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FANON E A QUESTÃO COLONIAL1

Fábio Luis Ferreira N. Franco


Gisela Lays dos Santos Oliveira
João Felipe G. M. S. Domiciano
Laura Maria do Val Lanari
Luana Fúncia
Mariana Cavichioli Gomes Almeida
Pedro Ambra
Priscilla Santos de Souza
Renato Libarino Aguilar
Tulio Augusto S. Custódio

Introdução

Frantz Fanon, psiquiatra martiniquense nascido em 1925, tem ascendência tanto negra
quanto branca, dado o contexto de colonização francesa na ilha da Martinica, desde 1635.

Conforme se trabalhará ao longo desta primeira versão de texto de pesquisa, a relevância


de Fanon transborda para além da Psiquiatria, passando também pela questão do debate contra o
racismo e contra a política neocolonial dos países europeus sobre a África no século XX.
Permeiam seus textos as questões da possibilidade de transformação política e, portanto, sobre a
própria potência transformadora da clínica psicanalítica.

Essas suas experiências como negro, morando numa colônia francesa, sua luta na guerra de
emancipação das colônias e até mesmo no exército francês deu a Fanon a dimensão dos efeitos
da colonização na vida das pessoas, especialmente à população negra.

1
Texto apresentado na reunião aberta do LATESFIP em 11/10/2018

1
A título de breve esclarecimento a respeito da biografia de Frantz Fanon, serão trazidos
aqui alguns fatos marcantes de sua trajetória.

Segundo Toro (2016), nos anos de 1940 a frota naval da marinha francesa usa a ilha da
Martinica como base militar. Nesse período os franceses cometeram vários abusos com a
população local e também os trataram de forma racista e opressora. Isso marcou profundamente
a Fanon a ponto de encorajá-lo, aos 18 anos de idade, a lutar na ilha de Dominica contra a
dominação francesa. Depois ingressa no exército francês e em 1944 chega ao posto de Cabo.
Combate contra os nazistas e percebe que somente os soldados brancos foram reconhecidos
pelos feitos nos campos de batalha.

Depois da guerra retorna a Martinica e apoia a causa de Aimé Césaire, um dos ideólogos
da negritude daquela ilha e com quem Fanon teve contato já no liceu em que estudou. “Entre as
décadas de 1950, Césaire publicou o famoso Cahier d’un retour au pays natal (Caderno de um
retorno ao país natal) e Discours sur le Colonialisme (Discurso sobre o Colonialismo, sendo um
dos principais organizadores do Movimento da Négritude” (Durão, 2016, p.103). Fanon é assim
influenciado por suas ideias a respeito das relações hierárquicas no processo colonial.
Após esse período na Martinica, dirige-se a Lion, onde estuda Medicina e se especializa
em Psiquiatria. Nesse processo encontra o médico marxista Francesc de Tosquelles2, que além de
psiquiatra foi um revolucionário que esteve nos campos de batalha e também trouxe importantes
contribuições para a luta antimanicomial. Fanon se influencia também por suas ideias. Luta ainda
contra o fascismo franquista e depois em 1939 é obrigado a se exilar na França.
Em 1941 começa a trabalhar no Hospital Psiquiátrico de Saint Alban e aí assume a
influência dos escritos do psiquiatra alemão Hermann Simon e do francês Jacques Lacan.
Em 1952, Fanon publicou sua obra: “Pele negra, máscaras brancas”. Nessa obra ele lança
mão da psicanálise para explicar os sentimentos de dependência e insuficiência que as pessoas de
raça negra experimentam em um mundo branco, especialmente no que tange ao complexo de
inferioridade, como veremos mais adiante neste texto.

2
Para Ruiz et al (2013) Tosquelles nasce na Catalunha e se forma em Psiquiatra e medicina do
trabalho no Instituto Pere Mata, onde grandes psiquiatras atuaram, como Emilio Mira y Lópes.
Tosquelles,

2
Fanon entrou em contato com as revistas Esprit e Les temps modernes publicações com as
quais mais tarde viria a contribuir, estabelecendo ligações intelectuais com Jean-Paul Sartre e
Simone de Beauvoir. No campo da Filosofia, é influenciado também pela obra de Merleau-
Ponty.
Ele acompanhou igualmente as publicações da Présence Africaine3 desde 1947, em que
foram publicados textos de escritores conceituados.
Em 1953 se dirige para a Argélia, que foi colônia francesa desde 1830, e se torna diretor do
Hospital Psiquiátrico de Blida-Joinville. Posteriormente, se integra à Frente de Libertação
Nacional (FLN) grupo que lutou pela emancipação da Argélia.
No hospital presenciou diversas formas de sofrimento mental decorrentes das mais
diversas formas de tortura praticadas pelo exército francês, cujos relatos estão, em grande parte,
presentes no capítulo do livro “Os Condenados da Terra” a que se fará referência ao longo deste
texto.
Em 1957 foi expulso da Argélia. Parte para Tunes, atual Tunísia, onde passa a fazer parte
do periódico argelino Moudjahid4, utilizado como propaganda independentista da Frente de
Libertação Nacional. Destaque-se que os escritos de Fanon desse período foram colecionados e
publicados depois de sua morte com o título: Pela Revolução Africana5 (1964).6
Em 1960 é diagnosticado com leucemia e vai a URSS se tratar. Ao retornar desse país,
1961 escreve a referida obra “Os condenados da terra”7.
Frantz Fanon morre de leucemia em 6/12/1961 nos EUA. Foi sepultado na Argélia e
reafirma em seu último desejo a defesa de que que não haja dominação de uma pessoa sobre a
outra.

3
O criador da Présence Africaine, Alioune Diop, tornou-se seu amigo pessoal e era importante o
contato entre os dois, sobretudo, devido ao incentivo que Diop fornecia às artes e literatura
(Durão, 2016, p. 104)
4
Muyahid significa “guerreiro santo”.
5
http://www.buala.org/pt/autor/frantz-fanon
6
Em 1958 e 1959 se torna embaixador em Gana do governo provisório da Argélia e aí entra em
contato com lideranças africanas do anti-colonialismo.
7
Este livro oferece uma perspectiva encarnada sobre o sofrimento padecido pela população
africana e sobre a extrema crueldade da cultura Ocidental diante de outras culturas (Toro, 2016,
p. 35)

3
As suas ideias estimularam obras influentes no pensamento político e social8, da teoria da
literatura, aos estudos culturais, passando pela filosofia.
A reação ao abusos dos colonizadores e a busca pela liberdade são temas centrais em
Fanon. Nesse sentido, “um ganho em Fanon foi perceber que a violência funcionava como uma
catarse, pois era uma maneira do colonizado se libertar imediatamente de seu medo, dos seus
preconceitos e, sobretudo, do sentimento de inferioridade historicamente imposto.” (Durão,
2016, p. 105)
É mister dizer que em Fanon há a indagação acerca da violência e não só sobre o modo
como ela impacta sobre os povos colonizados, mas como ela própria pode ser ou não utilizada
como instrumento de resistência. No livro Os Condenados da Terra há um capítulo dedicado ao
tema intitulado “Guerra Colonial e Distúrbios Mentais”, com a descrição de casos clínicos no
contexto da Guerra de Libertação Nacional na Argélia, uma explicitação da relação premente
estabelecida pelo autor entre Psicologia e Política.

Por que Fanon?

A) Fanon – entre o universal e o particular

A obra de Frantz Fanon deve ser pensada à luz de um contexto de esvaziamento de


diversos setores e perspectivas teóricas e políticas sobre lugar da identidades no cerne das
questões contemporâneas. Por isso, se tomada a partir das chamadas "guerras identitárias", esse
conjunto teórico poderia ser um "remédio”, como a proposta da noção de pharmakon, em Platão,
ou seja, um antídoto e um veneno. "Veneno" para pensamento fechado nas circunstâncias
teóricas do mundo europeu, pois o autor martiniquês tornou-se uma das principais referências
para o pensamento negro diaspórico e africano e também um dos principais intelectuais do
pensamento decolonial contemporâneo. Nesse sentido, as reflexões de Fanon ajudam a sublinhar

8
Deixou livros fundamentais sobre a diáspora africana: Os Condenados da Terra (1961), Peles
Negras, Máscaras Brancas (1952), Sociologie d’une revolution: l’an V de la révolution
algérieene (1959). Postumamente editou-se uma antologia com os seus escritos intitulada Pour
la révolution africaine (1964).

4
o fato de que o racismo é antes de tudo uma racionalidade que permeia diversos estratos da vida
social. O autor, portanto, partiu da questão do apagamento da identidade negra na constituição
dos sujeitos em detrimento de um universal europeu.
Por sua vez, a obra fanoniana é também um "antídoto", pois foi ele quem mais
frontalmente apostou em saídas universalistas — tanto tática quanto epistemologicamente —
para os impasses do racismo e de sua associação com a dominação econômica.
Sob outra perspectiva, uma leitura mais atenta mostra que essa oposição se desfaz na
medida em que compreendemos que o pensamento de Fanon não se pauta por um humanismo
reformista inclusivista, tampouco por um acirramento identitário que tem em um retorno a
origens pré-coloniais seu objetivo último. Trata-se, antes de tudo, de um universalismo dialético.

A influência hegeliana de Fanon e — mais tardiamente — marxista coloca-nos face a um


horizonte de lutas por reconhecimento cuja verdade pode apenas dar-se a ver na medida em que é
tomada como um momento do processo e não sua finalidade. Mbembe afirmará que, para Fanon,
está em jogo "fazer irromper um sujeito humano inédito, capaz de habitar o mundo e de o
partilhar de modo a que as possibilidades de comunicação e de reciprocidade, sem as quais não
poderiam existir nem a dialética do reconhecimento, nem a linguagem humana, sejam
restauradas." (Mbembe, 2011) Mas tal humano inédito não possui uma forma acabada ou
almejada, na medida em que

A este gigantesco labor chamava Fanon a “saída da grande noite”, a


“libertação”, o “renascimento”, a “restituição”, a “substituição”, o
“surgimento”, a “emergência”, a “desordem absoluta” ou ainda “caminhar todo
tempo, dia e noite”, “erguer o homem novo”, “encontrar uma outra coisa”,
forjar um sujeito humano novo emergindo inteiro da “argamassa do sangue e
da cólera”, livre do fardo da raça e desembaraçado dos atributos de coisa. Um
sujeito quase-indefinível, sempre em remanescente porque nunca acabado, tal
desvio que resiste à lei, mesmo a qualquer limite. (Mbembe, 2011)

Um outro exemplo desse mesmo tipo de lógica está em jogo na conferência Raça e
Cultura, proferida em 1956. Nela, Fanon busca apresentar os traços principais dos mecanismos

5
do chamado racismo cultural, associando diretamente toda e qualquer situação colonial a um
exercício de racismo. Mais ainda, o autor buscará desenvolver etapas possíveis para a luta e
emancipação dessa condição. Teríamos, em primeiro lugar, a situação colonial propriamente
dita, da qual a cultura local padece e agoniza. Em seguida, haveria uma espécie de redescoberta
jubilosa tanto do conteúdo quanto do próprio processo de apagamento dessa cultura local, na
qual ela é não apenas supervalorizada, mas colocada como única possível ou aceita

"Reencontrando a tradição, vivendo-a como mecanismo de defesa, como


símbolo de pureza, como salvação, o desculturado dá a impressão de que a
mediação se vinga substancializando-se. Este refluxo para posições arcaicas
sem relação com o desenvolvimento técnico é paradoxal. [...] É neste momento
que se faz menção do caráter irrecuperável dos inferiorizados. Os médicos
árabes dormem no chão, cospem em qualquer lado, etc. Os intelectuais negros
consultam o bruxo antes de tomar uma decisão, etc." (Fanon, 1956)

Haveria em seguida para Fanon uma tentativa desesperada do ocupante, de tentar


reinscrever as teses clássicas sobre o racismo e a inferioridade, mas que passariam a ser sem
efeito para a população. O racismo torna-se ineficaz. "Fala-se de fanatismo, de atitudes
primitivas perante a morte, mas, uma vez mais, o mecanismo doravante deitado por terra já não
responde." (Fanon, 1956)
Germinada a inefetividade do racismo que tenta se exercer no momento paradoxal de
resgate e valorização da cultura tradicional, observamos brotar junto ao ocupante uma ausência
de compreensão da situação. E dirá Fanon:

O fim do racismo começa com uma súbita incompreensão.

A cultura espasmada e rígida do ocupante, liberta, oferece-se finalmente à


cultura do povo tornado realmente irmão. As duas culturas podem enfrentar-se,
enriquecer-se.

6
Em conclusão, a universalidade reside nesta decisão de assumir o relativismo
recíproco de culturas diferentes, uma vez excluído irreversivelmente o estatuto
colonial. (Fanon, 1956)

Temos aí novamente o universalismo como um devir dialético que tem como um de seus
momentos — mas não de sua finalidade — a afirmação identitária.

Bibliografia de referência:
- Achille Mbembe: Crítica da Razão Negra; "A Universalidade em Frantz Fanon";
"Políticas da Inimizade" (cap. 4: Farmácia de Fanon).

B) “Complexo de inferioridade” e Alienação

Trata-se aqui de analisar como o complexo de inferioridade surge em “Pele negra,


máscaras brancas” de Frantz Fanon e quais possíveis diálogos podem ser estabelecidos com
conceitos psicanalíticos. Em referida obra, percebe-se a intenção do autor em buscar na
psicanálise elementos que o possibilite pensar a relação entre o negro e o branco tendo em vista o
objetivo de sua praxe, qual seja, tornar o homem livre. Para trabalhar o complexo de
inferioridade em sua obra, Fanon aponta, logo na Introdução, algo que denomina como “duplo
narcisismo”, que considera o branco “fechado em sua brancura” e o “negro fechado em sua
negrura”, tornando-se necessário estudar as relações possíveis entre esses dois circuitos, sem
perder de vista a constatação de que, em tais relações, o negro frequentemente experimenta o
impasse de, a todo custo, querer demonstrar seu valor ao branco. Assim, um dos pontos a ser
desenvolvido na nossa pesquisa é em que medida podemos falar de um fechamento do negro em
si mesmo, de um narcisismo do negro.
Fanon refere-se expressamente à psicanálise, seja ao integrar o termo “narcisismo”,
seja tratando a psicanálise como aquela que oferecerá os mecanismos para que haja um retorno
às sequelas infantis que contribuem para esse sofrimento. Nesse sentido, Fanon menciona que “a
infelicidade do homem, já dizia Nietzsche, é ter sido criança” (p.28) e que por meio da
interpretação psicanalítica torna-se possível revelar “as anomalias afetivas responsáveis pela

7
estrutura dos complexos”. Diversos complexos são originados dessa relação entre negros e
brancos, como o “complexo de autoridade”, o “complexo de inferioridade” e ainda um complexo
que o autor denominará como “complexo psicoexistencial”. Muito embora tais complexos se
deem de forma muito articulada, a ênfase do autor está no complexo de inferioridade, uma vez
que tal complexo permite pensar as perspectivas de emancipação diante de uma posição inferior
que foi assumida pelo negro.
No âmbito da linguagem, Fanon irá dizer que o “falar” é um existir “para o outro” e,
assim, o autor desenvolve uma abordagem focada na língua do colonizador que é adotada pelo
povo colonizado, sendo que este carrega em si a assunção de uma cultura, o peso da uma
civilização. Interessante que nesse momento o autor irá associar o complexo de inferioridade do
negro “ao sepultamento de sua originalidade cultural”. Por exemplo, um alemão que é visto na
França é visto como portador de uma língua e uma história própria, o que não ocorre com o
negro. O desafio torna-se, portanto, tratar essa questão sem que haja um retorno a um “passado
místico” que rejeita “a atualidade e o devir”.
Para entender o desenho do complexo de inferioridade de Fanon, vale mencionar
suas críticas à Mannoni e à sua abordagem sobre a inferioridade. Alega-se que obra de Mannoni
partiria de um “complexo de dependência” que é rejeitado por Fanon, uma vez que busca seus
fundamentos em um momento anterior ao da colonização. Tal complexo poderia ser sintetizado
pela citação que Fanon faz da obra de Mannoni de que “nem todos os povos estão aptos a ser
colonizados, só o estão aqueles que sentem esta necessidade”. Embora reconheça questões
importantes trabalhadas por Mannoni, como sua ênfase na atitude do homem diante de suas
condições objetivas e históricas, para Fanon, o complexo de inferioridade é apresentado em uma
leitura equivocada.
Conforme Fanon afronta as ideias de Mannoni, ele traz elementos preliminares, mas
essenciais sobre a sua concepção de complexo de inferioridade. O primeiro ponto será uma
oposição frontal ao “complexo de dependência”, ao colocar que “a inferiorização é o correlato
nativo da superiorização europeia”. Segundo Fanon, “precisamos ter a coragem de dizer: é o
racista que cria o inferiorizado”. Outra crítica consiste na constatação de que complexo de
inferioridade é notável mesmo em situações em que o negro é a maioria massiva da população,
como no caso da África do Sul. Se Mannoni refere-se a casos excepcionais, Fanon dirá que tais
casos – o “complexado” para Mannoni – seria justamente aquele que busca ir adiante da

8
“conduta dependente” e se igualar ao europeu. O complexado, o “evoluído” que se descobre “de
repente, rejeitado por uma civilização que ele, no entanto, assimilou”.
Na crítica de Fanon, a abordagem de Mannoni coloca o negro malgaxe em um
impasse, “a opção entre a inferioridade e a dependência” sem considerar que “o malgaxe não
existe mais”, que ele existe com o europeu e que “o branco, chegando a Madagascar, tumultuou
os horizontes e os mecanismos psicológicos. Todo o mundo já o disse, para o negro a alteridade
não é outro negro, é o branco”.
Por fim, busca-se responder ao questionamento que pode ser elaborado da seguinte
forma: se o complexo de inferioridade se dá no contato com o racista, “por que o europeu, o
estrangeiro, não foi jamais considerado como um inimigo”? Para trabalhar essa temática, Fanon
introduz a questão do inconsciente e do desejo de ser branco a partir de um sonho em que um
homem negro, depois de um grande esforço físico, chega a uma sala vazia, e atrás de uma porta
ouve um barulho, hesitando antes de entrar. Enfim toma uma decisão, entra e encontra, nessa
segunda sala, alguns brancos e constata que também é branco.
Sobre esse sonho, Fanon menciona que o paciente sofre de um complexo de inferioridade,
que existe aí um desejo inconsciente do qual é preciso libertá-lo, mas ainda que ele
“vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de inferioridade, em uma
sociedade cuja consistência depende da manutenção desse complexo, em uma sociedade que
afirma a superioridade de uma raça; e que é na medida exata em que esta sociedade lhe causa
dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica”.
Desse trecho é possível concluir que existe uma sociedade que depende da
manutenção desse complexo e que, portanto, há a necessidade de que a ação também se
direcione ao grupo, não apenas ao indivíduo. Ademais, vale lembrar que, para Fanon, o
complexo de inferioridade conta com um fator que é inicialmente econômico e, diante da
constatação de tal complexo em um paciente (conforme feito a partir do sonho acima) a função
do psicanalista é “uma vez esclarecidas as causas”, libertar o paciente para que que se posicione
com relação às estruturas sociais.
Assim, o complexo de inferioridade não poderia estar associada a algo anterior à
colonização, nem ser dissociada da chegada dos europeus que “vão para as colônias porque lá
lhes é possível enriquecer em pouco tempo, que, salvo raras exceções, o colono é um
comerciante, ou melhor, um traficante”, sendo tal elemento essencial para compreender “a

9
psicologia do homem que provoca no autóctone ‘o sentimento de inferioridade’”. Esse ponto
introduz uma temática mais ampla e correlata ao sofrimento psíquico decorrente do complexo da
inferioridade: as questões envolvendo a alienação e as propostas de desalienação do negro.

A partir da influência reconhecida de autores como Sartre, Kiekergaard, Heidegger,


Marx, Lênin, Merleau-Ponty, Freud, Lacroix e Husserl, Fanon desenvolve em seu livro Pele
negra, máscaras brancas, antes intitulado Essai sur la désalienation du Noir – “Ensaio sobre a
desalienação do negro” - o mecanismo da alienação colonial. Em outro livro, Os Condenados da
terra, o autor descreve os mecanismos das alienações dos europeus, do homem branco, como nos
fala Sartre, no prefácio deste livro.
Definição do conceito hegeliano de alienação: “o sujeito se perde e não pode retornar sobre
si mesmo: sofre um ‘desessenciamento’”. Marx “deu uma dimensão incomparavelmente mais
rica ao tema da alienação econômica. A mediação agora é a do trabalho, cujo produto se aliena
do trabalhador e vai somar-se ao capital, que é o outro pólo da relação. A dissociação ainda se
acentua no fetichismo da mercadoria em que o fluxo do trabalho passa, por assim dizer, por uma
‘alienação na alienação’ e nos fluxos monetários que tomaram, de maneira crescente, o lugar dos
fluxos reais na economia capitalista” (p.36). Haveria então uma proposta do grupo de, no futuro,
desenvolver uma intersecção entre tais conceitos e a alienação decorrente da colonização
enquanto processo econômico.9
Influenciado pelo conceito de alienação proposto por Hegel e depois Marx, considerando
suas bases materiais, baseada num processo onde a existência do homem fica apartada de sua
essência, Fanon considera a alienação como a perda objetiva de si, de se autodeterminar devido a
subordinação ao colonialismo. Durante o período de residência e trabalho com o psiquiatra
espanhol François Tosquelles, o martiniquenho pensa o sofrimento psíquico na sua relação com
o colonialismo e a sociedade. Para ele as alienações psíquicas têm origem em uma sociedade que
trabalha contra a humanidade.

9
algumas discussões sobre a alienação em Hegel e Marx no artigo:
http://www.unicap.br/Arte/ler.php?art_cod=492, segundo Paulo Meneses (professor e tradutor de
Hegel).

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"No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma
súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de
inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela interiorização,
ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade". (FANON, 2008, p. 28)
Trazendo uma suposta resposta às consequências da colonização, ao sofrimento da
colonização, Fanon pensa “... que só uma interpretação psicanalítica do problema negro pode
revelar as anomalias afetivas responsáveis pela estrutura dos complexos... para que o indivíduo
possa tender ao universalismo inerente à condição humana.” (FANON, 2008, p.27).
Provocado pela contribuição de Freud, que considera os fatores individuais dentro de uma
ontogenética, Fanon destaca que a alienação do negro não pode ser entendida pela perspectiva
individual, mas analisada através do que ele irá propor como um sociodiagnóstico. Para o autor a
sociedade não escapa das influências humanas e “é pelo homem que a sociedade chega ao ser”
(p.28).
Fanon analisa o impacto do racismo e da colonização nas relações entre negros e brancos -
mistificados e mistificadores - indicando como as relações raciais regem os laços sociais e os
impactos na identidade do negro colonizado como: a vergonha de si mesmo, os complexos de
inferioridade, a fascinação pelo branco e, em última instância, o desejo de se tornar branco.
Recorrendo ao conceito de neurose da psicanálise, Fanon descreve o negro e sua neurose
de inferioridade e, consequentemente, o branco e sua neurose de superioridade, também
nomeado pelo autor como narcisismo e que vê suas bases no seio familiar.
Fanon recupera as primeiras teorias psicanalíticas de Freud e Breuer primeiro para falar
sobre as sucessivas cenas traumáticas que foram esquecidas e que devem ser lembradas durante o
tratamento e para introduzir a noção de vivências recalcadas. Para analisar o que ocorre no caso
do negro, algo a mais precisaria ser recuperado, pois a desalienação do negro não depende de
recuperar uma cena específica que tenha sido recalcada pelo indivíduo. Mesmo considerando as
dificuldades que esse conceito implica, Fanon irá mencionar a importância de um “inconsciente
coletivo” (na concepção de Jung) e, para além disso, utilizando-se da leitura de René Ménil da
dialética hegeliana, “da instauração, na consciência-de-si do escravo, de uma instância
representativa do senhor, no lugar do espírito ‘africano’ recalcado”. Esse ponto de articulação
com a obra hegeliana será aprofundado.

11
Dentro dessa lógica, os instrumentos que a sociedade utiliza para “catharsis coletiva”, as
maneiras que principalmente as crianças e os jovens se utilizam para que “as energias
acumuladas, sob forma de agressividade, possam ser liberadas” – como, por exemplo, os
periódicos ilustrados –, utilizam-se de ícones brancos com que o negro irá facilmente se
identificar. Fanon lança mão de uma citação de G. Legman para colocar ainda que tais estórias
ilustradas sejam consideradas “procedimentos de evasão” diante da sexualidade censurada e
existe uma importância na expressão do “desejo agressivo de crianças e adultos contra a estrutura
política e social” nesses materiais. O período da infância e da adolescência é sempre fonte de
traumas relacionados à inserção no meio social, mas a ausência de materiais destinados às
crianças e jovens negros aumenta as dificuldades diante da não superação dos “recalques
fundamentais”, o que confirma a importância desses materiais.
Para o autor ambos deveriam se afastar de suas ancestralidades, de um apego excessivo às
raízes de um retorno, ao original, mas deveriam se aproximar na “tentativa de desalienação em
prol da liberdade”. (p.191)

Em Os condenados da terra, Fanon destaca as tentativas do colonizado em desalienar-se e


adverte para outras alienações como a religião, o culto da personalidade, a cultura ocidental e, ou
o regresso ao passado da cultura africana. Para o martiniquenho a alienação intelectual é uma
criação da sociedade burguesa e caracteriza a postura destes nos países colonizados como
inautêntica, desprovida economicamente e culturalmente, incapaz de renovar um projeto
econômico e industrial digno. Ele convoca as massas europeias a despertar e responsabilizar-se
diante do processo de transformação.
Como se apresentasse a luz da razão, o colonialismo coloca-se como única possibilidade
para o colono não regressar “à barbárie, ao aviltamento, à animalização.” (FANON, 2005, p.
175).

Para Fanon, a transformação deve ocorrer na estrutura social, de modo que sua superação
depende não apenas de uma revisão paradigmática, mas antes de qualquer coisa, da
transformação radical da sociedade, do entorno social no qual está inserido o colonizado.
Todo povo colonizado, isto é, todo povo no seio do qual nasce um complexo de
inferioridade, de colocar no túmulo a originalidade cultural local – se situa frente-a-frente à

12
linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. O colonizado se fará tanto
mais evadido de sua terra quanto mais ele terá feito seus os valores culturais da metrópole. Ele
será tanto mais branco quanto mais tiver rejeitado sua negrura. (Citação?)

Bibliografia de referência:
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.
_______.Os condenados da terra. Juiz de fora: Ed. UFJF, 2005.

D) Proposta de intervenção (abordagem psicanalítica X política e social) e clínica da


descolonização

Traçando um primeiro panorama do que seria, a partir da leitura da primeira fase de Frantz
Fanon, uma proposta de intervenção alinhada com a chamada clínica da descolonização tendo
como escopo a clínica da transformação, temos algumas concepções por ele formuladas que
destacamos e questões que certamente abrirão seus espaços para que passem a ser inicialmente
exploradas e posteriormente desenvolvidas como merecem ser. Contudo, antes de mais nada, é
preciso estabelecer que uma proposta de intervenção nesse contexto, levaria em consideração a
clínica psicanalítica e notadamente, no que tange ao posicionamento do analista, as
possibilidades de inserção na clínica de uma posição enquanto seres políticos, levando em
consideração a história do racismo e da colonização de uma forma abrangente, mas tendo como
objetivo a vinculação desse recorte com a clínica da transformação no âmbito das características
e considerações da clínica psicanalítica brasileira atual.
No livro Pele Negra, Máscaras Brancas, caracterizado como um estudo clínico, com
objetivo definido de “permitir ao homem de cor compreender, com a ajuda de exemplos precisos,
as causas psicológicas que podem alienar seus semelhantes”, o autor antecipa algumas reflexões
que seriam desenvolvidas posteriormente por teóricos como Agamben e Mbembe: em linhas
gerais, Fanon expõe que, nas colônias, a partilha fundamental operada pelo poder não é entre
cidadãos e não cidadãos, ou entre amigos e inimigos, mas entre aquelas vidas que estão incluídas
no campo da determinação e as que permanecem em uma zona permanente de anomia e
indecidibilidade, na qual graça a violência do soberano, isto é, do colonizador. Por isso, diz o

13
pensador martinicano: “Há uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida,
uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer”, mas a
“maioria dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos verdadeiros infernos”.
Primeiro movimento do falência da alienação ao sistema referencial racista, sujeição esta
"nunca plenamente conseguida", tal descida aos infernos marca uma quebra no valor de verdade
e legitimação dos discursos que sustentam uma existência negativa e inferiorizada do negro. Tal
posicionamento marcaria uma passagem do reconhecimento do tais discursos não mais como
científicos, atemporais, ontológicos, mas como frutos de processos históricos e políticos,
portanto, passível de alteração de seu curso e estrutura.
A curiosa dialética fanoniana, a única que permitiria a superação da dualidade identidade e
não-identidade, isto é, ser negro e não-ser negro, estaria na base do que Fanon diagnostica como
situação neurótica, e levaria rumo à verdadeira universalidade. O mesmo raciocínio é construído
nesta passagem: "Eis na verdade o que se passa: como percebo que o preto é o símbolo do
pecado, começo a odiá-lo. Porém, constato que sou negro. Para escapar ao conflito, duas
soluções: ou peço aos outros que não prestem atenção à minha cor, ou, ao contrário, quero que
eles a percebam. Tento, então, valorizar o que é ruim -- visto que, irrefletidamente, admiti que o
negro é a cor do Mal. Para pôr um termo a esta situação neurótica, na qual sou obrigado a
escolher uma solução insana, conflitante, alimentada por fantasmagorias, antagônica, desumana
enfim, -- só tenho uma solução: passar por cima deste drama absurdo que os outros montaram ao
redor de mim, afastar estes dois termos que são igualmente inaceitáveis e, através de uma
particularidade humana, tender ao universal. Quando o negro mergulha, ou seja, quando ele
desce, acontece algo de extraordinário (...)". Na sequência, vem uma citação de Césaire, na qual
o negro, após descer até o fundo da noite, pode dizer: "Deuses….vocês não são deuses. Eu sou
livre".
Tal processo, parte do pressuposto, como vimos, que o negro localizado na zona do não-
ser, não é um homem, é um "homem negro", seu estatuto de humano depende de um atributo
diferencial, o que o impede de existir com toda potência que lhe cabe, inclusive com relação ao
seu sofrimento. “Sentimento de inferioridade?", pergunta Fanon. "Não, sentimento de
inexistência”.
Ele é claro em cunhar que para o negro a alteridade não é outro negro, é um branco. Desse
modo, a negritude tendo sido tolhida de tantos modos por meio da colonização que legitimou a

14
escravidão e a autoridade forçada dos negros, assim como continuou exercendo o domínio no
contexto social, cultural e econômico, não faz parte da identificação dos negros, de tal maneira
que o que lhe resta é fugir da individualidade. Assim, “Compreendemos agora porque o negro
não pode se satisfazer no seu isolamento. Para ele só existe uma porta de saída, que dá no mundo
branco. Donde a preocupação permanente em atrair a atenção do branco, esse desejo de ser
poderoso como o branco, essa vontade determinada de adquirir as propriedades de revestimento,
isto é, a parte do ser e do ter que entra na constituição de um ego [...] O sentido de sua ação
estará no Outro (sob a forma do branco), pois só o Outro pode valorizá-lo."
Após um momento de ruptura deste estado de sujeição, propiciado pelo reconhecimento do
escândalo dos processos de desculturação colonial, Fanon descreve o que seria o período de
"agressividade e graça": há uma redescoberta da cultura abandonada, um êxtase geral que
acompanharia o encantamento por uma volta às origens, assim como uma agressividade,
enquanto paixão necessária para sustentar a introdução de uma cultura que não mais se cala no
anonimato. O passado, na remissão às raízes e valores extirpados pelos processos coloniais,
viriam como um símbolo de pureza e salvação, neste momento. Aqui, entretanto, a cultura ainda
se encontraria encapsulada, não dinamizada por e através das experiências cotidianas.
Em "Racismo e cultura", Fanon descreve que o movimento transformativo dialético se
encaminharia em prol de um constante devir em que a afirmação de uma cultura não viria
acompanhada da negação de outra. A luta do interiorizado viria, não como uma luta de
conquista, mas de libertação, de coexistência e enriquecimento recíproco. O "fim do racismo,
portanto, viria com uma súbita incompreensão", incompreensão da cultura do outro, suspensão
das verdades imediatas.
Talvez aqui seja possível sustentar a hipótese de que a clínica fanoniana não estaria
distante dos últimos desdobramentos da clínica lacaniana, ao menos quanto a afirmação de que o
reconhecimento da nossa própria indeterminação sob a grossa camada de identificações
imaginárias e simbólicas levaria a uma forma de emancipação. Por isso, a clínica, ao menos para
Fanon, não deve suplementar de determinação o indeterminado, pois o negro sempre está
sobredeterminado pelos significantes do branco, pela verdade "toda branca" (p. 132).
Ao invés da uma clínica da determinação, Fanon estaria pensando mais no aprofundamento
dos processos de indeterminação como condição necessária para a saúde -- em uma interessante
nota de rodapé, citando Canguilhem, Fanon define indiretamente o que é para ele a normalidade

15
psíquica: "Acrescentemos apenas que, no domínio mental, é anormal aquele que pede, chama,
implora" (p. 128, n. 2). Inversamente, é normal quem não pede, não chama, não implora, isto é,
quem é livre.
Acerca do potencial do método psicanalítico, Fanon questiona sua desconsideração desses
pressupostos, afirmando inclusive que o Complexo de Édipo está longe de surgir entre os negros
e pontua que toda neurose resulta da situação cultural.
“Surge, então, a necessidade de uma ação conjunta sobre o indivíduo e sobre o grupo.
Enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais
tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das
estruturas sociais. Em outras palavras, o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema:
branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de
existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus
sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-
lo, aconselhando-o a manter as distâncias; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas
as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem
do conflito, isto é, as estruturas sociais.”.
Dessa forma, ele pontua de forma clara o que se esperar de uma análise que leve em
consideração todo o contexto em voga e que possibilite uma clínica da transformação.
“O drama desenrolando-se à luz do dia, o negro não tem tempo de “inconscientizá-lo”. O
branco, em certa medida, consegue fazê-lo; é que, no seu caso, surge um novo elemento: a
culpabilidade. O complexo de superioridade dos pretos, seu complexo de inferioridade ou seu
sentimento igualitário são conscientes. Eles os utilizam o tempo todo. Eles existencializam seu
drama. Não há neles a amnésia afetiva que caracteriza a neurose-tipo.”
Neste trecho, Fanon nos traz a impossibilidade do negro de viver os processos de recalque,
uma vez que o drama se desenrola constantemente. Muito se assemelha ao que se escuta hoje na
clínica da população marginalizada, para a qual não existe a possibilidade sequer de sofrer de
forma plena.

Por fim, apenas para frisar a questão da branquitude como de suma importância para o
desenvolvimento do trabalho, ficamos com a afirmação de Fanon:

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“Acredito sinceramente que uma experiência subjetiva pode ser compartilhada por outra
pessoa que não a viva; e não pretendo jamais sair dizendo que o problema negro é meu
problema, só meu, para em seguida dedicar-me a seu estudo.”
É de se destacar que ao longo de todo "Pele Negra", Fanon chama à responsabilidade todos
os que com ele se identificarem, e convoca os irmãos negros ou brancos a sacudirem
“energicamente o lamentável uniforme tecido durante séculos de incompreensão”.

Bibliografia de referência:
-livro: Pele Negra Máscaras Brancas
-artigo: Racismo e Cultura
(https://www.geledes.org.br/racismo-e-cultura-leitura-psicanalitica-e-politica-de-frantz-
fanon/)
-artigo: Frantz Fanon: capitalismo, racismo e a sociogênese do colonialismo, Deivison
Faustino

E) Questão do trauma / traumático


Fragmento da proposta em construção

A questão do trauma e do traumático na obra de Frantz Fanon

Fanon deixa um legado no qual se deslumbra um discurso exigente, breve e


arriscado de uma verdade traumática em que o sujeito colonizado e colonizador pode ser
encarado em três aspectos: o primeiro centro é África na era da práxis revolucionária, as grandes
luta emancipatórias que marcam o século XX, ou seja, as lutas anticoloniais, as lutas anti-
imperialistas e finalmente o apartheid.

Referência.

17
ANTUNES, P.S., Os caminhos de trauma em Nicolas Abraham e Maria Torok.
FANON, F. Os condenados da terra, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1968.
________ Pele negra máscara brancas, Salvador (BA), EDUFBA, 2008.
FAUSTINO, M.D. Frantz Fanon um revolucionário, particularmente negro. São Paulo,
Ciclo Continuo Editorial, 2018.
MBEMBE, A. A universalidade de Frantz Fanon, s/d.
MOLIN, S. C. W., O terceiro tempo do trauma – Freud, Ferenczi e o desenho de um
conceito, São Paulo, Editora Perspectiva, 2016,
OLIVEIRA, S.M.R., Frantz Fanon, psicologia e psicanálise: epistemologias da violência.

- Significação singular do acontecimento


- Transformação já ocorreu, ou temos um horizonte possível (abordagem sob o prisma
hegeliano)

F) Universalismo, Epistemologias e Branquitude em Fanon

Estudar a branquitude implica estudar as origens da colonização, o maior genocídio dos


tempos modernos, que teve como uma de suas grandes bases a ideologia da Eugenia, presente
em toda a história do povo do oeste europeu, exemplificada em fatos como o sacrifício de
pessoas consideradas “feias” na Grécia Antiga, as grandes barbáries na guerra com outros povos,
e o militarismo intrínseco a grandes impérios. No ensejo de estudar as materalidades desse
processo, o livro "A Ferocidade Branca", da colombiana Rosa Amelia Plummelle-Uribe (2001),
busca traçar o caminho entre a políticas de destruição colonial, o enselvageamento europeu e o
nazismo. Aponta como investigadores caracterizam uma continuação entre o sistema de servidão
colonial e instituições esclavagistas que já constavam na Europa. Isso resultou na morte de 70 a
90 milhões de pessoas dos povos originários do continente, e o foco é como o Europeu
promoveu a justificação posterior e o apagamento histórico e cultural desse acontecimento, o que

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perdura até os dias de hoje. Após consolidar sua presença na Europa, os europeus promoveram o
desagregamento da economia da África - continente que até então gozava de um certo nível de
“bem-estar social, artesanato diversificado e comércio intenso” (MAES, 1996) - e a maior e mais
desumana deportação da história, que causou uma destruição irreversível, considerada a segunda
consequência da colonização americana. Nesse processo surgiram os ideais “gêmeos” de
inferioridade dos não-brancos e superioridade da raça branca, que a partir do século XVII toma
forma de lei nas “potências” europeias, sendo que até o final do século XIX nenhuma autoridade,
nem os filósofos do chamado “século das luzes”, estabeleceu algum protesto a isso. Então esse
axioma se enraizou na cultura europeia, e, combinado com a proposta desses “iluminados” de
tudo ordenar, hierarquizar e classificar, estimulou uma cultura favorável ao extermínio de grupos
considerados inferiores.
Segundo Malcolm X (1963) “não é possível haver capitalismo sem racismo” - dessa forma,
como a superioridade branca (seja manifesta ou disfarçada de “conceito científico”) é parte do
racismo da forma que se configura hoje, é também um dos grandes pilares do status quo e do
capitalismo. Portanto, ao considerar o racismo, seja na prática profissional ou em estudos
teóricos, deve-se questionar todo o sistema econômico-cultural imposto pela branquitude, que
afeta diretamente a constituição do sujeito.
Assim, uma das contribuições teóricas que Fanon faz é acerca da posição em relação a
tríade branquitude, razão e racialização. Uma das consequências da colonialismo, segundo o
autor, é a racialização da autopercepção humana - dessa forma, um dos pontos que ele nos
chama atenção é acerca da noção de razão e universalidade genérica. Referente ao problema
colonial, é a tendência do ocidente capitalista em impor “ as suas particularidades espaço-
temporais como expressões universais do gênero humano”. Como consequência, se o Branco é a
única expressão do que é humano (e portanto universal), quem não for branco “não é tão humano
assim”. Nesse sentido, Fanon conclui que o colonialismo representa uma alienação da
humanidade, e dessa forma até o que conhecemos deveria ser questionado, pois justamente o
branco aparece em nosso imaginário como expressão universal da história, filosofia, religião e
também em aspectos éticos e estéticos, do que nomeamos como bom, belo e verdadeiro.
Ao analisar o histórico do conhecimento científico, Rosa Amelia Plummelle-Uribe aponta
diversos estudos de autores então “renomados”, em temas como Biologia, Geografia e
Antropologia, de 1864 a 1897, que promoviam a “conquista” de novos territórios aos europeus,

19
em detrimento de eliminação de povos; e estabelece uma linha temporal da produção desse
tempo até o Eugenismo de Fischer, em 1908, cujos ideais de utilidade de raças inferiores
inspirou Hitler. Também caracterizou o processo de ascensão de elites locais com a
independência de diversos países da América no século XIX, as quais, se identificando com seus
antepassados brancos, herdaram da colonização os métodos de extermínio dos indígenas (como
exemplo há as “Campanhas Argentinas”). Dessa forma, a inferioridade imposta pelas
branquitudes do Sul aos povos não-brancos os excluiu da espécie humana, enquanto enriqueceu
os descendentes da colonização cristã em todo o mundo - sendo a ideologia de superioridade
expandida, por exemplo, para os genocídios na Oceania, os perseguidos pelos nazistas em uma
guerra que serviu para financiar o bem-estar social da população ariana, e para a perpetuação da
dominação dos defensores do Neomalthusianismo. Lélia Gonzales (1988a) sintetiza esse
processo afirmando que o racismo se constituiu "como a 'ciência' da superioridade eurocristã
(branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação".
Para Fanon, a solução da branquitude para esse e outros crimes foi o processo de
“Repartição Parcial da Culpa”, através da promoção de, por um lado, rivalização das raças não-
brancas, e por outro, da generosidade e “pureza” dos brancos. Não é à toa que afirma que “para
os africanos, Freud é inútil”, critica duramente Sartre por estender a visão dialética europeia à
condição do negro, e também contrapõe os estudos dos brancos sobre a negritude, ou qualquer
forma de caridade, ao dizer “Não sentiremos nenhuma piedade dos antigos governantes, dos
antigos missionários. Para nós, aquele que adora o preto é tão “doente” quanto aquele que o
execra”. Com isso, é possível denotar que a universalização europeia se infiltra de tal forma, que
se expressa até no próprio estudo dos colonizados. Para Lélia Gonzalez (1988b) é necessário
romper com essa imposição, considerando sempre conjuntamente os conceitos de raça, classe,
sexo e poder, e estudando também a história dos colonizadores com a visão de “forasteiro de
dentro”. A partir disso, é possível estabelecer uma continuidade entre a estratificação da
sociedade portuguesa e as divisões claras na brasileira, promovidas pelos dois âmbitos do
racismo: o aberto e o disfarçado. O ponto central é que ambos promovem uma ideologia de
branqueamento, que cria lugares específicos para o colono e o colonizado - como pode ficar
explícito nos versos de Mano Brown em “Diários de um Detento”, quando, se referindo à prisão,
diz para o periférico que o escuta que “a vaga tá lá esperando você”, denotando a existência de

20
um sistema que, além de especificar um espaço para seu corpo, massacra sua condição
psicológica com essa constante ameaça.

Bibliografia de referência:
DE OTO, Alejandro. Aimé Césaire y Frantz Fanon. Variaciones sobre el archivo
Colonial/descolonial. Tabula Rasa, Bogotá , n. 15, p. 149-169, dez. 2011 . Disponível em
<http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-
24892011000200009&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 27 set. 2018.

Gordon, Lewis. 2009. Fanon y el desarrollo. Una mirada filosófica, traducido y editado por
Alejandro De Oto. En La teoría política en la encrucijada descolonial, compilado por Walter
Mignolo. Buenos Aires: Ediciones del Signo y Globalization and the Humanities Project (Duke
University)

G) A Insurgência de novas teorias que abordem fenômenos psíquicos advindos da


Colonização
Apontando as marcas irreversíveis da colonização, Fanon diz que “Colonização é
sepultamento das originalidades”. Em busca de uma descolonização, De Oto (2011) aponta que,
se colonizar é reprimir possibilidades, descolonizar “passa por um caminho lento de substituição
de nomes e sentidos” (inclusive na linguagem, em epistemologias, práticas, e cotidiano). Essa
noção de identificar e contrariar o que é imposto também é presente em Lélia Gonzalez, quando
questiona a norma culta ao apontar que falar “Framengo” remete a uma marca linguística de
idiomas africanos em que a letra L inexiste. Dessa forma, demonstra que a “ideologia do
branqueamento” impõe uma “denegação da latinoamefricanidade” - dessa forma, é necessário
que o não-branco tome consciência e busque a conclusão do seu processo de tornar-se quem
realmente é, recuperando e valorizando sua história e legado cultural, construindo sua identidade,
e se recusando a se deixar definir pelo olhar do outro. Portanto, quando Fanon diz que o branco
coloca o negro no lugar do nada, do não-ser, isso é parte de um processo em que o branco se
coloca em todos os espaços - o que pode ser explicitado, por exemplo, na apropriação cultural

21
dos povos que ele colonizou, e, após falhar na tentativa de universalizar o sujeito de sua teoria,
passar a explicar os colonizados a partir dos seus próprios olhos.
Esse é só mais um processo que tem várias fases: abordando as formas de exploração do
indivíduo do Sul, Fanon explica que a branquitude constitui primeiramente o esquema
Histórico-Racial, a partir de piadas, anedotas, senso comum sobre as etnias. Quando desmorona,
surge o esquema Epidérmico-Racial, constituindo o corpo do negro materialmente em tripla
pessoa: 1. Ocupa seu lugar de negro - 2. Vai ao encontro da branquitude “superior”- 3. Quando
abandonado, ocupa o lugar desse “outro” que desapareceu. Isso leva ao distanciamento da
realidade, fazendo que o próprio negro se constitua como objeto, longe do Estar-aqui (noção
tomada de Hegel). GORDON (2009) desenvolve essa ideia ao afirmar que, ao ter seus atributos
humanos originais negados, a sociedade colonizada é forçada constantemente a se perguntar o
que ela é na realidade. Assim, os afetados passam por limitações de ação no campo social por
esse esgotamento das opções exteriores, e essa pergunta pelo “eu” leva ao processo de
implosividade, uma função da opressão que faz com que o sujeito só seja capaz de questionar
sua natureza social, histórica e cultural. (temos como exemplo uma pesquisa da Brigham Young
University que conclui que gente solitária tem 50% mais chances de morrer do que aqueles que
estão sempre cercados de familiares ou amigos). Com essa identidade sempre em falta e carente,
no colonizado apenas resta o afloramento de “desespero, loucura e morte”. (segundo censo, mais
da metade dos internados em manicômios judiciários são negros, pobres e com baixa
escolaridade). Essa carência permanente cria um processo de alienação colonial, em que o
colonizado apenas foca em sua sobrevivência (não só como força de trabalho, mas também em
termos afetivos), fazendo com que o colonialismo influa diretamente nas possibilidades, e, em
última instância, nos corpos dos colonizados (por exemplo, pesquisas mostram que negros se
inscrevem menos no vestibular). Isso demonstra a sociogênese de um regime que deve se
multiplicar até a “náusea, o estancamento, a fixação, e a imobilidade do sujeito colonial”.
Dessa forma, fica evidente que uma prática profissional rumo à descolonização deve
intervir nas noções de sujeito, história, humanidade, e até mesmo de conhecimento. Abordar o
colonizado implica em considerar que todos esses mecanismos da branquitude, como aponta
Fanon, causam defesa contra estímulos exteriores para evitar desprazer (se remete ao conceito de
Anna Freud de Inibição do Ego), em uma “Menos-valia” Psicológica que causa sentimento de
diminuição, pela impossibilidade de alcançar a limpidez branca. Com isso surgem

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comportamentos super-compensadores para entrar no mundo branco, e também neuroses do
Abandono e Exclusão. Ou seja, para compreender o colonizado é necessário colocar em primeiro
plano esse conhecimento acerca de sua constituição - conhecimento esse que parte do ponto de
vista também de um não-branco, mesmo que sua construção passe pela expropriação de
conhecimentos europeus. Devemos impor novos questionamentos que vão além do que é o
negro: por exemplo, por que as práticas profissionais na elite europeia do século XX, como é o
caso de Freud, e tantos outros, são mais consideradas no Brasil atual do que vivências ou relatos
do colonizado em qualquer época, como o caso da produção artística ou depoimentos dos povos
originários? Quais as consequências da apropriação cultural pela branquitude nos processos de
identificação do não-branco?

Bibliografia de referência:

Cordoba, J. (2016). Vida y obra de Frantz Fanon. In: Iberoamérica Social: revista-red de
estudios sociales VI, pp.33 - 36. Recuperado em http://iberoamericasocial.com/vida-y-obra-de-
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Durão, G. A. Frantz Fanon, um escritor múltiplo: trajetória intelectual, formação cultural e
movimentação política. In: Odeere: revista do programa de pós-graduação em Relações Étnicas e
Contemporaneidade – UESB. Ano 1, número 1, Janeiro – Junho de 2016.
FAUSTINO, D. M. “Por que Fanon, por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no
Brasil. 2015. 252 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015,
https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/2016/Mencoes-Honrosas/Sociologia-
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Ruiz, Valéria et al. François Tosquelles, sua história no campo da Reforma Psiquiátrica /
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CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia
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http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300015.

23
MAES, Louise Marie Diop .Afrique Noire Démographie Sol et Histoire, Paris, 1996.
MENDONÇA, Marina Gusmão. Josué de Castro e o combate ao neomalthusianismo.
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Da barbárie colonial à política nazista de extermínio.


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“Negros se inscrevem menos no vestibular. Disponível em
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Fanon, F. (1956) Racismo e cultura. Primeiro Congresso dos Escritores e Artistas Negros
em Paris, em setembro de 1956. Publicado no número especial de Présence Africaine, de junho-
novembro de 1956. Disponível em: https://www.geledes.org.br/racismo-e-cultura-leitura-
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Mbembe, A. (2011) A universalidade de Frantz Fanon. Disponível em
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Mbembe, A. (2014) Políticas da Inimizade.

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