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VOCAÇÃO

E VOCAÇÕES PESSOAIS
Colecção A. O. DE BOLSO

1. Acreditar em Deus
José I. Gonzaléz Faus / Josep Vives
2. Vocação e Vocações Pessoais (2ª ed.)
Vasco Pinto de Magalhães, S.J.
3. Quando a Caridade se Faz Política
Henri Madelin, S.J.
4. Jesus e o Teu Corpo (2ª ed.)
André Leonard
5. Em Busca do Sentido da Vida
Maria Paula Serôdio
6. Pai Nosso... Um Itinerário Bíblico
Irmão John de Taizé
7. Síntese da Fé Católica
François Varillon
8. O Espírito Santo, Fonte de Vida Nova
Irmão John de Taizé
9. Nazaré, Ícone da Trindade
Dário Pedroso, S.J.
10. Espiritismo, uma Fraude
Heitor Morais, S.J.
Vasco Pinto de Magalhães, S. J.

VOCAÇÃO
E VOCAÇÕES PESSOAIS

Editorial A. O. – Braga
Paginação: Editorial A. O. – Braga

Impressão
e Acabamentos: Gráfica Vicentina
Braga

Pode imprimir-se: Amadeu Pinto, S.J.


Provincial

Imprima-se: † Jorge Ferreira da Costa Ortiga


Arcebispo Primaz

Depósito Legal nº 50099/92

ISBN 972-39-0274-5

2ª ed. Julho de 2005

©
SECRETARIADO NACIONAL
DO APOSTOLADO DA ORAÇÃO
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Tel.: 253 201 220 * Fax: 253 201 221
livros@snao.pt; www.jesuitas.pt/AO/AO.html
PREFÁCIO

Estas páginas poderão dar uma ajuda àqueles


– jovens e adultos – que se interroguem sobre a sua
vocação pessoal, o sentido da sua história, a qualida-
de das suas relações, o seu papel neste mundo face ao
futuro? «Deus queira».
Nestes anos (16) dedicados à Pastoral Uni-
versitária são muitos os rapazes e raparigas que
acompanhei em direcção espiritual mais ou menos
prolongada, em Exercícios Espirituais de 3 a 7 dias,
em grupos de vida cristã. A eles/elas agradeço a con-
fiança, a partilha e o que (sem o saberem?) Deus
me ensinou através deles. É a experiência retomada
na avaliação de vida frequente, que vai ensinando.
Que isto possa tirar os medos àqueles que por «tantas
razões» se demitem de acompanhar os jovens neste
processo. Ninguém está «preparado», ninguém sabe
tudo e tem os dons todos do discernimento... Mas
todos podemos ir sabendo e facilitando o realismo e a
objectividade do encontro com Deus.
Faz agora uma dúzia de anos, foi-me dado o
encargo da promoção vocacional dos Jesuítas em
6 Vocação e Vocações Pessoais

Portugal. Na verdade, o susto e os preconceitos do


costume não tiveram muito peso porque sempre foi
trabalho de equipa. Além disso, desde a primei-
ra hora de trabalho no Centro Universitário em
Coimbra que era ponto assente para toda a equipa
que «toda a pastoral é pastoral vocacional!» Nem
há outra... Que é a pastoral se não conduzir ao en-
contro pessoal / interpessoal com o Senhor, ao «ver»
e assumir o próprio lugar na Igreja e na sua missão
para o mundo?
É-me muito incómodo ouvir falar de pastoral
vocacional como técnica ou como coisa à parte... Às
vezes ainda é mais incómodo, porque sabe a descul-
pa, a invocar a famosa «crise de vocações». Há pelo
menos uma crise que é a nossa dificuldade de mudar
de mentalidade, continuando a pautar e a comparar
com modelos e números antigos. Queremos «tapar
buracos» das nossas instituições ou ajudar a dar res-
postas pessoais aos apelos de Deus que não deixou de
chamar?
Alegro-me muito por quantos, nestes últimos 13
anos, entraram no nosso noviciado (uma média de
4 por ano). Peço por eles, pois o processo de amadu-
recimento e explicitação continua. E ofereço-lhes este
livrinho. Alegrei-me também por aqueles rapazes e
raparigas que optaram por outros carismas de con-
sagração. Mas todos não chegam a 1/4 de quantos se
questionaram a fundo, entraram em discernimento
Prefácio 7

e foram encontrando cristamente o seu lugar – a sua


vocação cristã. A linguagem dos números é a menos
linear!
Em várias ocasiões fui chamado a colaborar
no aprofundamento da problemática vocacional,
hoje, e do seu discernimento: grupos universitários,
retiros, cursos... Os textos que se seguem coleccionam
esses apontamentos. E acrescentei-lhes uma série de
meditações breves escritas para a revista Mensageiro.

Vasco Magalhães, S. J.
27 Setembro 1992
I

VOCAÇÃO E VOCAÇÕES PESSOAIS

– Histórias de amizade e libertação

– Caminhos reveladores

– Opções construtivas
Esquema da I Parte

1. Vocação e vocações
a) Vocação: um tema e muitas questões a esclare-
cer.
b) Vocações: muitos casos e um traço comum...
O que a Bíblia nos mostra.

2. O que não é vocação:


a) não é sentimento;
b) não é profissão;
c) não é só para alguns;
d) não é predestinação.

3. O que é então «ser chamado»?


Níveis e passos do chamamento:
3. 1. Chamados à vida humana: a ser «homens»:
a) 1º passo: chamados à vida
b) 2º passo: chamados a ser pessoas;
c) 3º passo: chamados ao crescimento: à perfei-
ção;
d) 4º passo: chamados à comunhão e ao servi-
ço.

3.2. Chamados à dimensão religiosa da vida:


«um corpo – e – uma missão».

3.3. Chamados à vida cristã: a ser cristão: pessoas


em Cristo, no Espírito.
A «vocação baptismal».
12 Vocação e Vocações Pessoais

3.4. Chamados a ser cristãos de modo próprio, segun-


do o Espírito, na Igreja.
As «vocações específicas».

4. Vocações: revelações das dimensões de Cristo:


a) ...ao sacramento do matrimónio;
b) ...ao sacramento da ordem;
c) ...à vida consagrada (e as suas variadas formas);
d) ...à vida laical (e os leigos consagrados);
e) Esquema-Resumo (quadro).

5. Vocação é... (tentativa de clarificação e descrição):


a) Vocação e profissão;
b) Discernimento vocacional;
c) Proposta e resposta;
d) Tentativa de definição:

1 – aspiração de um bem
2 – o que no fundo quero
3 – manifestação do Espírito

e) Motivação e ideal;
f) Vocação e vontade de Deus;
g) Vocação: Aliança e Diálogo.

6. A modo de conclusão: Vocação, Mistério de Amor:


uma história de amizade
1
Vocação e Vocações

a) Vocação: um tema e muitas questões a esclarecer

Vocação!
Antes de mais, qual é o significado de tal pa-
lavra?
«Vocação» tem a ver com a palavra «voz», que
vem do verbo latino «vocare», isto é, «chamar».
Significa, pois, apelo, chamamento. A própria
palavra já sugere algo ou alguém que nos convoca
e nos provoca. Desafio e interpelação e, portan-
to, opção, resposta e caminho: eis o nosso tema.
Parece fácil. Mas, se nos colocamos em contexto
religioso, surgem logo imensas questões como,
por exemplo: 1) Existe a tal «vozinha interior»
que diz a cada um quem é e o que deve fazer? 2)
Habitualmente fala-se de ter (e não ter) vocação:
afinal é uma coisa que se tem? É da ordem do ter
ou do ser? 3) E isso significa predestinação? Ou
antes, uma opção?... Surgem ainda questões de
outro gênero: 4) Qual é a relação entre vocação e
profissão? 5) E entre vocação e vontade de Deus?
6) E como é que eu a conheço? 7) Quantas vo-
14 Vocação e Vocações Pessoais

cações há? É um problema só de alguns, ou de


todos?

Eis apenas uma amostra dos problemas que se


levantam!

b) Vocações: muitos casos e um traço comum; o que


a Bíblia nos mostra

Comecemos então a «desembrulhar», passo a


passo, esta realidade que tantas vezes nos parece
mítica ou mágica.
A Bíblia, desde o Antigo ao Novo Testamen-
to, está cheia de narrações a que chamamos expe-
riências de vocação. Deixando de lado a Criação
como chamamento da humanidade à vida, pelo
que de figurativo a narração de Adão e Eva en-
cerram, comecemos, logo, pelo primeiro dos
grandes Patriarcas, Abraão. O texto conta-nos
que Deus «disse» e ele «ouviu» (a tal voz a dizer-
-lhe): «deixa a tua terra... e vai. Farei de ti... uma
grande nação».
Encontramos um primeiro traço comum a todas
as vocações: deixar qualquer coisa e partir. E logo
aqui, sabemos que isto deixa em muitas pessoas
uma sensação negativa. Talvez porque insistimos
demais no «deixar», esquecendo o que se «adquire».
Ora nenhuma medalha tem um só lado.
Vocação e Vocações 15

Outros exemplos, encontramo-los nas his-


tórias de vocação dos profetas e de quantos são
«chamados» para certas «missões», enviados a de-
sempenhar certas acções. Mas que estas palavras
de «chamar» e «conferir missão» não se tornem
fantasmas: o Antigo e o Novo Testamento estão
recheados destas expressões. Importa entender
que, antes de mais, é um povo inteiro que é cha-
mado e tem uma missão e recebe uma promessa,
estabelecendo-se assim uma Aliança de Deus
com o seu Povo. Este termo também é muito
importante para a compreensão do que é o Cha-
mamento.
Nos textos bíblicos encontram-se sempre três
elementos-base: «deixar» uma situação, «assumir»
uma missão, «viver» uma aliança. E para entender
a vocação bíblica é preciso entrar na temática da
Aliança como relação interpessoal, numa estrutu-
ra de diálogo.
Se abrirmos o Novo Testamento, encontra-
mos com facilidade Jesus a dizer a um, Mateus,
«Vem e segue-Me», a dizer a outros, João e Tiago,
«Vinde e vede», a Filipe e a Natanael... a Pedro:
«Deixa as redes e segue-Me». Dirige-Se sempre
a pessoas concretas, com nome próprio, que
são «escolhidas». E pode ser, precisamente, esse
aspecto que mais preocupe alguém e faça surgir
noutros dúvidas e defesas, sobretudo quando esse
16 Vocação e Vocações Pessoais

acontecimento é apresentado como se fosse algo


mecânico, automático, com exigências impostas
e predestinadas, sem o tal diálogo (Aliança) de
amor. Aliás este tema, até por ser dinâmico e his-
tórico, tem de ser tratado juntamente com o do
Discernimento.
Para avançar – e por agora – basta lembrar
o ambiente de liberdade em que Jesus Se move,
começando muitas vezes por: «Se queres...»
Devemos pois prosseguir passo a passo para
não confundir realidades com preconceitos e apa-
rências.
2
O que não é a Vocação

a) Não é um sentimento

Uma coisa deve ficar clara desde já: é que ser


chamado, certamente, não é a tal «vozinha» en-
tendida como um toque mágico... Não se trata de
um «sentimento», ou melhor, não se reduz a um
sentimento. Muitas vezes ouve-se dizer: «Mas eu
não sinto nada...». Ora há imensas coisas que eu
não sinto ao nível do sensível, mas daí não posso
concluir nada! Por exemplo, quantas vezes não sin-
to nada de especial pelo meu trabalho e sei o que
devo fazer?...
Não se trata de sentir ou não sentir: essa é a
primeira conclusão. Embora o sentimento acom-
panhe toda a experiência humana, esta não se re-
duz a ele, nem a determina necessariamente. Ali-
ás, usamos o termo «sentir» em variados planos.
Assim, uma coisa é o plano do sensível, outra é o
plano do espiritual; e para ambos às vezes usamos
o «sentir». Damo-nos conta, por exemplo, desses
casos em que «pode-me apetecer e, no fundo, não
querer». E vice-versa.
18 Vocação e Vocações Pessoais

Podemos falar de sentimentos de «superfície»,


respostas a estímulos que são ambíguos e de senti-
mentos de fundo que revelam orientações do ser.

b) Não é profissão

Em segundo lugar, vocação também não se


deve confundir com profissão. A profissão pode
coincidir, bem como o sentimento, mas não se
confundem com o chamamento vocacional.
A tendência para exercer uma dada profissão
ou o «jeito» pode ser «sentido» como um apelo.
Mas, Vocação, como orientação da vida toda, é
diferente da aptidão natural ou tendência, embo-
ra a possa incluir. Vê-se bem como é diferente um
processo para encontrar e explicitar uma opção
de vida global, e um, muitas vezes mal-chama-
do, «discernimento» das carreiras profissionais.
A vocação a outro nível pode incluir múltiplas
profissões e variadas aptidões.

c) Não é só para alguns

A terceira coisa que a vocação não é: uma


questão que só interessa a alguns especiais. Não.
Diz respeito a todos sem excepção. Veremos en-
tão o que poderá significar falar de «escolhidos».
Mas este é um primeiro princípio: Ninguém pode
O que não é a Vocação 19

dizer que não tem vocação, pois seria o mesmo


que dizer: «não sou gente, não vivo...» É que a
vocação tem a ver com a dimensão dinâmica do
ser que especifica e identifica cada um. Ora cada
Homem tem uma orientação, uma dinâmica pró-
pria, a assumir e a formular, ainda que de diversos
modos.
Importa ultrapassar o modo de pensar que
considera a vocação como uma espécie de toque
mágico que alguns tiveram a sorte de ter ou não...
Esse é o caminho dos enganos.

d) Não é predestinação

Só uma antropologia sem liberdade (por mí-


nima que seja) e uma teologia de um Deus-pre-
potente, se poderia inclinar a uma visão onde já
está tudo «escrito» e determinado. Esta é a quarta
coisa que a vocação não é: uma «obrigação au-
tomática» das peças da engrenagem. É claro que
é preciso reflectir sobre essa expressão comum:
Deus «já» sabe tudo, uma vez que estamos a falar
temporalmente de Quem «está fora» do tempo.
3
Então o que é «ser chamado»?
Níveis e passos do chamamento

Vamos tentar essa caminhada positiva partin-


do do mais vasto e genérico para o mais específico
e individual, considerando os seguintes níveis:
Chamados a ser Homens, Homens de Fé, Ho-
mens de Fé cristã, Homens de Fé cristã segundo
o Espírito.

3. 1. «Chamados», à vida humana: a ser Homens

Neste primeiro nível, consideremos vários


passos:

a) 1º passo: Chamados à vida...

A verdade é esta: todos nós, continuamente,


dizemos e temos a consciência de ter sido chama-
dos a viver. Mais, fomos e estamos a sê-lo agora.
Estamos continuamente a receber o desafio de vi-
ver: a recebê-lo por dentro e a recebê-lo por fora.
Isto é: somos todos vocacionados, quanto mais
não seja, a viver!
Então o que é «ser chamado»? 21

Desafiados a viver! Quem se quisesse abster


dessa vocação fundamental (que todos percebem
que não é só um sentimento), demitia-se de ser ele
próprio, de ser gente... Seria dizer, estando a viver,
que não tenho vocação para viver. Tal contradição
só se poderia entender como perturbação.
E avançando mais, o apelo à vida tem uma
dupla dimensão: não é só para uma vida biológi-
ca, mas para ser pessoa, isto é, para uma maneira
própria de ser.
Concluimos, pois, que se trata de uma questão
de ser ou não ser. E a vocação como maneira de
ser não poderia ser «algo que se tem», para além
do próprio «eu».

b) 2º passo: Chamados a ser pessoa...

As situações e as coisas continuamente nos


interpelam e desafiam: põem-nos perante a ur-
gência de ter que afirmar, escolher e decidir. Ex-
perimentamos, por dentro, o desafio a ser pessoa,
a tornarmo-nos cada dia mais Pessoa.
S. Paulo coloca as coisas nestes termos: «So-
mos chamados à liberdade» (Gal 4). Não só nos
apercebemos que a coerência connosco próprios é
a de nos tornarmos livres, como nos apercebemos
que deixar-se ficar dependente e infantil corres-
ponde à própria frustração.
22 Vocação e Vocações Pessoais

c) 3º passo: Chamados ao crescimento, à perfei-


ção...

Quando Paulo nos lembra esse apelo à liber-


dade e à libertação, mesmo que nos verbos usados
parecesse algo já feito, ele está a dar-nos conta
desse apelo e desafio contínuos: é neste momento
que cada um está a ser vocacionado a avançar na
vida que não nasce feita, isto é, a crescer e me-
lhorar. Em verdadeiro espírito cristão, diríamos
que estamos a ser chamados a administrar o nosso
potencial de liberdade, a levar o crescimento ao
seu fim, à perfeição... à santidade. Santidade será,
pois, entendida como o levar às últimas conse-
quências a dinâmica própria daquilo que se é.

d) 4º passo: Chamados à comunhão e ao serviço

A consciência que cada um tem das suas po-


tencialidades a desenvolver levar-nos-ia a ensaiar
uma definição: a vocação é a experiência do dina-
mismo interior que conduz cada Homem para o
seu fim. O detectar desse dinamismo é o primeiro
ponto. O segundo é assumi-lo. Mas ficar por aqui
não basta, pois o Homem só é Homem com os
Homens e na medida em que (activa ou passiva-
mente) exerce uma função construtiva. Diremos,
então, que viver o tal dinamismo em forma de
Então o que é «ser chamado»? 23

Comunhão e de serviço constitui a real expressão


da Vocação Humana.
De facto, cada um de nós é «imensas coisas»,
potencialidades, de que nem sempre tem consci-
ência. Mas tudo se pode esclarecer aos poucos: a
criança que não tem consciência de ser chamada
à vida, já faz por isso e não mostra desejo de
morte... Só mais tarde descobre estar «destinada»
(não no sentido fatalista) a ser pessoa. Finalmente
descobre que só se vai tornando pessoa entrando
num processo de liberdade, pelo qual se vai iden-
tificando, isto é, tornando independente do resto
como sujeito autónomo e único. E, simultanea-
mente, encontrará que essa trajectória de liberda-
de só resulta enquanto cada um se torna também
libertador.
Vale a pena acrescentar que esta reflexão diz
respeito a qualquer Homem, independentemente
de ser cristão ou não. A primeira de todas as voca-
ções é ser Homem, isto é, tornar-se mais humano.
Quem vive fechado em si mesmo, sem desenvol-
ver os seus talentos de humanidade, é infiel a esta
vocação.
Há pessoas que vivem em condições tais
– sociais, culturais, religiosas... – de opressão e de
escravização, que praticamente estão impedidas
de desenvolver essa dimensão fundamental de
humanidade.
24 Vocação e Vocações Pessoais

3.2. Chamados à dimensão religiosa da vida: a


«um-corpo-e-uma-missão»

Este é o segundo nível de vocação: ser Homem


de fé, com uma dimensão transcendente.
A Bíblia com toda a sua pedagogia de Huma-
nidade, através de inúmeros exemplos, faz-nos
cair na conta de todos estes graus de chamamen-
to que acabámos de ver. Assim nos mostra: a) o
Homem a ser chamado à vida por Deus; b) o Ho-
mem a fazer uma larga caminhada até encontrar a
sua dimensão e corresponsabilidade pessoal; c) o
Homem a descobrir-se como autor e promotor da
liberdade e da libertação; d) o Homem a identifi-
car-se através dos apelos à perfeição e a encontrar
na sua dimensão religiosa o apelo e o compromis-
so de construir o Reino de Deus.
Em qualquer destes graus ou etapas vão toman-
do forma dois elementos fundamentais do cristia-
nismo: pertencer a um «corpo», comunidade, com
uma «missão». Logo à nascença se entra a viver
num corpo «pessoal-e-colectivo», numa família
humana onde se terá um papel a desempenhar.

Esta inserção e corresponsabilidade vem-lhe


do ser pessoa. E quando se passa para o nível da
experiência religiosa (ou filosófica, ou ideológica)
é porque se reconhece que a realização que passa
Então o que é «ser chamado»? 25

pela integração na comunidade e o encontrar do


sentido que passa pela missão positiva, no fundo,
implicam uma relação transcendente do ser Ho-
mem.

3.3. Chamados à vida cristã: a ser Cristãos: pessoas


em Cristo, no Espírito: «Vocação Baptismal»

Quando se chega à dimensão religiosa da vida


por um desafio que vem de Cristo, do seu Espí-
rito ou da sua obra, isso corresponde ao apelo a
integrar e dinamizar o seu ser-pessoa vivendo-o
ao modo como Cristo viveu.
A identidade é o modo de estar integrador,
concreto e pessoal de todos os chamamentos. Em
termos cristãos esse modo traduz-se por «ser con-
figurado com a imagem de Cristo», ser chamado
a «ser outro Cristo», isto é, a ser cristão e a encon-
trar aí a identidade.
Este chamamento, pode dizer-se sem medo,
dirige-se a todos os Homens. Mas a interpela-
ção pode dar-se de maneiras muito variadas: por
outra pessoa, por um testemunho, pela Palavra
de Deus, pela busca da coerência interior, pelas
exigências da justiça, pela experiência gratuita de
ser amado ou o confronto com o sofrimento...
Todo o Homem na sua maturação sente o ape-
lo da Verdade, o desejo de «habitar no Espírito de
26 Vocação e Vocações Pessoais

verdade». Ora se Cristo é a Verdade, todos, de um


modo ou de outro, nos confrontamos com Ele,
mesmo sem Lhe saber o nome, mesmo sem nunca
O ter «conhecido». E quando concretamente fa-
zemos essa opção pela Verdade, ainda que seja de
um modo genérico, abordamos a vocação baptis-
mal. Dir-se-á que é uma forma «anónima»! Mas
o Baptismo bem entendido, é iniciar o processo
de Vida no Corpo de Cristo e na Missão do Rei-
no. Pelo Baptismo, entendido não apenas como
rito, mas como a realidade de um «mergulho» no
Espírito de Justiça e de Verdade, entramos a fazer
parte do Corpo de Cristo para ocupar aí um lugar
e uma missão.
Concluindo: uma primeira vocação de todos
nós é a ser cristão, a ser baptizado: vocação gené-
rica que depois se há-de especializar.
A certa altura descobre-se que esse mergulho
tem de passar por uma atitude mais pessoal (isto
é: segundo o Espírito), pela qual cada um vai en-
contrar a sua maneira própria de ser cristão.
Digamos ainda de outro modo: cada um é cha-
mado à Vida, ou seja, traduzindo para cristão, a ser
Filho de Deus, a ter uma relação com o Pai. Numa
experiência de relação experimenta-se o desafio de
ser pessoa. E personalizar-se é entrar num caminho
de identidade, é dar resposta a um ideal que nos
apela e que pode ser o seguimento de Cristo.
Então o que é «ser chamado»? 27

Note-se que o uso das palavras «seguimento»


e «chamamento» tenta traduzir um dinamismo
interior da própria vida que, para desabrochar e
crescer, precisa, pouco a pouco, de configuração
e de «modelo» com nome próprio que atraia e
chame. E é precisamente por esse caminho que
se acaba por descobrir a vida na sua dimensão
trinitária: a) ser filho de Deus, Criatura (vem do
Pai); b) ser cristão, irmão de todos os Homens
(no Filho); c) na verdade e no amor (pelo Espírito
Santo). Ora isso corresponde, no desenvolvimen-
to da personalidade, ao descobrir da dimensão do
ser pessoa nos vários níveis.
E quem não é cristão?... ou mesmo se diz
ateu?
Embora numa tradução diferente, não deixa
de ter vocação!
Ninguém pode deixar de ser interpelado à
vida, a ser pessoa, a encontrar um ideal. É até a
própria vida que o interpela a viver e a fazer pela
vida.
A seu modo, todos são chamados. Mas não diz
o Evangelho «muitos são chamados, poucos os es-
colhidos»? Sim, mas esse «muitos» significa TO-
DOS! É a expressão «multidão» que era a forma
hebraica de dizer «todos». Até quando Jesus diz
que dá a vida pela multidão queria dizer «todos»,
mas não tinha na sua língua esses termos abstrac-
28 Vocação e Vocações Pessoais

tos. Então, todos são chamados, mas só «alguns»


assumem respostas pessoais específicas.
Aliás, não só somos todos chamados, como
somos chamados a cada momento.
Atenção! Neste preciso momento estamos a
ser desafiados a perceber a dinâmica da nossa pró-
pria vida, a fazer qualquer coisa por ela e por nós
próprios. Aqui e agora estamos a ser desafiados
a não desgraçar a nossa vida, a ter uma relação
melhor com os outros, etc. Cada um está, neste
momento, a ser, de muitos modos, vocacionado.
O que falta é ver de onde vem essa vocação e qual
o seu nome ou forma própria.

3.4. Chamados a ser Cristãos de um modo próprio,


segundo o Espírito, na Igreja: «Vocações espe-
cíficas»

Estudemos agora as variadas vocações a dentro


deste nível comum de ser cristão. Cada cristão é
chamado a diferentes caminhos, a diferentes res-
postas ao Espírito, na Igreja. Entendendo Igreja
mais pela Comunidade de todos os crentes e não
tanto como estrutura ou hierarquia.
Até há bem pouco tempo, até ao Concílio
Vaticano II, distinguiam-se habitualmente dois
tipos desses vários dinamismos pessoais, isto é,
dois tipos de vocação: o Clero e os Leigos.
Então o que é «ser chamado»? 29

O Vaticano II apresenta, porém, três grandes


grupos de vocação na Igreja: o Clero, os Religio-
sos e os Leigos. Mas isto é, ainda, demasiado frio,
esquemático e em bloco. Proponho, pois, quatro
grandes tipos mais concretos, considerando sem-
pre que cada um é uma dimensão do próprio
Cristo, possível de concretizar segundo o Espíri-
to, no Corpo que é a Igreja.
a) primeiro tipo: O chamamento ao sacramento
do matrimónio – como é que a pessoa sabe que
este é o seu chamamento específico, que é a sua
vocação? Veremos.

b) segundo: O chamamento ao sacramento da


Ordem – Este e o anterior não se excluem neces-
sariamente, podiam, até, andar juntos. De facto,
na Igreja Católica, hoje, estão separados por ra-
zões de lei positiva e não de essência, já que como
sacramentos não se excluem, e vai até havendo al-
guns casos de ordenação de casados. De qualquer
modo é sempre de considerar o argumento da
maior disponibilidade de coração para a missão
e para cada um; até ortodoxos e protestantes o
fazem.

c) terceiro: O chamamento à vida consagrada


– é uma outra possibilidade. Este, por exemplo,
é compatível com o segundo, mas não com o
30 Vocação e Vocações Pessoais

primeiro. Há muitas hipóteses dentro desta via de


consagração religiosa.

d) quarto: O chamamento à vida laical – Que


significa ser leigo como chamamento, como vo-
cação? Pode ser compatível com o matrimónio
e é a vida laical que estamos mais habituados a
considerar (a do leigo comum). Mas há também
a vocação do leigo consagrado.
Recorde-se que estamos a falar de dinamismos
vitais, de frutos de relação e de expressões de
identidade pessoal. E como todos nós sabemos, a
identidade é todo o processo de amadurecimento até
que cada um:

∗ descubra quem é e o aceite,


∗ o desenvolva e
∗ o projecte.

Não se pode ser Homem no sentido concreto,


hominizado e humanizado, ficando no genérico,
sem percorrer este processo!
4
Vocações:
revelações (e missão)
das dimensões de Cristo

Os quatro tipos são grandes blocos dentro dos


quais há a considerar várias hipóteses. A Igreja,
comunidade de vida e de vocacionados, teve
necessidade de resumir assim experiências muito
variadas... Mas às vezes encontramos gente que
pensa que ter vocação é só ser chamado para ser
padre ou freira, e que o resto não tem vocação,
não conta! Não é assim tão simples. Por exemplo,
se alguém descobre que a sua identidade não é a
do sacerdócio, não significa necessariamente que
tenha vocação para o matrimónio-sacramento.
Porquê? Porque é preciso que isso resulte do dis-
cernimento; porque é preciso ver se esse é o seu
caminho que, positivamente, o identifica; porque
não se deve concluir pela negativa! Dizer que, se
não se é «para padre» é «para o casamento», é uma
precipitação. Há mais hipóteses. Logo, é preciso
fazer todo o discernimento sobre a vida e chegar a
opções, pela positiva.
32 Vocação e Vocações Pessoais

a) O que se entende aqui por ser chamado ao


sacramento do matrimónio?

Antes de mais, não é só ter aptidão para casar.


Essa, qualquer um, desde que não seja anormal,
a tem. Essa é ainda a vocação natural à vida, ao
corpo social, de acordo com a missão de gerar
e se realizar na complementaridade, que é nor-
mal no homem e na mulher. Essa não é ainda a
«vocação cristã», mas aquela que temos todos,
«vocação básica» a ser humano, a realizar-se
num amor humano. Mesmo quando alguém
vem especificar a sua vocação na vida religiosa,
tem essa vocação natural ao amor concretizado,
só que vive o desafio de transfigurar esse amor.
A vocação cristã, mesmo quando se classificas-
se de sobrenatural e dom de Deus, não é uma
«anormalidade», mas antes uma especificação da
forma da normalidade, por outras motivações e
não por carência.
Voltando ao sacramento do matrimónio: que
caracteriza esta vocação? O facto de duas pessoas
(um homem e uma mulher) se «sentirem» chama-
das, em conjunto, a viver uma dupla missão em
Cristo pela qual optam. A saber:

– por um lado: a participação e o desenvol-


vimento da vida que vem de um Deus que é
Vocações: revelações de Cristo 33

Criador. Isto é, ser «com-criadores» e educadores


da vida; colaboradores na obra da Criação.

– num segundo aspecto: viver de tal maneira


que seja visível que tudo é superável em Jesus
Cristo.

Se os dois fazem esta dupla opção, tornam o


seu casamento num sinal e numa missão (=sacra-
mento). Transformam o casamento natural numa
vocação cristã.
Quantos não perceberam que ao casar, o que
estavam a assumir era a missão-a-dois, extrema-
mente responsável e exigente, de querer ser no
mundo um Sinal Revelador: revelar aos Homens
um Deus-Amor pelo amor-humano, revelar que
o amor é criador pela fecundidade, revelar que a
família e a unidade no amor é possível quando
assenta em Cristo...
Querem essas pessoas mostrar ao mundo que
o Amor de Deus é criador e feliz porque nunca
egocêntrico? Assim se entende a fecundidade res-
ponsável e a opção pelo desenvolvimento e defesa
da vida. Querem manifestar com a sua vida a dois
que o Amor de Cristo pela humanidade é indefec-
tível e vence tudo? Só a partir daqui se entenderá
a tal indissolubilidade...
34 Vocação e Vocações Pessoais

S. Paulo usa outra linguagem: o homem e a


mulher, pelo sacramento do matrimónio, são o
sinal da união de Cristo e da sua Igreja.

Resumindo e repetindo: a vocação ao sacra-


mento do matrimónio seria a de um homem e
de uma mulher que se decidem: vamos fazer da
nossa vida um sinal que manifeste que tudo é su-
perável em Jesus Cristo e revele o inquebrantável
amor de Cristo pela humanidade.
Uma vocação que revela o Amor (Deus) não
com teorias nem sermões, mas com a própria vida
de amor. Eis a diferença entre o casamento natu-
ral e o sacramento do matrimónio como vocação
cristã, que não é a união comum com mais «um
bocadinho de água benta»!... É uma vocação espe-
cífica, como foi dito, para criar o Corpo de Cris-
to; é essa missão e opção de fundar uma família
cristã, célula do Reino de Deus, na certeza de que
o Pai dará a graça necessária para tanto.

b) O sacramento da Ordem

Este sacramento revela outra dimensão de


Cristo (e portanto também da vida cristã): Cristo
Sacerdote. E confere a quem o recebe a graça de
poder exercer os ministérios da Igreja e confiados
pela Igreja. Trata-se de uma vocação de serviço: a
Vocações: revelações de Cristo 35

de um homem que se dispõe a ter como ideal o


serviço da fé e da administração da graça, parti-
cularmente o da administração dos sacramentos
em liberdade plena. E é esse aspecto sacerdotal
do Corpo de Cristo que ele quer desenvolver e se
sente cada dia mais chamado a desenvolver, numa
identificação com Cristo-Sacerdote.
Como ficou dito, cada vocação revela mais um
aspecto teológico do mistério de Deus. Aqui se
mostra o Pai como fonte da graça e do perdão,
e Cristo como Redentor-Sacerdote, tornando-se
com Ele «co-redentor» e oferecendo-se no Espíri-
to de doação pelos demais. Quando é que Cristo
é sacerdote? Sempre, mas sobretudo na entrega
da vida pelos outros na cruz. Então quem experi-
menta este apelo a essa entrega-de-vida em amor
como Cristo, da qual vêm todas as graças, está na
linha desta dimensão vocacional. O seu ideal de
serviço, de ministro da fé, de «diácono» da fé e
dos sacramentos, de anunciar e libertar os outros,
passa por uma experiência que não é só a dum
trabalho ou profissão, mas duma vida entregue,
como a de Cristo, pela salvação dos demais.
Um dos sinais desta vocação é encontrar a sua
identidade, de forma particular, na Eucaristia,
onde actualiza o sacerdócio eterno de Cristo,
oferecendo-se com Ele para congregar e guiar a
comunidade: um Corpo e uma Missão.
36 Vocação e Vocações Pessoais

c) A vida consagrada nas suas variadas formas

– O que é que a vida consagrada revela como


dimensão própria do Reino de Deus?
– Costuma responder-se: é a dimensão escato-
lógica.
A característica desta vocação é sobretudo o
testemunho de radicalidade e o ser sinal escatoló-
gico do Reino.
Mas que significa isso? Significa manifestar com
a vida os valores já definitivos: viver de tal maneira
que «choque», que provoque, que faça os Homens
pensar que há realidades definitivas, que há um
Além já presente. É mostrar esse Absoluto para que
fomos feitos e que deve relativizar tudo o mais.
Viver como se já se tivesse, de alguma maneira,
ultrapassado o tempo e o espaço. Mostrar que o
Reino de Deus não é deste mundo, mas posso
vivê-lo desde já, deixando o que é relativo e passa-
geiro. E isso manifesta-se pelos votos que são uma
forma de entregar toda a vida pelo Único-neces-
sário, num Amor de radicalidade como quem já
vive no Absoluto.
«Ser sinal escatológico» é uma vida que faz ver
o Absoluto já presente e faz viver outros valores.
Esta vida, como todas as vidas, exige desen-
volvimento e maturação da personalidade. O que
a identifica é: o Reino já! «Que vale ao homem
Vocações: revelações de Cristo 37

ganhar o mundo inteiro se perde a sua vida?» E


expressa-se por três votos ou por uma opção trí-
plice: um único Amor (voto de castidade), uma
única Riqueza, o Espírito (voto de pobreza), um
único Senhor (voto de obediência). Este é o filão
de identidade pelo qual se experimenta realização
e caminho de felicidade. O homem ou a mulher
que o vive, mostra que o Reino de Deus, que
ainda não é, pode começar já, através da partilha
de bens total (Pobreza), da entrega total da sua
vontade para a Missão (Obediência), em formas
de serviço humilde em bem dos outros, sem dis-
tinção (Castidade).
A castidade, que é tantas vezes o problema,
não é ausência de amor nem «castração», mas
entregar o amor por um Amor maior.
«Consagrados» são os que se decidiram a en-
saiar e tentar, sabendo-se pecadores, a «caridade
perfeita». Porquê? Não porque sejam melhores
que os outros. Mas, sabendo que têm muito que
caminhar, foram «tocados» e detectaram a felici-
dade que pode haver em tentar construir o Reino
pelo desapego total e por uma particular intimi-
dade com Deus que pede corações indivisos.
Para além da divisão deste grupo em Contem-
plativos e Activos, há muitas outras especificações
da Vida Religiosa. São os variados carismas – for-
mas particulares de responder a apelos (dons)
38 Vocação e Vocações Pessoais

particulares. Mas é sempre aderir a «um Corpo e


uma Missão».

d) A vida laical

A vida laical traz-nos uma outra dimensão


fundamental do Reino de Cristo que é a Encar-
nação. Se a vida religiosa é escatológica, aponta o
fim, o além..., o leigo é o que descobre como va-
lor característico e como missão neste mundo, o
manter o Espírito-vivo-no-mundo, o encarná-lo,
o vivê-lo aí: o fazer com que o Espírito chegue de
alguma maneira a todo o lado e repasse por den-
tro as estruturas, no mais fundo de si mesmas.
Trata-se, portanto, de um chamamento com a
missão de assumir as estruturas deste mundo e as
fazer penetrar pelo Espírito de Cristo.
Como vimos, as várias vocações correspondem
às várias dimensões teológicas da pessoa e Missão
de Cristo. E, de alguma maneira, a vivência da vo-
cação é a revelação e a actualização, não por teorias
mas por vida, dessas várias dimensões do próprio
Cristo, já que ninguém abarca o Cristo total.

E os leigos consagrados?

Ao leigo compete assumir e transformar as


realidades terrestres. Pode fazê-lo na vida comum
Vocações: revelações de Cristo 39

que muitas vezes é também a do matrimónio, a


de uma profissão, da vida social e política...; ou
pode-o fazer em consagração, em definitivo, valo-
rizando e encarnando uma forma particular, uma
dada profissão ou missão – sozinho ou em grupo.
Estes são os chamados «Leigos consagrados» que,
vivendo o quotidiano comum, tomam uma forma
profissional, um trabalho, como modo privilegia-
do de trazer o Espírito ao meio do mundo. E, en-
carnando aí, cristificando essa profissão, transfor-
mam o mundo. Não deixam de ser leigos porque
não têm «votos», nem obrigação de uma «vida
comum», mas vivem, com plenitude de entrega,
a perfeição, através de uma profissão comum. Por
isso o leigo não é o resto dos que não tinham outra
vocação especial, mas uma vocação que é preciso
ver se se «tem»: um chamamento positivo, uma
opção de encarnação amadurecida. Os leigos não
são os que sobram. Embora, infelizmente, muitas
vezes se pensasse assim na Igreja. E qualquer vo-
cação assumida pela negativa é perigosa.
Este tipo de vocações leigas consagradas é típi-
co do nosso século. É uma «novidade» suscitada
pelo Espírito, praticamente do fim da primeira
grande guerra para cá, quando se começaram a
estruturar e a compreender.
Antes falava-se de leigos dentro da Vida Con-
sagrada com outro sentido: eram aqueles que,
40 Vocação e Vocações Pessoais

sendo religiosos, não eram padres (clérigos). En-


tão chamavam-lhes leigos, Irmão leigos. Eram os
Frades e as Freiras. Mas, na realidade, esses são
Religiosos.
A novidade é o sentir-se chamado a viver a
dimensão da Encarnação sem manifestações pú-
blicas (votos), como qualquer outro no seu meio
social. E isto pertence à vocação laical.
Quantas surpresas e possibilidades nos reserva,
ainda, o Espírito Santo? E possibilidades de rea-
lização e criatividade dentro de cada vocação já
estabelecida?
Não vemos, um pouco por toda a parte, um
surto de movimentos e «comunidades novas»?
Cada vocação corresponde a um sopro do
Espírito: um carisma. E dentro de cada uma há
muitos modos pessoais de a viver, também segun-
do o mesmo Espírito.
Cada matrimónio é único e não se pode
comparar. Cada forma de viver o sacramento
da Ordem, cada padre, é único. As Ordens são
muitíssimas, em imensos carismas colectivos e
pessoais. Os vários géneros de vida laical têm
imensas possibilidades. Cada Homem, escutando
o Espírito no seu interior, terá de discernir o seu
caminho cristão.
Vocações: revelações de Cristo 41

e) Esquema – resumo

Se cada vocação privilegia um aspecto de Cris-


to, vejamos o quadro dos vários Chamamentos e das
Dimensões Teológicas reveladas por cada vocação:

Chamados à Vida Cristã

ao sacramento do
matrimónio – Revela { a) Deus fecundo – Criador
b) que tudo é superável em
Cristo

{
a) administração da graça
ao sacramento da (ministério)
Ordem – Revela b) Cristo Redentor – Sacer-
dote (Profeta)

à consagração
religiosa – Revela { a) fecundidade espiritual da
radicalidade pelo Reino
b) sinal escatológico

{
a) Encarnação no mundo
à consagração laical b) responsabilidade pelas
– Revela realidades terrestres e sua
santificação

ao laicado – Revela
{ responsabilidade pelas
realidades terrestres e sua
santificação
5
Que é então a Vocação?
Algumas clarificações e tentativa de descrição

a) Vocação e profissão

Não se pode confundir o chamamento-e-op-


ção para desenvolver uma dada dimensão espi-
ritual do Reino de Deus com uma aptidão ou
talento natural feito carreira. Contudo, pode-se
fazer de uma profissão um caminho privilegiado,
uma vocação cristã. Por exemplo, quando se vive
uma advocacia, uma medicina, o ser professor ou
carpinteiro... em atitude de serviço e em jeito de
Cristo, em exclusividade pelo Reino, valorizando-
-a como uma forma de encarnação.
Em qualquer caso, a profissão deve ser cris-
tianizada. Cristão médico ou médico cristão?
As motivações cristãs, os critérios e as atitudes
de serviço devem estar presentes na escolha e na
vivência da profissão.
Outra coisa ainda é viver o Sacramento da Or-
dem (o Sacerdócio) e, ao mesmo tempo, ter uma
profissão... o que também é possível! Mas exige
Que é então a Vocação? 43

discernimento oportuno para evitar ambiguida-


des e alibis.

b) O discernimento vocacional

O que ficou dito, foi dito no plano objectivo


das vocações em si mesmas. Outra coisa é a vo-
cação para mim. Nesse plano subjectivo, trata-se
do binómio vocação/discernimento, ou seja, do
discernimento pessoal de cada vocação: todo o
processo de deslindar, no meu interior, o meu
caminho próprio.
Trata-se de um processo de maturação, mais
ou menos longo; faz-se através da avaliação dos
sinais (sinais interiores e exteriores) que me vão
indicando e mostrando com que é que me iden-
tifico, o que é que me interpela e desafia, o que
me provoca, aquilo a que, de fundo, finalmente,
adiro (ou quero aderir).
Este capítulo merecia um tratamento mais
extenso e aprofundado: como se chega a uma
conclusão destas, que não é uma conclusão final,
terminal, mas a determinação de um caminho e
dos meios para a levar por diante? E, conjunta-
mente com a maturação dos sinais, esse capítulo
devia tratar do apuramento das motivações.
Exige-se sobretudo o ambiente de oração e
acompanhamento lúcido de alguém experiente
44 Vocação e Vocações Pessoais

para ir tirando impedimentos e escutar o «grito


interior». A Igreja tem uma longa experiência
de sabedoria nesse campo, que pode fornecer
critérios. Em particular seria de estudar o que diz
Santo Inácio de Loiola nos Exercícios Espirituais
sobre discernimento e momentos e modos de
«Eleição do estado de vida».
Cada época tem as suas graças e dificuldades
próprias neste campo. Hoje, por exemplo, a par
de mais alternativas e riqueza de carismas, o am-
biente social e educacional dificulta a capacidade
das pessoas amadurecerem verdadeiramente em
tempo a sua vocação. Basta olhar para a maioria
dos estudantes e ver como escolhem os seus cur-
sos, que não sendo ainda vocação bem poderiam
ser a expressão por onde passariam, no momento,
as experiências de ser Homem e cristão responsá-
vel. Exigem-se opções mais cedo, quando, precisa-
mente, se amadurece mais tarde! Sobrecarrega-se a
informação sem formação nem critérios e valores,
o que atrasa a identidade; força-se a concorrência
ao sucesso, independentemente das motivações e
do respeito pelas características de cada um, o que
desagrega o Corpo e ofusca a Missão... Mas Deus
também tem outras propostas para isto!...
Que é então a Vocação? 45

c) Proposta e resposta

É possível que esta reflexão, tendo «carregado


as tintas» de um dos lados da medalha da vocação
como «orientação de fundo do ser», possa indu-
zir no erro de ser entendida de um modo mais
voluntarista, só a partir do Homem, ou só como
uma inclinação (jeito, gosto, aptidão) de fundo.
Mas é claro que, como se verá melhor adiante,
se a vocação cristã resulta da opção que assume
esse mundo interior, é para dar resposta a um
projecto de vida que se lhe propõe conforme ao
Evangelho.
Esta proposta é dom! Vem de Deus! Seja atra-
vés da Palavra, ou através de outra pessoa que tes-
temunha, ou de uma dada experiência... Aliás, a
própria natureza é dom, é criatura. Mas a criatura
livre entende-se a si própria como colaboradora
responsável. Ela faz a sua parte que é levar à ple-
nitude o dom recebido. O Homem é chamado a
dar sentido cristão à sua natureza.
Deus, por Cristo, faz a Proposta daquilo para
que cada um é feito na construção do Reino e o
Homem dá a Resposta da sua adesão a Cristo, no
Espírito.
46 Vocação e Vocações Pessoais

d) Tentativa de definição de vocação:

1 – Aspiração de um bem

Pio XI descreveu assim as características


principais da vocação cristã: «a vocação não se
manifesta tanto por um sentimento, nem por
uma atracção sensível, mas pela recta intenção
(motivação) que se formula numa aspiração de
um bem». Não é necessariamente uma atracção
sensível... pelo contrário, às vezes é um desafio,
que até pode causar repugnância! O mesmo pode
acontecer numa profissão: pessoas com verdadeira
«vocação» para a medicina, por exemplo, passam
por experiências de repulsa e repugnância, mas
percebem pouco a pouco uma motivação mais
funda, uma força interior que lhes diz onde se
realizam em função de um bem. Primeiro vem
o aperceber-me de um Bem, e quando dou por
ele como algo realizante, saio de mim por ele.
Depois, quase sempre os sentimentos acabam
por se vir a sintonizar com essa realidade, com
esse bem. Compreende-se que aquilo que atrás
se chama «recta intenção» se pode traduzir por
«motivação». E motivação significa o dinamismo
interior de fundo que nos faz mover: aquilo que,
no fundo, «nos faz correr». Por isso, ao procu-
rar saber a minha vocação, tenho de analisar as
Que é então a Vocação? 47

minhas motivações: o que é que, no fundo, me


move? Não superficialmente! Mas aquilo que no
mais profundo de mim mesmo coincide com
aquilo que eu quero, ainda que não me apeteça. E
é muito importante esta distinção entre querer e
apetecer.

2 – O que no fundo quero

Podia dar-se outra tentativa de descrição,


pois uma dimensão vital não se pode definir,
mas pode-se tentar descrever. Assim, proponho:
Vocação é aquilo que eu quero, depois de tirados
os obstáculos, à luz do Espírito. Pesemos bem
estas palavras! De facto, normalmente não sabe-
mos o que queremos... As «cascas da cebola» são
muitas e muito fortes. Cobrem tudo. Até saber
o que é que eu, no fundo, quero; qual é o meu
dinamismo vital aonde Deus fala... vai um longo
percurso! Este é essencial porque é através desse
«querer», que não vem «nem da carne nem do
sangue» mas do Espírito, que Deus nos fala e
Se manifesta (Mt 16, 13 / 1 Cor 16, 17). Aliás o
Espírito, como diz Santo Agostinho, «é o interior
do meu interior». Tocamos aqui o lado místico da
«vocação»: há uma «voz», um apelo que surge no
nosso interior.
48 Vocação e Vocações Pessoais

3 – Manifestação do Espírito

Quando eu começo a desmontar as tais defesas


(cascas) do meu egoísmo, do meu apetecer, das
minhas «facilidades», das modas, do «costume»,
daquilo que os outros acham bem, daquilo que
até ficaria bem e tem sucesso... quando descasco
tudo isso e me encontro comigo mesmo, nesse
«migo» - mesmo está Deus-em-mim e Se reve-
la. Só então pode vir ao de cima o dinamismo
profundo da minha vida, que a pouco e pouco
florescerá e frutificará. Sem fazer esse trabalho de
desmontar as defesas, os medos, os egocentris-
mos, as aparências... é difícil!
Mas, claro, Deus também é muito forte e pode
desmontar isso num «flash». Muitas vezes já está
mesmo desmontado, a «gente é que anda a disfar-
çar», a fingir que não ouve... «que não deve ser»...
a arranjar mais umas razões (a pôr uma capa na
cebola)! Se começo a enganar-me e a «fugir com
o rabo à seringa» (e, de facto, estamos sempre a
fazê-lo!), não o faço por se tratar de uma dimen-
são de amor, mas porque me defendo, porque
o meu egoísmo tem montanhas de defesas. Só
quando me abro à graça de tirar os obstáculos
do meu «eu», a semente que lá está pode surgir e
florescer e mostrar-me quem sou. Aquilo que Eu
Sou é expressão da vontade de Deus em mim.
Que é então a Vocação? 49

e) Motivações e Ideais:

Passemos agora à temática das motivações,


sempre na tentativa de descrição e aproximação
do que é a vocação. Trata-se de descobrir a Moti-
vação enquanto dinamismo próprio de cada um.
A vocação tem a ver com a expressão e a revelação
de si próprio, da orientação motora profunda do
ser que deve ser assumida.
De outro modo: trata-se do assumir de um
ideal, do meu ideal! De facto, como dizia o Padre
Arrupe, «ter Ideal é sinal de vocação».
Mas a palavra «ideal» pode ser perigosa! Um
ideal não é um idealismo, nem um perfeccio-
nismo, nem fantasia utópica, nem projecção
emocional. Idealismo surge como desejo utópico,
estatuto inacessível, sobre as nuvens... Perfec-
cionismo (bem diferente de perfeição), é uma
exigência imposta, um dever-ser-teórico. Ambos
vêm de fora e deixam ansiedade e conflito entre a
meta proposta e o “eu”.
Que é ter um ideal?
É uma forma ascencional, é uma motivação. É
um objectivo a alcançar, mas que vem de dentro.
É um desejo possível, para mim, e que me faz en-
trar num processo realista para mais render e dar.
Não é um pedestal, nem um exemplo santo, nem
um modelo exterior a copiar. Tem ideal quem
50 Vocação e Vocações Pessoais

«tem» força interior de ir mais longe, de não


parar, sintonizado com o dinamismo positivo da
vida para objectivos possíveis de serviço e de bem.
Quem ainda não experimentou, não significa que
não tenha, significa que lhe está, ainda, «surdo».
É preciso, pois, identificar o ideal ouvindo a voz
do meu ser, onde fala Deus através de sinais in-
teriores e exteriores; mas que têm sempre um eco
interior.
Por exemplo, num dado momento, uma pai-
sagem que me toca, me comove, me move a lou-
var a Deus. É um sinal exterior que depois passa
por dentro. Esse sinal que me faz experimentar
um momento de realização! Outro exemplo pode
ser o encontro com alguém ou com uma palavra
do Evangelho que escuto e mexe comigo e não
deixa de me perseguir até que a enfrente, porque
só isso me fará crescer. São sinais que vêm de fora
e vêm por dentro. E é nesse sentido que se pode
dizer que há um chamamento que vem através da
oração... Então, nessa experiência de sintonizar
com as «interpelações do mundo onde Deus fala»,
se pode falar da tal «voz» que não é «sentimento
meramente emocional», mas é, exactamente, a
sensibilidade ao fundo das coisas!
Se há pessoas que vivem opacas, fugidias, sem
sintonizar com a vida, não é que não tenham
vocação! Mas estão ainda surdas, cegas às inter-
Que é então a Vocação? 51

pelações profundas. E o pior é que também vão


ficando cegas para todas as outras dimensões da
vida: começa-se explorando o próprio egoísmo,
explorando o seu bem-estar, e daí a explorar os
outros é um pequeno passo. Porque a contraposi-
ção de não seguir a sua vocação é fazer uma opção
de ir contra si mesmo, de manipulação de si e dos
outros. Não há alternativa, não há meio termo.
O processo de discernimento permite des-
lindar estes enganos, gradualmente, detectando,
lendo a vida, arriscando, assumindo.

f) Vocação é a vontade de Deus

Outro ponto de vista ainda, já aludido atrás, é


o da relação entre vocação e vontade de Deus.
A vocação é a vontade de Deus porque a «von-
tade de Deus» é o Bem do homem: o bem de cada
um de nós. E qual é o bem de cada um de nós? É
que o homem seja fiel a si próprio segundo a luz
que Ele dá.
A vontade de Deus assim entendida pode
manifestar-se. E uma vez despertada, pode ir
rompendo as barreiras do medo do «homem
egocêntrico», do «homem em pecado original»,
em situação de «fuga» e «carência» que, habitual-
mente, somos. O próprio Deus, através de uma
palavra ou de um exemplo, através de uma dada
52 Vocação e Vocações Pessoais

experiência de sofrimento, vence as barreiras


e mostra-me como sou. Por isso, a vontade de
Deus, sempre dinâmica, coincide com «o que eu
sou e para que sou feito»!
A nossa noção de vontade de Deus é muitas
vezes extrínseca e quase mítica. Ora, a vontade de
Deus é que o homem seja Homem, é que o ho-
mem viva. Ou, como já diziam os Santos Padres,
isso não é só a sua Vontade, mas é também a sua
Glória. «A glória de Deus é que o homem viva, é
a vida do homem» (Santo Ireneu).
A atitude mítica e estática face à vontade de
Deus deve ser desmontada. Em caricatura é assim:
eu quero saber a vontade de Deus... e imagino que
deva estar escrita nalgum lado, nalgum oráculo,
escondida «atrás duma nuvem»... e vou esperando
o milagre, anos a fio, que algum vento a afaste e eu
possa ler... «o teu caminho é...»; ou fica-se à espera
de ouvir, misteriosamente, a «tal voz» mágica.

g) Vocação: Aliança e diálogo

A vocação é, pois, simultaneamente, opção


e chamamento. As duas coisas: dom e dinâmica
pessoal. Por um lado, é deixar-se interpelar pelo
mundo, pelas experiências e pela Palavra... através
das quais «Deus fala». E por outro lado, é a liber-
dade de assumir.
Que é então a Vocação? 53

A vocação dá-se numa estrutura de diálogo.


O homem é chamado a sintetizar as qualidades
(potencialidades) humanas e, conjuntamente, ex-
perimenta o desafio de as pôr a render de uma de-
terminada maneira. Podemos falar de um caminho
de sintonização, que nos extremos teria: um cha-
mamento sem opção, que é infantilidade; ou uma
opção sem chamamento, que é voluntarismo... e
seriam dois falhanços que se podem corrigir!
Mas só no caminho de síntese e encontro in-
terpessoal se pode avançar até tocar o Mistério em
sentido bíblico. A vocação, sendo dom (de Deus)
e entrega (nossa), é uma experiência de amor, fru-
to de um diálogo. É, como dissemos no princípio,
uma experiência de Aliança.
Tal como no amor humano, há mútua opção-
-e-chamamento. Cada um se sente interpelado
pelo outro e a decidir-se por ele! E, na medida em
que o faz por ele, é interpelado e interpela. Esta
experiência de síntese é a experiência do amor,
que no início pode ser muito vaga e depois se vai
concretizando.
De modo semelhante, podemos dizer que a
Vocação Cristã é uma experiência de síntese no
Espírito Santo: um assumir em Cristo uma reve-
lação e dom do Pai.
Fora deste contexto, ao menos implícito, a
vocação não teria sentido. Trata-se de uma reve-
54 Vocação e Vocações Pessoais

lação de amor (e de amor dinâmico), vivo (não


acabado) e, portanto, sempre a refazer (a restau-
rar), sempre em diálogo. Vocação cristã, mais que
um facto ou acontecimento, é uma vida em diálo-
go de amor, uma vida em reconstrução contínua!
Uma história de amizade!
Imagine-se um amor humano onde se diga:
agora já optámos, podemos instalar-nos... Nesse
dia em que se parar, começa-se a recuar. Ora, a
melhor revelação do que é uma relação de amor
a Deus é a relação de amor humano. Esta tem de
ser sempre reconstruída, partilhada, rectificada, e
inclui diálogo e crise. E as experiências de crise, de
dificuldade, de avanço, de tensão, integram toda
a relação de amor. No amor cada um se realiza
realizando o outro: vive-se porque se «morre»,
porque se dá a vida!
O amor é uma busca de sintonia de vontades
que inclui o risco e a confiança. Sem estes dois
elementos do risco e da confiança, da decisão e do
apoio, da crise e da superação, não há experiência
humana, há só teoria e sentimentalismo.
A vocação de cada um é expressão de amor que
se concebe numa história e numa relação vital.
O seu âmbito é a busca de felicidade: ser feliz e
fazer felizes os outros. Aí se encontra – com todo
o realismo – a realização da pessoa, a realização do
Projecto de Deus e da felicidade humana.
6
Vocação, Mistério de amor:
uma relação de confiança – uma história
de amizade

Por fim, uma última tentativa de descrição a


partir dos elementos anteriores. A vocação é um
processo vital e vitalizante para cada homem,
único e insubstituível, que cada um tem que fazer
sob pena de não chegar a ser ele próprio, numa
relação pessoal de risco e de confiança.
Contemplemos essa cena evangélica de Pe-
dro sobre as águas (Mt 14, 22ss). Deus faz-Se
presente (ao princípio, confusamente). Pedro
recebe o primeiro «toque» – quer ir... «Se és Tu,
manda-me ir...» (tímido). Deus chama-o: «Vem
ter Comigo!» Mas aquele Deus, naquela altura,
parece-lhe bastante fantasma: não O vê ainda
claro, mas arrisca com alegria... e logo teme e vai
ao fundo... mas grita – confia (reza): «Salva-me»,
conduz-me! E Deus diz-lhe: recupera e vem de
novo ao de cima! «Porque duvidaste?»... E o ven-
to amainou.
É esta a caminhada de todos.
56 Vocação e Vocações Pessoais

E quase tudo está em vencer a primeira barrei-


ra.
Contemplemos de novo Pedro na barca: «Se-
nhor, manda-me ir ter Contigo». Eu decido, mas
Tu, chama-me: dou passos, dá-me a mão. «Vem!»
E eu vou ao fundo, mas confio e arrisco. E Ele
chama-me e vou, assim, a caminho...
A vocação também «se faz ao andar». Como
todo o caminho, faz-se ao arriscar, ao amar.
Caminhada em situação de instabilidade, como
é típico de toda a situação humana, sempre re-
cuperável, sempre recomposta, em relação de
confiança. Vamos todos nessa barca!
E todos temos uma missão a desempenhar:
Senhor, manda-nos ir ter Contigo!
II

OS SEGREDOS
DE UMA ESCOLHA PESSOAL

– Como saber a vontade de Deus para mim?


– Qual a minha vocação, a resposta e a opção certa?
– Quais os sinais de Deus? Discernimento.
– Quem me pode ajudar? Acompanhamento.

NOTA: Estes textos, inspirados nos Exercícios Espirituais de


Santo Inácio, não se entendem em separado, nem como técnicas
de análise psicológica, mas supõem e reenviam para experiências
de oração pessoal. É no pressuposto dessa relação pessoal que de-
vem ser tomados. O «conhecimento interno» da vontade de Deus,
o «discernimento das moções» e a «eleição» das opções são uma
graça salvadora, libertadora, gratuita que Deus dá, mas é preciso
pedi-la e dispor-se a recebê-la: «que eu não seja surdo, mas pronto
e diligente para seguir a Sua vontade» (EE,91).
Vocação e Vontade de Deus

«Como posso saber a vontade de Deus para


mim?».
Deus escreve e imprime a sua vontade, o seu
chamamento, nos nossos corações.
Vontade de Deus!
Podemos começar por dar a seguinte «defini-
ção»: vontade de Deus, para mim, é aquilo que
eu, no fundo, quero; à luz do Espírito Santo; de-
pois de tirados os obstáculos.
Faço primeiro umas observações para situar
bem, e depois a explicação desta frase:

1 – a) Não se trata aqui da vontade de Deus em


geral. Essa é que todos os homens se salvem, que
o Reino cresça, que Jesus Cristo seja conhecido e
amado... isto é: o Evangelho!

b) Não se trata também da vontade de Deus


para mim, em sentido genérico. Essa é que eu
me realize segundo o Evangelho, que seja fiel a
mim próprio, aos meus talentos e a Deus que me
chama... Trata-se é de ver como sei qual é o meu
60 Vocação e Vocações Pessoais

chamamento específico, a minha vocação, a res-


posta evangélica que devo dar a cada solicitação.

c) também não se pode entender vontade de


Deus como algo estático, pré-determinado, uma
frase escrita «atrás de alguma nuvem» que eu,
com sorte, vou descobrir. Trata-se, sim, de uma
realidade dinâmica que vai ganhando corpo em
mim, de uma história de amizade que se vai con-
cretizando e ganhando contornos e purificando
ao longo da caminhada.

2) Vejamos então, pelo lado positivo, a tal defi-


nição:

a) aquilo que eu, no fundo, quero...


É o que eu quero e não o que me apetece. O
apetecer é sensível e nem sequer está de acordo
com a vontade profunda. Não me apetece traba-
lhar, por exemplo, mas no fundo eu sei que devo
e desejo cumprir esta obrigação... É no profundo
do nosso coração que podemos «ouvir a voz» do
Espírito. O próprio Jesus experimentou isto na
Agonia: Pai, não se faça o que «quero» (= apete-
ce), mas Eu quero o que Tu queres (= faça-se a tua
vontade). E S. Paulo dizia: não faço o bem que
quero, mas aquilo que não quero (Rm 7, 20): há
uma divisão nos meus membros!
Vocação e Vontade de Deus 61

É pois preciso libertar o nosso querer que está


dominado (afogado) nos apeteceres, medos, pai-
xões, atracções imediatas...

b) à luz do Espírito Santo


Porque o querer move-se sempre sob alguma
luz, algo que o atrai. É a questão das motivações
e dos objectivos. A vontade de Deus não é o meu
querer motivado (iluminado) só pela ciência, ou a
psicologia, ou a sociologia, etc., a apresentar-me o
que é bem nesses campos. A vontade busca sempre
um bem, e aqui é o bem que o Evangelho apre-
senta como «bem para mim» – aquilo que vejo
(no fundo) que me identifica com Jesus, com os
seus mandamentos e estilo de vida, com a cons-
trução do Reino. Esses bens é o Espírito Santo
que os mostra e torna atractivos para a pessoa.
Trata-se, pois, de se deixar mover pelo Espírito
de Deus e não por outros espíritos.

c) depois de tirar os obstáculos


Obstáculos à acção do Espírito, que vêm
de fora: a mentalidade dominante, as pressões
sociais, as mais variadas tentações... e vêm de
dentro: os medos, os preconceitos, o comodis-
mo-egocentrismo e todas as defesas perante o que
pode parecer exigente ou vai pôr em causa o que
parece mais fácil e mais feliz.
62 Vocação e Vocações Pessoais

Então há que «descascar a cebola»: ir tirando


todas essas capas (e escamas dos nossos olhos) que
não nos deixam ver bem e nos prendem e escra-
vizam aos nossos egoísmos e apeteceres. Quando
começo a libertar-me disso, então pode vir ao de
cima o meu querer que, passado o momento de
agitação ou confusão ou medo, encontrará a paz
ao identificar-se com o Evangelho, ao assumir e
aceitar os movimentos profundos.
Então a vontade de Deus para mim é que eu
colabore com Ele para viver evangelicamente cada
momento da minha vida, e a própria orientação a
dar à vida. Isto é a vocação: decidir-se por aquilo
que Deus mostra como bom para mim no fundo
do meu coração.
Vocação e Opção pessoal

«E como é que eu sei qual é a minha vocação?


Como é que encontro a resposta, a opção certa?»

Os Segredos de uma escolha. Momentos e modos


de eleição – segundo Santo Inácio

Em primeiro lugar, a pessoa sinceramente


desejosa de encontrar a sua vocação, deve pôr-se
numa atitude de disponibilidade, isto é, de aber-
tura ou de «indiferença» interior para aderir ao
que for melhor (ao que vem de Deus), sabendo,
contudo, que está sempre a «defender-se» e a pôr
– mesmo inconscientemente – obstáculos àquilo
que pode parecer mais exigente e pedir algumas
roturas ou deixar outras coisas boas, como é o
caso da vocação consagrada. Mas, mesmo saben-
do isso, a pessoa tratará de pedir a graça de andar
aberta e disponível para os sinais de Deus, tendo
«ouvidos para ouvir».
Esta é a atitude prévia. Enquanto não nos
decidirmos a admitir que Deus pode chamar e
não nos dispusermos a ouvir, nada acontece!...
64 Vocação e Vocações Pessoais

tão cheios que andamos com outras ocupações,


medos e prioridades.
E uma vez nessa atitude – pelo menos como
desejo –, diz Santo Inácio que o encontrar da
vocação se pode dar de 3 maneiras-tipo. Vamos
vê-las:

1) Há casos, e não são tão raros como poderia


parecer, em que Deus Se manifesta como que di-
rectamente, irrompendo na vida da pessoa.
É o seguinte: numa determinada ocasião,
numa dada situação de vida, do trabalho ou
da oração, experimentar uma tal luz... uma
convicção interior tal... que não posso duvidar,
ainda que à superfície hesite ou tenha medo.
Mas é aquilo mesmo que vejo e experimento
como bom e positivo, ainda que seja difícil! E
isso vem acompanhado de alegria profunda e
serenidade de fundo. Santo Inácio dá o exemplo
da vocação de S. Paulo e chama-lhe eleições em
primeiro momento. É uma graça; podemos pedi-la
e ela acontece em tantos casos: «...naquele dia,
ao ouvir aquela frase do Evangelho...», «quando
entrei naquela casa...», «aquela celebração...»,
«quando aquele pobre se me dirigiu...», «estava
eu na montanha diante do pôr-do-sol...», «no
meio da conversa com...», ...enfim! Deus bem
pode dar (e dá) muitas vezes esse toque que muda
Vocação e Opção pessoal 65

tudo, ainda que depois haja um trabalho muito


importante de confirmação e concretização, para o
qual a ajuda dum director espiritual é importante.
É que muitas vezes, sendo verdadeiro o primeiro
momento de consolação e chamamento, no se-
gundo, em que já pensamos no modo de pôr em
prática, pode haver algum engano. Santo Inácio
alerta para este cuidado com os «segundos mo-
mentos», onde o «mau espírito» nos pode enganar
e fazer adiar ou desviar, com aparências de bem.
No seu livrinho «Saber escolher», o Padre Carlos
Vallés, S.J., conta uma história sugestiva daquele
padre que teve a luz de se dedicar inteiramente ao
bairro pobre a que assistia... mas, num segundo
momento, fez o propósito de visitar todas as casas
todos os dias... e a curto prazo ia «rebentando» e
estava mal com tudo! Se o primeiro chamamento
(dedicar-se intensamente) estava certo, o modo de
o fazer já não estava assim tão bem discernido...

2) Um outro modo de eleição (o terceiro, para


Santo Inácio, mas há vantagens em alterar essa
ordem), é aquele que se dá «mais a frio», mais
racionalmente, quando as coisas não desempatam
para lado nenhum, embora haja boa vontade.
Nestes casos, a estratégia que Santo Inácio
propõe é de estabelecer listas de «prós e contras»
para cada hipótese a encarar, tentando ver bem,
66 Vocação e Vocações Pessoais

não em teoria, mas para mim concretamente. E


depois rezar sobre o resultado desse balanço.
Exemplifiquemos. Hipótese A: a) Quais as
minhas razões e motivações profundas para a de-
sejar? b) Quais os contras? c) E meditar. Depois,
fazer o mesmo com a hipótese B. Sempre com o
cuidado de não andar a saltar de hipótese para
hipótese, sem andar a comparar, considerando
uma hipótese de cada vez. E só depois, no final,
confrontar e pedir a graça de entender onde há
maior peso qualitativo. Isto é: não se trata de saber
onde há mais quantidade de razões, mas para que
lado pesa mais a qualidade da entrega... onde há
maior identificação com o Evangelho.
Também uma eleição assim precisa de uma
confirmação por empatia com Jesus Cristo (ou
com o Pai ou com o Espírito Santo). Confir-
mar em oração, onde há mais consolação. Na
linguagem de Santo Inácio seria «discernir por
consolações e desolações»! E para ele isso é uma
característica da eleição em segundo momento, a
mais importante, até porque serve para confirmar
as outras. É a que vamos estudar a seguir.

3) O modo mais seguro, mais normal e cor-


rente para chegar a uma eleição de estado de vida,
é entrar num discernimento por consolações e deso-
lações. Que quer isto dizer?
Vocação e Opção pessoal 67

Aquele que pretende encontrar a vontade de


Deus, depois de se pôr minimamente disponível
interiormente para aderir ao que for melhor, e
tendo chegado no seu processo a duas hipóteses
(se há mais, corre-se o perigo de confusão!), co-
meça por enfrentar uma delas na sua oração, na
missa e na vida quotidiana, etc., pondo de lado a
outra hipótese, num exercício prático de identifi-
cação, imaginando, vendo-se como estaria, agiria,
sentiria nessa hipótese. Começará então por pro-
curar:

1º – entender bem a fundo o que significa essa


opção, o que ela exige, o que ela gratifica, aonde
conduz, que estilo propõe, a sua qualidade apos-
tólica, a vida espiritual e eclesial que supõe... etc.;

2º – depois de bem observado esse sentido


– tão objectivamente quanto possível –, fazer o tal
exercício – importantíssimo! – de «se lhe meter na
pele». Isto é, tomá-la como se fosse para si, como
se já tivesse visto que era por aí... E assim andar
algum tempo, rezar e relacionar-se de modo a
experimentar em si mesmo as consolações e deso-
lações que esse estado lhe produz;

3º – daí, avaliar a qualidade dessas consolações


e desolações através das quais Deus fala. Terá pre-
68 Vocação e Vocações Pessoais

sente que consolação espiritual é bem diferente de


consolação (desolação) sensível. Estas são reacções
a estímulos, normalmente sentimentos mais su-
perficiais, enquanto que as consolações espirituais
são, sobretudo, a experiência de algum aumento
de fé, ou de esperança na vida, ou de caridade
e justiça. Consolação espiritual é mais sintonia
com o Evangelho, ainda que às vezes possa vir
acompanhada de medos, apreensões e até desola-
ção sensível. Poderá então concluir: onde «sentir»
maior consolação espiritual, aí fala Deus! Essa
«hipótese» é a vontade e o caminho de Deus.
Mas o processo ainda não acabou. Passado
algum tempo de assim andar com essa opção
– metido nessa pele –, recomeçar o processo, mas
agora «metendo-se na outra pele», interiorizando
a outra hipótese.

No final – provavelmente – já entenderá, por


dentro, qual é a sua própria pele. Mas só no fim se
devem comparar, não as hipóteses, mas as consola-
ções (e desolações) experimentadas em cada caso.
É preciso arranjar tempo e seguir este itinerá-
rio. Até que a pessoa conclua praticamente, e não
como solução teórica ou meramente lógica.
Às vezes não se chega logo a essa conclusão
assinalada pela paz profunda, que é diferente
de «bem-estar» e até pode, como já se disse, ser
Vocação e Opção pessoal 69

acompanhada de alguma apreensão. Nesse caso


tem que se repetir o processo. E aí, como em todo
o processo, a ajuda de um director espiritual ex-
perimentado é particularmente importante.
Se o processo depois de repetido não for ainda
conclusivo, então poderá ser que o Senhor esteja
a mostrar outra coisa, como, por exemplo,
∗ que ainda não é tempo,
∗ ou que não há ainda maturidade suficiente,
∗ ou que faltam dados,
∗ ou não havia suficiente liberdade interior,
∗ ou que, talvez, o caminho não seja A nem
B, mas algum C a experimentar, etc.

E procurando encontrar aí a pista certa, numa


abertura franca com o director espiritual, recome-
çar aquilo que pareça necessário.
O Senhor não deixará de Se manifestar na
hora certa, que é a sua hora – a hora da graça. E
a nós, resta-nos cultivar a paciência humilde e a
perseverança confiante, bem como o despojamen-
to (pobreza) atento, para que, desejando apenas a
sua vontade, o encontro de amigos e de libertação
e o encontro da nossa missão no mundo para bem
do mundo, que é a vocação, aconteça.
Sinais de Deus

Os sinais de Deus em nós, os sinais interiores


de estar sintonizado com Ele e, portanto, de ter
acertado com a sua vontade, não podem deixar
de ser senão experiências do que é característico
do Espírito Santo. Ora, é próprio do Espírito
de amor consolar, é próprio do Espírito de Jesus
deixar na pessoa uma paz profunda, conferir-lhe
uma alegria apostólica, dar-lhe convicção e senti-
do para a Vida, bem como uma esperança realista
e um movimento em ordem ao amor e à justiça
– um despertar para a construção do Reino.
Experimentamos estes sinais como «sentimen-
tos» mais ou menos profundos.
Mas – atenção! – os sentimentos são uma
linguagem ambígua. E a primeira coisa a fazer
é distinguir neles dois níveis que muitas vezes se
confundem: o dos «sentimentos profundos» e o
das «reacções mais imediatas» aos estímulos.
Tudo passa através da nossa psicologia, mas
podemos aprender a discernir o nível do sensível
e o do espiritual. Assim, não é difícil de ver que
uma coisa é o «bem-estar», outra é a «paz». Do
mesmo modo é diferente a alegria superficial ou
Sinais de Deus 71

eufórica e a consolação profunda; a seriedade


realista não é a tristeza desencantada, nem a dor
ligada à consciência de pecado e ao sofrimento
por amor se devem confundir com a ansiedade ou
a depressão...
Santo Inácio de Loiola deu critérios e regras
muito práticas para discernir estas experiências a
que chamou «moções» ou movimentos interiores:
uns vindos do Espírito de Deus, outros tendo
fonte noutras inspirações ou na nossa sensibili-
dade. Umas vezes parecem ventos que sopram
na mesma direcção, outras vezes parece que se
opõem e provocam «estados de alma» mais ou
menos confusos, e até contrários.
Em resumo, usando a linguagem inaciana:
uma coisa é a consolação (e a desolação) sensível,
outra coisa é a consolação (e desolação) espiritual.
É esta última que importa, e é nela que se mani-
festa – no profundo – o Espírito de Deus.
Por exemplo: chego a casa cansado e recosto-
-me ouvindo uma boa música... posso estar a fazer
uma experiência de «bem-estar» mais egocêntrico,
pois nesse momento «nada me incomoda». E pos-
so, ao mesmo tempo, não estar em paz comigo
ou com o meu futuro... ou poderia estar mesmo
em paz, e, à superfície, sentir-me agitado, com
dúvidas e preocupações... ou ainda, sentir essa
consolação profunda de quem sabe o que quer e
72 Vocação e Vocações Pessoais

está aberto ao outro, e tudo isso acompanhado de


uma tranquilidade sensível...
Independentemente dos sentimentos de su-
perfície e dos ventos que correm, o que indica se
um pensamento ou uma acção, uma palavra ou
uma atitude e um projecto vêm de Deus, é a con-
solação profunda (espiritual) que estas situações,
esses actos produzem. Conhecemos as árvores
pelos frutos.
Oiço uma palavra do Evangelho, sou interpe-
lado por uma situação social, formulo em mim
um certo projecto de futuro... o que estou a pen-
sar, sentir, desejar, vem de Deus? É vontade de
Deus? Vamos ver o que isso produziu em mim. Se
experimento uma consolação espiritual, é sinal que
o caminho é por aí. É a indicação que o Senhor
me dá.
Mas o que é consolação espiritual? Santo
Inácio define-a bem: todo o aumento (todo o
movimento positivo) de fé, de esperança e de
caridade.
E que fazer quando experimentamos o vazio, a
desolação? Aí a grande regra inaciana a ter presen-
te é a seguinte: «em tempo de desolação não se fa-
zem mudanças, nem opções». Claro, seria fazê-las
sob um pendor negativista, egocêntrico... ao saber
dos maus ventos... Então, que fazer? Esperar pa-
cientemente que passe essa onda negativa e escura
Sinais de Deus 73

para ver claro; e, para isso, rezar mais, fazer algum


acto de humildade, penitência, abrir-me com
alguém experimentado que me ajude a vir ao de
cima... Aliás, a desolação pode ser muito útil por-
que me purifica, me faz entender melhor como
sou fraco, como tudo é dom, e como preciso de
vencer o egoísmo que se está sempre a intrometer
nos processos pessoais.
Mas a vida é alternância e a consolação vol-
ta sempre. Quando se experimenta de novo a
consolação e ela se vai confirmando na oração e
na acção, então agir segundo esse bom sopro do
Espírito de amor, de fé e de esperança.
É como saber andar nas ondas e navegar à vela.
Importa ter um rumo, e o leme na mão. Mas os
ventos podem agitar-se e até ser contrários. Tor-
na-se mais difícil navegar, e é preciso fazer alguns
bordos, mas não vamos – por causa disso – perder
o Norte, nem muito menos pensar que o cami-
nho está errado ou é na direcção oposta pelo facto
dos ventos para aí apontarem e empurrarem.
Outro exemplo: Imaginem que vão de bicicle-
ta numa boa estrada, plana, e com vento a favor.
A consolação sensível (o vento) a ajudar a conso-
lação espiritual (a determinação de pedalar) tam-
bém naquele sentido. Chega a um ponto, e vem
uma subida, e para mais o vento, forte, torna-se
contrário. Continuar é doloroso e cansativo; sur-
74 Vocação e Vocações Pessoais

ge a tentação de desanimar. Seria ilógico, nessa al-


tura, começar a pensar «devo-me ter enganado na
estrada... talvez não tenha visto bem no mapa...»
e virar a bicicleta para trás, descida abaixo, com
o vento a favor! Parece ridículo, mas é o que às
vezes acontece. E contudo, o sensato, o espiritu-
al, seria dizer: «agora custa mais, mas já vi que o
caminho é este» (consolação espiritual); quando
muito, paro para levar a bicicleta à mão na subida
e espero que o vento amaine para continuar.
Os sinais da vontade de Deus são a paz e as
convicções profundas evangélicas espirituais, que
acompanham os desejos e decisões. É preciso
confirmá-las no dia-a-dia pois, muitas vezes, são
postas à prova por várias tentações para se purifi-
carem e fortificarem.
«Não temais», repete Jesus a cada passo. E no
meio do mar, quando a tempestade cai e os ven-
tos são contrários (pobres dos discípulos), Jesus
e as opções parecem um engano! Jesus dorme ou
parece um fantasma, mas acalma a tempestade,
ensina a não perder o Norte e a navegar no lado
da vida.
«Dou-vos a Minha paz»... «não a dou como o
mundo a dá»!
«A arte de ajudar a Discernir»
e a importância de ser acompanhado

A Direcção espiritual, no discernimento vocacional

O acompanhamento vocacional é um capítulo


especializado do acompanhamento interpessoal
(ou da «direcção espiritual», cujo nome aqui não
discuto), mas não se quer dizer com isto que é só
feito por especialistas, para casos especiais.
A primeira ideia já muito repetida neste livro
é que todo o homem é um vocacionado, e a vo-
cação cristã não é algo lateral, de uns poucos, mas
a personalização cristã de todos e de cada um. Só
que ninguém faz esse processo sozinho.
Assim, apresentarei 10 tópicos que caracte-
rizem um recto acompanhamento e, por outro
lado, mostrem a importância de procurar ajuda
experiente no discernimento.

1. Acompanhamento é «arte» e «processo»

É arte, porque é um carisma, uma certa vir-


tude mais conatural de alguns; mas também é
processo. É processo, porque essa virtude deve ser
76 Vocação e Vocações Pessoais

educada, sem demasiadas confianças na intuição;


e porque não há acompanhamento sem forma-
ção. Aliás, acompanhar acaba por ser uma técnica
adquirida que pode ser, portanto, exercida pela
maioria quando nos centramos no outro, pelo
outro, e nos tornamos sensíveis ao Espírito que
fala em nós (e é quem discerne, afinal!).
Deixar-se acompanhar é também virtude: hu-
mildade, consciência de ser Igreja, e necessidade,
porque quem está envolvido necessita de «objec-
tivação».

2. Acompanhar é falar de experiência própria

Não só não se trata de comunicar teorias a


outro... como só na experiência se aprende a
acompanhar. É na reflexão sobre a experiência e
os casos que se avança. Mas nunca seja casuística
ou classificação simplista, nem catalogação do
«paciente», nem comparações... Se não é indicado
tirar notas durante a conversa, é útil fazer breve
memória de cada encontro e ir avaliando também
o andamento do processo, dando-se conta dos
sinais, aprendendo, corrigindo, ensaiando. Pedir
também ao acompanhado que avalie.
«A arte de ajudar a discernir» 77

3. Acompanhar é pro-proposta e res-posta

Uma relação humilde de dar e receber. Não só


estar disponível para acompanhar quem pede, mas
ter também a humildade de se oferecer para esse
serviço com propostas oportunas que não forçam,
mas despertam... oferecer-se para quem quiser, e
investir concretamente durante o processo.
O não-directivismo tem o seu lugar enquanto
é um processo centrado no outro, mas não é puro
não-directivismo, já que se trata de um ministério e
há conteúdos a comunicar, metas e meios a propor.
Um serviço-peregrinação: exortar, despertar,
clarificar, estimular, preparar a autonomização do
outro... e desaparecer (1 Tes 2, 11-12/Act 20, 31).

4. Uma peregrinação e não um acumular de entre-


vistas

Isto é: com princípio, meio e fim.


Da consciência e importância do ponto de
partida e dos objectivos a alcançar, falarei a seguir
(tópico 5).
Aqui, tratarei de reflectir sobre os meios a usar
e o modo e oportunidade de os propor: 5 tipos de
meios de crescimento e confronto:
∗ Para uma Vida de Oração: meditação, dis-
cernimento, avaliação.
78 Vocação e Vocações Pessoais

∗ Para as relações humanas: família, mundo


afectivo e sexual, amizades.
∗ Para uma vida saudável e responsável: des-
porto, leituras, trabalho.
∗ Para o serviço: abertura apostólica, contac-
to com pobres.

5. Acompanhamento: a) donde? e b) para onde?

a) Há-de ser uma primeira preocupação en-


quadrar (e entender) a história pessoal, as raízes, a
situação e referências do acompanhado, para que
este tome consciência e possa gerir melhor a sua
situação. Assim:

1) Enquadramento sociológico. Uma boa faixa


da juventude vive «sem lar», espaço próprio de
gratuidade e intimidade. Peter Berger, em «Un
mundo sin hogar», retrata deste modo uma das
características da nossa sociedade. Não admira
pois a necessidade de um confidente que o Acom-
panhamento pode proporcionar.

2) Numa perspectiva psicológica, vivem muitos


uma situação social marcada pela «morte do Pai».
Não admira que o procurem nalguma figura de
segurança e fascínio. Não admira também que
tantos desequilíbrios nas relações afectivas (é pre-
«A arte de ajudar a discernir» 79

ciso estar mesmo atento a distúrbios na área da


homossexualidade...), venham das roturas fami-
liares e consequentes ausências. O Acompanhan-
te, ainda que visto como «pai-espiritual», não é
um substituto do pai e não deve facilitar esse tipo
de dependências. Pode, sim, ser um irmão que
ajude a caminhar para a maturidade: porta para
fazer a experiência do Pai (Deus) e da fraterni-
dade. Num mundo onde não há Pai, os homens
deixam de ser irmãos.

3) Eclesiologicamente, vive-se a ausência da


mãe. Por um lado, a busca de experiências comu-
nitárias, mas sem Igreja-Mãe, normativa e única.
«Cristo sim, Igreja não!» Vale o subjectivo, vale a
síntese com que cada um se arranja... O Acom-
panhante pode ser e dar a imagem de uma Igreja
que acolhe com universalidade, com linguagem
adaptada (não clerical e formal), tornar-se «alen-
to» vital, presença do Espírito.

b) Para onde? (Descobrir o ritmo e ter claras as


etapas...)

1) Num primeiro momento os objectivos são:


– que o acompanhado chegue à leitura positiva
da sua vida (como história da Salvação);
80 Vocação e Vocações Pessoais

– que descubra (em consolação inaciana) a sua


própria riqueza pessoal – o tesouro divino (talen-
to) que ele é;
– que esse aceitar-se e apreciar-se faça despo-
letar o desejo do grupo e/ou de acção onde en-
contre confronto e investimento que solidificam
a identidade e são plataforma para outros voos
(decisões).

2) Num segundo momento:


– tendo já, desde o início, desmitificado a
questão da vocação como voz mágica ou algo
escondido... para a entender como «aquilo que
eu (no fundo) quero, à luz do Espírito Santo, de-
pois de ter tirado todos os impedimentos»; então:
buscar e encontrar essa vontade de Deus: «que eu
seja Eu»; já que, cristãmente, vocação e persona-
lização coincidem. Não se trata de uma sobrena-
tureza (graça) a acrescentar a uma natureza. Mas
é o próprio chamamento vocacional que é o filão
interior do tomar-se pessoa-em-Cristro.

6. Qualidades do Acompanhante

A longa lista de 17 grupos de qualidades


que caracterizam o Director espiritual no livro
clássico de Mendizabal, «Direccion Espiritual»,
merece uma reflexão. Muitas delas referem-se à
«A arte de ajudar a discernir» 81

capacidade de «conduzir» uma entrevista inter-


pessoal.
Aqui sublinho 4 capacidades a desenvolver:

1) incarnação (à maneira de Jesus Cristo):


a) «meter-se na pele» e na história do outro
sem violência nem manipulação;
b) encontrar a linguagem própria do outro, da
sua mundivisão;
c) ser homem do tempo presente, nos conheci-
mentos e sensibilidades;
d) descentrar-se... estar em conversão pelo ou-
tro.

2) capacidade de clarificar e distinguir: clarificar


objectivos, desfazer ambiguidades de várias espé-
cies, saber retomar o fio e situar momentos. Dan-
do segurança e desfazendo falsas dependências ou
pretensas conclusões.

3) conhecimento dos movimentos interiores (es-


pirituais-psicológicos): discernir em si próprio e no
outro as moções, estados de alma e, sobretudo, a
qualidade das motivações. Conhecer os modos e
os tempos de eleição segundo o Espírito.

4) abrir portas e horizontes: nunca, mesmo nos


tempos de maior impasse, «encurralar» o acom-
82 Vocação e Vocações Pessoais

panhado. Por exemplo, quando se cai sem saída


na alternativa A ou B sem ser capaz de se decidir:
pode ser sinal que a saída é outra – C; pode C
significar que ainda não é tempo de deslindar A
ou B...

7. O compromisso do acompanhado

Nem sempre se está em condições de iniciar


um processo formal. Há vantagem em chegar a
esse «pacto» mútuo assumido de ambas as partes!
É ponto zero do processo a real determinação de se
deixar acompanhar com objectivo clarificado, com
certo ritmo (mais que um ritmo certo), sem sal-
titar, procurando outras pessoas. Estar disposto a
abrir-se e dar-se a conhecer com alguma continui-
dade é o primeiro teste para chegar a bom termo.

8. A clarificação das motivações

Este é o ponto central: o das motivações in-


conscientes.
Todos nos movemos ou por necessidades,
buscando o que é bem para mim, ou por valores,
buscando o que é bem em si.
Ora esta realidade não é pacífica... antes é uma
luta que também se experimenta como tensão
entre o eu real e o eu ideal.
«A arte de ajudar a discernir» 83

Consideremos três categorias de sujeitos:


Alguns (os da primeira categoria), como São
Paulo, no exame-de-consciência já têm consciên-
cia das próprias contradições e vão aprendendo a
viver com elas: «Não faço o bem que quero e faço
o mal que não quero»... (Rm 7, 19).
É fácil encontrarmo-nos com outros jovens
incapazes de conciliar os seus «eus» e motivações,
revelando inconsistências de personalidade. En-
tram no campo da patologia e é preciso todo o
cuidado para o identificar correctamente.
O grande grupo restante experimenta e sente
essas tensões sem as saber situar, nem porquê.
Não são inconsistências da personalidade partida
ou confundida nos seus «eus» e planos, como no
grupo anterior. São antes pessoas para quem o
processo de acompanhamento e discernimento
das motivações inconscientes tem lugar primor-
dial. Situações de medos e marcas de infância,
infravaloração, confusão entre o ideal e o idea-
lismo, perfeccionismos educacionais, projecções
inconscientes... etc., etc., podem ser deslindadas
e assumidas.
N. B. – Para aprofundar esta caracterologia,
cfr. Rulla s.j., Strutura, Psicologia e Vocazione.
84 Vocação e Vocações Pessoais

9. Um exemplo – tipo de acompanhamento no


Evangelho

O itinerário ou peregrinação de Emaús. Julian


Barrios, s.j., em Sal Terrae (Maio 85), explora
muito bem estas «pautas para um itinerário se-
gundo Lc 24, 13-35», fazendo uma leitura ina-
ciana do texto. Podíamos recorrer a outros textos:
para a entrevista, os diálogos com a Samaritana
ou Nicodemos; para o percurso de acompanha-
mento, o percurso de Paulo com Ananias ou
mesmo a caminhada de deserto de Elias.

Assim, resumidamente:

1º ponto: Jesus em pessoa, aproxima-se e põe-


-Se com eles a caminhar (vs. 16). Fazer caminho
com...
2º ponto: Mas estavam cegos... (vs. 17). Nós
esperávamos... mas... (desolação); Jesus interroga
sobre a história... informa, propõe, recapitula.
Leitura da vida-consolação. Não estava o nosso
coração a arder... (vs. 32). É o discernimento dos
Espíritos.
3º ponto: Fica connosco... (vs. 29). O despo-
letar da liberdade interior, do assumir o desejo
clarificado – início da integração afectiva.
«A arte de ajudar a discernir» 85

4º ponto: abriram-se então os olhos e reco-


nheceram-No (vs. 32); reconheceram ao partir
do pão (vs. 31).
Captação da experiência-presença de Deus
pelos sinais.
5º ponto: não tinha o Messias que padecer
para entrar na Glória? (vs. 26).
Seguimento de Jesus – ver-se identificado com o
processo de Jesus.
6º ponto: e levantando-se, voltaram a Jerusa-
lém... e encontraram os 11 reunidos (vs. 34).
Reencontro-criação da Comunidade, construto-
res com outros do Reino.

10. O Acompanhante faz entrar em jogo a Trinda-


de, (e não o deve esquecer):

a) «exerce» e revela a Paternidade – enquanto a


sua atitude é sair de si de modo criador e personali-
zador dos demais, abre caminho, informa, propõe.
Põe o acompanhado em relação com seu Pai.

b) «exerce» e revela a Fraternidade – à luz de


um Deus que Se faz acompanhante humano – ir-
mão. Uma proximidade que comparte alegrias e
tristezas, desbloqueia a liberdade e dá consistência
de comunidade. Abre-lhe a porta da relação pes-
soal com Cristo.
86 Vocação e Vocações Pessoais

c) é alento que suscita e serve a vida. Como


instrumento do Espírito Santo, cria condições
para que seja Ele o mestre e guia interior. O Es-
pírito é – em pleno sentido – o Acompanhante
Espiritual.

E não é a Vocação o encontrar, viver e de-


senvolver no Espírito, a Comunhão-Seguimento
com Cristo em direcção ao Pai?
III

SEGUE-ME

pontos para 10 exercícios de meditação

1. descomplicar...
2. o nosso verdadeiro Nome
3. o direito a ser feliz
4. da cegueira à visão
5. «ouvir» Deus
6. horas difíceis
7. os «bons» e os «amigos»
8. sabedoria na luz e nas trevas
9. o preço da liberdade
10. quem perde ganha

– Textos bíblicos
Segue-Me

Esta é a palavra-chave de toda a Bíblia, de toda


a História de Salvação, que é a história da vocação
de cada um e de todo o povo.
Vem, estabelece uma relação (aliança) comigo,
eu te envio!
O homem, humanidade que é chamada à vida
para gerir o mundo. Abraão, deixa a tua terra e
vem: farei de ti o pai de um povo escolhido...
Moisés, que é chamado a ser libertador e condu-
tor de um povo que caminha. Esse mesmo povo
que é chamado aos mandamentos, para ir e esta-
belecer uma terra prometida, um novo templo.
Os profetas, os Reis, cada um, chamados a ir e
anunciar e a denunciar as injustiças, a construir
o Reino, a apontar o caminho da esperança e da
salvação. A história de uma aliança, isto é, de uma
vocação.
E o Novo Testamento é uma nova aliança, uma
nova vocação de cada um e do corpo todo de tudo
transfigurar e integrar em Cristo. Vem, diz Jesus
continuamente, farei de ti... eu te envio... Pedro
e Tiago... Zaqueu como Mateus, Marta e Maria
ou Madalena, Paulo e Barnabé... todos desafiados
90 Vocação e Vocações Pessoais

a uma nova relação que inclui uma missão – o


Reino de justiça e de paz: ide e baptizai, é a vossa
vocação – banhai a terra, envolvei-a no amor, na
fé e na esperança em Cristo Ressuscitado.
Por isso vocação não é só para alguns espe-
ciais. É para todos (povo escolhido, chamado a
ser Corpo de Cristo) e para cada um (chamado
a ser membro vivo, talento e dom para o bem de
todos).
O homem torna-se humano quando ouve a
«voz», o apelo interior e exterior a humanizar-se.
O cristão ouve na oração e no discernimento dos
sinais dos tempos, por dentro e por fora, o apelo
a construir o Reino. Segue-Me.
As próximas páginas propõem algumas medi-
tações e exemplos que possam servir de estímulo
a encontrar o caminho próprio que tendo sempre
muito de comum, nunca se confunde, nem copia,
mas é único, pessoal e intransmissível, fruto de
relação interpessoal, fruto do Espírito Santo.
Chamamento na liberdade, apelo à libertação.
E aí eis a questão:
Todos são chamados mas nem todos são «esco-
lhidos», isto é, nem todos respondem em liberda-
de e estabelecem a aliança. Há que pedir a Deus a
graça da liberdade e da fidelidade na resposta que
nos constitui como escolhidos.
Nem simples, nem complicado
O caso de Mateus (Mt 9, 9)

Esta cena que Mateus conta, como resumo da


história da sua vocação, é impressionante. Parece
tão fácil e tão rápido. Estava ele sentado à sua
secretária a trabalhar, Jesus passa e diz-lhe: Segue-
-Me! E ele, levantando-se, segue-O. Pronto. Tão
simples como isso. Que história estará aqui por
detrás?! O que habitualmente vemos é que as op-
ções são tantas vezes fruto de luta, levam tempo,
há ocasiões de confusão, hipóteses, medos, etc...
até que lá vem o momento do «clic» onde tudo se
clarifica e ilumina.
Outros casos parecem logo lúcidos e decididos
rapidamente! Mas depois lá virá – sabe-se – algu-
ma experiência de luta e de purificação dos desejos
e motivações. É a vida que é complicada ou somos
nós que a complicamos? De qualquer modo que
seja, Cristo vem descomplicar-nos. Não tenha-
mos inveja de Mateus que teve certamente o seu
processo. A vocação não é toque mágico! A sua
profissão era bem mal-vista na época: cobrador de
impostos. Mas o chamamento – segue-Me – não
escolhe profissões. Escolhe corações.
92 Vocação e Vocações Pessoais

Aquele que está agarrado ao seu trabalho no


campo ou na cidade, o que está na sua banca de
oficina, ou com os seus livros de estudo... precisa
é de desejar algo mais, ter um ideal grande. Se está
«satisfeito» e agarrado, tem aí a sua primeira com-
plicação. Está preso e isso torna-o surdo. E tudo
o que o chamar e desafiar produz conflito. Mas
se quer mais... está pronto a tudo largar. Mateus
sabia bem que viria o Messias, desejava-O, mas
teve de se sentir amado, apreciado por Ele. Nin-
guém segue o que não ama. Quem está instalado e
à defesa não pode crescer.
O que complica a vida é aquilo que nos pren-
de, aquilo a que nos agarramos buscando segu-
rança. O que nos complica as respostas é a falta de
objectivos. Resulta, pois, que ouvir e seguir a voz
de Deus exige de nós descomplicar a vida, hoje tão
cheia de sobre-posições, e clarificar (objectivar) o
que vai no coração de cada um. E Ele continua a
dizer: Segue-Me.
Encontrar o nosso verdadeiro Nome
João, André, Pedro... (Jo 1, 36-41)

Precisamos de quem nos aponte o Caminho...


Mas é o contacto pessoal com Cristo que nos faz
descobrir o nosso Nome.
João Baptista era um homem atento aos ou-
tros, pronto a anunciar a verdade que vê e a pro-
mover o futuro de cada um: um autêntico Profe-
ta. Viu passar Jesus e apontou-O aos seus: «Vai ali
o Cordeiro de Deus». Esta expressão fortíssima
era como se dissesse: o teu libertador, aquele por
quem sonhas, quem tem a chave da tua vida! «En-
tão, dois dos seus discípulos seguiram Jesus».
Imaginemos a cena... Aqui começa a longa his-
tória de amizade. Jesus volta-Se: «– Que buscais?»
Pois só quem procura encontra, e um homem sem
desejo não é nada. Eles, de surpresa, responderam
– e bem!: «– Onde moras?» Isto é: como vives,
quem és, que nos ofereces? E, sabiamente, Jesus
não responde com nenhum discurso, mas com um
convite a experimentar: «Vinde ver», arrisquem.
(Aliás só O conhece quem O segue). «Eles foram e
passaram lá o dia todo». E não só isso... vinham de
tal modo que «um deles, André, levou logo lá o seu
94 Vocação e Vocações Pessoais

irmão Simão»; e depois outros se seguiram. O en-


contro de Simão foi tal que veio com um nome: Pe-
dra. É que a relação pessoal com Cristo dá-nos uma
missão – um nome novo! Neste caso, que ele fosse
«fundamento». Ora, é aqui que é preciso chegar na
história de uma vocação: ao nosso verdadeiro Nome.
Tudo isto começou com aquele apontar que
não foi imposição, nem empurrão indiscreto,
nem muito menos manipulação. São precisos ho-
mens livres que chamem os outros a arrancar sem
se intrometerem. Mas alguns, por falta de sabedo-
ria e humildade, fazem com que se fique a olhar
para o dedo deles em vez da direcção apontada.
Somos chamados para, por nossa vez, chamar.
Assim começou o primeiro grupo e a Igreja,
numa longa cadeia de chamados. Hoje faz falta
quem venha ao encontro do nosso querer profun-
do e lhe abra o caminho, o resto é com o Senhor.
Diz S. Paulo aos Romanos: como vão aderir se
não ouvirem o apelo? E como podem ouvir se
ninguém anunciar? Se já ouvi, porque não sigo?
Se sigo, porque não chamo?
Livrai-nos, Senhor, dos «zelosos» que querem
impor aos novos as «suas vocações», como dos
«respeitadores» que nem disso falam. Mas dai-
-nos a sabedoria do velho Heli que soube criar as
condições para pôr o jovem Samuel em diálogo
aberto com o seu Senhor (1 Sam 3, 9).
Temos o direito de ser felizes
Deus também o quer, mas há muitos enganos!
Um jovem rico (Mt 19, 16-30)

«Se queres ser perfeito... deixa tudo... e segue-


-Me!»
Este apelo de Jesus, directo, sem mais modela-
ção, tem incomodado muita gente de há quase dois
mil anos para cá. Note-se que o apelo é uma res-
posta que parece ir ao encontro de um desejo, com
toda a liberdade: «Se queres...». Mas a sequência do
texto não é menos incómoda: «o jovem voltou para
casa triste, pois tinha muitos bens».
Que pretendia ele? Quantos não têm esboçado
igual desejo e, contudo, parece que o peso das coi-
sas e das situações bloqueia a liberdade e a alegria,
deixando-os a revolver-se mais sós entre ideias
confusas e medos.
Porque tememos? Porque não seguimos? Jesus
diz: dá tudo e terás um tesouro nos céus e já aqui.
Será porque não se vê? Mas todos gostamos de
boas trocas.
Importa considerar dois aspectos. Primeiro,
Jesus, que não dá respostas teóricas, também não
pede teorias, nem sequer apenas algumas práticas
96 Vocação e Vocações Pessoais

que se podiam tornar num alibi farisaico de uma


perfeição à nossa moda. Era a primeira coisa que o
rapaz precisava entender. O Senhor pede que O si-
gamos a Ele, como pessoa e não teoria, sem condi-
ções, porque a perfeição, afinal, é o abandono-risco
de amor n’Aquele que nos merece confiança.
É preciso vê-Lo como Alguém que vale mais
que tudo; tê-Lo como Salvador único, como pé-
rola ou tesouro de que também fala a parábola de
Mateus 13, 45-46, pelo qual o homem, alegre-
mente, deixa tudo, vende tudo.
Temos esta imagem de Cristo? Quem é Ele
para ti?
O segundo aspecto tem a ver com a nossa li-
berdade interior. Que dependência tenho daquilo
que não é prioridade? Esta liberdade é o contrário
da «riqueza» denunciada no Evangelho: «Como
é difícil um rico entrar...», comentou Jesus. É
preciso exercício de ir largando amarras e fazen-
do escolhas, mas não é só cumprir por fora, nem
voluntarismos. É doação, aventura, amor, isto é,
Graça, que ao homem sozinho não é possível,
continua Jesus a explicar.
Se a Igreja e a família não nos ensinam – fa-
zendo experimentar – a alegria de prescindir mais
que consumir e de dar mais que receber, não é
possível.
Num mundo onde tudo é busca de seguranças
Temos o direito de ser felizes 97

e onde vale mais o ter que o ser, a vocação parece


uma violência ou uma fatalidade imposta a alguns.
Hoje, em muitos casos, a grande dificuldade em
Seguir vem até dos próprios pais que não só pare-
cem donos dos filhos como incutem falsas noções
de felicidade. Mas Felicidade não é facilidade.
«Que vale ao homem ganhar o mundo inteiro
se com isso perde a sua alma», o seu ser livre, a sua
capacidade de amar, a sua verdadeira vida? (Mt
16, 26).
Não sabemos o que aconteceu depois com o
jovem rico. Sabemos, sim, que a interpelação de
Jesus deve permanecer como um teste à maturi-
dade dos nossos desejos e das nossas relações; não
como um peso impossível, mas um desafio que
faz abrir os olhos e maturar. O que está em causa
é a nossa maneira de estar no mundo em liberda-
de criativa que não se alcança sem visão de con-
junto e sem capacidade de rotura. Jesus veio tirar
o medo e a tristeza, bem como superar a noção
de «perfeição» que anda ligada a eles. A vocação
não é o desejo de ser perfeitinho, cumpridor, sem
realismo e sem futuro. Também não é passar para
o clube dos «bons», num mundo maniqueu.
A vocação amadurecida é querer segui-Lo
conscientes das nossas imperfeições, porque Ele
nos olha, assim, cheio de amor, como diz a versão
de S. Marcos (9, 21) desta mesma cena.
Da agonia à visão: o caso de Paulo
Deus aproveita as nossas contradições, mas é preciso
«desmontar os nossos esquemas» (Act 9, 1-23)

Perseguir – Seguir – Prosseguir.


Com estes três verbos se pode resumir o itine-
rário espiritual de S. Paulo. Saulo era um jovem
activo, judeu convicto que em nome da sua ver-
dade (e de algo mais do seu «ego») perseguia os
cristãos como autêntico «ponta de lança». Mas,
um belo dia, na Estrada de Damasco... – e há
sempre um dia destes na vida de cada um! – caiu
abaixo da sua auto-suficiência. Houve uma per-
gunta que o fez parar: Porque Me persegues? Tal
como quando a consciência nos adverte e nos faz
essas perguntas óbvias que a todo custo queremos
evitar, mas nos põem em questão: – Que andas,
no fundo, a fazer? Já pensaste bem na vida? Afi-
nal, porquê? Para quê?... E Paulo, naquele mo-
mento, perde «o seu norte». Mas logo, já mais
humilde, responde: Quem és tu? Que devo fazer
então? E eis que surge um tempo de confusão e
de luta interior que o encontro com alguém mais
experiente, um «director espiritual», por exemplo,
pode clarificar e objectivar. No caso de Paulo, foi
Da agonia à visão: o caso de Paulo 99

Ananias que o fez «recobrar a vista», como diz o


texto. Deus, que pode «fazer das pedras filhos de
Abraão», faz de Saulos de Tarso S. Paulos de todo
o mundo. De perseguidores, seguidores.
Mais vale perseguir e ser contra, ter uma razão
e opor-se do que ser amorfo por comodismo,
falsamente desinteressado ou mero seguidor
sem decisão. Paulo não conhecia Cristo-vivo
e perseguia aqueles que, para ele, seguiam um
morto condenado. Mas quando se fez luz e Viu
(entendeu) Cristo presente (vivo) nesses irmãos,
Paulo «desmonta». Tudo muda e, agora, há que
prosseguir a sua obra: «Para mim viver é Cristo! E
se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa Fé!». Aí o
temos, de novo, percorrendo as Estradas da Vida
a levar a Boa Nova: «Ai de mim se não evangeli-
zar!». É desta massa e com estas contradições que
se fazem os apóstolos.
É compreensível que muitos jovens ataquem a
Igreja onde não vêem vida, e não encontrem nela
a libertação, mesmo em nome das suas noções de
justiça e de verdade.
Perguntemos também a cada um: Que perse-
gues? De que é que andas atrás na tua vida, nas
tuas lutas, nos teus estudos e divertimentos, nas
tuas amizades?... E é possível que num momento
de confronto ou de despojamento de tantos artifí-
cios e de tantas ideias feitas com que nos andamos
100 Vocação e Vocações Pessoais

a enganar ou a defender, nos caiam as «escamas


dos olhos» e, então, se faça luz. É que, como
S. Paulo descobriu, «Quando sou fraco é que sou
forte!». E não há mais que temer esse passo de
entrega: «Sei em quem pus a minha confiança».
Entender os sinais
(e a «Voz») de Deus
O discernimento em Inácio de Loiola (E.E., 91-98)

A figura que nos servirá de reflexão é Santo


Inácio de Loiola.
Inácio não foi, como Paulo, um perseguidor.
A sua atitude na vida era mais próxima do que,
actualmente, chamaríamos um «não praticante»;
alguém que anda longe destas coisas de Deus,
muito mais pronto a responder às honras e glórias
da cavalaria... atento sim, mas às coisas munda-
nas.
Um dia, não caiu do cavalo como Paulo, mas
partiu uma perna numa batalha. E, nessa para-
gem forçada, começou a dar atenção a outras
coisas. E lendo a vida de Cristo e dos Santos, por
não haver outra coisa a seu gosto, dá-se conta de
novos apelos e interpelações.
Começa então a história de uma relação que
desabrochará, aos poucos, e se irá concretizando...
E, mais tarde, no seu livrinho dos Exercícios Es-
pirituais deixa as pegadas bem vincadas. Podemos
seguir esse percurso na meditação central a que ele
chamou Meditação do Reino ou do chamamento
102 Vocação e Vocações Pessoais

do Rei. Aí se diz ao exercitante que, «vendo com


a vista imaginativa Cristo que prega, peça a graça
de não ser surdo ao seu chamamento, mas pronto
e diligente para seguir a sua vontade». Ora, a sua
vontade «é conquistar toda a terra» para o Pai,
para o bem. E como seria «indigno cavaleiro»
quem não respondesse à altura!
Foi esta a vida de Inácio: dar resposta, dis-
cernindo cada momento. Mas isso precisou de
clarificações:
1) A Vocação é fruto de uma relação entre
pessoas, nasce e toma forma num diálogo aberto.
Não se trata de uma descoberta teórica de uma
predestinação, nem de um voluntarismo que ten-
ta pôr em prática uma ideia própria.
2) A Pro-posta de Deus pede Resposta do
homem. E a relação que se produz faz amigos no
mesmo compromisso e missão.
Tornando ao texto de Inácio, o Rei diz: a
minha vontade é levar a fé e a justiça a todos,
portanto, quem quiser vir comigo há-de comer
como eu, vestir como eu... trabalhar comigo,
para que seguindo-Me na pena, também Me siga
na glória.
A Vocação é, pois, tornar-se companheiro,
«andar comigo nas» alegrias e trabalhos... Não é
uma atitude de busca isolada, mas Viver-com. É
uma experiência de amizade, onde vão caindo as
Entender os sinais (e a «Voz») de Deus 103

condições, onde vai crescendo a intimidade, onde


cada um dá e recebe e a Missão é a mesma.
3) Que significa para ele Seguir? Santo Inácio
usa a expressão «ter parte comigo nos trabalhos
e na vitória». E a partir desta meditação dá um
conselho ao iniciar todas as outras: «Pedir conhe-
cimento interno (isto é, intimidade bastante e
sintonia), do Senhor que por mim (é pessoal!) Se
fez homem, para que mais O Ame e O Siga».
É que ninguém segue o que não ama; e nin-
guém ama o que não conhece.
Que fazer nas horas difíceis?
As tentações de adiar, duvidar, presumir...
(Lc 9, 57-10, 6)

No final do capítulo 9 do Evangelho de S. Lu-


cas narram-se três encontros com Jesus: tão rápi-
dos como fortes, mas cheios de mensagem.
Há alguém que se aproxima e diz: «Seguir-Te-
-ei para onde quer que fores». E Jesus, certamente
vendo nele a presunção, corta secamente: «As
raposas têm as suas tocas..., o Filho do Homem
não tem onde repousar a cabeça». Na cena se-
guinte é o próprio Senhor que interpela outro:
«Segue-me». Mas esse começa a adiar, a propor
desculpas: «Deixa-me ir primeiro» fazer isto, aca-
bar aquilo... Mas Jesus não pactua e diz-lhe: «Que
os mortos enterrem os mortos; tu vai anunciar o
Reino». Isto é: não confundas as prioridades, nem
te confundas a ti; o urgente pode não ser o mais
importante nem sequer o necessário. Tu, parte!
Na terceira cena é outro que se propõe: «Se-
guir-te-ei, mas... deixa-me ir primeiro despe-
dir...». Este já não vem com pretensas obrigações,
mas cedências a certos afectos que produzem
hesitação e prisão. «Quem deita a mão ao arado e
Que fazer nas horas difíceis? 105

olha para trás, não é apto para o Reino», responde


Jesus.
Ora aí temos: a) presunção que depois não
aguenta o realismo da vida, nem o despojamen-
to; b) tentação de adiar por razões que parecem
importantes; c) quebra e hesitação por afectos não
purificados nem ordenados.
Jesus bem sabe que somos assim. Mas a voca-
ção é, antes de tudo, uma Graça que Ele dá. E en-
tão não resta mais do que confiar e lançar-se, por-
que Ele não faltará. E nós, conscientes dos nossos
limites e tentações, não vamos pôr a confiança em
nós próprios, nem iniciaremos o discernimento a
partir dos nossos interesses e mentalidades.
Na minha vida há escuta, discernimento, cora-
gem?
É curioso que logo a seguir a estes encontros
desencontros, S. Lucas começa o capítulo 10 com
o envio dos 72. Assim: «Depois disto, Jesus desig-
nou (isto é, escolheu e chamou) outros setenta e
dois e enviou-os à sua frente», dizendo sem mais:
«Ide», sem bagagem, sem apoios, levar a paz a
quem for capaz de a acolher.
E se assim foi, porque não nós? Estou instala-
do? Adio as decisões? Hesito? Mas é o Senhor que
dá a força e a capacidade para trabalhar na «messe
que é grande, mas com poucos operários», como
diz o texto logo a seguir.
106 Vocação e Vocações Pessoais

Não se trata de não ter dificuldades. Trata-se


de estabelecer esse encontro de amigos que me
salva pondo-me a salvar outros.
Vocação não é para os «bons»,
é para os amigos
E cada um do seu modo: Pedro e João... (Jo 21, 15-19)

Certo dia, Jesus perguntou a Pedro: «Quem


dizem os homens que Eu sou?... E tu, que dizes?»
(Mt 16, 13-16). Era uma pergunta teórica, di-
rigida à inteligência e à perspicácia. Nem todos
faziam a mesma ideia de Jesus, mas Pedro, esse,
respondeu bem: «Tu és o Messias, o Salvador».
Já era uma grande graça tê-lo identificado e ser
capaz de o dizer.
Mas era ainda uma experiência superficial,
«colada com cuspo»; ele nem sabia bem o que
dizia. Tanto que pouco tempo depois já Pedro
negava o Senhor três vezes: «Não sei quem é,
nunca o vi!» (Mt 26, 70-74).
Veio então a grande crise. Pelo lado de Cristo,
o drama e o «falhanço» da cruz.
Pelo lado de Pedro, o confronto consigo mes-
mo: a tomada de consciência da sua fraqueza, o
arrependimento, a dor.
Mas eis que uma segunda vez Jesus se aproxi-
ma de Pedro e lhe põe de novo a questão. Agora
já não lhe pede nada de cerebral; é uma questão
108 Vocação e Vocações Pessoais

de amor: «Pedro, tu amas-Me?... Tu és meu ami-


go?... Tu amas-Me mais do que estes?». Assim,
três vezes.
Pedro deve ter-se sentido fulminado. Para isto
não havia resposta teórica, nem evasão possível, e
por isso o seu coração foi direito ao ponto – hu-
mildemente: «Senhor, Tu sabes que sou teu ami-
go, Tu sabes que Te amo...». Também sabes que
Te neguei!
Pronto. Estava feito o percurso do amadure-
cimento. Estava purificado o sujeito e clarificado
o objecto. E o Senhor diz-lhe: «Então, Pedro, vai
ter com os meus irmãos, trata deles, serve-os». É
que amar significa este agir efectivo: descobrir a
quem servir e pôr os meios para o fazer. Já não é
teoria, nem só bons desejos; mas já é a afectivida-
de feita efectividade, traduzida em gestos bons e
eficazes.
Grande é esta graça e este caminho por onde o
Senhor nos quer levar!
Pedro tem ainda uma leve recaída de um
momento (somos assim!) ao querer saber, curio-
samente, do destino e do caminho de João. Mas
o Senhor sempre atento a recuperar-nos (e por
isso não tenhamos medo ...), diz-lhe: «Pedro, isso
é problema dele, não te percas com outras coisas;
tu SEGUE-ME!».
Na crise, na desolação
não fazer mudanças
A sabedoria na luz e nas trevas (Jo 6, 68; 8, 12)

Quem nos mostra o caminho? A quem ire-


mos? Quem nos salva?... Quem me garante que
vale a pena?
Quantos não dão este grito? Individualmente
ou em grupo, crentes e não crentes; alguém que
eu conheço ou eu próprio, jovens aparentemente
bem ou aqueles que sofrem a opressão (como em
1989, na grande Praça de Pequim...)!
O grito vem por não se saber (não ver) como
sair de uma situação concreta, pontual, ou cor-
respondendo a algo mais profundo: o futuro, o
sentido da vida. Que fazer? Como fazer? A quem
seguir? O mesmo grito num panorama variado.
Escuridão, confusão, desolação, cansaço...
ou simples querer ir mais longe na santidade! O
desgaste e revolta pelo vazio de tantas tentativas
falhadas, ou o desencanto, o medo, ou o choque
de uma dada situação em que o mundo parece
mal feito e não acerta com o que desejámos e so-
nhámos!
110 Vocação e Vocações Pessoais

À nossa volta, tanto sofrimento, injustiça, vio-


lência e nenhuma explicação cabal, quanto mais
uma solução!
E contudo, queremos ser felizes, experimentar
a liberdade, conquistar um lugar e uma vida com
sentido.
Naquele dia, quando Jesus falava da cruz mui-
tos O abandonaram: essa solução também não!
E Jesus disse aos amigos, confundidos: tam-
bém vós Me quereis abandonar? E Pedro respon-
deu:
– «A quem iremos, Senhor? Só Tu tens palavras
de vida eterna» (Jo 6, 68).
Embora na escuridão e dúvida, era já uma
certeza salvadora. Uma certeza na fé, fruto de um
risco com que se tem de responder aos sinais ine-
quívocos de amizade por parte de Jesus.
Jesus dá tanto e promove tanto a nossa liber-
dade que outro seguimento não seria nem lúcido
nem digno: Quem Me segue não anda nas trevas
(Jo 8, 12). Não há outra luz do mundo!
Amar como Ele amou, dissipa a escuridão.
Lutar pela verdade, com Ele, dá sentido à minha
vida e ilumina o mundo.
Porque resisto e tantos resistem, insistindo em
luzes já falidas?
E é o próprio testemunho dos que se lançaram
corajosamente que nos ensina: ou O sigo ou ando
Na crise, na desolação não fazer mudanças 111

nas trevas. É esta a alternativa e é a própria vida


que o demonstra.
Dizia Santo Inácio nas regras para o discerni-
mento dos espíritos: em momentos de desolação
nunca se fazem mudanças.
O preço da liberdade
«Deixar tudo»... é transfigurar tudo...
(Mt 4, 18-20; Mc 1, 16-18; Lc 5, 1-11)

Imaginemos esta cena cheia de poesia, pró-


pria de uma tarde ainda de Verão. Jesus passeia
ao longo do mar. Estão dois irmãos que se pre-
param para pescar. Algum fascínio mútuo há...
e, assim sem mais, chama-os; e ainda não havia
tempo de trocar palavras, encontram outros dois
irmãos, com o pai, que consertam as redes. «Si-
gam-Me, que farei de vós pescadores de homens!
E eles, deixando as redes, o barco e o pai, segui-
ram-No».
É Jesus, pescador, que os pesca a eles: arranca-
-os dos seus mares naturais, das habituais profis-
sões, para os fazer experimentar outras águas, ou-
tras medidas... para fazer deles «pescadores» que
buscando outras pessoas as arranquem à medio-
cridade, ao sofrimento ou às grandezas comuns, e
lhes abram novos horizontes.
Ao deixar redes, barco e pai, não perdem, mas
encontram novas, mais alargadas e profundas di-
mensões do que eles próprios são e fazem. «Novas
redes», novo trabalho: uma profissão redimen-
O preço da liberdade 113

sionada, de alcance mais vasto e mais humano.


«Novo barco», novas viagens: uma maneira de
estar e se mover de horizontes rasgados. «Novo
pai», novas relações: uma família humana de la-
ços sem raça nem fronteira, assente no amor de
Deus.
Jesus pesca-nos para redimensionar e transfi-
gurar aquilo que somos: médicos das almas, enge-
nheiros do reino, pastores do povo, semeadores da
palavra, agricultores da vida, advogados do espí-
rito, porta-vozes dos sem-voz, propagandistas da
paz, atletas da justiça, projectistas da bem-aven-
turança, químicos da esperança, administradores
da graça, economistas da salvação, educadores de
virtudes, artistas da perfeição interior, pedreiros
da solidariedade, arquitectos do sentido, oleiros
da personalidade, pescadores do humano...
A vocação não vem destruir gostos e aptidões;
vem lançar-nos no outro lado, mais vasto e mais
profundo, da Vida.
Pedro e André, Tiago e João estão sentados na
praia do seu cantinho, sonhando o futuro. Jesus
passa. E abre-lhes os olhos e o coração para en-
contrarem o seu ofício à medida de Deus e da sua
criação.
Retirar-se para balanço
No fundo, quem «perde» ganha... quem pensa
que ganha, perde – Mt 16, 24-27 (Lc 9, 23-27)

«Que aproveita ao homem ganhar o mundo


inteiro se vier a perder a sua alma?»
Esta é a grande interrogação da vida. Nós, os
homens, fazemos, muitas vezes, mal as contas.
Nem sempre é fácil equilibrar o «deve» e o «ha-
ver», equilibrar a cabeça e o coração, os sentimen-
tos e as opções... Como avaliar os pesos nos pratos
da balança? Por exemplo:
a) apetece-me algo; sinto prazer e alguma
realização nessa obra em que ando metido, mas,
muitas vezes, isso tudo me deixa um amargo na
boca... uma insatisfação, um notar que falta qual-
quer coisa mais. Por outro lado: decido-me a fazer
certa coisa que até pode custar, como enfrentar
uma verdade dura ou ir visitar um doente que me
repugna, mas chego a casa cheio de paz e fortale-
cido na vontade e na maturidade.
Qual é o prato da balança que pesa (vale)
mais? Qual a medida, já que tantas vezes as apa-
rências iludem e o superficial se confunde com o
profundo?
Retirar-se para balanço 115

b) outro exemplo: há pessoas que têm tudo


na vida: sorte, dinheiro, etc... e são tão infelizes,
tão sós! E há outras que até têm falta de tudo, ou
perderam o melhor amigo e, contudo, vivem com
sentido e comunicam alegria.
Já dizia S. Paulo aos Romanos: ainda que tenha
tudo, saiba tudo, até as línguas dos anjos(!), se não
amo, não me serve de nada.
E qual é o conselho de Jesus neste Evangelho?
«Quem quiser vir após Mim», isto é, quem
quiser partilhar da minha amizade e experimen-
tar a minha liberdade e a alegria de Deus, atenda
bem a 3 coisas:
1) «renegue-se a si mesmo». Isto é: saia de si.
Não se feche, vire-se para os outros e arrisque
partir a casca deixando medos e defesas. Ponha o
seu centro fora de si, ainda que isso pareça ficar
a perder e trazer insegurança. «Vai ter com o teu
irmão»: é isso que significa «renegar-se».
2) «tome a sua cruz». Isto é: assuma a sua vida
dia a dia, sem rejeitar, mas enfrentando de cara
levantada o que vier. Deus não falha, nem enga-
na! Aceita-te como és. Não te compares. E tira
partido de tudo o que acontece...
3) «e siga-Me». Isto é: não se pode ficar parado
porque cada homem tem uma missão, uma obra a
realizar, ao lado de Cristo, que ninguém vai fazer
por ele. Levanta-te e vai ter com Ele, já que é essa
116 Vocação e Vocações Pessoais

a tua vocação de «viver fazendo bem...». Ser coe-


rente, ser tu próprio, ainda que te custe a morte.
É assim que se ganha a Vida.
TEXTOS BÍBLICOS

Antigo Testamento

Génesis 12, 1-4 – Vocação de Abraão – «sem saber para


onde ia...»
Êxodo 3, 1-15 – Vocação de Moisés – «vi o sofrimento
do meu povo...»
1 Samuel 3, 3-19 – Vocação de Samuel – «Fala, Se-
nhor...»
1 Samuel 16, 1-13 – Vocação de David – «Deus vê o
coração...»
Judite 8, 30... 9,17 – Vocação de Judite
Ester 4, 12-16 – Vocação de Ester
Isaías 6, 1-8 – Vocação de Isaías – «Eu te envio a procla-
mar...»
Isaías – 43, 1-5
Jeremias 1, 4-9 – Vocação de Jeremias – «Não sei fa-
lar...»
1 Reis 19, 19 – Vocação de Eliseu
Amós 8, 14 – Vocação de Amós «O Senhor disse-me...»
Ezequiel 3, 4 – Vocação de Ezequiel – «Leva-lhes as
minhas palavras...»

Novo Testamento

Mateus 9, 36-38 – Operários necessários à ceifa.


20, 1-16 – Trabalhadores da vinha.
21, 28-32 – Parábola dos filhos.
22, 1-14 – Parábola dos convidados.
118 Vocação e Vocações Pessoais

Marcos 1, 14-20 – Chamamento dos primeiros discípu-


los.
10, 17-27 – O jovem rico.
10, 28-30 – Há que deixar tudo.

Lucas 1, 26-28 – A anunciação.


1, 76-79 – Irás adiante preparar os caminhos.
5, 1-11 – A pesca milagrosa.
9, 57-62 – As condições para seguir Jesus.
10, 1-38 – Missão, alegria, serviço.
14, 25-33 – Renunciar a tudo.

João 1, 35-51 – Vocação dos primeiros discípulos.


6, 68 – A quem iremos?
15, 9-17 – Fui Eu que vos escolhi a vós.
20, 17-18,23 – vai... diz-lhes...
21, 15-19 – Tu segue-me.

Actos 9, 3-6/22, 6-11/26, 13-18 – Vocação de Paulo.

Gálatas 1, 12-16 – Paulo chamado e enviado.


Gálatas 4, 13-15 – Chamados à liberdade e a libertar.
1 Coríntios 1, 1-3 – Chamados pelo Senhor
1 Coríntios 1, 27 – Escolheu os fracos
1 Coríntios 12, 7-12 – Diversidade de talentos
2 Coríntios 5, 17-21 – Ministros da Palavra
2 Tim – 1, 12.21-8 – Viver na confiança, como Soldado
de Cristo.
ÍNDICE

Prefácio ..................................................................... 5

I. Vocação e vocações pessoais .............................. 9

1. Vocação e vocações ........................................ 13


2. O que não é a Vocação .................................. 17
3. Então o que é «ser chamado»? ........................ 20
4. Vocações: revelações (e missão) das dimensões
de Cristo ........................................................ 31
5. O que é então a Vocação? .............................. 42
6. Vocação, Mistério de amor ............................ 55

II. Os segredos de uma escolha pessoal.................. 57

Vocação e vontade de Deus ................................. 59


Vocação e Opção pessoal ..................................... 63
Sinais de Deus .................................................... 70
«A arte de ajudar a discernir» .............................. 75

III. Segue-Me .......................................................... 87

Segue-me............................................................. 89
Nem simples nem complicado ............................ 91
Encontrar o nosso verdadeiro Nome ................... 93
Temos o direito de ser felizes .............................. 95
Da agonia à visão: o caso de Paulo ....................... 98
Entender os sinais ( e a «Voz») de Deus ............... 101
Que fazer nas horas difíceis ................................. 104
120 Vocação e Vocações Pessoais

Vocação não é para os «bons», é para os amigos ... 107


Na crise, na desolação não fazer mudança ........... 109
O preço da liberdade .......................................... 112
Retirar-se para balanço ........................................ 114

Textos bíblicos ............................................................ 117

Índice ..................................................................... 119

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