Recentemente divaguei sobre o que o Olavo fala com respeito à produção
literária, onde o escritor transforma experiências em palavras e dá ao leitor uma superfície de contato em diversas áreas que ele não teria tempo para viver cada uma das situações. Por isso, os grandes gênios sempre foram aqueles capazes de adentrar mais ao fundo da própria alma e, saboreando a doçura e a amargura das suas paixões, trazem-nas para fora e as dão ao leitor como uma experiência substituta capaz de traduzir sentimentos do leitor em situações semelhantes pela literatura. Estava ouvindo Mozart e comecei a pensar sobre isso. Já vi vários grandes músicos e intérpretes falando sobre o fato de não termos grandes compositores hoje. Todos são unânimes em dizer que é “normal” essa baixa de produção – principalmente, de qualidade – nas composições atuais. Lembro de uma entrevista do maestro João Carlos Martins que teorizou que vivemos uma “baixa safra”, mas que isto é cíclico e que em um período de cem ou cento cinquenta anos isso irá mudar e novos Mozarts e Beethovens irão aparecer naturalmente. Na época – jovem, inexperiente e sem ter tido a mente expandida pelo fórceps intelectual do Olavo – eu acreditei. Hoje não mais, não dessa incultura dominante. Quem estuda um pouco a história entende quem eram esses grandes gênios da música e, principalmente, em que universo cultural eles estava imersos. Não eram homens assalariados com dezenas de milhares de dólares de patrocinadores para estudarem e praticarem música durante a jornada laboral diária de oito horas, com pagamento de bônus, férias, etc. Eram muitas vezes homens com compromissos financeiros batendo na porta (Handel), doentes (Beethoven e Chopin), não reconhecidos (Mozart), religiosos devotos que deixaram tudo para servirem a Deus (Bach), deprimidos por problemas familiares e pessoais (Tchaikovsky), entre outras inúmeras circunstâncias que os fizeram encontrar o universo fechado – como diria Lavelle – na maioria das vezes. Porém, eram capazes de provar e degustar cada experiência da sua vida, amarga ou não, e transformar essa experiência em Música (de verdade). Mas para fazer isso, havia toda uma estrutura cultural e intelectual que acercava o compositor e, portanto, suas experiências eram feitas em contato direto a realidade. Não havia falsidade naquilo que escreviam. Beethoven não escreveu Freude, schöner Götterfunken, a Ode à Alegria, famoso trecho da Nona Sinfonia, pensando em demonstrar que era possível criar uma sinfonia com um tema baseado em uma simples escala diatônica maior sequencial – sobe e desce três graus – com a estrutura harmônica padrão encaixada nas funções tônica e dominante. Como diriam os americanos, bull shit! Havia algo muito maior, algo muito mais profundo, elevado, sublime, mas ao mesmo tempo simples, compreensível e seguro que guiou os sentidos de Beethoven, limitados pela surdez, mas ainda assim ricos por toda experiência vivida pelo compositor austríaco que soube transformar toda essa miríade espiritual em notas, e essas notas na mais genial composição que meus ouvidos já ouviram. No filme Minha Amada Imortal, de 1994, Beethoven, magistralmente interpretado por Gary Oldman, tem uma conversa com seu amigo Anton Felix Schindler quando este estava ouvindo uma dupla que interpretava a Nona Sonata de Beethoven e foi interpelado pelo próprio. Seguiu-se o seguinte diálogo, iniciado pelo compositor: “O que a música faz?” “Exalta... a alma!” “Bobagem! Ao ouvir uma marcha, sua alma se exalta? Não, marcha. Se é uma valsa, você dança. Na missa, você comunga. A música tem o poder de fazer a pessoa entender o que passa na cabeça de um compositor. O ouvinte não tem escolha. É como hipnotismo.” Este detalhe foi esquecido, não apenas pela classe musical, mas por toda a cultura moderna. O compositor, assim como o escritor, pintor, escultor, ou qualquer outro artista produz apenas aquilo que está gravado nos seus sentimentos, nas suas experiências, na sua vivência de mundo, extraindo delas toda verdade compartilhada pelos homens e entregando a estes o produto final do trabalho da sua técnica para ser usado como instrumento de elevação. Não preciso adentrar em detalhes na destruição cultural que acontece nos dias de hoje. A verdade é que a destruição cultural não apenas afeta a geração atual, mas toda uma geração futura é amputada do seu contato com a verdade. Fazer jovens ouvir Chopin não criarão novos Chopins. Novos Chopins somente surgirão quando forem capazes de fazer uma introspecção individual, aprenderem a compreender as suas próprias experiências, assimilar as experiências dos grandes gênios do passado e, após isso, extrair a verdade e então, só então, conseguirão transformar tudo em notas musicais e estas não serão apanhados de sons sequenciais e simultâneos, mas obras dignas de adentrarem a história. Hoje, a música serve como meio de alienação. A música pop jazz no maligno. Isso é fato. E mesmo no meio dito “erudito”, homens entorpecidos pela cultura moderna e seus vícios são incapazes de provar das suas próprias experiências e demonstram isso somente sendo bons intérpretes. Ou seja, são aqueles espelhos tortos de parques de diversão que refletem formas que não condizem com a realidade. Falta o elemento de verdade na música, que vive de exalar mentiras e falsificações. Alguém poderia dizer que John Williams é uma exceção e até apontaria toda a trilha sonora de Star Wars, que imerge o ouvinte na ambientação do filme com todas as nuances fictícias e fabulosas. Sou um fã declarado da série de George Lucas, mas não posso considerar John Williams um gênio por sua composição que é no máximo divertida. E mais, é descaradamente uma cópia da Sinfonia do Novo Mundo de Antonín Dvořák. Esse é o estado de saúde da música dos nossos tempos. De um lado, porcarias pop experimentais e sem nenhum padrão de beleza, fundamento de verdade ou elevação espiritual. De outro, grandes intérpretes, mas meros reflexos mal feitos, repetidores, macaqueadores e mímicos, sem um sopro de criatividade e verdade. A real motivação para o surgimento de compositores do mais alto padrão está soterrada debaixo de anos de destruição cultural, pois os motivadores máximos dos gênios da composição – a verdade e a beleza – não são apenas desconhecidos, mas não podem sequer ser encontrados diante do labirinto de falsidade. Portanto, eu não consigo vislumbrar um novo Beethoven ou Mozart nascendo dessa cultura podre e destruída. Uma fonte envenenada não poder dar água doce. É por isso que o trabalho do Olavo é de vital importância. A reconstrução da cultura através da criação de um grupo de intelectuais que reconstruirão a ponte de contato com as gerações passadas pode fazer com que um dia alguém atravesse essa ponte e redescubra como fazer a música cantar a Verdade.