como objetivo principal nesta pesquisa de monografia, analisar a circulação de


pessoas pertencentes às classes altas da sociedade nas rodas de candomblé, num período em
que tais práticas religiosas passavam por um momento de discriminação perante as leis da
República brasileira. Para chegar a esse objetivo é necessário uma melhor compreensão não só
das práticas em si, como os rituais e os termos do culto africano, mas também compreender o
nascimento dessa religião, suas influências e fundadores. Para obter sucesso nesta pesquisa, em
diversos momentos foi necessário estar em diálogo com a antropologia, justamente para
entender esta formação do candomblé sob influencia nagô-ioruba.7 Assim no contexto social
brasileiro, o processo de institucionalização do Candomblé e a contribuição dele para a
formação de uma cultura afro-brasileira.8

4
Códigos penal . Cap III Art 157
5
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias nas Corte Imperial. Editora Companhia das
Letras.
6
GOMES,Thiago de Mello. Para Além da Casa da Tia Ciata: outras experiências no universo cultural carioca,
1830 – 1930. Revista Afro-Ásia, 2003; Edição 29-30
7 PARES, Luís Nicolau. A Formação do Candomblé: História e ritual da nação jeje na Bahia. Editora Unicamp.
P.390
8
PARES, op.cit, cap3 e 4.
10

Minha problemática gira em torno da identidade das pessoas que frequentavam as rodas
de candomblé e que utilizavam dos artifícios do candomblé para suprir suas necessidades do
cotidiano. Apoiadas na crença de que era possível serem curadas por “espíritos” que se
manifestavam em pessoas com certo dom mediúnico, e que na maioria das vezes praticavam
caridades para as pessoas que as procuravam. Sendo assim, procuro entender qual o papel
desses locais de encontro na criação e recriação das práticas religiosas de origem africana.
Também busco compreender como essas práticas, que eram parte importante dos costumes
compartilhados por diversos grupos de pessoas, que as significavam e ressignificavam a partir
de suas experiências cotidianas de trabalho e sociabilidade.

No primeiro capitulo, iremos abordar o processo histórico de construção de práticas


religiosas ligadas ao culto de divindades africanas no Rio de Janeiro, mostrando a trajetória de
indivíduos ligados aos cultos voduns desde a área gbe no continente, sua chegada a Bahia e a
influencia nagô-ioruba no culto jeje no candomblé até chegar ao Rio de Janeiro.

O segundo capitulo apresenta os personagens que nos ajudam a desenvolver essa


pesquisa. O papel dos feiticeiros na sociedade carioca, o combate contra o charlatanismo e o
encontro entre as diversas classes sociais nos espaços de sociabilidade serão abordados durante
este capítulo. O periódico A Gazeta de Notícias do Rio de janeiro será utilizados como fonte
junto dos livros As Religiões do Rio do cronista João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio
Cristóvão dos Santos Coelho Barreto e O Rio de Janeiro do meu tempo do jornalista e cronista
Luís Edmundo de Melo Pereira da Costa.

No terceiro e último capitulo será abordado o momento político que o Rio de Janeiro
atravessava, período de transformação e de combates das classes pobres por seus direitos e
costumes. Reordenamentos estruturais ocorridos nas políticas de dominação do Rio de Janeiro
tem relação com o possível desaparecimento da tolerância carioca com relação às práticas
populares sobre doenças e cura. A revolta da Vacina se desenha como fato muito importante
dentro desta pesquisa, pois ocorre dentro do recorte temporal proposto para a monografia e por
que ela se apresenta relações sociais que são de uma enorme contribuição para o
desenvolvimento desta pesquisa.
11

Capitulo 1 - De Daomé a Bahia: O culto aos Voduns

Este capítulo tem como objetivo apresentar o processo histórico de construção das
práticas religiosas ligadas ao culto de divindades africanas no Rio de Janeiro. Em um primeiro
momento vamos apresentar a origem e o campo de atuação do candomblé, além de influências
sofridas por outras nações até sua chegada ao Brasil, trazida por escravos e já na Bahia a
incorporação dos cultos aos Voduns pelos povos iorubas, o culto jêje sobre influência nagô, o
que mais tarde resultaria no candomblé.

Inicialmente, nossa intenção foi compreender o percurso de alguns elementos de


práticas religiosas fundamentais na constituição do candomblé e outros cultos religiosos (por
exemplo: o tambor-de-mina e o Xangô no Maranhão). Para chegar a tais pontos é necessário
compreender alguns aspectos fundamentais na organização das nações africanas no período de
colonização, onde a mão – de - obra escrava africana era um dos elementos chaves nesse
processo. A área gbe, segundo o antropólogo Nicolau Parés9, sempre constituiu uma sociedade
pluricultural e poliétnica, daí a necessidade de fazer uma demarcação da área geográfica
baseada nos aspectos linguísticos. O termo “Gbe” é utilizado para definir o vocabulário que é
compartilhado por diversos grupos. A “área gbe” corresponde à região setentrional do atual
Togo, República do Benin e o sudoeste da Nigéria, onde se localizavam alguns povos como os
adja, ewe, fon entre outros. E entre esses povos que apresentam uma proximidade linguística,
e o termo “vodum” é utilizado para designar as divindades do mundo espiritual.

Nos séculos XVII e XVIII o termo nação era utilizado para identificar os grupos
populacionais que se encontravam na região da Costa da Mina. Era utilizado pelos escravos,
missionários e oficiais administrativos das feitorias que se encontravam nessa região. Quando
começaram a agir sobre esses grupos que se organizavam em torno de uma instituição
monárquica, os europeus encontraram um “forte e paralelo sentido de identidade” baseado na
afiliação por parentesco. Porém as identidades coletivas dessas sociedades eram
“multidimensionais”, articuladas em diversos níveis, religioso, étnico, político entre
outros.10Assim, os nomes das nações podem referir-se aos reinos, etnias, portos de embarque
entre outros fatores e eram utilizados pelos traficantes e senhores de escravos, facilitando sua
administração e controle. Um dos critérios mais utilizados foi o dos portos de embarque ou a

9
PARES, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia/ Luis Nicolau Parés.
– 2ª Ed. Ver. – Campinas, Sp: Editora da UNICAMP, 2007.
10
Idem, p.23.
12

área ao qual se encontravam. (ex: Mina e Angola), porém, nem sempre correspondia à origem
do africano.11

Parés propõe que a lógica de tal generalização na identificação desses povos se deu,
portanto devido a vários elementos que compartilhavam, como a língua, os hábitos e os
costumes. Assim, ele acredita que para tentar distingui-los é necessário separar esse processo
em denominações internas e externas. A denominação interna é utilizada pelos membros de
determinados grupos para identificar-se, já a determinação externa é utilizada ou por africanos
ou por escravocratas europeus, para “designar uma pluralidade de grupos inicialmente
heterogêneos”.12

As denominações metaétnicas atribuídas a um determinado grupo podem, ao longo de


um determinado período vir a ser uma definição interna, sendo utilizadas numa auto-definição.
Essa denominação metaétnica ocorre a partir do momento que uma nova identidade coletiva é
gerada através da inclusão. A partir do momento em que ocorre uma generalização de uma
denominação metaétnica, ocorre a qualificação de um segundo termo de caráter mais
especifico. (ex: cavalo, mai, nagô, jeje).

Sendo assim os povos que apresentam uma mesma denominação de nação, seja por portos de
embarque, por uma área geográfica comum, ou até mesmo pelas semelhanças culturais e
linguísticas, tem a língua como uma possibilidade de se comunicarem em outros lugares do
mundo, para onde eram levados. Esse fator linguístico permitiu aos africanos aqui no Brasil a
se identificarem e formarem grupos coletivos. Para Robert Slenes desde o final do século
XVIII, os escravos das zonas cafeeiras no período colonial no Brasil, que eram oriundos da
África Central, comunicavam-se através de uma língua simplificada, uma língua pidgin, que
era baseado em línguas semelhantes como o kimbundo, o umbundo e o kicongo e que eram
combinadas em aspectos religiosos e culturais. Para Slenes devido o trafico, essa língua sofreu
diversas variações sendo influenciada em épocas diferentes por variadas línguas da África
Central, o que tornava, mas complexa essa situação. A partir da segunda metade do século
XIX, uma língua comum se estabeleceu fundamentada no kimbundo, umbundu e kicongo.13
Mesmo assim ele não rejeita a hipótese de que tenham surgidas novas línguas de origem banto,

11
Idem, p. 24 e 25.
12
Idem, p. 25.
13
SLENES, Robert W. “‘Malungu, Ngoma vem!’ África encoberta e descoberta no Brasil” in:
Cadernos do Museu da Escravatura. Luanda: Ministério da Cultura, 1995. Pag. 57-58
13

e que com o decorrer dos anos e a morte dos últimos africanos, deu-se a criação de uma língua
crioula.14

A primeira vez que se encontrou o termo “jeje” documentado foi no inicio do século
XVIII na Bahia, termo esse que correspondia a um povo proveniente da Costa da Mina. A partir
do século XIX, os jeje começaram a ser identificados como daomenianos, ou seja, grupo que
era oriundo do antigo reino de Daomé. De acordo com os estudos antropológicos,
historiográficos e na literatura afro-brasileira do século XX os jejes que formavam um grupo
que se localizava na atual cidade de Porto Novo, eram minoritários e com o forte avanço do
tráfico negreiro no continente africano, acabou sendo incorporado ao reino de Daomé.15 Daí
surge mais um exemplo de denominação metaetnica. Parés apresenta um panorama da história
da composição étnica do Golfo de Benim para explicar melhor como se deu essa rota do povo
jeje.

Mesmo apresentando um sistema bem estruturado de elementos conceituais e de rituais


religiosos, as sociedades do Golfo do Benim apresentam uma fronteira linguística, que permite
demarcar uma área de cultos de voduns entre os cultos de yehwe (mina-gens) e os cultos de
orixás (nagô). Essa fronteira se estabelece justamente pelas palavras utilizadas para assinalar
as divindades cultuadas, na qual a área do vodum coincide com a área dos gbe-falantes,
fortalecendo assim a ideia de que o candomblé jeje no Brasil é uma instituição religiosa
“caracterizada pelo culto de entidades espirituais chamadas voduns”16. Identificar uma área de
atuação da prática vodum, nos ajuda a identificar a área onde se encontraria o povo jeje.

Depois de demarcar a área geográfica, que corresponde a dos adja-ewés, também a


unidade linguística referente à dos gbe-falantes, e a sua região cultural fortemente definida em
termos religiosos, como o próprio Parés aponta na área vodum, fica fácil identificar as
“subnações” ou “moralidades de rito” do candomblé jeje. Entre elas estão: jeje-marrim ou
marino, jeje-savalu, jeje-dagomé, jeje mandubi e jeje-mina-popo. As denominações
metaétnicas antes apresentadas terão o mesmo valor para a dinâmica denominacional dentro
do Candomblé.

As identidades étnicas sempre encontraram nos rituais uma forma de expressão e


diferenciação. As práticas religiosas, os calundus, e depois os candomblés, serviam como um

14
Idem, p. 59.
15
PARES, op.cit, p. 31.
16
Idem, p. 38.
14

espaço para a demarcação dos limites das nações africanas. Sendo assim, o conceito de nação
foi se modificando ao longo do tempo, e passou a ser limitado no âmbito religioso. Na segunda
metade do século XIX, já com o fim do tráfico negreiro e a consequente diminuição do número
de pessoas nascidas no continente africano, às denominações étnicas dos africanos deixaram
de ser “operacionais” no Brasil, como aponta Parés. A identidade étnica passou a ser
denominada naquele ambiente onde quem controlava era a população negro-mestiça17. A
denominação de nação deixou de ser indicada pelo o local de origem, ou pela ascendência
africana, para o ser pela sua iniciação e o parentesco biológico foi substituído pelo parentesco
de santo.

Na formação de algumas considerações sobre as instituições religiosas na área vodum


podemos ver de acordo com Max Weber a principal função da religião é providenciar um
sentido para aliviar o sofrimento. Para Malinowski a religião age como uma ferramenta para
suportar situações de pressão emocional. Seguindo essa linha, pesquisadores da África Central
sugeriram um modelo teórico mais conhecido como “complexo fortuna-infortúnio”. Nesse
modelo teórico, a religião tem como objetivo a prevenção dos infortúnios e a “maximização da
boa sorte”18.

Algumas sociedades africanas, principalmente na parte ocidental, desenvolveram


complexas instituições religiosas, que eram fundamentais na organização sociopolítica e
econômica. Uma instituição religiosa centralizada e hierárquica pode gerar instituições
periféricas, que são contra-hegemônicas, passam a ser concorrentes e complementares, mas
podem a vir mudar de posição passando a ser mais centralizadas. O sistema religioso
legitimado pelo poder político, passa a apresentar estabilidade, além de estarem sujeitas a
“dinâmicas internas de mudança”. As práticas religiosas só vão se organizar e se
desenvolver a partir da existência de uma instituição social que garanta a sua expressão. A
composição de uma comunidade religiosa afro-brasileira faz parte de um processo de
reconstrução de novas instituições religiosas.

Parés, dialogando com o antropólogo Roger Bastide, procura entender quais instituições
são essas envolvidas nesse processo. Sendo assim, para Bastide, existem dois estágios: primeiro
seria o de adaptação ao redor dos batuques, e o segundo o de criação de estruturas sociais
complexas como os calundus e os candomblés, que para os libertos tinham uma grande

17
Idem, p.102.
18
Idem, p.103.
15

importância. Os calundus que eram de origem africana ocorriam paralelamente aos “batuques
de divertimento” e as “folias das irmandades católicas”. Esses processos podem estar
inteiramente ligados ao contexto urbano ou nas plantações de açúcar onde se encontravam uma
grande quantidade de escravos. Nos capítulos seguintes dessa pesquisa, abordaremos os lugares
de encontro de pessoas pertencentes às “classes perigosas”19, como ex-escravos africanos,
libertos, pessoas descendentes desses escravos que continuavam a seguir práticas culturais de
seus ancestrais em meio a sanha civilizatória republicana. Essas práticas culturais não estavam
presentes somente nos pontos de encontro como os terreiros, as casas de reza ou as “casas das
Tias”, que eram pontos de circulação dos mais diversos indivíduos da sociedade do Rio de
Janeiro, mas em outros locais de circulação dos negros como os locais de trabalho ou as
manifestações culturais da época.20

Muitas práticas que não se ajustavam às regras católicas eram encobertas pelas
irmandades, um exemplo eram os calundus. Muitas das redes sociais de negros que se
articulavam nas irmandades católicas, poderiam ser encontradas na organização dos batuques
ou de outras práticas religiosas. Essa duplicidade que apresentava muitos africanos, desfilando
em procissões e batuques de calundus, não apresenta uma contradição, mais sim uma
justaposição de conceitos para lidar com a diversidade que se encontravam no seu dia-a-dia.
João José Reis em seu trabalho “Greve negra de 1857 na Bahia”, mostra que as tradições dessas
pessoas estão presentes no seus dia-a-dia, imbricadas nas suas relações de trabalho.21

Essas religiões africanas têm como práticas centrais a adivinhação, que permite
diagnosticar e prescrever uma orientação para alguma dificuldade vivida, sendo de
fundamental importância nas “praticas de cura”. Porém essas práticas acarretavam sérios
problemas não só aos praticantes e seguidores das religiões africanas no Brasil, como para a
própria aceitação delas na sociedade. Gabriela Sampaio dos Reis, ao trabalhar com a presença
de “feiticeiros” e “curandeiros” no Rio de Janeiro, nos apresenta as relações entre a sociedade
e os “feiticeiros” que eram os grandes responsáveis pela manutenção das práticas religiosas de
origem africana. 22 O mais famoso deles era Juca Rosa, conhecido por curar diversas pessoas

19
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias nas Corte Imperial. Editora Companhia das
Letras.
20
GOMES,Thiago de Mello; “Para Além da Casa da Tia Ciata: outras experiências no universo cultural carioca,
1830 – 1930”. Revista Afro-Ásia. 2003. Edição 29-30.
21
REIS, João José; “A greve negra de 1857 na Bahia”. Revista USP Brasil/África; IN: São Paulo, 2004.
22
SAMPAIO, Gabriela dos Reis; “Tenebroso Mistério, Juca Rosa e as relações entre crença e cura no Rio de
Janeiro imperial”, in Artes e Ofícios de Curar.Artes e ofícios de curar no Brasil: Cap12.Campinas: Unicamp,
2003. p. 387-425.
16

e por ser um líder espiritual em certo ponto de conduta “duvidosa”. Juca Rosa era acusado de
charlatanismo, que durante o período imperial já era considerado crime e que ganharia mais
força após a aprovação do Código Penal de 1890.

O trabalho dos “feiticeiros” se dava através de experiências mediúnicas ou técnicas


como olhar na água, sistema de Ifá ou jogo de búzios.23 Essas danças e experiências mediúnicas
estavam restritas à adivinhação e à cura. Assim a tradição de curar e adivinhar dos calundus no
século XVIII apresenta uma forte influência das tradições da África central.24

Num período onde se havia uma negação do curandeirismo como uma prática
medicinal, o curandeiro era visto como um contraventor, um “charlatão”. Muitas dessas ideias
se aplicam a Juca Rosa que era visto com maus olhos pelas pessoas que não acreditavam nos
seus poderes ocultos. No entanto, numa época onde o regime de escravidão ainda existia, ele
gozava de total liberdade e riqueza dentro de uma sociedade escravista.

Sampaio mostra que a discriminação das práticas religiosas de origem africana no


período do Império se dava num período de fortes discussões, principalmente na época em que
Juca Rosa foi acusado, pois justamente nesse período que se discute a lei do ventre livre, a
abolição da escravidão.25 Sendo assim existe certo medo por parte da elite branca, sobre do que
eram capazes os negros livres, sendo que os poucos que tinham liberdade já agiam contra a
ordem e os bons costumes da sociedade.

23
Ver ROCHA, Agenor Miranda, 1906 – As Nações Kêtu: origens, ritos e crenças: os Candomblés antigos do
Rio de Janeiro: Mauad, 2000. 112p.
24
Pares, op.cit. p.113.
25
SAMPAIO, p.414
17

A influência Nagô

Dentro da situação em que se encontravam nas colônias, onde partilhavam espaços com
africanos de lugares, línguas e culturas diferentes, os africanos escravizados se viram obrigados
a criar uma “nova cultura”, uma nova língua, uma nova religião, novos pilares para a formação
de suas vidas nas colônias. É possível perceber que para a criação desse novo ambiente, os
africanos se utilizaram das lembranças de suas heranças e outros materiais que os
possibilitavam reconstruir sua cultura no Novo Mundo, porém que fosse algo
“reconhecivelmente africano”.26

Como já trabalhado anteriormente nesse texto, os africanos escravizados vieram de


todas as partes do continente africano, sendo assim, eram representantes de diversas línguas,
costumes, pois pertenciam aos mais diversos grupos étnicos e linguísticos. Mintz e Price
mostram que existia uma esperança por parte dos europeus de uma aculturação das populações
escravas para que aceitassem seus status de escravos.27 Era muito raro haver um transporte para
o Novo Mundo de grupos africanos de uma mesma cultura, “cultura especificas”28 em grandes
grupos.29

Para se aplicar a ideia de herança cultural africana é preciso entrar em um contexto


comparativo, buscando achar aspectos em comum entre os diversos grupos e seus sistemas
culturais. Sendo assim, para Mintz e Price, os africanos que estão nas colônias nas Américas
só vão começar a se transformar em uma comunidade de fato, a partir do momento em que
compartilharem uma cultura que for criada por eles mesmos. 30 No começo do processo de
migração para o Novo Mundo, os africanos não se juntavam e formavam um grupo, mas sim

26
MINTZ, Sidney Wilfred, 1922 – O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica/ Sdney
W. Mintz e Richard Price/ tradução Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Pallas: Universidade Candido Mendes, 2003,
p.9 e 12.
27
Idem, p. 23.
28
Idem, p.26.
29
Idem, p.26.
30
Idem, p. 32 e 33.
18

se misturavam em meio a uma multidão formada por outros africanos provenientes de regiões
distintas do continente africana e heterogêneas. Para a criação desses grupos os africanos se
organizavam em instituições que eram aceitáveis dentro dos padrões sociais, e que eram
impostas aos escravos africanos naquele período.31 Essa relação entre os escravos por vezes
era facilitada pelo fato de muitos serem bilíngues ou trilíngues32, onde na criação de uma
instituição era possível se encontrar por vezes um numero considerável de grupos étnicos.

Mintz e Price observam que no caso dessa formação que os africanos escravizados vão
começar a construir no Novo Mundo, tratar a cultura como um “rol objetos, palavras, traços”
ou outros signos, faz com que perdemos de vista as relações sociais que ocorrem através dela,
sendo assim ignorando a maneira como ela é modifica ao longo do tempo.33 As instituições
desenvolvidas por escravos não eram restritas apenas aos grupos escravizados, onde eram
permitidos e ocorriam diversas ligações sociais entre escravos e homens livres. Essas relações
por vezes eram complicadas, pois o poder desses cidadãos livres sobre os escravizados se
esbarrava na dependência dos “detentores do poder”, ou seja, dos senhores dos escravos. 34
A
formação dos grupos sociais e religiosos, das relações familiares, tudo isso se dá como um
aspecto das relações sociais entre escravizados e “homens livres”:

“Assim, quer tenhamos em mente o modo como os escravos se aproximavam e criavam grupos
familiares, quer o modo como se reunião em grupos regulares para praticar o culto religioso, o
conteúdo desses comportamentos pode ser visto como um aspecto das relações sociais.”35

Slenes36 ao escrever sobre a família escrava dialoga com muitos antropólogos que
abordam a temática da formação dos grupos sociais e familiares de escravos. Fazendo uma
leitura sobre o trabalho de Bastide, Slenes primeiramente chama a atenção para a corrente
intelectual que as pesquisas de Bastide estão ligadas. O antropólogo francês era ligado a
Florestan Fernandes, que fazia parte da Escola Paulista de Sociologia e que estão sob forte
influencia dos estudos de Caio Prado Junior. Para Slenes, esse grupo “enfatiza a marginalização
dos homens livres pobres e a vitimização do escravo por um sistema econômico nefasto”37.
Bastide aponta para o impacto que a escravidão tem na cultura africana, principalmente sobre

31
Idem, p. 37 e 38.
32
Idem, p. 39.
33
Idem, p. 41.
34
Idem, p. 43 á 48.
35
Idem, p. 62.
36
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Brasil
Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, 288p.
37
Idem, p. 30.
19

a linhagem e a vida religiosa. Seguindo seu raciocínio, ele acreditava que devido à migração
forçada do continente africano para a América, o “culto aos antepassados” estaria predestinado
a desaparecer. Slenes também aponta para outros aspectos que Bastide aborda, como “a
formação do caráter psicológico do cativo nascido no Brasil” e a “ dualidade racial dos pais”.
Dentro desses dois aspectos ele tenta chegar a uma explicação para os “mecanismos psíquicos
de aculturação do negro”.38 Essas interpretações são desconstruídas por Slenes, pesquisador
pioneiro em demonstrar a importância da manutenção de elementos culturais do continente de
origem, como o cultuo dos antepassados, na criação e manutenção de laços familiares e
costumes comuns entre os escravos no Brasil.

Neste sentido, Slenes dialoga é Herkovits, que destaca a sofisticação e complexidade


da cultura africana. A forma como os africanos escravizados constroem suas famílias no Novo
Mundo, não quer dizer que estes estejam abandonando suas culturas de origem ou assimilando
a cultura dominante ao qual estão “inseridos”, mas sim adaptando aos novos parâmetros
sociais, porem baseados na suas próprias culturas africanas.

Essa busca pela formação de grupos sociais permite aos escravos e africanos livres a
construírem relações entre si a partir dos cultos religiosos.39 No culto aos voduns na Bahia, a
cultura jeje sofreu forte influencia nagô-ioruba o que resultou no que hoje conhecemos como
candomblé. Nina Rodrigues40 chama a atenção para o elevado número de Nagôs sobre as outras
etnias africanas no Brasil. Predominariam nas Américas as práticas mais complexas dos povos
que se encontravam em estado mais avançado na área religiosa. E assim suas práticas
atingiriam todas as outras “inferiores”, ou melhor, dizendo menos avançadas, onde essas
começam a incorporar em seus ritos elementos da cultura mais avançada.

Rodrigues em 1905 foi o primeiro a se interessar e escrever sobre a hierarquização entre


as culturas africanas nas Américas. Ele afirma que considerando a cultura nagô a mais avançada
e de maior domínio no Brasil, os jejes, Tshis e Gás entre outros passam a adotar as crenças e
cultos dos iorubás..

Para ele, esses cultos africanos na América agiriam de acordo com a quantidade de
negros de uma determinada nação e de sua superioridade perante os outros grupos, de acordo

38
Idem, p. 31.
39
Pares, p. 101 – 120.
40
NINA RODRIGUES, Raimundo. Os africanos no Brasil. 5.ed. São Paulo:Nacional, 1977.233p. (Brasiliana,9).
20

com a sua composição étnica41. Um exemplo é o culto da serpente pelos jejes. Com os nagôs
como principal grupo étnico e no domínio das colônias negras, e como esses não se fazem do
culto a serpente, essa tradição jeje passa a não ser cultuada na maioria dos cultos. Isso não quer
dizer que não vai haver em determinados terreiros ou que desapareceu por completo. 42

Para Parés, os significados dos bailes que eram realizados pelos pretos, em casas e roças
escondidas, onde se encontravam altares para divindades, sacrifício de animais e oferendas
alimentícias, vão muito além das práticas de adivinhação e cura, além de serem antecedentes
do candomblé do século XIX. Segundo ele, esses elementos expostos acima constituem a base
religiosa africana, em especial da África ocidental. Acreditavam que essas práticas eram
especialmente feitas pelos grupos da Costa da Mina, sem citar os grupos da África central. Nas
práticas de cura e feitiçaria encontravam-se a produção de patuás, que eram objetos móveis
tratados como “instrumentos mediadores para obtenção de algum fim” 43
. Os assentos são
“complexos materiais sacralizados” e eram utilizados no sistema de oferendas. São pontos
fixos, geralmente enterrados e são de propriedade familiar ou coletiva, onde vira uma espécie
de habitat das divindades, e também onde comportam a iniciação dos devotos. A organização
do culto religioso foi o que fez a religião nagô e jeje se manterem como as únicas sobreviventes.
44

41
RODRIGUES, op, cit, pag257
42
Idem, pag.257-258
43
PARES, op, cit, pag116
44
RODRIGUES, op, cit, pag260
21

Capitulo 2 - Feiticeiros, mandingas e charlatanismo.

O Rio de Janeiro no inicio do século XX enfrentava diversas transformações, e um


grande aumento populacional na cidade. Esse aumento populacional se deu em grande parte a
chegada de negros ex-escravos vindos da Bahia durante o século XIX. Na sua maioria os
africanos vindos da Bahia eram de origem nagô, representavam mais da metade dos africanos
libertos e formavam um grupo culturalmente forte (os nagôs), o que permitia tecer relações
com outros grupos étnicos que se encontravam no Rio de Janeiro.45

No Rio de Janeiro a presença dessas práticas religiosas africanas onde voduns e orixás
eram os pilares centrais da religião, já esbarrava na intolerância de parte da população carioca
em torno da metade do século XIX. Personagens como o famoso feiticeiro Juca Rosa eram
figuras presentes nos jornais e principalmente no cotidiano não só da população pobre, mas
também no cotidiano das pessoas pertencentes à classe alta da sociedade. Essas pessoas que
eram encaradas pelos céticos como charlatães e curandeiros para os crentes e admiradores,
surgiam em larga escala nas ruas do Rio de Janeiro.46

O baixo espiritismo47 era proibido pelo capitulo III (crime contra a saúde pública) do
Código Penal de 1890, a qualquer pessoa não habilitada a “exercer a medicina em qualquer
dos seus ramos”, “praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios” e “ministrar, ou
simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo”, poderiam resultar
na prisão do acusado, que variava de seis meses a seis anos, além de uma multa que iria de
100$ a 500$000 reis48. Ademais, a Constituição de 1891 permitia todo indivíduo de “exercer

45
MAMIGONIAM, Beatriz G. Do que “o preto mina” é capaz: etnia e resistência entre africanos livres, Revista
Afro-Asia. 2000. Edição 24.
46
João do Rio – As Religiões no Rio – Editora Nova Águia – Coleção Biblioteca Manancial nº. 47 - 1976
47
FARIAS Juliana Barreto; SOARES, Carlos Eugenio Líbano e GOMES, Flavio dos Santos. No labirinto das
Nações. In africanos e identidade no Rio de Janeiro, século XIX. Arquivo Nacional P.336. Ver também: Edmundo,
Luiz, 1880-1961. O Rio de Janeiro do meu tempo / Luiz Edmundo. -- Brasília : Senado Federal, Conselho
Editorial, 2003. 680 p. – (Edições do Se na do Federal ; v. 1)
48
Códigos penal . Cap III Art 156,157 e 158.
22

pública e livremente seu culto religioso”49, porém na prática isso não era permitido aos
seguidores do candomblé no Rio de Janeiro. No decorrer da Primeira República, as tradições
culturais das classes populares que tinham uma ligação com as tradições africanas como a
capoeira, o samba e os cordões carnavalescos foram mais ou menos reformuladas e, mais tarde,
incorporadas como símbolos da cultura popular brasileira. Porém certos métodos (bebedeira,
matança de animais entre outras ações) presentes nas práticas religiosas de origem africana
continuavam a ser tratadas como reveladoras de sua suposta “barbárie”.. Essa recusa ao
candomblé e uma relativa aceitação da presença da cultura africana nas outras tradições revela
os limites que eram aceitos no período da Primeira Republica.50

Um aspecto relevante sobre os guias espirituais que circulam sobre as sociedades


cariocas é o fato de existirem duas crenças entre os negros africanos que se encontram no Rio
de Janeiro: os orixás e os alufás.51 Em sua maioria eram seguidores do candomblé, os alufás
também se destacam nesse meio social. Os alufás praticam um rito diverso dos “orixás”, porém
mesmo sendo maometanos tem em seus ritos a presença do culto aos voduns. Os alufás são
grandes estudiosos da religião, habilitados a leitura do alcorão. Suas administrações religiosas
e judiciárias ocorrem de acordo com seus princípios religiosos “independente da terra que
vivem”.52 Esses chamam os praticantes do candomblé (ou como o próprio João do Rio cita
“gente de santo”) de “auauadó-chum”. A “gente de santo” chama os alufás de “malês”. Mesmo
com diferenças significativas nas suas tradições, aproximam-se em outras como a língua e
alguns ritos nas suas práticas religiosas, “Mas acham-se todos relacionados pela língua, com
costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da feitiçaria.”53

Qual seria a importância dos espaços de sociabilidade onde ocorriam os candomblés


para as relações intra classes? O que levava pessoas das mais diversas camadas sociais da até

49
Constituição de 1891 Art.72 § 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e
livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito
comum.
50
DANTAS, Carolina Vianna. “A nação, cordões e capoeira nas primeiras décadas do século XX.” ArtCultura.
Uberlandia . p. 95 e 96.
51
REIS, João José. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atântico Negro (c.1822-c. 1853)/ João José
Reis, Flavio dos Santos Gomes, Marcus J. M. de Carvalho. – São Paulo: Companhia das Letras, 2010
52
João do Rio, op, cit, p. 4.
53
Idem; João do Rio também aponta para outros fatores que aproximam os Alufás dos Orixas “Mas o que não
sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de S. Cipriano. Os
maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada
fantástica do S. Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os
negros soletram o S. Cipriano, à luz dos candeeiros...” P.13
23

então capital da República a frequentar os locais onde se encontravam os feiticeiros, correndo


risco de exposição pública, e como agiam os órgãos repressores no combate a essas práticas?
São essas perguntas que tentarei responder no decorrer deste capítulo.

Assim eram vistas as pessoas que pertenciam às “classes perigosas”, que era composta
na sua maioria por negros, ex-escravos, libertos que se encontrava em diversos locais, em
especial nas casas das “Tias” nos morros cariocas ou em alguma casa nas ruas do centro, para
jogarem capoeira, fazerem um samba ou então para tratar da sorte, da saúde, do futuro, nas
rodas de candomblé.

Fosse num quarto pequeno em algum prédio do centro ou na casa da Tia Ciata, lá
estaria um pai ou uma mãe de santo para dar consultas aos necessitados de boa sorte. Porém
esses locais de reza não eram apenas frequentados por negros ou por pessoas das classes
perigosas. Gomes mostra que as casas das tias, os ranchos carnavalescos, eram frequentados
por pessoas pertencentes às mais diversas camadas sociais. João do Rio chama a atenção para
o público frequentador dessas casas que era formado pelos mais diversos tipos de pessoas,
desde as senhoras e cavalheiros da alta sociedade carioca, passando pelos trabalhadores do
armazém, estivadores e prostitutas até os moradores dos morros da providencia e da Saúde,
entre outros.54

Esses espaços proporcionavam não só o encontro entre classes sociais distintas, mas
também a manutenção de tradições dos grupos que pertenciam às classes baixas. Pereira mostra
que as associações (grêmios) eram o ponto de encontro dos trabalhadores da Capital Federal
onde se divertiam e criavam suas redes de socialização.55 Diferente de Pereira, Gomes usa
como objeto de estudo as casas das “Tias”, mostrando que dentro desses locais surgiam pessoas
que, a partir de suas práticas culturais, formulavam resistências políticas e combatiam os
processos modernizadores.56 Ele nos mostra também que dentro desses locais surgiam relações
entre as classes baixas e as classes altas da sociedade, ocorrendo manutenção e transformação
das culturas negras no Rio de Janeiro. Como mostrou Parés para o caso baiano, a formação de

54
Idem –“Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos folhetins de
romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi sessões em que mãos enluvadas
tiravam das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negros malcriados que bradavam”. p.13
55
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A Flor da União: Festa e Identidade nos Clubes Carnavalescos do
Rio de Janeiro (1889-1922)”. TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdadede Letras, Pós-Graduação,
Ano X, nº14, 2006
56
GOMES, Thiago de Mello. “Para Além da Casa da Tia Ciata: outras experiências no universo cultural carioca,
1830 – 1930.” Revista Afro – Ásia, pag. 177. N. DA EDIÇÃO, VOLUME, DATA.
24

instituições sociais, como irmandades, grupos de trabalho ou candomblés permitiu a criação de


espaços de sociabilidade e de identificação étnica Assim no contexto social brasileiro, o
processo de institucionalização do Candomblé e a contribuição dele para a formação de uma
cultura afro-brasileira.57

Ou seja, esmo sendo locais onde se mantinham as tradições africanas, a presença de


pessoas pertencentes a outras classes sociais mais elevadas criavam não só uma relação para
que se mantivessem esses lugares abertos, pois essas pessoas estavam ligadas aos grupos que
exerciam as leis (polícia, políticos, juízes), como permitiam que pessoas que eram das classes
baixas a circularem em locais da alta sociedade carioca. Vejamos esse exemplo : “... Saímos, e
logo na rua encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer um de nós, ternos claros e usa suíças
cortadas rentes. Já o conhecia de nos cafés concorridos, conversando com alguns deputados.” 58

Xico mina era um alufá que usava trajes finos, frequentava lugares concorridos na época
e desfrutava de companhias fortes do cenário político carioca. O contato entre essas pessoas
nos locais de candomblé proporcionava aos pais de santo, aos guias espirituais e aos charlatães
uma possibilidade de ascensão social. Viviam de forma confortável, sob a proteção social de
seus clientes poderosos, e chegavam a deixar algumas fortunas quando morriam. 59 Recebiam
visitas constantes de pessoas importantes da sociedade, que circulavam nos locais de maior
nome na cidade ou até mesmo pessoas que moravam em outros estados e que durante as suas
estadias no Rio de janeiro procuravam os pais de-santo:

“– Pois é, vançuncê qué sabê quem vem aqui toda sexta-feira, por

siná que me paga muito bem? Um moço muito conhecido na cidade,

vançuncê deve de conhecê ele, com cer teza.

– Quem é?

57
PARES, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia/ Luis Nicolau Parés.
– 2ª Ed. Ver. – Campinas, Sp: Editora da UNICAMP, 2007. Cap3 e 4.
58
João do Rio, Op.cit p. 4.
59
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Artes e Oficios de Curar. In Tenebroso Mistério, Juca Rosa e as relações entre
crença e cura no Rio de Janeiro imperial. Cap. 12;FARIAS Juliana Barreto; SOARES, Carlos Eugenio Líbano e
GOMES, Flavio dos Santos. No labirinto das Nações. In africanos e identidade no Rio de Janeiro, século XIX.
Arquivo Nacional P.336 ;João do Rio – As Religiões no Rio – Editora Nova Águia – Coleção Biblioteca
Manancial nº. 47 – 1976.
25

– Seu dotô Murço Teixeira...

A bruxa recebia Múcio Teixeira, conhecido poeta gaúcho, arrastado, no fim da vida, às práticas da
magia.”60

Esses pais ou mães de santo eram responsáveis pelos mais diversos trabalhos. Eram
pedidos a eles trabalhos amorosos, para se alcançar algum cargo político ou no serviço, para o
bem ou o mal de alguém. Eles também exerciam o papel de curandeiros e eram responsáveis
por receitar medicamentos naturais para a cura de doenças variadas e muito comuns no período,
como a sífilis, a febre amarela e a varíola entre outras coisas. Em troca desses trabalhos
ganhavam prestigio, muito dinheiro e notoriedade entre as pessoas importantes da sociedade.61
Alguns enriqueciam e ostentavam o poder que o dinheiro trazia, outros diziam fazer por
caridade e continuavam a atender os clientes em casa simples e modestas, como veremos.
Segue-se um exemplo que foi publicado por Luiz Edmundo em seu livro intitulado “O Rio do
meu tempo” onde ele mostra os personagens que frequentavam esses ambientes. No caso desse
exemplo é de uma casa de ciganas, mas nos propiciar a oportunidade de observar como cada
vez mais a população carioca se encontrava em locais onde se ocorriam os “feitiços” para se
relacionarem, e nos mostra também que a busca na crença oculta era comum na sociedade
carioca desse período. “E acerta. São damas da melhor sociedade, vindas de bairros elegantes como
os de Botafogo e Águas Férreas, que descem das carruagens,como que às escondidas, o rosto coberto
de véus espessos, ou, então, à sombra de leques amplos e emplumados. São esposas enganadas, que
vão em busca do amor que lhes fugiu, mulheres que sofrem o desprezo ou a indiferença dos maridos,
que há mandingas e filtros que a Estefânia conhece e propicia, capazes deprender os homens, de
desmanchar paixões ilícitas, de reacender, nos corpos frios, chamas que parecem extintas; são
mocinhas casadeiras que, tendo recebido promessas de casamento, vêm, ansiosas, saber se os
cavalheiros “casam mesmo”;são “senhoras donas” que sofrem de asma ou padecem do fígado, em
busca do que a Medicina do tempo não lhes dá.62

60
Edmundo, Luiz, 1880-1961. O Rio de Janeiro do meu tempo / Luiz Edmundo. -- Brasília : Senado Federal,
Conselho Editorial, 2003. 680 p. – (Edições do Se na do Federal ; v. 1), p..159.
61
João do Rio - “Os trabalhos são tratados como nos consultórios médicos: a simples consulta de seis a dez mil
réis, a morte de homem segundo a sua importância social e o recebimento da importância por partes. Quando é
doença, paga-se no ato - porque os babaloxás são médicos, e curam com cachaça, urubus, penas de papagaio,
sangue e ervas.”, In João do Rio, op.cit., p.13.

62
EDMUNDO, op, cit, p. 115.
26

Muitos feiticeiros eram vistos como charlatães, sendo acusados de trabalhar com
espíritos apenas para enganar as pessoas em seus momentos de fraqueza, onde o único apoio
que encontram é a religião, nesse caso o candomblé. Nos jornais, eram noticiadas as práticas
do “falso espiritismo”, termo muito utilizado nas fontes analisadas para este trabalho. Uma
reportagem assinada por João do Rio para o jornal Gazeta de Notícias,em 30 de janeiro de
1908, mostra como eram vistas os feiticeiros nesse período:

O Balanço do Milagre – O Falso Spiritismo.

Curandeiros – O Soares da Rua Senador Eusébio – O Ferri das Moças – A Sinhá – Julio Serpa
com 14 mil receitas por ano – Manuel Alves – Juca Pereira – Em Nietheroy: o Garcia, o Cesar, o
Monteiro, o Pedro, o Juca Viana, o José Angra – Juca Breves, a meta da feitiçaria – Médiuns e
feiticeiros.

Quantos curandeiros, quantas arranjadoras de casos ilícitos havia, porém, explorando o


spiritismo? O spiritismo era a grande coberia de um desbriado exercito de malandros de mistura com
a gente séria e honesta. Desde que a policia, pelo seu silencio, se confessava impotente para refrear a
traficância, desde que a mentalidade da população nos dava esse triste espetáculo do seu valor, nós
outros já não sabíamos bem onde o ladrão e onde o pobre de espírito, sempre que encontrávamos o
rotulo << caridade>>. E a caridade é um rotulo encontrado ás parelhas em cada quarteirão de rua,
dando para comprar casas, para desencaminhar meninas, para matar impunemente, para roubar os
idiotas e até mesmo para acobertar as entrevistas amorosas. Assim, quando nos vinham dizer: - Não
deixe de ir ver o capitão Soares, á rua Senador Euzebio 69. Sobrado, consultas das 7 da manhã ás 2
da tarde. – a sensação era a de quem Le um puff de medico charlatão, mas nós íamos, e sahiamos sem
saber bem quanto de verdade e quanto de pantomimice davam o composto do médium. De resto seria
ele extraordinário? Não, não era não havia nenhuma extraordinário! Mas, ao sahir da casa do Soares,
nós íamos á casa do Vicente Ferri, á rua Souza Neves n.46. Esse tem propriamente escriptorio, como
qualquer facultativo, e da consultas apenas duas horas, das 9 ás 11 da amanhã. - Que cura o Ferri?

- O Ferri trata a siphilis e assumptos amorosos, Cousas amorosas, porém, não há para as
tratar como a Sinhá, da rua Senhor Passos n.2 , 1º andar; a Anna, da rua do Rezende n.71, ou a Maria,
uma mulherzinha de cabelos grisalhos, que <pinta o sete>. A sinhá recebe o espirito de Chapot e está
<amarrando> um repórter com uma rapariga. Anna ainda há bem pouco tempo conseguiu separar um
marido da esposa e dos filhos. Pessoal engraçado.

Percebe-se que em 1908 que o trabalho desses feiticeiros para os céticos era visto como
uma forma fácil de enganar as pessoas, onde esses charlatães se escondem atrás da caridade
27

para poder cometer esses crimes. Mostra-se que muitas vezes a polícia que era o principal órgão
repressor dessas práticas, não conseguia ter acesso ou controlar esses “criminosos”. Nota-se
também que durante a reportagem os endereços dos feiticeiros aparecem detalhadamente,
apontando para o nome das ruas, o número das casas, o andar no prédio onde se localizam.
Então a policia sabia onde se encontravam as casas de feitiçaria. Segundo outra reportagem
combativa de A Gazeta de Notícias, esses ambientes de cura eram também um reduto de ladrões
e de contraventores:

15 de Dezembro – quinta- feira 1904

Um <<zunga>>

A policia da 13ª, - representada pelo inspector Solanez, acompanhado de praças, deu


cerco ante-hontem a uma casa da rua Visconde de Figueiredo, junto a um barracão, onde estava há
muito estabelecido como um <<zunga>> (hospedaria suspeita e barata) o crioulo Felicíssimo do
Espírito Santo.

Nessa casa praticava-se a feitiçaria segundo os mais exquisitos processos (vide


Religião no Rio, de João do Rio).

A freguesia era enorme, para obter amores difíceis ou fortuna rápida; mas, além disso,
a casa servia para couto de ladrões e de rameiras baratíssimas, prestando-se também Felicissimo a
comparar objectos roubados.

A auctoridade effectuou a prisão do feiticeiro receptador, de João de tal, o Campos


Salles, ladrão muito conhecido e de três mulheres: e apprehendeu grande quantidade de objectos,
evidentemente producto de roubo, como talheres de prata e de christoffe, roupas de alto preço, caixas
de jóias, etc.

Os feiticeiros tinham um período para poderem praticar a caridade como o capitão


Soares que dava as consultas das 7 da manhã às 2 horas da tarde. Vale notar que eles atendiam
em locais comerciais e cumpriam expedientes. Muitos atendiam nas casas dos clientes63,

63
Ver Joao do Rio “Um babaloxá da costa da Guiné guardou-me dois dias às suas ordens para acompanhá-lo aos
lugares onde havia serviço, e eu o vi entrar misteriosamente em casas de Botafogo e da Tijuca, onde, durante o
inverno, há recepções e conversationes às 5 da tarde como em Paris e nos palácios da Itália. P.13
28

também em suas casas que eram locais simples porém de grande circulação de pessoas, como
veremos na continuação da notícia sobre falso espiritismo:

E nós íamos. Na casa da Maria, a casa é simplesmente hospedeira. As sessões fazem-se na sala
de jantar ás terças e quintas das oito ás dez da noite. Na sala da frente morava a Amélia, uma ladra
entouleuse, amante de um soldado de cavalaria chamado Rodrigues. Tudo isso spiritisava ás terças, a
Amélia antes de ir á procura dos typos fáceis de roubar, o Rodrigues e os outros ocupantes dos quartos
em fileira. Mas se a Maria precisava dos quartos e do aluguel irregular eu encontrava médiuns que
sem espalhafato davam por anno milhares de receitas. Assim um senhor chamado Julio Serpa, á rua
do Chichorro n 84, dando consultas á noite, só nos trezentos e sessenta e cinco dias do anno passado
receitou quatorze mil pessoas.

Esses dados positivos, sem um exagero tinham da maravilha e dos contos fantásticos. Quatorze
mil pessoas só com um spirita da rua do Chichorro! Era pensar no numero de médiuns que por ahi já
se já se encontravam, dar a terça parte dos consultantes ao Sr.Serpa para cada um e ter a certeza de
que toda a cidade, quase toda a população se abebera dessa baixa crendice e prefere as rezas, os
defumadores e as receitas inspiradas ao medico formado. E nem todos desses concorrentes á medicina
são traficantes. Há também os bons e os ingênuos no meio da torpe exploração. Assim fomos encontrar
na sua casa, á rua João Matos n.25, um popular curandeiro spirita, o Manuel Alves. Esse homem já
residiu em Bomsuccesso, e com os seus setenta invernos é procuradíssimo. A scena com elle foi tocante.

- Desejamos uma consulta.

- Qual ! o Sr. Acreditava mesmo nessa cousas?

- Como não acreditar !

- Se acredita, entre.

Entramos. A sala tinha como ornato apenas o retrato de Allan Kardec. Manuel Alves
murmurou a prece, pegou de um lápis e concentrou-se e escreveu: <O irmão presente tem um irmão
que se encosta nele. É preciso pedir a Deus por esse irmão que o deixará em paz e socego. Era simples
e ingênuo. O curandeiro receitou em seguida. Mas eu estava sensibilisado pela sua humildade natural
e pela sua crença. Tentei dar-lhe dinheiro. Manuel Alves afastou a minha mão, tirou da estante um
folheto e leu alto, para que o ouvíssemos...

Nota-se nesse fragmento da fonte analisada aparece um médium que não aceita dinheiro
pelas suas consultas e por isso João do Rio destaca sua forma de vive e como encara o seu
29

“trabalho”. Ele começa descrevendo que no cômodo onde Manuel Alves atende seus clientes
há um retrato de Kardec. Isso nos leva a duas hipóteses: a primeira seria a de que já no inicio
do século XX havia uma presença do kardecismo no candomblé. A segunda é que João do Rio
apresenta uma compaixão maior por esse curandeiro, talvez por influência até mesmo do retrato
de Kardec na parede, pois o espiritismo de Kardec era visto com bons olhos nesse período,
tratado como espiritismo branco, diferente do candomblé, dos calundus, do Tambor de mina e
tantas outras práticas de origem africana no Brasil, que eram vistos como o baixo espiritismo.64
Na maioria das casas de “feitiços” o livro de Kardec aparece como instrumento do rito ali
executado, como nesse exemplo: “Na macumba, instruem-nos os que vão beber a verdade das coisas
na Bíblia de Allan Kardec, só se manifestam espíritos grosseiros que ainda se prendem aos instintos
terrenos da vida e ainda não se libertaram da crosta vil do atrasado Planeta; almas rastejadoras, in
domáveis, violentas. Todo um mundo de sofredores, ralé curtida pela dor, à esperada grande luz de
Deus, que tarda a vir, mas que um dia chegará. O espectador de baixo nível intelectual, entanto, com
esses, comodamente,conversa, discute, fala, pede conselhos...”65

Havia curandeiro que entre suas especialidades está fazer o mal, e que além de ganhar
muito dinheiro tinham o respeito das pessoas, mesmo muitas vezes aparentando agir de má fé
é o caso de Juca Pedreira:

O meu informante divertia-se com a minha perturbação. Da casa do Manuel Alves levou-se a
casa do Juca Pedreira. Juca Pedreira era simplesmente espantoso.

- Eu faço um circulo, disse-me elle, e metto aqui todos os espíritos.

- Palavras?

- E todos os demônios

- Serio?

- E também os anjos, porque cada pessoa tem um anjo da guarda. D’ahi o meu poder do bem
e do mal. Quando quero fazer mal a um typo, prendo-lhe o anjo da guarda e solto os espíritos malignos.

- E os diabos?

64
FARIAS Juliana Barreto; SOARES, Carlos Eugenio Líbano e GOMES, Flavio dos Santos. No labirinto das
Nações. In africanos e identidade no Rio de Janeiro, século XIX. Arquivo Nacional P.282 e283.
65
Edmundo, op, cit, pag139.
30

- Os diabos só para os casos muito graves. Olhe, por exemplo, neste circulo que o senhor está
vendo eu tenho agora dez mil espíritos. Faço delles o que quizer. Até mesmo o espírito de Cezar.

- Qual delles?

- O Cezar de Roma, vem aqui e obedece-me. Que deseja?

- Eu nada. Descreio da vida de além-tumulo e acho o Sr. Juca um grande maluco ou talvez
cousa pior.

Juca nem pestanejou.

- É que o senhor não tem talento sufficiente nem estudo para comprehender o spiritismo. Diga-
me cá: sabe ler?

- Não.

- É por isso! O poeta Bocage, que foi o homem mais inteligente e o mais crédulo que o mundo
já conheceu, acabou por acreditar na vida eterna, e disse:

Rasga os meus versos e crê na eternidade!

Médiuns assim gozavam de enorme prestigio. Muitos conseguiam transitar entre as


zonas de cura da época, pela a cura do homem e a cura dos espíritos, cuidava-se do corpo e da
alma.

E como agia a polícia, que era o principal órgão repressor dessas práticas religiosas? A
polícia enfrentava essas pessoas que eram as grandes responsáveis pelo aumento das casas de
reza e por cada vez mais pessoas procurarem estes locais. Recebiam as denúncias e se dirigiam
aos locais para averiguá-las, se de fato a denuncia se confirmasse, fechavam a casa e o feiticeiro
era detido. Porém, não sabia a polícia onde ficavam essas casas? Sabiam, e por diversos
motivos. Muitos policiais moravam ou trabalhavam perto dessas casas, acreditavam e pediam
serviços aos feiticeiros66, os próprios jornais publicavam em suas páginas os locais das casas
de feitiçaria e o nome dos pais de santo, curandeiros ou charlatães que as comandavam. Muito
dessa “vista grossa” da polícia se dava pelo medo, ou pelo respeito que os próprios policiais
tinham por essas pessoas e pela crença na religião. Poderia ser também pela interferência de
pessoas poderosas e de forte influência que asseguravam que esses guias espirituais se

66
João do Rio afirma que “A policia visita essas casas como consutalnte”. P.13
31

mantivessem longe de qualquer confusão e livre de aborrecimentos. Uma das maneiras de


acabar com essas práticas eram as denúncias feitas pelos vizinhos, das manifestações
acontecidas no local, o que atraía a polícia para que a apreensão dos materiais e do indivíduo
fosse feita. Neste período, havia diversas denúncias e processos contra pais de santo,
curandeiros, feiticeiros ou espíritas que se enquadravam nos artigos expostos antes no código
penal de 1890. 67

Entretanto, no ato do flagrante uma questão chamava a atenção: a polícia esperava a


saída das pessoas, principalmente das madames pertencentes à alta sociedade e os cavalheiros
de boa conduta, para depois darem o flagrante nos feiticeiros. A polícia preserva a integridade
e imagem dessas pessoas e não as expõe. Além do mais era um grande momento para o
delegado que fazia a apreensão, pois naquele momento ele conseguia combater o que alguns
consideravam um dos maiores males da Cidade do Rio de Janeiro, e prender grandes
personagens do “submundo carioca”, o que lhes rendia prestígio.

6 de Dezembro – terça-feira de 1904 –Gazeta de Notícias

Feitiçaria

Estava aberta a sessão.


Manuel Gomes, vulgo Figa Beiçudo phantastico negro, de 56 annos de idade,
natural de Cabo Verde, procedia ás formulas do ritual diante de numerosa formulas do ritual,
diante de numerosa assistência, na casa da rua Venancio Ribeiro n.2
Entre os presentes notava-se senhoras de boa sociedade do Engenho de Dentro
e cavalheiros respeitáveis que ouviam attentos as predicações e sentenças do propheta de
ébano.
A todos os casos, a todas as consultas, a todas as perguntas que ansiosamente
lhe faziam, Gomes respondia soberanamente, com poses magestosas, revolvendo os olhos
kabalisticos, com duas contas brancas na sua fuliginosa caladura.
Positivamente tétrico.
Proseguiam os trabalhos no meio do silencio o mais recolhido e todas se
sentiam empolgados por aquellaathmosphera de fantástico.

67
FARIAS Juliana Barreto; SOARES, Carlos Eugenio Líbano e GOMES, Flavio dos Santos. No labirinto das
Nações. In africanos e identidade no Rio de Janeiro, século XIX. Arquivo Nacional
32

Mas de súbito eram 3 ½ horas da tarde uma nota desagradável veiu


desmanchar toda aquellamise-em scene: chegava o delegado da 20 urbana com todo o seu
sequito, escrivão, inspectores, etc ...
Explicava nesse momento o exímio sacerdote as virtudes admiráveis da previde
da galinha preta nos casos de amor desprezado, como nos das desynterlas remitentes ...
- Está preso! – disse-lhe a auctoridade, interrompempendo-lhe a peroração.
A esse tempo, os cavalheiros e senhoras que assistiam á sessão iam-se
esgueirando, enfiados, e, dentro em pouco , só o feiticeiro estava diante da auctoridade.
O delegado então pediu-lhe que mostrasse os apetrechos de sua profissão, ao
que foi attendido , apprehendeado os seguintes e disparatados animaes e objectos: um bode
preto, duas galinhas também pretas, uma pele de cabra, um rabo de arraia, 113 figas, capazes
de conjurar o azar de todos os habitantes do Rio, vários búzios e cruzes de guiné,
dousmanipanços, dous chifres de carneiro, unhas de cabra e de boi , pipocas, amendoins, etc
... emfim, um capitulo inteiro das Religiões do Rio do nosso companheiro João do Rio.
Como todo o propheta é um incomprehendido e sofre sempre a perseguição
dos Caiphazes do Templo, o delegado lavrou um clamoroso flagrante contra o illustre feiticeiro
do Engenho de Dentro.

É interessante notar como a polícia agia dentro das casas, aprendendo todo o material
místico que era utilizado na realização dos feitiços. A apreensão desse material servia tanto
como prova para comprovar o flagrante como também era uma forma de retardar a realização
de outras seções. Além do mais foi encontrado um capítulo do livro “Religiões do Rio” do
cronista João do Rio, um capitulo inteiro, que não é explicitado na reportagem, mas que nos
faz pensar que provavelmente seja o primeiro capitulo “No mundo dos feitiços”, onde João do
Rio traça um panorama das casas de feitiço e do que acontecia nelas, os cultos, e os pais de
santos que atuavam nelas.

Assim como apontam Farias, Soares e Gomes68, o conhecimento dos pais de santo e a
devoção demonstrada por parte da sociedade carioca evidenciam a sua importância dentro do
contexto social da Primeira República. Tal importância ia contra as práticas medicinais
científicas, vistas com desconfiança pela população.69 As práticas populares de cura
apresentavam muitas vezes a solução para diversas doenças e talvez, esse seria o principal
motivo para a rejeição por parte da população das práticas legais da medicina. Nessa busca pela

68
FARIAS, SOARES, GOMES. op, cit.
69
CABRAL, Oswaldo R. -Medicina, Médicos e Charlatães do Passado.
33

cura, não só da saúde mais da alma, o feitiço vira o protagonista que proporciona o encontro
entre as pessoas de diversas classes sociais.70 Os feitiços eram elos de ligação entre as pessoas
necessitadas e os médiuns, eram a resposta que muita gente busca para as dificuldades que
enfrentavam

70
João do Rio, op, cit, p. 3-21
34

Capítulo 3 - A Revolta da vacina e a mítica de Obaluâie

Com a abolição da escravidão em 1888 e com a Proclamação da República em 1889, o


Rio de Janeiro, que era a Capital Federal, passou por grandes transformações sociais. Alguns
anos após a Proclamação da República, a grande maioria da classe pobre da sociedade se
encontrava alojada em cortiços. Para as autoridades esses cortiços não passavam de um
“refúgio ou esconderijo” de vadios e desordeiros, que não contribuíam para o desenvolvimento
da cidade e além de trazer problemas e ociosidade à cidade.71

Barata Ribeiro então prefeito do Rio de Janeiro, foi responsável pela destruição dos
cortiços, que por sinal era vista com bons olhos. Dentro dessa lógica via-se que a administração
pública poderia ser feita através de critérios técnicos e científicos. Preocupados com as
consequências da abolição, vários políticos pensavam em um projeto de lei para repressão a
ociosidade, pois na visão destes, um bom cidadão tinha como virtude o gosto pelo trabalho,
além da perspectiva de um futuro mais confortável. O surgimento de noções como “classes
perigosas” e de “classes pobres” para apontar a mesma realidade das classes inferiores, está
ligada diretamente aos negros, que nas ações policiais eram sempre os suspeitos preferenciais,
tanto por causa do racismo cientifico como devido à experiência da escravidão. Essa ideia de
periculosidade e de risco que apresentavam, esta presente na imagem que os ex-senhores e
depois da abolição patrões tinhas dos cativos. Os cortiços fizeram parte do cenário de luta dos
negros contra a escravidão, tendo nas décadas de 1850 e 1860 o auge de cortiços criados na
cidade. Segundo Sidney Chalhoub, o tempo dos cortiços foi também o tempo de fortes lutas
dos negros pela liberdade, o que provavelmente pode ter a ver com a atitude do poder público.
Esse aumento da população negra liberta e livre se deu ao grande número de imigrantes
portugueses chegados ao Rio de Janeiro e ao crescimento do numero de alforrias.

Na visão do poder público, os pobres apareciam como sinônimo de doenças


contagiosas. Surgiram diagnósticos que essas habitações eram focos de epidemias, e que os
hábitos de moradia dos pobres eram prejudiciais à sociedade. Existia um órgão imperial que

71
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias nas Corte Imperial. Editora Companhia das
Letras. Pag. 20
35

era responsável pela saúde pública, a Junta Central de Higiene criada em 1850. Para facilitar a
vigilância, os estalajadeiros tinham que controlar a entrada e saída dos hóspedes e a
identificação deles. Eles eram obrigados a cuidar da higiene do local. No entanto, era difícil
pensar nessas moradias segundo os padrões técnicos da higiene. O primeiro momento de
discussão sobre os cortiços dizia respeito às condições higiene, num segundo momento, o
problema deixou de ser a forma, as condições de moradia, para ser o espaço, o local da
habitação.72 Para algumas pessoas era possível imaginar a gestão dos problemas da cidade e
das diferenças sociais a partir de uma forma “cientifica”. Isso significa que, através de uma
ideologia da higiene73, poderiam atingir aos seus objetivos quanto ao desenvolvimento da
Capital Federal, buscando o “caminho da civilização através do aperfeiçoamento moral e
material” e para o crescimento e desenvolvimento da nação, a “solução dos problemas de
higiene pública”.74 Para os higienistas, a sua ciência estava acima dos homens, da moral e da
política. A Inspetoria de Higiene parecia como o quarto poder publico.

Um dos grandes obstáculos encontrados pelas autoridades no processo de


higienização foram os curandeiros, e a partir de meados do século XIX, ocorreram mudanças
na maneira dos higienistas e das autoridades públicas se relacionarem com os curandeiros e
vacinophobos. Para Chalhoub, reordenamentos estruturais ocorridos nas políticas de
dominação do Rio de Janeiro têm relação com o possível desaparecimento da tolerância carioca
com relação às práticas populares sobre doenças e cura. No século XIX, existiam dois modos
de ver as causas e a propagação de doenças. O contágio era entendido por doenças que se
apresentavam ao se comunicar diretamente um indivíduo a outro, através de objetos
contaminados ou pelo ar.

O historiador Oswaldo Cabral75 ressalta que a medicina demorou a desenvolver-se no


Brasil e começou a apresentar certa organização com a chegada da Família Real Portuguesa ao
Brasil. Antes o curandeirismo era abundante no reino, e atingia as mais diversas classes sociais.
A falta de médicos no Brasil no final do século XVIII teria deixado aberto o caminho para os
charlatães e para o curandeirismo. Com os problemas na área médica, muitas pessoas acabavam
entregando sua saúde aos curandeiros que construíam suas famas ao longo do tempo, e que iam
passando durante as gerações. Porém fracassavam em muitos casos, causando grandes danos

72
Idem, p. 29.
73
Idem, p. 29-59.
74
Idem, p. 34.
75
CABRAL, Oswaldo R. -Medicina, Médicos e Charlatães do Passado.
36

aos enfermos, assim como a própria medicina. E contra esses “charlatães” a Câmara Municipal,
que era responsável por fiscalizar as práticas de cura em locais mais afastados dos grandes
centros urbanos, procurava impedir de realizar esses atos. Cabral aponta que é evidente a
preocupação que se tinha com a venda de substâncias venenosas a escravos e a desconhecidos,
pois poderiam receitá-las ou utilizá-las de forma errada. Esse era o temor dos senhores de
escravos, que tinham medo de serem envenenados pelos seus escravos, como mostrou Sidney
Chalhoub em Medo Branco de almas negras76

Revolta da Vacina

Depois de grandes turbulências políticas no governo de Campos Sales, Rodrigues


Alves assume a Presidência em 1902. No seu governo, uma das prioridades era o projeto de
reforma e saneamento do Rio de Janeiro, transformando a cidade em um lugar atraente para
imigrantes e para o capital estrangeiro. Pereira Passos, que havia se tornado prefeito da cidade
ganhou total apoio e autonomia do presidente da república para modelar e fazer do Rio de
Janeiro uma nova Paris. Abriram avenidas, destruíram cortiços e expulsaram milhares de
trabalhadores que ocupavam a região central da cidade. Para melhorar as condições sanitárias,
Oswaldo Cruz assumiu o cargo de diretor-geral de Saúde Pública em 190377.

O Rio de Janeiro enfrentava surtos de febre amarela, peste bubônica e Varíola, e a


nomeação de Oswaldo Cruz não era apenas uma casualidade. Assim a República tinha estas
epidemias como alguns de seus maiores obstáculos na política de higiene pública. Oswaldo

76
CHALHOUB, Sidney. Medo branco de alma negra: escravos libertos e republicanos na cidade do Rio. In:
Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, 1(1). Instituto Carioca de Criminologia. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, pp. 169-189, 1996b.
77
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.;
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de janeiro e a Republica que não foi – São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.; CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias nas Corte Imperial.
Editora Companhia das Letras.1996. ; PEREIRA,Leonardo Affonso de Miranda. Barricadas da Saúde: vacina e
protesto popular no Rio de Janeiro da primeira República – 1ª Ed, - São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2002.
37

Cruz teve plenos poderes para combater as epidemias, o que agradava as autoridades, pois se
aliava ao saber cientifico às forças políticas78.

No combate a peste bubônica e a febre amarela, Cruz obteve enorme sucesso. Iniciou
na capital uma “caça aos ratos” que eram responsáveis pelo contágio da doença, chegando a
remunerar os indivíduos que trouxessem ratos as autoridades para serem exterminados. Criou-
se a brigada de mata-mosquitos que era de fundamental importância no combate e eliminação
da febre amarela. Tinham total poder de invadir as casas das pessoas e higienizar o local
combatendo assim os agentes transmissores das doenças. Tal atuação perante os combates as
epidemias ficaram marcadas pela violência, porém o resultado foi satisfatório e os focos de
doenças caíram consideravelmente, obtendo um grande feito perante os caos da saúde pública.
79

Enquanto conquistara vitórias significativas contra a febre amarela e a peste bubônica,


outra epidemia ganhava as ruas da cidade e preocupava as autoridades, a varíola. Também
conhecida como bexiga, devido às bolhas que se criavam no corpo do individuo infectado, a
varíola em meados de 1904 matava muito mais que as duas outras epidemias juntas e era de
difícil o combate, já que era um vírus que se espalhava pelo ar. Então para as autoridades
sanitárias só existia uma maneira de combate a varíola, que era a vacina obrigatória.

Porém tal ação fugiria do plano higienista e de combate à doença, e tomaria contornos
políticos e sociais. Os jornais aliados ao governo publicavam que a vacina era um bem para a
sociedade e necessária para salvar a vida das pessoas. Já os jornais opositores publicavam
notícias atacando o governo de Rodrigo Alves através da vacina obrigatória, acusando o
governo de fazer do povo cobaia da ciência. O projeto de vacinação obrigatória de Oswaldo
Cruz ganhou contornos dramáticos e polêmicos nas páginas dos jornais e nas ruas da capital.80

Embora a obrigatoriedade da vacina já fosse mandatória no Brasil desde o início do


século XIX, ela esbarrava na resistência de médicos e pacientes que tinham do novo método.
Pereira explica que essa resistência se da pelo apego á técnica de variolização, que era o método
de combate mais difundido no Brasil no século XIX81. Existia uma diferença entre a
variolização e a vacina de Oswaldo Cruz. Enquanto a primeira injetava no indivíduo saudável

78
PEREIRA, op, cit, p.17
79
CARVALHO, op, cit, p. 94 e 95.
80
PEREIRA, op, cit, p. 33 a 56
81
Idem, Pag19; Ver também: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias nas Corte Imperial.
Editora Companhia das Letras.1996.
38

o pus variólico de doentes em fase final de recuperação, assim o organismo do individuo


saudável incubava tal vírus e criava uma resistência à doença, a vacina utilizava substância que
era produzida em laboratório a partir de micróbios extraídos de animais que se apresentavam
infectados com uma doença similar a varíola, e não com o pus variólico como na variolização.82
Tais medidas trouxeram contigo criticas de opositores e de grande parcela da sociedade, onde
se noticiava nos jornais mortes de pessoas que haviam sido vacinadas pelos agentes de saúde.
Associava-se a vacina a morte pelo fato de se injetar um vírus causador de uma doença em
animais nas pessoas.

Havia também pontos em comum entre os defensores da vacina e os opositores.


Concordavam que o trabalhador seria um mero objeto da ação governamental, pois seria
incapaz de buscar soluções próprias ao combate da varíola. O governo julgou necessária a
criação de um projeto de lei que tornasse a vacina de fato obrigatória. Porém o projeto
encontrava no senado seu maior opositor, Lauro Sodré e na Câmara, Barbosa Lima. Dois
militares positivistas e florianistas. Tanto Sodré quanto Barbosa Lima formavam a frente da
luta contra a República dirigida pelo ex-monarquista Rodrigues Alves. Outra frente de disputa
foi à imprensa.83 Os periódicos Correio da Manhã e Commércio do Brazil destacavam-se na
oposição ao governo. Corriam nos jornais abaixo-assinados contra a obrigatoriedade da lei,
além de debates sobre os métodos falhos do governo na projeção da lei. No projeto assinado
por Oswaldo Cruz a vacina poderia ser aplicada por médico particular, porém o atestado teria
que ser reconhecido em cartório. As outras pessoas que não tinham essa opção estavam sujeitas
a passar pelos métodos combate das autoridades sanitárias. Era necessário ter o atestado de
vacinação para tudo, para matrículas em escola, empregos públicos, empregos em fábricas,
voto e até casamento84.

Do dia 10 ao dia 14 de novembro, as ruas da capital foram tomadas por conflitos entre
a polícia e manifestantes contra a vacinação obrigatória. Houve centenas de mortos, feridos e
presos. Já no dia 14, no meio de tal agitação que vivia a cidade, os jornais já noticiavam os
levantes da Escola Militar da Praia Vermelha. Sabendo do levante, o governo enviou tropas do
Exército e da Marinha para enfrentar os revoltosos. O Levante foi cessado com perdas humanas
para os dois lados e a fuga de Lauro Sodré e com o general Travassos (um dos lideres do
levante) ferido. No dia 15 o que seria um dia de festa, pois se completava 15 anos da

82
CHALHOUB, op, cit, p.102-114
83
CARVALHO, op, cit,p.126-39.
84
Idem, p. 99.
39

proclamação da República, as festividades foram suspensas na capital e os confrontos entre as


forças oficiais e os revoltosos se arrastaram pela cidade, principalmente no morro da Saúde.
Tropas de São Paulo e Minas chegaram para ajudar a combater os revoltosos. No dia 16
decretou-se estado de sitio85. A situação continuava crítica e cada vez mais preocupante. Os
revoltosos se organizavam em barricadas onde empilhavam tudo o que era possível, e usavam
como arma facas, navalhas, algumas armas de fogo, pedras e até um poste que de longe passava
a imagem de um canhão. Entre seus líderes se encontrava Prata Preta, que era um dos principais
lideres do Porto Arthur. A situação começou a melhorar com a chegada da marinha e a tomada
das primeiras barricadas e os últimos símbolos da resistência começavam a cair. No dia 18, a
cidade já amanhecerá mais tranquila e com o passar das horas ia voltando ao normal.

Nas mandingas que a gente não vê


Mil coisas que a gente não crê
Valei-me, meu pai, atotô, Obaluaê.86

Motivos e Cidadania

Qual seria a motivação dos revoltosos á ação? De acordo com Carvalho é através
dessa busca por saber a motivação dos populares a revolução, “podemos também penetrar no
universo de valores de boa parte da população do Rio, em sua visão do papel do governo e dos
direitos do cidadão” 87
. O objetivo que os opositores tinham no começo da revolta, não era

85
Idem, p.109.
86
Trecho da musica “Minha fé” (compositor: Murilão, interprete: Zeca pagodinho, 1998) .
http://www.zecapagodinho.com.br/faixa/minha-fe-1
87
CARVALHO, op.cit., p. 126.
40

necessariamente suficiente para arrastar a massa popular à rua pois, segundo Carvalho, as
preocupações políticas do Rio não faziam parte das preocupações populares.

Os pesquisadores atribuíram diversas hipóteses como principal motivação que levava


a população a revolta, como aponta Nicolau Sevcenko. . Uma delas era a reforma urbana.
Consideramos, porém as reformas urbanas não foram o verdadeiro alvo da ira popular, pois
Pereira Passos e Paulo de Frontin, principais figuras nas ações de reforma urbana da cidade
também não foram alvos dos revoltosos.88 A Saúde e Sacramento, locais de forte resistência
durante a revolta também não foram alvos de reformas urbanas. 89 Assim, evidencia-se que o
grande motivo da revolta foi à obrigatoriedade da vacina. Eram muitos os abaixo-assinados
contra a obrigatoriedade da vacina e reclamações sobre os métodos utilizados pelos agentes da
saúde pública, queixas sobre invasão das casas e o modo como agiam. Para Sevcenko, a Revolta
teria sido o estopim de um conjunto de fatos políticos que culminaram na hegemonia paulista
no poder

Para Carvalho a oposição à vacina perpassava todas as camadas da sociedade carioca,


por diversos motivos. A oposição teria adquirido aos poucos um caráter moralista, como o
discurso de Vicente de Souza no dia 5 de novembro citado por Carvalho, no qual buscava
explorar a ideia de invasão e a ofensa a honra do chefe de família90. Essa ofensa à honra se
dava pelo fato de mulheres e filhas se desnudarem perante os agentes sanitários. A vacina era
aplicada no braço, e Barbosa Lima começou a cogitar a possibilidade de a vacina ser aplicada
na coxa, escalda erótico-anatômica91. Segundo Carvalho, esse discurso moralista teria chegado
de forma avassaladora à camada analfabeta da população, fazendo com que o número de
vacinações diminuísse de forma brusca. Para o autor, revoltas anteriores haviam ocorrido por
razões econômicas como aumento de preços, impostos e baixos salários entre outras coisas, a
revolta da vacina fundamentara-se em razões ideológicas e morais92. Essa lógica baseava-se
tanto em valores modernos como tradicionais: para a elite os valores eram os princípios liberais
da liberdade individual e de um governo não-intervencionalista e para o povo, a inviolabilidade
do lar e o respeito pela virtude da mulher, a honra do chefe de família eram os valores
ameaçados pelo estado. O governo já se ocupava de grande parte da vida das pessoas,
interferindo direta e indiretamente em muitas ações e ao violar esses valores, ocuparia o pouco

88
Idem, p.126-139.
89
Idem, p.130.
90
Idem, p. 131.
91
Idem, p. 131.
92
Idem, p. 135.
41

que ainda lhes pertencia. Assim, a República estaria violando um direito que o próprio sistema
republicano deveria resguardar93.

Leonardo Pereira, assim como Chalhoub, apresenta uma leitura diferente para o que
havia motivado o povo na revolta. Para ele, a intensidade e a amplitude dos protestos, mostram
que havia uma insatisfação que ia além do que se apresentava. Não foi um protesto sem causa,
mas uma luta contra um governo que desrespeitava cotidianamente seus direitos e tradições94.
Assim como Carvalho, ele aponta que a polícia foi um dos principais alvos dos manifestantes,
pois a policia fazia parte do cotidiano dessas pessoas, as repreendendo das mais diversas formas
e interferindo nos seus costumes. Mas o povo não atacaria a policia apenas pela obrigatoriedade
da vacina, mas por algo mais reservado, por outro motivo que seria a repressão as suas
tradições.

Que tradições seriam essas violadas? Em Porto Artur que era um dos símbolos
máximos da revolta encontravam-se nas proximidades das barricadas bandeiras brancas. Em
outros pontos de resistência também se encontrava bandeiras vermelhas. Para Pereira essas
bandeiras simbolizam algo além de uma consciência política socialista ou de classe
trabalhadora. Branco e Vermelho eram as cores de Obaluaiê, que é o Orixá da Varíola.95

Na proposta apresentada por Oswaldo Cruz, estava a condenação dos trabalhos


feitos pelos curandeiros (artigo 156). Assim como já dito, a medicina no Brasil apresentava
muitas falhas. Ao mesmo tempo em que houve um o aumento e a melhora do ensino da
medicina no país, médicos formados nas escolas do Rio e da Bahia, espalharam-se pelo país,
houver um processo de criminalização e perseguição dos curandeiros e suas práticas, tão
disseminadas entre a população. . Entretanto, Entretanto, segundo Cabral, ao passo que os
profissionais da medicina conseguiram regularizar a profissão, os curandeiros se mantinham
também pelo espírito fraterno e o sentimento de ajudar o próximo necessitado. Nas cidades do
interior, muitas vezes o homem mais capaz de ajudar as pessoas era o padre. Assim ele se
tornava um amigo da cura, era o mais capaz e mais instruído a tomar decisões nos casos de
enfermidades, e na aplicação de remédios e curativos. Nem sempre os males das pessoas eram
causados por doenças. Muitas vezes eram coisas feitas por “macumbeiros” do mais alto
escalão, e para desfazer esses trabalhos eram chamadas as benzedeiras. Como o curandeirismo

93
Idem, p. 137.
94
PEREIRA, op, cit, p. 95.
95
Idem, pp. 99 e 100.
42

marcou bastante o século XIX e inicio do século XX. As autoridades e os médicos lutavam de
todas as formas contra essas pessoas, e pregavam a todos as suas sabedorias e legitimidades na
96
arte de curar.

Assim, está claro que ocorreram mudanças na metade do século XIX na maneira dos
higienistas e das autoridades públicas se relacionarem com os curandeiros e vacinophobos.
Reordenamentos estruturais ocorridos nas políticas de dominação do Rio de Janeiro tem
relação com o possível desaparecimento da tolerância carioca com relação às práticas populares
sobre doenças e cura. No século XIX, existiam dois modos de ver as causas e a propagação de
doenças. O contágio era entendido por doenças que se apresentavam ao se comunicar
diretamente um indivíduo a outro, através de objetos contaminados ou pelo ar. A principal
revolta contra o “despotismo sanitário” ocorreu em função da varíola. Isso se deu devido à
burocracia do serviço de vacinação, além das solidas raízes culturais negras da tradição
vacinophobica. Os anos após a lei do ventre livre foram decisivos para a atuação do poder
público em relação às tradições dos trabalhadores. A partir da década de 1880, período em que
se consolidou o regime republicano, surgiu uma visão de que o regime monárquico havia sido
pouco propenso à combater as tradições populares. A ideia de ciência de higienização surgiu
junto da ideia de período imperial como momento tolerante às manifestações populares. Para
os republicanos e higienistas, essa tolerância representativa fraqueza. Cabral aponta para a ideia
de que médicos e higienistas lutam contra a suposta ignorância daqueles que confiavam nos
“curandeiros”. Chalhoub vai ao sentido de encontrar os significados das práticas e costumes
dos africanos e seus descendentes no Brasil, para isso voltando até a África, para compreender
sua própria lógica, numa crítica contundente ao argumento de Carvalho.

O projeto criado por Oswaldo Cruz desprezava os princípios religiosos africanos, o


que causava recusa por parte dos seus praticantes. Muitos seguidores do candomblé chegaram
a participar dos conflitos. Participar da revolta não significava apenas lutar contra a
obrigatoriedade, mas também defender suas crenças e religiosidade97. O candomblé se
encontrava mais presente nas regiões da Saúde e Gamboa , onde havia constante chegada de
negros da África e da Bahia e ali se estabeleciam. Mesmo encontrando nelas um número
considerável de imigrantes ou brancos pobres, tais práticas religiosas eram dominantes nestas

96
CABRAL, op, cit.

97
Idem, p.101.
43

regiões. Nem todos os moradores eram praticantes dos cultos aos Orixás, porém as presenças
desses cultos faziam destes locais lugares de resistência à vacina. Além do mais, em um
momento em que a própria ciência apresentava certas dúvidas sobre a legitimação da vacina, é
aceitável que buscassem em suas crenças, tradições e métodos formas para combater a
epidemia.

Não é somente o conteúdo moral suficiente para se compreender nesse caso. Essa
questão moral seria muito mais que apenas um ataque ao corpo, mas também ao direito de
continuar a exercer suas crenças religiosas98. Assim, consideramos que, para muito além de
combater o ataque ao corpo de mulheres e filhas, combatia-se a lei que inviabilizava o culto
religioso negro, pelo qual já se vinha há décadas batalhando, desde o tempo da escravidão. Era
a busca pela garantia da livre manifestação de culto99.

98
Idem, p. 103.
99
Idem, p. 103.
44

Conclusão

A presença de forças míticas está presente na história de diversas civilizações. A busca


pela cura que não fosse a ciência não é exclusividade das sociedades africanas. 100 Porém no
continente africano, essas práticas curandeiras associadas ao culto de espíritos, os voduns,
apresentam uma força enorme e se mantém vivas até nas sociedades que praticam outras
práticas religiosas (ex: islamismo).

O culto aos voduns sobreviveu a diversas transformações sociais e espaciais, e assim


foi ganhando mais elementos devido às relações e ao processo de transformação cultural dos
grupos étnicos africanos. Força suficiente teve para sobreviver e atravessar o oceano Atlântico
e se manter vivo nos percalços e dificuldades que as tradições africanas enfrentaram no Novo
Mundo, constantemente transformando-se e ressignificando-se.

O candomblé, assim como outros cultos afro-religiosos como o tambor-de-mina e o


Xangô, se apresentam como elementos fundamentais na manutenção da cultura africana no
Brasil. Assim como a Bahia, o Rio de Janeiro virou um local de forte resistência das práticas
religiosas africanas e se expandiu a partir de outros elementos do cotidiano carioca, como a
alimentação, a capoeira, o samba e o carnaval, vistos pela sociedade com bons olhos diferentes
do candomblé.

Procuramos aqui argumentar que, apesar da constante perseguição dos poderes


públicos, foi justamente o encontro entre pessoas dos mais diferentes níveis sociais permitiu
que houvesse uma manutenção de tais práticas e que se mantivessem ao longo do tempo. Em
um primeiro momento causa um estranhamento pessoas pertencentes à elite carioca
frequentarem lugares que eram redutos de pessoas tidas como “não civilizadas” e, mas ainda
por serem frequentadores e praticantes dos “fetiches” africanistas tão enfrentados e perseguidos
durante o período imperial e o republicano. Mas podemos perceber que mesmo não sendo
legalmente permitidas e até mesmo reconhecidas pela sociedade como uma contribuição dos
negros africanos para a cultura brasileira naquele período, as práticas religiosas africanas não
deixaram nunca de ser pilar fundamental no cotidiano carioca e passaram a ser uma necessidade
de grande parte dessa sociedade que a procurava por diversos motivos. Junto com outros
elementos passou a ser uma das ferramentas utilizadas pelos negros na luta pelos seus direitos

100
BLOCH, March. Os reis taumaturgos. São Paulo : Companhia das Letras, 1998.
45

a cidadania, permitindo que essas pessoas, que em um primeiro instante se mostravam tão
diferentes e distantes umas das outras, pudessem se relacionar e formar grupos em torno de
identidades comuns. Outros, embora tivessem origem social diferente, cruzavam seus
caminhos através daquelas crenças.
46

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