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UNASP – FACULDADE DE

DIREITO
DISCIPLINA DE FILOSOFIA DO
DIREITO – 2011

FILOSOFIA DO
DIREITO
Prof. Dr. ROMANELLO
Introdução...........................................................................................
..................................
2
I. O surgimento da
Filosofia...........................................................................................
5
II. A justiça na concepção de Platão (428 – 347
a.C.).................................................... 26
III. A justiça na concepção de Aristóteles (384-322
a.C.)................................................ 35
IV. A Filosofia no período medieval: Agostinho e Tomás de
Aquino............................... 45
V. O
Jusnaturalismo..................................................................................
...................... 59
VI. A filosofia prática de Immanuel Kant (1724-
1804)...................................................... 76
VII. O positivismo
jurídico................................................................................................
.. 90
IX. O pensamento de Hans Kelsen (1881-
1973)............................................................. 100
X. A teoria tridimensional do direito: Miguel Reale (1910
-)............................................106
Referências
Bibliográficas...................................................................................
............... 110
Introduç
ão

1 - Considerações sobre a importância da Filosofia


para o curso de Direito

“Filosofia
do Direito

esclareça-se
desde logo,
não é
disciplina
jurídica,
mas é a
própria
Filosofia
enquanto
voltada para
uma ordem
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9
)

Inúmeras vezes percebemos


que a falta de interesse pela leitura
contribui também para certo
desinteresse pelo estudo de
Filosofia. Muitos alunos indagam:
por que estudar Filosofia? Qual a
utilidade da Filosofia para o saber
jurídico? Nem sempre as respostas
que formulamos são convincentes
para esclarecer sobre a importância
desse saber. A grande maioria dos
alunos não tem contato com a
Filosofia durante o ensino
fundamental ou médio, o que torna
nossa tarefa ainda mais árdua.
Poucos se interessam por essa
disciplina, geralmente ministrada em
apenas um semestre nos primeiros
períodos da faculdade. Todavia
muitos profissionais do Direito
descobrem a Filosofia em meio aos
seus estudos de pós-graduação e
experimentam certa ansiedade em
tentar suprir essa falta em sua
formação intelectual.
Nesse sentido, estudar Filosofia significa
estudar os fundamentos da nossa própria
cultura. Nos
dizeres de Werner Jaeger, “A Grécia representa, em
face dos grandes povos do Oriente, um progresso
fundamental, um novo estádio em
tudo o que se refere à vida dos
homens na comunidade. Esta se
fundamenta em princípios
completamente novos. Por mais
elevadas que julguemos as
realizações
artísticas, religiosas e políticas dos povos
anteriores, a história daquilo a que podemos com
plena
consciência chamar cultura só começa com os
gregos”.1
É preciso ressaltar que a Filosofia oferece
uma abordagem singular para tratar dos
problemas
fundamentais da esfera jurídica que focalizam
em particular a eterna “insociável– sociabilidade
humana”. Ademais, insisto em apontar que a
história do pensamento filosófico, que se inicia
com o
povo grego em torno do séc. VII a.C. constitui as
bases de nossa própria cultura, ou seja, configura o
nosso ponto de partida, o início do pensamento
racional.
Assim, ao lermos um texto
filosófico colocamos em ação todo o
nosso sistema de valores, crenças e
atitudes que refletem o grupo social
em que se deu nossa socialização
primária, isto é, o grupo social em
que fomos criados. Podemos então
investigar como esse sistema de
valores interfere em nossa visão de
mundo.

1 Jaeger,
Werner W. Paidéia: a formação do homem grego . São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 4. [grifo nosso]

2
A Filosofia ensina a pensar.
Ensina a formular perguntas.
Ingressar nos estudos filosóficos
significa fundamentalmente assumir a
árdua tarefa do autoconhecimento que
implica transformar o seu próprio
olhar, muitas vezes desatento, em um
olhar cuidadoso diante das obviedades.
Significa abolir a pressa e o
imediatismo. A Filosofia significa a
formação de uma atitude - uma
atitude diante da vida. Como disse
Kant em suas lições de Lógica,
filosofar é algo que só se pode
aprender pelo exercício, pelo uso
próprio e autônomo da razão. Um
exercício sem medo.
Estudar Filosofia significa estabelecer um
diálogo com homens de notório saber, que
viveram
em outras épocas. É bom conhecê-los e
compreender seus costumes, pois assim podemos
avaliar
mais lucidamente os nossos. 2 Não posso deixar de
mencionar as célebres palavras de Descartes na
obra Discurso do Método:

“a leitura de todos os
bons livros é qual uma
conversação com as
pessoas mais
qualificadas dos
séculos passados, que
foram seus autores, e
até uma conversação
premeditada, na qual
eles nos revelam tão-
somente os melhores
de seus pensamentos.
(...) É bom saber algo
dos costumes de
diversos povos, a fim
de que julguemos os
nossos mais sãmente e
não pensemos que tudo
quanto é contra os
nossos modos é ridículo
e contrário à razão,
como soem proceder
aos que nada viram”.

Mas gostaria de esclarecer


preliminarmente que o estudo
tem objetivo modesto.
Intencionalmente se cuidou de
apresentar um estudo propedêutico
que pudesse oferecer uma exposição
clara e indispensável, capaz de
configurar um apoio útil para
posteriores estudos de Filosofia do
Direito.
Estudaremos em cada época
autores e doutrinas que julgamos
essenciais para o estudo jurídico.
Procurou-se, ao expor, dar certa
objetividade que não comprometa a
verdadeira complexidade da matéria.
O ponto de partida está na noção
geral da Filosofia como um saber
teórico e universal que fundamenta
toda a cultura ocidental - nossa
herança grega. Assim, desvelou-se
imperativo observar os diferentes
problemas que a nossa cultura
formulou ao longo dos tempos com
suas respostas e terminologias acerca
do que consideravam relevantes.
Importa ressaltar que a história apresentada
focaliza um dos ramos da Filosofia, em
particular,
aquela que estuda a idéia de
justiça. O estudo foi
essencialmente motivado pelo
desejo de compreender melhor a
relação direito-sociedade a partir do
devir histórico.
Assim, as informações
apresentadas fundamentam-se em
textos clássicos e comentadores
consagrados pela tradição filosófica.
Acredito não ter incorrido em erro
grave, buscando não esquecer que os
filósofos foram/são homens e que,
portanto estavam/estão sujeitos às
influências de sua origem, educação
e época histórica. Não podemos
esquecer que todo pensador está
fadado a ser de seu século a seu
contentamento ou pesar. Assim,
procura-se mostrar que os problemas
filosófico-
jurídicos são tão antigos quanto as inquietações
conscientes dos homens sobre o problema da

2 DESCARTES, R. Discurso do Método. In: Col. Os Pensadores.


São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.39.
3
convivência humana e se desvelam nas
concepções fundamentais acerca do Direito e do
próprio
Estado, a partir das realidades que serviam como
pano de fundo.
Historicamente, podemos
afirmar que uma Filosofia do Direito
se inicia com os tratados sobre
sociedade política: seja uma pólis,
uma res publica, civitas ou um
Estado. Tratados que versam sobre
leis, justiça, direito natural e que
assinalam o caminho do pensamento
filosófico. Muitas vezes este
estudo assume nomenclaturas diferenciadas como,
por exemplo, juris naturalis scientia ou Naturrecht
als Philosophie des positiven rechts .3
A abordagem filosófica nos permite então
vislumbrar que a transformação das
sociedades não
implica a superação pura e simples
do passado, mas antes ressalta que
esse passado existe e persiste no
presente, condicionando o focar
dos problemas, apresentando certas
tendências, validando algumas
soluções, revelando a lógica imanente
de certos pontos de vista ou atitudes
intelectuais.
Algumas vezes apontando
caminhos que não se devem mais
seguir. Não podemos negar a
importância da Filosofia, porque a
própria tentativa de impugná-la
significa a essência do filosofar.
Enfim, o Direito, pertencendo à
história humana, participa do seu
desenrolar gradual e do seu
reencontro consigo mesmo. O que
importa nesse caminhar é a
indispensável tarefa crítica que a
Filosofia nos oferece, sem a qual
cairíamos inevitavelmente num
dogmatismo feroz ou num ceticismo
tedioso.
2 - Metodologia adotada para a disciplina
O aprimoramento contínuo oferecido
pela Filosofia é importante ferramenta
para o
desenvolvimento das habilidades necessárias ao
advogado. Nesse sentido, torna-se fundamental a
leitura prévia dos pontos a serem tratados em cada
aula. Recomenda-se que o aluno procure elaborar
um pequeno resumo dos pontos
mais relevantes, buscando não copiar
o texto, mas elaborar o seu próprio
texto sobre o que foi lido. Cada um
deve procurar sua interpretação.
Nosso objetivo é ampliar a
conscientização sobre o assunto e
fornecer as condições de
possibilidade para uma reflexão
filosófica sobre o direito. Por isso,
indicamos outras leituras
interessantes e vídeos para que o
estudante possa ampliar seus
conhecimentos.
3Direito natural como filosofia do Direito positivo (Naturrecht
als Philosophie des positiven rechts – 1797) de Gustav Hugo,
Fundamentação do Direito Natural ou elementos Filosóficos do
ideal do Direito (Grunlage des Naturrechts oder philosophie
Grundriss des Ideals des rechts – 1803) e Bosquejo do
Sistema de Filosofia do Direito (Abriss des Systems der
rechtsphilosophie – 1828) de Karl Christian Friedrich Krause;
Elementos de Direito natural e de Ciência Política (Grundlinien
der Philosophie des Rrechts oder Naturrecht und
Staatswissenschaft im Grundrisse – 1821) de Hegel.
4
Parte I – O
surgimento da
Filosofia

1 - O conceito de Filosofia
Observando a advertência de Marilena
Chauí, na obra Convite à Filosofia, a
Filosofia não se
confunde com Ciência, mas pode ser entendida
como reflexão crítica sobre os procedimentos e
conceitos científicos, pois se trata de
um saber que é cronologicamente
anterior ao surgimento da própria
ciência; não é tampouco Religião,
antes, porém reflexão crítica sobre as
origens e formas das
crenças religiosas; não se reduz à Arte, mas se vê
diante de uma reflexão crítica sobre os conteúdos,
formas, significações da obra de arte e do
trabalho artístico; também não pode ser
considerada
Sociologia ou Psicologia, mas reflexão crítica sobre
os fundamentos dessas ciências humanas de suma
importância; a Filosofia não se limita à esfera
Política, mas se configura como possível
interpretação,
compreensão e reflexão sobre a
origem, a natureza e as formas do
poder; por fim, Filosofia não é
História, e sim interpretação do
sentido dos acontecimentos enquanto
inseridos no tempo e no espaço e a
compreensão do que seja o próprio
tempo. A Filosofia está na história,
pois é produto cultural do homem;
um saber do homem situado. A
Filosofia busca desvelar as
interpretações e limites de cada
época.
Podemos então definir
Filosofia como a fundamentação
teórica e crítica dos conhecimentos e
práticas. Trata-se de um saber que
se preocupa com as origens, causas,
forma e o conteúdo dos valores
éticos, políticos, artísticos e culturais.
O seu olhar observa com cuidado as
transformações históricas, a
consciência em suas várias
modalidades: imaginação, percepção,
memória, linguagem, inteligência,
experiência, reflexão, comportamento,
vontade, desejo, paixões; busca
compreender as idéias ou significados
gerais: realidade, mundo, natureza,
cultura, história, subjetividade,
objetividade, diferença, repetição,
semelhança, conflito, contradição e
mudança.
O olhar filosófico se afasta das crenças,
sentimentos, prejuízos, preconceitos; toma
distância
para interrogar e não aceitar as coisas
passivamente. A Filosofia diz “não” ao senso
comum, para
indagar “o que é”, “como é” e “por que é” –
momentos que constituem o pensamento crítico. O
seu
conhecimento se realiza por reflexão que se
configura no momento em que o pensamento
volta-se
para si mesmo a fim de indagar como é possível
o próprio pensamento. Sua reflexão é radical,
porquanto investiga a raiz, a origem de tudo o que
existe. A Filosofia é um pensamento sistemático, o
que significa dizer que não é mera
opinião. Na verdade a Filosofia
segue uma lógica de enunciados
precisos e rigorosos, opera com
conceitos ou idéias obtidos por
procedimentos de demonstração e
prova. Assim, a Filosofia enquanto
saber exige fundamentação racional
do que é enunciado e pensado e deve
formar um conjunto coerente de idéias
racionalmente demonstráveis.

5
O valor da Filosofia encontra-se, portanto,
na fundamentação ou justificação do
trabalho
científico ao indagar “o que é o homem?”, “o
que é vontade?”, “o que é a razão?”, “como nos
tornamos livres?”, “o que é um valor?”. Podemos
estudar a Filosofia sob o aspecto temático ou
podemos compreendê-la a partir de seu devir
histórico, ou seja, a história da Filosofia a partir
de
períodos que exprimem e manifestam os
problemas e as questões que, em cada época, os
homens
colocaram para si mesmos e para o
mundo. Será possível perceber que as
transformações no modo de conhecer
ampliaram os campos de
investigação do filósofo. Os
períodos foram classificados pela
tradição da seguinte forma:
Antigüidade Clássica ou Filosofia
Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia
Moderna e Filosofia Contemporânea.

2 - Origem e Surgimento da Filosofia na Grécia


Antiga
Como nos lembra o saudoso professor
José Américo M. Pessanha, buscar as
razões que
conduziram o homem grego a fazer filosofia
permanece ainda como um problema aberto. O que
teria
fundamentado esse novo saber? Por que na Grécia
em torno do séc. VII ou VI a.C. surgiu uma nova
mentalidade diante do real? Quais os
fatores que se entrecruzaram e
propiciaram esse fenômeno em uma
cultura tão antiga? Sabe-se que na
Grécia do séc. VI a C., Pitágoras de
Samos denominou-se
“Filo-sophos” (amante do saber) e não de “
sophos” (sábio).4 O que a tradição afirma é que a
Filosofia
foi um fenômeno específico do povo
grego e teve continuidade com os
povos dominados por ele. A
Filosofia começa quando algo
desperta a nossa admiração, espanta-
nos e exige uma explicação sobre a
origem do mundo, dos povos e dos
fenômenos da natureza sem recorrer
aos mitos.
A palavra mito do grego mythos deriva de
dois verbos, a saber: mytheyo que significa
contar,
narrar, falar alguma coisa para outros e do verbo
mytheo que significa conversar, contar, anunciar,
nomear, designar. Para o pensamento
grego, mito significa um discurso ou
narrativa que é considerada
verdadeira para seus ouvintes; há
uma relação de confiabilidade que
repousa sobre a pessoa do narrador,
ou melhor, uma crença na autoridade
do narrador. O narrador é chamado
de poeta-rapsodo. Os gregos
acreditavam que ele fora escolhido
pelos deuses e que se tornara o
transmissor de suas
mensagens. A palavra proferida pelo poeta-rapsodo,
o mito, ganhava uma aura de divindade, portanto
inquestionável e incontestável.
Nesse sentido, a narrativa sobre a origem do
mundo é denominada como uma genealogia
que
pode ser cosmologia ou teogonia. Será cosmologia
quando trata do nascimento e da organização do
mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do
substantivo genos assumindo, portanto, a idéia de
geração, nascimento a partir da concepção sexual
e do parto. Cosmo quer dizer mundo ordenado,
organizado. Teogonia é composta de gonia e
theos que significa em grego: seres divinos,
coisas

4A palavra Filosofia formou-se da junção de


“Filos-filia” (amigo) com “sophia”(sabedoria,
saber), opondo-se ao termo grego
“polimathéia” que significa saber comum,
desconexo, fragmentado, ao nível do senso
comum.
6
divinas, deuses. Será teogonia quando a narrativa
tratar da origem dos deuses. A Filosofia é vista
como uma cosmologia, ou seja, uma
explicação racional sobre a origem
do mundo e sobre as causas das
transformações das coisas. Nesse
sentido, as narrativas míticas
foram reformuladas ou
transformadas numa explicação que
não admite fabulações, contradições,
mas sim um raciocínio lógico,
racional e coerente. A autoridade
dessa nova explicação não decorre
de uma pessoa física, como no caso
dos poetas-rapsodos, mas decorre do
poder da razão. O seu surgimento
marca uma indagação que não aceita
respostas mitológicas ou mágicas,
respostas fazedoras de mitos.
Não podemos negar que a mitologia grega
está intrinsecamente ligada à história da
civilização
grega, por isso o relato mítico não resulta
necessariamente da invenção individual, mas da
transmissão
de uma cultura por várias gerações e da memória
de um povo, o que ressalta a sua dignidade e
importância. Essa mitologia e seus
mitos sobrevivem enquanto se
mantiveram vivos na vida cotidiana.
Memória, oralidade e tradição são os
componentes indispensáveis à sua
sobrevivência. A explicação
filosófica, que é apenas uma
explicação de homens que
buscavam saber, se desenvolveu
paulatinamente e permaneceu por
muito tempo concomitante às
explicações mitológicas que
povoavam o imaginário do mundo
antigo.
A Filosofia é, portanto, um
fenômeno cultural grego. Surgiu no
momento de estabilização da
sociedade grega, com o
desenvolvimento da atividade
comercial, com a consolidação das
cidades- estados (pólis); um
progressivo enriquecimento do
comércio e invenção da moeda;
expansão marítima
que propiciou o surgimento de uma classe mercantil
politicamente forte; a invenção do calendário; a
própria invenção da política e da ética.
Não há consenso sobre a origem da
Filosofia na Grécia antiga, porque muitos
estudiosos
entendem que os povos do oriente já
sistematizavam doutrinas filosóficas antes dos
filósofos gregos.
Todavia o que se observa freqüentemente é que
não se configurou nesses povos o que ocorreu na
Grécia: o processo de laicização do saber.

3 - A pólis grega e a consciência jurídica


Antes do advento da Pólis, a
Grécia já apresentava uma vida
social intensa. Um dos poetas mais
importantes, Homero, autor dos
famosos poemas que narram as
guerras troianas (1260 a 1250 a.C.),
as aventuras de Aquiles e Ulisses
(nome grego, Odisseu), nos desvela
em suas narrativas o
entrecruzamento de história, ficção,
lenda, mitos e deuses, que segundo
pesquisadores exprimem
traços da cultura dórica. Os dórios oriundos do
norte, séculos após as guerras troianas, construíram
uma sociedade marcadamente
aristocrática que paulatinamente se
transformou no que denominamos
civilização grega.

7
Este poeta foi considerado o pai da cultura
grega por ter sido a sua obra fundamental
para a
manutenção das tradições. Além de Homero, o
pensamento de Hesíodo foi igualmente importante,
porquanto marca uma nova fase da cultura grega.
Em sua obra denominada Teogonia descreve a
criação do mundo, dos deuses e a organização do
Olimpo. Em Os trabalhos e Os Dias narra o mito
das
cinco idades da humanidade.
Por ocasião do séc. VIII
a.C., com a invenção da moeda
cunhada, a região vivenciou um
renascimento das relações
comerciais que resultou na ruína
das antigas linhagens tribais e no
surgimento de pequenas cidades de
agricultores e artesãos. Lentamente
se formou uma nova organização
social e política que segundo ensina
Jean-Pierre Vernant destacou a
supremacia da razão, do discurso.
Assim, a palavra, o discurso e a
razão ganharam grande relevo nessa
nova organização social. O discurso
tornou-se condição fundamental para
a participação nos assuntos públicos.
O que se configurou nesta etapa e a
revolução política que ensejou o
desenvolvimento do pensamento
humano. Assim, as discussões
políticas, a elaboração das leis,
deixaram de ser privilégio da
aristocracia grega.
Pólis do plural póleis é uma palavra
grega que expressa a idéia de cidades-
estados
autogovernadas do mundo grego. Cada pólis tinha
suas próprias leis de cidadania, cunhagem de
moedas, costumes, festivais, ritos e etc. Como nos
ensina Jaeger, a pólis configurou um novo momento
para os gregos, uma nova forma de convivência
humana: “A polis é o centro principal a partir do
qual
se organiza historicamente o período mais
importante da evolução grega. Situa-se, por isso, no
centro
de todas as considerações históricas”. 5 O termo
pólis propiciou o aparecimento de palavras como
político e política e, conseqüentemente, a idéia de
justiça. Com a palavra pólis surgiu também o direito
de cada cidadão de emitir, na esfera pública, o seu
pensamento para possível debate. A pólis valorizou
o humano, a discussão, a persuasão, a força do
melhor argumento, enfim o próprio
desenvolvimento
do discurso.
O interesse pela justiça se desenvolveu na
vida comunitária da pólis grega e assumiu
um
grande valor que se afigurou com a mesma
intensidade que a força exercida pelo ideal
cavaleiresco
dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática.
A idéia do homem justo assume, portanto, um
novo locus no pensamento grego, porque aquele
que cumpre a lei e se regula por ela, cumpre o
seu
dever. Observa-se que a pólis introduz uma
verdadeira revolução: “O ideal antigo e livre da
Arete6
heróica dos heróis homéricos converte-se em
rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos
os
5 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego . São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p.73.
6 areté, aretai (pl.) – excelência, virtude.

8
cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como
são obrigados a respeitar a fronteira entre o próprio
e o alheio”. 7
Com a mudança das formas de vida, surgiu
um novo espírito centrado na vida pública.
A
literatura que testemunha a idéia de justiça como
fundamento da sociedade humana estende-se desde
os tempos primitivos da epopéia, ou seja, do séc.
VIII até o séc. VI a.C. Jaeger narra que nos
tempos
homéricos “toda manifestação do
direito ficou sem discussão na mão
dos nobres que administravam a
justiça segundo a tradição, sem leis
escritas. Contudo, o aumento da
oposição entre os nobres e os
cidadãos livres, a qual deve ter
surgido em conseqüência do
enriquecimento dos cidadãos alheios
à
nobreza, gerou facilmente o abuso político da
magistratura e levou o povo a exigir leis escritas”.
8 A

reclamação universal pela justiça já figura


claramente em Hesíodo e, é através dele, que a
palavra
direito, dike, se converte no lema da luta entre as
classes. Não temos fonte sobre a história da
codificação do direito grego, mas sabe-se ao
menos que ao ser escrito assumia o caráter de
universalidade.
Em Homero temos o direito como
Themis que etimologicamente significa lei.
Segundo a
narrativa homérica, Zeus ofertava aos reis o cetro e
themis. Esta última seria o símbolo da grandeza
cavaleiresca dos primitivos reis e nobres homéricos.
Na prática, significava que os nobres dos tempos
patriarcais julgavam de acordo com a lei
procedente de Zeus. As normas que constituíam as
leis de
Zeus fundamentavam-se no direito consuetudinário e
no próprio saber do homem daquela época.

4 - Os Filósofos pré-socráticos 9
Já compreendemos que o que consideramos
por Grécia Antiga não constituiu um
Estado no
sentido moderno do termo, mas o conjunto de
várias cidades autônomas entre si denominadas
pólis.
Sabe-se que o berço da Filosofia teria
sido a pólis de Mileto, situada na
Jônia, litoral ocidental da Ásia menor.
Nesta cidade temos três pensadores
pré-socráticos de grande importância:
Tales, Anaximadro e Anaxímenes.
Esses primeiros filósofos,
denominados filósofos da Physis,
tinham como objetivo construir uma
explicação racional e sistemática do
universo. Tais pensadores buscavam
a matéria-
prima, a arché, existente em todos os seres. Seria,
portanto a busca pelo princípio originário, ou
substancial de todas as coisas.
Tales de Mileto foi
considerado o primeiro filósofo e
sabe-se que era estudioso de
astronomia e, segundo conta a
tradição, chegou a prever um eclipse
total do sol ocorrida em 28 de maio
de 585 a.C. Este pensador apresentou
grande desempenho em geometria e
demonstrou que todos os ângulos

7 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego . São


Paulo: Martins Fontes, 1989, p.94.
8 Jaeger, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego . São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 91.
9 Meu intento nesta parte foi o de mencionar
os pré-socráticos mais conhecidos. Para um
maior aprofundamento sugiro a obra de
BORNHEIM, G. (org) Os Filósofos Pré-
socráticos. São Paulo: Cultrix, 1997.
9
inscritos no meio círculo são retos e que a soma
dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180
º.

Ademais concluiu que o princípio originário era a


água, porque somente a água permanece a mesma a
despeito de todas as transformações.
Anaximandro de Mileto acreditava que o
princípio primordial transcendia os limites
do
observável e que, portanto, estaria fora do alcance
dos sentidos. Denominou de ápeiron, termo grego
que significa o indeterminado, o infinito a massa
geradora de todos os seres.
Anaxímenes de Mileto admitia que a
origem de todas as coisas fosse realmente
algo
indeterminado, mas não o concebia
como inalcançável aos sentidos.
Concluiu, portanto que o ar seria o
princípio de todas as coisas, o
elemento invisível, imponderável e, no
entanto, observável.
Pitágoras de Samos viveu na
ilha de Samos e posteriormente
deslocou-se para Crotona, localizada
no sul da Itália, região conhecida pelo
nome Magna Grécia. Nesta região
fundou uma escola filosófica
preocupada com questões políticas e
religiosas. Em seu modo de ver, a
essência de todas as
coisas residia nos números que representavam a
ordem e a harmonia. A arché teria uma estrutura
matemática que configuraria a origem do finito e
infinito, par e ímpar, multiplicidade, unidade etc.
Para
ele, ao fim e a ao cabo, a diferença entre os seres
repousava sobre os números. Suas contribuições
foram numerosas, dentre elas: o
teorema de Pitágoras, a crença na
imortalidade da alma e na
reencarnação, o rigor moral etc.
Heráclito de Éfeso foi
considerado um dos mais importantes
filósofos pré-socráticos. Sabe-se que
floresceu pelo ano 500 a.C. e se
tornou o representante do
pensamento dialético. Heráclito
concebeu o mundo como
dinâmico, em inesgotável
transformação. Sua escola filosófica
foi denominada de mobilista, pois
para ele a vida era fluxo constante,
impulsionado pela luta de forças
contrárias. Acreditava que a luta dos
contrários seria o princípio de todas
as coisas e por meio dessa
luta o mundo se modifica e evolui. Acreditava que
o fogo era a arché. Seu fragmento mais conhecido
menciona que um homem não pode banhar-se duas
vezes nas águas do mesmo rio.
Parmênides de Eléia (510-470 a.C.) foi um
grande opositor de Heráclito. Acreditava que
o ser
era eterno, único, imóvel e ilimitado. Essa era a
ótica da razão, da essência, a via a ser buscada
pela
filosofia. Por outro lado, a ótica da aparência, da
doxa, não desvela a verdade, mas em função do
movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas
uma aparência enganosa. Parmênides afirmou
que: o ser é; o não ser não é. Acreditou que o
mundo é o lugar das aparências, o mundo da
ilusão e
que somente pela razão, no plano lógico,
compreendemos a essência da realidade. Para
Parmênides
o ser é e o não ser não é.
Zenão de Eléia (488-430
a.C.), discípulo de Parmênides,
buscou argumentos capazes de
legitimar as afirmações de seu
mestre e fortaleceu a idéia de que
a noção de movimento era
contraditória. O mais célebre foi o
denominado “Aquiles” que revela o
complexo estudo dos conceitos

10
de movimento, espaço, tempo e infinito. Neste
argumento Zenão nega o movimento da seguinte
maneira: afirma que o mais lento em uma
corrida jamais será alcançado pelo mais rápido, se
e
somente se, o mais lento sair bem à frente, porque
o mais rápido terá que primeiro alcançar o ponto de
onde partiu o mais lento que, por sua vez,
continuaria se movendo. Para entendermos melhor
esse
paradoxo de Zenão é preciso
compreender o exemplo que nos
forneceu e que resumidamente é o
seguinte: em uma determinada
corrida, se a tartaruga (mais lenta)
saísse à frente de Aquiles (herói);
este herói não conseguiria alcançá-la
em face da vantagem que a
tartaruga obteve por ocasião da
largada.
Empédocles de Agrigento (490-430 a.C.)
tentou conciliar as idéias de Parmênides
com o
pensamento de Heráclito, ou seja, conciliar a idéia
de essência imutável obtida pela razão com a idéia
de movimento, o vir-a-ser, captado pelos
sentidos. Acreditou que o elemento primordial
era
constituído por quatro elementos: o
fogo, a terra, a água e o ar. Tais
elementos seriam misturados de
modos diversos a partir de dois
princípios universais, a saber: de um
lado, o amor, personificando a idéia
de força de atração ou harmonização
das coisas; de outro o ódio
responsável pela desagregação ou
separação das coisas.

5 - A idéia de justiça no período pré-socrático


Para estudiosos como W.
Jaeger e R. Mondolfo, a preocupação
dos primeiros filósofos teria sido com
o universo, ou seja, os pré-socráticos
inauguraram o pensamento filosófico
quando iniciaram um estudo racional
sobre o homem, a vida e a
Natureza. Outros estudiosos do
pensamento grego
revisaram essa tese e concluíram que certa
reflexão acerca do mundo dos homens teria
precedido a
reflexão sobre o mundo físico.
Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o
seguinte argumento: “isto é verdade se
tivermos
em conta a primitiva concepção
helênica do mundo e da vida em sua
totalidade, ou seja, incluindo as
teogonias míticas. Efectivamente,
estas, fundadas num politeísmo
antropomórfico, concebem os
problemas cósmicos como problemas
humanos, o que traz consigo a
personificação dos elementos e das
forças naturais e a apreensão das
suas relações segundo a natureza
das relações entre os
homens”. 10 A filosofia do mundo natural precisou
trabalhar com categorias nascidas da experiência da
vida humana, de uma forma ou de outra expressa
na literatura disponível à época, a mitologia. São
categorias cuja origem é social: a noção de lei, por
exemplo. A imagem da comunidade foi útil para a
representação da Natureza. O enigma
que perturbava o espírito dos
pensadores pré-socráticos era o
movimento, a mudança, o que
justifica a necessidade de buscar
um elemento primordial que
permanecesse sempre o mesmo.

10 SERRA, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado .


Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, pp. 85-86.

11
O homem desta época vivia em uma
comunidade autárquica e sagrada que
configurava o
microcosmo, a pólis. Cada cidade apresentava
independência jurídico-política. Protegida por seus
deuses baseava-se em normas tradicionais de
fundamento religioso, themistes, regulamentações
que
paulatinamente constituíram o nomos. Podemos
entender por nomos a idéia de ordem da pólis, ou
seja, as regras morais e os preceitos jurídicos
indistintamente misturados. O cuidado com os
valores
culturais de cada pólis garantia uma convivência
pacífica. Não fica difícil perceber que a idéia de
justiça significava garantir essa convivência
harmônica a partir de uma repressão a tudo que
pudesse
comprometer a ordem estabelecida.
Esse sentido seria alargado diante das
novas necessidades que a vida
comunitária exigiria.
Truyol y Serra aponta que Anaximandro
teria transposto ou deslocado a idéia de
justiça da
pólis para o universo. 11 Este seria uma grande
pólis, ou seja, uma grande comunidade sujeita a
uma
lei ordenadora. Ele afirma a
existência de uma justiça cósmica
de caráter imanente que preside a
geração e a dissolução dos seres
particulares. Para este autor, idéias
semelhantes seriam usadas mais tarde
por Parmênides de Eléia e
Empédocles de Agrigento nos
poemas que cada qual escreveu,
ambos intitulados Acerca da Natureza. Parmênides
teria personificado a Justiça nas deusas Themis e
Dike entre o dia e a noite e entre a verdade e a
opinião. A justiça aparece no seu poema como um
princípio estático que assegura a imutabilidade do
ser que ele afirma com vigor: o ser é e o não ser -
não é. Empédocles usa a idéia de
justiça para tentar uma explicação
do universo; o amor e o ódio
enquanto forças originais fazem e
desfazem as coisas; a lei estende-se
sem alteração.
Sabe-se que Pitágoras e Heráclito
apresentaram considerações mais explícitas
sobre a vida
social. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação
ética e religiosa. Cresce o interesse pela vida
humana e individual e a Filosofia se configura na
possibilidade de uma purificação interior. 12
Pitágoras
antecipa também a relação entre Filosofia e política.
Os pitagóricos foram os primeiros a
organizar uma teoria da justiça no interior de
sua doutrina
dos números. Deste modo, conceberam os
números como essência das coisas e expressão
de
harmonia e regularidade no sentido específico de
totalidade ordenada. Essa harmonia, transposta para
a esfera humana, assume o sentido de uma
correlação de condutas. Os pitagóricos formularam
uma
definição de justiça como “aquilo que alguém sofre
por algo” – a justiça como uma relação aritmética de
igualdade entre dois termos. Esta igualdade
aparece como elemento essencial da justiça.
Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9, porque
a multiplicação de um número par (2) por ele
mesmo daria 4; a multiplicação de
um número ímpar (3) por ele
mesmo alcançaria o número 9. A
justiça nessa concepção funda-se na
ordem natural presidida pelo número.

11 Esta idéia estaria presente no único fragmento existente da


obra Sobre a Natureza, p. 87.
12 Trata-se de uma das fontes do idealismo ético de Platão.

12
Heráclito de Éfeso associa justiça e
ordem universal. Como concebeu a
realidade em
perpétuo devir; afirmou ainda que o devir nasce
dos contrastes e que este surge da luta, a justiça é
luta. Todavia esse perpétuo fluir é presidido por
uma lei eterna e universal, o logos. Este logos seria
o
responsável pela harmonia invisível entre os
opostos. Esta unidade realizada pelo logos
manifesta-se
no fogo. Heráclito evoca as Erínias, personagens
da mitologia que eram servidoras de Dike, que
segundo a narrativa mítica, forçavam
o Sol a voltar à órbita se acaso se
afastassem. Por analogia o logos
estaria oferecendo ao homem a
norma para a ação correta. Todos os
homens participam dessa
ordem, embora nem todos a revelem em sua
conduta. Essa lei única e divina alimenta a lei
humana,
conferindo o seu sentido de sagrado e justificando
qualquer sacrifício em seu nome.
Importa perceber que a moralidade,
tanto para os pitagóricos quanto para
Heráclito,
fundamenta-se numa lei natural. Na fase pré-socrática
houve, portanto, um jusnaturalismo cosmológico
de cunho panteísta. 13 Essa filosofia natural pré-
socrática conferiu validade à concepção helênica
de
justo percebida em Hesíodo e Homero. Sabe-se
que a idéia de igualdade na reciprocidade,
apresentada na narrativa hesiódica,
superou o sentido de autoridade
expresso nos poemas homéricos
enquanto sentido da justiça. Esse
predomínio da concepção de
Hesíodo aconteceu por ocasião de
profundas transformações políticas e
sociais nos séc. VII e VI a.C. que
conduziu às codificações e destacou
a figura de Sólon.
Sólon, legislador e poeta, anunciou em
suas Elegias o conceito de eunomia, ou seja,
a ordem
equilibrada, fundada na justiça. Sólon observou a
necessidade de homogeneidade social que excluiria
as desigualdades excessivas. A cidade deve ser
comum a todos e todos devem se interessar por
sua
conservação, o que configuraria o que ele
entendeu por eunomia. Sólon fustigou a hybris
como a
máxima negação da ordem.
No âmbito literário, os poetas trágicos
como Ésquilo e Sófocles foram os
herdeiros dessa
concepção de justiça pré-socrática. A
lei representa o equilíbrio e a hybris a
desmedida. A negação da lei deve ser
resolvida com uma sanção conforme
o princípio que conhecemos pelo
nome de talião: “quem praticou a
violência sofrerá violência” (Ésquilo,
Agamémnon). Resgatar o equilíbrio
entre o crime e o castigo é função da
pólis. A idéia de retribuição está
fundada na mais antiga tradição e
configura uma legalidade cósmica que
para os homens assumia o caráter de
férreo destino.
Sófocles acrescenta um problema novo: o
do antagonismo entre as leis humanas e as
leis
divinas. Este conflito constitui o núcleo dramático
da tragédia Antígona. Ao apresentar esse conflito,

13 SERRA, A. T. História da Filosofia do Direito e do Estado .


Portugal: Instituto de Novas Profissões, 1985, p.89.

13
Sófocles conduz-nos, de certo modo, à filosofia
jurídica da sofística, todavia reconheça e enfatize o
caráter sagrado das leis não escritas. 14
Heródoto de Halicarnasso transpôs para o
âmbito da história a concepção de justiça
oferecida
pela tradição. Trata-se de uma concepção religiosa
de justiça em que os deuses ansiosos por justiça
procuram manter os homens longe da demasia e
dos excessos do orgulho, longe da desmedida. Esse
pensador considerado o “pai da história” apresenta
um novo problema: a diversidade das convicções e
instituições humanas, ou seja, a relatividade dos
costumes, a não universalidade das leis entre as
pólis. Este pensador nos conduz à problemática da
sofística.
Segundo Aristóteles, Demócrito de Abdera
(460-370 a.C.) foi o último dos pré-
socráticos, ou
filósofos da physis. A importância
de mencioná-lo separado dos demais
é que ele inaugura o que
denominamos de período sistemático
da filosofia helênica que, por sua vez,
culminará no pensamento de Platão e
Aristóteles. Um estudo através dos
fragmentos deste pensador nos
permite perceber que sua ética
apresenta um desenvolvimento
independente de sua filosofia
natural. Sabemos que Demócrito
professou um materialismo
mecanicista que considerava os
átomos, móveis no vazio, os
elementos últimos da realidade. A tradição atribui a
Leucipo a inspiração deste pensamento que a rigor
despoja o universo de qualquer concepção divina.
Sua ética apresenta o que podemos denominar de
hedonismo esclarecido, ou seja, concebia a
felicidade na moderação, na preeminência da alma
sobre
os sentidos, sua meta era a eutimia que
significava um estado de alma sereno
e alegre, de
tranqüilidade e equilíbrio. O seu individualismo
se refletia na esfera da família e, nesse sentido,
combatia o casamento e a paternidade, porque
acreditava que tais coisas perturbavam o espírito.
Essa
concepção não se estendia ao âmbito político, pois
compreendia que a prosperidade do indivíduo está
vinculada à vida na pólis. Daí
preocupar-se com questões sobre o
bom governo e sobre normas. Como
Sócrates, Demócrito inclina-se para
uma aristocracia vinculada ao conceito
de sabedoria: em seu modo de ver os
melhores deveriam governar.

6 - Democracia ateniense
A democracia ateniense não foi obra de um
único homem, entenda-se aqui Clístenes,
sabe-se
que esteve presente pelo menos por dois séculos de
existência (508 a 322) no mundo grego ateniense.
Tradicionalmente, comentamos que Clístenes
desenvolveu um sistema de democracia, em 508-
7,
entendido como isonomia, ou seja, igualdade
perante a lei, mas observa-se que a palavra
democracia
foi inventada tardiamente. Demokratía
é considerada uma palavra ambígua
no universo ateniense, ou melhor,
grego; literalmente krátos significa
poder soberano do demos. Demos
tinha acepções diversas

14 Chamo a atenção para um ponto interessante: a figura


do coro na tragédia Antígona desvela certo vestígio da
antropologia sofística que exalta o homem e suas obras,
embora apresente a advertência que a obra humana também
poderá gerar um grande mal.
14
na Atenas do séc. V e poderia significar o povo
como um todo; o conjunto dos cidadãos adultos do
sexo masculino; a maioria pobre do corpo dos
cidadãos, ou ainda uma denominação dada a
pequenas
áreas dentro da pólis (espécie de divisão em bairros
ou comunidades). Demokatía poderia significar
também constituição, ou o próprio povo de Atenas
na ekklesía. Demokratía poderia ser vista como o
governo do povo como um todo ou, para um
opositor, como o governo das pessoas comuns que
estabelecem uma ditadura da maioria sobre os
melhores cidadãos.
As fontes fidedignas não revelam quem
inventou a palavra demokatía ou quando
começou a
ser efetivamente utilizada, todavia acredita-se em
certa aparição indireta ou virtual, registrada em
Ésquilo, na tragédia A suplicante, a partir de um
equivalente poético: demou kratousa kheir, que
significa “a mão soberana do demos”. A palavra
demokratía somente aparece em Histórias de
Heródoto e na Constituição de Atenas
de Xenofonte, aproximadamente em
420 a.C. Podemos afirmar que os
ideais democráticos não eram aceitos
por todos, havia inúmeros adversários.
Muitos dos seus opositores defendiam
um retorno ao sentido de democracia
de Sólon, outros pretendiam uma
volta à
forma oferecida por Clístenes e alguns defendiam
ferozmente uma oligarquia. A teoria democrática tal
como se configurou em Atenas viu-se diante da
tarefa de uma reconstrução, sobretudo em face das
críticas elaboradas por Aristóteles na obra Política.
O período mais conhecido ou famoso da
demokratía ateniense é o da segunda
metade do
século V, todavia as fontes disponíveis que tratam
do tema remontam ao século IV, o que compromete
seu estudo, visto que esse sistema aperfeiçoou-se
ao longo do tempo. A democracia descrita por
Aristóteles na obra Constituição de Atenas
(Athenaion Politeía) não é, portanto, a democracia
de
Péricles15.
A democracia ateniense difere
da nossa democracia representativa,
as decisões eram tomadas e
executadas diretamente pelos
cidadãos de Atenas. Duas
instituições eram fundamentais para
configurar a imediatez dos procedimentos políticos
de Atenas: a ekklesia (Assembléia) e a boulé
(conselho dos 500) com seu subcomitê de
prutáneis (presidentes). Segundo especialistas, todos
os
problemas de Estado eram observados
primeiramente pelos cinqüenta prutáneis que
viviam em
constante vigilância. Se constatado a relevância do
problema os prutáneis convocavam uma reunião
plenária da boulé dos 500 e, se necessário,
convocar-se-ía a ekklesia, órgão encarregado da
tomada
de decisões da democracia direta ateniense. A
palavra ekklesia significa literalmente: “um grupo
que é
chamado” e que se reunia em uma colina chamada
Pnix a sudoeste da agorá que era o centro cívico
de Atenas.

15 Péricles:
estadista e general, incentivador da democracia e do
imperialismo ateniense.JONES, Peter (org) O mundo de
Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
15
Os cidadãos de mais de dezoito anos que
estivessem inscritos nos registros do seu
demo
(comunidade) poderiam integrar a
ekklesia. O assunto principal era a
política externa. Este órgão não só
deliberava sobre as políticas a
serem seguidas, como também
legislava. Tal função foi
posteriormente delegada a um órgão
menor de legisladores ( nomothétai),
por volta de 403 a.C. De
acordo com os relatos de Aristóteles, na década de
320 a ekklesia realizava quatro reuniões fixas em
cada um dos meses que constituíam os dez
meses civis. A primeira reunião era denominada
de
ekklesia soberana (Kúria). Cada participante era
inicialmente verificado, em seguida iniciavam as
oferendas de purificação,
pronunciavam maldições contra
traidores e, a partir de então,
começavam as sessões. Sabe-se que
uma reunião ordinária durava menos
do que um dia.
Outro fator importante a ser destacado é
que na prática nem todos os cidadãos
participavam
da ekklesia ou poderiam subir à tribuna. Acreditam
alguns historiadores que a população de cidadãos
de Atenas flutuava em torno de 20
ou 50 mil pessoas, mas que pelo
menos 5 mil efetivamente
participavam da ekklesia. Tanto o
local não comportava um grande
número de cidadãos como muitos não
se sentiam atraídos pelo debate ou
ainda viviam desmotivados pela longa
distância que teriam que percorrer dos
demos até a Pnix. Nesse sentido, no
séc. IV introduziram uma espécie de
pagamento para compensar o
comparecimento que implicava perda
de horas de trabalho. Por razões não
difíceis
de compreender, entre 400 e 330 a Pnix sofreu
reformas para acomodar um número cada vez
crescente de cidadãos alcançando o quorum de 13
mil participantes.
A ekklesia exigia qualidades
especiais em seus oradores que
lançavam mão da persuasão para
obter êxito em relação aos seus
interesses. Essa habilidade imperiosa
para o cidadão ateniense
proporcionou um grande
desenvolvimento da educação
sofística. Os cidadãos que falam à
tribuna eram denominados de
rhetores, ou seja, oradores ou ainda
politeuómenoi, os políticos.
Os rhetores falavam na ekklesia na
qualidade de líderes de pequenos grupos de
políticos ou
pessoas com idéias parecidas (não confundir
com o que chamamos hodiernamente de partidos
políticos). Eram agrupamentos informais, onde
aquele que expressava com maior clareza uas
idéias,
freqüentemente tornava-se o porta-voz. Alguns
desses oradores foram também denominados de
demagogós que significa literalmente, “o condutor
do demos“ 16.
A condução da justiça em Atenas era
responsabilidade dos thesmothétai, seis
funcionários. A
democracia ateniense implicava também uma
grande participação do cidadão nos tribunais. Em
Atenas, ou melhor, na antiga Grécia não havia a
separação dos poderes. Foi Aristóteles em sua obra
Política que ressaltou que o cidadão de uma
democracia não só participava da boulé e ekklesia,
como
também, participava nos tribunais.

16 JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à


cultura clássica ateniense . São Paulo: Martins Fontes, 1997,
p.210.
16
O surgimento de um tribunal
popular como recurso contra as
decisões das autoridades se deu com
Sólon em 594, denominado de Eliaia.
Após 462-61, todos os tribunais do
júri passaram a figurar como Eliaia,
não só como fase recursal, mas como
primeira instância. Tais tribunais eram
constituídos por jurados em um
número que poderia variar entre 201
a 2.501 membros e, nesse sentido,
também foram chamados de
dikastéria. Sabe-se que o júri era
escolhido de acordo com a
necessidade a partir de uma lista
anual de 6 mil jurados e, mais tarde
no séc. IV, eram escolhidos dentre
os que se
ofereciam para tal. Observa Peter V. Jones, na
obra supramencionada que o termo “jurado” é
um
termo inapropriado para designar os dikastai, pois
não havia juízes no sentido moderno, mas “jurados”
que eram ao mesmo tempo juízes. Os dikastai
eram pagos por cada dia de sessão; pagamento
que
fora introduzido por Péricles. 17 Pode-se presumir
que o cidadão que comparecia para ser “jurado” era
o
mesmo que tinha o hábito de comparecer às
ekklesias.
Muitas vezes a ekklesia funcionava como
tribunal. Observa-se ainda a inexistência de
um
órgão que funcionasse como a
promotoria pública ou uma força
policial específica. O procedimento
específico desses órgãos ficava a
cargo da iniciativa particular, embora
houvesse a distinção entre casos
públicos e casos particulares. Neste
último somente a parte ofendida
poderia mover a ação que
por sua vez era denominada de díke. Nos casos
públicos a iniciativa ficava a cargo de quem
quisesse
emitir uma intimação, graphé, intimação por escrito.
O homicídio, por exemplo, era considerado como
díke por prejudicar o papel da família. Se um
orador na ekklesia apresentasse uma proposta
inconstitucional, configuraria um caso público
para quem quisesse salvaguardar a democracia.
Rumores de subversão e problemas de desafeto
político também possibilitariam uma graphé. Uma
vez
emitida a intimação, graphé paranómom18, ao orador
com proposta de lei inconstitucional, esta ficaria
suspensa até o julgamento e, sendo considerado
culpado, pagaria uma multa e seu projeto seria
imediatamente cancelado. Em Atenas, o povo como
jurado julgava o próprio povo na ekklesia o que
desvela, em certo sentido, o princípio da
responsabilidade democrática alcançando a todos.
Na obra Apologia de Sócrates que narra a
versão platônica sobre o julgamento de
Sócrates
condenado à morte em 399,
percebemos as peculiaridades do
tribunal ateniense. Não havia
advogados; os querelantes falavam
em causa própria, sem regras para
apresentação de provas e sem juiz.
As testemunhas embora fundamentais
não eram ouvidas pelas duas partes e
os jurados reagiam conforme suas
emoções e preconceitos morais. Os
jurados votavam imediatamente após
a fala dos querelantes, sem fazer uso
de recintos reservados ou de
conselhos de juiz. O testemunho de
escravos somente poderia ser aceito
se obtido sob tortura, porque eram
considerados objetos sem alma,
coisas.

17 Cf. As vespas (422) de Aristófanes que constitui uma sátira


sobre os tribunais.
18 O primeiro uso da graphé paranómom foi verificado em 415,
momento em que houve rumores de subversão. Também foi
utilizada na competição pelo sucesso político. A graphé
paranómom substituiu o ostracismo que foi abandonado por
volta
de 416. Cf. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma
introdução à cultura clássica ateniense . São Paulo: Martins
Fontes, 1997, p. 224.
17
Na verdade, o escravo era tido como um bem
familiar valioso para o senhor que preferia não
submetê-
lo a qualquer tortura, o que
contribuiu como argumento válido
para a limitação de testemunhos
considerados pouco confiáveis.
Sabe-se que no séc. IV havia
o recurso da arbitragem. Ambas as
partes concordavam com a
participação de árbitros particulares
e se comprometiam a aceitar as
decisões. Segundo os historiadores,
as partes poderiam invocar a
arbitragem a qualquer tempo em um
processo civil. Se tal
método não fosse eficaz, procedia-se a uma
intimação. A parte ofendida se dirigia à agorá e
verificava
se as leis que lá estavam expostas
apoiavam seus interesses e qual o
procedimento adequado à sua causa.
Inicialmente, a intimação era feita
verbalmente, o réu comunicado
perante testemunhas deveria
apresentar-se ao árkhon, conselho judiciário em dia
estabelecido. Na data prevista tal conselho decidia
sobre a possibilidade ou não do
processo. Se viável, a queixa era
registrada por escrito e ambas as
partes depositavam um sinal referente
as custas que o perdedor pagava por
inteiro após o julgamento. O
conselho judiciário fixava um dia
para a audiência e determinava que
uma cópia da queixa fosse exposta
publicamente na agorá.
No caso de uma dike a
aplicação da sentença era função do
ofendido. A recusa repetida a fazer
um acerto ou acordo poderia ensejar
mais processos e até mesmo a perda
dos direitos civis (atímia). Se o
condenado se recusasse a pagar a
quantia estipulada, o querelante
vencedor poderia apossar-se de suas
propriedades no valor referente à
quantia imposta.
Os julgamentos em uma graphé e as
sentenças de morte proferidas eram
atribuições de
funcionários da cidade. Atenas tinha
um grande número de funcionários
com mandatos anuais, embora a
cidade não possuísse uma
burocracia, no sentido moderno do
termo. Segundo Aristóteles, na
segunda metade do séc. V, Atenas
contava com setecentos
funcionários, o que ressalta o
sentido democrático na oportunidade
de ocupar cargos públicos por turnos.
A situação de atimía equivalia a estar fora
da lei e, nesse sentido, o homem na
condição de
átimos poderia ser morto ou roubado sem ter
direito à reparação legal. A atimía não acarretava
a
perda das propriedades ou o exílio, antes, porém
equiparava-se à morte no sentido político, a privação
absoluta dos direitos civis: falar na ekklesia,
participar nos tribunais, integrar a boulé, entrar
nos
templos e na agorá. Em geral, a perda dos direitos
civis era de caráter perpétuo, sobretudo nos casos
considerados particularmente graves e era até
mesmo dirigida aos descendentes. Peter V. Jones
nos
relata um caso curioso, o de
Andócides, em 415 a.C., que sofreu a
perda parcial dos direitos civis por se
envolver na profanação dos Mistérios
de Elêusis. Segundo seus relatos, tal
sentença foi revogada
por ocasião de uma anistia geral extraordinária
concedida em 403. 19

19 Cf. JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma


introdução à cultura clássica ateniense . São Paulo: Martins
Fontes,
1997, pp.231-2.
18
Enfim, Atenas foi a pólis grega
que mais contribuiu intelectualmente
para o
desenvolvimento das ciências e artes. A sua
importância envolve a matemática, a retórica, a
história, a
ética, a política, a lingüística, a lógica e as artes
(poesia, escultura e arquitetura). Seus pensadores
desenvolveram teorias que permaneceram válidas
durante milhares de anos e algumas perduram até
hoje.

7 - A Sofística e Sócrates
O século V vivenciou um esplêndido
apogeu cultural na cidade de Atenas,
considerada a
capital intelectual do mundo helênico. Esta
cidade-estado experimentou um verdadeiro
entrecruzamento de pensamentos filosóficos que
contribuiu para a passagem do período cosmológico
para a fase antropológica. Foi nesse contexto que
surgiram os sofistas. A sofística se tornara uma
exigência da própria democracia ateniense:
formar cidadãos capazes de brilhar nas
assembléias.
Estes senhores cultivaram a retórica, conferindo
maior importância à argumentação - a arte de
convencer por meio do discurso em detrimento da
busca pela Verdade.
Muitos estudiosos denominaram esta fase
como o Iluminismo grego, pois a tendência à
retórica
baseava-se em certo racionalismo e um espírito
crítico que calcava aos pés a tradição helênica.
Ressaltaram a contraposição entre o natural e o
convencional, ou seja, é o costume, o arbítrio dos
homens que estabelece o que é justo ou injusto,
certo ou errado. Tais homens causaram receio e
escândalo que se refletiram nas comédias de
Aristófanes e nos diálogos de Platão.
Todas as informações que temos dos
sofistas foram obtidas através dos diálogos
de Platão,
seu inimigo declarado. O único estudo da sofística
repousa na existência de alguns fragmentos ou
fontes indiretas, além de não constituir uma
unidade sistemática. Nos diálogos de Platão os
sofistas
figuram como os interlocutores de Sócrates. Nesse
sentido, resta-nos a máxima prudência possível ao
tentar compreendê-los.
Mas o que fizeram tais homens? Os
sofistas freqüentemente criticavam o
fundamento que
conferia validade às leis e costumes da tradição.
Atacavam o aspecto sagrado da tradição helênica.
Eles observavam a diversidade cultural de sua
época
e percebiam a mudança na esfera das
instituições. A lei e os costumes assumiam um
caráter essencialmente humano, convencional,
vinculado à vontade dos homens.
Assim como nos pensadores
jônicos, o ponto de partida dos
sofistas foi o movimento e a procura
de uma realidade única capaz de
permanecer idêntica a si mesma.
Nesse sentido, surgiu com os sofistas
a dicotomia natureza ( physis) e lei
(nomos) ou convenção. A
moralidade passa a estar
desligada da ordem natural e o interesse pela
conveniência assume o status de pilares da vida
social.

19
Trasímaco da Calcedônia que figura como
personagem na República, livro I, afirmava
que a
origem do nomos estaria no interesse,
interesse do mais forte. Cada governo
promulga leis que lhe são favoráveis.
O justo é o que interessa ao governo
estabelecido. (Trasímaco pretende
descrever aquilo que de fato
acontecia)
Cálicles, personagem do
diálogo Górgias de Platão, concebe o
nomos como estabelecido em
benefício da massa dos fracos como
um limite ao excesso de superioridade
dos mais fortes. Cálicles confundia os
mais fortes com os melhores. Em seu
modo de ver, a injustiça consistiria
em alguém se destacar dos demais.
Há na sua doutrina uma clara
oposição entre um estado de natureza
e o estado
civil, regido por um direito positivo que limita a
liberdade natural. O seu conceito de natureza se
reduz
aos instintos irracionais primitivos e espontâneos no
homem.
A oposição entre natureza e convenção criou
as condições de possibilidades para uma
crítica
das instituições positivas. Nesse sentido,
atacaram os privilégios de cidadania e de
classe, a
escravidão, a subordinação da mulher ao marido 20
e a discriminação entre gregos e bárbaros. Sabe-se
que um sofista chamado Antifonte, escrevera a
obra Sobre a Verdade da qual restou apenas um
fragmento, afirmava a igualdade natural de todos
os homens, asseverando que as leis estabelecidas
pelos homens eram leis contrárias à natureza que,
na verdade, deveriam conduzir a um igualitarismo
democrático. Em outro tratado atribuído a
Antifonte, Sobre a Concórdia ,
os fragmentos que se
conservaram afirmavam a
obediência às leis fundamentadas
em um egoísmo enraizado numa
educação criadora de hábitos
socialmente aceitos.
Crítias, parente de Platão e
que fora membro do governo tirânico
dos Trinta em Atenas, atribuiu a uma
argúcia a origem da obediência às
leis e a crença nos deuses. No seu
modo de ver como um crime só
pode ser punido se a infração for
conhecida, o homem teria inventado
um ser divino que tudo vê,
conhecedor das infrações mais ocultas.
Outro sofista importante foi Protágoras de
Abdera que, ao lado de Górgias de Leontini,
figura
como um dos mais antigos representantes da
sofística. Sabe-se que Protágoras fora amigo de
Péricles
e que recebera deste a tarefa de elaborar a redação
das leis da colônia ateniense de Turioi, no Sul da
Itália, por volta de 444 ou 443 a.C. Observa-se
também que Platão tratou-o de forma diferenciada.
No
mito platônico, Protágoras
fundamenta a coesão social nas
virtudes do pudor e da justiça,
ofertadas aos homens por Zeus.
Como os homens viviam em
incessantes lutas, Zeus concedeu o
dom que iria permitir a edificação
das cidades. Esse mito retrata o
problema do desenvolvimento das
aptidões sociais a partir de uma dura
e lenta aquisição do gênero humano
prevalecendo sobre as tendências
egoístas. Para Protágoras quem não
possuir as duas virtudes mencionadas
deveria ser eliminado da sociedade,
justificando desse modo a supressão
dos insociáveis mediante uma teoria
da pena como

20 Os defensores de certo feminismo foram ridicularizados por


Aristófanes na obra O congresso das mulheres.

20
função intimidatória em nome da defesa social. Há
a crença numa virtude social média que o esforço
pedagógico seria capaz de aperfeiçoar – certo
otimismo antropológico. Neste sofista encontramos
um
relativismo ético que converte em regra desejável a
utilidade social. Protágoras transforma o nomos em
conseqüência de um acordo de todos os membros
da sociedade. O justo será o conveniente em cada
caso, desvelando assim, certo
pragmatismo. Protágoras configurou
também o momento de um
relativismo gnosiológico expresso em
sua mais famosa frase: “o homem é a
medida de todas as coisas: das que
são enquanto são; das que não são,
enquanto não são”.
A sofística contribuiu para a reflexão
filosófica na medida em que estimulou os
debates sobre
os valores partilhados e introduziu novas idéias. O
racionalismo que marca suas considerações críticas
inspirou projetos de reformas institucionais que
conduziram
à formulação de constituições
supostamente perfeitas. Para alguns
estudiosos do helenismo, esse teria
sido o momento do surgimento de
um gênero literário que para outros
só aconteceria muito mais tarde: a
utopia. As duas primeiras utopias
seriam as de Hipodamo de Mileto e
de Fáleas da Calcedônia que foram
analisadas por Aristóteles no livro II
da Política.
A diversidade nas instituições que inspirara
os sofistas contribuiu para o surgimento de
várias
formas de governo. A pólis era a maneira comum
de organização, mas o regime variava conforme os
indivíduos ou grupos que detinham o poder. Os
gregos denominaram de tiranos, os homens que
alcançavam o poder de forma irregular, a palavra não
tinha o sentido pejorativo que atribuímos.
O mundo grego vivenciou a monarquia, o
surgimento de uma classe média com a
passagem
de uma economia natural para uma de cunho
mercantil, oligarquias, tiranias e democracia direta
que
desembocou em demagogia. Heródoto, no livro III,
de sua obra História, oferece-nos uma ficção em
que há uma séria discussão sobre as
diversas formas políticas de governo.
Heródoto as observa e as classifica
de acordo com o exercício do poder:
monarquia, o poder supremo pertence
a um indivíduo; oligarquia, o poder
pertence a um grupo reduzido de
homens que receberam uma educação
específica;
isonomia, que pertence ao conjunto dos cidadãos, o
demos. Esta classificação será sistematicamente
observada por Platão, no diálogo O Político e, em
Aristóteles, na obra Política.
Na época que estamos a considerar dois
nomes são importantes para o debate
sobre as
formas de governo: Isócrates e Demóstenes.
Ambos trataram de um problema fundamental à
Democracia: a chefia nesse regime democrático.
Combateram a demagogia e a corrupção dos
tribunais populares. A despeito dos vícios desse
regime Demóstenes o considerava o único legítimo.

Isócrates21 propôs uma reforma que significaria a
substituição de uma democracia direta por uma
indireta e, nesse sentido, os melhores estariam
encarregados da gestão dos negócios públicos. Foi
este pensador que distinguiu o sentido de justiça
de “dar a cada um o que merece” do sentido “dar
a

21 Na obra Areopagítico(354 a.C.) e Panatenaico(340 a.C.)


21
todos o mesmo sem discriminação”. Mais tarde na
obra Panegírio de Atenas (380 a.C.) ressaltou a
problemática da política externa e
apresentou a idéia de uma
confederação pan-helênica que
pusesse fim a atomização política da
Grécia. Pode-se acreditar que
Isócrates tenha pressentido a
possibilidade da caducidade da pólis
grega em face da era dos grandes
impérios do período helenístico e
romano.

8 - Sócrates (469-399 a.C.)


Este pensador, contemporâneo
e opositor mais importante dos
sofistas, tornou-se o ponto de partida
de várias correntes doutrinárias. Sua
existência nos foi transmitida por
Platão ao colocá-lo como personagem
principal em vários de seus diálogos.
Sócrates se tornou a figura mais
significativa da Filosofia Antiga e,
isso se deu de tal forma que muitas
vezes uma linha tênue separa o
homem lendário do histórico. Na
verdade, Sócrates nada escreveu, mas
enquanto personagem platônico
expressou o pensamento de seu
discípulo e supostamente o seu
próprio de forma que não fica claro
a diferença entre o pensamento de
um e o do outro.
Os diálogos platônicos considerados pela
tradição como “diálogos socráticos”, são:
Apologia
de Sócrates, Eutífron, Críton, Protágoras, Górgias e
o livro I da República. Foram considerados como
socráticos porque os diálogos
posteriores apresentam mais
acentuadamente a personalidade de
Platão. O que se deve advertir é que
se torna recomendável comparar a
figura de Sócrates traçada por
Platão e a apresentada por Xenofonte 22, além das
referências feitas por Aristóteles. Sócrates, assim
como os sofistas, orienta sua investigação para os
problemas humanos, observa a necessidade de
substituir a obediência cega ao nomos por uma
explicação racional convincente. Difere dos sofistas
quanto ao método, ou seja, não se preocupa com
grandes discursos, antes, porém prioriza a clareza
nos conceitos, a simplicidade na
exposição e, introduz os temas
mediante o uso de perguntas e
respostas que vão pouco a pouco
rodeando o objeto, descobrindo
seus diferentes aspectos até
desnudar a superficialidade e
imprecisão de certas opiniões ou
juízos proferidos pelo senso comum
acerca de tal objeto – método maiêutico. Seu
método enfatiza a necessidade de definições
rigorosamente formuladas, porque a
verdade nasce no interior desse
diálogo. Sócrates personifica,
portanto a figura do homem
insubornável, cujo espírito prefere
demonstrar uma ignorância confessa a
apresentar um falso saber.
Podemos dizer que o seu método o conduziu
a um intelectualismo ético. Quero dizer com
isso
que para Sócrates a moral se reduziu ao
conhecimento do bem, pois acreditava que todos
poderiam
conhecer a verdade se interrogassem a si mesmos e
comparassem seus juízos com os dos demais. O
conhecimento se torna uma virtude e, nesse sentido,
o homem pratica o mal por ignorância do bem.

22 Xenofonte(ca.430-354a.C.) – suas obras


foram conservadas na íntegra: Hierão,
República dos Lecedemônios, República de
Atenas, Ciropédia e Econômico.
22
No âmbito da filosofia político-jurídica,
Sócrates se opõe à tese sofística da moral do
mais forte
e do relativismo, ensinando em seu lugar o
princípio segundo qual é mais digno sofrer a
injustiça do
que cometê-la e, se por uma fatalidade a cometeu,
é preferível aceitar a sanção correspondente.
Nesse sentido, no interior de uma ética
comprometida com o aperfeiçoamento da alma
humana, a
pena figuraria como um remédio
para o homem. No seu modo de ver,
a temperança e a justiça são
condições indispensáveis para a
maior felicidade humana. A Filosofia
assume, portanto, o papel de tornar
possível essa perfeição.
Sócrates ensinava que as leis eram
necessárias e correspondiam a uma
exigência da
natureza humana. Isto implica dizer que a
obediência às leis é um dever sem excusas. É a
pólis que
torna possível a vida do cidadão,
logo há um acordo tácito pelo
qual o cidadão deve a sua
obediência.23 Faz-se mister ressaltar
que essa postura de Sócrates não
torna lícitas considerações de
que ele teria sido um positivista que tenha separado
o Direito da Justiça. A esse respeito cito Truyol y
Serra: “Sócrates vê na cidade uma
realidade ética, fundamentada na
ordem divina das coisas. Esta
legitimidade essencial não é
destruída por erros acidentais. O
próprio Sócrates alega que, em certa
ocasião, ofereceu resistência passiva a
uma ordem injusta, sob o governo
dos Trinta Tiranos. Também se
opusera a um acordo ilegal feito em
assembléia popular. Mas essa
desobediência não pode ir ao
extremo de pôr em perigo os
alicerces da ordem social, sem os
quais é inconcebível uma vida
humana digna de tal nome”.24
Ademais, Sócrates concebia a existência
de leis não escritas advindas da vontade
reta da
Divindade. Estas leis estariam nas consciências
humanas fundamentando sobretudo as leis positivas.
Todavia não ignorava os conflitos que na realidade
aconteciam entre ambas. Outro fator importante é
a sua oposição ao regime
democrático de Atenas, pois não
compreendia como uma multidão
poderia conduzir corretamente os
negócios públicos com a devida
competência. Foi exatamente sua
crítica ao
regime democrático em conjunto a um método que
denunciava a superficialidade intelectual de alguns
homens o que concitou inimigos poderosos.
Sócrates foi acusado de introduzir novos deuses e
de
corromper a juventude; foi condenado à morte.
Nos diálogos Apologia de Sócrates e
Fédon conhecemos um pouco dessa morte
trágica e
podemos perceber Sócrates como
um verdadeiro homem virtuoso que
não fugiu à morte; que acreditava
na imortalidade da alma e na justiça
divina. O seu imperativo ético
impelia-o à prática do bem, a jamais
retribuir uma injustiça com outra
injustiça. Como já pude mencionar,
seu pensamento
tornou-se o ponto de partida de várias escolas,
das que podemos chamar de “socráticas” por

23 Cf.o diálogo Críton.


24 JONES, Peter (org) O mundo de Atenas. Uma introdução à
cultura clássica ateniense . São Paulo: Martins Fontes, 1997,
p. 111.
23
aproximarem-se de Sócrates no focar dos
problemas por este tratado, destaco os Cínicos e
os
chamados socráticos menores ou Cirenaicos 25.
Resumidamente podemos dizer que a escola
cínica é tradicionalmente atribuída a
Antístenes
(ca. 445-365 a.C.) outros revelam o nome de
Diógenes de Sínope (flc.323 a.C.) como primeiro
cínico. A
escola cínica operou uma aproximação do
pensamento de Sócrates e dos sofistas, sobretudo
de
Górgias, visto que Antístenes foi discípulo de
Górgias antes de seguir Sócrates. O nome cínico se
deve ao fato de que Antístenes ensina junto ao
Cinosarges, ou seja, Pórtico do Cão, daí a palavra
cínicos para os seguidores desta
escola. O cinismo exagerou o
aspecto ascético da personalidade de
Sócrates. A virtude é convertida
na moderação entendida esta como
verdadeira negação de necessidades.
Postula-se a indiferença em relação
aos bens externos. A diferença entre
os sábios e os ignorantes repousa
sobre a capacidade de autodomínio e
desapego aos bens materiais.
O conceito central dos cínicos era a auto-
suficiência do sábio e a partir desta
concepção
formularam críticas às instituições e valores sociais.
Desaconselhavam o casamento em face do amor
livre, o desapego do significado da pólis em
face de uma concepção cosmopolita. Um pacifismo
radical no interior de um cosmopolitismo
igualitário. Pregaram uma desvalorização da
cultura e,
portanto eram avessos à propriedade, à família, à
cidade, ao nomos etc. O seu ideal seria um estado
de natureza sem convencionalismos. Compreendiam
natureza como o locus de uma espontaneidade
sem esforço, glorificando o bom-selvagem 26.
Construíram um jusnaturalismo fundado na moral
da
renúncia.
Os socráticos menores ou Cirenaicos partem
de um ponto de vista aparentemente oposto
ao
dos cínicos. Percebe-se um vínculo com Sócrates
também distante. Sabe-se que o seu fundador,
Aristipo (435-355 a.C.), antes de se vincular a
Sócrates fora discípulo de Protágoras. Os cirenaicos
identificaram o bem com o prazer, hedone,
compreendendo este como satisfação de um desejo.
Em
seu modo de ver a virtude é uma
faculdade de gozar e a sabedoria
significa saber procurar o prazer. Na
ética cirenaica abre-se o caminho
para o postulado de uma auto-
suficiência. Comentam os estudiosos
que esta doutrina veio a cair num
pessimismo motivado pela
experiência deprimente da fugacidade
do prazer, ou seja, o prazer é fugaz,
logo surge a necessidade psicológica
da sua repetição que causa com o
tempo um amortecimento progressivo.
Negou-se a vida quando esta não poderia
oferecer o mínimo de prazer, apresentando
como
saída possível o suicídio, hegesias. O sábio
cirenaico afasta-se de tudo o que não oferece
prazer,
afasta-se, sobretudo de uma
participação política e social.
Conforma-se com o mundo, sem
intenções de reformas nas instituições,
configurando um verdadeiro
conformismo. Compreenderam que a
forma

25 Os cirenaicos foram assim chamados por ser o seu fundador


oriundo da cidade de Cirene.
26 As idéias do cinismo nos fazem lembrar as proferidas por
Rousseau sobre o bom-selvagem.

24
monárquica seria a mais desejável visto não
exigir participação do súdito na vida pública.
Não
conceberam a dicotomia natureza/ norma, mas
afirmaram que nada é justo por natureza e, nesse
sentido, não há outro direito que o direito positivo,
fruto da vontade humana. Eles professavam um
positivismo moral e jurídico que mais tarde será
adotado por Epicuro.
O apogeu dessas duas doutrinas que
contribuíram para posterior formação do
estoicismo e do
epicurismo marca a decadência da pólis grega
como forma
suprema de vida. O extremo
individualismo que surge opera certo desligamento
da felicidade em relação à comunidade e em
relação à tradicional concepção do homem como
bom cidadão.
25
Parte II - A justiça na
concepção de Platão (428 –
347 a.C.)27

“Mas, a
verdade é
que é mais
bem
governada a
polis em
que aqueles
que devem
deter o
poder são
os menos
ansiosos
de poder.
Ocorre o
contrário com aquela cujos
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)

1 - Introdução
Platão nasceu em 427 ou 428
a.C. Filho de uma família da
aristocracia ateniense que se dedicava
à política, foi discípulo de Crátilo que
por sua vez foi seguidor de Heráclito
e, posteriormente, Platão tornou-se
discípulo de Sócrates. Fundou sua
Academia em 387 a.C., nos arredores
de Atenas, em cujo pórtico figurava:
“Não passe destes portões quem não tiver
estudado geometria” . A academia de
Platão durou cerca de um milênio, até
o momento em que Justiniano a
dissolveu em 529 d.C.
Nos dizeres de Truyol y Serra:

“Sócrates
ultrapassou o
relativismo e o
individualismo
dos sofistas, ao
afirmar a
existência de
uma ordem
moral objetiva
de validade
absoluta, não
deixou, apesar
de tudo, um
sistema, que
desenvolvesse
os seus
postulados. Por
sua vez, as
escolas
socráticas
limitaram-se a
destacar
unilateralmente
aspectos,
ocasionalmente
antinômicos do
seu ensino. A
tarefa de
desdobrar em
vasta síntese o
que em
Sócrates era
apenas gérmen,
viria a caber a Platão”. 28
Nesse sentido Platão fornece a primeira
formulação clássica da Filosofia, isto é, a
problemática
do conhecimento, a possibilidade do conhecimento
enquanto realidade. Para isso tem por preocupação
o método na relação direta se é possível o
conhecimento; a verificação se o conhecimento
passa pelos
sentidos ou pela razão; o mundo sensível e o mundo
inteligível como objetos de conhecimento.
Para Platão a Filosofia adquire a função de
crítica dos fundamentos da cultura. A obra
desse
filósofo é uma longa reflexão sobre a
decadência dos costumes atenienses,
tanto do sentido de política como dos
valores e ideais (modelo), contexto
histórico que condenou seu mestre
Sócrates à morte. Por isso afirma-se
que o pensamento platônico é
essencialmente político, isso
considerando a tradição em que ele
se situa e a crise política de seu
tempo. Platão em suas reflexões
analisa as estruturas múltiplas de
sua cidade e suas respectivas
interferências na vida dos homens.
Tal análise é realizada
por meio do diálogo, cuja função seria denunciar
a fragilidade e a ausência de fundamentos das
opiniões dos homens. O papel do filósofo seria,
portanto, o de levar seu interlocutor, através da
dialética (da discussão), a dar luz às idéias, uma
vez que aprender é recordar as formas puras
contempladas pela alma quando livre do corpo.
Percebe-se então que Platão abraça o problema

27 Estetexto foi elaborado em conjunto pelos professores


Wellington Trotta e Clara Maria C. Brum de Oliveira.
28 P.119.

26
socrático da superação do cepticismo gnosiológico
(impossibilidade do conhecimento) dos sofistas,
isso a partir da aplicação do método socrático
(maiêutica), fonte de sua dialética.
No processo de buscar a essência pelo
método da discussão, Platão apela para o
mito como
recurso. E, sendo assim, qual a função do mito no
pensamento platônico? “O eros filosófico de Platão
voa jubilosamente nas asas do mito,
comprazendo- se no símbolo e na fábula”
(Truyol y Serra, 120). O mito exerce
função importante em seus diálogos,
uma vez que a tradição mitológica
mantém-se como referência cultural
importante. Trata-se de um discurso
indireto, enriquecido com símbolos
para ajudar na compreensão dos
objetos, coisas e idéias complexas. E
partindo desse princípio Platão
concebeu o mundo em uma realidade
dualista: de um lado, o mundo
material visível com objetos
particulares,
concretos, imperfeitos, mutáveis, perecíveis. Mundo
este que denominou de mundo das sombras, em
que o conhecimento é superficial, imediato e
incompleto. De outro lado, concebeu o que chamou
de
mundo inteligível ou mundo das idéias com
realidades abstratas, perfeitas, eternas, imutáveis,
inteligíveis.
Nesse mundo inteligível
encontramos as idéias (formas puras)
das coisas, ou seja, a natureza
essencial das coisas. A partir desse
princípio, para Platão, a essência é a
-histórica, ou seja, trata-se de uma
forma permanente na qual persiste às
mudanças. A essência possui
existência prévia aos objetos. Quando
pretendemos conhecer algo,
descobrimos a essência imutável
deste algo que está sendo investigado
(Manfredo, 1993: 30).
Em contrapartida as coisas singulares que
existem no mundo são sombras das idéias
que
configuram formas primordiais ou arquétipos
eternos. É por isso que os sentidos não oferecem a
possibilidade do conhecimento verdadeiro e sim
aparências enganosas, apenas doxa. O ponto de
partida é o senso comum, a mera
opinião para um reexame crítico. A
esse respeito o próprio Platão
comenta que:

“A Filosofia
corresponderia a um
método para se atingir
o ideal em todas as
áreas pela superação do
senso comum,
estabelecendo o que
deve ser aceito por
todos, independente de
origem, classe ou
função. É isso que
significa a
universalidade da
razão. A prática
filosófica envolve
assim, em certo
sentido, o abandono do
mundo sensível e a
busca do mundo das
idéias” (A República,
Cap. VI e VII).
Portanto, as idéias (formas puras)
constituem a verdadeira realidade e na sua
hierarquia,
coroa-se a idéia do Bem. O fim
supremo do homem é realizar, o
quanto possível, o Bem, vencendo os
sentidos por intermédio de uma vida
virtuosa fundada no autêntico saber.
Importa subordinar os sentidos à
razão, porque essa hierarquia
ontológica existe também na
esfera axiológica conseqüentemente.
Essa relação hierárquica influenciará
seu pensamento político e diretamente
suas construções éticas.

27
A República (Politeia), o
Político (Politikós) e As Leis (Nomoi)
são diálogos que nos oferecem a
medida da importância da filosofia
político-jurídica no pensamento de
Platão. O tema da justiça, da melhor
forma de vida em comunidade,
constitui o eixo em torno do qual
gira a sua especulação
filosófica, o que nos revela a sua Carta VII. Esta
famosa epístola descreve o processo da vocação
político–filosófica de Platão e sua desilusão com a
vida pública, visto que os homens públicos são
dominados pelos interesses particulares.
A realidade política de
Atenas marcada pelas
particularidades, por injustiças e
corrupções, o fez desistir de ingressar
na vida pública. Platão compreendeu a
corrupção como um dos fenômenos
de sua época e acreditou que a
Filosofia poderia resgatar a ordem e
a justiça nas relações sociais. O seu
programa visava instaurar uma
política fundamentada no saber.
Seu projeto configurava uma
concepção pedagógica da comunidade. A obra a
República contempla a idéia de uma comunidade
alternativa àquelas existentes. A
relevância da educação no
pensamento de Platão é outra marca
de seu pensamento. Para ele uma
sociedade deveria ser edificada a
partir de laços integrativos. Para
tanto destaca a importância da
educação, pois de fato suas
implicações logicamente que obrigam
a criação de uma identidade
cultural, portanto política no sentido
de unidade comunitária. Nessa
perspectiva Platão é o primeiro
pensador a defender o caráter
público da educação, entregando ao
poder público comunitário a
responsabilidade de sua execução.
Como o sentido da educação é comunitário
e a política visa por meio daquela
estabelecer
laços integrativos no interior da polis, a razão é a
medida de tudo que possa ser perceptível pela
inteligência e, nesse contexto, a justiça afigura-se
como a virtude suprema do cidadão, o fundamento
da polis. Para Platão sua carência propicia a
degeneração dos regimes políticos. A obediência às
leis
configura, na concepção grega um quanto de
harmonia, isto é, como ordem do cosmos. Partindo
dessa
premissa temos que compreender o
paralelo que estabeleceu entre a
tripartição da alma e a sua teoria da
polis.

3 - Relação entre alma e cidade: o governo da


razão
Na República, livro IV,
Platão concebe a alma como
tripartite, ou seja, a mesma se divide
em uma parte racional, e outra
irracional que, ao seu turno se
subdivide em irascível (impulsos e
afetos) e concupiscente (necessidades
elementares). A parte racional é
regida pela sabedoria ou prudência,
capaz de estabelecer o que convém a
cada um. A parte irascível
corresponde à fortaleza e coragem
que permitem seguir os imperativos
da razão. Já a parte da concupiscência
está relacionada ao sentido das
necessidades elementares. As duas
dimensões da parte irracional da
alma devem se submeter à parte
racional através da virtude da
temperança ou moderação. Com tais
virtudes surge a virtude da

28
justiça que estabelece o equilíbrio de cada uma
das faculdades em seu âmbito próprio e função
específica.
Estabelecendo uma analogia da alma com a
cidade, Platão apresenta o que podemos
chamar
de concepção organicista de sociedade . A Cidade
constaria de três classes diferenciadas por suas
funções próprias. A primeira seria a dos
magistrados ou governantes, guiados pela
sabedoria; a
segunda dos guerreiros que defenderiam a polis
interna e externamente, cultivando a fortaleza; a
terceira e última dos artesãos
(artífices), comerciantes, agricultores e
aqueles que constituiriam a base
econômica da cidade. As classes dos
guerreiros e dos artífices aceitam o
domínio dos governantes pela ação
da temperança ou moderação. Assim
como na alma, a justiça apresenta-se
primordialmente para garantia do
funcionamento do todo e da
manutenção da hierarquia baseada
nas tarefas específicas de cada
classe.
O seu pensamento político inspirou-se no
postulado segundo o qual a parte se
subordina ao
todo, o que significa dizer que as classes se
subordinariam ao bem comum da cidade. Platão
opera
uma inversão na concepção
individualista da sofística quanto à
relatividade das coisas, buscando o
sentido de universalidade pela
superação da individualidade absoluta.
Nesse modo de ver, o indivíduo
se situa no plano coletivo e não em uma
autonomia absoluta perante a polis. Esta existe
para tornar
possível a vida humana. Há uma
divisão de trabalho que permite
coordenar as diversas aptidões
visando o bem comum. Destarte o
horizonte do indivíduo seria o
horizonte do cidadão. Faz-se mister
ressaltar que as classes da República
não se baseiam em uma ordem
hereditária. O ponto fundamental
repousa sobre as aptidões pessoais dos membros
da polis, desenvolvidas pela cidade através do
processo educacional orgânico-administrado. A
aristocracia de Platão é uma aristocracia do espírito
–o
saber legitima o poder. Ademais, Platão equiparava
a mulher ao varão observando uma educação
idêntica para ambos os sexos. Platão em seu projeto
político-pedagógico suprime a instituição família e
a propriedade privada para as duas
classes superiores dos magistrados e
dos guerreiros a fim de afastar
interesses particulares que
pudessem conduzir à corrupção.
Somente as duas classes superiores
teriam participação na vida pública,
enquanto que o complexo dos artífices
estaria limitado à vida na esfera
privada.
Na cidade platônica, governada pelo sentido
da filosofia, não seria necessário o direito
positivo,
pois os magistrados deveriam decidir, em cada
caso particular, o que a justiça exigiria segundo as
circunstâncias. Esse pensamento não perdura nos
diálogos considerados tardios, O Político e As leis,
em que Platão, mais velho,
desiludido com as experiências na
Sicília, admite a necessidade de fixar
princípios de governo em leis
positivas. Reconhece a importância da
família e da propriedade privada,
evitando-se o excesso de riqueza e
pobreza, pois no seu entender seria a
causa de toda a discórdia
civil. A cidade descrita na obra As Leis se
afigura como uma teocracia em que os
magistrados

29
assumem a dignidade de intérpretes da vontade
divina. Em O Político, apresenta a necessidade de
uma legalidade. Há uma clara
mudança de perspectiva em Platão
mais velho, consciente da
imperfeição dos homens.

3 - Organização Política da Cidade


Platão nos oferece duas classificações
distintas das formas de governo, uma na
República,
livros VIII e IX e outra no Político. Na República
descreve cinco formas. Entretanto, somente uma
assume o caráter de justa e legítima: a
aristocracia do espírito ou governo dos sábios.
Todas as
restantes são formas corruptas que
não permitem a realização da justiça.
Se os guerreiros tomarem o poder
teremos uma timocracia ou timarquia
que significa governo da honra,
caracterizado pela ambição do espírito
belicoso. Esta forma poderia conduzir
a uma oligarquia que liga o poder à
fortuna. Todavia, o enriquecimento de
poucos e a extrema pobreza de
muitos poderá gerar a democracia, o
governo da multidão, que aspira a
igualdade absoluta, desrespeitando
hierarquias naturais e legítimas.
Dessa forma, a democracia,
desemboca na desordem, que acaba
por ser aproveitada por algum
indivíduo ambicioso e audacioso,
capaz de instaurar uma tirania que
desvelaria um caráter violento e
desenfreado. Os seus excessos
provocariam a reação dos mais
decididos e com seu derrube encerra-
se o ciclo constitucional, ou seja, a
dinâmica política.
No Político apresenta dois
critérios de formas de governo: o
número dos que participam do
governo e a legalidade ou ilegalidade
dos mesmos. Encontramos três
formas legais e três ilegais de
governo. As legais são a monarquia
ou realeza, a aristocracia e a
democracia. As formas corruptas
são: a tirania, a oligarquia e a
democracia (demagogia). Na
verdade, Platão confere maior rigor
sistemático às teorias de Heródoto e Eurípides. Nas
Leis, acrescenta um novo termo: uma forma mista
de governo, ou seja, uma mistura de
monarquia e democracia que se
apresenta como a única capaz de
assegurar a paz social. Esta
concepção assimilada por
Aristóteles influenciará seu
pensamento político.

4 - A idéia de Justiça
A idéia socrática de que a Cidade (o poder
político), na qual a família e o indivíduo
formavam
um todo harmônico, permanece na
obra A República e se torna o
fundamento da idéia de justiça como
virtude, que significa a observância
permanente da lei e, ao mesmo
tempo, como idéia da razão. O
sentido de ordem política ideal é o de
justiça que correlaciona
intrinsecamente lei e justiça. As leis
são justas porque são editadas por
quem pratica a virtude da justiça e a
conhece em sua estrutura para além
do plano das aparências, isto é, numa
imagem divina. Nesse sentido
encontramos a ligação entre
as duas perspectivas do conceito de justiça em
Platão: justiça como idéia (forma pura) e justiça
como
virtude.

30
Segundo Joaquim Carlos Salgado, 29 o
pensamento platônico sobre a justiça é o
ponto de
partida para uma reflexão sobre a
idéia de justiça como igualdade.
Platão apresenta duas perspectivas de
sua concepção de justiça na obra a
República, a saber: a justiça como
idéia e a justiça como virtude ou
prática individual. Nas primeiras
obras, Platão apresenta o conceito de
justiça comprometido com a
idéia de virtude do cidadão ou do filósofo. Ao
relacionar o célebre livro VII, da República, que
narra a
Alegoria da Caverna em conjunto com
sua teoria da reminiscência,
compreende-se com maior clareza o
que o fundador da Academia
assinala na Carta VII, isto é, “só
conhece a justiça àquele que é justo” , ou
seja, só conhece a justiça àquele que
a compreende na perspectiva divina,
pelo conhecimento da alma e não dos
sentidos.
Platão enfatiza o agir justo na medida em
que considera o outro como portador dos
mesmos
direitos para a superação da ótica egoísta. O
outro nos desvela uma dimensão exterior e o
comprometimento do homem com a sua polis.
Tanto na República quanto no Górgias, Platão
enfatiza
através de seu personagem, Sócrates,
que fazer a justiça é melhor que
recebê-la, e sofrer a injustiça é
melhor que praticá-la. Na República,
exprime que o melhor modo de viver
é o viver praticando a justiça,
correlacionando atos justos com alma
sadia. A justiça é uma virtude que
fundamenta e fortifica a alma. Embora
no Críton, a concepção de justiça se
apresente como a conformidade das
ações com a lei, a essência da idéia
de justiça platônica não se limita
somente a esse entendimento.
Na República, livro I, Platão expressa a
difusa idéia de justiça em um conceito
preciso a partir
do entendimento do poeta Simônides, 30 que
afirmava a idéia de justiça como dar a cada um o
que lhe
é devido. Platão amplia essa idéia
para além da simples relação entre
particulares e a relaciona
diretamente com a estrutura de sua
cidade. No dizer de Salgado:

“Dar a cada um
o que lhe
pertence, o que
lhe é adequado,
explicita-se na
estrutura do
Estado
Platônico,
dividido em
planos,
segundo as
aptidões de
cada um de
seus
participantes, de
modo
semelhante ao
que ocorre com
a alma humana,
na sua
concepção. O
que é devido a
cada um, o que
lhe pertence por
natureza é o
posto que
corresponde às
suas aptidões e
a função que
cada um, por
força dessas
mesmas
aptidões, pode
desempenhar no
Estado”.31

Platão concebe a justiça


como uma preocupação política que
repousa na idéia de igualdade; uma
igualdade geométrica, na medida em
que garante a cada um o que lhe é
devido, segundo suas aptidões. O seu
conceito de justiça assume também o
caráter de universalidade enquanto se
vincula à idéia de harmonia do
cosmos. A justiça é um
compromisso do cidadão com a
Cidade; dedicação ao bom
funcionamento da vida coletiva a
partir das aptidões naturais de cada
um. Sendo assim, Platão
29 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justi ça em Kant. Seu
fundamento na liberdade e na i gualdade. Belo Horizonte: UFMG,
1995, pp.
24-29.
30 PLATÃO. A República, 332c, 433a, 433e.
31 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant. Seu
fundamento na l iberdade e n a igualdade. Belo Horizonte: UFMG,
1995, p.
27 e Platão. A República, 433ª

31
elabora duas vertentes do conceito de justiça: a
justiça como idéia norteadora do direito e da lei, e a
justiça como virtude norteada e determinada pela lei.
Ou dizendo de outro modo, a idéia de justiça e a
concepção da justiça como hábito de cumprir o
direito .
Por fim Platão desenvolve um conceito de
justiça retributiva e transcendente. Vejamos.
Na República, livro X encontra-se o mito de
Er que consagra o sentido de justiça
retributiva e
transcendente. O mito narra a
história de um guerreiro chamado Er
que vivencia a experiência da justiça
como recompensa no além-túmulo.
Er, natural da Panfília, na Ásia
Menor, bravo soldado que morreu em
combate, jaz na pira funerária dez
dias após sua morte. Subitamente,
volta à vida e narra o que viu no
mundo além-túmulo. Disse que,
depois de morto, viajou até uma terra
estranha onde o solo era rasgado por
dois grandes abismos. Por cima, havia
dois buracos correspondentes no Céu.
Entre os abismos estavam sentados
os juízes que julgavam todas as
almas e as marcavam com um sinal:
os justos entravam pelo abismo da
direito, para o Céu; os injustos
entravam pelo abismo da esquerda,
que conduzia ao mundo subterrâneo.
Er não foi autorizado a entrar em
qualquer dos buracos, mas foi
escolhido para levar uma mensagem
aos mortais. Observou que as almas
dos injustos passavam por uma longa
experiência vivenciando dez vezes
mais todo o mal que causaram. Este
é o sentido retributivo da justiça em
Platão.
As almas dos justos falavam
em felicidade e alegria, recompensas
de uma vida virtuosa. As almas
vindas dos subterrâneos, após
expiarem todo o mal que praticaram
e vivenciar as dores do
arrependimento, eram encaminhadas
ao trono das Parcas: Láquesis,
Átropo e Cloto para receberem novas
vidas como mortais. Cada alma
poderia escolher a vida que desejava,
algumas eram sensatas
outras tolas. Todas, após suas escolhas, bebiam a
água do rio do esquecimento, de modo que
perdessem todas as recordações da
vida passada, para renascer em novas
vidas. Muitas praticavam os mesmos
erros. A justiça para Platão não é
deste mundo, mas se configura como
a recompensa para aquele que escolhe
a vida moral e conforme ao direito.

5 - O projeto platônico: uma utopia?


Sabemos que Aristóteles, no
livro II, da Política, apresenta uma
reflexão crítica que considera a
República e As Leis como projetos
de cidade perfeita e as relaciona
com as supostas utopias de
Hipodamo de Mileto e de Fáleas da
Calcedônia. Entretanto, temos que
ressaltar que a intenção de Platão não
era edificar um mundo social irreal,
utópico, mas construir uma crítica aos
fundamentos de sua cultura Como
essa mesma cultura se estruturava, e
dentro dos limites da imaginação, a
pretensão de Platão era descrever uma
comunidade possível na perspectiva
de novos valores comandados pela
retificação dialética da educação. Considerar a
República uma utopia dependerá do conceito mais
ou
menos amplo que se tenha das idéias contidas ao
longo de suas linhas.

32
O idealismo político de Platão
exerceu grande influência na
posteridade. Plotino tentou fundar uma
cidade segundo o modelo da
República com a ajuda do Imperador
Galeno, projeto este que ficou
inacabado por ocasião do falecimento
do monarca. Através dos discípulos
de Plotino, o platonismo alcançou os
Padres da Igreja Grega. Santo
Agostinho incorporou o platonismo
(teoria das idéias) na concepção cristã
do mundo. A sua doutrina
determinou a orientação do
pensamento medieval até a recepção
do aristotelismo por Alberto Magno e
Tomás de Aquino, no séc. XIII,
permanecendo ainda através da
corrente franciscana da Escolástica.
A influência platônica no
Renascimento propiciou a abertura de
várias Academias a começar por
Florença (1459), através de Cosme de
Médices e dirigida por Marsílio
Ficino (1433-99). Houve clara
influência sobre a obra Utopia de
Tomas More (1478-1535) e sobre o
conjunto do pensamento de
Campanella (1568-1639). Nos séculos
XVII e XVIII houve grande influência
na Inglaterra, notadamente na Escola
de Cambridge, com Henry More
(1614-1687), mais tarde
parcialmente ofuscada pelo
predomínio do utilitarismo e do
evolucionismo no séc. XIX.
Embora Platão esteja distante
de nossa realidade, longe deste
mundo nada simples, complexo por
mecanismos até em certa medida
desnecessários, pode-se ler Platão
dentro da dimensão crítica dos
costumes, dos valores e dos
hábitos constituídos por uma visão
utilitarista dos interesses imediatos.
Mesmo não nos parecendo próximo,
Platão, através de seu olhar idealista,
ajuda-nos a vislumbrar uma
possibilidade meio que perdida: a
reconstrução de uma nova estrutura
social a partir de uma reestruturação
do homem para essa nova sociedade,
tendo por fundamento o ideal de
justiça para além das aparências e do
sentido mesquinho que por ora corrói
o tecido da vida coletiva.

Trasímaco -- “Certamente que cada governo


estabelece as leis de acordo com a sua
conveniência: a
democracia, leis democráticas; a
monarquia, monárquicas; e os outros,
da mesma maneira. Uma vez
promulgadas essas leis, fazem saber que
é justo para os governos aquilo que lhe
convém, e castigam os transgressores, a
título de que violaram a lei e cometeram
uma injustiça. Aqui tens, meu excelente
amigo, aquilo que eu quero dizer, ao
afirmar que há um só modelo de justiça
em todos os Estados - o que convém
aos poderes constituídos. Ora estes é que
detêm a força. De onde resulta, para
quem pensar corretamente, que a justiça
é a mesma em toda parte: a conveniência
do mais forte.” (p. 24).

Sócrates – “Por este motivo, por


conseguinte, os homens de bem não
querem governar nem por causa das
riquezas, nem das honrarias, porquanto
não querem ser apodados de
mercenários, exigindo abertamente o
salário do seu cargo, nem de ladrões,
tirando vantagens da sua posição. Tão-
pouco querem governar por causa das
honrarias, uma vez que não as estimam.
Força é, pois, que sejam constrangidos
e castigados, se se pretende que eles
consistam em governar; de onde vem
que se arrisca a ser considerado uma
vergonha ir voluntariamente para o
poder, sem aguardar a necessidade de
tal passo. Ora o maior dos castigos é
ser governado por quem é pior do que
nós, se não quisermos governar nós
mesmos. É com receio disso, me

33
parece, que os bons ocupam as
magistraturas, quando governam; e então
vão para o poder, não como quem vai
tomar conta de qualquer benefício, nem
para com ele gozar, mas como quem vai
para uma necessidade, sem ter pessoas
melhores do que eles, nem mesmos
iguais, para quem possam relegá-lo.
Efectivamente, arriscar- nos-íamos, se
houvesse um Estado de homens de bem,
a que houvesse competições para não
governar, como agora as há para alcançar
o poder, e tornar-se-ia então evidente que
o verdadeiro chefe não nasceu para velar
pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos. De
tal maneira que todo aquele que fosse sensato preferiria
receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar
ele os outros. Portanto, de modo algum concordo com
Trasímaco, em que a justiça seja a conveniência do
mais forte. Mas esse ponto havemos de o examinar de
novo”. (pp.38-39) 32
32 Platão. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian:
1993.

34
Parte III - A justiça na
concepção de Aristóteles
(384-322 a.C.)

“Os
verd
adeir
os
praze
res
do
hom
em
são
as
açõe
s
conf
orme
a
virtude”
(Aristóteles)
1 - Introdução

Aristóteles foi o patriarca das Ciências


Naturais, discorreu sobre História da
Filosofia e
psicologia. Desenvolveu estudos sobre as leis da
argumentação e da lógica. Este grande pensador
nasceu em Estagira, colônia grega da Cálcida, mar
da Trácia. Seu pai Nicômaco foi médico da corte de
Amintas II, em Pela capital da Macedônia. Aos 17
anos ingressou na Academia de Platão (este já
sexagenário) em Atenas. Por essa
ocasião já possuía grande saber e
era conhecido por justamente
apresentar o que hoje denominamos
de conhecimento enciclopédico.
Após a morte de Platão em 347 a.C., casou-
se duas vezes e dedicou-se à família. Em
342 a.C.
foi nomeado tutor de Alexandre 33, o Grande, pelo
Rei Filipe da Macedônia. Durante esse período
estudou política e os assuntos de governo.
Alexandre financiou suas pesquisas sobre a flora e a
fauna
no Mediterrâneo. Embora esse
pensador tenha sido tutor de
Alexandre, surgiram divergências
políticas que se tornaram cada vez
maiores entre o discípulo e o
mestre, pois Alexandre sonhava
com a
unificação dos gregos, ou seja, uma fusão cultural.
Por outro lado, Aristóteles defendia a estrutura da
pólis tradicional. Narra a tradição que foi o
assassinato de Calístenes, sobrinho de Aristóteles,
a
pedido de Alexandre, que pôs fim à relação entre
ambos. Por volta de 335 a.C., fundou o seu liceu
no
bosque sagrado de Apolo – nordeste de Atenas.
Ensinava passeando à sombra das árvores do liceu,
daí seus discípulos serem chamados de
peripatéticos, derivado da palavra peripatos que
significa um
claustro34 que rodeava o liceu. Aristóteles escreveu
em torno de 400 trabalhos sobre os seguintes
temas: educação, observações
científicas, ética, política e
pensamentos. Dessa enorme
produção sobreviveram apenas 50 ou
49 obras. Quando faleceu, em Cálcis,
na Ilha de Eubeia, seus escritos e sua
biblioteca passaram às mãos do
discípulo Teofrastos e,
posteriormente, ao aluno deste, Neleu
e, por conseguinte, aos herdeiros de
Neleu, que temendo o ataque dos
príncipes tiranos de Pérgamo,
enterraram os escritos em um
subterrâneo. Quando morreram
perderam-se os manuscritos de
Aristóteles.
Antes do ano 100 a.C., os herdeiros de
Neleu descobriram e venderam ao armador
35 de livros

Apelicon de Teos, que os publicou


com inúmeros erros, em 86 a.C. Por
ocasião da tomada de Atenas pelos
romanos, os escritos passaram às
mãos do tirano de Sila e,
posteriormente, às mãos de

33 „Se a meu pai devo a existência a meu preceptor devo a


arte de me saber conduzir. Se governo com alguma glória, a
ele
[Aristóteles] sou devedor”. In: Col. Os Pensadores.
34 Casa religiosa com clausura, ou seja, recinto fechado.
35 Aquele que constrói navios mercantes; enfeita igrejas, salões
de festas, ornamenta livros, etc.
35
Andrônico de Rodes que os catalogou
e os editou. Os primeiros
comentadores das obras de Aristóteles
foram: Alexandre de Afrodisías (séc. II
d.C.); os neoplatônicos: Porfírio (séc.
III d.C.), Temístio (séc. IV d.C.),
Simplício (séc. IV d.C.) e Filopon (séc.
IV d.C.).
Aristóteles iniciou o que
entendemos por estudo dos
problemas filosóficos através do
exame crítico das opiniões de seus
antecessores. Houve uma grande
independência doutrinal em relação a
Platão. Efetivamente eram homens de
temperamentos diferentes, de
procedência social distinta, sem
mencionar a tradição familiar e a primeira
formação. Podemos considerar sua Metafísica como
uma
obra que desvela uma história da filosofia. Essa
abordagem parece também na Política, quando
analisa as teorias anteriores acerca da convivência
humana.
Aristóteles rejeitou o dualismo platônico,
pela dificuldade em explicá-lo e apresentou
uma
concepção diferente da realidade. Aristóteles
demonstrou um realismo moderado e um
espírito
analítico apegado aos fatos. Platão havia separado as
essências 36 dos objetos; Aristóteles compreendia
que as essências só existiam em uma
inteligência, ou seja, no entendimento
humano sobre as coisas, em nosso
espírito que abstrai das coisas em
estado de individualidade. O mundo
platônico é uma ficção, as coisas
individuais e perecíveis deixam de ser
meras “sombras ilusórias”.
Aristóteles foi o fundador da
física experimental, ou seja, a ciência
que estuda os fenômenos do mundo
físico. Substituiu o idealismo de
Platão por um empirismo que
buscava seu ideal numa concepção
de felicidade alcançável pela ação,
reflexão e experiência e que se
configurava no conceito de justiça.
Ao contrário de Platão, Aristóteles não
define o direito a partir da idéia de
justiça, mas define a justiça em
função do Direito, que por sua vez,
torna-se objeto da justiça e é
somente possível no interior de uma
pólis.
Aristóteles apresentou uma
divisão do conhecimento. Entendeu
o conhecimento como processo
cumulativo partindo da sensação
(prazer/sentidos) em direção à
memória (retenção dos dados), em
seguida à experiência (capacidade de
estabelecer relações entre os dados
sensoriais), à arte/técnica (regras –
capacidade de ensinar), alcançando
por fim o nível da teoria/ciência que
chamou de episteme (conhecimento
de conceitos e princípios). Esse
conhecimento estaria subdividido em:
conhecimento prático (praxis) e
nesse campo encontramos os
estudos sobre ética e política;
conhecimento produtivo (poiesis),
estudo da estética; conhecimento
teórico que por sua vez se divide em:
física, que estuda o mundo natural e
estudos matemáticos, que trata da
quantidade e do número; a
filosofia primeira ou metafísica37 estuda o ser
primeiro ou causa primeira.

36 Essência,forma – mundo inteligível.


37 Metafísica: palavra de origem grega, usada para nomear o
conjunto de textos de Aristóteles. Esta não foi usada por ele
e sim a expressão Filosofia Primeira, que denota com maior
precisão a sua filosofia: a ciência dos primeiros princípios e
das primeiras causas.
36
Aristóteles apresenta a Lógica ou analytika
como um saber instrumental, o que desvela
a
importância do método. Assim, denominou
Organon, os tratados de lógica em seu conjunto.
Para
esse filósofo, a realidade sensível é
também inteligível e, nesse sentido,
o entendimento humano é capaz de
descobrir a idéia oculta no objeto
sensível, por meio da abstração. O
conhecimento tem seu início com a
experiência. Dentro dessa concepção
da inteligibilidade da realidade
sensível, formulou sua teoria
teleológica segundo a qual todas as
coisas existem para um fim e todas
as coisas alcançam
a perfeição na medida em que cumprem esse fim.
Esta idéia resume-se no princípio de que o todo é
anterior às partes, no sentido lógico
e metafísico, pois cada objeto
particular é compreensível em
função do todo que o pressupõe. Esse
finalismo refletirá em sua concepção
ética e política.

2 - A política, a ética e a justiça.


Para Aristóteles, a política é a ciência da
felicidade humana, uma ciência prática que
busca o
conhecimento como meio para a
ação e que se divide em ética e
política. A felicidade em seu modo
de ver significa certa maneira de viver
específica do homem, animal social
por natureza, resultado do meio em
que vive e destinado a desenvolver
suas potencialidades na vida em
sociedade. O seu objetivo nesta obra
era descobrir a maneira de viver que
conduz à felicidade humana;
descobrir a forma de governo e as
instituições sociais capazes de
assegurar aquela maneira de viver.
O bem é a plenitude e todo
ser tende para esta plenitude. O
homem ao longo da vida encontra
uma hierarquia de bens até alcançar o
bem supremo que coincide com o seu
fim último, a felicidade. O meio para
consegui-la são os hábitos ou
disposições do homem graças aos
quais saberá realizar as
suas obras; são as virtudes. A virtude consiste no
meio entre a falta e o excesso, ou seja, consiste em
disposições resultantes do esforço do homem para
submeter os seus atos à razão e aos fins supremos
da sua natureza.
O objeto de pesquisa da Política38 era o
estudo das constituições das pólis39. A
obra está
dividida em três partes, a saber: livros I, II e
III, onde trata da teoria do Estado em geral e da
classificação das várias espécies de
constituições; livros IV, V e VI, que
tratam da política prática, ou seja,
estuda a natureza das constituições
existentes e dos princípios para seu
bom funcionamento;
livros VII e VIII, onde examina a política ideal. O
estilo de Aristóteles se desvela em suas próprias
palavras a esse respeito, no livro II,
cap. V, §4 - 5: “o método de quem
estuda filosoficamente qualquer
matéria, e não apenas seu aspecto
prático, consiste em não negligenciar
ou omitir qualquer detalhe ”.
Aristóteles aprofunda os ensinamentos de
seu mestre Platão ( República) na obra
Ética a
Nicômaco, o mais importante tratado de moral
dentre os quatro que escreveu sobre moral ( Ética
a
38 Acrescenta-se a esta obra a República dos Atenienses ou
Constituição de Atenas, descoberto em 1891.
39 Pólis ou cidade-estado: nova forma de convivência
centrada na ágora (praça pública) para o debate sobre
interesses
comuns. Surge a figura do cidadão, aquele
que fazendo uso público de sua razão,
delibera conjuntamente aos seus pares os
destinos da cidade.
37
Nicômaco, Ética a Eudemo, Grande Moral e Tratado
das virtudes e dos vícios ). 40 A sua teoria ética foi
elaborada sobre a base das estruturas morais
vigentes na comunidade grega do séc. V a.C. De
um
modo geral, podemos dizer que a sua teoria
apresenta o procedimento do homem prudente
como
válido, o valor da opinião dos homens mais velhos e
o indispensável valor da experiência da vida e dos
costumes da cidade para a elaboração de qualquer
Filosofia.
Diferente de Platão, Aristóteles humanizou o
fim último, ou seja, o fim último foi
afirmado no
plano terrestre. Por isso, o ético em Aristóteles é
entendido a partir do ethos41 (do costume) da
maneira
concreta de viver vigente na sociedade. É
exatamente o ethos aristotélico que funciona como
elo entre
a esfera jurídica e a esfera política. A ordem
jurídica e a ordem política pressupõem o ethos.
Aristóteles escreveu a Ética a
Nicômaco na fase em que vivia em
Atenas, organizando-a em 10
capítulos subdivididos em pequenas
partes. Sabe-se que esta obra refere-
se ao segundo curso que ministrou e
que fora redigido entre 334 e 333 a.C.
A sua ética compreende duas
categorias de virtudes,
a saber: as virtudes morais, fundamentadas na
vontade e as virtudes intelectuais, baseadas na
razão.
Como exemplo de virtudes morais temos: a
coragem, a generosidade, a magnificência 42, a
doçura, a
amizade e a justiça. As virtudes intelectuais ou
dianoéticas 43 são: a sabedoria, a temperança, a
inteligência e a verdade. Uma ação pode ser
considerada como justa quando realiza o equilíbrio
das
virtudes morais e quando alcança as virtudes
intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça,
assim
como, a verdade é o objetivo da ação intelectual.
Em sentido lato, a justiça 44 configura o exercício
de
todas as virtudes, observando-se a
instância da alteridade. Em sentido
estrito, encontra-se como uma virtude
ética que implica o princípio da
igualdade.
Nesse sentido, Aristóteles inicia sua ética a
partir da realidade social de sua época. O
ponto
central torna-se o conceito de
atividade; atividade no sentido de que
o homem deve realizar ao máximo
suas disposições ou aptidões. O
homem deve buscar esse
aperfeiçoamento para com isso
alcançar a
felicidade. Este pensador enfatiza que o cultivo da
inteligência é o bem supremo, o summum bonum.
Sua ética é denominada de ética das virtudes ou
ética eudemônica, porque enfatiza a busca pelo bem
viver e pela felicidade, no sentido estrito de pleno
desenvolvimento das disposições naturais. O
homem deve desenvolver suas aptidões para
alcançar o seu fim ( télos), sua perfeição.
Eudemonia e

40A Ética a Nicômaco ou Nicomaquéia foi assim chamada


por ter sido, provavelmente editada por Nicômaco, filho de
Aristóteles. Ética a Eudemo, por ter sido
editada ou redigida pelo seu discípulo deste
nome, uma refundição da anterior. A Grande
Ética ou Ética Maior, um resumo posterior.
Truyol y Serra, p.132.
41 Ethos do grego costume, uso, característica. Significa
caráter, modo de vida habitual. Aquilo que é característico e
predominante nas atitudes e sentimentos dos
indivíduos que pertencem a uma comunidade
e que marca suas realizações ou manifestações
culturais. Em Platão é o resultado do hábito
(Leis, 792e); em Aristóteles (Ética a
Nicômaco, 1139a) é mais moral do que
intelectual.
42 Grandiosidade, esplendor, suntuosidade.
43 Diánoia: entendimento. Em Aristóteles é usada como um
termo geral para atividade intelectual. Noético (gr) relativo ao
pensamento; noetikos – inteligente.
44 Cf. livro V da Ética a Nicômaco.

38
télos estão intrinsecamente ligados formando a base
da ética do pensamento de Aristóteles, uma é tica
imanente da felicidade terrestre.
Importa observar que a teoria moral de
Aristóteles é aristocrática; uma moral que
atinge a elite,
para homens sábios, felizes e materialmente
privilegiados, mas que exclui crianças, escravos
e
trabalhadores manuais. Platão e Aristóteles
concebiam a escravidão como instituição natural
que se
justificava pela suposta incapacidade de certos
homens para se autogovernar. Estes devem se
submeter a outrem. Sob o ponto de
vista econômico, Aristóteles diz que
o escravo é um instrumento
indispensável na produção dos bens.
Na verdade, três bens constituem a
felicidade para Aristóteles, são bens
interiores à alma, a saber: a
sabedoria, a virtude e o prazer
(recompensa natural da vida
virtuosa). Este pensador considera
ainda como importantes: a amizade,
a saúde, a posse de bens (inclui-se
aqui o escravo), a sorte e os dons.
O conceito de eudemonia vincula-se ao
conceito de justiça apresentado por Platão
na obra A
República. Aristóteles também compreende a noção
de justiça como uma virtude 45 que precisa ser
praticada constantemente46 e não pode ser tomada
como aquisição contínua. 47 A justiça é um exercício
político. No livro II-6, da Ética a
Nicômaco, Aristóteles apresenta o
sentido do conceito de virtude como
hábito, ou seja, algo construído, algo
que temos em potencial. A natureza
oferece as condições de
possibilidades para que o homem
possa desenvolver suas aptidões
conforme sua essência racional. A
justiça enquanto um valor ético se
desvela em nossos atos. “Toda
virtude e toda técnic a nascem e se
desenvolvem pelo exercício”. 48
Observa-se que a prática da
virtude não se confunde com um
mero saber técnico, não basta a
conformidade, exige-se a consciência
do ato virtuoso. O homem
considerado justo deve agir por força
de sua vontade racional. Na Ética a
Nicômaco, Aristóteles enumera três
condições para que um ato
seja virtuoso: 1. O homem deve ter consciência da
justiça de seu ato; 2. A vontade deve agir motivada
pela própria ação; 3. Deve-se agir
com inabalável certeza da justeza
do ato. As virtudes são disposições
ou hábitos adquiridos ao longo da
vida e se fundamentam na idéia de
que o homem deve
sempre realizar o melhor de si. A virtude será uma
espécie de meio termo, de termo médio entre os
extremos: o excesso e a deficiência.
Para Aristóteles, a justiça é uma virtude que
só pode ser praticada em relação ao outro e
de
modo consciente. O objeto da justiça é realizar a
felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça,
poderá
ocorrer por falta ou por excesso.

45
Disposições constantes do espírito, as quais por esforço de vontade
inclinam à prática do bem.
Cf. livro II-4, 1105b, Ética a Nicômaco.
Ressalta-se que a conceituação da justiça como uma virtude
não implica o caráter de uma idéia
ontologicamente transcendente como acontece em Platão.
48SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant.
Seu fundamento na liberdade e na igualdade . Belo
Horizonte: UFMG, 1995, p.33.
39
Aristóteles distingue duas classes de justiça:
a universal e a particular. A justiça universal,
total
ou integral significa a justiça em sentido amplo que
pode ser definida como conformidade ao nomos
(norma jurídica, costume, convenção social,
tradição). Esta norma constituinte do nomos é
dirigida a
todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo
que é o justo legal. “Aquele que contraria as leis
contraria a todos que são por elas protegidos e
beneficiados; aquele que as acata, serve a todos
que
por elas são protegidos ou benefic iados”.49 O
membro da pólis se relaciona com todos os
demais,
ainda que virtualmente, e compartilha com todos
os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça
universal ressalta a importância da
legalidade como um dos aspectos que
fundamenta a coesão social. A
comunidade existe virtualmente na
pessoa de cada membro. O homem
virtuoso é aquele que desvela em
seu modo de agir a observância do
princípio neminem laedere (Não
prejudique a ninguém).
A justiça particular significa em sentido
estrito o hábito de realizar a igualdade.
Este tipo de
justiça refere-se ao outro no sentido
de uma relação direta entre partes,
típica da experiência citadina.
Percebemos que este tipo de justiça
vincula-se com a justiça universal,
pois o transgressor da justiça
particular se compromete também
diante do nomos.
O justo particular apresenta-se em duas
formas distintas: o justo particular
distributivo que
desvela a justiça distributiva e o justo particular
corretivo que apresenta a justiça corretiva. A idéia
de
justiça distributiva surge no sentido
de igualdade na devida proporção.
Essa modalidade de justiça regula as
ações da sociedade política com seus
membros e tem por objeto a justa
distribuição dos bens públicos:
honras, riquezas, encargos sociais
e obrigações. Essa distribuição
também se
fundamenta na igualdade que não se confunde
com uma igualdade matemática e rígida, mas
geométrica ou proporcional que observa o dever
de dar a cada um o que lhe é devido; observa os
dotes naturais do cidadão, sua dignidade, o
nível de suas funções, sua formação e posição na
hierarquia organizacional da pólis.50 O princípio de
igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma
desigualdade de tratamento, pois
sendo diferentes segundo o mérito, os
benefícios a serem atribuídos também
devem ser diferentes.
A outra modalidade de justiça particular é a
justiça corretiva ou sinalagmática, que se
divide em
comutativa e judicial. Trata-se de um tipo de
justiça que regula as relações entre cidadãos e
utiliza o
critério do justo meio aritmético ou igualdade
matemática (se devo x, pagarei x). Observa-se que
este
tipo não focaliza em primeiro plano
as pessoas, mas sim as coisas.
Medem-se os benefícios ou
prejuízos que as pessoas podem
experimentar, ou seja, as coisas e os
atos no seu valor efetivo. Nos casos
de ações que geram
constrangimento para uma das
partes, caberá ao juiz restabelecer a
igualdade rompida através de uma
sentença. Quando há a vontade dos
interessados como elemento

49 BITTAR, Eduardo. Curso de filosofia do direito . São Paulo:


Atlas, 2001, p.91.
50 PEGORARO, Olinto. Ética é justiça. Petrópolis, Vozes, 1995,
pp.32- 33
40
principal, chama-se justo comutativo (sinalagma)51 e,
quando por decisão do juiz a vontade de um deles
é contrariada, como o caso dos crimes, chama-se
justo judicial ou justo reparativo. Neste último caso
o
sujeito de uma injustiça é sancionado a reparar o
dano provocado indevidamente a outrem. 52
Podemos
perceber que o princípio de igualdade que figura
em seu pensamento recorda as especulações
pitagóricas acerca da justiça.
Já percebemos que Aristóteles atribui à
palavra justiça diversos sentidos que
demonstram a
possibilidade de classificá-la de diferentes modos.
Menciona a idéia de justiça política, quando se
refere à comunidade, ou seja, a justiça que
organiza a vida comunitária e que, em particular,
deve
observar o processo deliberativo social (o cidadão).
Aristóteles fala em justo doméstico quando observa
a esfera da família, ou seja, a justiça para com a
mulher, o filho e os escravos – regras necessárias
à
organização do lar. 53
O justo político abrange duas outras formas
de justiça: o justo natural e o justo legal. O
justo
natural significa o que será sempre o mesmo em
toda parte, independe da vontade humana, ou
melhor,
para existir não precisa de qualquer decisão ou ato
de positividade. O justo legal, que em princípio
poderia ser cumprido de maneiras diferentes, passa
a ser obrigatório por ser assumido pelo nomos
vigente em uma pólis.54 Este tipo de justo decorre
do ato legislativo e configura-se no conjunto de
disposições vigentes na pólis. Tanto o justo natural
quanto o justo legal constituem a ordem normativa
da cidade. O justo natural é constituído por noções
e princípios comuns que encontram fundamento na
própria natureza racional do homem. Podemos
compreender a mutabilidade da justiça natural a
partir
da concepção aristotélica de physis. Em seu modo
de ver a Natureza experimenta o movimento, ou
seja, atualização do ser (a doutrina do ato e
potência). A justiça natural sofre as transformações
típicas
da racionalidade. Trata-se de um movimento perene
que permeia todos os seres.
Há uma lei natural ou direito natural que
desvela a natureza da comunidade política.
O ponto
de partida é o princípio da naturalidade da
sociedade política, o homem, um animal político é
chamado
a viver na pólis por força de sua própria essência.
A cidade-estado é uma realidade natural e nesse
âmbito há uma relação entre razão, lei e igualdade.
Para Aristóteles, a Natureza não é um princípio
estático, mas dinâmico; é o que em cada ser
está latente como potência e se desenvolve em
conformidade com o fim. A natureza de uma coisa
revela-se no termo deste desenvolvimento. A teoria
do ato e potência nos ajuda a compreender como
Aristóteles concebeu a relação homem e pólis.
Temos que observar que o justo legal
encontra sua origem no justo natural. Esta
relação se
esclarece quando percebemos que caminhamos do
geral para o particular, ou seja, um princípio geral

51Bilateral.
52 Aqui percebemos que a idéia que fundamenta a
responsabilidade civil já estava presente na experiência da
pólis grega.
53Os diversos modos de falar de justiça
podem ser observados em: Grande Moral,
1194 b,1193b, Retórica,1373; Política, 1279a,
1301b.
54 Decretos,sentenças, as decisões do poder administrativo,
caracterizam-se por circunstancialidade ou especialidade.
41
pode acarretar uma lei específica. O princípio
neminem laedere que significa que não devemos
prejudicar as pessoas, um preceito da justiça
natural, pode ser positivado em norma que prevê
uma
punição para atos como o homicídio, a injúria etc.
Os conflitos entre preceitos jurídicos legais e
preceitos jurídicos naturais não invalidavam a ordem
jurídica da pólis grega; não eram concebidos por
Aristóteles, exceto em um sistema corrompido.
A eventual tensão entre a generalidade
abstrata da lei e a singularidade concreta
dos casos
reais era mediada pela eqüidade ( epieikéia), em
atenção à justiça natural.
A eqüidade é a forma corretiva da justiça
legal quando esta engendra certa injustiça
pela
própria generalidade de seus preceitos
normativos. Nesse sentido, o julgador, coloca-se
como
legislador, e opera a adaptação da lei ao caso
concreto. Para Aristóteles, o julgador assumindo
a
postura do legislador torna-se um homem
preocupado com a correção ética da justiça, um
homem
équo. Aristóteles define o homem équo como
aquele que não é rigoroso na aplicação da
justiça,
quando esta se configura como a pior solução,
mas que fundamenta seus juízos nos princípios da
moral.
O grego reverenciava o nomos (a lei ou
costume) porque era fundamental para a
existência da
própria pólis como comunidade ética-política.
Nesse sentido, “a ordem é a lei e o governo da
lei é
preferível ao de qualquer cidadão, porque a lei é a
razão sem apetites”, dirá Aristóteles na Política. 55
Se o objetivo da atividade humana é a
vida na pólis, esta deve ser anterior ao
indivíduo.
Todavia, historicamente a pólis é a ultima fase de
um processo ascendente de sociabilidade. 56 Há no
homem um impulso social que se desvela
primeiramente na família, em seguida na aldeia até
alcançar
a estrutura equivalente a uma pólis grega. A cidade
é por sua natureza uma unidade na diversidade.
A lei escrita ou não escrita, o nomos,
surge da experiência citadina e, portanto,
é
intrinsecamente superior a qualquer decisão
individual por mais sábia que seja. Por ser o
nomos a
razão desprovida de paixão deve ser a suprema
autoridade da sociedade política. No Direito da
pólis
há elementos naturais e permanentes e também
convencionais e mutáveis. A razão é comum a
todos
os homens - todos são iguais; o nomos é razão
porque realiza a igualdade jurídica formal. A lei
comum seria uma lei natural ou
original, pois teria validade geral,
independente da opinião dos homens,
embora não imutável porque até a
própria natureza é mutável.
A conformidade com a lei
apresenta a relação que o sentido de
justiça particular mantém com a idéia
de eqüidade. O termo eqüitativo
desvela o sentido de que o justo
ultrapassa a simples dimensão da lei
escrita, ou seja, vai além da razão de
ser da lei escrita e se liga
diretamente ao sentido de lei natural,
na medida em que pode ser
compreendido como um critério de
ajuizamento da igualdade

55 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant.


Seu fundamento na liberdade e na igualdade . Belo Horizonte:
UFMG, 1995, pp. 40-41.
56 Cf. Capítulo 1, Política.

42
ditada pela razão conforme à lei natural. Observo
que a razão significa para Aristóteles uma forma
superior da natureza humana. A
eqüidade surge para corrigir os lapsos
da lei convencional, sobretudo
quando a lei, aplicada
mecanicamente, não corresponder à
justiça. As circunstâncias
particulares exigem a aplicação da
eqüidade para dirimir um caso
concreto, buscando uma igualdade
entre as partes.
O équo 57 é aquele que busca a igualdade
no momento concreto da relação da justiça.
O bem
comum é o fim ou o bem principal da pólis. O
pressuposto fundamental do pensamento de
Aristóteles
acerca da justiça é a idéia de que o homem é um
ser destinado naturalmente à vida em comunidade –
a sociabilidade como um imperativo
da natureza humana. A justiça seria o
bem supremo no âmbito da política,
na medida em que procura o
benefício da comunidade; busca uma
felicidade no âmbito da comunidade.
Enfim, o sentido de igualdade que
aparece em Aristóteles, embora seja
um conceito já pensado pelos
pitagóricos, apresenta o caráter de
definição da idéia de justiça.
A noção de alteridade é
fundamental ao seu conceito de
justiça, pois a justiça é uma virtude
que só pode ser praticada em relação
ao outro de modo consciente, na
medida em que essa prática se
destina à realização do seu elemento
fundamental: a igualdade, ou a
conformidade com a lei. O
objetivo é realizar a felicidade na pólis num plano
mais alto, ou o bem comum de modo geral. 58 Os
elementos que compõem o conceito aristotélicode
justiça são: o
outro, a consciência do ato
(vontade), a conformidade com a lei e o bem
comum, a igualdade. A dimensão do outro, ou
seja, a
alteridade observada enquanto ser racional é
fundamental para realização da justiça. A justiça
no
entendimento de Aristóteles se afigura em como
fazer um bem para o outro. 59 O homem injusto é
aquele que age com injustiça, embora não queira
receber o ato injusto de outrem. O ato de justiça
exige a mediação da vontade, só se realiza
voluntariamente ou conscientemente.
Segundo Aristóteles, ato voluntário
significa aquele “cuja origem se acha no
agente que
conhece todas as circunstâncias da ação”. 60
Somente o homem é capaz de possuir uma
faculdade da
vontade apta a discernir o que deve fazer ou não.
Na Ética a Nicômaco, menciona: “Chamo
voluntário,
como disse anteriormente, a ação que depende do
agente e que este realiza conscientemente, isto é,
sem ignorar a pessoa que a ação a feta os meios
empregados e o fim da ação”. 61
A moralidade do ato fundamenta-se no
critério da premeditação ou escolha
deliberada.
Salgado observa que na pólis o justo não está
separado do direito positivo em geral, ou da
norma
costumeira ou ainda do padrão de comportamento
partilhado na comunidade.

57 Reto,justo.
58 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant.
Seu fundamento na liberdade e na igualdade . Belo Horizonte:
UFMG, 1995, p. 37.
59 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Col. Os pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1979, pp.1130a, 1134b.
60 Idem ibidem, p. 1110ª
61 Idem ibidem, p. 1135ª

43
A teoria das formas de governo em
Aristóteles segue a clássica organização
apresentada por
Platão no Político, ou seja, três formas puras:
monarquia, aristocracia, democracia moderada ou
política; e três impuras: tirania,
oligarquia e democracia radical que
equivale à demagogia. O fato é que
Aristóteles usa um critério econômico
para distinguir tais formas. Observa
que o princípio de autoridade
em cada um dos regimes repousa sobre a situação
econômica: a oligarquia, na riqueza de uma
minoria; democracia radical, uma
maioria pobre; na monarquia e
aristocracia, uma virtude superior;
tirania, na fraude e violência.
Aristóteles também compreende que o
melhor governo seria um governo
misto. Cada pólis necessita de um governo que
corresponda ao seu caráter e necessidades próprias.
Aristóteles também distinguiu as atividades do
governo em deliberativas ou legislativas, executiva
e
judicial. E apresentou um ponto de vista técnico-
político preocupado com a conservação do poder e
com a ética.
O aristotelismo alcançou o ocidente
através dos árabes e judeus, em traduções
latinas
indiretas, sobretudo pela Escola de Toledo, até ser
estudado diretamente e predominar a partir do séc.
XIII, na Escolástica. Com Tomás de Aquino
houve uma
adaptação prévia do aristotelismo ao
Cristianismo. No Renascimento,
fundamentou doutrinas opostas à
Escolástica e muitas vezes
incompatíveis com o Cristianismo.
Vinculou-se de novo ao Cristianismo
através da neo-escolástica católica dos
séculos XVI e XVII e com a
escolástica protestante. No que se
refere à sua filosofia prática até hoje o
mundo tem sido visto em boa parte
com olhos aristotélicos.
44
Parte IV - A Filosofia no período
medieval: Agostinho e Tomás de
Aquino

“(...
)
não
cui
deis
da
car
ne
co
m
de
ma
siad
os
des
ejos
”.
Paulo de Tarso

1 - O Mundo Medieval
O cristianismo nasceu em um
mundo helenizado impregnado de
elementos religiosos orientais. A
novidade da perspectiva religiosa
cristã propiciou o que alguns
compreendem como filosofia cristã,
ou seja, um pensamento que se
desenvolve nos limites das verdades
estabelecidas pela fé, na busca de
fundamentos racionais. A novidade
que a perspectiva cristã oferece é
radical em sua concepção de
Deus. Não podemos perder de vista como os
povos primitivos e depois os gregos concebiam a
divindade. Na idade média há uma nova relação
entre Deus e criatura. Surge uma nova concepção
acerca da criação que engendra uma absoluta
dependência de tudo e todos para com Deus.
O sentimento da grandeza de Deus, próprio
do judaísmo, é transposto para o cristão e
contribui
para fortalecer o sentido da humildade como virtude.
Isso fica mais claro quando comparamos o sábio
estóico com o santo cristão: o sábio estóico se
orgulha de se assemelhar à divindade, o santo
cristão,
que não é um ser autônomo e sim
criatura nada pode sem a graça
divina. A criação do homem “a
imagem e semelhança de Deus” lhe
confere certo esplendor: po ssui
uma dignidade intrínseca. A
concepção grega do homem integrado na Natureza
ou na pólis cede lugar à interioridade do sujeito.
Deus não é só o Senhor dos Hebreus, mas
o Pai, conjugando em um só o poder e o
amor. A
idéia de filiação divina fortalece a
solidariedade essencial para a
comunidade que passa a se afigurar
como uma pessoa moral que
participa de uma história universal
e, nesse sentido, ressalta um só
destino para o gênero humano. O
homem vive o drama da queda e da
redenção como fatos históricos. O
mundo torna-se o lugar da experiência
que permitirá a superação espiritual
para a salvação.
Segundo Truyol y Serra, o cristianismo
pelas suas origens e suas primeiras lutas,
pertence à
Antigüidade. Durante seis séculos firmou seus
passos com êxito crescente até ser reconhecido
oficialmente no Império Romano.
Na sua fase inicial o pensamento
cristão desenvolve-se paralelamente
ao pensamento pagão da última fase.
Dentro deste período antigo e depois
medieval do cristianismo a tradição
estabelece os seguintes limites: o
pensamento patrístico e o
escolástico. A
Patrística tem seu lugar nos séculos II –VI e a
Escolástica, do XII ao XIV. O período que se dá
entre
essas duas épocas se define por uma
silenciosa afirmação social e política
da cristandade medieval e sua
cultura.
Compreendemos que o mundo antigo nos
oferecia o espetáculo da competição entre
duas
sabedorias: a grega e a hebraica. Este conflito
marcou o fim do período antigo e o esforço da
Idade

45
Média em articular a sabedoria divina com a
sabedoria humana. A sabedoria grega apresentava
um
interesse direcionado para o mundo. Nesse sentido,
o seu paganismo lançava raízes no pensamento
mágico. A razão grega acreditava no destino, na
boa ou má sorte, nas inspirações superiores, na
adivinhação etc. A razão grega partia da realidade
tangível e visível, do vir-a-ser, do comportamento
humano. Na sabedoria hebraica ou da salvação,
Deus é quem concebe a sabedoria ao homem.
O cristianismo promoveu uma modificação
nos valores éticos: operaram a
transcendência do
fim último, onde Deus se torna o valor supremo.
Surge o Deus pessoal criador do mundo; sendo ele
perfeito, independente e livre. A transfiguração da
felicidade em bem-aventurança, o que significa dizer
que não é através da razão, mas da fé que o
homem alcança a felicidade. Esta felicidade está
expressa no sentido de posse ou visão intuitiva de
Deus. E, por fim, destacaram as virtudes teologais
(fé, esperança e caridade) que passam a ofuscar as
virtudes morais.
A idade Média foi considerada a época
intermediária entre a Antigüidade e os
tempos
modernos, é o período compreendido entre a
queda do Império Romano do Ocidente (476) 62
ea
tomada de Constantinopla63. O
medievalista Alain de Libera ensina
em sua obra A Filosofia Medieval
(1998) que a história da filosofia
medieval é escrita, em geral, do
ponto de vista do cristianismo
ocidental. E que, portanto, esse
gesto não é isento de
conseqüências, pois fixa os objetos,
os problemas, os campos de
investigação, avaliam, podam,
repartem segundo suas perspectivas,
interesses, tradições, impõem esquecimentos,
imprimem suas diretrizes e direções. Na verdade,
a
história da filosofia medieval é constituída por
várias fases: a latina, a grega, a árabe-muçulmana
e
uma judaica.
O período da Idade Média é, para alguns,
conquista de um só grupo os cristãos
ocidentais.
Em seu Tratado da Opinião (1735), o marquês
Gilbert-Charles Le Grende de Saint-Aubin retrata a
filosofia medieval de modo nada
lisonjeiro: “Após a tomada de
Constantinopla, os franceses trouxeram
os livros de Aristóteles comentados
pelos árabes. Introduziu-se, então, uma
filosofia tirada de Avicena e de outros
comentadores africanos; e o mau
gosto arabesco estragou as escolas,
como a arquitetura e as demais artes
haviam sido corrompidas pelo gosto
gótico. Sutilezas vãs e bárbaras
tomaram o lugar da antiga filosofia, e
apoderaram-se da lógica e da
metafísica, que eram praticamente os
únicos objetos dos filósofos de então”.
Para outros pensadores árabe-
muçulmanos, a Idade Média
configurou o nascimento, o impulso e
apogeu de uma cultura. Uma idéia
aceita na visão de Alain de Libera é
a de que a Idade Média viu a teologia
cristã tomar definitivamente o lugar da
filosofia grega.

62 Deposição do imperador Rômulo Augústulo.


63 A vitória de Maomé II contra Constantino XII (1453).

46
Este autor entendeu que o ocidente cristão
foi filosoficamente estéril e só despertou do
seu
longo sono a partir das influências do oriente
muçulmano para o ocidente muçulmano e depois
para o
ocidente cristão.
Mencionou que “O século de Justiniano
é, para nós, um período crucial: é o
século da
reconquista, da suprema afirmação da
romanidade bizantina, da reconstrução
da unidade do Império de
Constantino. Ora, é nessa época que o
poder político cristão decide erradicar
a filosofia pagã. (...) O espaço
histórico em que se situa Justiniano
não é medieval nem tardo-antigo: o
tempo em que sua ação se inscreve é
o da romanidade. Justiniano é um
romano. É um imperador romano que
se esforça
por acabar com a filosofia como instituição e
realidade social. (...) Portanto, o conflito entre o
helenismo
e o cristianismo não termina com o suposto exílio
dos filósofos 64 na Pérsia, nem a filosofia está
morta,
nessa época. Ao contrário, inicia-se um movimento
de deslocamento ou de translação da ciência: a
translatio studiorum, que vai durar até o final da
Idade Média”. 65
O cristianismo triunfa a partir de Constantino
(c. 280 – 337) permitindo a liberdade de
culto aos
cristãos e reconhecendo a competência da
autoridade episcopal nos processos civis. Na
prática o
cristianismo já possuía estrutura organizada
denominada Igreja (ekklesia). Com o edito de
Milão, a
Igreja de Roma foi erigida em
centro da cristandade o que
engendrou inúmeras disputas sobre
divergências na interpretação da
mensagem de Jesus. O confronto de
opiniões fortaleceu a Igreja católica
(em grego Igreja universal). Foi nesse
contexto que surgiu a Filosofia
Patrística com a missão de apresentar
uma única versão do Evangelho, não
só como revelação divina, mas
também como resultado de juízos
racionais. Tentou-se munir a fé com
argumentos racionais. Dentre os
inúmeros padres da Igreja, destacou-
se Santo Agostinho, considerado “o
pai da filosofia cristã”.

2 - Aurélio de Agostinho
A influência da filosofia cristã de Agostinho
perdurou até o século XIII, momento da
descoberta
do pensamento de Aristóteles. Agostinho pregou
uma aproximação entre o pensamento platônico e o
pensamento cristão. É preciso lembrar que este
pensador conheceu a filosofia de Platão através dos
filósofos neoplatônicos de Alexandria
e de traduções latinas. Aurélio de
Agostinho nasceu no Norte da África,
na cidade de Tagaste, província
romana e faleceu como bispo de
Hipona em 430, aos 72 anos
de idade. Agostinho vivenciou os últimos anos do
Império Romano. Compreendeu essa decadência
como a mão de Deus castigando os homens da
cidade terrena e anunciando o triunfo do
cristianismo.
Este pensador tornou-se mestre em retórica e,
segundo relata em suas Confissões, a leitura de
um
determinado diálogo de Cícero,
Hortensius, que exprime um
verdadeiro elogio à filosofia, o
despertou para os estudos filosóficos.

64 Simplício e Damáscio.
65 p.14-5.
47
Agostinho aderiu ao maniqueísmo, religião de
origem Persa, fundada por Mani, no séc. III,
que
apresentava uma visão dualista do mundo: o bem
versus o mal. Mais tarde interessou-se pelo sermão
de Santo Ambrósio, bispo de Milão, estudou os
filósofos neoplatônicos em particular Plotino e em
386
converteu-se ao cristianismo. Escreveu os diálogos
De magistro, Contra os Acadêmicos, Contra os
Maniqueus e as Confissões. Quando assumiu a
diocese de Hipona redigiu Sobre a doutrina cristã,
Sobre a trindade e Cidade de Deus.
Sua contribuição para o
desenvolvimento de uma filosofia
cristã se deve à sua formulação
relacionando teologia e filosofia, sua
teoria do conhecimento com ênfase
na
subjetividade e uma teoria da história expressa na
obra Cidade de Deus.
A sua filosofia foi elaborada
a partir de uma aproximação entre
neoplatonismo de Plotino e Porfírio
com os ensinamentos de São Paulo e
o evangelho de São João. Na escola
de Alexandria, o platonismo era
interpretado como uma antecipação
do cristianismo. Para Agostinho a
filosofia antiga consistia em uma
preparação da alma para a
contemplação da verdade revelada.
Dessa concepção surgiu uma forte
desvalorização do mundo. Agostinho
apresentou uma teoria do
conhecimento na mesma direção da
filosofia platônica, inatista, ou seja,
há um conhecimento prévio,
independente da experiência que
permite o processo do conhecer.
Agostinho rejeitou a doutrina platônica da
anamnese, todavia desenvolveu uma
teoria da
interioridade e iluminação. Essa noção
de interioridade se configura como um
prenúncio do conceito de subjetividade
que surge no período moderno ( In
interiore homine habitat veritas ). Essa
interioridade permite acessar a
Verdade. A mente humana que é
mutável e falível possui a centelha
divina que é o seu intelecto –
imagem e semelhança a Deus. Com
este pensamento Agostinho explica o
ponto de partida do conhecimento
humano.
Na obra Cidade de Deus
(c.413- 427) nosso autor interpreta a
história da humanidade desde o
gênesis até o juízo final e a
redenção. Assim, formula a noção
de história, apresentando um fio
condutor, rompendo com a concepção
grega de uma visão cíclica, sem
início e sem fim. Este sentido de
história deveria incutir na mente
humana que a história é aquela que
exprime o triunfo da Cidade Divina,
daí resulta a necessidade da fé como
um novo ânimo para viver.
Agostinho representa o momento da
cristianização da Europa Ocidental e
ressalta a supremacia do poder
espiritual sobre o poder temporal, ou
seja, o Papa acima dos Reis e nobres
feudais. Nesta obra Agostinho
apresenta a felicidade como a
motivação do pensar filosófico e
formula a tese segundo a qual o
homem não tem razão para filosofar,
exceto para atingir a felicidade. A
filosofia, por conseguinte, passa a ser
vista como indagação humana à
procura da beatitude. Esta está
presente nas Sagradas Escrituras.
No que se refere à sua teoria do
conhecimento, Agostinho afirmou que o erro
está em querer
que as sensações possam expressar uma verdade
ao sujeito. Com esta idéia na Cidade de Deus,
Agostinho antecipou a reflexão do cogito
cartesiano. Quando formulou a seguinte frase: “eu
me

48
engano, eu sou, pois aquele que não é não pode
se r enganado” – apresentou a primeira certeza, a
essência do ser humano - o homem como ser
pensante
em que o seu pensar o difere da
materialidade do corpo.
Ocorre que esta idéia já estava presente em
Platão e chegou a Agostinho através de
Plotino.
No diálogo Alcebíades, Platão define o homem
como uma alma que serve ao corpo. Agostinho
assimilou essa transcendência hierárquica da alma
sobre o corpo e, nesse sentido, enfatizou que a
alma possui funções importantes dentre as quais a
de permitir o conhecimento verdadeiro, excluindo-
se, portanto, a percepção sensível. Assim, temos
dois tipos diferentes de conhecimento: um limitado
aos sentidos, e outro conhecimento necessário,
imutável e eterno. Mas como o homem que é
mutável
e falível acessa a Verdade? Para
Agostinho, somente através de algo
que transcende a própria alma
humana: Deus.
Agostinho utilizou a metáfora platônica
da alegoria da caverna ou mito da
caverna e
apresentou o conhecimento verdadeiro
como aquele que previamente foi
iluminado pela luz divina. Há um
saber prévio existindo de modo infuso
que cria as condições de possibilidade
para o conhecimento humano. A
percepção de um conteúdo na alma
decorre da irradiação divina. Importa
perceber que Deus não substitui o
intelecto humano, na verdade
precisa dele. O que temos que
perceber é que Agostinho está
afirmando a tese segundo a qual
todo conhecimento verdadeiro é
resultado de um processo de
iluminação divina. Deus é um Ser
transcendente que daria fundamento à
Verdade. Para Agostinho, o mal é o
não-ser, a privação do bem, não
existe como um princípio poderoso a
reger o mundo.
O homem é réprobo miserável condenado à
danação eterna e só recuperável mediante a
graça
divina. O homem é criatura privilegiada porquanto
feito à semelhança de Deus. Essa especificidade se
desvela nas faculdades da Alma: a memória, a
inteligência e a vontade. Esta última é a mais
importante porque é o centro da personalidade
humana: é livre e nela reside também a essência
do
pecado que é a transgressão da Lei Divina criada
por Deus. A queda do homem decorre do seu livre-
arbítrio e, portanto, a salvação depende de Deus. 66
Falar de uma Filosofia
jurídica implícita no pensamento de
Agostinho nos lembra a influência
que Cícero exerceu em seu
pensamento. Com Agostinho, surge
uma nova concepção de justiça: a
justiça divina. Nesta nova concepção,
todos os homens são filhos de Deus
e, portanto iguais. Se todos
são iguais, a justiça consistirá à moda aristotélica
da justiça distributiva. Agostinho quis dizer que a
cada um será dado segundo o seu
mérito, ou seja, a observância da lei
de Deus, a lei natural e, depois, a lei
humana.

66 Calvino
(1509-1564) levou as teses agostinianas às últimas
conseqüências.

49
Nos dizeres de Joaquim Salgado, o sentido
de igualdade perante a lei se configura no
próprio
princípio de justiça que preside o ato de criação.
Todavia essa igualdade não esgota a idéia de justiça.
Há que se falar também na graça como um tipo de
justiça em sua doutrina da iluminação.
Agostinho assimilou a concepção estóica da
existência de uma lei natural universal
dividida em
Lex aeterna, lex naturalis e lex humana , onde
figura a idéia de dar a cada um o que é seu. O
próprio
Deus, criador do Céu e da Terra, está no horizonte
desse princípio ou fórmula, pois o homem deve
dar-Lhe amor incondicionado. Assim
a suma justiça é a adequação do agir
humano com a vontade divina, é a
submissão absoluta a Deus. Nesse
sentido afirma Joaquim Salgado:

“Dar a Deus o
que é de Deus e
a César o que é
de César é um
princípio que
fundamenta a
doutrina da
diferença entre
o inteligível e o
sensível, a
cidade de Deus
e a cidade dos
homens em
Santo
Agostinho. A
igualdade dos
homens entre si
é posta por
santo Agostinho
como absoluta, mas somente na
esfera da cidade de Deus”. 67

A finalidade última do
homem é Deus e, nesse sentido, a
cidade que não observa esta ordem
pratica a injustiça. Combater esse mal
é um dever sem piedade. Assim,
Agostinho justifica o castigo infligido
aos maus, para que a justiça perfeita
se opere na cidade. Esta sua
concepção legitimou a servidão, pois
a servidão nasce do pecado e serve
ao propósito de expiação dos males
praticados. O homem tornado escravo
não deve subverter a ordem social.
A justiça, portanto consiste em dar a cada
um o que é seu, que por sua vez é ditado
pela
vontade de Deus. Como os homens não são
perfeitos e se tornam pecadores, a justiça perfeita,
como
igualdade de todos, só acontece na
cidade de Deus. A lei eterna liga a
criatura a Deus e a justiça se
configura na submissão à vontade
divina. Na ordem natural, a lei
natural prescreve a harmonia do
homem com ele mesmo, com a
natureza e com o sobrenatural. A
justiça está no reconhecimento do
homem como imagem de Deus,
desprezando a carne e valorizando a
alma. Esta dignidade é o que confere
o equilíbrio. No que se refere à Lei
humana, Agostinho enfatizou que esta
deve ter como fonte de referência a
Lei natural.
A Patrística de Agostinho foi
marcadamente um período em que
predominou o Novo
Testamento como doutrina
constituída por regras morais e
pela crença na salvação através do
sacrifício de Cristo. Segundo José
Américo M. Pessanha, a nova fé não
apresentava fundamentação filosófica,
mas uma religião que servia de
contestação da ordem imperial
vigente (os romanos). Essa nova
religião buscava no campo dos
filósofos gregos os conteúdos para
uma filosofia cristã.
Predominaram nesta fase escritos que
apresentavam o cristianismo em sintonia
com as
verdades racionais. O problema central da Patrística
foi, portanto o problema da relação entre razão e

67 Salgado, Joaquim. P.58.


50
fé, entre o que se sabe pela
convicção interior e o que se
demonstra racionalmente. Além de
Agostinho destacaram-se São Justino,
Clemente de Alexandria e Orígenes.

3 - Tomás de Aquino
O século XIII foi denominado de “século de
São Tomás” e da “escolástica”. Este
momento é o
período da quinta, sexta, sétima e oitava
cruzadas. O período entre 1200 e 1300 é marcado
pelo
surgimento de duas ordens
mendicantes: os dominicanos ou
“irmãos pregadores” de Domingo de
Gusmão; os franciscanos ou “irmãos
menores” de Francisco de Assis
(João Bernardone). Temos, também,
a criação das universidades; novas
traduções de Aristóteles e de
Averróis; o apogeu das formas
literárias criadas no final do séc.
XII: comentários de sentenças,
sumas de teologia e a assimilação
da filosofia natural peripatética. No
início do séc. XIII, as únicas obras de
Platão acessíveis
eram o fragmento do Timeu traduzido por
Calcídio, o Mênon e o Fédon traduzidos por
Henrique
Aristipo da Catânia. Tais textos não tiveram grande
repercussão no séc. XIII, pois a verdadeira difusão
do pensamento de Platão ocorreu no séc. XV com
a tradução da República pelo emigrado bizantino
Manuel Crisóloras, prosseguindo com Leonardo
Bruni que traduz o Fédon, Górgias, Crítias,
Apologia
de Sócrates e Banquete. Termina com
as traduções de Platão e
Plotino realizadas por
Marsílio Ficino. A obra de
Aristóteles só foi conhecida
em parte por volta do séc.
XII o que gerou
conseqüências para a história do
aristotelismo medieval, pois a obra de
Avicena, seu comentador, fora
conhecida antes. Tal fato ressalta que
os tradutores de Toledo
interessavam-se mais pela filosofia
árabe-muçulmana e judaica do que
pelo corpus aristotelicum. O ingresso
do pensamento de Aristóteles foi
preparado pelo pensamento dos
peripatéticos árabes. Nesse sentido,
podemos dizer junto com Libera que
nunca existiu o aristotelismo em
estado puro e que Tomás de Aquino
realizou uma certa desplatonização do
pensamento aristotélico. Segundo
Libera: “Os medievais, em geral,
pensaram que Aristóteles compusera
orgânica e completamente suas obras.
Eles não imaginaram a gênese interior
do corpus nem as condições
concretas de sua composição. Com
Averróis e Tomás de Aquino, o
método do grande comentário,
fundamentado em recortes do texto e
na sua recomposição por divisões e
subdivisões lógicas, impôs a idéia que
as obras do Estagirita apresentavam
um plano perfeitamente
ordenado, quando, pelo contrário, a composição nada
tinha de intrinsecamente ligado”. 68
Para a maioria dos historiadores da filosofia
medieval, o séc. XII em particular
corresponde aos
anos sombrios de uma verdadeira ditadura
intelectual de Aristóteles. Ledo engano. Para
compreender
o lugar exato de Aristóteles no pensamento
medieval latinófono é preciso ter em mente os três
fatos
elementares: 1. o conhecimento
de Aristóteles pelos latinos é
fenômeno tardio, começa
aproximadamente 700 anos após a
queda do Império romano do
Ocidente; 2. é um fenômeno

68 P. 359.

51
ambíguo, levando em conta os
numerosos apócrifos, incorporados
pela tradição interpretativa; 3. é um
fenômeno supradeterminado, levando
em conta a redescoberta do texto
aristotélico pelos comentários ou pelas
leituras do peripatetismo árabe, na
verdade, um aristotelismo
neoplatonizante.
Ademais, a própria categoria “aristotelismo”
é desconhecida na Idade Média e o avanço
de
Aristóteles foi institucionalmente combatido desde o
final do séc. XII até a segunda metade do século
XIII e intelectualmente trazido à cena a partir da
segunda metade do séc. XIV. Somente a Lógica de
Aristóteles, reduzida ao estritamente necessário se
relacionou com a teologia da época. Acreditava-se
que a Lógica era neutra. As proibições se
dirigiam à Metafísica, aos livros naturais e às
sumas
extraídas dessa. Em 1230, a querela
do aristotelismo é transposta para o
interior da faculdade de Teologia, o
papa Gregório IX previne os teólogos
contra as novidades profanas, pois
entendia que a fé não teria mérito
quando a razão humana estivesse
a emprestar seus recursos.
Somente na
Universidade de Toulouse, Aristóteles é lido sem
restrição – Aristóteles não seria mais corrigido.
Inocêncio IV estende a proibição até
a Universidade de Toulouse, sendo
esta restrição reeditada em 1263,
todavia tornando-se letra morta. O
papado não teve poder para impedir a
difusão do aristotelismo através de
Averróis, no interior das
Universidades.
Do século XI ao século XIII, o problema
que apaixonou a Idade Média e que orientou
a reflexão
filosófica foi o problema dos universais, levantado a
propósito da obra Isagoge de Porfírio69, discípulo
de Plotino. A preocupação da Escolástica com as
palavras resulta da investigação da Bíblia como
portadora de verdades. Importa
perceber a diferença entre o sentido
literal e o saber simbólico. Por tanto,
neste período desenvolveu-se grande
estudo da linguagem para depois
examinar a realidade das coisas. A
indagação era: qual a relação entre
as palavras e as coisas? O célebre
romancista
Umberto Eco escreveu a obra O nome da rosa
para colocar essa questão medieval dos universais.
Veja-se a Rosa como símbolo de perfeição. A
palavra rosa subsiste à morte da própria flor – qual
seria
a relação entre o nome e a coisa? Linguagem e
realidade? Diante de tais indagações os medievais
tomaram duas direções: o nominalismo e o realismo.
Os nominalistas compreendiam que os universais
eram termos que designam idéias
gerais, meras palavras sem existência
real; pura abstração que o intelecto
faz. Os realistas sustentam que há
uma existência efetiva dos
universais. Essa existência pode ser
à maneira platônica ou à moda
aristotélica.
A partir do séc. XII, as obras
de Aristóteles começam a ser
divulgadas por intermédio dos árabes
que continuavam instalados em
Espanha. O aristotelismo será
conhecido através dos comentários
dos árabes. Fato que constituía
ameaça para o acordo entre a
reflexão filosófica e a fé cristã.

69 Disse Porfírio: “enunciar se os gêneros e as espécies


existem por si mesmos ou na sua pura inteligência, nem, no
caso
de subsistirem, se são corpóreos ou
incorpóreos, nem se existem separados dos
objetos sensíveis ou nestes objetos, formando
parte dos mesmos” Apud, História da Filosofia,
p.107.
52
Tomás de Aquino nasceu em
1225, seu pai foi conde de Aquino.
Aos cinco anos foi oferecido como
oblato70 à abadia beneditina de
Monte Cassino permanecendo até
quatorze anos. Por volta de 1239
retorna a casa dos pais antes de
ingressar na Universidade de Nápoles,
fundada por Frederico II. Em 1244,
ingressa como noviço na ordem dos
Irmãos pregadores e renuncia ao
abadado do Monte Cassino, contra os
projetos de sua família. Por ocasião
de sua ida à Paris em companhia do
mestre geral da ordem, seus irmãos o
levam para a casa de sua família, sob
escolta. Libertado por suas irmãs em
1245 foi para Universidade de Paris
em busca do mestre Alberto Magno
que empreendia a reforma dos
estudos teológicos. De 1248 a 1252
viveu em Colônia sob a orientação
de Alberto Magno, para organizar um
studium generale, um centro de
estudos teológicos. Regressa a Paris
em 1252 e obtém o título de bacharel
bíblico e sentenciário, ou seja,
encarregado de comentar o livro das
sentenças de
Pedro Lombardo. Começa a lecionar na
Universidade de Paris com 27 anos.
Em 1256 obtém de seu
protetor, o papa Alexandre IV, o título
de mestre. Em 1259 é chamado à
Itália por Alexandre e torna-se o
teólogo da cúria pontifícia. Tomás
escreve obras a pedido do papado
com vistas a observar o Novo
Testamento e o pensamento grego.
Elabora seus comentários sobre as
obras de Aristóteles a partir da
tradução de Guilherme de Moeberke.
Em 1269, encontra a universidade de
Paris dividida por lutas doutrinais. De
um lado, o averroísmo latino que
negava a individualidade da alma
humana e professava que o
universo era tirado de Deus por
necessidade e, de outro, os
franciscanos, agostinianos,
conservadores, inimigos de todas as
novidades e, por conseqüência, do
aristotelismo.
Em 1272, o papa Gregório X o envia para
a Universidade de Nápoles. Por ocasião de
uma
viagem com o objetivo de assistir o concílio de
Lyon, morre de uma doença (1274) aos 49 anos.
Em 1277, o tomismo foi
condenado simultaneamente pelo
bispo de Paris, Etienne Tempier e
pelo primaz de Inglaterra, Robert
Kildwarby. Sua doutrina encontra
inimigos entre os franciscanos e
dominicanos. Todavia, o papa João
XXII encerra o processo de
canonização de Tomás em 1323 e
afirma que seus escritos são milagres.
Aquino estava firmemente agarrado ao
princípio da não-contradição, confiante no
poder da
razão relacionado à autoridade da fé. Estava
convencido da unicidade da Verdade. Nenhuma
verdade
certa do ponto de vista da razão pode ser contrária
à fé. Nenhuma verdade de fé pode negar uma
verdade natural. A verdade é só uma, embora
existam duas vias para atingir. No entanto, a fé
ultrapassa a razão. Seu tomismo não
é uma simples justaposição da
filosofia e da teologia. A sua
originalidade reside no equilíbrio
interior que realiza entre a
supremacia da teologia e a autonomia
da filosofia. Mas estabelece uma
relação que mostra a filosofia
servindo tanto melhor à teologia
quanto

70 Oblato: leigo que se oferece para o serviço monástico.


53
mais rigorosamente filosófica ela for,
e a teologia revela tanto melhor o
caráter sobrenatural da fé quanto
mais respeitar a luz natural da razão.

3.1 - Fé e Razão
Para Tomás de Aquino, a fé significa
obediência e confiança na Palavra de Deus;
mas, não é
um impulso cego da sensibilidade, e menos ainda
um sacrificium intellectus. Pela adesão total que ela
exige dum ser dotado de razão e vontade, suscita
por si própria a pesquisa teológica. Com a expressão
Fides quaerens intellectus de Santo Anselmo se
define no trabalho da teologia: a fé em busca da
inteligência. Para Tomás, a fé não está ligada a
uma pesquisa da razão natural para demonstrar
aquilo
em que se acredita. O teólogo apela para a razão
natural, não para provar este ou aquele artigo de
fé,
por exemplo, a criação do mundo ou
o mistério de um Deus em três
pessoas, mas para explicitar o
conteúdo desses artigos e captar a
ordem dos argumentos pelos quais se
passa de um para outro. Não existe
fé para um ser privado de razão,
tal como não há conhecimento
sobrenatural sem a possibilidade
dum conhecimento natural.
A necessidade duma inclusão
do conhecimento natural no
conhecimento sobrenatural não
significa a necessidade de uma
anterioridade histórica do
conhecimento filosófico de Deus
relativamente ao ato de fé. O
conhecimento da fé pressupõe e pré-
exige a validade do conhecimento
natural de Deus, não somente para
dar um mínimo de sentido intelectual
à palavra Deus, mas também porque
é o mesmo Deus que é visado pela
razão e pela fé.
Não há um Deus para a fé e
outro para a razão: só a afirmação
de Deus pela fé difere da afirmação
de Deus pela razão. Deus, objeto
adequado da fé, transcende o objeto
próprio da razão, mas é o próprio
Deus o objeto real – objectum ut res
– da fé e da razão. A priori é
impossível saber e crer uma mesma
coisa sob o mesmo ponto de vista. O
que é objeto da fé não é da ciência.
Mas Tomás acredita que para um
mesmo objeto poderá haver fé e saber,
ao mesmo tempo, e no mesmo
indivíduo, todavia sob perspectivas
diferentes.
O mérito do Tomismo é
manter assim, entre a fé e a razão,
uma distinção sem separação e uma
união sem confusão. Nem a fé está
subordinada à razão, nem a razão é
anexada pela fé, e, no entanto, elas
vivem uma da outra e realizam-se
numa promoção mútua e nessa
relação recíproca, encontram-se a si
mesmas. O Tomismo caracteriza-se
na crença inabalável no acordo entre
a verdade terrestre evidenciada pela
razão e a verdade de fé recebida pela
revelação.
A especulação teológica depende
diretamente da fé, a reflexão filosófica é
essencialmente
obra da razão. O filósofo considera as criaturas
em si mesmas, o teólogo encara-as na sua relação
com Deus. O teólogo aprecia as causas
primeiras, o filósofo aprecia as causas segundas.
Nesse
sentido, a Teologia é mais perfeita que a filosofia,
devido à sua maior semelhança com a Ciência

54
Divina, uma vez que Deus se
conhece primeiramente a si mesmo e
vê em si próprio todo o resto. A
teologia que é iluminada pela luz
natural da fé, não recebe os seus
princípios da filosofia, mas
diretamente de Deus, graças à
revelação. Para Tomás somos feitos
de tal modo que o nosso intelecto
deve partir dos conhecimentos
obtidos através da luz natural da
razão para ser encaminhado para os
conhecimentos que ultrapassam a
razão e formam o objeto da teologia.
Não cabe à Filosofia procurar para a
teologia essa evidência do seu objeto que a
tornaria uma
ciência perfeita mesmo para nós. Filosofia constitui
simplesmente a pré-compreensão ou o preâmbulo
necessário à inteligibilidade das verdades reveladas.
Há uma inclusão do conhecimento natural no
conhecimento sobrenatural. E segundo E. Gilson, o
acordo da Filosofia com a Teologia, no Tomismo,
é conseqüência necessária das exigências da razão
e não simples desejo.
Na visão de Édouard Hugon, a grandeza
filosófica de Tomás de Aquino muitas
vezes é
esquecida ao denominá-la de “filosofia aristotélico-
tomista”. De fato, Tomás de Aquino seguiu as trilhas
de Aristóteles, mas reformulou-os de tal modo que
arquitetou uma nova filosofia. Introduziu na filosofia
peripatética os conceitos de Deus
como criador das coisas,
temporalidade da matéria-prima, do
próprio ser, levando às últimas
conseqüências aquilo que Aristóteles
esboçara. O ponto fundamental de
sua filosofia é o realismo. O seu
ponto de partida é a realidade das
coisas e não das idéias imaginadas. O
seu tomismo origina-se da percepção
sensível do mundo para dela tirar no
âmbito da inteligência um conjunto
conseqüente e harmonioso de teses.
Tomás de Aquino buscou
as razões principais das coisas
existentes, apreendidas pelos
sentidos, conceituadas pela
inteligência, dirigindo-se às
explicações últimas das mesmas.
Nessa trajetória partia das percepções
mais primitivas até alcançar a certeza
do Ser Supremo: das mudanças, da
causalidade existente entre elas, da
contingência, das perfeições e da
ordem harmoniosa das coisas. Deus
seria a explicação de todas as coisas,
por conseguinte, seu realismo é a
filosofia do ser e da verdade;
verdade que seria a correspondência
da mente com as coisas. Em
primeiro lugar, as
coisas, depois a mente, ou dizendo de outro modo,
em primeiro l ugar o objeto e depois o sujeito. “O
critério supremo do tomismo é a verdade
imparcialmente aceita”. 71 Diz-nos Tomás de
Aquino: “O
estudo da filosofia não é para se
saber o que os homens pensaram,
mas para que se manifeste a
verdade” (De Coelo et Mundo, I,22).
A noção de ser é o
fundamento primeiro das coisas e a
última determinação da perfeição das
mesmas. A noção do ser é a
primeira que afeta nossa
inteligência e perpassa todos os
nossos conhecimentos. O ser é a
própria natureza de Deus, ou seja,
sabemos através de uma operação
lógica que Deus é e o conhecemos
por meio de uma analogia. “Se o
Tomismo admite entes de razão, cuja

71HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de Tomás de


Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais . Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1998, p.14.
55
realidade objetiva está tão somente na
inteligência, os seres de razão nada mais são que
idéias
formuladas pela razão, para que melhor se atinja
a realidade existencial das coisas. Somente em
Deus o ser atinge a sua suprema
perfeição. Deus une todas as
perfeições na infinitude de um ser
que vem de si mesmo e que
desconhece mudanças e sucessão.
Deus é o ser de ato puro destituído
de qualquer imperfeição ou potência
– a perfeita posse e simultânea de
todas as perfeições: é o ser eterno
(Boécio) ”. 72

3.2 - Justiça e Sinderesis


O cristianismo opera um deslocamento no
sentido da liberdade. Enquanto para os
antigos a
liberdade era um conceito essencialmente político,
passa a figurar para os medievais somente no
interior de cada ser humano e se
articula com a idéia de vontade
dividida entre bem e mal. A liberdade
afigura-se como livre-arbítrio. Nesse
sentido, percebemos a despolitização
da liberdade e a sua
moralização junto à concepção de culpa originária.
Surge a idéia do dever e da obrigação que exige a
submissão à vontade divina. A noção de
responsabilidade assume um papel novo: a
responsabilidade
individual.
A concepção ética de Tomás de Aquino é
teleológica, porque enfatiza o fim último
do obrar
ético na noção de Bem Comum. A atividade ética
consiste no que denominamos de atividade da razão
prática, ou seja, capacidade racional de discernir
o bem do mal para alcançar o fim último. A sua
filosofia denominou a razão prática de sinderese
ou sinderesis que poderá ser entendida como um
conjunto de conhecimentos conquistados a partir da
experiência habitual. Partindo dessa experiência
podemos cunhar os principais conceitos acerca do
que é bom ou mal; justo ou injusto. 73
A sinderese atua para desvelar o bem, ou
seja, aquilo que a todos agrada ( bonum
est quod
omnia eppetunt). Na visão aquiniana
o mal só encontra sentido enquanto
“bem aparente” e isto significa dizer
que decorre de um equívoco que
pensa o mal como se fosse o bem.
Na verdade Tomás de Aquino
compreendeu o mal como privação
do bem ou estado de ignorância do
verdadeiro Bem.
Segundo Eduardo Bittar: “Todo conjunto de
experiências sinderéticas, ou seja, de
experiências
hauridas pela prática da ação, é capaz de formar
um grupo de princípios, de conceitos (...) que
permitem a decisão por hábitos (bons
e maus; justos e injustos). Isto quer
dizer que os hábitos não são inatos,
mas sim conquistados a partir da
experiência; é essa a base das
operações da razão prática. O
princípio da razão prática, assim
dirigida em sua finalidade, será, como
já se disse fazer o bem e evitar
o mal (bonum faciendum et male vitandum ).”74

72 Idem ibidem, p.14.


73 Ver. Ética a Nicômaco, Livro VII: o agir ético como um agir
pendular entre o vício e a virtude.
74 BITTAR, Eduardo C. B. Curso de ética jurídica: ética geral e
profissional . São Paulo: Saraiva, 2002, p. 232.
56
Nesse modo de ver, o
homem deverá guiar-se por
princípios extraídos da experiência
sinderética. Essa experiência formará
a lei natural que apresentará as
seguintes características: 1. Uma lei
racional, pois é fruto da experiência
racional ou sinderética; 2. Uma lei
rudimentar, ou seja, originária que
somente poderá ser considerada
como princípio norteador; 3. Uma lei
insuficiente e incompleta, no sentido
de que exige o complemento de uma
lei positiva, para a qual representa
uma diretriz.
A ética exige o sentido de
justiça no âmbito das relações entre
homens. Tomás de Aquino apresenta
o seu conceito de justiça a partir
do seu conceito de ethos.
Encontramos ecos do pensamento
aristotélico que concebia a justiça
como uma virtude e o conceito
romano de justiça como vontade
perene de dar a cada um o que é
seu, segundo uma razão geométrica.
A justiça é uma virtude, ou seja, o
meio entre excesso e carência.
Tomás de Aquino afirma expressamente que
justiça é dar a cada um o que é seu: Cum
iustitiae
actus sit reddere unicuique quod suum est, actum
justitiae pracedit quo aliquid alicuius suum efficitur,
sicut in rebus humanis patet .75 A igualdade que
figura nesta definição de justiça é uma igualdade
entre
pessoas. Justiça é um hábito que se desvela nas
atitudes ou comportamentos dos homens. A lei
positivada é importante no sentido de que conduz
o homem ao caminho virtuoso do Bem Comum e
torna a convivência social pacífica.
Bittar observa que na visão aquiniana é
da interioridade virtuosa
que o homem retira o
necessário para a elaboração da
conduta externa, ou seja, o bem que
se pratica é fruto da fé e do
conhecimento da divindade, do temor
de sua onipresença e da vontade de
orientar-se de acordo com a palavra
que salva. Em outras palavras,
podemos afirmar que Aquino quer
dizer que a Lei divina (lex aeterna)
possui uma supremacia que a coloca
em uma instância superior em
relação à lei natural e positiva.
Estudamos que o mundo antigo nos
oferecia o espetáculo da competição
entre duas
sabedorias: a grega e a hebraica. Este conflito
marcou o fim do período antigo e o esforço da
Idade
Média em articular a sabedoria divina com a
sabedoria humana. A sabedoria grega apresentava
um
interesse direcionado para mundo.
Nesse sentido, o seu paganismo
lançava raízes no pensamento
mágico. A razão grega acreditava
no destino, na boa ou má sorte, nas
inspirações superiores, na
adivinhação etc. A razão grega partia da realidade
tangível e visível, do vir-a-ser, do comportamento
humano. Na sabedoria hebraica ou da salvação,
Deus é quem concebe a sabedoria ao homem.
O cristianismo promoveu
uma modificação dos valores éticos:
1. a transcendência do fim último,
onde Deus se torna o valor
supremo. Surge o Deus pessoal
criador do mundo; sendo ele
perfeito, independente e livre. 2. a
transfiguração da felicidade em bem-
aventurança, o que significa

75 Aquino, T. Summa Contra Gentiles, Liv. II, cap. XXVIII, 2.

57
dizer que não é através da razão,
mas da fé que o homem alcança a
felicidade. Esta felicidade está
expressa no sentido de posse ou
visão intuitiva de Deus. 3. as
virtudes teologais (fé, esperança e
caridade) se colocam acima das
virtudes morais.
58
Parte V - O
Jusnaturalism
o

1 - O jusnaturalismo no pensamento antigo e


medieval
As primeiras manifestações do
jusnaturalismo aconteceram na Grécia.
Há a afirmação de um conceito de
“justo por natureza” que se contrapõe
ao “justo por lei” que fora enfat izado
pelos sofistas que já entendiam a
expressão “justo por natureza” de
formas distintas e com conseqüências
políticas também diversas. O mundo
grego antigo desenvolveu um
jusnaturalismo cosmológico.
O jusnaturalismo presente no pensamento
de Platão e Aristóteles, posteriormente
retomado
pelos estóicos, compreendia a
Natureza como se fosse governada
por uma lei universal, racional e
imanente. Essa concepção
apresentada em Roma por Cícero, em
versão racionalista, exerceu grande
influência no pensamento cristão dos
primeiros séculos.
Na obra De Republica, Cícero76 defendeu a
existência de uma lei verdadeira, conforme à
razão,
imutável e eterna, que não muda com os países e
com os tempos e que o homem não pode violar
sem
renegar a sua própria natureza humana. Os
padres da igreja ao acolherem as idéias de Cícero,
s
viram diante de uma grande tarefa: conciliar esse
direito natural com a idéia de lei revelada.
Os juristas romanos também buscaram no
estoicismo a idéia de um direito natural
como, por
exemplo, Ulpiano que chegou a definir o direito
natural com
aquilo que a natureza havia ensinado a
todos os seres animados. Essa idéia
acabou por reduzir o direito natural
ao mero instinto, posto que incluía
também como seres animados os
seres irracionais, ou seja, os
motivados apenas por instinto. Esta
concepção que se configura em uma
versão naturalista, oposta à de
Cícero, foi adotada por muitos
escritores medievais. Temos, portanto,
duas versões do direito natural: a
versão naturalista de Ulpiano e a
versão racionalista de Cícero.
A idade Média se identificava
com a doutrina de um suposto direito
natural revelado por Deus a Moisés e
com o Evangelho (Graciniano – séc.
XII). Foi Tomás de Aquino que
compreendeu a lei natural como
aquela fração da ordem imposta pela
mente de Deus, governador do
universo, que se acha presente na
razão humana – uma norma racional.
O seu jusnaturalismo foi de grande
importância, pois constituiu a base do
jusnaturalismo católico. Tomás de
Aquino foi severamente criticado por
seus coetâneos, mas hoje é
considerado o filósofo medieval mais
importante do catolicismo.
A doutrina tomista foi considerada por
muitos comentadores como uma retomada
do
pensamento estóico-ciceroniano da lei verdadeira
enquanto racional.
Enfim, na época clássica, o direito natural
não era concebido como superior ao direito
positivo,
mas tão somente era considerado como um direito
comum. O direito positivo como um direito especial

76 “Epicuro”.In: Coleção Os Pensadores, São Paulo: Nova


Cultural, 1988.

59
ou particular de uma dada civitas, baseando-se no
princípio de que o direito particular prevalece sobre
o direito geral – “lex specialis derogat generali ”. 77
Não podemos olvidar que a sociedade
medieval era marcadamente uma sociedade
pluralista,
ou seja, inúmeros agrupamentos sociais cada qual
dispondo seu próprio ordenamento jurídico. Nesse
contexto, o direito positivo assumira o caráter de
fenômeno social, posto pela sociedade civil. Por
outro
lado, o direito natural passara a ocupar status
privilegiado, uma vez que adquirira o status de
norma
fundada na própria vontade de Deus – como a lei
escrita por Deus no coração dos homens.
O direito natural é percebido como aquele
contido na lei mosaica, no Velho Testamento
e no
Evangelho. Desta concepção derivou a idéia
jusnaturalista do direito natural como superior ao
direito
positivo. A esse respeito ressalta Norberto Bobbio
que se trata de uma distinção de grau e não de
qualificação, pois tanto um como outro se
configuram como direito na mesma acepção do
termo.
Somente com o advento do positivismo jurídico é
que o direito natural é excluído da categoria do
direito.

2 - Jusnaturalismo no pensamento renascentista e


moderno
Segundo os estudiosos, o termo
Renascimento significa um movimento
intelectual que se
iniciou por volta do final do século XV. O objetivo
perseguido por esses intelectuais era abandonar as
idéias medievais, para um retorno à Antigüidade
clássica. No sentido amplo, Renascimento configura
um momento de tensão entre duas autoridades: a
do Papa e a das monarquias. Trata-se de uma
época de grande crise da consciência
européia, devastada por inúmeras dissensões e
uma
esplêndida florescência do humanismo, ou seja, o
estudo da cultura greco-romana, a exaltação do
homem, a valorização da razão e da
liberdade. Observa-se, portanto, que
nesta fase ressurge um interesse pela
pesquisa natural, na qual a
observação assume papel
fundamental. Surgem cientistas e
filósofos que revisitaram as
questões medievais, a partir de uma
nova ótica. Este é o século de
Shakespeare, Dante, Bocaccio,
Cervantes, Tomas Morus, Camões,
Erasmo de Rotterdam, Maquiavel,
Michelangelo, Leonardo Da Vinci,
Galileu Galilei, Kepler e tantos
outros. Durante essa fase muitos
precursores da ciência sofreram nos
Tribunais da Inquisição, órgão da
Igreja encarregado de descobrir
e julgar os hereges. 78 Foi um momento em que o
homem perdeu suas certezas e verdades, afinal, a
Terra não era mais o centro do universo, o céu
não era finito e o homem deixava de ser criatura
miserável.
Três concepções predominaram no período
do Renascimento, a saber: 1. O
pensamento
platônico, a partir do neoplatonismo e a
descoberta do hermetismo que compreendiam a
Natureza
77 Conforme exprime Sófocles na tragédia grega sob o nome de
Antígona.
78 Giordano Bruno ( 1548-1600) foi
condenado à morte por apresentar a teoria
heliocêntrica de Nicolau Copérnico ( 1473-
1543) e a infinitude do universo. A
inquisição foi reativada no Concílio de
Trento (1545-63)
60
como um grande ser vivo, o homem
como microcosmo e o conhecimento
da Natureza através da magia
natural (alquimia e astrologia). 2.
Os pensadores florentinos que
valorizavam a política e defendiam
os ideais republicanos das cidades
italianas contra o império romano-
germânico, aumentando a tensão
entre os imperadores e o papado
(liberdade política versus
autoridade eclesiástica). 3. A
concepção do homem como artífice de
seu próprio destino através do
conhecimento, da política, das
técnicas e das artes. Essa fase marcou
também o momento inicial de uma
filosofia do direito e do Estado
explícita como resultado do homem
em seu novo papel de criador no
mundo social.
No âmbito religioso, a “Reforma” que tem sido
considerada responsável pelo surgimento do
protestantismo no séc. XVI
fortaleceu o individualismo
intelectual e estético desse
humanismo crescente. Os
reformadores protestantes voltaram
as costas à tradição medieval,
pretendendo com isso reatar a
Antigüidade cristã, um retorno ao
pensamento agostiniano. O que
importa perceber é que, num plano
mais vasto, fortaleceram a oposição à
Escolástica medieval.
Como ressalta Truyol y Serra79, dentre os
acontecimentos mais importantes desta
etapa do
pensamento humano, um alterou profundamente o
cenário europeu: o advento do Estado soberano.
Na verdade vários acontecimentos contribuíram para
essa mudança: o combate ao pluralismo feudal;
a tentativa de enfraquecer o papado; a expansão
da economia no sentido de um capitalismo; o
descobrimento da América; as viagens de
exploração ultramarina pondo o Ocidente em
contato com
outros povos; a criação da Imprensa;
e, sob o aspecto terminológico, o
surgimento da palavra Estado - lo
stato, designando a idéia de coisa
pública. Este é o momento de crise;
crise que caracteriza a transição da
Cristandade medieval para o Estado
moderno.
O jusnaturalismo moderno assumiu no séc.
XVII características laicas 80 e no campo
político,
características liberais. Alguns autores entenderam
que a origem do jusnaturalismo moderno estaria na
doutrina de Hugo Grócio (1583-1645), enunciada na
obra De iure belli ac pacis, 81 de 1625, e se deve à
grande disputa entre as alas extremas do
voluntarismo calvinista e o pensamento tomista de
influência
estóica-ciceroniana. Grócio diferenciou direito natural
e direito positivo da seguinte maneira:
“O direito
natural é um
ditame da justa
razão destinado
a mostrar que
um ato é
moralmente
torpe ou
moralmente
necessário
segundo seja ou
não conforme à
própria natureza
racional do
homem”.

Hugo Grócio afirmou que o


direito natural é ditado pela razão,
independente de qualquer
interferência divina. Esta sua idéia
anuncia o modo de ver da época que
estaria por vir, a época do
Iluminismo, momento do surgimento
de uma nova cultura; uma cultura
laica e antiteológica. Segundo alguns
comentadores, o pensamento de
Grócio teria fortalecido o caminho
para esse pensamento

79 Truyol y Serra, p.5 Do renascimento a Kant.


80 Não eclesiásticas ou leigas.
81 Do direito da guerra e da paz
61
laicizado no âmbito da moral e da política. Este
autor sustentou que o direito natural é imutável e
independente de Deus como
legislador supremo. Na verdade o
direito possui uma dupla origem, a
saber: a recta ratio e a appetitus
societatis (desejo de uma sociedade
tranqüila e ordenada).
A obra de Grócio difundiu
com grande sucesso a idéia de um
direito natural, cuja fonte repousa
exclusivamente na validade da sua
conformidade com a razão humana. A
conseqüência mais relevante do seu
pensamento foi a idéia de adequar a
lei positiva e a Constituição a esse
direito natural e legitimar a
possibilidade de resistência e
desobediência civil em caso de
conflito. Segundo Paulo
Nader82, o pensamento racionalista de Hugo
Grócio forneceu as condições de possibilidades
para o
advento da Escola Clássica do Direito Natural.
A Escola Clássica do Direito Natural
apresentou e defendeu algumas idéias, a
saber: a
valorização da natureza humana como fonte do
direito natural; a crença num suposto estado de
natureza; a idéia de um contrato originário como
origem da sociedade; a existência de direito naturais
inatos. Tais idéias no seu conjunto contribuíram
para o processo de laicização do direito, com
também conduziram ao sentido de um direito
natural imutável, universal e eterno. Além de
Hugo
Grócio, Hobbes, Spinoza, Locke, Puffendorf,
Tomásius e Rousseau foram considerados
representantes dessa escola.
Na Inglaterra, ao largo do pensamento do
holandês Hugo Grócio, temos a obra Dois
tratados
sobre o governo, de John Locke,
escritos em 1680 e publicados em
1690 que já observava limitações ao
poder real. O jusnaturalismo de
Grócio e o jusnaturalismo do séc.
XVII foram de grande importância,
pois fundamentaram teoricamente o que
entendemos por direito internacional daquela época
que, por
sua vez, apresentava-se sob o nome: Do direito
natural e das gentes .

3 - Características do jusnaturalismo moderno


A diferença marcante entre
o jusnaturalismo antigo-medieval e
o jusnaturalismo moderno repousa
sobre o fato de que o primeiro
vincula-se à idéia de que tal direito
constituiria uma teoria do direito
natural como norma objetiva; o
segundo momento do jusnaturalismo
configura o momento de uma teoria
dos direitos subjetivos. Bobbio
observa que entre o direito natural da
Antigüidade clássica, do período
medieval e do período moderno não
há rupturas, mas continuidade.
O jusnaturalismo moderno enfatiza o
aspecto subjetivo do direito natural, isto é,
os direitos
inatos, deixando de lado o aspecto
objetivo, o da norma. Por conta
deste traço essencial, o
jusnaturalismo do séc. XVII e XVIII
fundamentou doutrinas políticas de
tendência individualista e liberal,
ressaltando peremptoriamente a
necessidade do respeito e
reconhecimento desses direitos por
parte da autoridade política.

82 NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense,


2003.
62
Esse modo de ver modifica
também a figura do Estado que
passa a não ser mais visto como
instituição necessária por natureza,
mas sim como obra voluntária dos
indivíduos. Os indivíduos
abandonam o estado de natureza
(diversamente entendido, mas
sempre carente de organização
política) e fazem surgir o Estado
politicamente organizado e dotado de
autoridade para garantir os
direitos naturais. A legitimidade do Estado é
assegurada por um pacto entre cidadãos e um
soberano,
visando salvaguardar os direitos naturais.
As doutrinas jusnaturalistas modernas
consideraram a sociedade como efeito de
um contrato
entre os indivíduos; este contrato se desdobraria
em dois momentos: o pacto de união e o pacto de
sujeição. Direitos inatos, estado de natureza e
contrato social, conquanto diversamente entendidos
pelos vários expoentes do jusnaturalismo moderno
(Grócio, Locke, Milton, Pufendorf, Cumberland,
Wollf, Vattel, Rousseau, Kant, Fichte) são conceitos
característicos desta corrente de pensamento. Isto
quer dizer que se acham presentes em todas as
doutrinas legítimas dessa corrente de pensamento
político.
Faz-se mister ressaltar que,
sobretudo em Rousseau e Kant, a
teoria do contrato afigurou-se como
uma historieta de ficção, ou mera
idéia reguladora capaz de explicar
racionalmente a realidade histórico-
política da formação do Estado.
A tradição constitucionalista inglesa inspirou-
se na doutrina do direito natural, como
também na
Declaração da Independência dos Estados Unidos da
América (1776), que afirmaram a existência de
direitos do homem inalienáveis. Nesse sentido, a
Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão (1789)
configurou um dos primeiros atos da Revolução
Francesa que proclamou a liberdade, a fraternidade e
a igualdade.
Outro efeito importante do
jusnaturalismo moderno foi a
reformulação da legislação positiva
para torná-la adequada às novas
exigências. Sentiu-se em certo
momento uma forte necessidade de
reforma legislativa, assim, o
jusnaturalismo com sua teoria de um
direito absoluto e universalmente
válido, enquanto ditado pela razão,
seria capaz de oferecer as bases
doutrinais para uma reforma racional
da legislação.

4 - As teorias do contrato e o direito natural


Por contratualismo entendemos teorias
diversas com problemas e soluções também
diversas.
Em sentido amplo, o contratualismo compreende
aquelas teorias políticas que vêem a origem da
sociedade e o fundamento do poder
político na figura jurídica do contrato,
ou seja, um acordo tácito ou expresso
entre a maioria dos indivíduos,
acordo que assinalaria o fim do
estado natural e o início do estado
social e político. Em sentido restrito,
representa uma escola que floresceu
na Europa entre os começos do séc.
XVII e fins do séc. XVIII, que teve
os seguintes expoentes: J. Althusius
(1557-1638);

63
T. Hobbes (1588-1679); J. Spinoza (1632-1677); S.
Pufendorf (1632-1694); J. Locke (1632-1704); J.-J.
Rousseau (1712-1778), I. Kant (1724-1804).
Tais autores apresentaram o
uso comum de uma mesma sintaxe
ou estrutura conceitual para
racionalizar a força e alicerçar o
poder no consenso. Desta forma,
podemos compreender dois níveis
distintos, a saber:

1 - Os que sustentavam a passagem do estado de


natureza ao de sociedade como um fato histórico
realmente ocorrido para dar conta do problema
antropológico da origem do homem civilizado;
2 - O estado de natureza como mera
hipótese lógica a fim de ressaltar a
idéia racional ou jurídica do Estado.
Nesta concepção o fundamento da
obrigação política repousa consenso
expresso ou tácito que legitima uma
autoridade que os represente e encarne
(contratualismo clássico).
Encontramos, assim, a idéia
do direito como a única fonte de
racionalização das relações sociais.
Três fatores explicam essa idéia: a
influência da escola do direito
natural com a qual o
contratualismo está relacionado; a
necessidade de legitimar o Estado, as
leis criadas pelo soberano que
tenderiam a substituir o direito
consuetudinário; construir um
sistema jurídico que evidencie a
autonomia dos sujeitos desse contrato, colocando
como base de toda juridicidade o pacta sunt
servanda.

5 - O conceito de jusnaturalismo segundo Guido


Fassò
O jusnaturalismo é uma
doutrina que afirma a tese segundo a
qual existe e pode ser conhecido um
direito natural, ou seja, um sistema
de normas de conduta diversa do
sistema constituído pelas normas
fixadas pelo Estado. Este direito
natural teria validade em si, seria
anterior e superior ao direito
positivo e, em caso de conflito, ele prevaleceria.
O jusnaturalismo é uma doutrina oposta ao
positivismo jurídico que enfatiza a existência
de um
só direito, aquele estabelecido pelo Estado e cuja
validade não dependeria de valores éticos.
Na história da filosofia jurídico-política
surgiram três versões do jusnaturalismo: a
de lei
estabelecida por vontade da divindade e por esta
divindade levada aos homens; a de lei natural em
sentido estrito e co-natural a todos os seres
animados; a de lei ditada pela razão, específica
do
homem, animal racional, que a encontra dentro de
si. Todas essas versões partem do pressuposto que
o direito natural é constituído de normas
logicamente anteriores e eticamente superiores às do
Estado.
Qualquer atividade política que se oponha às
normas do direito natural será considerada ilegítima.
Enfim, os jusnaturalistas admitiam a
existência de um suposto estado de
natureza, ou seja,
uma forma de convivência onde existiam apenas
relações intersubjetivas entre os homens, sem um
poder político organizado. Este
seria o momento anterior à
formação da sociedade política,
caracterizando-se por possuir um
direito natural.

64
6 - Proposta para uma distinção entre direito
natural e direito positivo
Segundo ensina Norberto Bobbio, na obra
O positivismo jurídico, a clássica distinção
entre
direito natural e direito positivo já se encontra
claramente exposta no cap. VII, do Livro V, da
Ética a
Nicômaco de Aristóteles. Nesta obra o
direito positivo é denominado de
direito legal; o direito natural se define
pelos termos “justiça” e “direito”. Para
Aristóteles, o direito natural possui
eficácia em toda parte e prescreve
ações cujo valor não exige
ajuizamentos, sua bondade é objetiva,
são ações consideradas boas em si
mesmas. O direito positivo tem
eficácia apenas nas comunidades
políticas em que é posto; o direito
positivo é aquele que estabelece
ações que, antes de serem reguladas,
podem ser cumpridas
indiferentemente de um modo ou de
outro, mas se imposta por lei,
devem observar o seu modo
prescrito em lei.
No direito romano a dicotomia direito
natural e direito positivo pode ser vista a
partir da
distinção entre jus naturale (inclui-se aqui o jus
gentium) e jus civile, que seria o correlato ao
nosso
direito positivo. Segundo Bobbio, o
primeiro tipo de direito corresponderia
à natureza, à razão natural e o
segundo tipo corresponderia às
estatuições do povo. O direito
natural seria aquele que a natureza
ensina aos homens e o direito
positivo aquele organizado por um
determinado povo em uma
determinada época.

7 - Critérios de distinção entre direito natural e


direito positivo
Norberto Bobbio enumera seis critérios para
distinguir direito natural e direito positivo, a
saber:
1. O primeiro critério baseia-se na antítese
universalidade/particularidade: o direito natural é
universal; o direito positivo particular (Aristóteles).
2. O segundo critério repousa sobre a
diferença entre imutabilidade e mutabilidade: o
direito
natural é imutável; o direito positivo é mutável
(Paulo). 83
3. O terceiro e mais importante critério refere-
se à fonte do direito: o direito natural funda-se no
poder da razão; o direito positivo, no poder do povo
(Grócio).
4. Este critério refere-se ao modo pelo qual o
direito é conhecido por seus destinatários: o direito
natural é conhecido pela razão; o direito positivo é
conhecido através de uma declaração de vontade.
5. Este critério concerne ao objeto de cada
direito: o comportamento regulado pelo direito
natural
poderá ser considerado bom ou mau por si mesmo;
o comportamento observado pelo direito positivo
depende da sua tipificação para ser justo ou injusto.
6. O último critério refere-se à valoração das
ações: o direito natural estabelece o que é bom; o
direito positivo o que é útil.
83 Observa-se que este critério não pode ser
atribuído a Aristóteles, pois este filósofo
entendia que o direito natural poderia mudar
no tempo.
65
É preciso não perder de vista a importância
do direito natural para a reflexão jurídica e
que
este direito não pode ser considerado
como mera filosofia do direito
positivo, mas está presente em todas
as dimensões da juridicidade. Nos
dizeres de Paulo Nader:
“Se no Direito natural se
destaca a atuação do filósofo e
no Direito Positivo, a figura do
jurista, é de reconhecer que
não podem as duas ordens
se apresentar como
departamentos
alheios entre si.
A formação do
Direito Positivo
e sua aplicação
exigem a
atuação do
jurista prático e
a presença do
teórico,
identificado este
com o
jurisfilósofo. Se
o conjunto de
princípios é
alcançado pela
reflexão, a sua
conversão em
Direito Positivo,
sem se esgotar,
exige o jurista
prático. Como
a tarefa do
Direito Natural
não se limita
na orientação ao
legislador, pois
deve influenciar
na aplicação do
Direito aos
casos concretos,
o juiz deve
possuir o pendor
para a reflexão,
pois a sua
missão não lhe
impõe o
sacrifício da
neutralidade
axiológica.”84

De um modo geral, podemos observar, de


acordo com o pensamento de Giovanni
Reale 85, que
os estudos de Filosofia do Direito ao longo de
nossa história baseavam-se em três esferas distintas
entre si86: a esfera do jusnaturalismo; a esfera do
realismo jurídico e a esfera do positivismo jurídico.
Não há dúvida de que o jusnaturalismo
configura uma doutrina muito antiga que
relacionou
direito e justiça. O pensamento jusnaturalista de
Gustav Radbruch (1878-1949) expresso na obra
Filosofia do Direito (1932) apresenta claramente essa
relação entre validade e justiça:
“Quando uma
lei nega
conscientemente
a vontade de
justiça – por
exemplo,
concedendo
arbitrariamente
ou rejeitando os
direitos do
homem -, falta-
lhe validade (...)
Oos juristas
também devem
encontrar a
coragem para
rejeitar-lhe o
caráter jurídico.
Pode haver leis
tão injustas e
danosas
socialmente que
é preciso
rejeitar-lhes seu
caráter jurídico
(...), já que
existem
princípios
jurídicos
fundamentais
mais fortes do
que toda
normatividade
jurídica, a tal
ponto que uma
lei que os
contradiga
carece de
validade. Onde
a justiça não é
sequer
perseguida e
onde a
igualdade, que
constitui o
núcleo da
justiça , é
conscientement
e negada pelas
normas do
direito positivo,
a lei não apenas
é direito injusto,
mas em geral
também carece
de juridicidade”.
O maior problema da doutrina jusnaturalista
está em compreender a seguinte questão: o
que é
a justiça? Seria possível encontrar
critérios que nos permita estabelecer
definitivamente o que é o justo? Essa
pergunta constitui o pano de fundo do
pensamento jusnaturalista, ao mesmo
tempo em que se desvela como seu
maior desafio.
Quando estudamos o direito
natural, não estamos afastados da
nossa realidade concreta, mas
imersos no pensamento dos seres
humanos comuns ou medianos.
Todos nós, independentes de credo,
temos interesse por uma vida digna,
ou seja, justa. Nesse sentido, os
anseios da doutrina
jusnaturalista estão presentes na própria
experiência vivida. Desejamos direitos naturais
como a
liberdade, a igualdade, o respeito à diferença e à
paz. Lutamos por direitos humanos e o direito a
um
ambiente ecologicamente
equilibrado, porque temos como
pano de fundo os pressupostos
jusnaturalistas.
84 NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p.163. Sugiro a leitura do capítulo XIII – “A doutrina do
Direito Natural”, pp. 154-172.
85 REALE, Giovanni. História da Filosofia: Do romantismo até
nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p.907.
86 Falarei do realismo jurídico e do positivismo na apostila “O
positivismo Jurídico”.
66
Os direitos naturais não configuram a base
fundamental para a vida em sociedade? O
Direito
pode estar desvinculado dessa
dimensão? Apesar dos esforços de
muitos filósofos e juristas ou de
juristas-filósofos, temos uma grande
e árdua tarefa: a de refletir sobre
essas questões, porque o valor justiça
é indispensável.
Podemos entender por direito natural os
princípios que norteiam as fontes geradoras
da norma
jurídica e que também atuam efetivamente em
sua aplicação. Princípios que são a-históricos e,
portanto, não se confundem com os desdobramentos
posteriores, quando submetidos à mutação. São
princípios e não normas. O direito natural não se
reduz ao sentido de um direito costumeiro, mas um
direito costumeiro possui elementos do direito
natural. O direito natural é a própria expressão da
natureza humana, não resulta do mundo da vida.
O seu lugar ontológico não é a cultura, mas a
natureza humana.
Temos, portanto, normas de direito positivo
com raiz costumeira e normas de direito
positivo
com fundamento no direito natural. O direito
natural, na verdade, se confunde com os próprios
princípios gerais do direito que estão na base da
elaboração das normas e na sua aplicação ao caso
concreto.

8 - Hobbes, Locke e Rousseau.

8.1 - Thomas Hobbes (1588-1679) 87


No entendimento de Thomas
Hobbes (1588-1679), o poder
soberano é instituído no momento
em que uma multidão de homens
passa do estado de natureza ao
Estado político, isto é, do estado de
guerra permanente de todos contra
todos ao Estado enquanto centro
ordenador da vida em sociedade,
capaz de promover a paz, a
segurança e o bem estar de todos
os súditos. Os homens
passam a viver sob a “espada pública” da lei,
condição de eficácia dos pactos firmados. Nesse
momento, celebra-se o pacto maior
quando todos põem suas vontades
particulares ao serviço do bem
maior, à vontade do soberano que
não é outra senão o interesse pelo
bem comum, somente possível em
razão do poder coercitivo do Estado.
O poder soberano no sistema hobbesiano
é aquele exercido por um homem ou por
uma
assembléia de homens, uma vez cedido e transferido
o domínio que cada um tem sobre si mesmo em
favor do Estado - juiz capaz de impor uma só
vontade - unidade necessária ao interesse do bem
comum, na certeza de que o mesmo
é assegurado pela paz. Destaca-se
que esse soberano, embora sendo
fruto do pacto firmado por todos,
não faz parte do pacto, não é
figura contratante, não estabelece
nenhuma relação de bilateralidade
com este ou aquele membro da
sociedade, sua ação

87 O item 8 é de autoria de Wellington Trotta

67
fundamenta-se no preceito erga omnis, sendo
portanto livre no exercício do poder. Sua ação é
sempre
justa.
Sendo o Estado conditio sine
qua non à preservação da paz e da
justiça, este mesmo Estado detém os
meios necessários ao fim perseguido.
Tais meios são absolutos, não há
nenhuma divisão de poder, pois o
soberano em suas determinações o
tem como força instrumental na
execução da justiça, ou seja, no
respeito aos contratos válidos, visto
que numa sociedade fundada na lei,
todo e qualquer contrato válido deve
ser cumprido, pois isso é a perfeita
expressão de justiça, a garantia dos
interesses firmados. Entretanto, caso
assim não proceda, instala-se a
insegurança, é o retorno ao estado
de natureza, a fragmentação, a
guerra de todos contra todos em
ato e potência, a beligerância
propriamente dita e sua permanente
pré-disposição: a insegurança total.
O soberano é o supremo
mandatário, exerce o poder no firme
propósito de manter a paz e
possibilitar as condições necessárias
ao quotidiano da vida. Os membros
dessa sociedade podem trabalhar, ter
propriedade, utilizar as estradas em
segurança, sair de casa sem nenhum
medo de saque, desenvolver a
indústria e o comércio, expandir
riquezas e dormir tranqüilamente. O
soberano representa a soberania do
Estado e guarda zelosamente a
sociedade constituída. Seu poder não
é um fim em si mesmo, é apenas
instrumento de coesão das forças
existentes, sua finalidade consiste na
esperança de todos celebrando e
respeitando contratos. O soberano
deve ser forte para impor sua
autoridade, tanto no plano interno
quanto no externo, o receio da
punição leva o respeito à lei por parte
dos súditos, o firme e violento contra-
ataque do seu exército é a medida da
segurança territorial de toda e
qualquer invasão externa.
Finalizando, os limites do
soberano, os limites da soberania
exercida por um só corpo político
absoluto estão relacionados ao
exercício de sua função. Aquela
multidão de homens quando instituiu
o Estado, o poder soberano, designou
seu representante para exercer
autoridade necessária e eficiente ao
interesse da unidade dos homens,
garantindo justiça e paz, em troca
oferecendo toda obediência
possível. Em nome dessa obediência e da
representatividade, o soberano não pode promover
injustiças e insegurança no plano interno e no plano
externo. Tanto o bem do povo quanto o bem do
soberano são inseparáveis, este é o legítimo
representante daquele, instituído para fazer valer o
bem
comum, o fim de todo Estado: justiça e
segurança. Quando esse fim não é alcançado e os
súditos
passam a viver sob o estado de insegurança, como
vítimas de injustiças, não encontram no soberano
o poder de solução (podendo ser até
o soberano agente de injustiças e
insegurança), só lhes resta o uso da
razão, manter sua existência,
garantir sua vida da melhor maneira
possível, o que seria o retorno à
barbárie.

68
8.2 - John Locke (1632-1704)

A proposta do presente
seminário é analisar os conteúdos
daquilo que comumente
entendemos por direitos civis e em
que medida o pensamento lockiano é
suficiente para responder as
exigências das novas relações
políticas existentes em nossos dias.
Toma-se John Locke (1632-1704) por
fundamento em razão de uma tese
muito simples: ao se debruçar sobre a
Constituição brasileira de 1988, logo
se percebe os valores da livre
iniciativa, do trabalho, da
propriedade e da divisão dos poderes
políticos com o propósito de
organizar um governo civil capaz de
atinar para as expectativas dos
indivíduos. Se de fato isso ocorre
ou não na ordem material, constitui
um problema a ser devidamente
estudo.
Destarte dividiu-se o
presente texto em três tópicos e
uma conclusão. O primeiro tópico
trabalho a noção de direitos civis a
partir da Carta de 1988 sem travar
nenhuma discussão doutrinária. No
segundo tópico faço uma pequena
resenha do pensamento político de
Locke, situando-o na tradição
filosófica como um pensador
preocupado com a ordem legal nas
relações de sociedade. N terceiro e
último tópico, destaco o sentido de
legalidade tanto como premissa
fundamental para o pensamento de
Locke, como uma realidade
construída enquanto algo necessária
ao bom termo da sociedade.
8.2.1 - Noção de direitos civis dentro da
Constituição de 1988
Primeiramente é preciso entender o
significado de direitos civis e com isso
verificar o grau de
responsabilidade que a constituição de 1988 impôs
ao Estado brasileiro na consecução de seu fim.
Por direitos civis pode-se entender todos
os direitos concernentes ao homem no
tocante à
vida, à liberdade, à segurança, à igualdade e à
propriedade nos termos estabelecidos pela lei.
Esses
são os elementos que informam os direitos civis
na constituição brasileira de 1988, no seu art. 5º.
Entende-se que tais direitos são
essenciais não só ao plano do
indivíduo como também ao plano
coletivo, portanto os direitos civis
assumem a dimensão de
necessidade social. A satisfação do
indivíduo implica no equilíbrio da
sociedade que é pensada como um
corpo representado na perspectiva
dos seus componentes. Para pensar os
direitos civis (aqueles individuais e
coletivos) face à exclusão social que
atormenta a vida brasileira,
focalizou-se o item propriedade
como problema central. Isso porque
a propriedade no nosso sistema
político assume a possibilidade do
homem se
manifestar não somente como igual, mas também
como necessariamente responsável pelo corpo
social.
Pode-se dizer que a propriedade assume
um caráter imprescindível nas relações
político-
sociais, porque implica o nível de liberdade do
indivíduo e o sentir-se cidadão de fato. A
propriedade

69
corrobora o nível do indivíduo na
sociedade. A propriedade pronuncia
o real sentido de cidadania porque
sou cidadão quando disponho de mim
mesmo como ser capaz de produzir.

8.2.2 - Jusnaturalismo e a doutrina política de


John Locke
Partindo, pois, de tal
premissa, pode-se pensar com Locke
que o corpo político tem por fim a
administração dos conflitos dos
homens em sociedade no tocante
ao respeito do direito de
propriedade. No entanto, para isso é
preciso que analisemos o
pensamento desse filósofo inglês.
Tomemos como ponto de partida o
significado de direito natural para
depois situar seu pensamento.
O cientista político italiano Guido Fassò
assevera que:

“Jusnaturalismo é
uma doutrina
segundo a qual existe
e pode ser conhecido
um „direito natural‟,
ou seja, um sistema
de normas de
conduta
intersubjetiva
diverso do sistema
constituído pelas
normas fixadas pelo
Estado (direito
positivo). Este direito
natural tem validade
em si, é anterior e
superior ao direito
positivo e, em caso
de conflito. E ele
que
deve prevalecer” . 88

Em contrapartida há
especificidades dentro do pensamento
jusnaturalista, a começar pela
distinção entre junaturalismo antigo e
jusnaturalismo moderno. Enquanto
este constitui uma teoria dos direitos
subjetivos, aquele se assenta na tese
de que o direito natural deveria
representar um sistema de normas
objetivas, cravadas no cotidiano
legal da sociedade. A tese
jusnaturalista moderna compreende
que o direito natural expressa uma
relação de princípios compreendidos
pela razão, ou se quisermos como
Locke, descoberta pela razão, que
é justamente a capacidade de
compreensão existente nos homens.
Tais direitos não seriam uma
construção dos Estados ou das
legislações, mas um ditame da justa
razão que mostraria aos homens os
limites daquilo que convém.
É nesse contexto que surge a
figura de John Locke como um
verdadeiro filho do século XVII. O
jusnaturalismo de Locke pressupõe
uma ordem universal a partir de um
Deus que criou os homens para o
propósito segundo o qual, todos pelo
trabalho, pudessem construir sua
prosperidade. Nesse aspecto, a
prosperidade está diretamente
relacionada ao sentido de
propriedade, que para o filósofo
inglês pode ser sintetizada em vida
(bem estar), posses e liberdade. Para
Locke, todo homem tem
direito ao fruto do seu trabalho, logo a
propriedade assume o status de categoria
político-
epistemológica. Enquanto
epistemológica promove a
compreensão da propriedade como
chave dos movimentos políticos, que
por sua vez determina a forma de
organização coletiva visando um
modo de produção de bens à vida
material.
Nesse contexto, podemos perguntar ao velho
Locke o que levou o homem a deixar o
estado de
natureza, situação de relativa paz, para fundar
uma sociedade civil, já que esta toma daquela a

88 Bobbio, Norberto (org.) Dicionário de ciência política .


Brasíkia: UnB, 2000: 655.
70
irrestrita liberdade e não apresenta, aparentemente,
nenhuma diferença qualitativa no que diz respeito
à felicidade, à propriedade e ao bem estar dos
homens. Locke, com certeza, responderia que
vivendo
sob a sociedade civil o homem terá mais segurança
para desfrutar daquilo que ele concebe, lato sensu,
como propriedade: vida, liberdade e posse. A
sociedade civil não tem outro fim senão defender
tal
valor, tal princípio, tal necessidade existencial. É
na propriedade que os homens dimensionam suas
possibilidades e constroem a felicidade por meio do
trabalho, gênese do bem estar social. Em Locke
não há como separar felicidade de
liberdade, trabalho de propriedade,
justiça de bem estar comum, riqueza
sem esforço permanente. Em torno
de tais perspectivas funda-se uma
sociedade que será absorvida por
uma organização política capaz de
promover a justiça sob o primado da
lei.
Locke não concebe uma
sociedade civil vivendo sob o arbítrio
de um poder absoluto, capaz de
resolver tudo pela onisciência. O
poder absoluto não visa o bem
comum. Seu julgamento sempre será
parcial e voltado para si mesmo, uma
espécie de ação por reflexo, onde o
poder total está em sua volta para
inteira satisfação. No sistema
absoluto, o imperioso é a vontade
particular, contrária aos interesses de
todos, pois ameaça à propriedade e o
resultado do seu trabalho. O poder
para Locke é sempre uma relação
entre os homens, uma renúncia
coletiva capaz de estabelecer padrões
possíveis de conduta; por isso a lei
será o novo referencial, a ordenação
precisa dessa mesma conduta. Nesse
ponto, afirma Locke: “Ninguém pode na sociedade
civil isentar -se das leis que a regem” . As garantias
devem ser iguais para todos no corpo
político. Isso porque pelo direito
natural somos todos iguais, e a
sociedade civil apenas deve, pela
legalidade, ratificar tal princípio.
Sendo a sociedade civil uma
construção pelo consentimento,
observa-se imediatamente a razão
como instrumento dessas vontades
particulares consentidas, e que
precisam contratar os meios pelos
quais essas concessões serão
respeitadas. Locke aponta a lei
como guardiã dessa vontade
expressa pela racionalidade. É a lei e
não mais o absolutismo o parâmetro
da vida em comunidade; é preciso
que haja uma lei definidora para
julgar corretamente cada caso
apresentado ao conselho. É preciso a
constituição de um juiz permanente,
conhecido, imparcial e que governe
seu julgamento sob a égide da lei,
elaborada pela mesma sociedade civil
por meio de representação
parlamentar. Se a lei obedece ao
critério da razão, seu surgimento só
pode ser construído pela discussão, e
o fórum dessa discussão é o
Legislativo.
A sociedade é um corpo
político, orgânico, comandada pelo
princípio da legalidade que se
constrói no parlamento, chamado por
Locke de poder supremo. Esse poder
supremo é a representação da
sociedade, o garante da justiça, do
bem estar comum. Nele está a
esperança da preservação da
sociedade que se constituiu para tirar
o melhor proveito possível da
propriedade. O Legislativo sendo
expressão da vontade da sociedade,
símbolo da sociedade civil, não pode
transferir sua competência a outro
poder, sua extensão visa a permitir
que a sociedade seja a verdadeira
fonte de poder, e que sua

71
ação não seja mais que a chancela política de
seus interesses. O Poder Legislativo não passa de
representação popular, por isso é
supremo e a ele são
submetidos os poderes
executivo e federativo. O
Poder Legislativo só é o
ordenador da sociedade
porque tem representação
popular e sua
destinação é elaborar leis justas e
precisas ao bem comum. O Poder
Executivo é aquele que executará as
leis, poder permanente na
administração dos negócios públicos
escolhidos pelo Legislativo. Atua no
âmbito comunal, nos problemas intra-
sociedade. O Poder Federativo é uma
extensão do executivo, sua
função é relativa aos negócios estrangeiros, quanto
à paz, quanto à guerra. Os exercícios dos poderes
Executivo e Federativo podem ser
realizados pelos mesmos membros,
distintos do Legislativo, cujos
membros não podem pertencer a
outro poder. Outra característica do
Legislativo é que sua atuação não é
permanente, sua finalidade é elaborar
leis, uma vez elaboradas extingue-se
a legislatura e seus membros voltam
a ser súditos.
Locke deixa claro em seu
Segundo Tratado Sobre O Governo
Civil , que a sociedade sob um poder
político, o Estado, somente existe para
promover a paz na possibilidade da
segurança permitir o gozo e o uso da
propriedade, bem como na execução
da justiça entendida como bem estar
comum. O Estado não existe para
satisfazer um grupo de pessoas, sua
ação positiva visa toda comunidade,
justamente associada aos interesses
dos homens que deixaram as
incertezas do estado de natureza para
viverem sob uma ordem legal. Locke
afirma que o corpo político está
subordinado à sociedade, portanto,
seus atos não podem contrariar tal
princípio, e assim não acontecendo, o
Estado declarando guerra à sociedade
em razão de sua insubordinação,
enseja o direito à resistência e, por
fim, o dissolverá para constituir um
outro Legislativo para um novo
governo.
Ao construir sua tese de que
o homem abandona o estado de
natureza e contrata com outros
homens a sociedade civil para a
preservação da propriedade, Locke
está pensando naqueles homens
proprietários de terra, portanto não
levando em consideração aqueles
que não possuem alguma
propriedade, inclusive os que não
possuem a si mesmos. Todavia,
forçosamente podemos pensar que o
filósofo inglês trouxe algo de
diferente, mesmo não atentando para
tal princípio, que sendo a
propriedade um direito natural, e os
homens iguais, todos, sem distinção
devem ser contemplados no seu
direito ao uso, gozo e disponibilidade,
daquilo que constituiu pelo trabalho.
Nesse sentido, pode-se, por relação,
supor que todos aqueles que formam
uma sociedade devem ter direitos
resguardados por ela.

8.2.3 – Poder Legislativo e as leis como premissas


de segurança política
Ao iniciar o capítulo XI do Segundo
Tratado, Locke enfatiza que o objetivo pelo
qual o homem
ingressa na sociedade civil consiste em construir
normas para garantir a propriedade e, nesse sentido

72
cabe ao Legislativo o papel de edificá-las na
proteção da vida, posse de bens e liberdade, ao
que o
nosso autor chama de propriedade.
Na formulação política
lockiana, o papel do Poder Legislativo
é de ordem primordial, isto é, tem a
função de estabelecer normas
necessárias à existência da sociedade
como um corpo político, e
sendo assim, o Poder Legislativo assume o status
de poder supremo dentro de uma sociedade que
pretende como governo a própria
legalidade. Para Locke, o poder
legislativo institui normas para
comandar a sociedade, o Executivo
para aplicá-las, por fim estabelecer
funções de poder distintas para que
não haja arbitrariedade por parte dos
poderes constituídos. Se o Poder
Legislativo agir de forma diversa de
sua destinação, ou se todos os
poderes, em seus atos, não
respeitarem o povo, que é o
verdadeiro soberano, caberá ao próprio povo apelar
para os céus no sentido de desobediência civil.
Para Locke, tais poderes públicos
somente existem em função do
soberano que é o povo, logo seria
absurdo um governo ou mesmo um
Estado que fuja de suas funções
essenciais. Caso ocorra, caberá ao
povo destitui-lo e formar um outro
que atenda ao pacto firmado como fim
último.
A legalidade é o espírito do
sistema político lockiano. Claro que
essa legalidade pode se tornar algo
conservador para aqueles que estão
fora do círculo dos proprietários que
por sua vez organizam a sociedade.
Mas o que importa é destacar a
legalidade submetida ao povo, o
Legislativo submetido ao povo e a
administração submetida a esse
mesmo povo.
O dado da exclusão social é
sem sombra de dúvida o fato de não
possuir propriedade, ou pelo menos
não possuir a si mesmo como tal. Os
homens acordam entre si os limites
de suas ações para que esse limite
seja administrado pela sociedade na
pessoa do poder público, isto posto
leva ao raciocínio que o Estado em
sua função precípua, de administrar
os limites das ações humanas em
sociedade, não pode se furtar do
dever de contemplar os seus
membros em suas múltiplas
expectativas. Ou o Estado exerce o
seu papel na contemplação dos seus
fins, ou pode se destituído de
suas funções para que um outro modelo leve em
conta os homens como realmente iguais.

9 - Jean-Jaques Rousseau (1712-1778)


“O homem nasce livre e por toda a parte
encontra- se a ferro”,89 acorrentado por
cadeia de
elos convencionados. Assim JJ Rousseau (1712-
1778) inicia a famosa obra, O Contrato Social, com
uma observação pertinente: a
liberdade não é algo relacionado à
convenção ou mesmo uma
prerrogativa legal, mas uma
condição natural, existencial, algo
intrínseco à própria condição
humana, visto ser a liberdade uma
necessidade pré-social. É a liberdade
a única e possível condição legítima
de organização social, onde repousa
toda autoridade subordinada à
vontade de uma idéia coletiva. A
liberdade é a própria qualidade
humana, a escravidão como
antítese é a plena renúncia dessa

89 Rousseau, JJ. O contrato social. RJ: Edições de Ouro, s/d:


28.
73
humanidade, sustentada por
convenção e interesses mesquinhos.
Foi para garantir a liberdade e os
bens que o homem superou as
inconveniências do estado de
natureza e instituiu o que chamamos
de sociedade civil. Tal passagem, a
do estado de natureza ao estado de
sociedade, supõe que ocorreu nas
condições em que os homens
tinham pela frente obstáculos
prejudiciais à sua conservação e
limite de forças que cada um dispunha; o estágio
primitivo já não podia subsistir, e o gênero humano,
se não mudasse de modo de vida,
pereceria . Os homens trocaram
sua liberdade irrestrita pela
liberdade civil, “sendo, porém, a
força e a liberdade de cada indivíduo os
instrumentos primordiais de sua
conservação” (Rousseau, s/d: 35).

“Qual é o fim da associação


política? A conservação e a
prosperidade de seus membros.
E qual é o meio melhor de que
se conservam e progridem? Seu
número e população” 90

O contrato social tem como


fim buscar uma associação que
guarde a pessoa e os seus bens, em
que todos, unidos pelo mesmo
objetivo, cada um obedeça a si
mesmo, procurando manter-se tão
livre quanto livre fora no estado de
natureza. Sendo assim Rousseau
dimensiona a liberdade como
valor absoluto. A sociedade civil não se estrutura
para livrar-se do medo permanente do homo homini
lupus, como também não se
organiza para proteger e gozar a
propriedade por mais amplo que seja
o seu conceito. O pacto social visa
a conservar a liberdade garantindo a
posse e sua transformação em
propriedade pelo trabalho, pela
cultura do cultivo e da produção,
ora garantida pela vontade geral,
positivamente sob forma de lei,
emanada do soberano. Nesse sentido
todos os cidadãos são iguais.
Rousseau concebe vontade
geral como expressão de um desejo
de todos, vontade comum. Essa
mesma vontade geral não é uma
soma de vontades particulares, mas
a materialização do soberano, a
suprema fonte de poder da
sociedade, instância deliberativa do
corpo político, em que o povo se
assume como ser livre sustentado
pela igualdade. A igualdade é
uma condição de semelhança na
sociedade civil, o soberano não
admite em seu seio homens
desiguais, pois se assim não fosse a
soberania não seria uma emanação
de poder e sim de lutas individuais,
representando interesses particulares.
O soberano só pode ser o povo no
seu momento de deliberação
legislativa, de exposição da vontade
geral.
Não podemos esquecer que Rousseau
desconsiderava importante qualquer
mediação
parlamentar. O poder soberano exerce a função
de ordenar a vida social, todos os súditos são
obrigados ao poder soberano, mas o poder
soberano não é obrigado aos súditos: “não há nem
pode
haver qualquer espécie de lei
fundamental obrigatória para o corpo
do povo, nem sequer o contrato
social” (45); é o soberano a
legitimação da ordem social onde se
dará sob forma de assembléia, fonte
da vontade geral.

90 Idem: 120.
74
O pacto social dá ao poder
soberano, corpo político da
sociedade civil, poder absoluto
sobre seus membros, inclusive sobre
a propriedade, que só existe
enquanto possibilidade jurídica
graças à legitimação desta por parte
do soberano. O limite do poder
soberano está adstrito ao contrato
social
naquilo que se convencionam naquilo que ficou
firmado como interesse público. É o interesse
público
o norte do poder soberano em suas
deliberações; sua instituição obedece
aos princípios da liberdade e da
igualdade, na lei como força da
vontade geral, meio que fixa,
estabelece todos os direitos e
deveres dos cidadãos. O poder
soberano pela sua própria natureza é
quem institui o poder executivo,
aquele que irá executar, ou seja, administrar as
leis promulgadas. O poder executivo “é um corpo
intermediário estabelecido entre os
súditos e o soberano” ,
encarregado da manutenção das
liberdades civil e política; e no
governo que se estabelece a relação
do todo com o todo, do soberano
com o Estado, não podemos
confundir o soberano com as
instâncias administrativas do poder,
visto que o soberano embora
permanente enquanto garante da
vontade geral se dá em assembléia.
Gostaríamos de ressaltar, ao finalizar o
presente texto, que em Rousseau não existe
a
possibilidade do poder legislativo existir fora do
soberano. Rousseau entende que não se pode
representar vontades. O povo não pode prescindir
do seu direito-dever de participar da vida política
do seu Estado, abrir mão desta condição é arruinar
todo o corpo político, é colocar sob perigo e
mesmo arruinando toda organização estatal
constituída. O povo é quem ratifica a lei, nula é
toda lei
que não leva sua chancela. É importante ressaltar
que os deputados são comissários do povo.
“A diminuição do amor à pátria,
a ação do interesse particular, a
imensidão dos Estados,
as conquistas, os abusos do
governo fizeram com que se
imaginassem o recurso dos
deputados ou representantes do
povo nas assembléias da nação”
(Rousseau, s/d: 131).

75
Parte VI – A filosofia prática
de Immanuel Kant (1724-
1804)

“Ninguém
pode me
constranger
a ser feliz
à sua
maneira
(...) mas a
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1- Introdução

Immanuel Kant nasceu em 1724, em uma


cidade da Prússia Oriental denominada
Königsberg.
Nasceu numa modesta e numerosa família de
artesãos. Sua mãe o educou segundo os princípios
do
pietismo91, corrente radical do protestantismo
prussiano. Estudou no Collegium Fridericianum ,
dirigido
pelo pastor pietista F. A. Schultz. Entre 1740 e
1747 estudou na universidade de sua cidade
freqüentando os cursos de ciência e filosofia.
Durante os anos de 1747 e 1754 viveu momento
de
grandes dificuldades. Nesse período precisou
trabalhar como preceptor, mas apesar das
condições
desfavoráveis estudou muito se atualizando. Em
1755 obteve o título de doutor e conseguiu lecionar
na Universidade de Königsberg como livre-docente.
Naquela época o professor na categoria de livre-
docente recebia somente um valor correspondente
ao número de horas de ensino e ao número de
alunos que freqüentavam o curso.
Mais tarde em 1770 passou no concurso
para professor ordinário com a dissertação
De mundi
sensibilis atque intelligibilis forma et
principiis . Uma das características
mais marcantes do caráter moral de
Kant além de metódico e sistemático,
foi sua indeclinável aversão por
qualquer forma de
carreirismo. Kant recusava qualquer forma de
adulação em relação a protetores poderosos.
Nosso autor se concentrava em sua
pesquisa filosófica, de forma totalmente
desinteressada
em relação a qualquer possibilidade de fama ou
riqueza. Por volta de 1778 chegou a receber um
convite por parte do barão von Zedlitz para
assumir uma cátedra em Halle, o que lhe renderia
um
pagamento pelo menos três vezes maior do que o
de Königsberg. Kant recusou tal oferta e com ela
outra referente a um cargo público vinculado à
mencionada cátedra.
Em 1781 nasceu sua primeira
crítica denominada de Crítica da Razão
Pura, posteriormente em 1788, a
Crítica da Razão Prática e, em 1790, a
Crítica da Faculdade de Julgar .
Cumpre dizer que este autor situou-se
dentro da atmosfera intelectual que
caracterizou o iluminismo alemão. O
seu criticismo estabeleceu limites à
razão humana quando afirmou que
só podemos conhecer aquilo que
nós mesmos criamos. O seu
pensamento deve ser estudado como
uma nova forma de filosofar que
nasceu no interior das mudanças
estruturais que tipificaram a própria
modernidade:

91 Movimento de intensificação da fé, nascido na Igreja Luterana alemã


no séc. XVII.

76
“A nossa época
é a época da
crítica, à qual
tudo tem que se
submeter. A
religião, pela
sua santidade e
a legislação,
pela sua
majestade,
querem
igualmente
subtrair-se a
ela. Mas então
suscitam contra
elas justificadas
suspeitas e não
podem aspirar
ao sincero
respeito, que a
razão só
concede a quem
pode sustentar o
seu livre e
público
exame.”92

Essa nova maneira de


filosofar reivindica como pressuposto
fundamental a liberdade, uma
liberdade de fazer uso público da
razão em todas as questões sem a
direção de outrem. Esse uso público
da razão significava para Kant a
liberdade para pensar enquanto
intelectual e a possibilidade de
expressar suas idéias ao público leitor. 93
Após a morte de Frederico, o Grande,
monarca esclarecido, em 1786, seu sucessor,
Frederico
Guilherme II, desenvolveu uma política anti-
iluminista. Kant recebeu uma advertência desse
novo
monarca que havia intensificado a tutela e a
censura, por ter publicado a obra A religião nos
limites da
simples razão (1793). Kant acabou por silenciar
suas críticas diante da advertência proferida pelo
Gabinete Imperial. Após argumentar em favor do
uso público da razão, prometeu obedecer, o que para
alguns configurou momento de grande triunfo para os
inimigos de uma filosofia crítica e inovadora.
O criticismo transcendental sofreu uma
interpretação de cunho idealista,
especialmente no
pensamento de Fichte, a despeito
de sua resistência e desprezo a essa
interpretação. Nos seus últimos anos
tornou-se quase cego, perdeu a
memória e a lucidez intelectual,
sobrevindo sua morte em fevereiro de
1804.

2 - O conceito de liberdade no pensamento de


Kant
Para Kant, o homem está submetido às leis
da natureza (determinismo) e, ao mesmo
tempo,
às leis da liberdade. O homem é capaz de
perceber que ele próprio é a causa dos fenômenos
que
existem no mundo, ou seja, compreende que a
razão humana é livre e determinante e, portanto, o
homem possui uma liberdade que o difere dos
animais. Kant denominou essa especificidade do
homem de liberdade transcendental .
É justamente no âmbito da vontade94 ou
razão95 prática que posso perceber essa
liberdade no
seu uso prático, ou seja, a liberdade prática ou
independência da vontade pode ser demonstrada
quando a razão nos fornece a “regra de conduta” 96,
quando entra em jogo o que devemos ou não fazer.
É exatamente nessa experiência interior,
exclusivamente pessoal, que conhecemos a
idéia de
liberdade transcendental como um
tipo de causalidade da razão capaz
de determinar a vontade, a agir com
ou sem as influências de impulsos
sensíveis (interesses).

92 Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação


Calouste Gulbenkian, 1994, AXI.
93 "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” (1783) In: Textos
Seletos. Edição bilíngüe. Petrópolis: Editora Vozes, 1974.
94 Faculdade de representar mentalmente um ato que pode ou não ser
praticado em obediência a um impulso ou a motivos ditados pela
razão.
95 Faculdade que tem o ser humano de avaliar, julgar, ponderar idéias
universais; raciocínio, juízo.
96 Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da Fundação
Calouste Gulbenkian, 1994, A803 / B831.

77
O que Kant entendeu pela esfera da
prática? Kant concebeu a liberdade
transcendental, ou
seja, o homem é dotado de livre-arbítrio e,
portanto, tudo o que se relaciona com essa
dimensão do
livre-arbítrio “é chamado prático”.97 Resulta dessa
afirmação que devo entender por prático o que diz
respeito à moral e ao direito. Então, a liberdade
prática, que significa liberdade da vontade, é uma
variante da liberdade transcendental.
Deve-se observar, portanto, que este
autor se filiou a uma tradição
filosófica que estabeleceu a
separação entre uma faculdade
superior (a razão) e uma faculdade
sensitiva (as inclinações).
Nesse sentido, a independência da
vontade de motivos empíricos está
estritamente
relacionada com a fundamentação da moralidade
kantiana. Porque a moralidade implica o conceito de
autonomia, que é conseqüência da existência de
uma vontade livre de motivos sensíveis ou direções
estranhas. Kant precisou de uma liberdade
transcendental relacionada com a dimensão racional
do
homem para construir a sua teoria moral. Seu
argumento se baseia na idéia de que sempre que
nos
pensamos como livres reconhecemos
a consciência da possibilidade de
autonomia. Se como ser racional o
homem é dotado de uma vontade
livre capaz da elevada função de
permitir a moralidade, seria
contraditório que este mesmo homem
permanecesse sob tutelas. E, assim,
associada à idéia de liberdade está a
idéia da autonomia, que, por um
lado, é entendida como liberdade
em relação a direções estranhas e,
por outro, como a liberdade da
faculdade da vontade capaz de
autolegislar.

3 - A ética e o imperativo categórico


Immanuel Kant surgiu no contexto do
Esclarecimento ou Iluminismo com sua
famosa teoria
moral que ressaltava o ser racional como
absolutamente responsável por sua conduta. Nesse
sentido,
consagrou uma ética das normas contra as éticas
finalistas. Destacou que a busca pelo bem não
poderia fazer parte da moralidade, mas o
cumprimento da lei pela lei 98, enfatizando, com
isso, que a
ética significa a obediência à lei
moral, lei esta que está em mim e
que se identifica com a minha
consciência.
Sua teoria moral apresenta, portanto, três
características fundamentais: o aspecto
cognitivista,
ou seja, a crença na possibilidade de decidir as
questões prático-morais com base em razões, o que
implica dizer que os juízos morais são passíveis de
serem fundamentados; o sentido formalista, pois
elabora um princípio moral (imperativo categórico)
limitado às questões referentes à justiça e não ao
“bem viver”; e, por fim, o caráter universalista,
uma vez que os juízos morais devem erguer uma
pretensão de validade universal.
O formalismo moral de Kant refere-se à
idéia de que a vontade racional deverá ser
orientada
por princípios a priori, válidos universalmente, isso
implica a capacidade do ser humano de agir

97 Crítica da Razão Pura (1781-1787). Lisboa: Edição da


Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, A802 / B830.
98 Crítica da Razão Prática (1788). Lisboa, Edições 70, 1994,
A111-115.
78
segundo princípios ou determinar-se
segundo a razão, independente de
qualquer inclinação pessoal. Os
princípios podem ser técnicos se
valem para todos os seres racionais,
mas condicionados pelo fim particular
que se almeja; os da prudência
condicionam-se ao desejo e ao caráter
do ser que age; os da
moralidade, princípios práticos objetivos que são
válidos para todos os seres racionais – não
decorrem
de nenhum fim subjetivo, empírico. O princípio moral
vale universal e incondicionalmente.
Assim, a lei moral em Kant não precisa do
aspecto volitivo no sentido do “eu quero”
para
existir. Ao contrário, ela existe até mesmo
contrariando o “eu quero”. Com isso, Kant afastou o
sentido
do “eu quero” em favor do “eu devo”. 99 A ação
adquire um valor moral, pois superei meus próprios
obstáculos quando agi por dever.
O seu princípio moral denominado
imperativo categórico foi formulado pela
primeira vez na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785).
Em uma de suas formulações determina: “ Age de
tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como fim e nunca simplesmente
como meio .” Tal princípio funcionaria como um
teste a ser realizado pela nossa própria
consciência a fim de identificar se as intenções
que
fundamentam uma determinada ação são moralmente
boas.
Esse imperativo formulado por Kant
configurou um exercício típico do pensar
esclarecido
(iluminismo), que não aceitaria ser guiado por
outrem, mas entraria na perspectiva de todos os
outros,
na medida em que abstrairia da sensibilidade e
buscaria “um ponto de vista universal” 100. Uma
interrogação estruturada numa
indispensável compreensão das
exigências de reciprocidade numa
comunidade ética idealmente
antecipada.
Esse imperativo categórico ou princípio moral
serviria ao propósito de fornecer as condições
de
possibilidade para o desenvolvimento de um certo
discernimento moral. Nesse sentido, a validade de
uma máxima subjetiva somente poderia ser
reconhecida pela razão como moralmente correta
se
apresentasse uma obrigação moral que qualquer um
pudesse desejá-la, por reconhecê-la como válida.

4 - As leis da liberdade: as leis morais e as leis


jurídicas
Como nos mostra este
filósofo, o homem vivencia a tensão
entre os impulsos e a razão e
encontra, além das leis da natureza,
as da liberdade denominadas de leis
jurídicas e leis morais. A legislação
jurídica diz respeito às ações sob o
ponto de vista externo, destacando a
mera conformidade
com o que prescreve a lei; o que configura o
sentido de legalidade . As leis éticas, ao
contrário,
vinculam-se às determinações das ações e
revelam a moralidade. Assim, no caso da
legislação
jurídica temos o sentido de liberdade como
exercício do arbítrio e no caso da legislação ética,
a
liberdade apresenta-se tanto no exercício externo
quanto interno do arbítrio.

99 BRITO, A. J. “Observações críticas à Crítica da Razão Prática”. In:


Revista Portuguesa de Filosofia. Vol. XLIV, 1988, p. 544.
100 Crítica da Faculdade do Juízo (1793). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995, p. 159

79
Na terceira parte da
introdução geral, Kant concentra seus
esforços na clássica distinção entre a
legislação moral e a jurídica.
Encontramos nesse ponto o problema
inicial da filosofia do direito: a
distinção entre as duas esferas. Nesse
sentido, o que efetivamente distingue
as duas legislações não é
tão somente o fato de uma legislação ser interna e
a outra externa, mas em particular a idéia do dever
como impulso.
Para entendermos melhor essa idéia temos
que considerar que toda legislação – como
diz
Kant – possui dois elementos constitutivos, a
saber:
o
elemento objetivo, que significa a
representação da lei como necessária à ação e
que portanto converte a ação em dever, e um
elemento subjetivo, que liga a
representação da lei ao fundamento
de determinação do arbítrio para
realização de tal ação. No primeiro
momento, temos o que Kant
denominou de conhecimento teórico
da possibilidade da regra prática e, no
segundo, o dever como impulso.

“A legislação
que erige uma
ação como
dever, e o dever,
ao mesmo
tempo como
impulso, é ética.
Aquela, pelo
contrário, que
não compreende
esta última
condição na lei
e que admite
também um
motivo diferente
da idéia do
próprio dever é
jurídica. No que
diz respeito à
esta última,
vemos
facilmente que
estes motivos,
diferentes da
idéia do dever,
têm que extrair-
se de
fundamentos
patológicos da
determinação do
arbítrio, das
inclinações e
aversões e,
dentre estas, das últimas
porque tem que ser uma
legislação que obrigue, não
um
chamado atraente”.101

A implicação mais imediata desta distinção


é o fato de que os deveres característicos
da
legislação jurídica são externos, pois não exigem a
idéia de um dever interior. Faz-se mister ressaltar
com certa cautela que é preciso não
esquecer que a legislação ética, por
ser mais ampla, envolve também a
legislação jurídica, o que justifica a
afirmação de Kant a respeito da
legislação ética como relacionada ao
dever em geral:

“A legislação ética converte


também em deveres ações
internas, porém não excluindo
as
externas, senão que afeta a tudo
o que é dever em geral. Mas
justamente por isso, porque
a legislação
ética inclui
também em sua
lei o impulso
interno da ação
(a idéia do
dever), cuja
determinação
não pode
transpor de
modo algum
em uma
legislação
externa, a
legislação ética
não pode ser
externa (ainda
que de uma
vontade divina),
embora admita
como impulsos
em sua
legislação
deveres que
desprendem de
outra legislação,
ou seja, de uma
legislação
externa, desde
que sejam
deveres. Disto
se infere que
todos os
deveres,
simplesmente
por serem
deveres,
pertencem à
ética; mas nem
por isso sua
legislação está
sempre contida
na ética”.102
Assim, teremos a legalidade se houver
uma simples conformidade externa com a
lei, “a
coincidência de uma ação com a lei do dev er”103
e a moralidade quando o dever afigurar-se como
impulso da ação, ou seja, quando “a máxima da ação
[coincidir] com a lei” 104

101 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial


Tecnos, 1994, pp. 218-9.
102 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial
Tecnos, 1994, pp. 219.
103 Op. cit., pp. 225.
104 Idem ibidem.

80
Há também deveres interiores que não são
éticos e deveres exteriores que não são
jurídicos;
há deveres éticos diretos (moralidade) e deveres
éticos indiretos (legalidade). Isso implica dizer que
todos os deveres são também deveres éticos;
todo dever é considerado dever de virtude. 105
Os
atributos de interno e externo apenas sinalizam para
a forma de adesão, observando ou não o animus
com o qual é cumprida uma ação.
A liberdade torna-se o ponto chave entre as
duas esferas, pois se constitui no conceito
limite
capaz de conferir sentido e direção à conduta
humana na esfera da vida em sociedade. 106 As
normas
jurídicas e éticas derivam da razão e não da
natureza. Derivam da vontade humana legisladora.
A partir
desta concepção podemos dizer que o direito
identifica-se com a idéia de autonomia. O conceito
de
direito coincide com o conceito de autonomia no
sentido de que “A legislação própria da razão
prática é
a liberdade em sentido positivo, autonomia”. 107 Esta
relação entre direito e autonomia exclui qualquer
possibilidade de violência,
menoridade e os mais variados tipos
de desrespeitos para com certas regras
de convivência mútua. O conceito de
liberdade vincula-se necessariamente
à idéia de uma sociedade, daí o
sentido de limitação recíproca, pois
não podemos esperar que todos
tenham motivação ética para o
cumprimento das leis. As leis morais
e jurídicas são leis da liberdade, ou
seja, leis que ordenam na medida em
que somos livres.

5 - A liberdade interna e externa


Depois de apreciar essa
distinção entre legislação interna e
externa, Kant relaciona o atributo de
interno e externo ao conceito de
liberdade, para esclarecer e justificar
o seu conceito de direito. Surge,
portanto, um outro critério de
distinção que se baseia no sentido de
liberdade interna e liberdade externa.
A esfera da ética vincula-se à liberdade
interna e a esfera jurídica à liberdade
externa , ou
dizendo de um modo mais breve, liberdade ética e
liberdade jurídica. O primeiro tipo de liberdade
refere-se à faculdade de agir segundo leis que a
nossa própria razão nos fornece; o segundo tipo de
liberdade, a jurídica, remete-nos à faculdade de
agir no mundo exterior, mas limitada pela mesma
liberdade presente nas outras pessoas. Então, o
âmbito da moralidade diz respeito à liberdade
interna
e o âmbito da legalidade à liberdade externa.
Na relação entre liberdade e dever não
podemos relacionar estritamente a
liberdade interna
com os deveres que Kant denomina de deveres
para consigo próprio e a liberdade externa c
deveres para com o próximo. Na verdade,
somos responsáveis por todas as nossas ações

105 TERRA, R. R. A Política tensa: idéia e realidade na Filosofia


da História de Kant . São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 79
106 GALEFFI, R. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília: Unb,
1986, p.194.
107 EISLER, R. Kant Lexikon. Hildesheim, 1964, p.578 apud
Rohden, V. p. 125.
81
primeiramente diante de nossa própria consciência
e depois, em alguns casos, diante do olhar dos
outros.
No âmbito da ética, somos
responsáveis frente a nós mesmos;
na esfera do direito, somos
responsáveis frente à coletividade.
Podemos pensar a liberdade interna
atuando nos dois momentos, ou seja,
no âmbito da ética e na esfera
jurídica, embora a relação jurídica
tenha como característica
fundamental a intersubjetividade. Tal
relação exige a presença de dois seres
humanos para a limitação recíproca
da própria liberdade externa.
No âmbito da legislação externa, as leis
obrigatórias podem ser de dois tipos, a
saber: as
naturais e as positivas. As leis externas naturais são
aquelas cuja obrigação é reconhecida a priori pela
razão, ainda que não haja nenhuma legislação
jurídica a seu respeito. As leis externas positivas
são
aquelas cuja obrigação depende necessariamente de
uma legislação externa efetiva. Kant, como um
legítimo representante do pensamento
jusnaturalista, entende que as leis positivas
encontram seu
fundamento nas leis naturais, o que equivale dizer
que o direito se fundamenta na moral.
Para Kant, a lei natural fundamenta a
autoridade do legislador, ou seja, confere a
faculdade de
poder obrigar outrem mediante seu arbítrio. 108
Neste momento, reforça a idéia do seu imperativo
categórico no sentido de que prescreve a todos a
necessidade de se pôr no papel de um suposto
legislador para observar a possibilidade de
universalização das máximas do agir. “Por
conseguinte –
afirma Kant -, deves considerar tuas ações
primeiro desde o teu princípio subjetivo: todavia
podes
reconhecer se esse princípio pode ser também
objetivamente válido”. 109
Esse exercício nos permite conhecer nosso
arbítrio e consequentemente nossa liberdade,
pois
entende que as leis procedem da vontade e as
máximas do arbítrio, que no homem é livre, pois
fundamentou seu argumento no fato
de que a vontade se refere tão
somente à lei; o arbítrio liga-se às
ações e, portanto exige liberdade: “a
vontade que não se refere senão à lei,
não pode chamar -se nem livre, nem
não livre, porque não se refere às
ações, senão imediatamente à
legislação concernente às máximas das
ações (portanto, à razão prática
mesma), daí que seja também
absolutamente necessária
e não seja ela mesma suscetível de coerção
alguma. Por conseguinte, somente podemos
denominar
livre o arbítrio”.110
Kant estabeleceu a relação entre liberdade e
arbítrio quando estabeleceu a possibilidade
da
liberdade ser percebida no sentido de
autodeterminação pela razão. O arbítrio determinado
diretamente
pela razão pura é o livre-arbítrio, o que implica
dizer que o homem é livre por ser racional, ou,
como diz
Rohden, “se o homem é capaz de determinar-se
por uma razão independente, ele é sob este aspecto

108 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos,


1994, pp. 224.
109 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos,
1994, pp. 225.
110 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos,
1994, pp. 226.

82
livre do determinismo natural e tem uma vontade
própria, da qual derivam os conceitos e leis tanto
morais como jurídicas”.111
Embora Kant afirme a existência de
direitos inatos em À Paz Perpétua, na
Metafísica dos
Costumes ressalta que só há um único direito inato,
que é a liberdade no sentido de independência do
arbítrio de outrem:

“A liberdade
(independência
do arbítrio
necessitante de
todo outro), na
medida em que
pode coexistir
com a liberdade
de todo outro
segundo uma lei
universal, é o
único direito
originário,
pertencente a
todo homem em
virtude de sua
humanidade”112
Apresentou na Fundamentação: “a
liberdade tem de pressupor -se como
propriedade da
vontade de todos os seres
racionais”113. O conceito de igualdade
decorre desta idéia de liberdade como
direito inato, pois todos são
igualmente independentes. A
igualdade inata é: “a independência
que
consiste em não ser obrigado por outros senão
àquilo a que também reciprocamente podemos
obrigar-
lhes” 114
Na verdade, a igualdade, a qualidade do
homem como sui iuris, ser homem
íntegro e o
conteúdo da formulação do imperativo categórico
acima mencionado já se encontram no princípio da
liberdade originária como elementos constitutivos
dela.

6 - A lei jurídica e a sociedade civil


Para Kant, a lei jurídica não é algo inato,
mas surge do acordo entre indivíduos
autônomos
para justamente assegurar a realização da
liberdade. Este conceito torna-se um conceito
limite que
direciona a conduta dos indivíduos para uma vida
em sociedade. 115 Essa circunstância nos leva a
pensar que Kant nega a origem
do direito como derivado da
propriedade, pois o que seria a
propriedade nos primórdios da
sociedade senão o reconhecimento de
uma posse arbitrária? O conceito de
posse em Kant funda-se sobre a
inata posse comum da superfície da
Terra e sobre a vontade universal.
Kant entende que só podemos nos
considerar possuidores de algo quando
há o
reconhecimento dessa posse de forma
não diretamente relacionada com a
detenção física. O direito consiste
em limitar as ações: a minha
liberdade de me apoderar das coisas
encontra seu limite na liberdade do
outro em agir da mesma forma. O
direito é uma exigência da razão que
apresenta aos homens um
procedimento para solucionar
conflitos. Nesse sentido, Kant
justificou o ingresso no estado

111 ROHDEN, V. “Razão Prática e Direito” In: Racionalidade e Ação.


Porto Alegre: Editora Universidade UFRGS/ Instituto Goethe – ICBA,
1992, p.128
112 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial Tecnos,
1994, pp. 237.
113 Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). In: I. Kant,
Col. Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1974 e Lisboa:
Edições 70, 1995, BA99.
114 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial Tecnos,
1994, pp. 237-8
115GALLEFFI, R. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília, Unb, 1986.

83
de direito a partir do conceito de racionalidade.
Trata-se de uma razão prática-jurídica e não
pragmática, ou seja, direcionada a
interesses particulares independentes
de qualquer moralidade. A
racionalidade permite o
reconhecimento recíproco e a
unificação das vontades e, nesse
sentido, sublinho mais uma vez que
não é a experiência da violência
como pensava Hobbes, mas um
princípio da razão. É a razão que
nos impulsiona a abandonar o
estado de natureza, embora seja
concebido
como estado de direito privado, em favor de um
estado de direito, onde não há uma razão privada,
mas um interesse comum e um tribunal capaz de
assegurar e reconhecer os direitos de todos.
Kant compreendia o direito natural como
não estatutário e, portanto cognoscível pela
razão de
todo homem e, nesse sentido, a justiça pertence a
ele. 116 Isto posto, o Estado para Kant deve
reconhecer em cada um a habilidade
de ser seu próprio senhor e,
portanto, não permitir qualquer
privilégio ou interesse especial
protegido. A igualdade formal, que
não é igualdade de posses, mas de
oportunidade, é uma conseqüência
necessária do único direito inato: a
liberdade. Nesse sentido,
compreendendo o típico egoísmo humano, o
Estado pode e deve usar a coerção mediante leis
para
senão eliminar, pelo menos controlar
os abusos. A legislação civil deve
realizar o direito natural que serve de
fundamento racional à legislação
positiva.
Segundo N. Bobbio, com a doutrina do
contrato e do direito natural, o Estado
assume a figura
de associação voluntária com vistas a defender
alguns interesses. 117 Kant partiu em defesa desse
modelo de Estado, cuja meta seria
assegurar a liberdade de cada um
com base em uma lei universal
racional e, portanto, condenou o
Estado eudemológico que pretendia
tomar para si a tarefa de tornar
seus súditos felizes, já que a verdadeira função do
Estado não se confunde com essa tarefa, mas deve
ser tão somente salvaguardar a liberdade que
permita a cada um buscar a sua própria felicidade.
Por
felicidade entenda-se o pleno desenvolvimento de
todas as suas disposições.
Kant demonstrou uma grande aversão por
um Estado do tipo paternalista que
mantinha os
súditos na condição de uma menoridade perpétua.
118 Ele acreditava que havia uma tendência natural

da história humana para uma ordem jurídica


universal, um ordenamento jurídico cosmopolita. Na
sua
idéia do homem como cidadão do mundo ou
cidadania mundial, presente no texto “Idéia de
uma
História universal sob o ponto de vista Cosmopolita”
e que reaparece no opúsculo A Paz Perpétua e na
Metafísica dos Costumes como Ius Cosmopoliticum,
implica uma espécie nova de direito público em
geral, distinto do direito privado que existia no
Estado de Natureza, do direito público interno do
Estado
Civil e do direito público externo da ordem
internacional. Trata-se de uma relação jurídica
particular

116 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial


Tecnos, 1994, pp. 297-8.
117 Bobbio, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel
Kant . Brasília, Ednub, 1992, p.50.
118 "Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?” (1783) In:
Textos Seletos. Edição bilíngüe. Petrópolis: Editora Vozes,
1974, A 482-3
84
que encontra de um lado o Estado e de outro um
cidadão de um diferente Estado. Dessa idéia, Kant
inferiu duas máximas já mencionadas: o dever de
hospitalidade e o direito de visita.

7 - A doutrina do Direito
Kant define a doutrina do
direito como um conjunto de leis
que se apresentam como leis
externas ou exteriores, que constituem
o que se chama direito positivo, cujo
interessado é o jurisperito
(Iurisperitus), aquele que conhece as
leis externas em sua aplicação aos
casos que se apresentam na
experiência, estudo denominado pelo
nome técnico de jurisprudência (
Iurisprudentia). Além da doutrina
do direito e da jurisprudência encontramos a
Ciência do Direito, que corresponde ao
conhecimento
sistemático da doutrina do direito natural ( Ius
naturae).
Para compreendermos o direito como idéia
da justiça é preciso abandonar o campo
empírico e
dirigir-se à razão pura. Kant entende que o conceito
de direito diz respeito a uma relação externa entre
pessoas cujas ações implicam-se mutuamente.
Não se trata de uma relação entre um arbítrio e
um
desejo, mas entre arbítrios, e nessa
relação recíproca não interessa
muito saber o fim a que se
propõem, mas sim a forma da
relação; em última análise, trata-se de
conciliar a liberdade de um com a
liberdade do outro, isto é, a liberdade
em sociedade. Assim, Kant formula
pela primeira vez na obra em foco o
seu conceito de direito como “o
conjunto das condições, por meio das
quais o arbítrio de um
pode estar de acordo com o arbítrio de um outro
segundo uma lei universal da liberdade”. 119 O
princípio
universal do direito expressa a
necessidade de coexistência dos
arbítrios segundo uma lei universal.
Uma lei universal do direito que
determina que devo agir externamente
de forma tal que preciso sempre
respeitar a liberdade do arbítrio do outro nada
mais é do que uma obrigação que me determina
a
razão: “age exteriormente de maneira que o uso
livre do teu arbítrio possa estar de acordo com a
liberdade de qualquer outro, segund o uma lei
universal”. 120
É preciso levar em conta os três elementos
constitutivos do seu conceito de direito: o
primeiro
diz respeito apenas às relações externas, ou seja, é
um direito intersubjetivo; o segundo estabelece a
relação entre arbítrios, pois a intersubjetividade
pode ocasionar lesões nos outros; o terceiro não se
preocupa com a matéria do arbítrio, mas tão
somente com a forma, pois o direito não concerne
aos
objetos particulares.
O direito, aparentemente mais do que a
moral, está relacionado à coerção, pois
está
diretamente ligado a esse sentido de obrigar
alguém a agir de uma forma e não de outra, por
meio da
coerção. O termo coerção pode ser entendido como
a possibilidade de regular as relações humanas a
partir de leis externamente válidas.
Quando usamos a expressão coerção
legal limitamos esse sentido para um
tipo específico de controle baseado
em leis positivas.

119 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial


Tecnos, 1994, pp. 230.
120 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid, Editorial
Tecnos, 1994, pp. 231.
85
Num estágio pré-positivo, há a possibilidade
de conseguir provocar no outro certa
conduta,
mas sem garantias de que tal fato aconteça
efetivamente. A coerção em que as leis positivas
se
vinculam e que podemos denominar
de “coerção recíproca universal
implica que se desista de procurar
convencer os outros do que é ou não
justo, e se fique limitado a regular a
relação entre arbítrios, isto é,
sem nenhum componente ético ou intencional”. 121
À primeira vista, pode parecer contraditório
relacionar o direito com a liberdade mediada
pela
coerção. Mas inspirado em C. Thomasius 122,
Kant postula uma relação intrínseca entre direito
e
coerção. Assim, explica como funciona tal coerção
capaz de salvaguardar a liberdade, lembrando que:
“A resistência
que é oposta
àquilo que
impede um
efeito serve
como auxiliar
para este efeito,
e concorda com
o mesmo. Tudo
aquilo que é
injusto é um
impedimento
para a liberdade
enquanto esta
está submetida
a leis universais
e a coerção é
um obstáculo
ou
uma resistência à liberdade.
Quando um certo uso da própria
liberdade é um impedimento
para a
liberdade
segundo leis
universais (ou
seja, é injusto),
então a coerção
oposta a tal
uso, enquanto
serve para
impedir um
obstáculo posto
à liberdade,
está de acordo
com a própria
liberdade,
segundo leis
universais, ou
seja, é justo
”.123
Esta passagem indica que há certo uso da
liberdade que se configura como obstáculo
a um
outro tipo de liberdade regrada e que a coerção,
nesse sentido, é indispensável ao direito. 124
Com isso, exercer a liberdade
a qualquer custo ou o mal praticado
por alguém fere a liberdade de
outrem. Este modo de agir se
afigura como uma forma deturpada
de liberdade no sentido da
capacidade do homem como ser
racional. A liberdade exterior
compatibilizada com a liberdade dos
demais é a forma universalizada da
possibilidade de convivência
humana, ou seja, a coexistência
pública dos homens, a criação de um
espaço público sem constrangimento
injusto.
Se a razão implica
liberdade, se a autodeterminação é
algo indisponível e envolve
necessariamente um espaço público,
fica excluída qualquer possibilidade de
uma liberdade irrestrita ou irracional
porque iria contradizer essa relação
que fundamenta a moral e o direito
e que ademais confere status
privilegiado ao homem em relação à
natureza.
O acordo entre liberdade e coerção já
havia sido apontado no t exto “Sobre a
expressão
corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada
vale na prática” (1793) quando afirma que a lei da
coerção recíproca corresponde à liberdade de cada
um sob o princípio da liberdade universal e na
Metafísica dos Costumes, quando comenta a
semelhança com a
“lei da igualdade da ação e

121 Idem, ibidem.


122 A origem da concepção coercitiva é atribuída a C.
Thomasius. Cf. OBBIO, N. e REALI, G. e ANTISERI, D.
História da
Filosofia. V.II. São Paulo: Paulus, 1990, p. 817.
123 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial
Tecnos, 1994, p. 231.
124 Cf. a definição Romana: “Liberdade é a faculdade natural
de fazer o que se quer, desde que o não impeça a força ou a
lei”( Institutas, I, 3,2). Cf ainda Aristóteles: “Livre é o
homem que tem a si mesmo como fim e não o outro”(
Metafísica,
892b) e “o que não é senhor de si mesmo é capaz de
desejar, mas não de agir por livre escolha”( Ética à
Nicômaco,
1111b); cf. ainda Montesquieu. Espírito das Leis, Cap. III,
V e XI. SALGADO, J. A idéia de Justiça em Kant: seu
fundamento na liberdade e na igualdade . Belo Horizonte:
UFMG, 1995, pp. 226-8.
86
reação”125. Esse vínculo da liberdade com a lei foi
herdado por Kant do pensamento de Rousseau, que
entendia a liberdade como a obediência à lei que o
homem prescreve a si mesmo. 126 O conceito de
liberdade é comum à doutrina do direito
(relacionada à condição formal da liberdade
externa) e à
doutrina da virtude (relacionada à condição formal
da liberdade interna). A ética e o direito afirmam a
relação da liberdade com a lei.
Ao pensarmos o direito
pensamos também a liberdade na idéia
do arbítrio de todos unificados no
conceito de vontade universal
legisladora. A justiça consiste no
respeito à vontade universal. O
sentido de justiça liga-se ao sentido
de um estado jurídico, ou seja,
“aquela relação dos h omens entre si
que contém as condições sob as
quais unicamente cada um torna-se
partícipe de seu direito, e o princípio
formal de sua possibilidade
considerado segundo a idéia de uma
vontade universalmente legisladora,
chama-se justiça pública. Assim surge
o direito público da necessidade de
coexistência inevitável, a partir de um
ordenamento instituído mediante a
publicidade de suas leis para que
todos
possam usufruir de seus direitos: a Constituição. 127
A relação da Constituição
que consiste na vontade unificada,
com o sentido de estado civil
somente é pensável a partir do
conceito de autonomia, uma vez que
falar em direitos exige a existência de
um “a priori originário”, a liberdade.
Kant estava vinculado a essa
concepção liberal, o que justifica a sua
definição do direito estar formulada a
partir do conceito de liberdade.
Podemos até argumentar que ele
formulou uma teoria da justiça como
liberdade e que muito pode ter
influenciado na elaboração dos
fundamentos teóricos do Estado Liberal. 128
Para alguns autores, Kant
teria inserido a temática filosófico-
jurídico-política em termos de
compreensão das condições
transcendentais da experiência
jurídica, quando definiu o direito
como o conjunto das condições por
meio das quais o arbítrio de um pode
estar de acordo com o arbítrio de um
outro segundo uma lei universal.
Podemos dizer que os fundamentos
históricos do pensamento jurídico
contemporâneo passam
necessariamente por uma fase
histórica importante: o pensamento
liberal do século XVIII - época de
Kant.
Nesse sentido, Kant pode ser estudado
como o filósofo do iluminismo, pois
apresentou
campos de cultura diferentes, a Crítica da razão
pura, no Âmbito teórico; a Crítica da razão prática ,
no
âmbito prático e a Crítica do juízo no âmbito da
arte. Ademais apontou noções como dignidade da
pessoa humana, autonomia moral,
liberdade, Estado de Direito,
contrato social como princípio
regulativo, direitos naturais como
princípios morais, etc. Em particular,
a relação que estabeleceu entre
indivíduo, pessoa moral e cidadão
submetido às leis, como uma
exigência da razão.

125 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial


Tecnos, 1994, p. 232.
126 ROUSSEAU, J.J. Do Contrato Social. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
127 La Metafísica de las Costumbres (1797). Madrid: Editorial
Tecnos, 1994, p.311.
128 Bobbio, N. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel
Kant . Brasília: Ednub, 1992, p.73-4.
87
É possível que a preocupação
de Kant com a fundamentação do
cumprimento do direito como um
dever moral se relacione com o fato
de que o desenvolvimento humano e
moral não acontecem senão por
meio da interação social. Princípios
éticos universais como a justiça,
reciprocidade, igualdade, dignidade da
pessoa humana inspiram o direito,
conferindo sentido às normas
jurídicas. Por conseguinte, o direito
pode ser entendido não apenas como
imposição externa, mas também
como transformação da nossa
autocompreensão (racionalidade,
personalidade e autonomia), na
medida em
que está intimamente vinculado à ética. O direito
é, sem dúvida, animado por um procedimento
diferente do procedimento ético, mas
ambos habitam o mesmo terreno;
ética e direito se dirigem à conduta
humana e, portanto inspiram-se em
valores morais comuns às duas
esferas.
Kant compreendeu a
relação do direito com a moral a
partir de uma intuição política e
histórica da origem do Estado, uma
vez que não é possível pensar o
direito sem necessariamente estar
ligado à figura do Estado e ambos
encontram sua fundamentação e
legitimação na autonomia. O Estado
se revela, portanto, como a
personificação do princípio da justiça,
reputando indispensável a conquista
da razão e da liberdade.
Ademais, é preciso
considerar que para uma sociedade
livremente associada, o direito
também exige um reconhecimento
moral capaz de justificar a sua
necessidade de limitação recíproca da
liberdade. A legislação jurídica não
está adstrita somente ao âmbito da
coerção, mas também pode
relacionar-se com o sentido de
cumprimento do dever por puro
respeito à lei, o que J. Habermas
chamou (sob a ótica de sua teoria da ação) de
“duplo aspecto da validade do direito,” 129 onde a
legalidade pode ser obtida por meio da coação ou
por consciência da necessidade de obediência à lei.
Essa relação entre ética e
direito ultrapassa os limites da
simples garantia dos direitos
individuais e alcança também a
importância de legitimar as leis
jurídicas fundamentando-as na idéia
de um sujeito racional autônomo na
qualidade de co -legislador e no
sentido da idéia de vontade geral.
Da filosofia kantiana surgiram duas
correntes distintas, uma valorizando a
Crítica da Razão
Pura, outra se fundamentando na Crítica da Razão
Prática , a saber: a Escola de Marburgo, ligada às
ciências sociais e jurídicas e a Escola de Baden,
ligada à filosofia dos valores.
A Escola de Marburgo compreendeu o
predomínio do problema lógico sobre o
problema
ético, o que desvela a preferência pelo pensamento
de Kant expresso na Crítica da Razão Pura . A
Escola de Baden focalizou em especial os conceitos
de valor e cultura, ou seja , o mundo do dever ser,
o mundo dos valores.
De tais escolas surgiram os mais
importantes intérpretes neokantianos de
uma filosofia
voltada para a experiência jurídica como Renouvier,
Stammler, Del Vecchio, Kelsen e Radbruch. E

129 HABERMAS, J. Direito e democracia: entre a facticidade e


validade . Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 49-
53.
88
autores contemporâneos com suas éticas de
inspiração kantiana como Jürgem Habermas e
John
Rawls.
A fundação científico-
positiva do Direito ensejou uma
filosofia do direito inspirada no
criticismo de Kant, a partir do qual
se esboçara a passagem de uma
análise do direito natural para o
estudo da filosofia do direito.
89
Parte VII - O
positivismo
jurídico

1 - A origem do termo positivismo


Sabemos que o termo positivismo, em seu
sentido estrito, refere-se primeiramente à
doutrina
de August Comte (1793-1857) exposta nas obras
Curso de filosofia positiva (1830-1842), Discurso
sobre o espírito positivo (1844),
Catecismo positivo (1852) e Sistema
de política positiva (1852-1854);
segundo como designação de
doutrinas que se ligam à de Comte ou
que tem por tese comum a idéia de
que só o conhecimento dos fatos é
fecundo, ou seja, que o modelo da
certeza é fornecido pelas
ciências experimentais, renunciando a todo e
qualquer conhecimento a priori.
Na visão de alguns especialistas o termo
positivismo foi utilizado pela primeira vez na
escola
de Saint-Simon, mestre de Comte e
que o sentido de conjunto de idéias
ou tendências intelectuais que atribui
à constituição e ao progresso da
ciência positiva uma importância
preponderante para o progresso, se
ligam mais a Condorcet do que a
Comte, segundo as próprias
declarações deste.

2 - As escolas Jurídicas
Segundo ensina Ana Lúcia Sabadell130
podemos compreender a expressão “escola
jurídica”
como um grupo de autores que compartilham uma
determinada visão sobre a função do direito, suas
regras, validade e conteúdos. Nesse sentido, cada
escola jurídica oferece respostas a três indagações:
o que é o direito, como funciona o direito e como
deveria ser configurado esse direito.
Várias escolas jurídicas surgiram ao longo
dos anos, cada qual caracterizando sua
época e sua
cultura jurídica. Encontramos, portanto, inúmeras
escolas rivais e outras que apresentam pontos de
continuidade entre si, ou seja, escolas que se
inspiraram em outras dando continuidade às suas
concepções. De um modo geral, podemos
classificar as escolas em dois grandes grupos: as
escolas
moralistas e as positivistas. As escolas moralistas
são aquelas que valorizam o direito natural e se
caracterizam por um pensamento jusnaturalista. As
escolas positivistas são aquelas que entendem o
direito como um sistema de normas que regulam o
comportamento social.

2.1 - A Escola Histórica ou Romântica


A escola Histórica ou romântica
representou uma tendência importante no
quadro anti-
racionalista da primeira metade do século XIX. Na
verdade, o historicismo foi um movimento filosófico-
cultural contra a razão iluminista e
que no âmbito jurídico pretendia a
dessacralização do direito natural.
Assim, no campo filosófico-jurídico o
historicismo se configurou na Escola
Histórica do Direito, em particular no
pensamento de Friedrich Karl Von
Savigny (1779-1861), reclamando
uma visão mais

130 Sabadell,
Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 17.

90
concreta e social do Direito, comparando-o ao
fenômeno da linguagem. Para este filósofo-jurista
direito e linguagem apresentam um início anônimo
e visam atender tendências e interesses múltiplos
de um povo. Ressaltamos aqui uma advertência
de Norberto Bobbio: “Note-se bem que escola
histórica e positivismo jurídico não são a mesma
coisa; contudo, a primeira preparou o segundo
através
de sua crítica radical do direito nat ural”. 131
Segundo estudiosos, temos pela primeira
vez uma refutação filosófica do direito
natural.
Savigny invocou contra a lei escrita, ou seja, a lei
abstrata e racional, a força viva dos costumes, o
“espírito do povo”, pois temia o perigo de leis
destituídas de eficácia. Para Savigny, o direito vive
na
consciência popular porque é do povo
que ele nasce. Trata-se do espírito do
povo ( Volksgeist) que produz o
direito positivo. A função legislativa
seria, portanto, a expressão da
necessidade de dar ao direito positivo
uma existência exterior cognoscível.
Savigny respirou a atmosfera
romântica dos alemães de
Heidelberg, recebeu influência de
vários autores como: Edmundo Burke
(1729-1797), considerado um dos
precursores do historicismo político-
jurídico; Joseph De Maistre (1754-
1821); Justus Moser (1720-1794),
Adam Muller e Gustav Hugo (1765-
1844) que só considerav o direito
positivo como objeto da ciência.
Sua obra fundamental foi Da Vocação de
nosso Tempo para a Legislação e a
Jurisprudência
(1814), onde objeta a codificação, além da obra que
marcou o grande florescer do Direito romano na
Alemanha, Sistema de Direito Romano Atual (1840).
Assim, a Escola Histórica do direito não foi
precursora do positivismo jurídico, mas de
certas
correntes jusfilosóficas como, por exemplo, a escola
sociológica e a escola realista que no final do séc.
XIX; ambas se posicionaram criticamente em relação
ao próprio juspositivismo.
Conforme ensina Norberto Bobbio, “O
fato histórico que constitui a causa
imediata do
positivismo jurídico deve, ao
contrário, ser investigado nas grandes
codificações ocorridas entre o fim do
séc. XVIII e o início do séc. XIX,
que representaram a realização política
do princípio da onipotência do
legislador”.132
Sabemos que as codificações foram
incentivadas pelo pensamento iluminista que
congregou
a idéia de um sistema de normas racionalmente
elaboradas com a exigência de um código imposto
pelo Estado. Foi neste omento que houve uma
certa identificação com o positivismo jurídico – o
direito como expressão de uma autoridade legitimada
para legislar.
Ao observarmos as características da
Escola Histórica temos que ressaltar um
traço
fundamental, a saber: a intenção de
substituir um olhar generalizante e
abstrato da história humana por uma
visão que considera o homem em sua
individualidade. Enquanto os
racionalistas consideravam o
131
Bobbio, N. O positivismo Jurídico, p. 45
132
O Positivismo Jurídico: lições de filosofia p54.
do direito. São Paulo: Ícone, 1995,

91
homem como integrante de uma humanidade
abstrata, o historicismo focaliza o seu caráter
individual.
Bobbio enumera cinco características da Escola em
apreço:

1. Valorização da individualidade/diversidade
histórica
– pretende-se a superação do
entendimento dos jusnaturalistas, segundo o qual é
possível falar em Homem com caracteres sempre
iguais e imutáveis (De Maistre).
2. Valorização do sentido irracional na
história/há impulsos e paixões - a mola mestra da
história
não é a razão, mas o elemento passional e emotivo
do homem.
3. Valorização da descrença no progresso
iluminista – há certo pessimismo antropológico
porque
não acredita nos magníficos destinos e progressos da
humanidade (Burke).
4. Idealização do passado – valorizam o
passado, as origens. Os iluministas desprezavam o
passado e zombavam da ingenuidade e ignorância
dos antigos (Justus Moser)
5. Valorização da tradição, instituições e
costumes da sociedade – esta idéia foi difundida
por
Herder e Burke que alorizavam os costumes
formados através de um desenvolvimento lento e
secular.

A escola histórica do direito


realizou estudos jurídicos a partir
desse novo modo de pensar o
homem e sua história. Nesse sentido,
Bobbio observa que Savigny
apresentou traços importantes no
interior desse pensamento, a saber:
1. A impossibilidade de um direito
único e igual em todos os tempos e
lugares, pois o direito passa a ser
visto como um produto da história;
2. O direito nasce do sentimento de
justiça e não do cálculo racional; 3.
Os perigos da cristalização do direito
numa única coletânea jurídica –
perigo da codificação do direito
germânico; 4. Reviver o antigo direito
germânico mais adequado ao povo
alemão; 5. Valorização das normas
consuetudinárias que expressam
verdadeiramente uma tradição, o
direito espontâneo. O costume é um
direito que nasce diretamente do
povo.
Com o passar dos anos, após a morte de
Savigny, a Escola Histórica passou a dar
preferência
à história dos textos legais, ou seja, os seus
seguidores limitaram-se a fazer a interpretação
histórica,
no sentido de ir buscar os antecedentes dogmáticos
para conhecer melhor uma regra. O Historicismo
deixava, portanto de ser um Historicismo de
conteúdo social e passava a configurar um
historicismo
meramente lógico-dogmático.

2.2 - A polêmica entre Thibaut e Savigny sobre a


codificação na Alemanha
Já compreendemos que os iluministas
realizaram uma
crítica demolidora do direito
consuetudinário enquanto herança do século das
trevas e um verdadeiro obstáculo aos princípios de

92
uma nova civilização que valoriza a razão e a
autoridade do Estado. Configura-se, portanto, uma
estreita relação entre o movimento do iluminismo e o
processo de codificação.
Ocorre que grande polêmica surgiu por
ocasião em que os exércitos da França
revolucionária
ocuparam uma parte da Alemanha, difundindo o
Código de Napoleão. Este código adotara princípios
estranhos a um povo que vivia em situação
semifeudal, onde a codificação prussiana de 1797
conservava a distinção da
população em castas, baseada em
privilégios. Esta situação gerou a
oposição de vários conservadores
alemães, dentre eles: Rehberg que
elaborou um artigo em defesa da
tradição prussiana. Thibaut (1772-
1840), famoso jurista alemão fez uma
apreciação anônima do texto
conservador de seu coetâneo. Na
verdade assumiu uma posição
moderada, de conciliação, entre
história e razão para a construção de
um sistema de direito positivo.
Afirmou que:
“Os alemães
estão a muitos
séculos
paralisados,
oprimidos,
separados uns
dos outros por
causa de um
labirinto de
costumes
heterogêneos,
em parte
irracionais e
perniciosos.
Justamente
agora se
apresenta uma
ocasião
inesperadamente
favorável para a
reforma do
direito civil como não se
apresentava e talvez não se
apresente mais em mil anos.” 133

O pensamento de Thibaut, que figura no


ensaio Sobre a necessidade de um direito
civil geral
para Alemanha (1814), exprimiu a posição da
chamada escola filosófica do direito. Para ele o
direito
germânico é insuficiente, obscuro e
primitivo. As diversidades locais
expressam o arbítrio dos vários
príncipes, logo o direito germano não
é natural, mas fruto dos interesses. A
inspiração iluminista de Thibaut pode
ser expressa na citação do lema
sapere aude, palavras de Horácio,
tornadas célebres no Iluminismo
como grito de batalha, como convite
à coragem intelectual. Antes de
Thibaut, Immanuel Kant utilizou esse
mote no texto “Resposta à pergunta:
que é Iluminismo?” (1784). Thibaut
reafirma a necessidade de uma
legislação geral cujas vantagens são
para os Juízes e a unificação da
Alemanha.
Suas idéias provocaram recensões, dentre
elas as de Savigny que afirmou a
artificialidade das
legislações. Para este pensador a codificação
paralisa o desenvolvimento do direito. Em seus
escritos
ressalta a falta de maturidade do povo alemão para
o processo de codificação. Nesse sentido, Savigny
fundamenta seus argumentos em Bacon quando
este autor afirma que para um povo proceder à
instauração de um novo sistema
jurídico é preciso que o nível civil e
cultural seja superior. Mas a
Alemanha de Savigny encontrava-se
em crise, por isso propunha o
renascimento e o desenvolvimento do
direito popular.

2.3 - O Código de Napoleão: Cambacérès e


Portalis
O Código de Napoleão entrou em vigor
em 1804 ocasionando uma profunda
mudança no
pensamento jurídico moderno, porquanto serviu
de base para várias codificações
posteriores e
também porque configurou um verdadeiro corpo
de normas sistematicamente organizadas e

133 Apud, Bobbio, N. O positivismo jurídico, p.58.

93
expressamente elaboradas. O
processo de codificação das normas
francesas encontra sua origem na
cultura racionalista que predominou
no interior do pensamento
iluminista. Como fato histórico
fundamental destacamos a Revolução
Francesa, momento em que a idéia de
codificar o direito adquiriu
consistência política.
O fato é que a sociedade
francesa encontrava-se fragmentada e
na concepção racionalista as velhas
leis deveriam ser substituídas por
um direito simples e unitário. Os
iluministas estavam convencidos de
que existia um verdadeiro direito. Os
juristas da Revolução se propuseram a
eliminar a multiplicidade de normas
jurídicas pelo desenvolvimento
histórico e instaurar no seu lugar um
direito fundado na Natureza e
adaptado às exigências universais
humanas.
Segundo Bobbio, o novo
código se distanciou
progressivamente da inspiração
originária se reaproximando da
tradição jurídica francesa do direito
romano comum. O protagonista desta
primeira fase de codificação foi
Cambacérès (1753-1824), jurista e
político prudente que participou da
Convenção que decidiu a morte do
Rei Luiz XVI. Não era extremista e
chegou a se opor a Robespierre. Com
o golpe de Estado operado por
Napoleão, 18 Brumário, foi nomeado
segundo-cônsul e depois
arquichanceler.
Durante a Convenção este
jurista apresentou três projetos para
um novo código de clara inspiração
jusnaturalista. Em um dos seus
projetos já equiparava filhos
naturais aos legítimos, proposição
radicalmente nova, fundada em
princípios como igualdade dos
cônjuges, a possibilidade do divórcio
e da comunidade patrimonial. Na
verdade este autor evocou a definição
ciceroniana do direito natural. Dos
três projetos, o de 1793, 1794 e
1796, foi este último que apresentou
características mais técnicas e uma
notável atenuação das idéias
jusnaturalistas que influenciou na
elaboração de um projeto definitivo
do Código Civil Francês.
O projeto do Código Civil
foi obra de uma comissão criada por
Napoleão. O papel mais importante
foi realizado por Portalis (1746-1807),
liberal moderado, crítico do
pensamento kantiano, perseguido por
Robespierre e posteriormente
protegido no governo de Napoleão.
Elaborou severa crítica contra os
excessos da revolução e representou
em certo sentido o início do
movimento de Restauração. O projeto
definitivo do novo código abandonou
decididamente a concepção
jusnaturalista. O código de Napoleão
representou, na realidade, a expressão
orgânica e sintética da tradição
francesa do direito comum.
Os projetos inspirados nas
idéias do jusnaturalismo racionalista
representavam a Revolução quando
esta queria fazer tábula rasa de todo
o passado. Mas as intenções da
comissão napoleônica pretendia
elaborar uma síntese do passado que
não deveria excluir os costumes e o
direito comum
romano. Na verdade foram os primeiros intérpretes
que consideraram o novo código uma ruptura com
o passado e no entendimento de Bobbio, a adoção
do princípio da nipotência do legislador – um dos

94
dogmas fundamentais do positivismo jurídico. O
problemático art. 4 o. do Código dispõe: “O juiz
que se
recusar a julgar sob o pretexto do
silêncio, da obscuridade ou da
insuficiência da lei, poderá ser
processado como culpável de justiça
denegada”. O juiz deve usar a
interpretaç ão, a integração da lei e
buscar no interior do próprio sistema
legislativo resolver o silêncio da lei.
Neste caso, o dogma da onipotência
do legislador impõe ao juiz a
necessidade de encontrar resposta para
todos os problemas, gerando um outro
dogma, o da completude do
ordenamento jurídico. A intenção dos
legisladores do novo Código era
evitar a possibilidade de uma prática
judiciária, pela qual os juízes se
abstinham de
decidir e devolviam os atos ao poder legislativo
para obter disposições a propósito. Além do art. 4
o., o

art 9o. indicava os critérios com base


nos quais pode o juiz decidir na
hipótese do silêncio ou qualquer
incerteza. Os intérpretes
compreenderam que este artigo a
necessidade de buscar na própria lei
a solução.
Foi essa visão consagrada pelos
intérpretes que se configurou na escola
dos primeiros
intérpretes do Código de Napoleão, a escola de
exegese. Esta escola foi acusada de fetichismo da
lei
por considerar o novo código uma ruptura com o
direito precedente.

2.4 - A Escola de Exegese


A outra escola importante é a Escola de
Exegese que em sentido amplo
significava a
interpretação passiva dos Códigos. Para essa escola
o direito está feito, portanto o estudo do direito
deve ser substituído pelo estudo dos códigos.
Podemos enumerar algumas causas para o seu
advento, a saber:
1. Com o surgimento dos códigos emergiu
também a necessidade de interpretar a letra da lei,
sem recorrer a outras fontes como costume,
jurisprudência, doutrina etc. Para estes, os
operadores do
direito visavam caminhos mais simples para resolver
conflitos;
2. A crença na vontade do legislador expressa
de modo seguro e completo e a necessidade de
limitar-se aos ditames dessa autoridade legislativa;
3. A possível terceira causa é a tripartição dos
poderes, fundamento ideológico da estrutura do
Estado moderno, que limita o juiz na sua esfera de
competência, afigurando-se apenas através da
seguinte metáfora: “a boca através da qual fala a
lei”;
4. O princípio da certeza do direito, ou seja, a
idéia de que o direito fornece um critério seguro de
conduta que permite antecipar os resultados – uma
regra certa, um processo lógico;
5. As pressões políticas que foram operadas
pelo regime napoleônico em favor do ensino
acadêmico centrado somente no
direito positivo, excluindo-se assim as
concepções das teorias gerais do
direito e as concepções
jusnaturalistas.

95
A escola exegética configurou um
procedimento específico de análise
comentando artigo por
artigo do Código Napoleônico. A história da
influência dessa escola pode ser dividida em três
fases: de
1804 a 1830, o seu início; de 1830 a
1880, considerado período do seu
apogeu; de 1880 até o fim do séc.
XIX, o seu declínio. As
características fundamentais dessa
escola são:
1. Desvalorização da importância e significado
do direito natural para o jurista;
2. Concepção rigidamente estatal do direito: as
normas jurídicas legítimas são aquelas impostas
pelo Estado;
3. Interpretação da lei fundada no legislador:
se a lei é manifestação da vontade do Estado,
busca-se na vontade do legislador a correta
interpretação da lei nos casos de obscuridades e
lacunas;
4. O culto ao texto da lei: o operador do
direito deve seguir rigorosamente o que está escrito;
5. O respeito pelo princípio de autoridade: os
primeiros comentadores do código gozaram de
grande prestígio e influenciaram inúmeros juristas
posteriores.
A tese fundamental da Escola
é a de que o Direito por excelência é
o revelado pelas leis, que são
normas gerais escritas emanadas
pelo Estado, constitutivas de
direito e instauradoras de
faculdades e obrigações, sendo o
Direito um sistema de conceitos bem
articulados e coerentes, não
apresentando senão lacunas aparentes. O
verdadeiro jurista deve partir do Direito Positivo,
sem
procurar respostas fora das leis. Surge assim a idéia
de uma Dogmática Jurídica 134 conceitual ou uma
Jurisprudência 135 conceitual, como objeto do jurista.
Significa dizer que existe uma ratio iuris específica,
ou seja, uma interpretação conceitual
de regras do Direito. Essa concepção
(normativista e conceitual do Direito)
compreendia que a lei deveria ser
atingida em seu espírito e, convém
ressaltar, que a interpretação se
limitava a um trabalho rigorosamente
declaratório. Qualquer mudança na lei
deveria seguir o processo legislativo.

3 - O surgimento do positivismo jurídico


Norberto Bobbio aponta, na obra O
positivismo jurídico, alguns acontecimentos
que foram
importantes para o surgimento do
positivismo jurídico, porquanto
formularam críticas ao direito natural.
O exemplo clássico dessa crítica foi a
reflexão anti-racionalista elaborada
pelo historicismo do séc. XIX, que
propiciou o desenvolvimento de
certo desencantamento em relação
ao direito natural. O

134 Dogmática jurídica – ciência empírica do direito positivo.


Objeto: norma imposta pelo legislador. Estudam-se as regras
vigentes, escritas e sua sistematização.
135 É preciso entender o que significa jurisprudência. No
sentido romano, jurisprudência significava o conhecimento das
coisas divinas e humanas, se confundia com a própria
Filosofia. Os romanos não eram tão voltados para ratio
scripta. Na
verdade, eram os princípios que constituíam o melhor de sua
preocupação, cuja finalidade era realizar o justo. Os romanos
não atribuíram a característica de ciência, mas a de juris-
prudentia, ou seja, prudência do direito, o que nos remete a
Aristóteles em sua classificação das virtudes, em particular o
termo Phrônesis fundamental para a ação honesta, leal e
justa. A juris-prudentia estaria situada entre o logos (razão) e
o ethos (prática). No sentido moderno, temos jurisprudência
como: 1. conjunto das ciências do Direito que busca o
conhecimento do Direito Público e Privado (Radbruch); 2.
disciplina
jurídica no sentido g eral (Austin); 3. prática do s tribunais
(Capitant);
96
historicismo compreendia o homem na sua
individualidade, ao contrário da corrente do
jusnaturalismo
que considerava a humanidade abstratamente.
No campo filosófico-jurídico, a corrente
historicista se configurou a partir da
denominada
escola histórica do direito, na Alemanha, entre o
fim do século XVIII e o começo do séc. XIX
encontrando em Karl Friedrich von Savigny seu
maior expoente. Todavia, a obra que antecipa o
pensamento da escola histórica foi a obra de
Gustavo Hugo sob o título Tratado do direito
natural
como filosofia do direito positivo de
1798, onde este autor concebe o
direito natural como um conjunto de
considerações filosóficas sobre o
próprio direito positivo, ou seja, o
direito natural passa a ser uma
filosofia do direito positivo. Observa-
se que este direito positivo significa
aquele direito que existe ou pode
existir em qualquer Estado. Com essa
obra este autor opera a passagem do
jusnaturalismo ( lato
sensu) para o pensamento juspositivista, uma vez
que esgota e esvazia a tradição jusnaturalista,
contribuindo assim para o surgimento de um novo
modo de considerar o direito.
Segundo Miguel Reale, na obra Filosofia do
Direito , antes da Revolução Francesa, o
Direito
estava dividido em sistemas
particulares, ou seja, cada região
possuía seu sistema de regras.
Tratava- se de um sistema jurídico
complexo constituído pelos usos e
costumes, pelos preceitos do direito
Romano, canônico e a opinião dos doutores, além
do Direito natural. Percebiam-se abusos e fraudes.
Diante desta obra legislativa
multifacetada e empírica
comprometida pela força dos
interesses, restou à Revolução
Francesa de 1789, levar a cabo a
tarefa de materializar seus ideais,
dentre eles a igualdade jurídica. Dois
princípios se tornaram concretos: a
igualdade perante a lei e a lei geral
para todos.
Compreende-se, portanto o
grande entusiasmo que provocou o
Código Civil Napoleônico, de 1804.
Representou um corpo harmônico e
lógico de preceitos, como expressão
da razão, capaz de atender a todas
as hipóteses ocorrentes na vida, de
maneira que tudo já estivesse de
certo modo ordenado no sistema
legislativo. O surgimento dessa nova
postura consistia na defesa
intransigente do indivíduo e de suas
iniciativas, na liberdade e na
segurança das relações jurídicas, na
proteção da propriedade privada,
como o individualismo econômico a
concebia.
Com a promulgação deste código
fortaleceu-se a convicção de que a sua
tarefa fundamental
deveria consistir em interpretar os textos de
maneira autêntica. Não admitiam lacunas, bastaria
o
trabalho de interpretação, para se obter respostas
convenientes a todas as lides e demandas. O juiz
através de um trabalho de exegese
poderá sempre encontrar uma solução
para cada caso. Essa visão de mundo
propiciou o surgimento da Escola de
Exegese, na França, reunindo em seu
seio os maiores civilistas da Europa.
O positivismo jurídico apresenta o Direito
como avalorativo. Enfatiza a separação entre
juízos
de fato (o direito tal qual é) e juízos de valor (o
direito como deveria ser). Nesse sentido, o
positivismo

97
entende o Direito como Ciência. A validade da
norma jurídica decorre da sua origem em um
ordenamento jurídico. A justiça decorre da sua
validade.
Segundo N. Bobbio podemos observar
sete problemas fundamentais nessa
doutrina: 1. O
positivismo jurídico compreende o direito como um
fato e não um valor. Isto significa dizer que o jurista
deve estudar o direito do mesmo modo como o
cientista estuda a realidade natural, não
formulando
juízos de valor. Nesse sentido, o
termo direito se afigura como
avalorativo ou não valorativo. O
direito não recebe o qualificativo de
bom ou mau. Deste modo de ver
surge uma teoria da validade do
direito denominada formalismo
jurídico, cuja validade do direito
repousa na sua estrutura formal. 2. O
direito é definido em função do
conceito de coação, situação esta que
propicia o aparecimento de uma
teoria chamada teoria da coatividade
do direito. Observa o autor
supracitado que este caráter do direito
não é
exclusividade do juspositivismo, pois foi
apresentado pelo jusnaturalista Christian Tomasius.
3. A
teoria da legislação como fonte do direito. Na
relação entre lei e costume admite-se apenas o
costume
secundum legem e eventualmente o praeter legem.
4. O positivismo jurídico compreende a norma
como um comando (teoria da norma
jurídica), implicando em uma teoria
imperativista do direito. 5. A teoria
do ordenamento jurídico considera o
conjunto de normas jurídicas
vigentes numa sociedade e
implica uma teoria da coerência e da
completude deste ordenamento jurídico. 6. O
positivismo
sustenta a teoria da interpretação
mecanicista que consiste em
enfatizar o aspecto declarativo em
detrimento de uma análise criativa ou
produtiva. 7. O positivismo jurídico
sustenta a idéia da obediência absoluta
à lei.
De acordo com os ensinamentos de Norberto
Bobbio, “O positivism o jurídico nasce do
esforço
de transformar o estudo do direito numa
verdadeira e adequada ciência que tivesse as
mesmas
características das ciências físico- matemáticas,
naturais e sociais”. 136
Estamos no âmbito da
avaloratividade do direito enquanto
ciência, ou seja, na separação entre
juízos de fato e juízos de valor. A
ciência deve excluir de sua esfera
juízos de valor, pois pretende um
conhecimento objetivo da realidade.
Este é um traço fundamental na
separação entre o mundo antigo e o
moderno: o homem
moderno renuncia a uma visão metafísica da
realidade.
O positivismo estuda o direito
tal qual é e não como deveria ser, ou
seja, juspositivista estuda o direito
real sem se vincular com um
suposto direito ideal. Observa-se,
para fins didáticos, que o conceito
de valor não se confunde com o de
validade, uma vez que uma norma
jurídica é válida quando faz parte de
um ordenamento jurídico real, ou
seja, efetivamente existe em uma
determinada sociedade.
O valor de uma norma jurídica indica a
qualidade de tal norma conforme sua relação
com um
suposto direito ideal. Uma norma jurídica será
justa quando corresponder a esse direito ideal.

136 OPositivismo Jurídico: lições de filosofia do direito . São


Paulo: Ícone, 1995, p. 135.
98
Encontramos aqui dois critérios independentes
entre si. Para o juspositivista há uma redução da
concepção valorativa na concepção validativa, ou
seja,
uma determinada norma será válida se
pertencer a um ordenamento jurídico e, portanto,
justa (legítima).
Com a distinção entre juízos
de valor e juízos de fato, há uma
separação entre ciência do direito e
filosofia do direito. O juspositivista
estuda o direito independente de
juízos de valor, enquanto que o
filósofo do direito considera
imprescindível investigar o
fundamento e a justificação do
direito.
Segundo Bobbio, a filosofia do direito pode ser
definida como o estudo ou investigação acerca do
direito a partir de certo ponto de vista
valorativo. Desta dicotomia podemos observar
duas
possibilidades para definir o direito, a saber: a
definição científica e a definição filosófica. Uma
definição científica tem como característica o fato
de ser avalorativa define o direito como ele é; uma
definição filosófica pode ser considerada ideológica ,
ou valorativa ou deontológica, pois define o direito
tal como deve ser para plenitude de determinado
valor. Com efeito, há uma passagem na obra de N.
Bobbio que expressa a crítica que os juspositivistas
fazem aos filósofos do direito:
“Os positivistas
jurídicos não
aceitam as
definições
filosóficas
porque estas
(introduzindo
uma
qualificação
valorativa que
distingue o
direito em
verdadeiro e
aparente,
segundo
satisfaça ou não
um certo
requisito
deontológico)
restringem
arbitrariamente
a área dos
fenômenos
sociais que
empírica e
factualmente são
direitos”.

As definições valorativas apresentam uma


estrutura teleológica, ou seja, definem o
direito
relacionado a um fim (telos). As mais tradicionais
definem o direito como um ordenamento jurídico
necessário para alcançar a justiça, ou ainda o bem
comum. 137 A justiça, ou o bem comum, ou ainda a
liberdade individual são valores que o direito deve
realizar. As definições juspositivistas são definições
neutras, o direito é definido como uma simples
técnica. Como exemplo, as definições de Hobbes,
Austin e Kelsen.
137 Cf. a definição do direito em Kant

99
Parte VIII - O pensamento
de Hans Kelsen (1881-
1973)

“O anseio
por justiça
é o eterno
anseio do
homem por
felicidade.
Não
podendo
encontrá-la como
indivíduo isolado,
procura essa
felicidade dentro
da sociedade”
Kelsen
1 – Introdução
Este pensador foi jurista de notável valor,
filósofo, sociólogo e juiz (entre 1921-1930)
da Corte
Constitucional da Áustria. Foi iniciador do que se
denomina de lógica jurídica e autor intelectual da
Constituição republicana austríaca. Sua obra mais
importante foi Teoria Pura do Direito (1934). Exilou-
se nos Estados Unidos por ocasião
do advento do nazismo e lecionou na
Universidade de Berkeley. Kelsen
freqüentou o conhecido Círculo de
Viena que reunia intelectuais como
Carnap, Wittgenstein e Freud.
Kelsen foi influenciado pela
filosofia do Círculo de Viena que era,
na verdade, um grupo de pensadores
que contribuíram para o surgimento
do neopositivismo vienense. Os
filósofos do Círculo de Viena eram
professores da Universidade de Viena,
pensadores antimetafísicos, filósofos
da ciência. A cidade de Viena era
propícia ao surgimento do
neopositivismo porque nesta região
se desenvolveu durante a segunda
metade do séc. XIX, o liberalismo
com seu patrimônio de idéias
originadas do Iluminismo, do
empirismo e do utilitarismo. A
universidade de Viena se mantivera
sob a influência
católica e, portanto, ficou imune à corrente do
idealismo. Foi, portanto, a mentalidade escolástica
que
preparou a abordagem lógica das questões
filosóficas. O círculo de Viena era constituído por
um grupo
de jovens doutores em Filosofia
da ciência que organizavam
colóquios semanais, dentre eles
destacamos: Hans Hahn, Otto
Neurath, Olga Neurath, Félix
Kaufmann, Carnap e tantos outros.
Uma das teses do Círculo de Viena
era afastar o conhecimento
metafísico, a ética e a religião do
âmbito científico.
Sua obra foi de extrema importância para o
pensamento jurídico do séc. XX. O
objetivo da
obra seria discutir e propor os
princípios e métodos da teoria
jurídica, reflexo dos debates
metodológicos que ocuparam os
intelectuais do séc. XIX. Kelsen
vivenciava uma época marcada pelo
positivismo jurídico nas suas diversas
tendências e pelos teóricos da livre
interpretação do direito. Esse
momento colocava em relevo a
própria autonomia do direito enquanto
ciência jurídica. Nesse sentido,
alguns entendiam a metodologia correta como
aquela que aproxima o direito e as demais
ciências
humanas. Outros compreendiam a
ciência jurídica como esfera
autônoma, livre de qualquer juízo
valorativo. Kelsen procurou um
conhecimento objetivo, desvinculado
de qualquer ideologia.
Há que se falar também na tentativa de
uma volta aos parâmetros do direito natural.
Nesse
entrecruzamento de correntes, o
pensamento de Kelsen se
comprometia com a busca de um
método e objeto próprios, capazes de
superar as confusões metodológicas e
dar mais autonomia científica ao

100
jurista. Com esse objetivo, Kelsen
propôs o princípio da pureza,
segundo o qual o método e o objeto
específicos da ciência jurídica
deveriam ter o enfoque normativo,
isto quer dizer que, o direito deveria
ser visto como norma e não como
fato social ou valor transcendente.
Essa proposta causou polêmica, o que
resultou na acusação de reduzir o
direito à norma, ou seja, abandonar
a dimensão social e valorativa (para
alguns, despir o direito de caracteres
humanos), todavia não tenha sido
essa a sua intenção. Sem dúvida, o
direito é um fenômeno complexo,
mas no seu modo de ver deveria ser
observado autonomamente pelo jurista
sob pena de incorrer em debates
infindáveis.
O que podemos entender por norma
senão uma regra de conduta que poderá
ser moral,
religiosa e jurídica. As normas morais e religiosas
fundam sua obrigatoriedade na consciência pessoal;
as jurídicas são protegidas por uma eventual força
coercitiva externa. 138 Isto posto podemos focalizar o
conceito de norma em Kelsen. Para este autor,
normas são prescrições de dever-ser que conferem
ao
comportamento humano um sentido
prescritivo e, portanto, trata-se de
um comando, produto da vontade
humana que proíbe, obriga ou permite
determinado comportamento. Tércio
Sampaio Ferraz Jr. oferece o seguinte
exemplo: existe a categoria de ser e a
do dever ser; as prescrições são
prescrições de dever ser, ou seja, o
ato de levantar o braço em uma
palestra poderá ter dois sentidos, um
descritivo onde interessa apenas
observar que alguém levantou o braço
e um sentido prescritivo onde levantar
o
braço deve ser entendido como voto a favor de
uma proposta.
Essa norma adquire existência
independente de seu autor; essa
existência chama-se validade. Kelsen
compreende a ciência jurídica como
uma ciência pura de normas e as
investiga no seu encadeamento
hierárquico. A validade de uma
norma está ligada a normas
superiores que culminam numa
norma fundamental. Kelsen também
elaborou uma teoria da norma
fundamental onde a norma somente
será considerada jurídica e legítima
se, e somente se, for estabelecida em
conformidade com as prescrições
contidas na norma fundamental,
valorativamente neutra. Disto
decorre que todo o ordenamento
jurídico vale e é legítimo em função
dessa norma fundamental (constituição,
posta por um poder eficaz). Ainda
que haja uma norma injusta, será
válida e legítima desde que decorra
de uma norma fundamental legítima.
Kelsen foi grande defensor da
neutralidade científica aplicada à
ciência jurídica,
compreendendo a necessidade do direito se afigurar
como uma esfera autônoma em relação à moral e
a política. Para Kelsen, Direito e Estado se
confundem. Isto implica dizer que o Estado se
configura
num conjunto de normas
estabelecidas prescrevendo uma
sanção para determinados
comportamentos. Sem essa ordem
normativa, o Estado deixaria de existir
no sentido jurídico.

138 Sugiro a leitura do capítulo 10 – “conceito de lei e norma


jurídica” na obra MONTORO, Franco. Introdução à ciência do
direito. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, pp. 293-320.
101
2 - Princípio metodológico fundamental
Tal princípio significa a
condição primeira para que a
doutrina do direito se torne ciência.
O cientista do direito deve abster-se
de valores estranhos ao objeto da
ciência jurídica. O conhecimento para
ser científico deve ser neutro em
relação aos valores, pois não é da
competência da doutrina
jurídica discutir acerca dos valores buscados
pelo direito e sim ressaltar uma preocupação
eminentemente jurídico-científica.
Esses são os limites apresentados pelo
princípio metodológico fundamental. O
objeto da
ciência do direito é a norma posta por autoridade
competente. Nesse sentido, o que o princípio
metodológico fundamental exige é
a exclusão do âmbito de interesse
do jurídico os fatores
especificamente sociais, econômicos,
culturais, morais ou políticos
interferentes na produção da norma e
também os valores prestigiados em
sua edição. A utilização do princípio
metodológico fundamental implica
uma hermenêutica jurídica que se
abstém da idéia de um único sentido
correto para a norma jurídica, mas
busca uma pluralidade de
significações cientificamente
pertinentes e fixa esse limite.

3 - Norma jurídica e proposição jurídica


A distinção entre norma
jurídica e proposição jurídica é
considerada uma das mais importantes
para a teoria kelseana. Com essa
distinção entre norma jurídica e
proposição jurídica, Kelsen pretendia
acentuar ainda mais a diferença entre
a atividade de aplicação do direito e a
desenvolvida pelo cientista jurídico.
A norma jurídica prescreve a sanção que
se deve aplicar no caso de ações ilícitas –
tem
caráter prescritivo, resulta do ato de vontade; uma
proposição jurídica que é um juízo hipotético ou
condicional, afirma que uma determinada conduta
típica implica em certa sanção – tem caráter
descritivo, resulta do ato de conhecimento.
Podemos dizer que as
proposições jurídicas são reflexões,
juízos sobre as normas jurídicas.
Como diz Kelsen na obra Teoria Pura
do Direito , “Proposições jurídicas são,
por exemplo, as seguintes: se alguém
comete um crime, deve ser-lhe
aplicada uma pena; se alguém não
paga uma dívida, deve proceder-se a
uma execução forçada de seu
patrimônio; se alguém é atacado de
doença contagiosa, deve ser
internado num estabelecimento
adequado. Procurando uma fórmula
geral, temos: sob determinados
pressupostos fixados pela ordem
jurídica, deve efetivar-se um ato de
coação, pela mesma ordem jurídica
estabelecida. É esta a forma
fundamental da proposição jur ídica”.
Percebemos que a proposição liga
dois elementos, a saber: 1.
Antecedente: dados determinados
pressupostos, 2. Conseqüente: decorre
a efetuação de um ato de coerção,
sempre na forma estabelecida pela
ordem jurídica.

102
As normas jurídicas recebem o
qualificativo de válidas ou inválidas e
as proposições podem ser consideradas
como verdadeiras ou falsas. Ou
dizendo de outro modo, uma lei
poderá ser válida ou não conforme a
sua existência no mundo jurídico e
uma proposição acerca de uma lei
poderá ser ou não verdadeira; poderá
ocorrer que um jurista qualquer tenha
formulado um juízo equivocado
acerca da tal lei – sua proposição será
falsa.

4 - Estrutura da norma jurídica


Sabemos que o direito se distingue de
outras ordens sociais por meio do uso da
coação
prescrita em suas normas. As proposições jurídicas
se referem a enunciados deontológicos 139, ou seja,
enunciados que prescrevem alguma
conduta através do verbo dever ser.
Ligam uma determinada previsão
com atos de coação: se fulano
cometeu homicídio deverá ser punido
com reclusão de seis a vinte anos.
Dessa estrutura básica podemos inferir duas
possibilidades de conexão, a saber: ou
temos
uma ligação deôntica entre uma
ação/omissão e uma sanção, ou entre
diversas condutas humanas com
diversos atos coativos na qualidade
de sanção. O primeiro tipo aplica-se
para a generalidade dos casos e o
segundo em situações específicas.
Kelsen se mantém nos limites da
primeira alternativa: a estrutura da
norma jurídica é descrita pela
proposição jurídica como a ligação
deôntica entre a referência a certo
comportamento e a sanção
correspondente. Nesse sentido, afirma
Fábio U. Coelho que “As normas
jurídicas, assim, têm a estrutura de
uma proibição, por descreverem a
conduta tida por ilícita como
antecedente e a punição com o
conseqüente”.140
O fato de Kelsen ter reduzido as normas
jurídicas a uma estrutura de proibição gerou
algumas
objeções: a primeira delas relativa às normas que
não proíbem, mas que obrigam determinados atos
ou omissões; a segunda, em relação às normas
permissivas; em terceiro lugar, com relação às
normas revogatórias e conceituais. O argumento de
Kelsen se baseia em duas observações. A primeira
refere-se ao fato de que existe a possibilidade de
interdefinir, ou relacionar intrinsecamente as normas
proibitivas e obrigatórias, uma vez
que qualquer proibição pode ser
traduzida por uma obrigatoriedade e
vice-versa. Proibir certa conduta
equivale a obrigar a omissão da
mesma conduta. O argumento
usado em favor das normas permissivas baseia-se
na possibilidade de distinguir a permissão em
negativa (o que não é proibido é
permitido) e positiva (dependente das
normas proibitórias). Nesse caso,
encontramos na permissão negativa a
inexistência de proibição, mas na
permissão positiva a
manifestação de uma proibição à qual se liga.
Como exemplo desse tipo de normas
permissivas positivas, Fábio U. Coelho
menciona as
hipóteses de exclusão de ilicitude previstas no art.
23, inc., II, do CP: “Não há crime quando o agente

139 Deontologia, do grego déontos, estudos dos princípios,


fundamentos e sistemas da moral; tratado dos deveres.
140 Coelho, Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max
Limonad, 1999, p. 36.
103
pratica o fato: I - em estado de necessidade; II –
em legítima defesa; III – em estrito cumprimento
de
dever legal ou no exercício regular
de direito”. Tais hipóteses
configuram o sentido de normas
permissivas positivas (a atitude em si
poderia configurar um ilícito penal).
Para Kelsen certas normas não possuem
autonomia, mas encontram em outras
normas
proibitivas o complemento para seu sentido no
mundo jurídico; normas não autônomas precisam de
normas sancionadoras. Kelsen denominou tais
normas não autônomas de secundárias e as
sancionadoras de primárias.

5 - Validade e eficácia
A validade da norma jurídica para Kelsen
vincula-se inicialmente à sua relação com a
norma
fundamental, sobretudo no que concerne ao
problema da manifestação de vontade de uma
autoridade
competente: “A norma jurídica é válida se
emanada de autoridade com competência para
editá-la,
ainda que o respectivo comando não
se compatibilize com disposição
contida em normas de hierarquia
superior”.141
Como um legítimo
representante do pensamento jurídico-
positivista, Kelsen relaciona validade e
eficácia, a partir da dicotomia entre a
norma singularmente considerada e a
ordem positiva como um todo. A
validade exige também a eficácia da
norma jurídica e, nesse ponto, nosso
autor rejeita duas
idéias: a de que a validade não depende da
eficácia, como também, a de que validade e
eficácia se
identifiquem.
Qual seria a posição de Kelsen?
Observando as duas instâncias: a da norma
singularmente
considerada e a da ordem positiva, este autor
sustenta que as normas deixam de ser válidas se
perderem a eficácia. Validade e eficácia não são
termos sinônimos, mas guardam forte relação entre
si. Segundo Kelsen, a eficácia se
revela como condição de validade
em ambas as instâncias e nesse
sentido qualquer norma jurídica
totalmente ineficaz é inválida.
A reivindicação do representante do
tráfico organizado e a do agente fiscal
diferem
fundamentalmente por não ter a primeira validade
jurídica, na medida em que não se sustenta em
norma hipotética alguma; a segunda
reivindicação é válida, porque o
direito instituído pelo Estado se
revela eficaz e torna legítima tal
situação. A eficácia necessária à
vigência da ordem jurídica é medida
em termos globais, ou seja, se a
legislação de um país vigora, ainda
que alguns dos seus artigos sejam
totalmente ineficazes e
conseqüentemente inválidos. A
validade da ordem jurídica não
depende da eficácia de todas as
normas que a constituem. Todavia,
o inverso é possível, isto é, a
norma singularmente considerada
perde eficácia se houver ineficácia
global da ordem jurídica.

141 Coelho,
Fábio U. Para entender Kelsen. São Paulo: Max
Limonad, 1999, p. 41.

104
São três os pressupostos que condicionam
a validade da norma jurídica, a saber: 1.
A
competência da autoridade que a editou, com base
na norma hipotética fundamental; 2. O mínimo de
eficácia que desconsidera a inobservância
episódica ou temporária; 3. A eficácia global da
ordem
jurídica.

6 - Causalidade e imputação
O objeto da ciência jurídica
compreende as normas e, nesse
sentido, os cientistas do direito
operam de forma diferente dos
cientistas sociais, pois não
estabelecem relações de causalidade,
mas relações de imputação. Isto quer
dizer que, entre dois fatos como, por
exemplo, um homicídio e a punição
correspondente há uma ligação de
outra ordem e esta ligação é a
imputação. A sanção
referente ao homicídio não foi causada pela
conduta em si mesma, mas exige a prova de
seu
acontecimento. O direito pertence a uma ciência
normativa que não visa prescrever condutas, mas
tão
somente examinar as normas e estruturar seus
enunciados a partir do princípio da imputação.
Imputar significa atribuir
coisa desonrosa ou criminosa a uma
pessoa; creditar algo que não seja
evidente ou decorra analiticamente.
Causalidade significa uma relação
necessária e universal entre dois
termos no caso das ciências naturais,
ou uma ligação de causa e efeito
também utilizada
pelas ciências sociais como, por exemplo, a
sociologia que vincula por causalidade a taxa de
desemprego e o índice de violência.
Duas distinções são relevantes entre
causalidade e imputação, a saber: 1. A
imputação
depende da vontade humana; a causalidade
independe dessa interferência. Há o ponto inicial e
o
terminal, claramente definidos na proposição
jurídica. 2. A imputação não deriva de nenhum
outro
conseqüente imputado, não há uma
cadeia de sucessões; a causalidade
implica em infinitude, ou seja, uma
cadeia de sucessões.

7 - Direito e Justiça
Para Kelsen, a justiça possui
valor inconstante, relativo, dissolúvel
e mutável. Trata-se de um julgamento
de valor que possui caráter subjetivo.
A multiplicidade de valores sobre o
justo reafirma a possibilidade de o
direito positivo se chocar pelo menos
com algum sentido de justiça. Como
doutrinas morais não fazem parte do
conhecimento dos juristas, pois estes
estão preocupados com as normas
jurídicas, o direito positivo
desvincula-se de questões de justiça.
105
Parte IX - A teoria tridimensional
do direito: Miguel Reale (1910 -).

“A norma
jurídica é a
indicação
de um
caminho,
porém para
percorrer
um
caminho
devo partir
de
determinad
o ponto e
ser guiado
por certa
direção:
o ponto
de
partida
da
norma é
o fato,
rumo a
determin
ado
valor”. (Miguel Rea

1 - Introdução
Miguel Reale ocupa lugar de
destaque no pensamento filosófico-
jurídico brasileiro. Bacharel em
Direito desde 1934, sua vida foi
marcada por intensa participação nos
movimentos estudantis e políticos de
sua época. Foi professor de latim,
psicologia, direito comercial, legislação
fiscal, português,
escreveu inúmeros artigos e livros. Em 1941, aos
31 anos, ocupou a cátedra outrora ocupada por
João Arruda, com a apresentação da tese
Fundamentos do Direito . Com esta obra,
apresentou sua
concepção culturalista do Direito,
segundo a qual o estudo do fenômeno
jurídico somente será possível a partir
de um estudo integral, ou seja, uma
apreciação panorâmica e completa
dos elementos do Direito em
detrimento de uma postura unilateral
baseada apenas no fato jurídico.
Reale ressaltou a insuficiência
daqueles que defendiam “um
verdadeiro dualismo ou uma
justaposição de perspectivas, como se
houvesse um direito para o jurista e
um outro para o filósofo, cada um
deles isolado em seu
domínio, sem que a tarefa de um repercut isse, de
maneira direta e permanente, na tarefa do outro ” 142
Segundo exprime Cretella Júnior, Miguel
Reale tentou uma “síntese entre o sujeito
ético do
kantismo e o espírito histórico do hegelianismo”. 143
Reale formulou uma teoria tridimensional do direito
com caráter dialético relacionando três termos
(fato, valor e norma), de modo diferente das
diversas
teorias tridimensionais que correlacionaram norma,
fato e valor, ou seja, o aspecto fático, axiológico e
prescritivo do Direito, num sentido estático. Em seu
modo de ver:

“Quem assume, porém, uma


posição tridimensionalista, já
está a meio caminho andado da
compreensão do direito em
termos de - experiência concreta
- , pois, até mesmo quando o
estudioso se
contenta com a
articulação final
dos pontos de
vista do filósofo,
do sociólogo e
do jurista, já
está revelando
salutar repúdio
a quaisquer
imagens parciais
ou setorizadas,
com o
reconhecimento
da insuficiência
das perspectivas
resultantes da
consideração
isolada do que há de fático, de
axiológico ou ideal, ou de
normativo na vida do direito”. 144

Segundo Reale, a ciência jurídica


encontra problemas de natureza
axiológica, social e
histórica, por isso a Filosofia do Direito, no seu
entender, divide-se em três partes, a saber: a
ontognoseologia jurídica que indaga as estruturas
objetivas e como são pensadas em conceitos, ou
seja, o direito em sua estrutura ôntica e em sua
estrutura racional; a epistemologia jurídica que
estuda
os objetos das diversas ciências jurídicas,
observando sua natureza e implicações; a
deontologia
jurídica que indaga o fundamento da ordem
jurídica e a razão da obrigatoriedade das normas
de

142 REALE, Miguel Teoria Tridimensional do Direito . São Paulo,


Saraiva, 1994, p.3.
143 CRETELLA JUNIOR, José. Novíssima história da filosofia .
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p.288.
144 REALE, Miguel Teoria Tridimensional do Direito . São Paulo:
Saraiva, 1994, p. 11.
106
Direito, da legitimidade da obediência às leis; a
culturologia jurídica que estuda o Direito como
cultura,
como esforço humano de conquista e preservação
daquilo que se concebeu como válido.
Para os culturalistas, o mundo das normas
faz parte de uma área maior que é o
mundo da
cultura humana em geral, o direito não é um objeto
natural, ideal ou simplesmente valorativo, mas um
objeto cultural que supera o dualismo de ser e
dever ser. Esta última posição é a da teoria
tridimensional do direito sustentada vigorosamente
por Miguel Reale, na qual o direito se considera em
seus três elementos indispensáveis: fato, valor e
norma. Nesse sentido o jurista precisa interpretar o
problema da justiça, não se
contentando apenas com o estudo
dogmático do direito, a partir de
estudos sociológicos e filosóficos,
embora consciente de que cada uma
destas matérias tem seus métodos
próprios.

2 - A tridimensionalidade da lei
Segundo Miguel Reale, no campo das
ciências sociais encontramos palavras que
apresentam
uma multiplicidade de acepções ao longo do devir
histórico. Nesse sentido, a palavra Direito assumiu
sentidos diferentes conforme interesses e
preferências que em cada momento histórico
recebeu
certo destaque. Inicialmente o homem vivenciava
o direito como um fato, depois essa idéia cedeu
lugar para a intuição do direito como
sentimento do justo e
conseqüentemente ao sentido de obrig
ação jurídica, que hoje se nos
apresenta como algo intuitivo e
evidente. A importância do Direito
Romano se afigura na ciência que
denominavam de jurisprudência
(senso prudente de medida) que
focalizava o Direito como norma. No
dizer de Reale, “Eis aí, por tanto,
através de um estudo sumário da
experiência das estimativas históricas,
como os significados da palavra
Direito se delinearam segundo três
elementos fundamentais: o elemento
valor, como intuição primordial; o
elemento norma, como medida de
concreção do valioso no plano da
conduta social: e, finalmente, o
elemento fato, como condição da
conduta, base empírica da ligação
intersubjetiva, coincidindo a análise
histórica com a da realidade
jurídica fenomenologicamente observada”.145
Miguel Reale observa que encontraremos
os três elementos onde quer que se
encontre a
experiência jurídica e é nesse modo de ver que
podemos falar em triplo enfoque do Direito.
Podemos
observar o Direito enquanto valor, estudado pela
Filosofia do Direito na parte denominada de
deontologia Jurídica; podemos ainda observá-lo
como norma ordenadora da conduta, objeto de
estudo
da Ciência do Direito ou Jurisprudência e da
Filosofia do Direito na esfera da Epistemologia;
também
podemos estudar o Direito como fato social e
histórico, objeto de investigação da Sociologia e
da
Etnologia do Direito e da Filosofia do Direito
na parte denominada Culturologia Jurídica . Para
entendermos melhor essa relação entre norma, fato e
valor, podemos pensar no exemplo oferecido por

145 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva,


1998, p. 509.

107
Severo Hryniewicz: “tomemos um exemplo do
Direito Penal: a prática de um homicídio. Temos
primeiro
um fato – fulano matou sicrano. No fato está
implícito o atentado contra um valor ético
fundamental – o
valor da vida. E, por fim, temos uma norma
jurídica – artigo 121 do CP – que prevê uma
sanção para,
de algum modo, - compensar - o desrespeito ao
valor. Se não houvesse na base uma categoria
axiológica – o valor vida – não teriam sentido tanto
a elaboração de uma norma que visa à preservação
do valor vida, quanto todos os proced imentos
posteriores ao fato no âmbito penal”. 146
Reale afirma que a teoria tridimensional é
fruto da verificação objetiva da consistência
fático-
axiológica-normativa de qualquer porção ou
momento da experiência jurídica. É formada de
consciência de todas as implicações do direito – a
essência triádica do direito. Uma análise rigorosa
desta teoria implica formular
algumas questões: como se garante
a unidade a partir desses três
fatores? Como se correlacionam?
Como se distinguem?
Para Reale, fato, valor e norma estão sempre
correlacionados não importa o ponto de
vista: se
filosófico, sociológico ou jurídico. Tal correlação
possui natureza dialética, uma mútua implicação
entre
esses elementos – entre fato e valor
que implica em um momento
normativo. Segundo exprime nosso
autor, o direito “não é puro fato, nem
pura norma, mas é o fato social na
forma que lhe dá uma norma
racionalmente promulgada por uma
autoridade competente”.
A novidade da teoria de Reale está na
utilização do conceito de dialética, retirado
do sentido do
termo alemão lebenswelt, que significa mundo da
vida presente na obra Crise das Ciências do filósofo
alemão Edmundo Husserl (1859-1938) que
desenvolveu um pensamento crítico do positivismo
(em sua
pretensão de objetivism e verdade científica). Para
Husserl, toda consciência é intencional, ou seja,
não há consciência separada do
mundo, não há objeto em si, afastado
da consciência que o percebe. Isto
significa dizer que não há fatos com
objetividade pretendida, pois o mundo
que percebo é o mundo para mim. A
crise da ciência se desvela na sua
tentativa de redução da razão à
racionalidade científica. Na verdade, a
ciência não tem nada a nos dizer
sobre nossa liberdade. A mera ciência
do fato exclui o homem de sua
análise.
Assim, Reale insere o
conceito de dialética na relação entre
fato, valor e norma, a partir do
sentido de mundo da vida (
lebenswelt) que expressa o complexo
de noções, opiniões, regras, valores e
etc, ou seja, uma vida cultural que
está em constante acontecer, o
lugar de nossas originárias
formações de sentido. O direito está, portanto,
inserido na fervilhante experiência do mundo da
vida. E
essa tridimensionalidade não se limita à esfera
jurídica. A função da Filosofia para Reale está na
tarefa
de libertar a história da fetichização da ciência e da
técnica – da clausura para desvelar a verdadeira
humanidade. O mundo da vida é o mundo da
criatividade intencional da subjetividade.

146 HRYNIEWICZ, Severo. Para Filosofar hoje. Rio de Janeiro:


Edição do Autor, 1999, p.135.
108
Reale entende que a norma jurídica é muito
mais do que simples proposição lógica de
natureza
ideal: é antes uma realidade cultural e não mero
instrumento técnico de medida no plano ético da
conduta; a sua elaboração não é mera
expressão do arbítrio do poder e nem
resulta da tensão fático- axiológica,
mas um processo onde o poder é
condicionado por um complexo de
fatos e valores. A experiência
jurídica é a experiência histórica
cultural, na qual o valor atua como
um dos fatores constitutivos dessa
realidade (função ôntica) e,
concomitante, como prisma de
compreensão da realidade por ele
constituída (função gnoseológica) e
como razão determinante da conduta
(função deontológica) – tripla função
do valor revela a historicidade do
homem e a experiência histórica do
direito.
Reale difere de Kelsen, pois este jurista
separou as três esferas na tentativa de
desacreditar a
sociologia jurídica e a filosofia jurídica e preservar
a Teoria pura do direito . Queria desacreditar a
jurisprudência sociológica ou a teoria
da justiça como campos apropriados
de indagação de natureza jurídica.
Kelsen formulou, segundo Reale, uma
tridimensionalidade metodológica
negativa, só a ciência do direito
possui caráter jurídico. Na verdade o
direito acontece no seio da vida
humana. Trata-se de um processo
existencial do indivíduo e da
coletividade imersos no mundo da
vida.
109
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