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©2017 Lâmia Brito

todos os direitos estão liberados para reprodução não comercial. qualquer


parte desta obra pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou
forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação, etc. desde que não
tenha objetivo comercial e seja citada a fonte (autor e editora).

Daniel Minchoni designou e diagramou.

Gabriel Ribeiro ilustrou

Fernanda Pereira revisou

Marcos Willian (miolo) e Pedro Mansa (capa) fotografaram

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)


(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

Brito, Lâmia
Todas as funções de uma cicatriz / Lâmia Brito. --
1. ed. -- São Paulo : Ed. do Autor, 2017.

ISBN: 978-85-922815-0-2

1. Poesia brasileira I. Título.


17-03570 CDD-869.1

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia : Literatura brasileira 869.1

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DOBURRO, 2017
desculpe o atraso,
fiquei presa num poema.
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para dandara e sabrina,


que a poesia seja sua navalha.
lâmia é plural de singularidades, um livro só não
cabe. já a vida acaba por virar uma compilação
desses fragmentos. e, talvez, o maior desejo da
arte seja o de mostrar que o importante, aqui, é
sermos os fragmentos de alguém.

e foi muito doído. tudo. ver que nos reconhecemos


mais do que conhecemos, irmã, foi anestésico.
ler as tuas e relembrar as minhas. entrelaçá-
las. quem sentir, entenderá. tive a graça de
compartilhar capítulos com ela. meus e dela.
nossos. repletos de fúria, felicidade, paixão,
mágoa – tudo em páginas recicladas.

é uma questão de profundidade. veja bem, não


existe fora. fazemos parte do mesmo campo,
mas o vivenciamos de variadas formas, seguindo
nossos parâmetros. sejam eles duvidosos,
viciados, convictos, influenciados, frígidos,
sofridos, esperançosos… depende do momento
que adentrar.

o que fomos definiu o que somos e o que somos


definirá o que seremos. um irmão meu falou isso
esses dias. papo de criarmos essa necessidade de
se jogar pra que tenhamos, no mínimo, algo pra
compartilhar. masoquista, quase. vida tem disso.
e eu vou te acompanhando daqui. sem ordem,
igual a sua escrita. porque mesmo tendo buscado
as feridas, nem todos se orgulham de carregá-las,
e menos ainda, expô-las. um trabalho e tanto.
gosto do seu. tem um charme meio ácido, eu acho.

decidir caminhar por estas páginas também


requer coragem. abrir antigos ou perceber
possíveis novos machucados. aceitar o convite
é aceitar a si, e por isso dói, porque a gente se
afasta e só enxerga um ponto quando está longe
demais. a partir de agora, você está no coração
aberto da poeta. é necessário que analise aonde
pisa. e que sinta, enquanto caminha, cada linha.
também não o feche, deixe-o livre para os
próximos que virão.

cada um na sua função: das sucessões de feridas à


experiência da cicatriz. pelo mais ou pelo menos,
brindemos! como nunca e como sempre.

agradeço por trazer este apanhado. fez-me juntar


uns cacos. uma força atrai a outra.
el santzu para lams
já não tentamos o suicídio
nem cometemos gestos
tresloucados. alguns,
sim — nós, não. contidamente,
continuamos. e substituímos
expressões fatais como
“não resistirei” por outras
mais mansas, como “sei
que vai passar”. esse é
o nosso jeito de continuar,
o mais eficiente e também
o mais cômodo, porque
não implica em decisões,
apenas em paciência.

caio fernando abreu


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13 i hurt myself today
to see if i still feel
i focus on the pain
the only thing that’s real

the needle tears a hole


the old familiar sting
try to kill it all away
but i remember everything

what have i become


my sweetest friend?
everyone i know goes away
in the end

and you could have it all


my empire of dirt
i will let you down
i will make you hurt

i wear this crown of thorns


upon my liar’s chair
full of broken thoughts
i cannot repair

beneath the stains of time


the feelings disappear
you are someone else
i am still right here

what have i become


my sweetest friend?
everyone i know goes away
in the end

and you could have it all


my empire of dirt
i will let you down
i will make you hurt

if i could start again


a million miles away
i would keep myself
i would find a way

trent reznor
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TODAS AS FUNÇÕES DE UMA CICATRIZ

quis saber porque eu tinha tantas cicatrizes. contou uma por uma.
quarenta e três. uma por uma, assim, em voz alta, parecia que eram
mil. revirou meu corpo para ver se não tinha esquecido nenhuma.
talvez tivesse. perguntou como, onde, quando, os motivos.
dei risada. não porque era engraçado, mas porque não fazia sentido.
quarenta e três riscos tão parte de mim que no frio somem. pulsam
sincopados quando estou com raiva. incham de suor e empatia.
adaptam-se a cada transformação. são tatuagens que eu mesma
fiz. acidentes que eu escolhi causar. cirurgias que a vida decidiu
que eu tinha que fazer. e nas que eu rejeitei, nasceram queloides.
esta é a função da cicatriz: autoaceitar. eu sofri todo o processo.
a ferida se abriu e aquele vermelho tão vivo impossível não
estancar e aquela dor impossível não sentir e então, pela primeira
vez, era vida de verdade. tudo o que estava fragmentado no ar de
repente virou uma coisa só e era palpável, era dor física, muito
mais suportável. do vermelho, pro roxo, pro verde, pra cor da
minha pele. esta é a função da cicatriz: recompor. uma experiência
por cicatriz e a vida é feita de memória. as recentes são as mais
latentes, por isso o corpo vira diário. estigma voluntário, marcas
de ressurreição. encontrei na base da lâmina a terapia e não foi
tristeza, ainda que argumentativa, mas desejo de conexão. isto não
é sobre superação e final feliz, este não é um livro de autoajuda.
cada palavra, uma gota de sangue que escorreu. esta é a função da
cicatriz: relembrar.
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lâmia é nome diferente


estrangeiro e de mulher
lâmia nasceu vagina
mas cresceu desapontada
aceitou a condição
impossível de mudança

lâmia aprendeu cedo


que água e sexo não se nega a ninguém
aprendeu também que tem coisas que devem se desaprender

deitou em cama alheia


não achou o que procurava
continuou na empreitada
descobriu que o prazer e a morte
estavam ao alcance das mãos

decisão acertada na vida


não ser mais menininha
processo interior aceito
dentro de si mora outro
e aceitar-se outro é profundo

depois de uma vida em discussão


abriu-se feito canivete suíço
e revelou seu novo rótulo:
lamiassexual.
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com a mesma indiferença vesuviana


seu “eu te amo” criou uma crosta
para escorrer tem que quebrar
era vulcão, vermelho magma
agora é pedra-pomes
concreto pairando no ar

para contemplar as asas da vitória de samotrácia


é preciso subir as escadas de mármore
grécia e frança em uma briga eterna
por uma lembrança enclausurada
acho que é por isso que as guerras são tão fascinantes

eu quis aprender com seus caprichos


entender onde seu lado fraco se guarda
estranhei, curiosa e calma
seu lado forte protestar suas manias
beber uma taça de vinho como auge da autoafirmação
promessa vazia vendida
e depois o silêncio, na certeza do que possuía

mas eu não sou sua estatueta


de cores escondidas, berrantes só com raios ultravioleta
eu não me entrego à sua saliva roxa
carrego minha própria taça e sigo meu caminho
sou partenon, sou propileu, sou a acrópole inteira.
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eu moro nas coisas deixadas por pessoas que não significam mais
e da janela do meu quarto eu passo o dia organizando o horizonte
eu limpo a sujeira que a chuva não é capaz
já cuidei dos gatos e esvaziei as gavetas
eu sei o que esses móveis vão dizer quando você for embora
vou juntar todas as lágrimas e vou regar as plantas
nascerá uma cidade intransitável

a solidão é um espécie de paraíso que eu não quero entrar


tem um coração acorrentado na esquina e essa tempestade é tipo sisal
quanto mais molha mais aperta
eu nunca mais li um livro inteiro depois que você apareceu
atrapalhou até meu jeito de grifar as palavras bonitas que eu achava
agora eu só penso em garatujas
você picasseou minha forma de amar

estive cercada daqueles que eu amo


e aquele quadro não me sai da cabeça
você é minha síndrome de stendhal
mas é sozinha que revigoro
há uma nuvem preta em cada colo
só que o céu ficou mais azul depois que resolvemos ser sinceros.
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ainda ontem inventei uma imagem


as crianças vieram correndo
foi em segundos que o berro virou salto
folha de papel devia ser permissão pra viajar

ainda ontem escorri palavra


com a mesma blusa preta que meu gato me abraçou
fui falar sobre política
os pelos brancos aqueceram um corpo que por dentro latia

ainda ontem tirei seu retrato


fiz um 3x4 e colei na porta de dentro do armário
descobri seu diário
e não havia nada de interessante lá quanto estar perto e descobrir você

ainda ontem dormi pensando


em todas as vezes que eu me apaixonei
no dia.
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nunca mais enterrar meu sonho


nunca mais fugir da meta
nunca mais sair do foco
apagar foto
pisar em cacos
vasculhar passado

nunca mais me perder do seu campo de visão


nunca mais achar que está bom
nunca mais sofrer por opção
viver em vão
comer carne
me contentar com o não

nunca mais hiato


nunca mais ócio
nunca mais sentado
marasmo
fumaça
são paulo

nunca mais falar antes de pensar


nunca mais escrever antes de sentir
nunca mais receber antes de doar
respeitar o que não vem de mim
a verdade
se conseguir
não julgar
até o fim.
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um café pra deixar o corpo quente


acordar cedo e sair correndo no embalo
não é nem oito e essa gente está com cara de confusa
ou será que estão rezando?

o suor é nossa denúncia


é o prêmio invisível do artista
descontado no holerite
todo o cansaço extra laboral

quem crê que arte muda a vida


pinta a casa de vermelho
e esquece que lá fora
está começando o inverno

mas é com o tempo que se aprende sobre o tempo


com dezesseis eu não pensava
sobrevivendo no inferno
com vinte e cinco tudo é pensamento

segue o seco ou segue o coração?


dúvida de semideuses
ou de todos que eu conheço
que no frio suam pintando paredes.
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o barulho da cidade
dos carros
escavadeiras perfurando tímpanos
não adianta fone de ouvido

um estranho que entra


não pede licença
não diz o nome
não surpreende
atravessa sem olhar pros lados

o pó da rua pra dentro


se acomoda nos cantos frios
foge quando encontra os pés
volta pela janela, pela porta, pelas frestas

vivemos metafisicamente
do olho ao umbigo
com todo o cuidado do mundo
pra que a realidade não esmoreça

pra que a vida não nos engula


mantemos a distância
entre aqui e a tv
emociona e entristece com hora marcada

a pobreza
a sujeira
a arte
a hipocrisia
o terror
a sorte
a vida do outro
e mudamos de canal.
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eu tenho uma vida que não cabe em são paulo


um trabalho, dois gatos
muitos sonhos, pouco tempo
muito barulho na rua, muito silêncio aqui dentro
uma biblioteca no quarto
ninguém pra conversar sobre os livros que li
até onde meus olhos alcançam, ainda é muito cinza
até onde ninguém me abraça, ainda é muito raso
profundo mesmo, só o sono que eu induzi

amor é possessão
medo é constante
ciúme é tolerável
tristeza dez miligramas
alegria baseado de ponta
tudo convenção

na cidade onde não há corações


e dúvidas ambulantes andam distraídas pelas marquises
sou a contramão e decreto mais uma:
não troco sentimento por condição

nessas inversões
em que a moral insiste em existir
o limite já está dado
não caio mais em conversa de elevador:
entre o frio e o calor, eu prefiro a solidão.
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crente que nunca foi traída


sentiu o chão lhe passar a perna
se recusando a absorver seu suor

sem perspectiva
sem expectativa
dalí da sua imagem fez-se surreal

decidiu que o jazz não convence


e que só chora em azul
escondida em si, estridente e ruidosa

sua sina é vagar feito rachel de queiroz


e descobrir que a fome é clássica
só pra ter o que contar no final

não adianta a favor ou contra


de um lado o medo da rua – do outro, seu apartamento é pequeno
toque de recolher o sentimento

o oposto angustia pela não ação


anularam seus direitos te dando um dever
não conhece mais o prazer da não obrigação

dá graças a deus por estar cercada de homens


que matam e morrem por sua decência
o problema é que o fogo cruzado nunca sabe a diferença.
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MARIA

ela acordou no frio da madrugada e fez sua oração. estava apenas o


corpo desperto, mas a brisa gelada que vinha da fresta esquecida a
fez recuar em pensamento e quis continuar na mesma posição até o
dia esquentar. não podia. a cozinha denunciava a saída às pressas do
marido ainda mais cedo e o choro agudo da criança era a lembrança
de um passado em que era permitido procrastinar. lembrou do colo
do pai. tomou o resto de café morno e sentiu o arrependimento de
dez anos atrás. se as luzes estivessem acesas, talvez tivesse outra
impressão. no mesmo movimento suave que levantara a xícara, voltou
ao canto mais quente destinado à sua sobrevivência. descobriu que
às vezes o efeito da reza é imediato.
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o relógio parece parado


a relação já teve sua última gota
as horas se arrastam
os olhares cruzados

sua força é meu desapego


na ânsia do controle, desmorono
os segundos serão punidos
se não forem cada um beijados

o sol lá fora queimando se põe despercebido


condicionado em quadrado
são quinze minutos contados
poluição, barulho, cigarro, comida, celular, banheiro, livro...
atrasado

da rua à formalidade
contrato feito no passado
tentado a acreditar em destino
mal do homem conformado

com os dedos entrelaçados


os cabelos molhados, o lençol amassado
meu horário é outro, o sentido é contrário
sinto informar, mas hoje não irei ao trabalho.
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a água molha a cervical


não gosta de sentir nos cabelos primeiro
pensa no futuro e o que fez com seu passado
ali ela reza e agradece
canta “chove chuva, chove sem parar”

a espuma branca com cheiro de vinho


acalma os poros e alivia tensões
com toque de mãos de michelangelo
e olhar pra dentro como fotografia

sente cada poro se abrir


recebe o pouso dos pingos quentes no ar
pisa sobre os fios curtos que insistem em cair
é só água, mas deixa o arrepio subir

o algodão pressionado cobre a pureza da pele


fica como veio ao mundo por mais uma hora inteira
relaxada e aquecida sua própria natureza
tem vontade de repetir o ritual

só se encontra a paz nesse tipo de beleza.


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um dia eu decidi estudar os meridianos e descobri


que um ponto onde eu alarguei minha orelha
está associado a essa dor que eu sinto quando você chora
eu não sei se musicoterapia funciona
mas todos os tarjas pretas não deram certo até agora
as histórias se confundem em algum ponto
buda teve a sorte de ser lembrado por seu nirvana
qualquer erro no meio do caminho é apagado quando o sucesso é atingido
no meu passado tem esquinas que o google não identifica
foram dois corpos no mesmo espaço e eu não sei te explicar esse fenômeno
nada é por acaso e passando a vida mais errando que acertando
um diagnóstico de escoliose na cervical: a concretização da expressão
“peso nos ombros”
não poder sentir a dor do outro foi o maior erro de deus
(ou o que o diabo sabe fazer melhor)
madre teresa de calcutá tinha certeza disso
a calopsita do meu vizinho que sempre para de cantar
[às nove horas da noite também
pensar na existência de deus deixa a casa com cheiro
[de carne mal passada
e eu sou vegetariana.
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enfrentamento diário
passo apertado
olhar sanguinário
palavra mal dada
nó não atado
foco à direita

viveu em barraco
sofreu em moeda
trabalhou por comida
rezou santo errado
andou pra caralho
agora o que dizem
é que sucumbiu

viu em novela
sua vida não bela
acordou assustado
não dormiu tempestade
jornal cobre janela
a imprensa não vem até aqui

de preto e vermelho
sem pátria e bandeira
que grita seu norte
sem medo e contando com a sorte

o coração ainda pulsa


sua voz nunca o abandona
a verdade é a seguinte, mesmo que velada:
deus vai ter que pedir perdão se passar por aqui.
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um dia
quando isso tudo passar
eu vou olhar pra você
e contar que nos dedos de uma só mão
os amores que eu tive foram de doer
e me fizeram hoje este coração duro te pedir abrigo
não porque me vi apaixonada
mas porque em meio a esta paixão-razão que me foge
me flagrei muito cansada.
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é tipo quando você come alguma coisa e aquela coisa fica lá no seu
estômago horas te estufando e fazendo uns barulhos esquisitos e
não querendo sair dali e te enchendo te irritando te paralisando não
te deixando fazer mais nada e aí você pega essa coisa e coloca na
sua cabeça e multiplica por mil coisas e faz essas coisas gritarem
por socorro peloamordedeus socorro querendo urgentemente uma
saída porque você tem certeza que tem uma bomba-relógio no seu
cérebro tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac que vai explodir
a qualquer momento e elas precisam sair de lá por algum lugar e aí
você tem que tampar os ouvidos com a pressão de uma panela de
pressão porque essas coisas estão gritando é ensurdecedor é vazio
e transborda ao mesmo tempo e você não consegue parar pra pensar
numa solução e você sabe que as coisas que estão lá vão explodir a
qualquer momento e não dá pra pensar não tem como pensar e está
escuro por quê tá escuro você queria ter mais mãos pra não ouvir e
não ver e você já não sabe mais se é estômago revirado ou cabeça
em ponto de aneurisma e sempre vem alguém perguntar o que tá
acontecendo se você precisa de ajuda quer uma água senta aqui
respira vai passar mas ela não quer saber se você precisa de ajuda
ela só quer saber de alguma coisa pra contar na próxima vez que
encontrar os amigos dela e então você chora e deita e depois tudo se
apaga e termina.
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couraça
carcaça
ferro em brasa
marcada
vinte e cinco anos de procura
que não deu em nada

depois me perguntam porque eu sou tão calada.


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PARA PEDRO

nós mudamos, meu irmão. antes era uma coisa meio confusa, meio
“eu só vim aqui pra olhar” e você me seguia por onde eu ia e o que
quer que eu fizesse você não questionava. a gente lia livros pela
estrada, comia horrores na beira dos postos de gasolina (eram
aqueles pães de forma com queijo que eu roubava do mercado da
esquina). achava que tudo era um filme sessão da madrugada desses
que se vê por acaso, sem créditos no final. a gente também escrevia.
era tudo ruim, melancólico demais – bocage, augusto dos anjos,
geração beatnik, não dava pra ser feliz assim. mas foi pela escrita
que a gente não se matou. e pela música também (aquele punk rock
salvou nossas vidas). as viagens pro centro da cidade eram nosso
abismo particular. só o dinheiro da condução no bolso, como a gente
conseguia ficar tão louco? e tudo ficou louco demais quando eu não
quis mais voltar. foi uma história bem triste pra nós, não sei pra
quem mais. porra, mano, eu só tinha dezesseis. eu parei de escrever.
você acabou com o estoque de cadernos e o mundo encolheu. dois
mil e cinco foi o ano que nunca existiu.
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eu canto pra livrar o peito do mal-estar.


eu sorrio como quem tem vergonha das perguntas que faz.
eu corro pra arrancar da alma o que ainda sobrou de você.
eu choro sem motivo e a ausência de motivo já é razão pra chorar.
eu falo só com quem me atira o olhar.
eu olho como quem analisa todos os detalhes, sem deixar nada passar.
eu grito pra não escutar.
eu escrevo testamentos pra depois que o mundo acabar.
eu leio livros pela metade e guardo-os na esperança de um dia os finalizar.
eu danço de olhos fechados imaginando o salão vazio.
eu jogo capoeira e mal entendo o que faço, mas eu sinto e isso basta.
eu acredito com a cabeça pra depois acreditar com o coração.
eu rio pouco, mas rio alto.
eu me isolo e esse é meu estado natural.
eu invento soluções pros problemas do mundo e os meus eu deixo como estão.
eu me apaixono por mulheres que andam nuas ao meio-dia.
eu me aprisiono por homens com calça de moletom.
eu fumo porque a poluição do ar é ainda pior.
eu como a comida da semana passada e finjo uma vida saudável.
eu amo de corpo e sátira.
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é tanto ódio e desconfiança


chega um ponto em que acredito
que é só isso mesmo que existe aqui
eu poderia ser uma franco-atiradora
por poder ficar mirando essas luzes dobradas da madrugada
[por horas a fio
mas existe uma voz que vem de dentro da minha cabeça
pra me dizer que mesmo parada o mundo ainda gira

eu também poderia ser sua namorada


que diferença tem
já que os dois acertam em cheio o coração?
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PARA R.V.

te chamo de amor no telefone e você pergunta quem é


mas reconhece minhas mentiras pelo tom.
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em resposta ao que seu corpo não me dizia


o meu ficou desnorteado com tanta penumbra
a mesma coragem que nasceu do embate
ficou tímida diante do caminho que nos bifurcou

são sessenta e cinco dias comprimindo a angústia


serão mais três de anestesia
e quando esse mar passar e vier o cansaço
onda nenhuma aceitará rasteira dada em copo americano

aprendemos a tapar os buracos muitos antes


que algum pássaro viesse repousar em nossos ninhos-corações
mas a natureza é perversa
e tem ave que é quebra-pedra

todos os instantes que eu não te entendo


são feitos do mesmo movimento do ataque
brutos como ressaca depois do meio-dia
mas em nenhum deles você me olha.
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todos os dias ouço histórias piores que a minha. histórias de quem


veio do nada e no nada ficou. histórias de quem caiu e não se levantou.
histórias de quem morreu antes de tentar ou, por não tentar, matou.
de quem adoeceu, sofreu, perambulou, mendigou, comeu o pão que
o diabo amassou. todos os dias eu ouço essas histórias que não são
minhas, não são minha dor nem meu tormento, e por não carregá-las
no peito, só por ouvi-las e vê-las em face de sofrimento, viro-me pra
dentro e acredito que minhas histórias, ainda que menores – porque
sinto e são de carne e osso – são mais especiais e, às vezes, dignas
de mais respeito.
45

eu quero sentar aqui nesse sofá


lugar onde deixei minhas rugas mais profundas
chorar até não me lembrar da data desta fotografia amassada
eu ouço nocturne e deixo tudo muito mais denso que essa paisagem
e por tudo o que não desejo com este tempo úmido de garoa suja
um vinho seria bom mas há anos eu não bebo
nesta noite decretei falência
erro crasso olhar pra trás e ter orgulho do que vê
meu rosto é meu eterno delator
das fotos que eu tiro eu nunca enxergo além da boca
é seca
como a última garrafa de vinho que eu tomei.
46

todo dia um desafio


todo dia um desafio
todo dia em desalinho
toda hora linha tênue
não sei se alienação
ou abraço o abismo
a cada minuto briga interna
pau a pau com o coração
toda semana é isso
hoje o mundo é problema
amanhã é solução
todo dia um abismo
todo dia um abismo
aponta o pé só pra ver se cai
será mesmo que não tem chão?
e mesmo que caia
mesmo que do chão não passe
o que era problema vira solução
que vira problema
linha tênue
grande decisão
todo dia um desafio
todo dia um desafio
a cada minuto briga interna
pau a pau com o coração.
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mergulhei cada pedaço na cratera que é minha boca


e grudei minha risada no céu como bala de caramelo

nada como um dia de fúria após tantos desencantos


fizeram-me acreditar que as rosas estão num pacífico mar
mas é quando me deparo com a pistola
que meu peito-lágrima tudo suporta
sou o lamento perante a rebeldia
crendo mais no amor que na palavra escondida
qualquer sorriso me afunda em ironia
humilhação foi não poder te levar pra casa na mesma noite
[em que teu casamento acontecia
e eu vivo só
entre o medo e a necessidade de cair mais uma vez
[na mesma armadilha
em trilha de escoteiro eu caminhei teu corpo inteiro
e vi a face de quem deseja mais um beijo
quem veio crente ser o dono deste espaço dividiu
[o mesmo metro quadrado com os que já me comeram
vim neste chão em busca da sensação e só observo a revolta que causei
em caso de movimentação dessa energia o que treme não é mandíbula
é a navalha que carrego entre as pernas e ponho em riste
[toda vez que você me ameaça
brinquei com a raiva alheia e sendo a testa nossa telha joguei o espelho pro ar
não se cura violência nem se aprende a dar as mãos
deixo tudo o que é natural se autodelatar
botou fé em mim uma vez e eu te decepcionei
botou fé em mim de novo e então foi culpa sua
eles são mestres no tato e provam poder em grande escala
eu daqui de baixo sinto
mais um ano que se vai cada um com sua tática.
48

meu jeito de amar avassala


quebro no grito, arranho, mordo, rasgo
jogo seu celular do quinto andar
depois peço desculpas e digo que nunca mais quero brigar

você diz que me odeia e que eu sou louca


mas não dá nem dois dias quer me encontrar
não se importa com a pia cheia de louça
esquece o quarto, na cozinha já tirou toda a roupa

‘cê tá na bad eu nem ligo


se eu tô triste, te cobro carinho
e sempre passa logo na primeira risada
seu efeito é instantâneo tipo poesia na madrugada

a gente anda devagar pra não errar


dois campos minados e ninguém sabe onde explode a próxima bomba
eu te amo agora porque meu amor não vacila
mas num vacilo seu nossos corações viram nagasaki e hiroshima.
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acabaram-se os dias de luto


foi com paciência que desaguei
esperei até que todas as folhas do caderno estivessem preenchidas
linha por linha
e na ânsia granulada destes olhos cavei um buraco
no teto da minha floresta particular
apaguei meu cigarro com a saliva e desliguei a bomba atômica
o segredo do meu cofre só quem sabe é minha mãe
o que você vê é o que você tem
sem trilha sonora
crua e faminta.
50

a faca
mesmo cega
corta
só depende de quem segura.
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você me quebrou
como criança perversa
e sua boneca
você me desmontou

foi por desejo


seu sonho calculado
se fez de gato
comeu o que tinha
depois ignorou

eu me senti quase um lego


quase um descuido
quase uma peça no seu xadrez
meu corpo era igreja falida

abandonado
trancado

como criança mimada


ouvi seu lamento
te fiz dormir
fingi esquecer do rombo
desse buraco negro
que você deixou.
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me dá mais tempo mundo


aos vinte e tantos eu ainda não nasci
os olhos ainda não se abriram
eu não achei a ponta desse nó embaraçado
ligando aorta e tinta esferográfica

foi quente que vim


mulher quero continuar
essa coisa estranha de tragar tudo pro peito
cresço sem me saber frágil
mas cresço flor
enterrada no meio do asfalto

não há planos que resistam aos trinta


quis amor não quis negócios
na frieza de um abraço
limpei a casa
pintei as paredes de branco

virar a página do jornal


sujar as mãos

daqui quarenta cinquenta


não me deixe olhar pra trás
tempo é presente em embrulho surrado
quero meus diamantes guardados num pote de geleia
quero filhos quero netos quero lápide
olhar eclipse comendo batata frita
sozinha.
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POESIA ENCRAVADA

era a mais bonita que ela já poderia ter escrito


mas era uma poesia sobre o amor.
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ator chapéu coco pulando poça d’água


vem rindo pra mim
a felicidade por um triz
disse olhando nos meus olhos que nunca mais ia sair daqui

apesar do sorriso, a lágrima tremeu


mais que depressa, mas sem alarde
num gesto sutil, como se eu não notasse
chegou bem pertinho e cada gota lambeu

aproveitou ali a língua, a água, o gosto


de tão perto se sentiu no direito, mesmo que oposto
eu nunca hesitaria e você bem que sabia
que um dia aconteceria e que seria meio assim, meio... poesia

o sol já se pôs, a noite já foi, a manhã já veio


e a gente aqui, nessa mesma encenação
tão bom de sentir, de não duvidar
sem ter que falar... e se chorar, só mesmo pra boca encostar.
58

encontra o amigo
pra esquecer o amor

típico.
59

no meio de tanta gente


quando meu olhar encontra o seu
você vira
desvia
olha pra baixo
tenta
procura no bolso o sorriso secreto que eu te dei
e me devolve o mesmo lábio de insegurança
(desculpe a intromissão)
eu quis fazer desse laranja nosso fogo
uma união
uma cor que eu vi transbordar do seu peito
transformando o que era denso mesmo antes da aproximação

seus passos alteraram o horário


e lentamente sua mão esquentou meu plexo
vai devagar com o andor
malandragem também é observar
deixa eu brincar com esse vórtice
um toque a cada palavra
além de todos os nossos sonhos
pois ouvi dizer que eram o início da revolução
e pelos filhos que não teremos
ou só pelo brilho dos dentes que reluzem na minha frente
primavera a primavera
me faço presente toda vez.
60

eles sempre voltam


como outro ano sempre vem
por mais que a vida afaste
minha tendência é ir junto com os dias

eu tenho uma frequência afetiva rara


não sou poeta badalado
só beijo a boca dos consolados
e mando embora no meio da madrugada

sempre que vão, morre um pouco do meu ego


não me perguntei porque o telefone não tocou no dia seguinte
mas voltaram pra devolver o pedaço da noite que sobrou
e consolar o beijo que agora é saudade

aos que ficaram até mais tarde


desculpe-me o vazio
conversar muito nunca foi meu hobby
sempre preferi o olhar

na íris mais latente encontrei quem pudesse me salvar


mas não disse
e como essa vida é toda incerta
ainda que o coração seja duro, minha cama sempre foi grande demais.
61

assim que o sol raiar


me esqueça

assim que anoitecer


não atenda

eu sei que a intenção é boa


o problema é a segunda
terceira

atravesse a cidade
declame poesia
grite
eu não vou ouvir

evite o toque
não toque no assunto

assum preto de propósito


finge não me ver
mas canta pra qualquer um.
62

figurinha
repetida
não
completa
alma.
63

um convite informal
pra estabilizar a turbulência dos nossos dias
passou pela minha cabeça em ligar pra você
mas achei que pareceria estranho querer conversar
sobre as coisas que explicam a morte pré-avisada

o caminho menos embaraçoso seria


o silêncio ocupado em nossas xícaras
com uma quantidade de fé que se esvaiu
feito areia em mão espalmada.
64

você some
eu calo
você preta
eu pálido

você viaja
eu escrevo
você bahia
eu rio de janeiro

nossos saaras não deságuam


não têm petróleo
não transbordam
nem como miragens são

vem aparar minha ânsia


de te ter amor ao léu
nos cantos, nas vielas
teus becos, minhas favelas

esconde-me debaixo desse turbante


ou me bota coroa e aperta o nosso passo

eu não sei se vai dar certo


mas a gente descobre num lugar mais isolado.
65

você não perguntou mas eu disse que era amor


e te beijei beijo molhado de olhos abertos
foi pra ver se você sentia o mesmo que eu
mas teus olhos fechados estavam muito quietos

faltou emoção em tuas mãos


quis ver confiança em teu andar
da boca pra baixo encontrei dedos cruzados
quase me ajoelhei em teu pé atrás

desconfio que tenha sido sempre assim


a expressão do desejo foi a revelação de tanta espera
eu me julguei audaciosa na hora certa
mas o prejuízo da (tua) dúvida fez querer o nosso fim.
66

quando não se tem televisão em casa, corre-se o risco de não levar


blusa para o primeiro dia de frio de agosto. o homem sentado ao meu
lado no metrô deve estar pensando que hoje é o meu dia de sorte
porque eu não paro de rir, mas ele nem desconfia que meu ex acabou
de entrar no mesmo vagão e a falha mecânica entre as estações belém
e bresser-mooca vai fazer meu estômago revirar. ainda bem que
ele decidiu não esperar a retirada do objeto dos trilhos e eu decidi
apenas segui-lo com os olhos. observo todos os rostos cansados com
uma altivez invejável. se existe uma satisfação na vida, é de ter amado
um filho da puta.
67

faz um poema pra mim amor


que eu não sei mais
meu poema tem a densidade do mar vermelho
é solidão que não acaba
você é esse pedaço de céu que eu arranquei
e por descuido veio junto o sol
nunca mais escureceu por aqui

faz um poema pra mim amor


que com você por aqui minha escrita se desfaz
minha tristeza que não tinha fim
tá em crise existencial
sua voz rouca ela nem quer mais ouvir
alguém falou que não existe amor assim
que esse negócio de dois em um é atrasado demais
seu céu roubado meu chão pisado
só a gente sabe até onde o horizonte vai

faz um poema pra mim amor


e faz meu sangue flutuar outra vez.
68

mesmo longe eu sinto


e arde.

quando perto, ascende.


se dentro, nirvana.

o olhar que fala.


pede.
implora.

como água garganta abaixo


a vontade se mata de prazer.

as unhas encravam
a carne sangra
os lábios tentam

só se escuta ranger.
não há deus
não há dor
não há vergonha
vai além
transcende.

quase lá...
vivendo todos os séculos de uma vez
todo o gozo que se fez
de olhos bem fechados
nossa prática é a arte lençol adentro.
69

devemos discordar, de antemão, de textos bem escritos


todo intelectual é uma fraude e todo poeta é estelionatário
os únicos que realmente dizem o que pensam são os rancorosos.
intensa, pulsante e cortante. assim é lâmia brito, poeta paulistana
que se atém aos detalhes que ninguém mais vê: a cor do céu no
horário de verão, uma cicatriz no peito de alguém dentro de um
ônibus, o reflexo de uma alma no espelho de um elevador. em todas
as funções de uma cicatriz, ela resume os últimos cinco anos em
que passou se dedicando à escrita e apuração da obra.

o que chega ao mundo agora é um livro pessoal, um mergulho na


própria alma, a tentativa de cura das próprias dores e marcas. é uma
cicatriz palpável. é uma ferida que já foi tocada tantas vezes, mas que
dói a cada página virada. é a leveza de quem se reconhece humana.
como diz a autora, é “o que um dia foi coração”. é uma obra que dá
orgulho de ler. que transforma. que ilumina. que melhora.

lâmia brito é uma voz íntima. é o diálogo com o espelho. é um


ouvido atento. é o encontro com quem realmente somos. ela não é
uma promessa editorial. é uma escritora completa. que lê, relê, se
interessa. se doa. escreve sem medo de parecer humana demais. e ela
é. uma excelente escritora da nossa geração.

todas as funções de uma cicatriz é a reunião de sentimentos de


uma geminiana apaixonada por poesia e por hip-hop. é muito amor
pulsando nas ruas quentes de são paulo. é o coração exposto de
quem está mais atenta aos detalhes do que a própria formação em
letras. lâmia brito é também uma amiga. uma eterna estudante de
artes, medicina chinesa e energia. é o repertório de uma produtora
cultural que aposta em projetos como o “projeto livrar” e “ninguém
lê”, para discutir obras da literatura marginal e espalha poemas no
concreto de são paulo. e tudo isso está presente no livro, além de
uma estética incrível. e que orgulho fazer parte disso!

jéssica balbino
todas as funções de uma cicatriz
foi composto em bodoni 72 oldstyle 10,
e impresso na gráfica psi7 em março de 2017
em papel pólen 90g/m 2 para o selo do burro.

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