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FRANZ NEUMANN

"A QyARTIER LATIN teve o mérito de dar início a uma


nova fase, na apresentação gráfica dos livros jurídicos,
quebrando a frieza das capas neutras e trocando-as
por edições artísticas. Seu pioneirismo impactou de
tal forma o setor, que inúmeras Editoras seguiram seu
modelo."

lVES GANDRA DA SILVA MARTINS

o IMPÉRIO DO DIREITO
TEORIA POLÍTICA E SISTEMAJURÍDICO
NA SOCIEDADE MODERNA

Tradução:
Rúrion Soares Melo

Prefácio e Revisão da Tradução:


José Rodrigo Rodriguez
Editora Quartier Latin do Brasil

Empresa Brasileira, fundada em 20 de novembro de 2001


Rua Santo Amaro, 316 - CEP 01315-000
Editora Qyartier Latin do Brasil
Vendas: Fone (11) 3101-5780
São Paulo, verão de 2013
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Site: www.quartierlatin.art.br www.quartierlatin.art.br
Editora O!iartier Latin do Brasil SUMÁRIO

Rua Santo Amaro, 316 - Centro - São Paulo


C ontato: quartierlatin@quartierlatin.art.br Sobre Franz Neumann ............................................................ 11
www.quartierlatin.art.br
Prefácio - Um grande livro desconhecido ............................... 17
Nota do tradutor ..................................................................... 2 9
Coordenação editorial: V micius Vieira Agradecimentos ....................................................................... 31
Diagramação:Thaís Fernanda S. L. Silva Nota sobre a ilustração da capa ............................................... 33
Revisão gramatical: Danilo S. Paes Landin;
José Ubiratan Ferraz Bueno; Rafad Almeida
Capa: Eduardo Nallis Villanova 1
INTRODUÇÃO
A BASE TEÓRICA, 35

NEUMANN, Franz. O Império do Direito: Teoria


Capítulo 1
política e sistema jurídico na sociedade moderna.
O Lugar do Problema no Qyadro do Sistema Jurídico, 45
São Paulo: C2.blartier Latin, janeiro de 2013 .

1.1. O Conceito de Direito ..................................................... 4 7


1. Filosofia do Direito. 1. Título
1.2. A Sociologia do Direito ................................................... 4 9
ISBN: 85-7674-650-6 1.3. A Teoria do Direito Público ............................................ 5 9

Capítulo 2
A Relação da Soberania com o Império do Direito, 67
Índice para catálogo sistemático:
1. Brasil: Filosofia do Direito 2.1. A Teoria da Soberania ...................................................... 6 9
2.2. A Teoria do Império do Direito ...................................... 72
2.3. O Duplo Significado do Império do Direito .................. 97
T ODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a n:produçW rot.11 ou p:uci:tl, por qualquer meio ou processo, cspe-
cialmcnn: porsisn: m:is gráficos, microfllmicos, fotográficos, n:prográficos, fonogr.lfims, vidoogclficos. Vedada a mcmori2ação e/
ou 1' n:cupcr..çno total ou parcial, bc:m como a inclusâo de qua1qucrpartc desta obra cm qualquer sistema de processamento de
dll!loo. E.u proibições aplicwn-<e mmbém àscaracttrísticisgráficasdaobrae à sua editoração. A violaç-:io dos direitos autorais
61•u1tvd mocrimc(:ut. 1 84cp:mlgrafosdo CódigoPcnal),oompcnadcprisiioemult1,buscaeaprocnsãocindc~<IN=as
( li 101 1 110 ti• Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
II Capítulo 6
SOBERANIA E OOÉRIO DO DIREITO EM ALGUMAS TEORIAS Grotius e Pufendorf, 163
POLÍTICAS RACIONAIS (O DESENCANfAMENTO DO DIREITO), 101
6.1. Hugo Grotius ................................................................. 165
6.2. Samuel Pufendorf .......................................................... 170
Capítulo 3
Direito Natural Tomista, 105
Capítulo 7
3.1. O Direito Natural em Cícero ........................................ 107 Hobbes e Spinoza, 181
3.2. Tomás de Aquino ........................................................... 11 O
3.3. A Desintegração do Direito Natural Tomista ............... 117 7.1. Hobbes ........................................................................... 183
7.2. Spinoza ........................................................................... 193

Capítulo 4
Soberania e Império do Direito Material: Capítulo 8
Os Monarchomachs e o Direito Natural Inglês, 127 John Locke, 207

4.1. Os Monarchomachs ......................................................... 129


4.2. Direito Natural Inglês ................................................... 137 Capítulo 9
Rousseau, 223

Capítulo 5
Bodin e Althusius, 145 Capítulo 10
Kant e Fichte, 243
5.1. Bodin .............................................................................. 147
5.2. Althusius ........................................................................ 15 6 10.1. Kant ............................................................................. 245
10.2. Fichte ........................................................................... 262

Capítulo 11
Hegel, 275
III Capítulo 14
A VERIFICAÇÃO DA TEORIA: o IMPÉRIO DO DIREITO O Sistema Jurídico e a Sociedade Competitiva, 355
NOS SÉCULOS XIX E XX, 297
14.1. A Generalidade da Lei ................................................ 3 57
14.2. A Lei e o Juiz ............................................................... 373
Introdução 14.3. A Dúvida Levantada pelo Direito Inglês .................... 395
A Crítica da Teoria Liberal do Direito ao 14.4. Avaliação Sociológica da Função da Lei e do Juiz ...... 417
Estado Totalitário, 299

Capítulo 15
Capítulo 12 O Império do Direito sob a Constituição de Weimar
O Rechtsstaat e o Império do Direito {O Capitalismo Monopolista), 433
{A Apresentação do Problema), 305
15.1. A Mudança da Estrutura Econômica e Social
12.1. A Teoria Alemã do Rechtsstaat .................................... 307 -e os Elementos Materiais do Sistema Jurídico ................... .43 5
12.2. O Império do Direito e a Supremacia 15.2. A Mudança da Estrutura Política ............................... 439
do Parlamento ..................................................................... 312 15.3. A Mudança do Sistema Jurídico ................................. 445
12.3. Teses sobre a Construção do Sistema Jurídico
em uma Sociedade Competitiva .......................................... 316
Capítulo 16
O Império do Direito sob o Nacional-Socialismo, 465
Capítulo 13
A Subestrutura do Sistema Jurídico do Liberalismo, 319 16.1. A Doutrina do Fascismo ............................................. 46 7
16.2. A Ideia de Totalidade ................................................. .4 71
13.1. A Subestrutura Econômica e a Estrutura Material 16.3. O Direito e o Estado Totalitário ................................. 4 77
do Direito ............................................................................ 321 16.4. O Sistema Econômico e a Calculabilidade
13.2. A Subestrutura Política ............................................... 337 do Direito ............................................................................ 482
13.3. A Nação como o Fator Integrador da 16.5. A Função Ética do Direito .......................................... 483
Sociedade Competitiva ........................................................ 346
SOBRE FRANZ N EUMANN - 11

SOBRE FRANZ NEUMANN

Franz Leopold Neumann (23 de Maio de 1900 - 2 de Se-


tembro de, 1954), ao lado de Otto Kirchheirner,Jürgen Habermas
e Klaus Günther, é um jurista ligado à Teoria Crítica da sociedade.
Mais conhecido por seu livro sobre o Nazismo, Behemoth, refe-
rência central para o estudo do tema, tem sido redescoberto como
teórico do direito e recebido atenção de autores contemporâneos
como Stanley Paulson, IBrich K. Preus, Axel Honneth, Claus Ôffe
e William E. Scheuermann.
Franz Neumann foi advogado trabalhista e militante de es-
querda no começo do século XX na Alemanha. Ainda estudante,
apoiou a frustrada Revolução de 1918 e filiou-se ao Partido So-
cial-Democrata (SPD). Estudou direito em Breslau e Frankfurt
e escreveu um Doutorado em 1923, ainda inédito, com o título:
Introdução Jusfilosófica a um Tratado sobre a Relação entre Es-
tado e Pena (Rechtsphilophische Einleitung zu einer Abhandlung
über das Verhaltnis Von Staat und Stafe). Foi assistente de Hugo
Sinzheirner, pioneiro do Direito do Trabalho alemão, e deu aulas
na escola para sindicatos afiliada à Universidade de Frankfurt. De
1928 a 1933 dividiu escritório com Emest Fraenkel, advogado e
jurista especializado em Direito do Trabalho, autor de um estudo
importante sobre o nazismo O Estado Dual. Entre 1932 e 1933
foi advogado do SPD.
Durante todo este período, escreveu textos sobre direito do
trabalho e direito econômico reunidos em coletâneas publicadas
em alemão, italiano e inglês. Ainda em 1933, nas semanas se-
guintes à ascensão dos nazistas ao poder, diante de sua prisão
iminente, foi obrigado a fugir da Alemanha.
Fixa-se em Londres em razão de sua ligação com o socialista
abi o e Professor da London School of Economics, Harold Laski
que havia feito publicar um de seus artigos sobre q~ões traba-
~· Em 1936 escreve The Rufe ofLaw, seu segundo doutorado
que só viria a ser publicado na década de 80. Foi orientado por
12 - SOBRE FRANZ NEUMANN SOBRE FRANZ N EUMANN - 13

Laski e influenciado por Karl Mannheirn, também professor da N eumann tomou parte na elaboração de um plano para a desna-
LSE e ex-professor de sociologia de Frankfurt. Neste mesmo ano zificação da Alemanha. Suas posições foram vencidas em razão
Neumann inicia sua colaboração com o Instituto de Pesquisas da Guerra Fria. Em nome do combate ao comunismo, para evitar
Sociais, estabelecido no exílio. Trabalha como administrador, con- seu avanço sobre a Europa, os EUA tomaram atitudes no mínimo
sultor jurídico e pesquisador da instituição, mas sua relação com dis ' · em relação a vários participantes do regime nazista.
o Instituto é atribulada. Neumann discordava da interpretação ·chael Sande mostra em detalhes, a partir do exame de memo-
do Nazismo defendida por Friedrich Pollock e Max Horkheirner, randos e registros burocráticos variados, como Neumann defen-
que gira em torno do conceito de "capitalismo de estado". Adi- deu um processo de desnazificação mais profundo e radical do
vergência está registrada em Behemoth e resultou em sua margi- que aquele que de fato ocorreu.
nalização e posterior exclusão do Instituto; mesmo destino que Neste período, Neumann tomou parte na preparação das
mereceram Walter Benjamin e Hebert Marcuse. Todos eles ou- acusações que seriam levadas adiante nos Tribunais de Guerra de
saram discordar da linha teórica conduzida com mão de ferro Nuremberg. Chefiado por Robert H. Jackson, ajudou a elaborar
pelo diretor Max Horkheimer. análises dos 22 acusados e de várias organizações nazistas, em
A publicação de Behemoth em 1942, escrito no contexto do especial no que dizia respeito às perseguições religiosas. Também
Instituto de Pesquisas Sociais, deu grande projeção a Neumann. O revisou o esboço da acusação a Hermann Gõring. A despeito de
livro foi elogiado por C. Wright Mills, um dos grandes sociólogos sua participação neste processo, sua posição pessoal era a de que
dos EUA, autor do estudo seminal The Power Elite e marcou sua os criminosos nazistas deveriam ser julgados em cortes alemãs
aproximação da Universidade de Colúmbia, instituição à qual o Ins- CQ!!l fundamento na Constituição de Weimar, nunca revogada

tituto estava afiliado, e do Governo dos EUA Neumann tornou-se durante o nazismo, por considerar que este seria um passo i~-
Professor de Ciência Política em Colúmbia em 1948, mas antes dis- t:"portante para a desnazificação da Alemanha. >
::>
so, a partir de 1943, trabalhou como consultor do Departamento de Em 1948 Neumann tomou-se Professor em Colúmbia e
Assuntos Econômicos da OSS (Office ofStrategic Services) e, a seguir, participou da criação da Universidade Livre de Berlim. Até sua
Chefe da Seção da Europa Central do Setor de Análise da mesma morte, escreveu textos importantes sobre os conceitos de ditadura,
instituição, ao lado de diversos outros jovens professores. Esta posição liberdade e poder; além de um e do-sol> raízes psicanalíticas
permitiu a Neurnann acolher outros intelectuais renegados pelo Ins- da democracia e da ditadura " gústia e Política revisita o por
tituto, dispensados por Max Horkheirner, como Herbert Marcuse e Axel Honneth em artigo recente. eJ.Xou maca ado um estudo
Otto Kirchheirner. sobre a ditadura que seria escrito em parceria com Herbert Marcuse.
A atividade de Neumann neste posto foi estudada em deta- Todos os textos deste período for ·dos ar Marcuse no livro
lhes por Michael Salter (Nazi War Crimes, US Intelligence and Est@o Democrático, Estado Autoritário. Sua atividade de Professor
Selective Prosecution at Nuremberg: Controversies Regarding the Role em Columbia incluiu a orientação da tese The Dilemma of
ofthe Office ofStrategic Services, Routledge-Cavendish, 2007). Suas D emocratic Socialism: Eduard Bern 'ein' Challenge to Marx
tarefas incluíam a identificação de nazistas com o fun de respon- (Buccaneer Books, 1983) escrita por ter Ga , futuro especialista
sabilizá-los futuramente por crimes de guerra e fornecer infor- em F.naLd; também a orientação inicial, interrompida por sua
mações que pudessem enfraquecer o regime nazista. Em 1944, morte, da tese The Destruction ofEuropean ] ews, de Raul Hilberg
14 - SOBRE FRAN Z NEUMANN SOBRE FRANZ NEUMANN - 15

(1926-2007), estudo central sobre o holocausto que contribuiu TEXTOS SOBRE FRANZ NEUMANN (MONOGRAFIAS, ARTIGOS E CAPÍTULOS)
para definir os problemas deste campo.
Franz Leopold Neumann morreu em um acidente de carro COTTERRELL, Roger. Law's community. Legal theory in
em Visp na Suíça aos 54 anos de idade. sociological perspective. Oxford: Clarendon Press, 1995.
HONNETH, Axel. "Anxiety and politics": The strengths and
BIBLIOGRAFIA
weaknesses ofFranz Neumann's diagnosis of a social pathology.
Constellations, v. 10, June 2003.
TEXTOS DE FRANZ NEUMANN INTELMANN, Peter. Franz Neumann. Chancen und Dilemma
des politischen Reformismus. Baden-Baden: Nomos
FRAENKEL, Ernst, KAHN-FREUND, Otto; KORSCH, Karl; Verlagsgesellschaft, 1996.
NEUMANN, Franz; SINZHEIMER, Hugo. Laboratorio ISER, Matthias; STRECKER, David (Org.). Kritische Theorie
Weimar: conflitti e diritto del lavo to nella Germania prenazista. der Politik. Franz L. Neumann - eine Bilanz. Baden-Baden:
Roma: Edizione Lavara, 1982. Nomos Verlagsgesellschaft, 2002.
NEUMANN, Franz. II Diritto dei Lavoro fra Democracia e ~LLY, Duncan. The state ofthe política/: conceptions of politics
Dittadura. Bologna: Il Mulino, 1983. , and the state in the thought ofMax Weber, Carl Schrnitt and
KIRCHHEIMER, Otto, NEUMANN, Franz. Social democracy and Franz Neumann. New York: Oxford, 2003.
the rufe oflaw. Ed. Keith Tribe. London: Allen & Unwin, 1987. OFFE, Claus. The problem of social power in Franz L.
NEUMANN, Franz, The rufe of law. Political theory and the Neumann's Thought. Constellations, v. 10, n. 2, 2003.
legal system in modem society. Leamington: Berg, 1986. PAULSON, Stanley L. Neumanns Kelsen. ln: ISER, Matthias
NEUMANN, Franz. Behemoth: the structure and practice of & STRECKER, David (Org.). Kritische Theorie der Politik.
national socialism 1933-1944 (1942). New York: Harper Franz L. Neumann - eine Bilanz. Baden-Baden: Nomos
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NEUMANN, Franz. The democratic and the authoritarian State: PERELS, Joachim (Ed.). Recht, Demokratie und Kapitalismus.
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Illinois: Free Press, 1957. Bade-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1984.
RAMM, Thilo (org).Arbeitsrecht un Politik. Quellentexte 1918-1933. PREUâ, Ulrich K. Formales und materiais Recht in Franz
Berlin: Neuwid, 1966. Neumanns Rechtstheorie. ISER, Matthias; STRECKER,
SCHEUERMANN, William E. The Rufe of Law Under Siege: David (Org.). Kritische Theorie der Politik. Franz L. Neumann
Selected Essays of Franz L. Neumann and Otto Kirchheimer, - eine Bilanz. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2002.
Berkeley: University of Califomia Press, 1996. RODRIGUEZ,José Rodrigo. Franz Neumann, o direito e a teoria
crítica. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo:
CEDEC, V. 61, 2004.
16 - SOBRE FRANZ NEUMANN P REFÁCIO - 17

RODRIGUEZ, José Rodrigo. Franz Neumann: o direito liberal UM GRANDE LIVRO DESCONHECIDO
para além de si mesmo. ln: Curso Livre de Teoria Crítica,
Campinas: Papirus, 2008.
SoBRE fRANZ NEUMANN, DIREITO E EMANCIPAÇÃO HUMANA
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre
o direito contemporâneo a partir de Franz Neumann, São O Império do Direito de Franz Neumann é um grande livro
Paulo: Saraiva, 2009. desconhecido. Escrito em 1936, como Tese de Doutorado na
SCHEUERMAN, William E. Between norm and exception: L ondon School ofE conomics, sob a orientação de Harold Laski, foi
the Frankfurt school and the rule of law, Cambridge: MIT publicado em alemão apenas em 1980 e no original inglês em
Press, 1997. 1986. Logo após, um movimento de redescoberta dos escritos de
Neumann foi desencadeado, especialmente na Alemanha e na
SÔLLNER, Alfons. Neumnann zur Einführung. Hannover: Soak
I nglaterra. Mais recentemente, ainda na Alemanha, Axel
Verlag, 1982.
H onneth 1 tem reivindicado a importância de Neumann para a
THORNHILL, Chris. Política! theory in modern Germany - an
introduction. Oxford: Polity, 2000.
J
Teoria Crítica e William Scheuermann2, nos Estados Unidos, tem
mostrado a importância do autor como teórico da rufe of law e
crítico de Carl Schmitt.
Antes dessa recente onda de estudos, Neumann já era conhe-
cido dos pesquisadores em dir~ cia política e história por
A

seu livro sobre o regime nazista';-li.c.bemot , referência para a histo-


riografia do pe1:fo~ or arti os versos, alguns deles fundamen-
tais para as ciências humanas o O Conceito e er a e
política" e "Mudança na função do direito na sociedade moderna".
Herbert Marcuse foi responsável pela organização da coletânea
Estado Autoritário, Estado Democrático eus textos maJ.s rm-
portantes4. Em toda a obra de Neumann é central a preocupação
com o significado do direito na sociedade moderna, especialmente
n çiue se refere ao oder corrosivo do autontansmo, clb=metcado e
cle--ia. . · · ·smo sobre as instituições o rre1to.

Cf. HONNETH, A. Teoria crítica. ln: GIDDENS, A. (Org.) Teoria social hoj e. São
Pa ulo: U nesp, 1999.
2 Cf. SCHEUERMANN, W. Between the norm and the excep üon: The Frankfurter
Schaol and lhe ru/e o( /aw. MIT Press, 1997. Também sua coletânea de artigos The
rule o( law under siege: Selected essays on Franz L. Neumann and Otlo Kirchheimer.
University of Californ ia Press, 1996.
3 NEUMANN, F. Behemoth: th e structure and practice of national socialism
1933- 1944 (1942). New York: Harper Torchbooks, 1966.
4 O livro foi pu blicado no Brasi l pela Editora Zahar em 1969 .
18 - PREFÁCIO PREFÁCIO - 19

A publicação de O Império do Direito trouxe argumentos podem ser pensados com.o._possibilidades reais. O livro se entre-
novos para o corpo das obras de Franz Neumann5 .A visão nega- ga à tarefa de coostmir uma nova racionilidade para o direito
tiva da evolução do direito na sociedade moderna que parecia qu~antecipa o gue hoje entendemos por concepção procedimen-
dominar seus escritos é fortemente relativizada pelo livro. Nele, J!f... Além disso, vê o direito como um espaço para afumira
há análises que permitem pensar positivamente a relação entre liberdade e CQ!!struir alternativas para a emancipação social em
Estado de Direito e emancipação humana em sociedades com- meio à luta ela i aldade. Antes de discutir esses ar mentas
plexas, pluralistas e capitalistas. O livro não é o diagnóstico de
uma suposta e irremediável "crise do direito", tampouco a afirma-
ção, contra as evidências, das virtudes inatacáveis do direito libe-
ral. Ao contrário da tradição da esquerda de inspiração marxista e

~
dos teóricos da social-democracia, Neumann vê o direito como ( A ESTRUTURA GERAL DO LIVRO

contraditório, ou seja, marcado por elementos regressivos e pro-


O modo como O Império do Direito realiza seus objetivos prin-
gressistas. Por isso mesmo, ele pensa as mudanças experimentadas
cipais, quais sejam, pensar uma nova racionalidade do direito numa
pelos ordenamentos jurídicos ocidentais sem subestimar seu po-
sociedade em transformação e mostrar sua relação com a emanci-
tencial autoritário, mas à procura de alternativás construídas a
pação social, impressiona logo à primeira vista. O Império do Di-
artir do direit tra ele.
reito contém um exame <ktalhado e criativo da filosofia política
O tom amargo de boa parte dos escritos de Neumann deve-se ~ Cícero a Hegel; uma análise comparativa de tradição do Esta_;
à constante denúncia do nazismo, responsável por destruir as es- do..de Direito alemão, inglês e francês; uma discussão teórica e
truturas do Estado de Direito alemão. Neumann ocupou-se des- e11!E.írica sobre a relação entre direito e economia a partir da obra
se fenômeno durante toda a sua carreira, desde os escritos sobre de Max Weber, além da análise da significado do nazismo para o
Direito do Trabalho da década de 206 , até seus artigos da década de ~- Ademais, encontramos no livro~l Schmitt e
50. Em O Império do Direito não poderia ser diferente: o livro ter- Hans Kelsen, análises das mudanças na .~ da impor-
mina com uma análise ácida da situação da Alemanha, largamente tância da pesquisa empírica para o direito, entre outros temas do
aprofundada em Behemoth. No entanto, lida para além de seu con- iitwr.esse-àe-jl.:l:Â~tas, economistas, cientistas sociaisr1Jlósofos e bjs-
texto, a obra abre novas possibilidades para o pensamento. !Q!i.adores..do direita e da filosofia.
Numa crítica aberta a Weber, Neumann identifica poten- Mesmo sem concordar com as análises e opiniões de Neumann,
ciais emancipatórios não realizados no direito ocidental que, hoje, cada leitor encontrará no liv.ro..fai:te-mfttefi~a êstimular e re.ímar
setLpensamentG-6~~to. Diante de uma obra tão rica de
análises e argumentos, é importante que seu prefácio seja econômico
5 Os argumentos deste prefácio foram desenvolvidos na Tese de José Rodrigo
Rodriguez " O direito liberal para além de si mesmo: Franz Neumann, o direito e evite expliQU:..demai~-eh:rindo, de pronto, p0ss?bi:lidades-c
e a teoria crftica ", defendida em 2006 no Instituto de Filosofia e Ciências leitura Ainda mais no caso de O Império do Direito, um texto tão
Humanas da UNI CAMP. A tese, modi fica da, foi publicada pela edi to ra
Sa r aiva com o títul o: " Fu ga do D i reito: um es tudo sobre o direi to
contemporâneo a partir de Franz Neumann" .
6 NEUMANN, Franz. li diritto dei lavoro fra democrazia e dittatura, Bologna: 7 Cf por exemplo o arti go de Habermas sobre Wi ethõlter: " O fil ósofo como
li M uli no, 1983. verdadeiro professor de direito". ln: Revista Direito CV, v.1, nº 2, 2005.
20 - PREFÁCIO PREFÁCIO - 21

pouco estudado que tem muito a oferecer a leitores atentos. Apesar passagem do capitalismo competitivo para o capitalismo mono-
disso, consideramos útil delinear com algum grau de detalhe três polista e a relação entre nazismo e direito.
temas que, em nossa opinião, são fundamentais para o livro e Esses dois movimentos argumentativos têm um relativo grau
continuam no centro dos debates sobre direito nos dias de hoje. A de independência. Os interessados em filosofia política irão en-
atenção a esses três temas auxiliarão o leitor a se movimentar com contrar no livro intetpretações originais e provocativas de diversos
independência pelos diversos capítulos deste escrito de Neumann, autores (com destaque para Locke, Rousseau e Kant). Estudiosos
tão instigante quanto complexo. da relação entre direito e economia vão se de arar com críticas à
Antes de qualquer coisa, é importante dizer que O Império arlicabilidade das .a~eb-er-a~pit .smo da épo-
do Direito se propõe a reconstruir boa parte da experiência jurídi- cà, ou seja, o quesrionamento da plausibilidade do.diagnóstico d~
ca ocidental, mas, especificamente, a experiência jurídica euro- perda de sentido do direito. No entanto, essas duas vias de análise
peia; daí a riqueza de suas fontes e a densidade da exposição. odem ser trilhadas em separado elo leitor co-
Nesse sentido, as seções II e III, que compõem a maior parte do murucam-se · i tema a o ra ara informar o que
livro, são dedicadas a urna extensa exposição dessa tradição. Tal censià8r.am e central questão de O Império do Di-
exposição é construída segundo dois recortes, que podem ser dis- ·-:r-eito;-a relaçãe-eaHe-direit~an....·'t-~"'->i!~.-.
. guidos a partir de dois níveis de abstração: o desenvolvimento Para Neumann, esta re o nível das instituições
conceito de direito nas principais vertentes do pensamento e depende da existência do stado de Direito. A emancipação
, oUtico racional de Cícero até o século XIX e a análise das insti- ão é pensada como uma prática externa ao direito, mas como
.ções jurídicas positivas dos séculos XIX e XX. aginação exercitada na imanência das instituições. Por essa ra-
O primeiro recorte, voltado ao desenvolvimento das teorias zão, a articulação do livro considerou todo o processo de "institu-
políticas racionais, procura mostrar o amplo processo histórico cionalização" do direito racional, de Cícero ao século XX. Mais
por meio do qual o conceito de direito foi deixando de se reportar ~a vez, em sua análise dã tra , ria das ideias políticas ociden-
a um mundo transcendente e passou a se encarnar nas institui- tais, Neumann mostra como o direi deixa de se referir à trans-
ções. Esse processo de positivação do direito, que culmina na filo- cendência. e pas.sa a ser pensa o na imanência das formas
sofia do direito de Hegel, manteve o caráter racional que estava institucionais, tomando possível assim a realização da justiça.
presente já nas teorias de tradição do direito natural. Contudo, · A possib~e realizar a justiça por meio da efetivação
diferentemente desta, que pretendia legitimar e justificar racio- crescente da ~nas instituições está presente na tradição
nalmente o direito positivo sempre com base em princípios e va- ju.riéco-política ocidental reconstruíd;por N eumann, mas precisa
lores transcendentes, Neumann mostra que esse processo de outro elemento reali e elemento será encontrado
positivação, ainda pretensamente racional, tem de ser entendido na passagem do ara ~ na relacão entre diJ:eito. e
como um processo de institucionalização dos princípios racionais c italismo. A análise dess a ão permitirá que Neumann
que legitimam o direito - ou seja, a institucionalização da justiça, indique o caminho que fi á do direit além de uma garantia de
da liberdade e da igualdade. Pensar o direito, como se verá adian- liberdade, um es a o de lut de. Esse desenvolvimento
te, é pensar a partir do que está positivado. De outra parte, o histórico, que altera as características do direito liberal, liga-se a
segundo recorte preocupa-se com as mudanças institucionais pro- uma determinada visão da evolução do capitalismo e de sua
priamente ditas e analisa a relação entre direito e capitalismo na
22 - PREFÁCIO PREFÁCIO - 23

influência sobre a racionalidade do direito, pensada a partir da ciedade toma-se cada vez mais dinâmica e marcada por confli-
obra de Max Weber8. tos sociais complexos, difíceis de regular por padrões universais.
A industrialização, o adensamento populacional, a concentração
CERTEZA JURÍDICA E DIREITO PROCEDIMENTALIZADO de capitais e a emergência do movimento operário são elementos
que precisam ser pensados a par das alterações no modo de operar
N eumann mostra que o assim denominado direito liberal, a
do direito nos países ocidentais.
regulação por normas gerais e abstratas, criadas pelo Parlamento e
aplicadas mecanicamente pelo Poder Judiciário, está ligado ao ca- Por isso mesmo, as normas materializadas que, aparentemente,
pitalismo das pequenas unidades econômicas, que competem en- aumentariam a insegurança da sociedade diante do poder ao abrir
tre si em um mercado livre da intervenção estatal, mas dependente espaço para decisões indeterminadas, podem funcionar, de fato, como

~
de sua proteção. A passagem do capitalismo competitivo para a fase mecanismos de redução da insegurança.(Com sua textura aberta, es-
monopolista também é a transformação do direito liberal: as nor- tas normas abrem o ordenamento jurídico para problemas sociais
mas jurídicas passam a regular os fatos sociais por meio de textos novos sem a necessidade de criar novas leis, aumentando sua capaci-
indeterminados que incorporam expressões vagas como "boa-fé" e dade de adaptação a novos co ·tos O ór -o de aplicação, diante de
perrrutem..aoE juízes decidiretIW base em ·uízos de valor. - um maior espaço para a mada de decisã tem
lemas novos ao re ertório de solução de conflitos de
um determinado ordenamento jnódii;;o.
Ademais, a indeterminação das normas pode ser compensada
O\itraS ooisas Ou...ibW<!...~MYo~~~~~..;! pela criação de procedimentos de aplicação rígidos e órgãos aplica-
trará que o nazismo estruturou-se juridicamente ao impregnar o dores desenhados para diminuir as possibilidades de interpretação.
ordenamento jurídico de cláusulas gerais que, por assim dizer, É possível compensar a vagueza das normas com a criação de órgãos
"des-formalizaram" o direito e abriram espaço para decisões arbi- aplicadores desenhados de uma determinada forma; um desenho
trárias. Sob o nazismo, as cláusulas gerais são marcadas por uma que implicará na fixação de regras sobre o número de componente~
falsa generalidade, pois, apesar de serem form com a utili- tais órgãos e seus procedimentos de atuação, além de regras par~
zação de termos gerais, abrem espaço para cisões ad hoc. r; ;ntamento e frêinamento de sem profissionais. O efeito desta
No entanto, N!'.umann entende que esse não é o único des- forma de institucionalizar a aplicação das normas é criar entraves
feclw--pQSSÍvel para a mateàaliz~ão do direito. Esse fenômeno ara o exercício do poder q.ue estreitam o elenco de possibilidades
não precisa ser visto CO_.!!!,O necessariamente negativo, pois, para que se colocam diante da autoridade aplicadora.
tomeçai:,rue responde a uma necessidade real da sociedade. Sob o Para usar o exemplo concreto do Poder Judiciário contem-
capitalismo monopolista, não se pode mais organizar a produção porâneo: a existência de dois graus de jurisdição garante que
em pequenas unidades produtivas: surgem monopólios que não diversas sobre o mesmo problema jurídico, proferidas
podem ser regulados por normas gerais e abstratas. Além disso, a Pº! JUlzes e diversas circunscrições, sejam submetidas a ~
nbvo-julg.amento pou 1m gmpo menor de juízes diyididos em
tw:ma: e carreira. Esse desenho institucional
8 Cf. sua "Sociologia do direito" em WEBER, M . Economia e sociedad . Méxica/F: abre a possibilidade de padronizar a interpretação das normas,
Fondo de Cultura, 2004.
24 - PREFÁCIO PREFÁCIO - 25

diminuindo a indeterminação da aplicação. Além disso, todos da criação até o momento da aplicação das normas, afinal, a
os juízes passam por um concurso que exige deles certo perfil; ambiguidade estrutural do Direito nada mais é do que a insti-
certa formação etc., elementos que também têm o efeito de li- tucionalização do debate sobre o sentido do justo. A justiça não
mitar o espectro das interpretações das normas, pois os casos ~está posta em valores transcendentes. mas no deba te imanenfe
serão julgados por um membro daquele grupo de juízes e não às instituições. -----;;
por pessoas escolhidas aleatoriamente. Nesse registro, a distinção entre criação e aplicação das nor-
Diante disso tudo se pode dizer que, para N eumann, o mas tqrna-se apenas uma cpiestão de g;rau conforme o órgão ana-
direito passa a funcionar em uma ra~dade procedime~ isado; não ºferen a de natureza. O direito está em
A -segurança-e-a...crneza do direito não estão maisgarantidas e permanen ne.gociaçã com as esferas sociais da economia, da
antem-ãe-eem-~~o texto da noona. mas deverão ser cons- p.o..l.ú;ka e da c tura; também entre os diversos participantes do
truí<ÍaS-lla.aplicação pelas autoridades competentes e no interior sistema jurídico. O ordenamento jurídico caracteriza-se pela exis-
do sistema liberal Trata-se de discutir os mecarusmos capazes tência de um conflito procedimentalizado e ininterrupto pela
de-re o diante de normas indeterminadas criação/aplicação das normas, 12rocesso em gue seu sentido é deli-
~rativamente definido por diversos órgãos, inclusive pelo Poder
diRito formal que se torp ou implansíyel. Judiciário, mas não exclusivamente por ele.
Importante dizer que Neumann não desenvolve uma teoria Para Neumann, portanto, o direito sob o capitalismo mono-
da racionalidade jurisdicional; uma teoria da argumentação judi- polista não só mantém a capacidade de produzir certeza e segu-
cial que dê conta da reprodução interna do ordenamento jurídico
rança. como adquire também potencial emancipatório. Este é um
via Poder Judiciário. Sua preocupação maior é identificar o po-
ponto importante para se compreender O Império da Direito no
tencial emancipatório do Direito, ou seja, apontar para a indeter-
<Jü@@l@àiiece das outros escàtos de N enman n e, de resto, de
inação das normas como essencial ao ordenamento jurídico,
- \grande parte das apálises do direito de extração neoliberal e d;
efutando Weber, e mostrar que tal característica do Direito abre
ertrema esq11erda. ambas igualmente negativas
spaço para mudanças sociais.
Da parte dos neoliberais, temos críticas à capacidade do di-
Ü DIREITO LIBERAL PARA ALÉM DE SI MESMO reito de produzir segurança jurídica. Estas críticas tomam como
modelo, grosso modo, o tipo ideal do direito formal weberiano,
O espaço de · determinaçã .oea:i:aet@riza a direito moderno caracterizado pela regulação por regras gerais e e tex-
conferindo-lhe uma "am igw ade" estrutural. Não decorre dessa tura fechada, aplicadas mecanicamente pelo oder Judiciári Da
ambiguidade que o.direito tenha necessariamente de se autossupri- P-ª!!e da extrema esquerda, temos a denúncia do direito como.
mir9, eu seja, tomar-se irracional; nos termos de Weber. Neumann ~ra ideologia, ou seja. como instrumento q.ue serve apenas para
muda o registro da análise: o direito passa a ser visto como sub- ocultar a dominação de classe.
metido a uma "institucionalização" constante, desde o momento
Neumann tem uma resposta para cada uma dessas críticas.
Como acabamos de ver, o direito procedimentalizado é capaz de
9 Sua interpretação difere, nesse sentido, daquela de AGAMBEN, G. Estado de produzir segurança jurídica segundo um padrão diferente do
exceção. São Paulo, Boitempo, 2004.
26 - PREFÁCIO PREFÁCIO - 27

direito formal 10 • De outro lado, ele não funciona apenas como sua forma liberal promover o ~social~ Neumann
ideologia: ao garantir a liberdade de organização e de ação para os mostra como o ~azismo foi uma reação a essa característica do
diversos grupos sociais, o Estado de Direito permite a luta por dH-eito, promovendo a .destwição de suas estre~Jta s para trans-
interesses variados sem o rompimento das instituições. Mais do for mar a Alemanha._em Behemoth, um não estado de não dir~

J
que isso, ~s i~te~esse~ sociais po~em vir a se transformar em
estruturas mst:J.tucronais e em poüt:J.cas públicas sob a garantia do
Estado de Direito.
O espaço de indeterminação do direito pode ser "ocupado"
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO HOJE

Es s ois - a racionalidade do direito e sua relação


com a s ança jurídi ; e a ca_J2acidade do direito de controlar
por diferentes interesses, desde a previsibilidade racional do mer-
o pedeu: promover a redistribuição do excedente social ainda
cado até a demanda por i~aldade de grupos menos favorecidos.
faz~ parte da agenda de pesquisa de juristas, economistas e
Uma vez que sua preo~ção está delimitada pela questão da
demais cientistas sociais e permanecem no centro das preocu"Pà-
emancipação social, N eumann está interessado em descrever os
_çpes ~s das sociedades em todo o mundo. O Império do
processos poüticos e transformações institucionais por meio das
Direito traz análises e argymentos úteis para pensar esses doi,s
quais o direito pode possibilitar a ampliação desse espaço de
pr-0blemas, além de tantos outros, como mencionado acima. Em
negociação e da pluralização de demandas sociais. Com efeito,
sua primeira -tradução para o português, esperamos que este li-
não estamos diante da "aposta" em uma concepção jurídico-po-
VJ:CL.CQ..n tribua para o avanço da pesquisa em direito no Bra°"ill
Ütica progressista mais pluralista e, portanto, emancipatória.
Trata-se, antes, de uma tendência "imanente" ao desenvolvimento
com-sua angmaioa• . J' -1 d e e contundência ao p la ã entre~
direito, economia e justiça social.
e à efetivação do direito, que pôde ser afirmada a partir da des-
crição de seus próprios procedimentos e de sua institucionaliza- Além disso, é importante mencionar que este livro é central
ção ao longo da história. para a tradição crítica ligada ao Instituto de Pesquisas Sociais em
Frankfurt, cujos representantes mais conhecidos são Max
É fundamental o fato de que a luta social, desde a entrada
Horkheimer e Theodor Adorno; mais contemporaneamente,
do proletariado no Parlamento na década de 20 do século XX
' Jürgen Habermas e Axel Honneth. Recentemente, essa tradição
pôde se voltar à .i:.e.distribuição da riqueza: os direitos sociais (in-
tem se preocupado em pensar sistematicamente o papel do direito
ive os direitos trabalhistas) explicitaram a desigualdade social
para a emancipação social, afirmando a capacidade humana de
~-explo.ra.ç- trab o e su eitaram a
transformar o mundo para construir instituiTõei; mais jttStas. O
"<:lênte-Sru::iala..ctité ·os oütico esse momento, toma-se possí-
direito voltou a ser considerado um componente central da crítica
vel controlar socialmente a reparti ão da ri ueza por meio de
social, especialmente depois dos escritos mais recentes de Jürgen
net=mas..qu eg;yhm ro ·ed d trabalho se
Habermas, distanciando-se as~m da ka di ção do marxismo.
pr-0ces.5J deixa sênci do Estado de Direito em
oviético ~ Sabemos que a tradição de esquerda sempre olhou

10 A utores contem porâneos têm uti lizado estas ideias para pensar a relação entre
direito e capita lismo em países não ocidentais. Ver por exemplo: JAYASU RIYA, 11 Cf. HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 Vol. Rio
Kanishka. " Franz Neumann on the Rule of law and Capita li sm: The East Asian de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997; HO NNETH, A. Lula por reconhecimento: A
Case", 2(3) J. Asia Pac ific Econ. 357 (1997). gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003; HO NNETH, A.
28 - PREFÁCIO N OTA DO TRADUTOR - 29

para o direito, e para as instituições em geral, com desconfiança: o NOTA DO TRADUTOR


direito era visto apenas como um instrumento, seja da dominação
burguesa, seja para favorecer os interesses proletários. A presente tradução do livro de Franz Neumann foi feita a
~ Nesse sentido, O Império do pireito pensa radicalmente contra partir da edição: The rule oflaw. Política/ theory and the legal system
a instrumentalização do direito. E claro, isso não significa excluir a in modem society. Leamington: Berg, 1986. O livro foi escrito em
possibilidade de pensa.tos fins ~ e sua relação instrumental 1936, originalmente em inglês e publicado apenas em 1977 em
Cflt!l as instituiç{ks. Trata-se, ao contrário, de mostrarsue este fi!Odo alemão e em 1986 em inglês. Porém, foram feitas algumas modi-
dépensat i:ttsuwnencdtzade-pode e deve ocorrer no interior do ficações em relação a essa edição organizada por Matthias Ruete.
Esmflo.-d.tH;)U-eito....I-stG-pG · eit é essencialmente incom- a) Ainda que escrito em inglês, N eumann faz referência cons-
"JlatÍVel-com-mna..instCJ1mentafrração completa, ou seja, a subordi- tantemente aos termos filosóficos e jurídicos em alemão, colocan-
naçãe total àa-furrna a objetivos externos a ela. do-os entre parênteses. Nesses casos, mantivemos os termos em
{ A forma, em si mesma, é um fim ;;-cial que favorece a alemão também entre parênteses ao lado da respectiva tradução
~mancipaçã.o, Ae ~ão apenas 't~para ou~ros fin~. em português. Demos preferência também por traduzir tais ter-
Afinal, a extstenc1a do poder s~ al, ou se1a. desR1- mos a partir das referências alemãs indicadas pelo próprio autor.
à-a-fle-.qualquer formalização .e, par isso mesmo, capaz de det~­ b) Neumann raramente traduz as citações que faz a par-
~a · m te se 1 - e r ela s· o tir de outros idiomas (no caso: latim, francês e alemão), man-
d._~direit . Isso não significa apenas que as instituições do di- tendo-os no original. Optamos por traduzir todas as citações
reito sejam capazes de asse rar que a liberdade não seja subju- para o português, utilizando quando necessário, porém, tra-
gada-por uma vontade política não democrática, m V1 u ~ duções já existentes em edições de língua portuguesa. Nesses
-eole.tiya. Significa...também o · · · ade de emanei ação casos, indicamos a utilização integral ou parcial das traduções
social está inscrita no cerne do im ério do direito e ue a "ver- em questão.
a_dei ra democr~ e na exclusão de e) Sempre que o autor traduz citações de outros idiomas
toda..situação de "não direito". para o inglês optamos por traduzir para o português sempre a
~ do idioma original. Com! sso, pretendemos eV!tar as ªtr~­
JosÉ RODRIGO RODRIGUEZ -duçõ.es de traduçõe1."".
Doutor em Filosofia pela UNICAMP, Mestre em Direito pela d) Pr~ot_co~re que possível, os erros rela-
USP; Professor, Coordenador de Publicações e Editor na Direito GV, cionados ~Ó,q>~o tom s, datas e edições das
Pesquisador do N11.cleo Direito e Democracia, São Paulo. r~ências bibliográficas feitas por Neumann.
e) Os esclarecimentos dos termos traduzidos considerados
mais difíceis ou de maior relevância para o contexto em questão
encontram-se em nota de rodapé indicados como N. do T. (nota
do tradutor). Mantivemos também as notas de esclarecimento do
Sofrimento de indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do Direito de
editor inglês, Mathias Ruete, indicando-as em nota de rodapé
Hegel. São Paulo: Esfera Pública, 2007. comoM. R.
30 - N OTA DO TRADUTOR A GRADECIMENTOS - 31

É preciso dizer que as traduções de muitos termos técnico- AGRADECIMENTOS


-jurídicos foram sugeridas e posteriormente revisadas por José
Rodrigo Rodriguez, a quem agradeço de antemão. Este livro é resultado de nosso trabalho no Núcleo Direito e
Democracia, CEBRAP, São Paulo. Agradecemos a todos os seus
membros, especialmente a seus coordenadores, Marcos Nobre e
RúruoN SoARES MELO
Ricardo Terra, pelo estímulo constante durante a elabora ão des-
tradu ão revisao e escnta
N OTA SOBRE A ILUSTRAÇÃO DA CAPA - 33

NOTA SOBRE A ILUSTRAÇÃO DA CAPA

J. M. W. Turner, The Burning ofthe House of the Lords and


Commons, 16th October (1834).

A experiência jurídica inglesa inspirou Franz Neurnann na


escrita de O Império do Direito. O direito inglês atesta a sobrevivên-
cia de uma ordem jurídica a transformações sociais profundas sem
rupturas definitivas, mas com mudanças institucionais radicais.
~( Neurnann mostra que é precisG-SYbmeter os conflitos sociais à for7,.
l nta-dli:eitG-para não destmjr a sociedade ou criar uma ordem tota-
litát:i A - - • • em abdicar da emanei ação humana.
As sociedades nascem da formalização de forças s n
sempre ·eas e de ·doras. Na Oréstia de Ésquilo, em tro-
ca de poupar ó/is abrir mão qo desejo de vingança, as Erínias
são .convidadas a abitá-la, mas sob a forma de E . Abrem
mão da violência em avor a eli eração, formalizada no direito.
O fogo que consome o Parlamento no. uadro de Turner ode ser
visto-CO.IllO a alegoria do embate entre essas duas fur.ç anta ôni-
'Gas._compostas da mesma luz. Mas uem ueirna ali é a razão.
E não queima como e Heráclit , pois para ele, o logos é
ueirna o logos é a madeira, é a chama. é o ru:nsar nos dois.
Ela ueima co

') dos Comuns, Londres, 16 de


18-34: a~razão, as insti~ê~~-
É preciso domar o fogo parê_ ser capaz de acendê-lo nova-
te or mei e-anr-ato-tleliberado. Formalizar as Enmas e
acender o .direito contra a violência· ansformar o fogo destrui-
do dese' o de deliberar entro e fora d
~ A existência do direito faz prevalecer a comunicação sobre
34 - NOTA SOBRE A ILUSTRAÇÃO DA CAPA

a vontade de destruir, a razão sobre a vontade de poder. Sua fim-


ção é promover a metamorfose da fiíria em desejo de razão que,
como todo desejo, também queima como a paixão. Mas não quei-
ma como um incêndio e sim como um motor.

JosÉ RODRIGO RODRIGUEZ

INTRODUÇÃO

A BASE TEÓRICA
FRANZ NEUMANN - 37

O Estado moderno apresenta duas características básicas: a


existência de uma esfera de soberania do Estado e a existência de
uma esfera de liberdade frente ao Estado.

1.
Apenas com a existência da soberania podemos falar de Esta-
do enquanto tal. O Estado sober~o existe independentemente dQ&.-
diferentes grupos e nflito numa s · . Apenas o Estado
mo erno protege Estado o gµardar suas fronterras. ele conqi.ús..ta
n~vos mercados e pro uz a unidade interna da administração e da
ei;. _ele destrói poderes locais e particulares, expurga a Igrçja da esfe-
flLlernlar, mantém os grupos sociais conflitantes no interior de fro.n~
teiras determinadas. ou extermina um dos grupos sociais em conflito
quando seu extermínio parece necessário para o bem do Estado.
Ao mesmo tempo, a sociedade moderna e em
períodos decisivos de sua existência certos · itos humano -
sto é ar te um certo âm · · rdade an s ado.
Foi assim que ele usou a deia da liberda e em sua luta contra
poderes feudais e contra o abso uns.mo. ecessitou-:se de liberdade
econômica para o desenvolvimento ~s forças produtivas.. Tanto
histórica como :filosoficamente, essa liberdade foi concebida para
~ e~stir antes do Estado, e o Estado desenvolveu-se como o meio
42ara a sua realização conce ção, a sociedade b esa
transformou o eito natural mediev eit s humano
staao.
Contudo, a concepção de ~ bito de liberdade só pode ser
alcançada por meio de ormas gerai - tenham estas normas o
Máter de um direito divino OU seCular, rnmíraJ pu positivo geral.
Todavia, a norma geral nas sociedades modernas exerceu e
exerce um outr el. A não ser por uma circunstância na qual
a liberdade -o está garanti , ou no caso em que se possa inter-
fef"ir i:i.a liberdade sob cirrnnstâncias extraotdiná.tias, a açãg QQ
Es-taag deve poder ser deduzida de normas gerais, um fenômeno
que foi postulado por teóricos de uma forma absoluta. >
38 - Ü IMPÉRIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 39

\'Os direitos humanos e a imputação _de todo_s os atos de in- ficiência do poder do Estado é alcançada apenas com has~a
\ tervenção do Estado as gerais const1tuem o que se li erdade política1•
{ conhece como o lmp.éri do Dire· o (The Rufe of Law), ou, de Entretanto , eríodos nos quais um antagonismo real cor-
\ \ acordo com a termino ogia em Rechtsstaatscharakter (o caráter r sponde ao - ta onismo lógic Es~e antagonismo real leva à .r.e-
\) de Estado de Direito). vi ie-da distáhuição as es eras entre a soberania do Estado e o ,
\ Tanto a soberania quanto o Império do Direito são elemen- 1mpécia-do..Direito em favor de um ou outro elemento, na qual a
tos constitutivos do Estado modemq . Contudo, ambos são irre- ituaç-o mar · al, de um lado, é o absolutismo estatal, e, de ou-
c0nciliálreiS-entr.c-si, pois a poder mais elevado e o direito mais ttQ, o aniquilamento o o enquanto t
e evado não odem ser realizados ao mesmo tem o em uma esfe-
2.

~
ra comum. Até onde se estende a soberania popular não á ugar
p~a o Império do Direito. Sempre que uma tentativa de rec~ci- Tent~adiante que uma justificação secular e
liayâG-~fe-ita Gheg contradições in ·sso úveis. -., ào d~, istQj, nmajustificaTão humaoabaseaga
Por outro lado, na medida ominação do Esta- na ~ des ou nas carências dos homens, pode ter cons uências
do é declarada sinônimo de Império do Direi , é impossível reyolucionárias sob certas circunstâncias históricas Isso é verdade tanto

J conceber-o Estado como um corpo s ' e autônomo, iÊ-


~te das forças sociais existentes. Sempre que teóricos
dos direitos humanos fazem essa tentativa de construir um
para a teoria da soberania popular como para o absolutismo iluministàf.
Desse modo, as pretensões da burguesia em ser uma nação enco12tra
uma pretensão paralela por parte do proletariado constituindo a si
pedeulo..Estado..s.oberano e independente, eles têm que aba_E- 1 mesrrw-como>a nação. Do mesmo modo como a burguesia destituiu
;>

\::;d0n-ar-o-lmpério-àe-D~-0u se veem enredados em contra- o domínio feu~ e o absolutismo monárquico sub o rlogan d~
dições indissolúv.e_is. '~epr~o da Vontade do Povo", também o proletariado quer,

Todos os sis~ê~bos os elementos, mesmo quan- por sua vez, .representar a vontade dQ. povo fundindo o Estado no
do devem ser de arados monista~, tal como, por exemplo, o de fIB>letariado, após este ter se tornado a nação. "As armas com as quais
a burguesia derrotou o feudalismo estão agora voltadas contra a própria
I-fubh~, de u~do, e o de Locke, de outro.
, burguesia". Essa frase, que pretende ser válida para esfera prática,
N~--sempr~antagonismo lógico entre soberania absoluta
também é válida para a esfera ideológica, pois o conceito democrático
e o I ério do Dir6ito corresponde um a agonismo factual
l!penas se exaure do o prole · do se torna a nação e constitui a
e~i:cjgg da soberania estatal e a prática implícita~
si mesmo como a classe pacio o socre a e mo ema, contudo,
é confrontada com o dilema ~ conhecid'6) satisfazer as pretensões
lmpécic.wi · ito: o~ja 1 há situações históricas nas quais o
ex~i~berania estatal confina-se a si mesmo no interiQ!
de-t:ais.limite.s, de modo a permitir o exercício implícito do
ério do Direito. Ou - em outras palavras - em-ta l período há a expectativa de que a soberania
possa emergir da livre competi ão do mercado.
Isso é verdadeiro, por exemplo, de acordo com o Capítu- 2 Sobre o conceito e "racional", cf. p. 66 e ss.
3 Outras form as de justificação são o tradi cion alism o, por meio do qu al o
lo XIII do livro Direito da Constituição de Dicey, aplicado ao Estado é j ustificado por sua própria existência; o ca risma; e, certamente, todas
período em que viveu. Ou seja, em tal período, a mais alta as teorias divinas.
4 Dilema que é mais bem apresentado em LASKI, Harold J. Democracy in Crisis.
40 - Ü IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ N EUMANN - 41

do proletariado ou ~ isto é,
1
~onar
seus ideajs legal e a prática jurí · urgue são, tal como colocado
p sados ou re ere teresses imediatos. A escolha r Carl Schmitt, Situations- uns - ou seja, o direito é uma
geralmente tomada é bem conheci O conceito e democracia é m~ca para a conqwsta e manutenção do poder. ~

~
abandonado quando as mas~, que despertaram recentem~ O abandono da democracia é ac ~ar Yma .imretSão
chegaram--a-uma--auto-coosciêQf.ia política durante • eríodo_do no sist~ma..de yalores da esfera filosófic?-. lii!J!!jg)é desvalorizada,
ind11strialisme-e-da-guerr'3.ffiundial exi~ essa democracia paraJi Q!9Ue a justificação do Estado por meio da vontade dos homens é
mesmas, ~llaRda J!ma sociedade feudalizada pelo monopólio apresentada como imanentemente revolucionária. A justificação cor;_
ectm:ômioo-é-iaeapaz.d~tisfazer tais e.xi.gêccias5• base nas carências dos homens não é realizável, porque a contradição
bviamente .crescente entre promessa e realização d eye levar
3. nea:ssariamente à desilusão. Nesse sentido, por causa da impossi-
bilidade d e rocesso de seru}arização, mantém-se apenas a
A terceira tese - entendida como a tese central - consiste em
·ustifiGayãw:arismátiçaz gue é um caso típico de uma atinide extrema
demonstrar o efeito ~r de um lm ério do Direito geral
de irraàonalidade. Qye a moderna filosofia vitalista censura o
que garante a liher<lade em uma-SG · de base des· de.
cionalis o - uma vez que esse pensamento se torna uma influência
Admitimos que toda norma geral, seja o direito na ou do di-
fa - e..; orreto na medida em e o pensamento liberta a uelas
reito positivo, que pro~ estabelecer um liriii e a atividade do
forças qye visam à destruição da sociedade urgt!esa, assim como
~de,-ooatribW. nece= amente para a desintegracio do status quo.
contrilmiu,p domina -o seêlllãf aa
1 e· a e do sistema
~alquei;..a0HBQ desse tipo é uma faca de dois gumes.
Tal como Kurt Wolzendorff mostrou6 , o direito natural em
- feuclal,-eam
vor da liberdade..
12-ara a vitória dos direitos poüticos em
-
17
especial é apenas "uma forma teórica para alguma ideia poütica' • O
Na medida em que o presente livro continua minha tese de
text os ' assim como as teses acima sugeriram, que as normas
doutorado não publicada, de 1923, ele desenvolve o que se entende
do · · eito na então válidas, como também os direitos posi~s
ser o caráter puram~te ideológico do direito namral ~om hasr..
gerais.,_ç_orrespondem aos interesses ;r,::;rtGs g;i:upos e exercem a Wo
n 'tica ' filosofia do direito kantiana e neokantiana. Os dez
de-legitimar-.-a.s-pG&i~s de poder às guais estavam ligadas. Após
anos nos quais me dediquei principalmente ao · eito industri
conquistar ess~ , e resentantes de classes particulares
não me deixaram tempo para nw exame posterior da minha tese
abandonam ~J!npério do Direi ~lesmente o apoiíijll
Contudo, minha prática como advogado e professor de direito
falsamente com a ·âãde-de somente encobrir a dominação de
dura nte esses dez anos não contribuíram para diminuir rninhi"
uma.-Clas.se; de acordo com as teses 2 e 3 ntecer mais cedo
convicção a respeito do caráter puramente ideológico do díieit;
ou mais tard~a.to de o reconhecimento 129sterior do Império do
--Jlireit0-se.....to erigoso para as osi ões de oder ou para a
natura 1, nao- 100
.
portangp.l
qµ al se1a
. sua estrutura. Ao contrário,
...

~tabilidade da ordem social. Tentou-se provar, portanto, que a teoria


minha prática apenas refo ;o.u..aqnela conyicção que encontra
expressão no presente trabalho.

5 Cf. algo similar em RUSSEL, Bertrand. The Revolt aga inst Reason. Po/Wcal
Quarterly, p. 5. 8 Cf: HORKHEIMER, Max. Zum Rationalismusstrei t in der gegenwarti gen
6 WOLZENDORFF, Kurt. Archiv für offentliches Recht, vol. XXXIV, p. 477. Ph1losophie. Zeitschrift für Sozialforschung, 1934, p. 1 e ss.; MILL, John Stuart.
7 " Eine staatstheoretische Form für jede politische Idee." The danger of asking why? Dissertations and Discutions, vol. I, 3ª ed. p. 332.
42 · 0 I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 43

4. nta~es e se~ Às veze~ são predominantes em um sistema as


rantias da~ (Grotius e Locke), outras vezes predomina a
JU tifi~ da coerção do Estado (Hobbes e Pufendorf). ~
Igualmente sem importânaa para nossa mveStigação são as
JU stões que tem criado muito problema para a teoria política --au
j , se o.estado de natureza foi pensado como sendo um fuiôweuo
his ' · u a enas uma ficção 11 • Ainda que alguns teóricos do
di eito natur enham concebi o o estado de natureza como um
f • meno stórico - e ~mo que essa concepção seja falsa -, sua
e pQd~ertada dessa base incorreta ao se manter o estaoode
n, tureza a enas como um princípio metodoló ·co. Por essa razã~,
t mos de colocar a ues : como o estado de ní!!J1reza dwe s_cr
es ·to Jlª!ª gue justifique a dominação do Estado ou a liberdade
reme à sua interferência? A resposta consiste em que todos ~
teóFi-tGs.. absolutistas dÕ direito natural (Hobbes) conceberam 0
home o inerentemente mau em seu estado de natur 12 e ~
ais do direito natural Locke o conceberam como bom.
Do mesmo modo, é de pequena~ nós saber se
Contra~o
Social é considerado um .f~, um ideal
a~ realizado (Rousseau), ou uma i~ia transcendental (Kant~ 13 •
esmo se um Estado nunca se estabeleceu pelo contrato -
ão se tem certeza-, a~gpria do Contrato Social pode ser um
i:.incípio metodológico necessário para a justificação do Estado
ou da liberdade frente à ljberdade da Estad.Q)
Na Parte I (A Base Teórica), estamos desenvolvendo aqueles
9 Com exceção de GIERKE, Otto. Natural Law and the Theory of Society 1500- princípios gerais que depois de~o ser a.plicados à análise de
1800, vai. 1, p. 111 e ss.
instâncias particulares nas duas pr-Orimas partes_._
10 FIGGIS, J. N. Studies of Political Thou Crotius. p. 157-158.
Neumann utiliza aqui o adjetivo fll.2!2archomachical azendo alusão aos O presente trabalho lida com a teoria das re~ões entre direi-
M?~archom_ac~s: O termo M~n.archoma~rotHI ado aqui sempre no seu
original) foi ut1_lizado por Willi an Ba r~y, em seu livro Oe Regno et Regali
to, ciência política e economia. Em 1.1., O Conceito de Direito,
Potestate, publicado em 1600, ao se ;eferlrau~ão chamados " assassinos
de reis". Segundo Barc lay, quando' os huguen s (membros da reforma
protestante da Franca ~a~Y,~ ~u ~o X 1 com os calvinistas franceses)
perder-am swa li1ta cont@_o 0
• · , gs:val!aiarq sgas a1111as e 1tla õSreis 11 Sobre a introdução da noção de estado de natureza, cf. ROBSON, William A.
~ ·avam os católicos. O te rwo ficou conhecjdo para 1n~1ca rtõdos Civilisation and the Crowth of Law, p. 258.
ª(;jtl ra o overno dos reis. Antes de const1tu1r Urii 12 Cf. GOOCH, S. P. e LASKI, H. J. English Democratic /deas in the Sevententh
a'nf bsolutismo ra ·ea, a tradiçã a está a na ideia Century. Cambridge, p. 139.
reAStituci ta de ue os estados poderiam impor restrições ao monarca. 13 SA LOMON , Max. Kants Originalitat in der A uffass un g der Lehre vom
Cf. adiante o cap. 4 do presente ivro . o .. Staatsvertrage. Archiv für ãffentliches Recht, vai. XXVlll, p. 97.
44 • Ü IMP~RIO DO ÜIREITO

fazemos algumas considerações gerais sobre o conceito de validade


dG-diteito. ~
No quadro da'~ a ênfase deste trabalho recai
sobre a sociologia do direito. Em 1.2., portanto, opomos a socio-
logia do direito ao tr ent exe _' · ático d dir · o,
e~rob~ ·a do direito - s er o roble-
rha-das inter-re1a~ões entre direito e a subestrutura (Substrat) ju-
ridiea é esb0çado em suas características básicas. -
}

No quadro da sociologia do direito, a atenção é dirigida prin-


cipalmente à sociologia da estrutura jurídica e do Estado. Dessa
forma, em 1.3. fazemos algumas considerações sobre o conceito e.a
i tistrutura...bási~o Estaêo - im como características
clis · · e as cate orias essenciais do Capítulo 1

O Lugar do Problema no
Qyadro ~o SistemaJurídico
Uma vez que a dominação das normas gerais exerce uma
importante influência sobre o caráter e a medida da racionalidade
dõ-direito,...trataremos de várias tipos de rac1onãtldade do díreito't
el~uas inter-relações.
As várias normas que constituem o
quentemente sãa-aqu~la6-'}Ue g;irantem certas es ou as
qHe..g te certas nstl · 'dicas. Portanto, ofereceiiiifs'
um esboço de uma teoria er a e ae um sistema de liber-
actes-, seguinOO-ronsistentemente a teoria e o sistema das insti-
ttli~~s.
Em um capítulo posterior tratamos das relações entre liberda-
a~-s-e-instituições,
com eSI,?ecial referência às relações suplementares.
Antecipando a .i.mkesti~ ão sociológica da relação entre a so-
berania-e-o-lm~-fte.do Direito, nós finalmente, em 2.3., lidamos
cO-rrra"S-fel'açê~S-Gorrespondentes no direito - a saber, o dualismo
'das.-dois conceitos de direito. =-
FRANZ NEUMANN • 47

1.1. 0 CONCEITO DE DIREITO

Gostaríamos de definir o direito em dois momentos - aque-


le da~ e aquele da (ç~ Como Hegel diz, "as formas
bstratas não se revelam eomo l!\ite-suficientes, mas como nã9

-
verdadeiras'12 •
De acordo com seu cará"7'"_-.::ercitivo, o direito J!Ode ser dis-
ºdo do ºda . Todas as tentativas de uma

O sistema jurídico é a o,rdenação das metas da sociedaQe


que é m!Hltída por meio da coe~ão exercida por sua pró-
pi:ia organização externa. e a possibilidade do uso da força
fo cisiva do sistema. urídico; porém, o con-
trole parece espalhar-se por toda a
sociedade wgànizada, e é por isso que não apenas o Esta-
do., mas ta mbém outras vontades têm a fua'ffo de càa(J!
m_anter o direito. Tod<l,Wocejto de direito contém em si o
momento da sociedade externa; por outro lado, toda orga-
nização pode ser coustruída apenas em termos jmíd icos. 4

(Todas as normas ~e possuem validade sociológica também


possuem validade jurídica.) Com a finalidade de dar a essas normas

1 DILTHEY, Wilhelm. Einleitung in die Ceiteswissenschaften, vol. 1, p. 80.


2 HEGEL. Rechtsphilosophie, §32, Adendo: "As formas abstratas se demonstram
não enquanto subsistentes para si, mas sim enquanto não verdadeiras".
J Cf. HOLMES, Oliver Wendell. Co//ected Legal Papers, p. 170.
4 DILTHEY. Einleitung, p. 80.
48 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 49

' validade jurídica, o poder coercitivo do Estado deve colocar-se O direito (law), no sentido filosófico, deve ser definido
'i potencialmente à sua disposição. A imputação do poder coercitivo orno uma "realidade que tem .f.Omo sua função servir à ideia
do Estado é suficiente ara urna consideração jurídica do conceito
.de direitq,, Pois a validade ociológica norma, ou seja, a potencialidãde
da-ag le da a cabo e
i do direito (R.&cbtsirke). O · · · J egri e- -
direcronade à id@ia àe àireit:e (ri~ói): Por um lado, a ideia de
7
direito contém a demanda par justiça e, por outro, a demand~
C!eatudo, suficiente;, O fato de poder e:u~~4ª-~e.sscru:Jàl p.ela satisfa ão das necessidades humanas vitais assim como do
validade sociológica da norma jurídica é, portanto, caracterizada pelo ~tado em várias esferas da vida soei A definição da ideia de
fat " eio dela é criada uma ex ectativa (Chance) justiça é agui tão irrelevante quanto a sua realTzação histórid'l!.
segt:tFKl ou outro suºeito econômico irá ozar de uma O que é importante n~at.e ponto é o fato de que o dirnit9 7 A.O.
~~ecialmente enfática e que raramente deixa de ter êxito sentido filosófico. não corresponde de forma idêntica às neces-
/
1\ sidades do Estado e da sociedade ens- · ' · e
i - e al
jurídic
s de seus interesses" . ssim, soc10 ogicamen e a norma

~u.q~~~~~~:::::~ta
~fti~ .
ativa que de fato é realizada pelo
sde o Renascimento o Estado
~ justiça e necessidade reside o principal problema da filosofia
do direito)

1.2. A SOCIOLOGIA DO DIREITO

1.2.1. EXEGESE E SOCIOLOGIA DO DIREITO

lA ciência doQ é tan~t02.J,~~~~~las...rull'.Ilaru;_.qua.io..ta


da realidade\ Enquanto u iência das norma , ela tem como
questão · · oh· etivo das normas ºurídicas. Enquanto

Juma ci Ancia da realidad , ela in~estiga as relações entre normas


jurídicas, a subestrutura (Substrat) social, o comportamento sociãl
de_sajeitQs jurídicos e dos administradores do direito.
A interpretação das normas jurídicas pode, portanto, ser
.....,l.l.L!~t---1..~ã...o
é da essência da norma, portanto, o consentimento do
~~~' interi:>retações de estruturas mentais - uma
s eito jurídic . A razão para a desobediência ou a aquiescência não 1~~ Ull)a imanente e outra transcendente, caso
é questiio para uma sociologia do direito, embora seja talvez para aà"9-~os a classificação dos tipos de mterpretação de Karl
.uma psicologia do direito

7 RADBRUCH, Gustav. Grundzüge der Rechtsphilosophie, p. 29.


5 WEBER, Max. Verhandlungen des 1. Oeutschen Soziologentages, p. 75; BENTHAM, Neumann usa frequentemente o termo right quando está traduzindo a palavra
J. Theory of Legislation: "É por isso que temos o poder de formar um plano geral Recht. Isto, contudo, não pode ser confundido com o uso atual do conceito
de condu ta (...) A expectativa é a corrente que une nossa existência presente right. Na maioria dos casos, seri a mais apropriado usar /aw (N. de M. R.).
com nossa existência futura, e que passa por nós indo além, até a geração que 8 SCHINDLER, Dietrich. Verfassungsrecht und soziale Struktur, Zürich, p. 35;
se segue". MANNHEIM, Karl. ldeologie und Utopie, p. 110-11 ; HELLER, Hermann. Oie
6 WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft, p. 396. Souveranitiit, p. 128.
50 - Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 51

Mannheim 9; ou, na terminologia marxist , uma ideológica e políticas, que encontrou seu caminho na ciência jurídica em vir-
-----~
uma sociológica. tude do ·ncretismo metodológico o período do direito natural
-l.M\ A ciência das normas tem como questão a ordem jurídica e do século abriu-se caminho taÍiibém para uma nova valo-
~, considerada uma estrutura mental autônoma oposta à realidade. ração ética do direito e umª noya relação genuína entre direito e
do direito de Kelsen é uma teoria do direito · ência olítica.
(Estado e direito são idênticos na jurisprudência normati-
a15.\Em último caso, o direito deve ser atribuído ao Estado. A
característica finalmente distintiva do direito é sua derivação a
partir do Estado. Se esse é o caso, e se·J,L.!:ldir
~·LSe~
it~ou;..u-~wwlJ.l..iW1.1
ambos ordenações, então ambas as ordenações devem ser idênti-
lógica interna, tudo o que
-=----
tudo que está em conflito com ele é necessariamente iles:!. Pois o
.cas.. O Estado pode somente ser juridicamente recoobecjdg rnmo
um fenômeno dg direito, uma vez que se trata de uma hierarquia
cfu:eitG--náG..p anter sua saber ·a em outros termos" 11 • Por- normas na qual todas as normas têm de ser atri ' uma
tanto, a jurisprudência normativa coloca a questão singular e ex- única norma básica. Por isso, toda norma jurídica é um julga-
clusiva: qual significado ob"etivo deve s atribuído à norma mento hipotéticg a respeito ortamento futuro do Esta-
jurí · 12 ?A diferença fundamental entr . "ser e eV' r-ser' pode

~
do ~ A essência de uma n rma jurídi
ser formulada da seguinte maneira: "Do fato de que aquilo é, comando, -
e-se que aql:úl~a - OU.,.Ç,Jue_aquilo eri .., mas punca qll} everia rea · tal ou tal maneira. A conexão
~~~.......iill;:;r..-.-..!~·~
urisprudência normativa considera a lei como a "urídic e o
em referênci ' ·dade social ou à sua
e causa mas s normas.
lAjurisprudência normativa não alcança nenhum resulta-
º positivo concreto. Os resultados obtidos por ela são pura-
mente negativos~
Para a jurisprudência~a, o direito subjetivo não é
anterior ,à lei objetiva, mas é derivado dela. Mesmo se, de acordo
com a c~ção do liberalismo filosófico, a esfera de liberdade do
inàivídüG de% ser ~QAsiderada principalmente como uma esf? a
il imitada, no rjrtemaj urídico do liberalismo essa esfera da liberda-
9 MANNHEIM, Karl . ideologische und soziol ogi sche Betrachtung der geistigen de só é compreensível na medida em que é delegada pela lei.
Gebilde. /ahrbuch für Soziologie, vol. li, p. 424 e ss.
10 KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre, 1934, p. 1.
11 LASKI, H. J. Law and the State. Studies in Law and Politics, p. 239.
12 WEBER. Wirtschaft, p. 368. 15 Em vez de • ia a todos os trabalhos de Kelsen, remeto o leitor ao
13 KITZ. Sein und Sollen, Frankfu rt, p. 74. simpósio R i e Rechtsle e, com a bibliografia que o acompanha. Para o leitor
14 KELSE N, Hans. Ha uptprobleme der Staatsrechtslehre, p. 334. inglês em part1cu ar, conferir seus dois artigos em Law Quarterly Review.
52 - Ü IMP~RIO DO D IREITO FRANZ N EUMANN - 53

O direito subjetivo é um título. Portanto, constitui somente O sistema jurídico é fechado; não existem aberturas genuí-

1
uma formação especial do processo de criação da lei. Até o momen- nas, e esferas isentas do direito são inconcebíveis.
to, a diferença fundamental entre lei objetiva e direitos subjetivos Não pode haver diferença entre lei jurídica e direito con-
está abolida. uetudinário, case law* e direito estatutário. Pois o direito con-
A ordem jurídica só pode ser concebida como parte de um pro- uetudinário só pode ser concebido como lei se se parte do fato
cesso de uma concretização gradual do direito, a partir de uma hipó- de que o Estado atribuiu aos costumes permanentes o direito
tese única - a saber, a norma básica. Direito é tudo o que (e apenas o de criar lei. Isso foi claramente formulado por Hobbes: "Qyan-
que) pode ser imputado direta ou indiretamente para essa norma do um costume prolongado adquire a autoridade de uma lei,
básica. A ordem jurídica é uma hierarqµia-(-Sttfaiéau). Essa ideia foi não é a duração no tempo que lhe confere autoridade, mas a
introduzida pelo discípulo de Kelsen, ~' que, entretanto, vontade do soberano expressa por seu silêncio" 19 • Filmer enun-
tal como ele mesmo admitiu, derivmwua.ideia do própáo trabalho de
ciou esse princípio de uma fo~ mais clara: "Não é a
~~ls@n16• Os estágios da hierarquia consiste na constitui -o le ·sla-
existência de um costume que &-~, pois então todas os...
ção e admiajstração da justiça. A adminis~ àaj1:1s~nsis­
costwnes, me@o os maus costumes, seriam lícitos: mas é a apro-
te apenas na declaração do direito, mas' ta[!ll?_ém na~~ A
vação..do-pader supremo que confere legalidade ao costume: onde
skcisão da corte cria o direito parque ela cria, uma nova norma17 •
não...há um poder supremo sobre muitas nações, seus cosrum~s
Não há difelf a par · ·sprudência normativa entre uma
..não podem se tornar legais"2º.
pessoa -ti e uma pessoa de direit . A pessoa natural é a portadora
de-direitos e de.v~s somen e or ue o sistema jurídico a tornou De acordo com a~ , os corpos autôno-
wn::::.pnnt-<L "hui ão 12ara tais direitos e everes 1un cos. mos, n_a::.re · dade, não são autonomos, porque seu direito de
giar lei ode ser 'uridicamente concebi o a enas se
~ -
ciência_nura do direit não h' diferen a entre administra -
ção-judic;iária, porque o exame=impai:Giald so no al se su õe
&tt-

põ·e-c;iue essa capacidade lhes foi delegada pelo Estado. É por


Roder distin~ uma coisa da outra também só constitui uma essa raz- a-que-a-ci eia pura do direito também é identificada
A

fun ão do sistem · co. e ais, não há · erença catego- com as teorias de Hobbe , que...poderia entender o direito canô-
rial entre o .çontr~ dos sujeitos de direi e as ~ões coercitiv~o nico somente como uma parte "da lei da Inglaterra'::.1. Final-
~do. Am~ ti os de ações são individualizações e concreti- mente, para a teoria pura do direito não existe diferença entre
zações das normas gerais · . Assim corp.o no caso do c case law e direito estatutário. Hobbes expressa essa ideia do se-
Es.tadCLdelega.-a9S-6UJef e o oder de executá-lo - ou
s~ja,..a_chamada "~tonomia privada .
É comum se manter em inglês o te o ca w, distinguindo-o de customary
·faw,. ainda que semelhante em seu i nifica . Em ambos os casós, o seu uso
16 Cf. MERKL, Adolf. Veroffentlichungen der Vereinigung der de utsche n mais comum enf~nça frente ao termo statutorv law, uma vez que
Staatsrechtslehrer, vol. 4, 1921 , p. 200. se tFata11a do direito derivado da decisão e interpreta1;ão judiciais anteriores. A
Aqui parece haver uma contradição na teori a de Kelsen. Se. uma norma co~iste discussão detalhada do termo será feita por Neumann no cap. 14 (N. do T.).
17
nuULjulgamento hipotético aplica do a um comportamento futuro ao Estado, 19 HOBBES, Thomas. Leviathan, vol. VIII, cap. XXVI, p. 252.
a decisão da-€GAA-.11ão..pode ser ela mesma uma norma. 20 FILMER, Robert. Observations upon H. Grotius De Jure Belli ac Pacis. Patriarcha
18 Aqui, como um a ca racterística de seu ponto de partida liberal, sem prova and other Political Works, P. Laske (ed.), Oxford, 1949, p. 267.
alguma,_a norma jurídica é definida com a norma geral e já rece JeirlJfliêõri!eúdo. 21 HOBBES, Thomas. A Dialogue, vol. VI, p. 15.
54 • Ü IM PÉRIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 55

guinte modo: "A Common law possui poder, mas somente na m uma interpretação marxista. Admitir essa tese seria tão es-
medida em que este 22 lhe é concedido pelos reis". ncialmente não marxista como dizer que a história é o desenvolvi-
No sistrm-~ do direito não há diferença cate- nto de ideias, ou o trabalho de grandes personalidades. O marxismo
gorial entre Clireito público e priva , áffida-qtte @stcs sejam defi- · a a uma interpretação total de todos os fenômenos sociais. Marx
nidos; pois a ais-v a un c QUe o coqia público possui frente .1 hegeliano, e Hegel concebeu um direito como sendo "um mo-

ao direito rivado foi autor ada ao co o público somente pelo nto dependente em uma totalidade em conjunto com todas as
utras determinações a constituir o caráter de uma nação e de uma
ca... Pois é nesse conjunto que ele recebe seu verdadeiro signili-
1.2.2. DIREITO E A SUBESTRUTURA JURÍDICA do, assim como sua verdadeira justificação"24. A sociologia mar-
i ta afirma que e desenvolver de um modo
A ciência jurídi ão concerne apenas às normas jurídicas, !ativamente independente da realidade so · que as forças jurídi-
mas também à sube
< tur U<i al do sistema jurídico. Entende- autônomas podem con uzrr seu esenvolvimento em uma outra
mos pelo termo "subestrutura soei ' .a..r.ealid de ois lireção, aquela da subestrutura social25 • A independência do siste-
u,htr.açãe-do-próprie-dll-filto e social é o trabalho dos m jurídico frente às forç~s é, contudo, tal como foi indicada
homens na sociedade. m grande firmeza po~, enas relativa26 • No entanto, é
A norma jurídica ordena a realidade soei \,lma afirmação sem sentid · r ue o direito e o Estado são rela-
mulação giais exata de Paschukani ~....,.:Z'~c;.;,::.;>;~=~.:::::z.~~:::.. tivamente autônomos. A tarefa central de.uma.imrestigaçãa socioló-
nª-Ç.ã das relações sociais adota um caráter jurídi<7,º· O direito é a ,dica consiste em indicar, or um
ordem específica da subestrutura social. Parece desnecessário dizer
que essa subestrutura social não consiste apenas numa subestrutu-
ra econômica. A chamada interpretação econômica das normas e
mstitui ões.j 'di , ~nãe é a interprer;ção total, As ideias polí-
ticas, <re giosas, RStco ogicas !J'lenfa , assim como as relações fa-
miliares são..realida es às Q ú'°'· arma ·urídica ' · alme
sujeita. A interpretação exclusivamente econômica não é de modo

22 Segue-se, portanto, que a teoria " pura" do direito de Kelsen não passa de uma
teoria purificada dos abso lutistas ingleses: com H obbes e Filmer, contudo,
essa teoria tem um significado político, enquanto na teoria "pura" do direi to 24 HEGEL Rechtsphi/osophie, p. 3, nota: "abhanginges Moment einer Tota litat im
red uz-se a um princípio metodológico. Zusammenhang mit allen übrigen Bestimmungen, welche den Charakter einer
Uma teoria na Alemanh a que distingue entre público e privado insiste que o Nation und einer Zeit ausmachen... Denn erst in diesen Zuzammenhang erhalten
direito públi co possui uma va lidade superior, ou seja, Mehrwert, sem que esse sie ihre wahrhafte Bedeutung, sowie ~!;i afle Rechtfertigung."
termo tenha qu alquer relação com a teoria da mais-vali a de Marx. Neum ann 25 Dessa form a, contudo, o direito n" o é um a ideolo i , tra tando-se de uma
explica essa teoria jurídica na seção 1.3. (N. de M . R.). relação so · a is corr
23 REN NER, Ka rl. Die Rechtsinstitute des Priva trechts und ihre soziale Funktion, p. 26 ENGELS, F. Ludwig Feuerbach, p. 49, 52-53: aqui a congruência entre as ideias e
32; também HUBER, Max. Beitrage für Ken ntnis der soziologischen Grundlagen suas condições materiais de existência se toma cada vez mais complicada, cada
des Volksrechts. Jahrb uch des offentlichen Rechts, vol. IV, p. 61 . vez mais obscurecida pela esquerda intermediária. Mas essa congruência existe.
56 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN .. 57

mais ou menos absoluta da arte e da moral frente à realidade mesma fó1(1: a abrangeu-a-prspriedade pri-
social Contudo, é impossível manter essa afirmação em relação e Ro a e a--Ob - Ull.d Untereige~ alemã;
ao direito, que é antes um aspecto da ordem das vidas humanas. esma fórm a foi usada novamente para a pr':? riedade feudal,
O direito também não é a forma adotada pelos homens ao vive- im como- pai:a-a-proprieclacle-ifH:h:1st.i:ial;...a_p.edade,--tan.to
rem em comum. Em particular, não se pode dizer que o direito e relação aos bens de produçãcu:QJDO de consumo, tamb;m foi
o sistema econômico encontram-se em relação no que concerne à t ndida do mes odo.
forma e ao conteúdo - relação esta erroneamente atribuída por Esse fenô~ de acordo com o qual as normas jurídicas
Stammler27 ; o direito é a estrutura de uma vida humana em co- rmanecem iíÍalterad s en uanto a subestrutura social está su-
mum na medida em que essa vida comum se tornou a matéria da it a alter ;Àes,ín uziu:::Max Weber e Kantorowicz30 a afirmar
elação do Estado. Uma or~!!l;urídica Q_J,!S....tenha por finalidaçlr: u para erigir uma sociedade socialista nem mesm ' ·ca
m 'vel. Não há um estilo especial ~ alavra do código civil precisa ser alterada. Essa afirmação assume
direite,assim.como..não a ética es eci o direito: "Segun- ma poss1 ilida bastante im rovável. Obviamente que isso é
do seu vir,- - er,..o..canceito · eito em sentido filosó sível, e fõi empreendido muitas vezes. Não foi um fenômeno
e fora da ciência do direito" 28• 11 omum o fato de se constituir a propriedade comunal - isto é,
A norma jurídica e sua p~tllra social nem sempre 1 propriedade socialista - pela intervenção no contrato privado

co · cid m:-S~nsiderarmos su~o, poderemos estabelecer 1 venda. É be • súr.el-para-o-Es' aâo o rerpropriedacle-priva-


com 1 Rennet as seguintes possibilidades29 : (a) a subestrutura d por meio dos contratos privados no interior da estrutura_do
pode u to ·a norma le al erm const antigo direito contratual e -o utilizá:la.; ara o bem c
~ (b~-a--fletroa juádica .pGde maàa!- en~social Nesse caso, apep as o portador da propriedade teria mudado. A
permanece constante. stituição jurí~o..te.ria_sid! t É o
A norma jurídica permanece inalterada durante anos, déca- l e tal caso é teoricamente ossível.

das e, sob certas circunstâncias, .o r séc o , enquanto a subestru-


tura social sofre no curso dos eventos históricos alterações
fund-amentais que invertem a função social da norma-fw'ídica.
Na lit a alemã, esse fenômeno é definido como uma mu-
dança de funça , uma mudan a d · · subs-
tituiçã ~ da norma jurídica. As instâncias são numerosas e
h_esita-se citá-las· um exempla decjsiyo é oferecido pela institui-
ção da r de_A_noLma ºuá&ea · dica.oda as características
-da- doffii.Haçã :a-p1'6rrled~ terada desd~s

27 Cf. a críti ca dessa afirmação em WEBER, Max. " Rudolf Stammler's


Überwindung", Gesamme/re Aufsãtze z ur Wissenschaftslehre, p. 309.
28 HEGEL. Rechtsphi/osophie, p. 2.
29 Ibidem , p. 33 e ss. 30 Verhandlungen des ersten deutschen Soziologentages 7970, vol. 1, p. 209, 273.
58 - Ü IMPÉRIO DO DIREITO FRANZ NEUMA NN - 59

lista como um~ Pelo contrário, todo o sistema


jurídico tem de ser considerado como uma unidade, incluindo
totla'S<rs=inSU çoes..e.g o todas as nor-
hias-a . · · eito pu co. Se esse for
o caso, se~e-se que, sem uma alteração ecisiva Õ sistemal!fí-
~o~alização e uma socie a e soei sta e rmpossível.
..,......._
O caso oposto, a mudança da norma enquanto a subestru-
tura social permanece constante, ocorre muito frequentemente.
Nem toda a mudança das normas jurídicas é importante.
Nesse sentido, não tem importância social saber se os processos
sociais como venda, arrendamento, empréstimo, contrato entre
patrão e empregado, etc., devem ser incluídos na exegética jurÍdi-
'4 ca. A formação estrutural das normas jurídicas mantém-se ex
sivamente no interior do campo a técnica jurídica. 1.3. A TEORIA DO DIREITO PúBLICO

Por outro lado, pode ser a mudança da própria norma jurí-


dica que leva a uma alteração da subestrutura social. Em tal caso, 1.3.1. DIREITO PÚBLICO E PRIVADO

mudança da norma j~c'ª-l!r dan a da subestrutu-


a. Esse fenômeno induziu muitos teóricos a fazerem a generali- Nós concordamos com a ciência pura do direito em que a
zação segundo a qual uma mudança do sistema jurídico não é diferença entre direito público e privado não é categórica, mas
apenas um acompanhamento necessário de uma mudança no sis- que a esfera da distribuição entre os dois está sujeita a mudan-
tema social, mas também é a única causa para uma tal mudança - ças históricas.
e articular numa tal mudan a no sistema econormco. Essa vi- Lidamos aqui com duas questões: (a) o conceito e a função
são é adotada princip ente pelos institucionalistas americanos, do direito público e o privado; (b) as formas jurídicas do direito
especialmente John R. Commons 31 e seu seguidor alemão Karl público e ºvado.
Dieh132 • Ele formula a possibilidade de uma alteração numa se-
O duali~e-eft"'<itireito públi e direito priv o já era
ção particular do Código Civil alemão que levaria ao socialismo.
corrente no direito romanb . E bem conhecido o trec o do Digesto:
Essa visão, contudo, é tão incompleta quanto a visão oposta de
"Publicum ius est quo ad statum rei romanae spectat, privatum
Max Weber. É uma vulgaridade afumar que uma mudança do
quod ad singulorem utilitatem" (Dig. I.I.I.2 Ulpiano). Alguns
sistema jurídico pode levar a mudanças sociais, porém não pode-
autores modernos seguiram este trecho e afumaram gue o direito
mos nos esquecer de que uma mudança no sistema jurídico será
privado serve aos interesses privados, enquanto o direito público
efetuada apenas se uma tal mudança é demandada por forças so-
ser ve aos interesses públicos. Contudo, ~e i itaçãoé
i~admissível na medida em que confunde b "dever-ser com o
31 COMMONS, John R. Legal Foundations of Capitalism.
"se~em tudo que serve aos interesses privados pe ence ao direito
32 D IEH L, Karl. Die rechtlichen Crundlagen des Kapitalismus. privado. Algumas matérias são reguladas pelo direito público; e
60 - Ü IMPtRIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 61

nem tudo que está alocado no direito público pelo direito positivo Sem a consideração de sua aquisição original ou por meio
serve aos interesses públicos. de herança, o sujeito do direito privado pode adquirir algo me-
Também é insatisfatória a chamada teoria subjetiva de acordo iante contrato, isto é, acordo mútuo entre dois sujeitos do di-
com a qual o direito público é aplicado quando o Estado ou algum r ito privado. O Estado, por outro lado, e ór ãos úblicos podem
outro órgão público entra em ação. Em primeiro lugar, essa defini- 1 dquirir propriedade por meio de um at . unilate (imposto,
ção empurra o problema para a questão da definição do que seja u simples expropriação): o sujeito do direito privado que tem
órgão público, cuja identidade nessa conexão frequentemente é ex- UtmM's.i~ão frente a um outro pode satisfazer sua preten-
tremamente duvidosa. Por outro lado, às vezes o Estado (tal como penas com a assistência da corte ou do oficial de justiça.
o Fiskus alemão) aparece como uma questão do direito privado, e eralmente lhe é negada a auto-defesa. O Estado e órgãos pú-
por vezes se submete ao direito privado. licos desempenham, contudo, as funções do juiz e do oficial
A teoria do poder - a terceira teoria mencionada acima - de justiça, assim como são ao mesmo tempo partes na disputa.
também confunde o "dever-ser" com o "ser''. Sua controvérsia de Muitos exemplos podem ser citados. Eles mostram que o sujei-
que o direito público deve ser encontrado sempre que existirem to do direito públi em todas as esferas nas quais o Estado
relações de poder é contradita pelo exemplo fundamental oferecido ~el
erce um imediat goza de uma mais-valia jurídica frente
pela existência da propriedade nos meios de produção e dos jeito de direito privado. No Estado liberal, a única tarefa
monopólios privados. Se essa teoria não.deve sernma.pura tautolo~ ue consistiu a proteção da....propriedade privada e a manuten-
dizendG-que-apenas onde as relações de poder pertencem à esfera ão da-segttr1lft~ bnrguesar imposto política de tarifa, policia-
do__clin:ito público pode haver direito público, ela deve enfrentar: a mento~i:c.+te1@-a-e1:ga.ai.zaTão..da....admjnistração e da justiça
contr.adição oferecida pelo exemplo da propriedade privada nos armou as.pi:incipais..esfe1:as..do..dir~it as
meios de produçã~ 33 • A propriedade privada dá aos empregadores sfei:a ~&t-ãe 09-a..:iuàsdição do direito
o poder contra seus trabalhadores; todos os monopólios conferem os limites-definidos-acima, a-vida huma1:ra-desenv0lve-se-hvr-e-ê
poder no mercado; apesar disso, tanto a propriedade privada quanto desohstmiàa-à.a-i.nte.rferên eia estatal
os monopólios não são automaticamente os objetos da regulação
medida que o Estado penetra no âmbito de liberdade de
do direito público. Pode-se postular que esse seria o caso, mas não
cus cidadãos, e à medida que os limites entre Estado e socieda-
significa que sempre ocorra dessa forma.
e alteram-se em favor do Estado, a esfera do direito público é
A diferença essencial entre direito público e privado consiste
ampliad~ Somente uma interpretação do sistema jurídico como
nas diferentes consequências jurídicas das regulações nas duas esfe-
um todo nos permite reconhecer qµais esferas o Estado reserva
ras. O E~do dele_ga. aos portadores do direito glliilic~distinta-
p~ controle imediato t: 'IHais el@ila à disposição de seus
mente_daqueles do direito pti.v:~Q' uma certa majs-yal!a jurídica.
cidadãos; ou seja eiras entre direito público e privado
O direit público é o direito da dominação. . _
defi. · . osterio i. A noção de ordem que reside na
base da diferença entre direito privado e público pode ser so-
33 A mais clara apresentação do problema pode ser encontrada no livro de JACOBI, meB:tc-a · - do ó rio Estado; o critério exclusivo sobre o
Erwin. Crundlagen des Arbeitsrechts, p. 397. Minha própria interpretação que pertence ao direito público e o que pertence ao direito pri-
encontra-se em Koalitionsfreiheit und Reichsverfassung, p. 33 e ss.
62 - Ü IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 63

vado é uma decisão concreta do Estado. Qyalquer outro critério ontrato é aquele entre o patrão e o serviçal. Portanto, o contrato
é impossíveP 4 • oder constitui uma relação permanente que consiste na esfera
Portanto, é necessário distinguir a regulação direta do Estado da tal da vida do sujeito e, por sua vez, modifica toda a sua qualida-
indireta. O código civil é uma regulação tipicamente indireta das rela- juridica. O contrato de poder se toma um Contrato de Statui36 se
ções sociais pelo Estado. Num código civil, o Estado como um todo trabalhadores conceberem esse fenômeno da sujeição a um po-
apenas coloca à disposição dos cidadãos várias formas juridicas de com- d r externo não como algo contra o qual se tem de lutar, mas como
portamento. O próprio Estado não regula as esferas sociais, e isso o com o qual se pode garantir suas posições, seja pela interven-
significa que os conteúdos da decisão do Estado com referência às do Estado, o sindicato ou o conselho de trabalhadores. A dis-
respectivas esferas do direito público e privado, neste caso, frequente- tinção entre contratos de troca e contratos de poder aparece no
mente são diftceis de descobrir. Os conteúdos da decisão só podem ser i tema do direito natural de Samuel Pufendorf como aquela entre
.. brigações de igualdade e obrigações de desigualdade"37 • "Cha-
descobertos a partir da consideração da ordem juridica em seu todo,
1 amos obrigação de desigualdade àquela atribuída a alguém para
assim como da consideração das relações entre Estado e sociedade.
quem algo é permitido por nós em virtude de sua posição superior,
A forma jurídica típica pertencente ao direito privado é o nferindo alguma autoridade ou comando sobre nós". O contrato
contrato, cuja perfeição depende de um acordo entre dois sujeitos d desigualdade é, portanto, caracterizado por uma relação de po-
privados - embora um tal acordo mútuó possa não ser neces- der. Este contratá é, de acordo com Pufendorf, ou uma "obrigação
sariamente S'tificiente para sua perfeição. niversal", tal como nossa obrigação perante Deus, ou uma "obri-
Nós devemos distinguir três diferentes tipos de contrato: gação particular", que acontece quando "certos homens são obriga-
O Contrato de Troca - chamado por Max Weber de dos por certos homens". Esse contrato de poder particular pode
Zweckkontraki3 5 • Esse é um contrato que tem corno objetivo pertencer ao direito público ou ao privado. O poder exercido é
apenas a realização de propósitos econômicos gerais concretos. limitado, tal como aquele do marido, do pai ou do empregador
Em tal contrato, indivíduos singulares colocam-se em relação frente ao empregado, ou ilimitado, tal como aquele do Estado frente
recíproca uns aos outros. O contrato cria uma relação que mede o aos cidadãos (contrato de poder irrestrito pertencente ao direito
grau de interferência permissível de cada parte frente à liberdade público) ou do senhor frente ao escravo (contrato de poder irrestri-
to pertencente ao dire' ·vado).
da outra. Por exemplo, o contrato de venda ou troca e o empréstimo
estão sob essa categoria. Finalmente, um ato coletiv ( Gesamtakt) é um contrato se
tiver por objeto a constituição de~ crático. A funda-
O Contrato de Poder não acontece somente quando são estipu-
ção de uma corporação, de urna ciedade anô · de um cartei
ladas tarefas a serem mutuamente cumpridas, mas quando uma
de~ sindicato ou de um partido, por meio e a orâos mutúos
das partes no contrato submete-se a um poder externo - como, por
entte os membros concernidos. cgnstitui um tal acordo coletivo.
exemplo, quando um sujeito é admitido numa instituição, tal como
num hospital ou num asilo. O exemplo mais importante desse tipo
36 SCHMITT, Carl. Verfassungslehre, p. 67, sem o reconhecimento de M ax Weber,
de quem ele simplesmente copiou . A formulação de Weber co rrespo nde
exatamente à famosa generalização do Sr. H. M ai ne, cuja va lidade não pode
34 FORSTHOFF, Ernst. Oie õffenúiche Kõrperschafl im Bundesstaal, p. 17. ser contestada. Cf. Idem, Ancient Law, p. 99-100.
35 WEBER. Wirtschaft; p. 416. 37 Elementorum /urisprudenUae Universalis, p. 77.
64 - Ü I MP~RI O DO ÜIREITO
FRANZ N EUMANN - 65

Na esfera do direito público, aquelas formas jurídicas res- Nessa definição fica então evidente que Estado e sociedade
ponsáveis pelas mudanças legais são, ao lado da legislação, os atos são ambos fenômenos bem distintos 39• A relação específica exis-
administrativos (Acte administratij). Os portadores do direito tente entre Estado e sociedade, falando formalmente, consiste em
público que entram em relações jurídicas mútuas também po- que os atos do Estado soberano estão relacionados com a socieda-
dem utilizar o contrato do direito público. de e que aqueles são ao mesmo tempo causados pelos fatores so-
Trata-se, além disso, de um ato administrativo unilateral em ciais operando naquela sociedade.
que os portadores do direito público possuem autoridade sobre aque- Essa definição do Estado deve agora ser explicada. Nós o de-
les que estão sujeitos a eles, e por meio do qual um acordo coletivo finimos como uma instituição. Pertence a esta instituição "Estado"
é alargado para além dos membros das partes em barganha, etc. a totalidade daqueles homens que exercem o poder jurídico mais
Temos que separar o ato administrativo do ato governamental elevado, e a totalidade dos homens para quem tal poder jurídico é
(Acte governementa/), o qual deve ser atribuído à prerrogativa; ou delegado. Portanto, as seguintes categorias de pessoas pertencem às
seja, a um poder que não tem sido mantido pelo direito e permanece instituições do Estado: o legislativo; o executivo (polícia, exército,
incontrolado por este. Um tal ato é, por exemplo, a declaração de judiciário, burocracia); aquelas pessoas a serviço das instituições
guerra pelo rei da Inglaterra, porque o rei possui um resíduo genuíno públicas autônomas para quem o Estado delegou poderes legais
de prerrogativa. Por outro lado, um decreto emergencial do pre- parciais (tais como municipalidades, universidades, igrejas e corpo-
sidente do Reich, de acordo com o Art. 48 da antiga Constituição rações); e, finalmente, aquelas pessoas privadas e. corporações priva-
de Weimar, é somente um ato administrativo e não um ato das para quem o Estado igualmente delegou poderes legais parciais
governamental, porque ele foi emitido apenas sob o cumprimento (tais como jurados, juízes leigos, sindicatos e associações de empre-
de certas condições que poderiam ser controladas pelo judiciário. gadores). Essa definição, portanto, contém a identificação do Esta-
Contudo, não é apenas o chefe de Estado que possui o direito de do e do governo feita por Laski, mas tam~de.
emitir um ato governamental: na medida em que a prerrogativa Definimos o Estado como uma in~tuição so~.Í. A sobe-
reside no parlamento, este, além de legislar, pode também emitir rania conté.!_ll, como um momento jurídi~ originário do
atos governamentais - por exemplo, impeachment. obe~o em emitir normas gerais e normas individuais (coman-
dos,~ões). Por conseguência desse dualismo do direito em esta-
1.3.2. 0 CONCEITO DE ESTADO
be~ normas gerais e individuais, há a possibilidade de um
antagonismo entre as senes existentes de normas gerais e as normiS
Chamo de.Estado a toda instituição sociologicamente soberana. individuais então decretadas. Tal conflito entre normas não é ape-
Portanto, o Estado não pode ser, de acordo com essa defini- as possível, ~s aconteceu de fato inúmeras vezes na História. Se
ção, uma ordem jurídica (Hans Kelsen): nem pode ser. uma ~ o Estado, no caso de um tal conflito, tem, por interesse de sua
çãQ, nem uma abstração. Pois em todos esses três casos não "auto-conservação", o direito de romper parcialmente a série de nor-
poderíamos fª1.ar de um Estado soberano, mas apenas da sabera-
. dos '_r ãos do.-Est~
9 Na mesma linha, LASKI, H. J., em seu Fo unda tions of Sovereignty, chama de
soberania a um poder externo. SCHINDLER, Dietrich, contudo, não reconhece
isso com muita clareza em seu Verfassungsrecht. Este capítulo deve muito ao
38 HELLER. Souveranitat, p. 62.
Foundations, bem como a toda a obra do prof. Laski.
66 - Ü I MP~RI O DO DIREITO

mas por meio de normas individuais, ou mesmo suspender toda a


série, cria-se uma situação que não pretendemos discutir aqui. Im-
porta-nos aqui apenas o fato de que o Estado fez esse tipo de coisa
e continua fazendo. Em alguns casos, o exercício da soberania é
uma decisão de poder no sentido de Carl Schmitt40.
Porque a soberania é o poder jurídico mais elevado, em qual-
quer território existente pode haver apenas um soberano e, por-
tanto, apenas um Estado. Lassale formulou muito bem essa ideia:
"Dois soberanos não podem mais existir em um único Estado
assim como dois sóis não podem brilhar no mesmo céu". Eu pen-

~
so que neste caso trata-se de um consenso geral. Por conseguinte,
o soberano desaparece numa guerra civil em que as duas partes
em conflito são igualmente fortes . Capítulo 2
Mas mesmo se há um soberano juridico que não está sob dis-
puta em algum território existente, e esse soqerano não é suficiente-
mente forte para fazer valer suas normas juridicas e suas normas
individuais, não podemos falar nem de um soberano no sentido real
A Relação da Soberania
nem de Estado. Um exemplo é oferecido pela impotência do poder
do Estado italiano em manter suas normas em certas partes do sul da com o Império do Direito
Itália sob a dominação da máfia e da camorra.
Já dissemos que o conteúdo da ação do Estado em relação à
sociedade é determinado exclusiva ou parcialmente por fatores sociais.
De acordo com a interpretação materialista da História, essas relações
determinadas são concebidas de modo a que os conteúdos da vontade
do Estado tendam, em seu todo, a colidir com os interesses da classe
explorada economicamente, e que o Estado seja um Estado de classe,
um aparelho para a manutenção dessa relação de exploração.
Segundo a concretização que Engels deu a essa generalização,
sob certas circunstâncias históricas de equiliôrio entre as classes o
Estado pode-se colocar por sobre as classes como um poder inde-
pendente. Mas saber se tais afirmações são corretas é algo que só
pode ser verificado por meio de investigação empírica. Nossa pró-
pria visão sobre o assunto será apresentada nos capítulos seguintes.

4O Cf. também HELLER. Souveriinitiil, p. 165 e 55.


FRANZ N EUMANN - 69

2.1. A TEORIA DA SOBERANIA

Em sentido jurídico, toda instituição é chamada soberana


quando possui poder não delegado e ilimitado para emitir nor-
mas gerais e comandos (decisões) individuais.
Em sentido sociológico, uma instituição é chamada soberana
e possui não apenas direitos jurídicos desse tipo, mas também se
tem a habilidade para manter as normas e comandos emitidos
por meio desses direitos. Portanto, num sentido sociológico de
oberania está incluído um elemento tanto do direito quanto do
poder1 . Todas as análises da soberania do Estado devem precaver-
- e de um sincretismo da matéria em questão. É um fenômeno
extraordinariamente comum o fato de que todos os três objetos
distintos que aqui levamos em consideração - isto é, o jurídico, o
político-sociológico e o ético - são permanentemente confundi-
os. O sociólogo contesta o jurista analisando o conceito de sobe-
rania, e ambos são contestados pelo filósofo que coloca a questão
e saber se alguém é obrigado a obedecer ao poder soberano. O
1cimeiro pré-requisito para lidar com o problema da soberania
nsiste na separação resoluta e empedernida das três possíveis
osições do problema.
Em um sentido sociológico, a soberania é, portanto, não a
rdem jurídica tal como afirmada pelos teóricos do direito puro,
ç mo Kelsen2 • De acordo com nossa definição, a soberania não é

A defi nição de Austin: "Se um determinado ser humano superior, que não está
acostumado a obedecer a qualquer outro superior, é obedecido por uma parcela
de uma certa sociedade, aquele determinado superior será soberano nessa
sociedade, e a sociedade (incluindo o superior) é um a sociedade po lítica e
independente (...) A parte verdadeiramente independente (... ) não é a sociedade,
mas a parcela soberana da sociedade (... ) O Estado é geralmente sinônimo de
soberani a". A primeira frase está inco mpleta, po is está relac ionada com a
obediência. Isso é muito pouco, porque para nós somente o cumprimento
presente tem importância . A seg unda frase e a terce ira estão formul adas
incorretamente, embora concordem com nossa defi nição. Tal como na primeira
frase, fa ltam-lhe o elemento do direito. A relação com Bentham é defendida por
M ERRIAM, C. E. History of the Theory of Sovereignty since Rousseau, p. 13 1, 135.
KELSEN, Hans. Das Problem der Souveranitat und die Theorie des Volksrechts,
e mui tos outros trabalhos.
70 - Ü IMP~RIO DO ÜIREITO
FRANZ NEUMANN - 71

idêntica à noção da natureza essencialmente não delegada do siste-


exercício e dos ~onteúdos da comI?!!tência do soberano são ilimi-
ma jurídico (Nicbt-weiter-Ableitbarkeit) . De acordo com a ciência
ta~.quc é Hnf'Ossí~ed;;;;_ns a paftü::ae uma norma a.Qs-
pura do direito, todas as relações de superordenação e subordinação
ata. Portanto, o sobe~@âd referência a duas coisas:
são baseadas no fato de que, explícita ou implicitamente, os pode-
(a) quando ~ si ação de emergênc1 e (b) com que meios
res são delegados a partir de fora do centro. O Estado é o último ela pode ser su erad O so eran a fora da ordem jurídica;
ponto de atribuição e ao mesmo tempo a própria ordem que não por essa razão, ele pode :us12ender a Constituição em seu todo,
pode ser posteriormente delegada. Qyal é nessa conexão o signifi- assim como violá-la. ApeJJ.as ele d~e por fim quando a norma-
cado de "ponto" e como é possível que um "ponto" seja ao mesmo li~ecJa. ------~
tempo uma ordem é algo que fui completamente incapaz de des-
á muito de correto ao se · e em nenhuma definição a
ce~ po.de ser excluída cb
cobrir, mesmo depois de um exame exaustivo de todos os trabalhos 1
( tado norm . O caso excepcional deve
disponíveis de Kelsen3 • cupar logicamente l.UI!.l!y;ar tão importante quanto o caso normal;
_, ciência pura do direito pode realmente ser auto-contida e ger ' a enas or neio do anormal e o normal vem a ser
, (auto-consistente, mas de qualquer modo isso nã~ _soluciona ~s r conhe~o. Mas o anormtl não pode ser o elemento único e essen-
\j problem s-p-oüti ~ De acordo com a nossa definiçao, soberania .ai numa definição. Deve-se acrescentar que se uma constituição
também inclui com , do. Coman~órmas podem ser apenas ncede poderes emergenCais para um órgão do Estado, assim como
delegados por homens e não po~" 4 • Igualmente insatisfa- i concedido ao presidenti do Reich segundo o Art. 48 da Consti-
tória é a teoria op t de Carl Schmitt, e.?CJ?OSta antes dele pg_r tuição de Weimar, surge a 1uestão de saber se o presidente foi com-
' Men er5. De acordo com Schmitt, é soberano aquele que decide p lido a n pelir suas meàdas-ditam..riais sobre a demanda de um
o que constitui uma situação de emergência6 • definição foi outro ór~o o Estado. tal ·orno no caso do Parlamento (Reirhstgg).
desenvolvida por Carl Schmitt em seu livro 11 Ditadur, . Nesse N Se..cas.Q,..quem é soberaro? O presidente do Reich, o Parlamento,
livro ele pretende prQYJ1.L..que também os teóricos o eito natu- rnbos, ou o povo que é npresentado por ambos? A teoria de Carl
ral...do.-séeul-cr-*Vfl - sobretttd&-Mcmdorf - entenderam p9r
Schmitt não r ea ta. Num Estado em que impera
11 princípio da "se aração ~ poderes e no qual a divisão de função
sobe-r-ania-a-decisã re"5J:'le-itG-do_que...constitJ1j uma situação de
re~ defini ão tLnãcue_solve o pu>blcma; e n~
e~gência.._Nesse sentido, a soberania é um conceito essencial-
dcmocracia_cesatifil;a, a gu<;tão do portador da soberania não se ÇQ_-
mente marginal. A noção cobre apenas o mais extremos de
lo .não im ortando a deJnição de "soberania" adotada.
urgência, quando o próprio Est~do está e peri . Tais casos não
"A vontade sem-norua de Schmitt falh!!, igualmente em re-
podem ser subsumidos sob a ordem jurídica. As condições do
'4 lve o_problema, assim orno a norma sem-vontade de .K@ls~
(1 hmann Heller).
Se e~tenderm~s ~~r Estado algo ~como, por exem-
3 Cf. o ensaio de WILSON, C. H. "The Basis of Kelsen's Pure The.ory of.~a"':'"
(Politica, 1934, p. 54 e ss.) para uma críti ca dos postulados centrais da c1enc1a lc , a teona da SUClabilidale de Gierke - uma definição naturalis-
pura do direito. t ), o Est-adg._pode ter ~~o o p oder zun'dtco requeridJ
4 HELLER, Herman. Die Souveriinitiit, ein Beitrag zur Theori des Staats - und
Võlkerrechts, p. 38.
1 llQssa definição sociolgica1. 7

5 MENGER, Anton. Neue Staatslehre, p. 166 e ss.


6 SCHMITT, Carl. Politische Theologie, vier Kapitel zur Lehre von der Souveriinitiit,
p. 11 ; Idem , Die Diktatur, p. X, 201 , 272. HELLER. Souveriinitiit, p . •2.
72 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 73

2.2. A TEORIA DO IMPÉRIO DO DIREITO Sempre que falarmos de ~f ou "ra ºonalidad ." esta-
remos nos referindo a ess ·l~ · alida e e a nenhum
utt.Q. Qg~d · os que o Estado e o direito são funda os
2.2.1. TEORIA DO IMPÉRIO DAS NORMAS GERAIS (RACIONALIDADE)
ecular e racionalment quere · n...dize penas..q e o
Estado e o ei o ao são criações de Deus nem das instituiç~s
O exame sociológico do direito não concerne apenas às nor- do demôoip; que eles não sã nem in titui ões su r - aaas
mas e sua subestrutura social, mas também ao comportamento e nem uhumanas, mas..q e institui ões hu-
à atividade dos homens. Qge o direito tenha que ser entendido manas....o riginadas da vontade ou das carências dos home~ .
como o produto de fg.rças sociais sigiúfica que ele é o produto da,
Distinguimos com Karl Manheim entre racionalidad f?
.at:Md~a tanta determinada por elas, mas também~
~termmante
. das 1orças
L'. ••
socrais.
substancial e funcion e cp rrespondentemente entre im.ciClJlª1idru!e
u.bstancial e funcional. "Nós entendemos por racionalidade
o comportamento humano r0d se acional u irraé'fuDail. substancial simplesmente o processo de pensar e compreender.:..em.
Falamos de um comportamento racion , mas n-o queremos di- suma, tudo que é de substância cqg;nitiva" 8• Irracionalidade subs-
zer isso que se trata de um comportamento racionalista. tancial é, por outro lado, " 0dos..aqueles.fenômenos..âsicos que nãg
O nome que corresp~e ao adjetivo ~ é ~~on~~- são-de substância oogvitPra". Substancialmente, o comportamento
de". O nome que corresponde a alista e~- racional pod~M er) · m resp~u
~o". Talvez o par concei ·onal-racionalist corresponda racional com respeito a valore weckrational der ~ 9 •
àquele da filosofia alemã' -o-intelecto Vt ft-Verstan~. A le é racional com !:spe1to a valores se o com o (M;l:ljeiro
teoria_ olítica e a teoria do direito alemãs mo ~ .motixado por sua crenca no valor único (ético religiwo oy
de'-qu&-esses..dois çcmcejtos distintos são tratados como sinônimi;is. tético) de um certo tip om to en uanto tal inde-
.(_ Por essa razão, uma fundamentação racional dos poderes pendent~ente de seus resultados. Se um homem quer realizar um
coercitivos do Estado e do direito é uma ·ustifica ão baseada nas certo ? or por meio do seu comportawent:Q, por rxemplo, aEJ:l!lele
carências e yom;ad@s dos hom@as. Uma tal teori acional ão nega daJ!:atemidade, e snhqrdjna todos os sçµs outros motivos a esse
que homens, grupos humanos ou classes sejam guia os por moti- dJl
, dos mer · tu ·s - por exemplo, pela
ligiã ou óbiles repress· - em s11 roa , cpie aque- de
::;./'. 1
las. força s...i!!_aaonais exerçam um pape mais . ou mepos ri eCJsnlO.
. .

A abordagem r cion leva em_sonsidera!(ãO a existência de q.ual- pa ra o qual são g ferec jdos do js critéri o s· a organização das
que en irra · procura explicá-los, mostra como e
at:Mdades tem de ser dir~j onada para nrn fim dado, e..deye s ~
pQr gue existe tal esfera irracional, e. tanto com a ajuda da psico-
dada-a;lOssibj!j dade de um certg cá101ln rJ essa&-atividªdeu..partir
lQgi~e concerne à base individual. como também caro a
do-p9'At-O de vista dg observador externo 10 • Ou, na terminologia
ajuda da sociologia na base das forcas sociais, e2'µ ljca por que a
-tdaç.ão entre racional e irracional é mutáy.el.
Por outro lado, a abordagem racionalista (por exemplo, aquela
8 MANNHEIM, Karl. Rationa/ and lrrational Elements in Contemporary Society, p. 14.
j do direito natural ou da filosofia kantiana) co~si~e~a o homem 9 WEBER. Wirtschaft, p. 12.
- ~um ser intelectual puro, um mero ponto de atnbwçao. 1O MANNHEIM. Rational and lrrational, p. 15 .
74 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRAN Z NEUMANN - 75

ovemo u Em tal situação, o partido que detém o monopólio


pode transformar.as..clecisões..políticas em realidade política atiiji
sem a ajuda d.9 direito, e de ma..m ontudo isso
ó é possível n_uma situ ão transitória qu ã peà. ec-Ow:ar.
D urante a transição à normalidade a osi ão que detém o poder
abandonada ou é legalizada.
Na esfera econômica, a ra~depo processo de troca pode
er alcançada por ~s extr~. ~m um sistema jurídico
irracional, por exemplo, ou em um sistema normalmente racional,
porém temporariamente desorganizado, a_çalmlabilidade do ~oll;l­
1

~ortamento do aparelho do Estaão é assegw:ada ela corru ão


Cl~t · . e os cidadãos po em fiar-se na possibilidade
de conseguir qualquer ajuda do @arelho do Estado através de su-
orno, mesmo se essa ajuda lhes é proibida, a expecbtiica de que o
sobeima vai assegnrar a ação ap.wpriada por parte do agente estatal
-: ao fazer ou deixar de fazer - pode formar, sob certas circunstân-
.as, uma base tão firme de cálculo eara a matéria econômica qllW-
tQ. o funcionamento normal do sistema jurídico racional.
Nas esferas políti conômicas a racionalidade não é sem-
pre produzida pel · ei . Ela também pode ser alcan-
çada por meio ados do direi . Na esfera política, por
exempl&,-n11ma-sittta~ã&-tr-ansitóna,..a..r ·o · dade das decisões
pol:íti ada or meios extra.urídicos. No Estado
totalitário dominado por um partido monopolista, os aparelhos
do Estado e o d _ artido numa situa ão transitória, se o õem
tre si. Como os acontecimentos na Itália e na Alemanha m~­
. eiro momento o a arelhamento do
mostt:Q11-sc mais forte do_,9ue o do Estado. Trotsky, em sua His-
tória da Revolução Russa, descreveu corretamente o fenômeno do

11 WEBER . Wirtschaft, p. 12 .
12 Cf. WEBER, Max. C esamme/te Aufsatze zur Religionsoziologie, vol. 1, p. 11 ;
MANNHEIM. Rational and /rrational, p. 29.
13 ROBINSON, W. A. Justice and Administrative Law, p. 189-190. 14 WEBER. Wirtschaft, p. 396.
76 - Ü I M P~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMA NN - 77

individuais no 1 gar de normas ger · srÁ'5si · , emplo, a jus- juízes são filiados aos C!lnselhos do Sindicato), tudo isso torna
tiça de Kadi po e ser tip cada como material-irracion ; o Kadi possível um cálculo bem mais..p.r ci d ç;Ío do juiz em casa§.
baseia sua decisão exclusivamente na avaliação do caso individual individuais. mesmo permitindo a presença de muitos elementos
~ que lhe é-ªE!.esentado, e não é compelido a fundamentar sua de;, uxacionais no direito substantivo. Essa ideia foi expressa de forma
~normas gerais, nem de fato ele assim o faz. muito clara por Sir Wtlliam dsworth15, que investiga sob quais
No campo do direito racional, faremos primeiramente uma ondições um sistema de :ase law ode .funcionar. Ele apresenta
divisão ce na classifk.ação de Max Weber; a sa~, três condições essenciais: um...sistema..judicial n:ntraliµ doj grupos
e tre · eito adjetivo e substan · *. A distinção é simples. Se, por de jtú~ advogados ligados por objetivos profissionais e tradjçõf;;;
exemp o, o ei o · o é complicado por formulações e w:n.,.ju.,g_independente e bem pago, que em geral é mais eficiente
obscuras, tal como geralmente é o caso guando falta uma codificaçãç> d que a Ordem aos advogados16 • Se acrescentarmos que é muito
difícil haver uma t:tagsa ão d gi' ·os feita na ln late
pr~ calculabilidade das decisões judiciais pode ser assegura~
pelo fato de ue a organização do a arelho udíciãl ossui uma amtnilanhamento de um advogado*, teremos demonstrado em suas
estmmra partic m exemplo relativamente bom é oferecido ar.acterísticas essenciais que por meios puramente organizacionais
é im sível alcan ar o au de raci n · ~te
pela Grã-Bretanha. Não ?á-clüvià que o direito substantivo
britânico é infinitamente com lica e menos lúcido do que,.. do-q~iiele do di reito mbstaotiuo cAGontimaue. Contudo, temos
o direito continental, e que no direito privado britânico existem ue acrescentar que esse benefício do direito racional é restrito em
muitas.. elementos jrracionajs. Mas igualmente não há dúvida de ua operação às classes proprietárias.
que o direito inglês atual possui uma base de calculabilidade muito . No interior da raciop afüla e do direito substantivo distin-
maiQ.r para regidar a matéria econômica do qµe o caso do direito guimos, tal como o faz M:ÚC Web , racion · formal e material.
alemão no período de 1924 a 1932; e isso do fi de o direito racionalmente su stantivo é racional se as
àireito bri tânico nã,Q ser mdjfi çado. E isso ocorre porque a
administração do judiciário inglês está concentrada na Corte
Superior de Justiça, em que o número de juízes é extremamente
peql:l(}J.'.lQ-OOffiparado.co_m as çortes supn:mas a1'mãs (&ichsgericht,
Oherl@de1ger:icbte). O pequeno número de juízes toma muito fácil
15 HOLDSWORTH, W. Some Lessons from our Legal History, p. 20-3.
para o advogado o,bservar as decisões da Corte~ fazendo então com
16 Cf. a excelente exposição de GOODHART, A. L Essays in jurisprudence and
qy a ão do "uiz em uai uer roce s se· · the Commen Law, p. 65; cf. minha própria ap resentação na Seção 14.3. deste
_ sim les. Deve-se acrescentar que as ~U:iz.e.€le--aduo!§lldg. livro.

~ ua.luglaterra não são separadas. A seleção dos juízes a partir dos


Neumann escreve literalmente solicitar and counsel. O "counsel" (ou "barrister")
é o advogado qu e dá co nselhos em casos jurídicos e enfrenta o caso no
membros da Ordem, as conexõ~s profissionais e sociais dos juízes e tribunal. Já o "solicitar" se refere ao advogado que dá consel hos jurídicos,
prepara documentos e monta os casos j urídicos. No sistema jurídico britânico,
advogados mesmo após a ascensão daqueles à Corte de Justiça (os o "solicitar" é o advogado de hierarqui a inferior em relação ao " co unsel ",
atuando em instâncias inferiores, em casos de menor relevância. (N . do T.).
Em sentido jurídico, o termo consideraüon se refere a uma promessa contratual
por meio da qual uma das partes aceita a promessa feita pela outra parte. A
Neumann usa aqui os termos ~ ~/aw. e Na terminologia ob ri gatorieda de dessa relação contratu al pressupõe sempre sua aceitação
jurídica maiS-LeCeDte, esses te 1ITI03 eerresr;ieR9em siJCessjvarnente às normas expressa em documento. Essa ideia está ligada, desde o séc. XIX, à "doctrine of
de direito pmcess1o1al 0 à 3 1101111a3 SI! llireite ll'!aterial. (N. do T.). consideration" (" doutrina da consideração" ). (N. do T.).
78 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 79

definidas. O direito racionalmente substantivo é materialmente omo entre um sindicato e uma associação de empregadores.
racional quando ger;_eralizaç__ões não lógicas, normas pertencentes~ m certos sistemas jurídicos essa liberdade significa a liberdade
s como a-ética, religiosa ou política, formam a base das tanto para criar quanto para dissolver os monopólios. Se, por
~sões. O caso mais frequente e uma tal racionalidade do direito exemplo, como mantêm alguns dos advogados alemães mais bem
subst; ti.vo é provido pelas- _'usulas ger s ( General15Jauseln)* tais onhecidos na área industrial, "liberdade de contrato de fato
como provisões vis~ue as decisões dos juízes tenham de ser não si?nifica nada m~ue dizer que contratos de ~ualquer
feitas com base n~" (Treu und Glauben - Seção 242 do onteudo podem se~pelo tempo em que não VIolam a
Código Civil alemão); ou que a violação dos "bons costumes" está7 oa- é e o direito vi ente (ou seja, considerado do ponto de vistar
sujeº Se ão 826); .ou ue um contrato é nulo se viola os do....c.OZ/.ÍaÍ,do )" 1 8~.u..L<l~u.µIJ<.ü!.-.!!.!~~~~~:..\:!.!!!J.íl.1.w:JJJ.a.L...u;íi_
boa stumes Se ão 138); ou que as restrições à livre com eti. ão
qu~áveis" ocr-sãe-€0tltra-a-f> , · áblicà' s~s
e estãô-sttJel·tia , · os-esse case a a~urídicas. Na esfera política,
representam " armas em branco (Blankettnormen) - elas se tip.o_de comportamento não proibido pelo direito - direito
referem a normas genüs que nãQ são norroas jurídicas; isto é, ! ndo toda norma imputável para o Estado. Tal é então a li-
valQ.f.ayões_que só podem ser elevadas à posição de cláusula~ h rdade da pessoa, de associação, de assembleia, ou de imprensa,
juàdicamente relevantes pelo método indireto em comparação C<2!;l 1 um sindicato, etc., "garantidas no interior da estrutura e
Jl.S cláusulas ge.!ais. d provisões do código legal existente". Para um advogado
onstitucional inglês bem · ostulado de uma tal
2.2.2. LIBERDADE E O IMPÉRIO DO DIREITO li erdade aparece como .u ramente tautoló ic e como expres-
do princípio da"º alidade a· "em que "o di-
.-1-Jl::M~sai~. no senti.do jurídico, deve ser definida como a r ito à liberdade pessoal não é um direito à liberdade pessoal,
usência de restriç )0Essa definição foi mais claramente elabo- um direito a tanta liberdade pessoal guanto lhe é atribuída
~ o es: "Liberdade é( ... ) a ausência de impedimento , ~ la lei" 19 •
externo"~ . Para a existência de uma tal liberdade jurídica as_ Se finalm t acrescentarmos que o conceito de "direito
-di.fer.e , t" e homens são tão irrelevantes quanto o 1 é enamente definíve J?Ois segundo essa noção po em..Q.S
oar.át.e'-da snhestrntµra social que correspon e às normas juódi- n ende.Lt.a nto as normas ~rais como os comandos individu~
-ea . Na esfera econômica a liberdade existe em um mesmo nível, efi ni ção de.liberdade jurídica torna-se quase sem sentido.
seja em u contrato ntre dois competi.dores igualmente fort~, se aceitar uma tal definição, livros r ireito cons-
sej-a-êm-wll-"OOtrata entre um monopolista e um não monopos titucional podem afirmar a existência da liberdad mesmo se
lista; no mesmo nível entre um empregador e um trabalhador, liberdade_ · o usual do termo de fato não exi

Apesar de Neumann traduzir Generalk/ausen por legal standards of conduct Ili ISAY, Rudolf; GEILER, Karl. Die Reform des Kartellrechts, Berlin, 1929, incluindo
(pad rões jurídicos de conduta), vamos manter sempre a tradução por "clá usulas seu re latório enviado ao Congresso Jurídico de Salzburg; cf. também meu
gerais". (N. do T.). Koalitionsfreiheit und Reichsverfassung, p. 51 . O itál ico é meu.
17 HOBBES, Thomas. Leviathan, vai. Ili, p. 116. 1) JENNINGS, lvor. The Law and the Constitution, p. 235.
80 - Ü I MP~RIO DO Ü IREITO FRANZ N EUMANN - 81

Apesar disso, a concepção formalista da liberdade jurídica é, de poderes concentrados dessas combinações não são confiadas a um
um modo extraordinário, politicamente significativa em seu homem singular, trata-se de uma prerrogativa real"22 •
sentido positivo. (pizemos que alguém é livre em sentido sociológico se ele
Como pretendemos mostrar com mais detalhe na Parte III, possui juridicamente a livre escolha entre ao menos duas
uma ação previsível do Estado, isto é, sua inter erência mensurá- oportunidades iguais. A liberdade depende, portanto, da
v!f, ainda que opressiva, deve ser preferível a uma intervenção tnc~
mensurável fação imprevista, arbitrária), mesmo se num momento
1
possibilidade de competiçãoj A afirmação de J. N. Figgis - "o
ponto a ser notado consiste em que a,__liberdade é o resultado de
~nevolentf!... uma vez que µm-taf-est:rd 01sas incomensu- uma competição religll>sa"23 - pode ser suplementada e ampliada
rável cria insegurança. Um "jul amento equitativo , a compul- pela afirmação de que a liberdade ( _tanto o resultado q,uanto ;
são dos ói:gães-do..E.st serem mantidos nos limites do direito ondição da competição, não apenas nas esferas econômicas ,e
do_próp ri Esta - mesmo se isso uder alterar a lei de acordo religi.Qs.as, mas em todas as esferas da vida humana. Essa definição
Gorn...as..ne ida_de então da liberdade sociológica implica que a liberdade entre indivíduos

~
de..c0isa s ue não =.i.---
. - ulsão. Isso é, na verda- competindo mutuamente necessita. em primeiro lu~ar, de um
de, o valor eterno do "I'lt! ério do Direit e do caráter de Estado cert0-grau de igualdade, Jáconsiderada por Rousseau q.uando este
'fie D ireit o. manteve a liberdade e a igµaj dade como os dois postulad2s
- Liberdade, em sentido sociológico, significa algo completa- fü nda mentais da :v:ida iGGial· "A liberdade, porque toda depen-

t ente diferente. A aproximação ao problema será mais fácil por


eio do uso de três citações:
H. J. Laski define a liberdade negativa como se segue: "Não
dência particular possui a mesma força quando subsumida no
orpo do Estado; a.igualdade, porque a liberdade não pode subsistir
em ela"2 4•
há liberdade se um privilégi especial restringe o direito de voto de ( A existência da~e ~ essencial para a existên-
uma__pm:ção da comunidade. Não há liberdade se a opinião domi-:- .a d · um sentido soc10ló ·co. A liberdade jurídica
nante pode controlar os hábitos sociais"20• É também vantajoso é essencial, as é insuficie e. 'Esta liberdade negativa( ...) é uni-
mencimrnUma passagem de um dis~dmund Burke lateral, mas.essa u · ateralidade sempre contém em si uma deter-
durante seu conflito com Pi sobre a Carta da lndi Oriental de mm anto não é de se re ·eitá-la, mas a deficiência
1786 na ual Burke se pergunta pelo contra e a Companhia da do-tmtendimento está em gue ele ergue uma determinação
Índi~ . · e: "A Ca:ta é moldada em princípios, a tetal...à condição de ií ni ca e suprema"25 •
reversão co leta da liberda e E ~a Carta para estabeleceLJ).
Parece-nosµi· 'lstlttle!iet:lte...fl
monopólio e criar po er ... . Tais privilégios são todos, em sentid3
a liberdade no sentido sociológic q essoa tem a pos-
estrito, uma confiança e é da essência de toda confiança ter de se,
sibilidade de__eyitar uma as;ão ao optar por outra ou por nenhu-
justificar"21 • Finalmente, fazemos uma citação do discurso do se-
nador Sherman; ao introduzir a Lei de Sherman, ele disse: "Se os

22 Some Legal Phases of Corporate Financing, p. 23 1.


23 FIGGIS, J. N . Political Thought from Cerson to Crotius, p. 156.
20 LASKI, H. J. Uberty in the Modem State, p. 76. 24 Contrat Social, li.
21 BU RKE, Edmund. Speeches, 1. 25 HEGEL. Rechtsphilosophie, §5, Adendo.
82 - Ü I MP~ RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 83

ma26 • Tentaremos esclarecer o problema com dois exemplos reti- ntre os homens. Daremos aqui uns poucos exemplos num esforço
rados das esferas econômica e política. Se um empregador oferece de elucidar um problema que reaparecerá em diversos pontos no
a seu trabalhador termos de emprego inadequados, o trabalhador livro. Um exemplo clássico é apresentado pelo Art. 165 da tardia
em um sistema liberal tem juridicamente o direito de recusar onstituição de Weimar, n ual a liberdade de associação é
aqueles termos. Sua decisão de aceitar ou rejeitar é juridicamente a todos em toda rafiss@ - . Essa garantia é dirigida
uma decisão livre. Contudo, se essa decisão pode ser chamada principalmente contra oder de políci 8*. Nem o legislativo
livre num sentido sociológico, depende de duas condições alter- nem o ~ecutivo têm o poder de rmpe um trabalhador de unir-
nativas: o trabalhador é livre se, do ponto de vista econômico, for e a um sindicam 0 11 de formar um novo sindicato com seus
suficientemente independente para permitir que seu poder de om12anheiros. Assim, o artigo 165 constitui uma liberdade
trabalho permaneça inativo, em vez de aceitar os termos inade- jurídica no "interior de uma certa esfera de atividade humana.
quados; se este não for o caso, sua decisão será livre apenas se ele Mas a Constituição levou em consideração também o fato de que,
conseguir uma oferta melhor de outro empregador. Somente sob pesar dessa garantia constitucional da liberdade, um empregador
tais circunstâncias o trabalhador teria a chance de escolher entre pode, sob certas circunstâncias, usar o pode;Jsocial a seu dispor.
duas oportunidades igualmente boas. Se não existem tais condi-:'." ortanto, adicionou-se uma sentença no . 16 declarando que
ções e ele -ª.Ceita o trabalho para se salvai; da fome, seu trabalh_J? odas ontr.atos.feitos com a intenção e prejudicar os direitos
poek-ser explorado, e, ai nda que possua a liberdade jurídica par! tfo trabalhador eram nulgs. Assim, a p.tegoria jurídica da liberdaf
.el!Ítar essa situação, não podemos dizer que ele seja livre;_ torn011-se sociolo gicamente válida. Do mesmo modo, o
De modo similar ocorre na esfera política; se um cidadão, sob reconhecimento de acordos coletivos pelo art. 165 teria de levar à
uma ditadura, é perguntado em um plebiscito se consente com o reali!MI~º da )jherd ª de sociológica do trabalhador ao entrar em
governo do ditador ou com uma lei específica, e ele rejeita ambos, ontratos de trabalho. A categoria jurídica por si mesma não ante
sua decisão é juridicamente livre porque ele não é compelido a erdade socioló ·ca d trab ador que entra em um contrato29 •
consentir ou rejeitar. Contudo, ~m um sentido sociológico, ele não_ ntido filosó c , é a possibilidade re~
' livre or ue não tem a 12ossibilidade de escolha entre duas opor- a autoafirmação humana, o fim da alienação de si do homem. A
~dades iguais. Ele não pode nomear outro líder político senã~ realização dess.e "conceito concreto de liberdade"30 inclui as duas
quele..que lhe fui apu:sentado; ele não pode dar seu consentime~- utras_n.oções de liberdade.
27
t - - à sua frente •

aderno do direito, ' parte das mais


•.IZ.,!.;~~~_........,.....""""'s., e caracterizado por uma 28 NEUMANN . Koa /itionsfreiheit, p. 20-63.
ten~"""""'""~ola..~~~~~~~~4""'r~'u •·~ca:;..;:;e~ss~a~c~o~n~c~e~ç~ã,o;..;;s~o~a~·o~-- Polizeigewalt ~~- indica um escopo muito mais amplo de poderes
do qu e os " deres polic ia· eSlfitamente - a melhor trad ucão se r ja
16.gica do direito ao dar atenção&recSJ p . t " - ". (N. M. R.). de
29 Lord Mac naghten, no caso de Nordenfeld (1894), A. C. 566: "É óbvio que
há mais liberdade de c;ontcaliV:otre o comprador e o -..:endedar.do..que..eime
o ser-tAer 8 e Qier:avs,.-01 • eatreenprggadg r e S!g uela pessga que está prgcy rando
26 MAN NH EIM, Karl. Mensch und Gese/lschaf! im Zeitalter des Umbaus, p. 109. e~e" ; si milarmente, Lord Parker, em Morris v. Saxelby (1916) 1. A. C.

27 Em acrésci mo a COMMONS, J. R. Legal foundations of Capita lism, p. 20; cf.


688 e 708/9 .
Também WEBER. Wirtschaft, p. 454. o HEGEL. Rechtsphi/osophie, §7, Adendo.
84 - Ü I MP~RI O DO ÜIREITO
FRANZ NEUMANN - 85

\. / ~ de irn~ortância decisiva reco~ecer e~sa_ hierarquia dos direitos inalienáveis dos homens. Lembraríamos somente que
~ conceitos de liberdade e não confundir seus ruve1s. nos Estados Unidos, assim como na Alemanha, tem sido dada
Classificação das Liberdades - No curso do desenvolvimen- uma ênfase notável a tais liberdades, uma vez que preservam o
to histórico, ~erode liberdades especiais des- istema burguês da propriedade.
critas c ~õ'Nlmdamenta}S - como "direitos humanoS: ou No quadro das liberdades inalienáveis, existem, por um lado,
como " · itos dos omens ':-:Õevemos tentar sistematizar essas liberdades que podem ser removidas somente pelo legislativo
teo~ Rg?etimos que os então chamados direitos pré-estatais dos no processo de emenda constitucional e, por outro lado. aquelas
h~ns, segundo o liberalismo político, são tambémjuridicamente que podem ser remov:idai; por um 5jmples proce5so legid~tino;
inteligíveis somente como direitos concedidos pelo Estado. istem direitos fundamentais em que o legislativo não pode in-
t rferir, e aqueles nos quais se pode int · seja, aqueles
É possíve~ as liberdades a partir de dois pontos
vista: ou da proteção jurídi de ue desfrutam, ou da matéria

de saber se existem
- 1ue são guarnecidos com as chamadas "reservas da le" ( Vorbehalt
tl s Gesetzes); isto ' concedidos n · estrutura do siste-
a jurídico. Exemplos de tais " eservas da lei são encontrados
s Capítulos V- · eito da
ue seºam inalienáveis mesmo através de
m, por fim, · eitos fundamentai que po em ser remmri.dos
ti · s. Tem sido afirma o pe a · teratura
· cunstânci ce cionais
emã e americana gue há certos direitos fundamentais que não
esmo ser tocados. No caso do stado feder , temos ainda de
podem-ser-alienadns.mesm&S · i ão ermite emenda32 •
listinguir entre a autoridade da legis çao estatal e da legislação
Tais teóricos distinguem entre emendas constitucionais que
tderal. e entre exerutivo estatal e executivo federal.
deixam intocadas a "constituição como uma decisão funda-
mental~ (Ver.fassung ais Grundentscheidung), alterando apen:!S-
Além dessas distinções de acordo com categorias do direito
rovis<;> ~p.eciaiS-Crulsid.e-r~-0 missíveis· e emendas nstitucional positivo, distinguimos as liberdades fundamentais
con e visam à ab · - o dessa constitui ã acordo com sua matéria. de vista temos de notar~
são consideradas permissíveis. Não queremos discutir aqui as xistência dos chamados · eitos "individuai " ou "pessoais" de
possíveis funções políticas da criação de uma tal categoria de lib dade. Estes constituem os direitos damentais do indiví-
luo..is do tais como a roteção contra a detenção ile al, direito
• moradia e inviolabilidade da correspon encia, garantia de liber-
31 Contribuições parciais em: SCHMITT, Ca rl. Verfassungslehre, p. 161 e ss.; d. de reli "ã e de c 1a.
ANSCHÜTZ-THOMA, Handbuch des deutschen Staatsrechts; N ipperdey (ed.),
D ie C r undrechte und C rundp fichten der Deutschen, vo l. 1, p. 33 e ss.;
C omo uma segunda categoria suritem os chamados direitos
NEUMANN . Koa litionsfreiheit, p. 13 e ss. ~ade. Estes são direitos fundamentais gue se
32 Literatura alemã: SCHMITT. Verfass ungslehre, p. 99 e ss., e 176. Por outro
lado: NIPPERDEY, Ri chard Th oma de. C rundr echte, vol. 1, p. 40 e ss.;
r erem a tipos de comportamento decorrentes da vida coajnnta
NEUMANN, Franz. " Die soziale Bedeutung der Grundrechte", Oie Arbeit, d s-homens no Estadr;i. A essa categoria pertence a liberdade de
193 0, p. 570 e ss. Literatura americana: HAINES, C. Groves. The Reviva/ of
Na tural Law Concepts, 193 0, p. 336 e ss. considera a renovação do Direito - · reunião e votação secreta. Eles possuem
Na tural. Ou tros exempl os: MARBURY, w .•A. "The Nineteenth Amendment a a liber , ..l!.O criar uma esfera de liherdad.,e
and After", Virginia Law Review, VII (1920). Por outro lado: WILLOUGHBY, W.
W. The Constitucional Law of lhe USA , vol. 1, p. 598 e ss. (contra as "limitações nte ao Estado. e u~democrática, ao servir à integração da
inerentes ao poder de emenda").
86 - Q I MP~RIO DO ÜIREITO FRANZ N EUMANN - 87

Finalmente, na última categoria encontram-se os direitos à


liberdade social que se desenvolveram historicamente a partir dos
direitos à liberdade econômica. Eles visam à liberação da classe
trabalhadora. O primeiro exemplo é o direito à associação conce-
dido aos sindicatos - isto é, a liberdade que o trabalhador possui
para unir-se com seus companheiros em um sindicato.
Os direitos de status activus devem ser separados dos direitos
políticos. Os direitos democráticos pertencem aos cidadãos e ser-
vem diretamente para integrar a vontade do Estado de um modo
democrático. Pertencem a estes o direito igual de voto e o direito
ao igual acesso a cargos públicos.
Um dos principais problemas de uma investigação sociológica
do direito refere-se à guestão da relação desses quatro grupos entre .
si. moderna teoria.constitucional alemã interpreta os três primeiros
grupos mencionados - ou seja, os direitos à liberdade individual,
políti A • ois os direitos à liberdade social não existem
12ara esse grupo de teóricos - como sendo filhos da socieda e
burgµ esa moderna baseada na livre competição. Logo, eles
desaparecem e, como uma conse uênaa lógica têm d ·
q\lan.22 a livre competição não mais existir. No mesmo sentido, a
aniquilação dos .@!eitos à liberdade pessoal, política e social-@.
justifieada pelo fa 5rj5m ç ao ãtirmar gue todos esses dii;~s
fündmrentaie~o..mem produto do capitalismo.

Contra essa te~


· n · · cisivamente que uma
tal conexão entre os · eitos liberdade pesso , política e so ~al,
um lado e os direitos a herda e e ca que se desenvol-
vern.m somente no quadio e um sistema econonnco compet1tt-
e.comércio e
v , (}.r outro lado de fato não existe. M esmo uma analise
histórica muito Sll:perficial nos ensina que ao menos os direitos
e~oais e políticos existiram e têm sido disputados mmto antes
e-SYrgim eptg dg si 5tem a ecgpômicg cgmpetitj~. É possível
33 WEBER. Wirtschaft.
34 ELY, R. T. Property and Contract in their Relation to the Distribution of Wealth, provar que a função desses direitos não se perdeu, mas antes
p. 94; AUSTIN, John. }urisprudence, vol. 1, Curso XIV, P·. 382 e Curso XLVll, cmde a aumentar em importância depois do desap arecime,!!!o
p. 817 e ss.; HOHFELD, W. H. Fundamental Legal Conceptlons, p. 28; RENNER,
Karl. Oie Rechtsinstitute des Privatrechts und ihre soziale Funktion , p. 28; a..livre c;;prrwetici,o.
MENGER. Staatslehre, p. 99.
88 - Ü I MP~RI O DO DI REITO FRANZ NEUMANN - 89

2.2.3. INSTITUIÇÕES E O IMPÉRIO DO DIREITO A emergência do caráter dessas relações, portanto, não é decisiva.
(TEORIA DAS INSTITUIÇÕES) Um companheirismo pode ser criado por poder, e a dominação
pode ser exercida por contrato. Se, por exe der público
Uma concepção jurídica fundamental para a análise de todo cria compulsoriamente uma relação de ompa-nheirism entre
sistema jurídico é aquela da instituição jurídica. Usamos esse ter- pes~a dores para a construção e preservação e iques, ou se
mo de uma forma puramente descritiva - isto é, a palavra "insti- trabalhadores são reimidos compulsoriamente em tomo de um
tuição" não contém implicações metafísicas. A concepção da funde-tle reservas contra doenças, uma tal união conquistada por
mstituição não pertence nem à teoria pluralista do Estado do me·o da coer ão não cria necessariamente uma relação coercitiva,
~. Figgis ou Laski, nem à filosofia jurídica neo~o~st~ ~e
~ ou Lambert. Não negamos que a noção de mstl~
jurídiea-possa ser absolutizada e, por essa razão, se tomar a~
de uma filosofia jurídica; as condições sob as quais uma tal ~
formação pode oçorrer será apresentada na Parte Ili. Com a fma-
lidade de e.v:itaJ:..(')_Ualquer confosão, repetimos então que o cone~ Mas a propriedade que foi alocada de um modo particular
d~stinii ção " é aqui puramente descritivo. Lidamos primeira- tam~ode or si mesma uma instituição. Ela é criada ao
- -. ~nte com a no.çãcw:i · nstitnição jurídica e, depois, com suas se s~ a priedade tomá-la independente, implícita ou ..i!i-
relações com a lib.erdade. ridicamente. No eito alemão temos os exemplos-dõ~Jfun­
dação ou instituto, pertencente ao direito público) e a Sti un
(fundação ....P._ertencente ao direito privado).
Finalm~ens e propriedades podem ser unidos para
formar uma · stituiçã , seja numa base hierárquica ou numa re-
lação de comp eirismo. Os exemplos que mais chamam a aten-
ão no caso de se juntar bierarquicaroente homens e coisas são os
da fábrica (Betrieb) 36* , resa e da combina ão de em resas.
Entendemos por uma ábrica" uma junção hierárquica de coisas
e homens (meios maten e pesso"iis a e proaução). A fábrica é
uma_unidade técnica em que objetivos econômicos enquanto tais
"dos.
Objetivos econômicos encontram seu lugar na empresa. En-
endemos por esta uma junção hierárquica de coisas e homens (meios

J SINZHEIMER, Hug~ndzpg s Arbeitsrechts, 2ª ed, Jena, 1927.


35 VON GIERKE, Otto. Das deutsche Genossenschaftsrecht, vol. 1, p. 8 e ss.; Em vez de traduzi r~Web pdr. shoR ~UWª ºº tarobém pnderia..te~6e-j;ler
ALTHUSIUS, Johannes. Politica Methodica Digesta, p. 21 -2; VON GIERKE, p fiJnt ou works (N. de M . R.) . - odos os termos odem ser traduzidos em
Otto. Johannes Althusius, p. 48, 161, 197. português por fábrica - N. do T.J.
90 - Q I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 91

materiais e pessoais de produção) para a persecução de fins econô- Se a propriedade, como vimos acima, é um direito, a pro-
micos. Em pequenas unidades, fábrica e empresa coincidem fre- priedade nos meios de produção também é uma instituição com
quentemente. A unidade técnica é, em grande parte, ao mesmo uma função tripla38 : posse, ou retenção, administração e lucro. É
tempo a unidade econômica. As esferas de decisão das políticas de d snecessário mencionar que do ponto de vista do proprietário a
negócios são uma e a mesma, embora nas unidades modernas dt, função central da propriedade é o lucro, e que para ele todas as
larga.es ent - e se aradas. utras funções se encontram subordinadas a esta última.
A combinação hierárquica da empresa ' companh · 7• A com- Entendemos por função de posse a retenção física das coisas
pª°1.lia é uma junção hierárqyica de muitas empresas legalmente u de direitos pelo proprietário. Veremos que esta função se perde
m entes visando à ersecução de objetivos econômicos. f\ caso da propriedade de larga escala, e é transferida aos trabalha-

Falamos de d res. Em um estabelecimento baseado na divisão do trabalho, o


proprietário perde a retenção factual dos meios de produção.
A função da administração consiste na administração dos
h roens, os mci n~pesS,Qais de produção, e de coisas, os meios ma-
l riai.s__d ção. A administração dos homens implica o po-

A propriedade nos meios de produção atrai necessariamente


t) homens para suas esferas quando a sociedade é dividida em
1 r ptietá rios dos meios de produção e trabalhadores "livres"39 • A
1ropriedade possui claramente essa qualidade magnética somen-
t EfUando cWSte essa relação Social mletiva, Ü trabalhador não
de escapar disso caso cpwira reproduzir sua força de trah:illho.
O poder de comando é, por outro lado, exercido potencial-
li\Cnte por todo proprietário dos meios de produção. A proprieda-
rela ão entre homens or meio de coisas. Como já havíamos
1 encionado, a função asse • da administração consiste, para o
pr prietário dos meios de produção, no serviço gerado pela função
1 lucro, me~wo ~. de ornm ponto de vista, os meios de produção
arrWl::~~~iila.tJ.iij:ll~i;?ir[2 0dução. Do seu ponto de vista, eles
.•.,,,....,.,.,
eios para gerar lu . No presente estágio do desenvol-

llJ Funda mental é o livro de RENNER, Karl. Die Rechtsinstitute des Privatrechts
und ihre sozia/e Funktion; MENGER. Staats/ehre, p. 99 e ss.; ELY. Property and

37 NEUMANN, Franz. Gesellschaffliche und staatliche Verwaltung monopolistischer ,, Contract, p. 94 e ss.; NEIJMANN. Koalitionsfreiheit; Grundzüge.
"Livres" no senti do da dqpla liberdade do escravo emanc ipado: lega lmente
Unternehmungen. Die Arbeit, 1928, p. 393 . livre e livre da propriedacel
92 • Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 93

vimento da divisão do trabalho, o proprietário dos meios de produ-


ção muito frequentemente não controla a função administrativa.
Ele delega seu exercício aos seus empregados. O empregador prin-
cipal invisível, o empregador jurídico, tem de ser distinguido do
empregador visível, o empregador factual.

2.2.4. As RELAÇÕES ENTRE LIBERDADES E INSTITUIÇÕES

pal-

· ões conectadas, auxiliares ou suplementares. Do


mesmo modo, uma instituiç.ão..(instituição prtnctpa po e ser ro-
~a... as instituições e liberdades auxiliares para sua proteção ~a ndida aos djWtos de imprensa e de assembleia, ou estes dois
'"'e-Fê~ção • 40 devem ser medidos segundo seus próprios padrões mnsti1J!cjonais41 ?
O direito de associação não possui apenas liberdades suple-
entares, mas também jnstituiyões.s tares como or exem-
plo, o-amrdo coletivo qne por si mesmo pode e_ossibilitar aos
indicatos a manutencão de suas funções econômicas.
O matrimônio como uma instituição principal também é
vesti deado por ~-e liberdades auxiliares, tais como as ins-
1ituições de se~ (~o-saúde, direitos de com~nsação

Com o direito de associação os trabalhadores e seus empre- ara-homens trabalhadores, seguro-desemprego), que se torna-
gadores rece · ·to de se juntarem para a persecução de certos , m suplementares ao matrimônio na medida em gue são benefí-
~Esses · eitos previnem coma.já..~. os poderes privados e
i s diff:renciados na distribuicão de acordo com as circunstânc[?.s
públicos de impe em associação. Se o legislador concede uma da essoa beneficiada. Outra instituição auxiliar ao
tal liberdade, então a questão a ser colocada será a de saber se aquelas atrimônio é a do sufruto que garante a ordem burguesa de
lib-eràades que, por exemplo. um sindicato necessita para seu ucessão da ro rieda e.
funciooameoto efetivo, e gue são apenas suplementares frente à . ~ a li?erdade, po~ece_ seja como um~ lib~r~ade
mc1pal, eJa como un1~ assrm como uma mstitwção

40 Fundamental aqui é RENNER. Rechtsinstitute; SCHMITI, Carl. Freiheitsrechte


A parte IV de meu Koa /itionsfreiheit é dedicada a esse problema. As institui ções
und institutionelle Garantien in der Reichsverfassung; NEUMANN. Koalitionsfreiheit,
p. 86 e ss. O traba lho de Karl Renner contempla a propriedade e todas as outras
instituições auxiliares, mas infelizmente esquece de fazer uma distinção mais
" auxi liares ao c:!ireito dos trabalhadores para que estes possam se associa r são
invest-iga · uanto elas se relacionam com a liberdade
fina entre " liberdade" e "instituição". pr.iocipal. e o quan to elas sofrem da sua propna in epen encia.
94 - Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 95

~
jurídica aparece ao mesmo tempo como suplementar e como prin- mu-de 111onopolização é intrnduzido. Essas liberdades auxiliares
cipal. De fato, trata-se neste caso de um campo extraordinaria- muito frequentemente sofrem infrações ou são ainda abolidas e
mente frutífero para futuras~ em sociologia do direito. recolocadas no sistema jurídico por uma forma de ato adminis-
A propriedade é o eio de produçã que se encontra no trativo pertencente ao direito público. Se a liberdade de comércio
entro de no~estigação, e q aeada por liberdades e em uma economia monopolista parece levar a lucros cada vez
instituições tUXiliar'.\s,-t . - · o ara a proteção e realização menores, o Estado moderno do século XX não hesita em interfe-
sua fun ão d . ercer a ção o lu-
cro, o proprietário precisa com r e ven r, emprestar e pedir
empi:és.timo~atr~m contratos e tra alho e, se for um E!Q;:
prietário de terra. conduzir contratos de arrendamento e oner~
.com hipoteca 42 • Portanto, a liberdade de contrato é uma liberda-
de auxiliar essencial da instituição principal da propriedade. A
relação de propriedade também necessita da liberdade de comér-
cio, que ao mesmo tempo é uma liberdade suplementar e tam-
bém tem o efeito de uma seleção natural dos proprietários,
cluindo os não econômicos dentre eles e retendo e reforçando
s econômicos. Voltaremos a esse ponto mais tarde em nossa aná-
{
se da teoria econômica liberal clássica.

e a ões de pro uça - ou seja, "relações sociais


ambas podem serVlr a erentes 44
em q os • "Esta relação produtiva é
interesses_e.co.nâmico.s; a · de de contrato, por exemplo, pode
o mesmo tempo-tt~j.u ádi ca e uma relação entre senhor
.s.er..w:_&lS interesses dos monopolistas, enquanto a · er ade de.
.comércio serve aos interesses.das não monopolistas43 • Também e.. escrayo"45 •. Relações de produção são ~relações nas quais se_
pode acontecer que liberdades e instituições que ocupam, em um entrou através dos homens em seus processos sociais da vida, na
p o duçao- d e sua v1.d a soc1a . l", e e1as p ossuem um "carater,
certo momento, uma posição prévia ao suplementar outras insti-
46
tuições e liberdades parem de fazê-lo e, ao contrário, passem a especificamente transitório" • Com a estrutura das relações de
exercer uma oc;influência opost~-àqnela s funcões pretendidas pela produção, é realizada a combinação das diferentes forças
-liberdade e instituição principais asseguradas formalmente. Por pro dutivas por unidade é mantida.
exemplo, a-liherdadt d~ contrato e de comércio pode ir contra a • ntendemos aqui por "fi r as produtivas o conhecimento
propriedade privada nos meios de produção quando um certo técnico disponível, os .meios pessoaJ.s e ma terjajs de produ ção

42 Cf. REN NER. Rechtsinstitute, p. 63-9. 44 MARX, Karl. Lohnarbeil und Kapital, vol. 6, p. 408.
43 Cf. o artigo do prof. D. H. Parry, " Economic Theorie5 in Engli5h Case Law", Law 45 MARX, Ka rl. Das Kapital, MEW, vo l. 3, p. 789 e 55.
Quarterly Review, 193 1, p. 199. 46 Ibidem , p. 885.
96 - Ü I MP~RJO DO ÜI REITO FRANZ NEUMANN - 97

J-1 existentes na sociedade (por exemplo, qualidade da terra, competição, o exercício da liberdade de contrato e de comércio
q matéria-prima e capital fixo) 47

sã,o meios para a realização do lucro para o proprietáàa das meias
de-p-FQ<ln çã a Nesse período ~tado garante sua existência
Os víncul'às entre relações de produção e forças produtivas,
(através de garantia s constitucionais ou simplesmente jurídicii'
segundo ·a teoria marxista, sofre no curso do desenvolvimento his-
de-mis-lieerdarJes) rn1 sua fun!jrão (por exemplo, pelas leis relativas
tóri ti 1 udan e- ão. QP.an o llii füna tendenciá'
a competição injusta).
das forças produtivas m e expan (por exemplo, em virtude de <....

uma ~ã:: aneote de conhecimento técnico), "em um cer- ~m um período de economia monopolista a relação é inver-
to estágio do desenvolvimento", acontece gue "as forças produtivas a. "herdade de comércio facilita ao mesmo tempo o aumento
mateàais da sociedade entram em..contradição com as relações de dos-empreeAdim~toã Q9~petfrivos mdeseiadus pelos monoÊ
p.mdyção existentes" ou, "o que seria somente a expressão jurídica 1.isJ:as:. a liberdade de contrato possibilita aos intrusos a P.Ossibili-
dessas relações, entram em contradição com as relações de proprie- ade de se manterem ~&t2dos das acganizaçõe.s._moAQpolistas ou
dade na qual aquelas até a o eram. Estas relações, umas d abandoná-las por vontade. Aos trabalhadores é dada a possibi-
vez que são formas o de e e t lidade de unirem-se aos .sindicatos pela liberdade de associação e
nam=Se..ag~to~ue.impedem o desenvolvimento destas for- e tai~nai1à@»es -.a& dos-emp reendimentos
.ç "48 • Essa teoria marxista se r fer co d . a enas à transi ão de do m onopolista tendem a diminuir, pode muito bem acontecer
uma.ordem saci ai para.,QUtra,.em qµe çada ordem social, a antiga e que as · · · - · · es seºam abolidas em
. d
v~entes
-
aos interesses monopo stas.

2.3. 0 DUPLO SIGNIFICADO DO IMPÉRIO DO DIREITO

47 MARX, Karl. Theorien über den Mehrwert, vol. 26, p. 25 e ss. - ou seja, em
toda sua essência encontram-se os dados da teori a econômica moderna
desatrelada do fa tor subjetivo das carências individuais.
48 MARX, Ka rl. Zur Kritik der politischen ôkonomie, prefácio, M EW, vo l. 13, p. 9.
98 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO
FRANZ N EUMANN - 99

ou corte, cujo preceito contém em si mesmo a razão da obediên- não é mais soberano. Contudo, somente podemos falar do im-
cia"49. "Lei é a palavra daquele que por direito exerce comando pério de um direito material se houver uma grande e suficiente
sobre os outros"5º. Entre o domínio do direito em tal sentido e a expectativa (Chance) de que o direito material em questão será
soberania absoluta não pode existir antagonismo. Se o direito nada realizado no sistema jurídico positi o direito posi-
·s é senão a vontade do Estado na forma jurídi~a, .então o pos- tivo entrar em contradição com o · eito material o direito po-
do do Império do Direito não pode oferecer lirmtes ao poder s1t rá mais im lem ão se pode dizer que o
soberano. Tal direito desmaterializado não compromete o le- Império do Direito material existe se - como na Idade Média e
gislador. O ·m ério da noção política de direito e a existência da no início da era moderna - os detentores do poder estatal subs-
-soberania absoluta do Estado sao na re a e uas diferentes cre eram a justificação da sobe direito na -
r . Da mera asserção
que se coloca..anteriormente ao direito positnro, n ão podemçis,
contudo, deduzir o Império do Direito material. Sob tais cir-
cunstâncias, isso seria realizado somente_guando esse direito na;
tmaLfosse realmente concretizado, ou quando sua preeminência
sobre o direito positivo fosse institucionalizada (por exempl~,
pelo reeonhecimento do direito de resistência ou da deposição
do portador da soberania). Ao mesmo tempo deve hayer m~a
una:nt uanto aos conteúdos do atural.
O conflito entre as noções olítica e ateriais do direi é
expresso claramentL no julgamento os cinco cav eiros aprisio-
nados por Charles 1 com base em sua prerrogatiJTa, e que apelou
para a Cone do Tribunal Real por um habeas corpus. Selden, es-
~nem toda pecialmente52, baseou sua alegação nas cláusulas do Capítulo 39
'.J uma cert a soberania absoluta são,
da Carta Magna: "Nenhum homem livre pode ser( ... ) aprisiona-
de uma forma clara, utuamente excludente A soberania ab- do (... ) exceto pel · amento le al de seus iguais e lei
soluta implica em *}~gi.sla teri ente rrrestt1
do~53 . Mas o que devemos entender aqui por " i do país"
Contudoresse não é o caso se for permitido ao legislador insti-
e ~ significa a ordem do rei para o aprisionamento, então a
ttlir-kis_gerais, justas ou razaávei s - ou seja.. se o direito mat_f-
liberdade garantida pela Carta Magna não existe. De acordo com
rial (por exemplo, o direito natura}) governa. Em tais casos, ele
o argumento de Selden, se os direitos devem ser garantidos por
esse caminho, então "lei" deve significar o "processo legítimo da
49 HOBBES, Thomas. Philosophical Rudiments, vai. li, cap. XIV, p. 183.
50 HO BB ES. Leviathan, vai. Ili, cap. XVI, p. 147; Ibidem, vai. VI, p. 26: "A lei é um
comando daquele ou daqueles que possuem um poder soberano sobre aqueles Cf. Sta te Triais, 111, p. 1 e ss., a defesa de Selden começa na p. 16 e ss.;
a quem lhes estão sujeitos, declarando mani festa e publicamente o que cada GARDINER, S. R. Constitucional Documents of the Purita n Revolution, p. 59;
um deles pode fazer e o que estão obrigados a fazer". idem, History of England from the Accession of James !, va i. VI, p. 213 e ss.
51 FOSTER, M . B. The Political Philosophies of Plato and Hegel, p. 11 4. A tradução foi retirada de M CKCHNIE. Magna Charta, p. 375 e ss.
100 · Ü IMP~R IO DO DIREITO

lei", ou seja, a "lei" deve ser considerada no sentido material e não


no político. Mas como já foi claramente mostrado por McKechnie,
apesar da Carta Magna, todos os reis, de John Lackland até Charles
I, reivindicaram um direito ilimitado de aprisionamento ("custódia
de proteção" na terminologia moderna); e o significado dessa cláu-
sula da.._Carta Magna tem sido muito exagerado. Heath, o procura-
dor-geral da Coroa, pôde responder muito bem a Selden: "A lei
sempre pe~o rei ou ao seu Conselho Particular
(... )de, em os extraordinári s, reprimir as pessoas em condições
liw~~por.razões-d.~.MaiWJ..Jqut::.illlWill.u:IA:Ull.1!9;~!!:!!!~QDIDl.I.CW:
II
-Pº para expressar as aiusas desse ato".

SOBERANIA E IMPÉRIO DO
DIREITO EM ALGUMAS

TEORIAS POLÍTICAS
RACIONAIS
( Ü DESENCANTAMENTO
DO DIREITO)
FRANZ N EUMANN - 103

A tarefa da segunda parte deste l i v' r oa:e primeiro, de-


monstrar a distribuição das esferas entre s berania I~
ireito material nas mais importantes teorias po ocas racionais,
em segundo lugar, esclarecer a conexão entre teo ·
dos ' divino e se
,p..-l><õ~!l'da parte, portanto, está restrita, em primeira linha,
orias racion ·s. Todas as teorias tradicionalistas ou carismáti-
cas não oram consideradas, e foram tratadas somente na P ai:te
Ill,-na qual a reação contra as teorias racionais, a transvaloração
dos valores pelo fascismo, é considerada. ,.
A teorias racionais, foi necessário escolher entre
duas ernativas possíve·s. Poderíamos ter lidado com todas as
eorias que ti eram al a influência na formação do pensamento
político: mas tal empreendimento teria que ser acomp ado i:_
uma história de todo o pensamento político, uma tarefa obvia-
mente impossível, gue poderia ter levado apenas a um número de
eneralizações vagas e repetitivas. P~0s or essa razão, a
egunda alternativa, selecionando Ílromas das teoria , a saber:
aquelas qye tiveram um indubitáyel alto au e ínfluência sobre
~desenvolvimento do pensamento político.
Podemos ser repreendidos p_o om a,
mas pareceu não h ~r outra saída para a nossa djfirnld!W.e.
Uma segunda consideração nos leva a tomar a decisão esco-
lhida, a saber, que dese ·ávamos investigar as teorias políticas a
artir de apenas um onto de VIS , do ponto de vista da relação
entre saberaaja e direito material, e que todos os outros proble-
mas-são para nós simplesmente incidentais e secundários em sua
i~a. Até agora, esbarramos neste problema pelo cami-
nho: ele ainda não hm . Por-
tanto, pretendemos investigar a mie=s~tã=o;..;;;e..;i;o,;,;~-..=-~r===""
usuais,_ t.Ys como saber se se chegou a uma solução satisfatória.
quanto à qrn:stão da ghediência frente ao Estado, se a resposta de
Hobbes é preferível à de Locke, ou à de Rousseau ou àguela de
Ka nt......Em nenhum caso devemos expor o sistema político total
104 · Ü IMPÉRIO DO ÜIREITO

.............,~-s~i~co~. Tentamos também introduzir termino ogia e concei-


tos modernos para tomar as teorias compreensíveis. Temos a im-
pressão de que uma simples repetição de palavras e noções nas
teorias utilizadas por esses autores toma incompreensível qual- Capítulo 3
quer exposição da teoria.

Direito Natural Tomista


,_..~~e~s~
eru
~t~
e,_==""·""'""""',,_.,,...,..
nascimento o si
se tomará evidente. A terminologia de Blackstone foi amplamen-
te influenciada pela terminolo ·a da teoria do direito natural de
~~"-"!.l<ec.,,;;A
~Quino e · da filosofia escolàstica so re
Lo.cke..foj_prov.ada po~Jk.a.mp!. Ainda mais, no direito natural
·~.o=.:~~,,,,_,,. d,..
· n...,c""ias d.e..sintegra®ras e -o inerentes a ual-
.cularmente evidentes.

TEL KAMP. Das Verhaltnis des John Locke zur Scholastik.


FRANZ NEUMANN - 107

.1. 0 DIREITO NATURAL EM CíCERO

noção de direito material era completamente estranha para


isprudência romana. Para a República Romana, a declaração
Gaius (I. Seção 3) tinha validade indisputável: "Lex est, quod
pulus jubet atque constituit". Ilm · ortanto, toda deci-
da comi/ia que se referia à iniciativa dos magistrados. sso
y.u................u.11.J1.1.LJL!la~teoria do direito de Cícero. A acei-

ério do Direito maten , e, com isso exerce uma influência


traordinááa sobre o direito natural tomista, e por meio deste,
sim como também diretamente, sobre o direito natural secular.
De acordo com a teoria de Cícero, todas as leis positivas são
~ ...........
1mtridas pelo direito natural divino 2 • O direito não escrito da
11. tureza e da diviodade deve ser a fonte do direito estatutário.
L e-direit natural é eterno e inalterável e visa à reali
..direito positivo, contudo, tem de ser adaptado
-{;Onruções locais e rewiwrais; trata-se de um direito particu-
que não deve rnptradizer o direito natural universal.
-
DITIRICH, O. Geschichte der Ethik , vol. li, p. 32-53; ROBSON, William A.
Civilisation and the Growth of Law, p. 214.
Cf. a exposição de MCILWAIN, C. H. The Growth of Po/itica/ Thought in the
Wesl, p. 111; CARLYLE, vol. 1, p. 3 e ss.
108 · Ü I MP~RIO DO ÜIREITO F RANZ NEUMANN - 109

É possível dizer que Cícero postulou o Império do Direito membris uti non potest lege ministri magistratus (... ) circumspiste
material no nosso sentido? Ou seja: se ele permitir uma expecta- omnes rei publicae partes: op:uü:rl-egu imperio et praescripto
tiva (Chance) suficientemente grande de realização do direito fieri videbitis". Esse discurso(Ao Cluentia é um discurso típico de
natural, isso poderia contradizer o direito positivo? Essa questão dvo ado. Nele, Cícero primeiramente rende homenagens à Lex
deve ser rapidamente investigada. Sempronia Parª depois provar que seu cliente Cluêncio não podç
-;;7' Em Sobre as leis (l.6.18)3 ele definiu a noção de direito como e unido com base nela. a verdade, ele não entra na questão
se segue: "Lex est ratio summa insita in natura, quae iubet ea, de saber se a própri Lex Sempron · era compatível com o direito
quae facienda sunt, prohibetque contraria. Eadem ratio cum est natural de acordo com o pnnc1p10 non nimis Probare. Portanto, !ex
in hominis mente confirma~a ~t co ~ . est". Nessa só pode si~nificar direito positivo e não direito natural, e a
declaração, tal como numa similar em Republic (III.31-3), a.firmação de que na citação acima de Sobre as leis Cícero estav;a se
obviamente nada é dito sobre a nossa uestão cen , a saber se o r erindo ao · · natural não ode ser mantida. No mesmo
direito material tetn.-o uficientemente alt discurso Pro Cluentio contudo, encontra-se a seguinte citação:
vável realização. Com a finalidade de provar que Cícero postula "Iniquum tifo V1 etur, Acci, esse non isdem legibus omnes teneri.
a nulidade do direito positivo no caso de sua contradição frente rimum. Ut id iniquissimum esse confitear, eius modi est, ut
ao direito natural, a citação de Sobre as le,is, em que ele afirma que ommutatis eius opus sit legibus, non ut his, quae sunt, non
as leis se colocam or sobre o m · o e Q,-~~-~~~- pare~qui ele ,exige submissão incondicional à !ex scripta.
--\ o arta-voz das leis é fre uentemente referi ' Isso c~m si mesma a afirmação de que Cícero postularia
"Ut enim magistratibus leges ita populo praesunt magistratus Império do Direito natural, mas não provê solução ãlguma para
vereque dici potest magistratum legam esse loquetem legem nosso problema que está relacionado com o sistema jurídico de
autem mutum magistratum" (ID.1.2). O que significa !ex nessa ícero como um todo. Cícero aparece aqui como um advogado, e
relação? Apenas direito positivo, ou somente direito natural? A om a ênfase que atribui ao postulado do dever de obediência
que.stão é êxftlter · ariamente controversa, e ~minha opinião que os cidadãos devem ter frente à !ex scripta ele esperava comprar
in olúvel no moment . Para provar que po~essa relação n boa vontade da Corte. Na minha visão, no estado atual da
C 'cero_entcD.L tural diz-se fre uentemente que, ao pesquisa, é impossível decidir se o postulado do Império do Direito
s~referir--a o di.r.eito positivo ele utiliza o termo jus civile, e, sempre
1 material é um mero discurso "da boca pra fora" feito por Cícero,
ue ele se refere ao direito na utiliza o termo !ex. Mas a u se ele pretendeu tornar a.realização do direito natural altamente
citação seguinte de seu scurso ro uentio rovará a incorreção provável em face do direito positivo conflituoso. A impossibilidade
dessa...afu~ão (53.146.147): "Mens et animus et consilium et de decidir o problema, c do, tem um significado objetivo
sententia civitatis posita est in legibus. Ut corpora nostra sine ~e. Se dizemos com - arl 1 que o período entre Aristóteles
mente sic civitas sine lege sui partibus, ut nervis, ac sanguine et Cícero marca a linha divisória entre "teoria política antiga e
moderna'\ então Cícero pertence à teoria moderna, em que o

3 Todas as citações do latim foram retiradas da edição da Teubnerb ibliothek,


Leipzig: De Legibus, vol. li, e Pro Cluentio, vol. VIII.
4 Cf. sobre essa controvérsia, WLASSAK, Moritz. Romische Prozessgesetze, vol. Pro Cluenüo, p. 55 e 155.
li, p. 5, 6 e 108. h CARLYLE, vol. 1, p. 9.
110 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO F RANZ N EUMANN - 111

. \ conflito entre o postulado da soberania e aquele do Império do ori.m~é limitado. "O próprio mensurans (legislador) é,
~ Direito material aparece como um conflito típico. portanto, novamente ensura (...Ldireito, por assim dizer,
precede no tempo sua constituição pelo legislador na conexão êra
3.2. TOMÁS DE AQUIN07 o~erãl da natureza e da razão com as rela!j:ões históricas
oncretas"8• Na medida em que as normas do direito natural rela-
O trabalho de Tomás de Aquino surgiu num tempo em que
cliu:tam-se com o bem comum e com a ideia de igualdade, se':
o ardo medieval · ' ava os germes de sua dissolução, e seu
gyem-se daj três condições que devem 5er preenchidas po.r uma
contemporâneo, uns Escot (1308 d. C.), já era um pioneiro de
orma do Estado para ue e -h e "direito".
um individualismo que es va tennina . a desintegrar a cultura
medieval unificada Contudo, a umma e om continua sen O
a expressão dess ardo atribuindo um u a e ado para toda a
·da humana. Nesse sistema social a coincidência de voluntas
e§ Yde intelecto e sensibilidade e da estrutura jurídica e os
co ulos homens. resulta numa feliz harmonia.

3.2.1.
Tomás de Aquino distinguiu entre dominação exercida pelas . . 90.4.
normas da /ex natura/~ (e, portanto, da razão prática) e dominação
Toda norma que cumpra estas três condições obriga~faro
~o exercida por elas\Ele mesmo sempre postulou o primeiro tipo
conscientiae e in foro externo. A atitude postulada do su· eito em
de dominaçã~ As normas do primeiro tipo ele chama dJ":::O®
ir-e~ãQ..3..1:ais º Qrmas,J;IJJando não se conforma a estas três condi-
"Lex non est ipsum ius proprie loquendo, sed aliqualis ratio iuns"
õ.e.s,._é diferenciada de acordo com as seguintes possibil jdadei.;.
~ II.57. 1-2) . .ü.direi.to.e as normas.juódiças concretas, por sua vs
-o são idênticos; O direito é a base, é o padrão de medida, é um artis Em primeiro lugar, é possível ue o direito positivo
regt:UaQer eem ajuda do qu~e P.º che a uma decrsão JUSta. ontradi a os princípios básicos da x natura · e, portanto, da
le:c aetern pois esses princí ios básicos são parte da /ex aeterna.
essa relação com a /ex natura/is a le · stingue-se da /ex
rannica 1.II.92.1-4), e pela sua v is coactiva do lado de uma
"Lex aeterna nihil aliud est quam ratio 1vinae sapientiae,
autoridade legítima distingue-se da mera admonitio (2.II.65.2; ecundum quod est directiva ~ um et motionum"
1.11.90.2-3). Nem toda a norma do Estado é, portanto, direito. (1.Il.93.1). A /ex aeterna está e aizada em Deus A ordem da
natureza (justitia natura.lis) e a ordem das atividades humanas

7 LI NHARDT, Robert. Die Sozialen Prinzipien des hl. Thomas von Aquin, Frei burg, .. ~~~~~~llllwê~~~~~i.M.&.e..-_.....,...,e1
1932; STEINBÜCHEL, Theodor. Christliches Mittelalter, Lei pzig, 1935; SCHWER,
Wilhelm. Stand und Slandeordnung in Weltbild des Mittelalters, Paderborn,
erahi na~ é, assim-,-uma seção da !ex, aetqna. O homem
1934; GRAB MANN, Martin . Mit telalterliches Ceislesleben, Munich, 1926; aceita Deus e, por isso, também a /ex aeterna, e com isso participa
M CILWAIN, p. 325 e ss.; JARRET, Bede. Social Theories of the Middle Ages
1200-1500, London, 1926; CARLYLE, vol. I; TRO ELTSCH, E. Die Soziallehren
der Christlichen Kirchen und Cruppen, Tübingen, 1912 (tradu zido como The
Social Teaching of the Christian Churches). O LINHARDT. Sozialen Prinzipien, p. 94.
112 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 113

necessariamente na lex natura/is: "Participatio legis aeternae in Vemos, portanto, que ~, pelo reconhecimento
rationali creatura dicitur lex naturalis" (1.11. 91.2); "Omnia P-3-1"cial do direito de resistência passiva e pela concretização igyftl-
participant aliqualiter lege aeterna" (1.11.91.2). O ser humano é mente..parcial da /ex natura/is, institui uma dominação factual do
uma criatura racional dotada de uma lumen natura/e. Os princípios lm ério do Direito material, ao menos até um certo au. O Im-
supremos da lex aeterna são eternos e imodi.6.cáveis (1.II.94.5) mesmo pério do Direito maute:an.J.l·a:1.1l-1e!õ.'-i:'11J.W1.1.pµ_lui"'adu.u_;u.i.w~w.ii~~:a.s~w.i;;_
se seu reconhecimento e sua aplicação possam ser prejudicados pela o~· A eia das normas materiai
paixão (1.II.91.6). Em linhas gerais, seus deveres envolvidos são: to em yários estratos da sociedade.
amor fraterno (deveres sociais), manutenção e propagação da vida, e
amor de Deus (direitos individuais) 9• Se o ~ositivo entra em 3.2.2.
conflito com esses princípios básicos da Íe:__natu;~ a resistência
(o direito natural tomista é, em seu todo, uma codificação
~
passWa-por parte dos sujeitos não é apenas umCiírêrto, mas també!!!
ois a /ex natura/is é indis ensáve]; mesmo Deus não ode ordem feudal. J
prescindi.r.Jkla (1.II.100.8-2). A resistência passiva um deve. a
edi em ue o direito ositivo e o direito natural coino. em, o
efu~it.g_positivo é compulsó1io também in foro conscientiae. " i (leges
humanae) iustae sunt, habent vim obli~do in foro conscientiae a
lege aetema, de qua derivantur'' (1.II.96.4).
1>~~.lc:e em que o direito positivo
não está em conflito eterna , sendo assim, com os
princípios básicos da lex naturalt , mas_çom o direito natural e m-;;e.a:a::p~~~i.ie..JJJ:Q~OW:J;il),laJ~~
seomdário. As normas ~e1 . tura1 secundário derivam dos potestatis é soberaru . O papa é ""5!;;YJ,,1.1.1.1J"'-"~~~i.l:i!.l~~
princípios supremos d~~ /ex naturalts .gue certamente também reito é o que o papa determina. Já Gregório VII, em seus "27
~d~ p aeterna. las coincidem em seu toda cÜm Artigos" do Di~~ (1075), postulara a origem divina
Vo ~1.II.100.1-11). Elas njo são válidas em todos os casos, do papado, sua ~' a ·dade ilimitada e upjyersal
embora o se· sua maioria. Elas constituem, em seu todo, d papa sobre toda a sociedade humana: ele também postulam
uma parte do 'ecálogo as uais os ·uristas romanos entenderam o d.H:eira de deposição de bispos e reis, o direito para absolver os
por juc .gentium c0--<:entido de G a,iw (Dig. I.1.2 e 1.1.9 : "Qy.od sujeitos de seu deller de ghe;di.ÇnCia frente ao poder secular. Sob
naturalis ratio inter omnes homines constitui(... ) ius gentium, quase Inocêncio III lemos que "o papa dispõe da renda da Igreja, ele
quo iure ornnes gentes utuntur".· Se o direito positivo viola apenas distribui-as cargos e benefícios arbitrariamente, ele não é apenas
aquelas normas derivadas do direito natural secundário, o sujeito é, a lei- s-ttpHma, mas a iínica lei da Igreja; os prelados não sãQ-.
não obstante, compelido a obedecer ao direito positivo. Ele o obriga somente seus vassalos, agora eles são seus funcionários, e o jura-
in foro externo, mas não in foro conscientiae (1.II.95.1-2; 2.II.60.5).

10 FIGGIS, J. N. Studies of Political Thought from Cerson to Crotius, p. 57.


9 Ibidem, p. 104. 11 Ibidem , p. 20; TROELTSCH. Soziallehren, p. 242 (Social Teaching, p. 246 e 55.).
114- Ü I MP~RI O DO ÜIREITO F RANZ N EUMANN - 115

menta feudal tomou-se o juramento do ofício sem qualquer ra e cargos, esses novos grupos tomaram-se uma parte efetiva da
alteração nas palavras"12 • ordem; aqueles que gozavam de cargos mantiveram suas posses, as
Todo direito na esfera secular era, em seu todo, direito priva- quais passariam aos seus herdeiros. Sabemos que a Igreja chegou a
do. Todos os direitos políticos eram vinculados à propriedade da onquistar a posição de maior proprietária de terra, e a partir desse
terra. O rei sempre era o supremo e às vezes o maior senhor feudal. momento passou a se interessar na manutenção da servidão, pois o
"\}\ Como não havia direito público, não poderia existir estatuto per- servo era necessário para o cultivo bem-sucedido de sua proprieda-
~ tencente especificament direito. As relações políti- de. O sistema social europeu na época de Tomás de Aquino estava
cas eram, portanto, lações contratua1 Os contratos eram envolto numa rede complexa de relações feudais que se estendia do
ob · contratos de status · os acima. A socie- oeste ao leste, do norte ao sul. Camponeses e habitantes das cidades
dade era estática. Não havia alteração da hierarquia dos estamentos. eram igualmente não livres. Os camponeses estavam envolvidos no
Todo membro da sociedade tinha um lugar fixo no interior desta Dienstrecht:. as agremiações mais fortes das cidades eram estamen-
hierarquia de estamentos, na qual, em geral, ele era incapaz de se tos de servidão. Mesmo nos estamentos individuais e nas suas orga-
mover. A relação entre os estamentos era hierárquica - uma relação nizações em agremiações e corporações existia somente um grau
jurídica de superordenação e subordinação. Tudo isso está clara- muito limitado de liberdade. A organização estametal medieval
mente em contraste com a sociedade mqdema, com sua estrutura consistia numa sociedade baseada no privilégio.
de classe que se modifica constantemente e sua igualdade jurídica.
Desde o tempo de Gierke temos nos acostumado a distin- 3.2.3
. guir duas formas de organização estatal: os tipos autoritário e
"beral (associaç!_o) 13 • Não resta dúvidas - e recentemente 1ssófui Essa ordem autoritária encontrou sua expressão na !ex
reafumado pelos católicos - de que a Idade Média não conheceu naturalis15 • A divisão em estamentos é ·us · or Tomás de
qualquer ordem liberal de associação. Os estamentos eram esta- Aqu-i-ne. Ele distin eas ieni iuris 2. .183.1),
mentos autoritários 14 ineluindo a nobreza, homens livres homens reconhecendo assim condição a servidã . nco ocupava, além
semi-livres e servos. As diferenças baseavam-se n~ disso, um lu ar su erior en uanto o pobre ocupava um lugar
na terra e no poder. Esta ordem autoritária não continuou a enas · erior. A hierarquia consistia de uma posição ocupa a pe os
oJ!imates o topo, o estrato médio dos cidadãos (po ulus
3-Sel~~.......~~~~~~~~~~~~:.?.;..!!2!..:::J.:..~~
hon · e os estamentos de servidão (vilis populus na osi ão
inferior, e foi justificada por Tomás o seguinte modQi "Uma
hierarchis est unus principatus id est uma multitudo ordinata
un o modo sub principis gubernatione, non autem esset
multitudo ordinata, sed confusa, si in multitudine diversi ordines
on essent" (I. 108.2).~ escravidão é obviamente legitimada,
12 HAUCK, Albert. Kirchengeschichte Deutchlans, vai. IV, 4ª ed., 1913, p. 7 14. ~ smo quando é definida apenas como um mal necessár10 A
13 SCHWER. Stiindeordnung, p. 20; STEINBÜCHEL Mittelalter, p. 274; JARRET.
Social Theories, p. 94; CARLYLE, vai. I, p. 111 e ss.
14 FIGGIS . Politica l Th o ugh t, p. 12; SC HWER . Stii ndeord nu ng, p. 9; 15 TROELTSCH. Soziallehren , p. 252 -302 (Social Tea ching, vol. 1, p. 257-280) - O
STEINBÜCHEL. Mittelalter, p. 72 e ss. sistema de Aquino é aqui denominado um sistema de reconcil iação.
116 - Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 117

propriedade se mantém sem prejuízos (I.II.94-105), e de modo progredindo ininterruptamente durante os anos. Relapsos são fre-
algum foi considerada como produto de um pecado original, e a quentes, direito e moral, direito e direito natural são confundidos
teoria do comunismo originário é rejeitada. A propriedade é .frequentemente, mas o processo ganha expressão finalmente na teo-
uma instituição necessária16 • ria jurídica kantiana. Os conteúdos concretos do bonum commune,
Essa justificação da ordem autoritária no sistema do direito om o qual o direito natural estava relacionado no sistema de
natural em Tomás de Aquino corresponde à convicção de toda a Tomás, tornarem-se controversos. Surgiu a questão de saber se
Igreja, expressa na literatura dessa época17• Mesmo Agostinho ste bonum commune era realmente idêntico à ordem autoritária
justificou a escravidão com a doutrina do pecado original, e seus existente nos estamentos. O processo do desencantamento do di-
seguidores tentaram usar a analogia da hierarquia dos anjos para reito já tinh uando, de acordo com o pensamento
jurídico e ão e direito rom se declarou ue o monarca
justificar a ordem feudal.
C8taJta_ohrigado pela lei. QYalguer justificação com base na mo-
quia existente tornou-se necessariamente duvidosa.
O conflito ideo)ógis;o real pareceu ter se manifestado, e as-
fez em três esferas: na rela ão entre Igreja e sociedade secu-
lar.; no interior da própria lgrejaj
~- §Ociedade secular.
o· mesmo durante a
3.3. A DESINTEGRAÇÃO DO DIREITO NATURAL TOMISTA
orresponde q fato de gue as relações
...C.Q.tre direito natural e direito positivo tornaram-se problemáticas_;-
3.3.1
a..questão da soberania havia se colocado. Ao mesmo tempo em que
a ordem natural não mais era sentida como sendo idêntica à socie-
Nos ensinamentos sociais e l:!Y'-~
dade humana - isto é, quando a ordem feudal hierárquica não foi
podemos encontrar elem.,""'"""".,.,.,_~·"
mais.__aceita como uma ordem social óbvia, e o..Estado moderno
de todo homem como tura racio ~--
começou a emergir-, a divergência entre direito natural e sobera- ~_::_=:..:..==..:~;:.._;;;;;====

da~ da alma e, sobretudo, da 1 de humana perante Deus, fo-


. tornou-se evidente. Com o proces~o de divórcio do direito pQ:.
ram atos históricos da Prática Cristã: ''Não pode haver nem judeus
sitivQ..frente ao direito natural, pelo qual o direito positivo tornou-se
nem gregos, não _pQde haver nem súditos nem livres, não pode haver
mto-suficiente e autônomo, ocorreu um processo que, a partir ds
em homem ne mulher! Pois sempre todos são apenas um hô-
aaalog:ia com a famosa generalização do "desencantamento do
mem e esus Cristo . "Todo indivíduo, por virtude de sua destina-
nn~ber,-pQdemos chamar de "desencantament.Q.
ção eterna, tem no seu âmago algo de sagrado e indestrutível"18 • É
ao direito". Esse processo de desencantamento não se interrompeu,
verdade que o direito divino da igualdade humana não tinha inten-

16 LINHARDT. Sozialen Prinzipien, p. 207.


17 JARRET. Social Th eories, p. 104 e ss.; Carlyle, vol. 1, p. 109 e ss.; SCHWER. 18 GIERKE. Die Staats - und Korporationslehre des Altertums und des Mittelalters
Standeordnung, p. 34 e ss.; STEINBÜCHEL. Mittelalter, p. 259 e ss. und ihre Aufnahme in Deutschland, p. 621.
118 - Ü I MP~RI O DO ÜI REITO FRANZ N EUMANN - 119

ções seculares - apenas a alma era livre. Mas a ideia continha uma trabalho sobre Dante, expôs o problema como se segue: "É
dinâmica psicológica que teria de se complementar no lugar da teo- possível realizar a tarefa da teoria social cristã de formar uma
ria do pecado original; isso foi formulado pelo professor Barker do omunidade de almas individuais livres? A liberdade do indi-
seguinte modo: "Se o escravo deve ser tratado como um homem em víduo, de estabelecer por si mesmo suas metas, não exclui a
algumas circunstâncias, ele deveria ser tí~tado como um homem em possibilidade de subordinação sob uma organização comunal?"
todas; admitir que ele deva ser considerado como um homem des-
trói aquela concepção que lhe atribui um caráter próprio ao escravo .3.2
e não racional (pode-se dizer, não humano), que era a justificação

~
para que ele fosse tratado como escravo"19 • ~ é praticamente noss:,
quarta~tese· o reconhecimento da liberdade e igualdade em umj.
esfe va ao ostulado da · e e igualdade nas outras.
A divergência entre · eito natur os111v - entre direito
natural e ordem soem - ocorreu quando a subestrutura social
nj o mais se encontrava obstnúda, sem distúrbio, e não mais exes
ci.a.fu.nçõ~tiyas. O conflito entre qominação e norma, eI!J!:e
v~: G':o, corres ondia fre uentemente não apenas a uma
~assihilula e t ór" m s era uma realidade soa .
ão-nem herétieos nem pagãos, mas que recusam se submeter à
A relação do poder secular com á Igreja e a justificação
ntade do ovo. Pois Deus, "ou melhor, o agente incontestável
do poder secular como um todo tornaram-se problemáticas do império de Deus"22, é o soberano diante do qual o poder secu-
com base nos ensinamentos sociais e políticos do Novo Testa- lar está s1tjeito· s1 yeito nã p por causa do poder, mas porque, tal
mento em uma situação nova. As muitas possibilidades de in- como fo j dito por Bonifácio Y:III em sua Deliberatio. é sua m iS=
terpretação do Novo Testamento são bastante conhecidas: ão realizar as leis de Deus, para a libertação da alma humana.
"Deixe toda a sujeitar-se aos poderes supremos, pois não
der concorrente manteve-se oposto a essa
há poder el'ceto o de Deà s; e QS poderes que existem são orde-
pretensão de . maci Sempre se concebeu e se posn1!011 ~e a
nada pei: eus. Portanto que _ g_ue resiste ao poder contras
ocieda e e a urutan 3• Isso se a oia, tal como aprendemos da
i;ia..a._o e de us" (Romanos, 13.1-7). Mas essa afirmação
filosofia t ist so uma x aetern . E uma unidade da aplicação
pedindo obediência ao poder secular contradiz outras afirma-
da lei corresponde à próllfia unidade do direito (Bonifácio VIII).
ções, tais como "Qê a César o que é de César", ou aquela que
A superioridade factual do poder papal sobre o seêülã?4 tem como
demanda mais...o.bediênc1a a Deus o ue a César. Todas cons-
tituem a palavra de Deus, que admite interpretações variadas
de acordo com a situação política. Fritz Kern20 , em seu fino 'O KERN , Fritz. Humana Civilitas. Staat, Kirche und Kultur, eine Oanteunlersuchung,
p. 15.
21 KERN , F. Gottesgnadentum und Widerstandsrecht, p. 213; FI GG IS. Po/itica/
Thought, p. 17.
2 SCHM ITI, Carl. Politische Theo/ogie, p. 1O.
19 BAKER, E. Th e Political Th ought of Plato and Aristot/e, p. 366; igualmente
J GIERKE. Korporalionslehre, p. 9 e ss.; FIGGI S. Po/itica/ Thought, p. 57.
TROELTSCH. Sozia//ehren, p. 410 (Social Teaching, vai. 1, p. 369).
4 GIERKE. Korporalionslehre, p. 104, nº 4.
120 - Q I MP~RIO DO DIREITO F RANZ NEUMANN - 121

uma de suas consequências o fato de que foi primeiramente a ral de seu objetivo alterou a função desse direito natural, passan-
sociedade da Igreja que absorveu a sociedade secular25 • Já sob de uma função revolucionária para uma conservadora. Sua fun-
Gregório VII o sacerdocium e o imperium estavam intimamente agora se tornara conservadora, tendo de lidar com duas forças
ligados. O papa utilizava ambas as espadas. Sob Inocêncio III, postas: uma extraclerical e outra intraclerical, as quais não esta-
almente, a plenitudo potestatis transformou-se em soberania. A vnm interessadas primordialmente na liberdade dos indivíduos
pretensão à soberania é deduzida do postulado do Império do r nte ao Estado, bem como no postulado dos direitos democrá-
Direito divino, que é estabelecido,Peltrpr' ·o Deus. Para a Igreja, i s individuais dentro desse Estado, mas eram somente força-
o rei que governa injustamente lleixa de ser rei &x e rectum são., 11 incidentalmente a apoiar tais postulados.
indivisíveis 26 • Mas querp pode deci ir em cada caso se um_, Na medida em que a soberania do Estado, em oposição à da
governante deve erder seu oder? E uais consequências le ·s eja, não era simplesmente considerada como um datum da
ecorrem de uma tal e ·dade? A Igreja, transcen endo o direito r vidência divina do mundo (como em Dante), ela era justificada
não formalizado de resistência, organiza o direito de resistência e la redução da vontade do Estado às vontades individuais que a
provê punições, agindo severamente desde uma penalidade ompunham e cuja realização implicou um novo valor que viria a
voluntária até uma deposição declaratória. Essas punições clericais mper o sistema medieval de valores. Os teóricos presentes nessa
serão depois operadas na esfera secular2 ~. A influência do conflito goria pertenciam, quase sem exceção, à parte nominalista dos
em tomo do postulado de uma esfera de liberdade é dupla, já que olásticos, especialmente Guilherme de Ockham e Marsílio de
em toda fase (da disputa em torno da cerimônia de nomeação* até ' ua. O conflito dos nominalistas com a Igreja é acompanhado
Inocêncio III, e de Marsílio de Pádua até os Monarchomachs) o l início da libertação do direito natural secular frente ao direito
postulado de um direito natural que garanta a liberdade é acrescido ivino estabelecido, que, @ÓS ter mostrado sua flexibilidade
de instituições agressivas. urante muito tempo, chegou agora aos seus limites. Direito
Nesse senti ...na_ rimeira fa~ · siste na sua supre- al e direito ositivo ue coincidem na filosofia de Tomás de
macia e em se ostulado e uma e fera da liberda e--s.e.parad.a_d
oder secular, colocan o-se contra o sistema eu al estabelecido.
Nesse erío o a Igreja reconhece um direito extraordinariamen-
te rico de resistência, indo às vezes mais longe do que o anarquis-
mo e lutando especialmente na diseuta em torno da cerimônia d~
nomeayão28• Desse modo, o direito natural foi mantido pela Igre-
ja mesmo depois que esta alcançou seu objetivo. A obtenção inte-
a uma invenção consciente a criação de toda a sociedad.e
umana, ~i:ia da além djsso A na~dade da ordem hierárquiça
25 Idem , p. 105, nº 10; FI GGIS. Polilical Thought, p. 57. u n- pode mais ser justifiçada. '(_m caminho ara sua negação
26 CARLYLE, vai. 1, p. 22 e ss.; KERN . Cottesgnadentum, §XXlll, p. 396 e ss.
27 CARLYLE, va i. li, p. 203; M CILWAIN. Political Thought, p. 220.
beuo pela separação do direito político frente ao direito natur
A expressão investiture struggle se refere, nesse caso, à disputa em torno da
transferência de ca rgo na cerimônia de nomeação clerical, a qual opunha
radica lmente o Estado e a Igreja (N. do T.).
28 KERN. Cottesgnadentum . TROELTSCH. Soziallehren, p. 283 (Social Teaching, vol. I, p. 269).
122 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 123

3.3.3 A esfera de soberania do Estado contra a Igreja é baseada ao


esmo tempo na liberdade do povo no âmbito do Estado e no
Uma vez que não nos preocupamos com a história das ideias, reconhecimento dos direitos democráticos do povo. Uma inter-
vamos lidar agora exclusivamente co retação usual da teoria de Marsílio de Pádua nos mostra que
daqueles elementos do sistema de " om radicalismo democrático"31 ele opõe o universitas civium ao
i:.elevantes para a nossa investigação 30• pars principans. De acordo com uma tal interpretação, o soberano
Marsílio de Pádua os a p · eiramente uma certa distri- o povo enquanto legislador (e ele entende por "povo" todos os
buição de esferas entre a I eja e o Esta . Aqui o objeto da Igreja ºdadãos que puderem votar), sendo, portanto, inalienável o di-
é a moralidade da consciência, en uanto o do Estado é a morali - ito do povo à soberania. A substância do poder legislativo reside
~-_,,ª~ª""-º::.:.· Ele declara que a sociedade tem de ser unitária, mas a
empre junto ao povo ou aos seus representantes eleitos. A vonta-
Igreja é infQrporada nesta e deve ser a ela subordinada. Os postula- e do Estado é a vontade do povo. A legislação institui um mo-
dos de Gregóáo ou Inocêncio ili. ou de Bonifácio VIII são, po.r.- narca; ela o obriga; e o depõe se necessário.
t:anto, simplesmente a contrário E n~ medida em que Marsílio Se uma tal interpretação estivesse correta nós poderíamos con-
sustenta o exercício da vis coactiva pela Igreja, ele está totalm__ente iderar Marsílio de Pádua um moderno democrata radical. Qye este
de acordo com todos os nominalistas e c0m Dante. não seja o caso, já nos foi convincentemente mostrado por Charles
Mcllwain. É verdade que no sistema de Marsílio toda forma de
A esfera da soberania do Estado definida desse modo é en-
overno deve ser criada pelo legislador, e a melhor forma de governo
é a monarquia cons · b o Império do Direito material,
trabalhando para o omunida . Mas quem é o legislador?
A resposta é dada em Dict. I . Esse capítulo contém o reconheci-
mento do princípio ~ regra da maioria? Certamente não,
p~s se afuma o seguinte: "Eu chamo isso de valentiorem partem,
pensando no número e na uali ºdadãos'>32 • Uma valoração
dos cidadãos de acordo com suas · dade ~:m'fl'm:tiz-l19e.~m,

como em tantas o co siste em sua e o e


~ "p<>YQ'.' não é o povo moderno de cidadãos jurídica e politicamente
livrns;-é,-a ' · o ars valentior da Idade Média.
suficientemente. jnstitµcionalizado ao atribuir às cortes o poder Portanto, vo" ' um._conceito completamente antidemo:;-
~p e Dict. I.XVXVI). Nesse sentido, o direito c:citim.\ Ele se refere ~ totalidade de todos os grupos gue, segundo
de liberdade do Estado contra a Igreja é baseado parcialmente a cõneef'~ã&-m~dievaJ, têm o direito genuíno de representar o
em um direito de liberdade do sujeito frente ao Estado.

31 GIERKE. Korporationslehre, p. 46.


30 Cf. a edição de PREVITÉ-ORTON, C. P. Cambridge, 1928. 2 A tradução é de MCILWAIN, Political Thought, p. 303.
124 - Ü I MP~RI O DO DIREITO F RANZ NEUMANN - 125

povo. O caráter antidemocrático do sistema obviamente não ex- oncilium generale faciens et ecclesiam catholicam representans
clui sua dinâmica revolucionária. testatem a Christo immediate habet, cui quilibet cuiuscunque
Repetimos que no sistema de Marsílio todo comando do t tus vel dignitatis, etiamsi papalis existat, obedire tenetur in his
Estado é justificado num duplo sentido: geneticamente, pela sua quae pertinent ad findem"34 • A formulação mais completa pode
origem na vontade do povo; materialmente, por seus conteúdos - r encontrada sem dúvida no trabalho de Nicolas de Cusa, De
a partir do direito natural. ,oncordantia Catholica. Aqui o direito inalienável do homem
ristão à liberdade dentro do Estado é reconhecido como estando
3.3.4. ntra a pretensão papal de soberania: "Cum natura omnes sint
li eri, tum omnis principatus (... ) et a sola concordantia et
O segundo ataque contra o direito natural, cujo aspecto libe- nsensum subjecto" (II.13). Segue-se desse reconhecimento do
ral se transformou em conservador, e contra a Igreja, surgiu a partir direito natural que todas as constituições da sociedade humana
da Teoria Conciliar. O defeito da Teoria Conciliar influenciou de t m suas raízes no direito natural - "Omnes constitutio radiatur
dois modos o destino do Estado moderno e suas relações com o in jure naturale; et si ei contradicit, constitutio valida esse nequit"
direito material. O ataque dos teóricos do movimento Conciliar (Il.14) - e elas são vazias se contradizem esse direito natural. Da
eniu as ideias medievais do direito natural e a ideia da sobera- l licação dos princípios à sociedade clerical segue-se que a
os de Gerson e 1retensão papal à soberania não pode ser justificada "Papa non
t universalus Episcopus sed super alius primus et sacrorum
onciliorum non in Papa sed in consensu omnium vigorem
ndamus" (II. 13). Qye ele não entenda por "omnium" a
talidade das pessoas da Igreja, mas apenas a aristocracia clerical35 ,
!\' o tem importância decisiva para nós, pois discutimos apenas a
a imanente te re cionária áe seus ensinamentos. A
importância de icolas de Cu po e ser bastante superestimada.
duvidoso chamá-lo de último
•en.tallt!~UQ.~f!W:;::!,!;~~~~;.E;,~~~~~36

ompletamente ausente. Uma tal afirmação não seria possível para

O texto original encontra-se em Ibidem , p. 41 ; a tradução de Mcl lwa in, Politica/


um Thought, p. 34, é a segui nte: " Um conselho geral que constitu i e representa a
Igreja Católica retira sua autoridade imediatamente de Cristo, a quem qualquer
um que exista sobre qualquer status e dignidade, mesmo o papa, deve obedecer

33 FI GG IS. Political Thought, p. 4 1.


,. em relação àquelas coisas que envolvem a fé".
FI GGIS. Political Thought, p. 68.
16 Ibidem ; MCILWAIN. Political Thought, p. 394.
126 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO

Nicolas de Cusa; a sociedade feudal de seu tempo já havia se


desintegrado. Parece-nos muito mais correto dizer3 7 que em seu
sistema a justiça e a ordem política estão completamente separadas.
A ênfase recai na liberdade individual e nos direitos democráticos
no interior da Igreja e leva a uma aguda diferenciação, presente
em seu trabalho, entre o direito natural, que contém as regras de
ocorrências naturais e a moralidade, de um lado, e a ordem jurídica,
que contém os comandos normativos que emanam da vontade
dos homens, de outro lado. Assim ele está bem longe do sistema
tomista. De fato, ele pertence, juntamente com Marsílio de Pádua,
aos teóricos modernos do direito natural.
Capítulo 4

Soberania e Império
do Direito Material: Os
Monarchomachs e o Direito
N aturai Inglês

37 Tal como faz também BORKENAU, p. 43.


FRANZ N EUMANN - 129

.1. Os MoNARCHOMACHs

A concepção do Direito Divino dos Reis, naquele sentido


tribuído no século XVII) ou seja, no sentido da irresponsabili-
dade real, estava completamente ausente do direito alemão bem
· mo do direito medieval1• Bracton concebia o rei como sendo o
"vigário e ministro [de Deus] na Terra".

1 onarquia, o direito deveria ser soberan ". Esse direito, que


obrigava o monarca, está de acordo com a tradição do direito
nsuetudinário alemão e anglo-saxão 2 • Ele é conservador, ou seja,
le essencialmente protege os direitos existentes. Qyalquer
interferência do monarca nos direitos existentes é legítima somente
m o consensus fidelium3• Isso era geralmente reconhecido pelos
monarcas no momento da. coroação (tria praecepta) que continha
<'.
ama omissio genuína. A ce:n mônia de coroação germânica do século
XIII colocava a onarca: "O senhor está
pcepar: do para a str Rein que lhe foi conce ·
Deu , de acordo com ·u tiça de seus pais. ". Apenas depois de
monarca ter respondido afirmativamen e a esta questão, ao povo
pergi mtado se ele estava preparado para se submeter a sei 1 governo.
• ssa promissio, contudo, não é um contrato, ou seja, não é
onstitutivo, mas declarató1:io, porque ele somente declara o direito

ROBSON, Will ian A. Civi/i.zaüon and the Growth o( Law, p. 169.


KERN, F. Gottesgnadentum und Widerstandsrecht, I, p. 213 e 290.
KERN. Gottesgnadentum, A pêndice VIII, p. 317 e 325; Stu bbs, p. 158 e 141;
POLLOCK-M AITLAND, 1, tp. 41.
130 • Ü I MP~RIO DO DIREI TO FRANZ NEUMANN • 131

objetivo existente. A essa subordinação do monarca ao direito resentantes do povo. Eles agiam segundo a univesitas ipsa voce
corresponde não apenas o direito, mas também o dever de resistência a de or o soberano.
por parte do povo. A injustiça cometida por parte do soberano o pov não termina, contudo, com a
., jpode ser contrariada pela força (Sachsenspiege/); consequentemente questão dos meios de repressão contra a ação infratora, mas antes
tf o direito de matar o rei ' · te do direito germânico. <lesenvolve ainda meios preventivos contra a conussao de ação in-
O súdito não possui s mente obediência, mas e. A fé é uma relação fratora; isso aconteceu especialmente no período dos "estados", tala
reé proca. envolvendo direitos e e ' os 4• Se o rei viola ess~ ' · · · alemão. Ó exemplo mais
dever de...manter a fé, as pessoas se liberam automaticamente de seu contra Iohn Lackland em 1202. Uma
'-<i~r de manter a fé. Essa ideia é formulada por Manegold vo"n
Lautenbach: "ApJdlas um rei fiel tem súditos fiéis"5• Se se está pode ser encontrada na Carta Ma~. Não é decisivo nesse caso
convicto de que o monarca violou o direito, pode-se lutar pela que o próprio rei seja..pbrigado a preencher certas pretensões, e que
~mia:qilUL:l;.lmJtra
~~o~m~o~n~ar
~ca. A frequência com que ocorreram as direito de resistência seja reconhecido como um tipo de punição
o1 s medie ente no país clássico das revoltas,-ª otenci ara o rei; o traço característico não consiste tanto no fato
conduz ao radíêãlismo desse direito e que_os barões estejam aµtoriµ dos a usar a fo rça para fazer o rei
·stência. Como 1a..mostramos, em seu Direito Canônico, a cumprir as pretensões especificadas; consiste antes no fato de gue
IgreJa form alizou e Qtganizou o dir~ito não formalizado de s barões são constituídos como um órgão permanente gue tem d~
i:esi§.tência ao criar punicões adotadas mais tarde na esfera secular6. UP-ervisionar a erformance dos deveres do rei e, se necessário, re-
or á-los com o nao se trata ainda de um
4.1.2. conhecimento do direito d con dominiu dos estados. Essa nova

Mas quem está autorizado a exercer esse direito de resistên- con dominium1 assim como as funções de çoptmle foram trans&ri-
cia? Para responder essa questão é necessário voltarmos à tradição das para este mesmo con domin jum. Isso não poderia funcionar por-
do direito romano que deu origem à ideia da soberania popular e que, como aconrece em tQdo ~so de controle de um órgão do Estado
que era inimiga mortal do absolutismo monárquico 7• Manegold p eia de mJtto, sewpre s11a;ge a q11ç5tãg· q11em çoptrola os cail-
von Lautenbach em seu Liber ad Gebehardum (1083-5) já havia tt:olfü:l.ores"? Quis cus{odiet ifsos custodes11?
desenvolvido a teoria da soberania popular e postulou a /ex regia A esse proce e um desenvolvimento do postula-
como um contrato no qual o povo aparece como mestre e o rei º de um poder ru1ar responsáve ue assa à demanda or direi-
como servo 8 . Para Lupold von Bebenburg9 os eleitores eram os se o ostulado da realiza ão
pretensão de dominação dos estados é jus-
4 KERN . Cottesgnadentum, Apêndices XX e XX I.
tificada com a ajuda da categoria jná dica tém jça do contrato. O
5 POLLOCK-MAITLAND. Th e History of English Law before the Time of Edward ireito Natural, ou qualquer outro nome que se dê à teoria, exerce
/, 1, p. 524; KERN . Cottesgnadentum, p. 171; FIGGIS, J. N. Studies of Politica/
Th ought from Cerson to Crotius, p. 57.
penas funções secundárias. Isso pode ser mostrado tanto na histó-
6 CARLYLE, li, p. 203.
7 VON GIERKE, O tto. Johannes Althusius, p. 71-2 .
8 WO LZENDORFF, Kurt. Staatsrecht und Naturrecht. 1O KERN . Cottesgnadentum , p. 277; PLUCKN ETI, Th eodore F. T. A Concise
History of the Common Law, p. 23.
9 GIERKE. Althusius, p. 125 e 55.
11 MCKECHNI E. Magna Carta, p. 475.
132 - Q IMP~RIO DO ÜIREITO F RANZ NEUMANN - 133

de""l"es-istêRGÍa e postJJla a obediência ao Estado; ela também


trap.assa SUfãS próprias afirmacões (15591 Institutio religionis) ao
def@n~er: cpie se há no Estado órgãos do povo que limitam o pg:
dei: . ' · e t ' ãos - A apenas o direito! mas an~
dever de se gpgr a qµajguer excesso praticado pelo poder sob::'
r.a.nu. Em sua visão, tais órgãos são os estados; e ele declara: "Coii°io
ão possíveis hoje os três estados em cada reino quando estão em
assembleia" (Instituição Cristã, IV, Cap.XX, p. 31). Essa teoria de
alvin não contém nada de novo. Trata-se apenas da exposição
do direito constitucional positivo; mas exatamente por causa de
eu realismo jurídico, seus ensinamentos poderiam se tornar a
base da teoria dos monarchomachs.
Os panfletos dos
artolomeu são uma
diferenciado or u o
. ao anarquismo. Esta teoria constitucional é baseada princi-
palmente na stória jurídica frances . Nunca se disse que se estaria
pr.eparado para com ater o rei; sempre se afirmou que se poderia
lutar por ele com a finalidade de assegurá-lo frente a um mau
onselho e proteger o trono das pretensões do papa.
Contra essa teoria dos huguenotes, a frente católica postula-
va obediência absoluta mesmo por parte dos heréticos.
Uma mudança ocorreu após o Decreto de Lonjumeau, o
qual atingiu o orgulho católico (deposição do chanceler Michel
de l'Hôpital em 1568), radicalizando a frente católica. Essa mu-
4.1.3. dança exigiu o extermínio dos heréticos, enquanto a frente dos
huguenotes permaneceu estável até a Noite de São Bartolomeu
A teoria dos monarchomachs é baseada sem dúvida nos ensi- destruir sua crença no absolutismo, levando-a ao radicalismo mais
namentos de @;>o qual não fez nenhuma contribuição origi- aramente expresso por De Mornay: "O Estado foi abalado de-
ois dos acontecimentos de São Bartolomeu, a partir dos quais
12 Introdu ção a Harold J. Laski, Junius Brutus, A Defense of Liberty against , ude dizer que a (é do príncipe em relação ao súdito! e a do,
Tyrants , p. 6.
13 Sobre este problema, d. principalmente: LABITIE, Charles. De la dr:mocralie chez údito em relação aÕ príncipe gue unificam os estadoyoi dea:_
1

/es prédicateurs de /e Ugue; GOOCH, G. P.; LASKI, Harold J. Eng/1sh DemocratJc


~ntida de uma forma tão ultrajante".
ldeas in the 1l th Century, p. 9-23; LASKl.Junius Brutus; WOLZENDORFF. Staatsrecht.
134 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 135

Em Franco Gallica (1573) de Hotman, os conteúdos do di- e encontra obrigado pelo direito natural. Mas é conveniente
reito natural são escassos. Ele procura provar que historicamente mencionar que a justificação genética possui um caráter parcialmente
o poder do príncipe sempre foi limitado pelos estados, e assim o reacionário15 : "Embora a soberania do povo seja admitida - não se
faz com base nas investigações jurídicas comparativas. O resulta- insiste sobre isso -, a soberania da maioria é negada tacitamente,
do é Calvin - o direito positivo garante o direito de resistência aos uma vez que pode pôr em perigo os supostos interesses e liberdades
estados enquanto representantes do povo. De iure regni apud scolos de uma parte".
de Buchanan se utiliza ainda menos da via "juridicamente natu- Podemos resumir dizendo que os escritos dos monarchomachs
ral"14; o ponto decisivo em seu trabalho diz respeito ao fato de protestantes, que correspondem a suas origens calvinistas, fazem no-
que ele confere poder absoluto ao direito escocês. O mérito de tadamente pequenas alusões ao direito natural, com exceção de Du
seu trabalho consiste na introdução da concepção germânica de Plessis Mornay, que, contudo, viveu nas terras livres da Holanda. O
que a posse do trono constitui um contrato genuíno sem que seja centro de gravidade reside na consideração dos princípios do direito
necessário considerar se o monarca o conquistou por hereditarie- econhecem o direito de resistência dos estados.
dade ou por eleição.
finalmente, ocorreu a última mudança. Com a
A Noite de São Bartolomeu causou uma impressão consi- morte de jou, os hug:uenotes tor~ conservadores. O
deravelmente profunda no autor de Vindjcia contra Tyrannos. Aqui verdadeiro)õ'.cter foi transferido para Liga:
ue levou a cabo as
os fatos históricos indutivos se colocaram para além dos argumentos antigas teorias dos huguenotes.
ded~ · eito natural. A.exposição positivista da relação entre Boucher, com De iusta Henrici tertii abdicatione e Francorum
sú ·to e auto rida , com sua negação do direito de resistência regno, libir quatuor (1589), justificou pela via do direito natural o
· ento do · · ·strado e direito de deposição do tirano. Mas mesmo ele entendeu que o
~-ari.st_ contra-se historicamente esma cate o povo autorizado a depô-lo eram somente os estados; e ele se apro-
daquela de Hotffian. Como em Hotman, ele introduz investigações ximou novamente do constitucionalismo dos huguenotes em sua
jurídicas comparativas para mostrar que o direito de resistência dos tentativa de fundar sua teoria em investigações históricas, voltan-
estados é um princípio empírico e geral para todas as épocas. Mas d.Q._para, e mesmo (corretamente) indo além do djreito feuf!:âl.
pela primeira vez ele transcende Hotman e introduz postulados Rossaeus, com De iusta publica christianae in reges ímpios et
genuínos pertencentes ao direito na lo, quando todos haereticos auctoritatae (1590), adotou a via media ao generalizar
~ptimas, ou somente alguns deles, ercem a tir o direito de os princípios do direito constitucional positivo. No centro de suas
r omaticamente ao povo. O modo como vestigações le afirmo ever do monarca tado e
ele argumenta é interessante. É decisivo que e e ente o direito 0-GireitQ.. Da diferença entre Estado e seu , r ão supremo e a
d~ã-0 em d · m contrados na teoria de e dos fins do estado frente àqueles do monarca, ele
• ":::> ,d :Ceneticamente pelo fato de que o rei aparece ão
do ovo· materialmente e o ato e ue ele deS-Gidadãos para lhe rep isarem obediência.

14 Esse termo "j uridicamente natural" foi criado por M aitland em conexão com o
livro PoliUcal Theory of the Middle Ages de Gierke e de acordo com o termo
alemão Naturrecht/ich . 15 GOCH e LASKI. English Democratk ldeas, p. 14.
136 - Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 137

Mariana Uoannis Marianiae e Societate ] esu rege et Regis 4.2. DIREITO NATURAL INGLB17
institutionae), o famoso jesuíta espanhol, erigiu um genuíno
sistema de direito natural; mas sua construção do direito natural
apenas ocultou seu objetivo primordial, a saber, romper com o
poder dos monarcas heréticos. Ele também parte do direito
O direito natural exerce um papel ainda menor na Inglater-
constitucional positivo, atribuindo aos estados o direito de
r . A influência do direito romano e canônico na Inglaterra me-
deposição; mas, tal como nos trabalhos de Momay, ele transcende
dieval ainda é uma disputa em questão. Podemos assumir como
o direito positivo e concede o direito de revolução também no
rovável que sua influência foi mais forte do que geralmente se
caso em que uma publici conventus for impossível. Mas mesmo
spera. Investigações como aquelas de Charles Mcllwain e C. G.
neste caso, o indivíduo não tem o direito de se revoltar; ele cria
aines, em que podem ser encontrados traços do direito natural,
um substituto para a reunião dos estados - por exemplo, uma
nos parecem formulados de forma insuficiente; primeiramente
reunião emergencial dos "homens que ocupam uma posição
arque o sujeito do direito natural é muito amplo, e depois por-
públicH--e<i mos resumir dizendo que o direito de resistência
ue as relações do direito natural com os interesses sociais não são
dos monarchomac s é muito mais justificado pelo direito positivo
.\z.d_o_ ue pe õâíreito natural, sendo, po~anto, uma continuação
uficientemente levadas em consideração. Nós insistimos bastan-
e que estamos entendendo por direito natural um sistema de
cliLe: · ·urídicas alemãs corres ondentes.
normas que não é idêntico àquelas regras e normas criadas pelo
.têt:tttc>tH~II·vos da atividade estatal foram
stado, mas que deve corrigir, limitar e modificar esse direito
importantes para os onarchomac s. O postulado da liberdade positivo. Neste sentido, não podemos afirmar com Pollock e
democrática ~ente es o tanto aos protestantes como H 18
que a e certas cláusulas gerais - tais como
aos católicos. Charles Labitte pôde, por essa razão, dizer que "a " oáve ou " azoabilidade pão mais o que a existência d~
democracia calvinista e a democracia católica foram uma ficção"16 • E - envolvam n cessariamente o Im ério do Direito Natu-
esse fato importante do completo desinteresse no que diz respeito
aos problemas básicos da liberdade e da democracia contribuiu em qu "e
grande medida para o fortalecimento do absolutismo francês. Por questão i_a equidade não são utilizados para a correção e limi.-
conseguinte, o direito de resistência dos estados, considerado um ta_ção da vontade do Estado, guando essa vontade é expressa
elemento drufueito coastitucional positivo, desapareceu; desapareceu
logru;iue a Constituição admitiu os estados como con dominium. Com
a ascensão da monarquia absolutista nos séculos XVII e XVIII o 17 Cf. M CILWAIN, C. H . Th e Hight Court of Parliament and its Supremacy;
GO O CH e LA5KI, English Democratic ldeas; HAINE5, C. G. Th e Reviva / os
direito de resistência emg gi_y novamente nas teorias de Althusius, Natural Law Concep ts; MALDEN, H. E. Magna Carta Commemoration Essays;
Gro · 11S e ! .o~. Nesse momento, contudo, a importância da Sir POLLOCK, Frederick. Essays in the Law; idem , The Expansion of Common
Law; idem, "A Plea for an H istorical lnterpretation'', Law Review, XXX IX, p. 165;
· deologia do direito natural tornou-se visível, tendo o mesmo MCKECHNIE, Willi an 5. Magna Carta; PLU CKNETI, Theodore F. " Bonham's
Case and Judicial Review ", Har va rd Law Review, XL, p. 30; MAITLAND, F. W.
significado nos trabalhos de Mornay e M arian_t The Constitutional History of England; HOLD5WORTH , Willian 5. A History of
English Law; idem, "Sir Edward Coke", The Cambridge Law /ourna/, 5, p. 332 e
ss.; LÉVY-ULLMANN, Henri. Th e English Legal Tradition, p. 222 .
1B POLLOCK. Expansion, p. 108; idem, Essays, p. 63, 68 e 69; HAINES. Natural
16 LABITIE. De la democratie, p. 366. Law Concep ts, p. 39 e ss.
138 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 139

claramente e sem ambiguidades. Mais tarde abordaremos exausti- questão decisiva consiste em saber: quem deve decidir se este direito
vamente o significado positivo das cláusulas gerais e de equidade. onsuetudinário foi violado pelo rei? E a importância da Carta
Não pode haver dúvidas de que a terminologia das cláusulas gerais, Magna nessa época não residia no reco-nhecimento do direito
tais como as do principio de equidade, tem sido influenciada pelo natural, mas, como já mostramos, consistia na criação de uma
direito natural19 • Essas próprias cláusulas, contudo, pertencem ex- organização permanente com a função de decidir se o monarca
clusivamente à esfera do direito positivo. Somente no caso de uma cumpriu suas obrigações. Mas nesse momento a luta política na
corte que expressou sua posição dizendo que um decreto do parla- Inglaterra havia se concentrado na questão do con dominium
m to aderia ser declarado nulo, porque está em contradição co~ político dos estados, e logo que esse con dominium foi realizado, o
os-p.rilli:ípios razoabilidade", ou da po 'tica pú ca, ou egui-
\lade, podemos falar então do império do Direito Natural. Mas tais
circunstâncias não existiam desde o caso Banham.
!
direito natural desapareceu na Inglaterra. O direito positivo
concedeu direitos suficientes aos estados contra o monarca, fazendo
com que não mai~ . · risse a necessidade do direito natural.
Em segundo 1 omente no sécul~ quando a burguesia em ascensão ainda
temos de levantar a e · te questa : ps grupos políticos usaram nã<:> · · c sso em con ttlstar esses díie1tos oliticõs
argumentos derivados do diie1to natural nos seus ataques às µosi- a ró ri e o direito n
~ões. oder existentes? E como se co~portaram em relação ao n vo a e~Nas guerras revolucionárias ele foi usado por diferentes
àilei.to natural depois gue seus o 1et1.vos foram cançados? grupos, cada vez em l}Qme de seus próprios interesses conflitantes.
Ele foi usado e abandonado de acordo com ..necessidades do
4.2.2. omento; tal como nos conflitos dos monarchomachs s teorias
eram trocadas como se trocam camisas. O direito na al não tinha
um significado independente daquelas lutas e, eventualmente,
desapareciam da cena inglesa. A soberania do parlamento foi
estabelecida nas guerras revolucionárias e o direito natural parec;eu
não ser mais necessário. É importante notar.,..c.ontudo ue esse
desapare . · nto não im licou ue a c nc cão do direito natural
nunc.;a..mais fosse reyitalizada no futuro de um modo bem útil.

4.2.3.

O caso mais conhecido é o de Bonham21 • Contudo, o pro-


fessor Plucknett mostrou claramente que se tr de um caso
isolado, e que os casos precedentes utilizados p Co . eram bas-
tante incorretos. Por essa razão, eu também acre ·to que não se
ual não poderia ousar violá-lo. Contudo, a
pode deduzir muita coisa desse caso no que diz respeito à exis-

19 ROBSON, Wi llian A. Civilization, 1935, p. 231.


20 MCILWAIN. High Court, p. 42 e ss. 21 8 Co. 114 a (C. P. 1610) e 2 Brown 1. 255 (C. P. 1610).
140 - o I MP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 141

tência do império do direito natural. O caráter político do confli- natural e a soberania popular. Em sua teoria do direito natural,
to entre Coke e James 1 parece tão claro que mais discussões sobre que aparece aos seus oponentes como sendo uma ah-rogação total
esse ponto seriam supérfluas. Parece inadmissível sustentar com do direito, ele exige o livre comércio e a abolição dos monopólios
, J base no testemunho de Coke que o direito natural exerce qual- privilégios. Ele se colocou em oposição a Cromwell, e viu num
~l quer papel decisivo na prática~ · Coke comportava-se istema do direito natural não apenas uma limitação do poder da
de forma similar a Cícero, um puro advoga ' : "Ele aproximou monarquia, mas também uma infração da autoridade do parla-
história e direito com es_~~ de um.tenaz_a o ado. Duran- mento. Em A liberdade jurídica fundamental do pO'lJo da Inglaterra
te toda sua vida ele nunca deixou de ser um advo do das doutri- le afirma a nulidade dos atos que contassem um prolongamento
nil-5-juúdi _a usa ~olíticas" 22 • Nossa teoria se torna o parlamento; ele baseia sua prova no caso de Bonham. lreton,
extremamente clara se considerarmos Q _g.so da luta dos partid..ru or outro lado (Líderes dos projetos), negou a teoria do direito na-
nwolucionário · tão clara ue o ró rio Mcllwain tem de tural porque ele não poderia vislumbrar uma maneira de cons-
o -atFát~h- relativ.o do neste eríodo. Ele mesmo truir um Estado com base em uma tal teoria anárquica. Mas no
o direito natural foi uma faca de dois mes23. eu empreendimento abrangente, O único fundamento dos direitos
No f,!anfleto de Prynne, o poder soberano do Parlamento24, no direito da terra, o direito natural reaparece exatamente do mes-
oLsujeito-do-difeire-aaftlflll e a teoàa da soberania popular encon- mo modo como em Selden.
tram-se combinados Selden, por outro lado (Ditos de mesa, "Lei Nos trabalhos dos comunalistas (John Hare, Hartleb,
da i" , rejeita qualquer teoria do direito natural hamberlen e Winstanley), uma ideologia radical dos direitos
ass.egw:ru da liberda , ou seja, qualquer teoria dos direitos do naturais é ill..troduzida e conduzida até a sua conclusão lógica que
homem. Mas na sua prática política, como por exemplo no caso 1 va ao comunalismo, especialmente quando, após a abolição da
anteriormente mencionado dos cinco cavaleiros, ou no caso de mo..Q_arquia, péssimas colheitas, preços altos e salários instáveis
Hary-pdefl le foi comp..elido a recorrer ao direito natural. Pois o ioraram consideravelmente a posição do povo. O princípio da
" · eito d ' cuja supremacia ele afirma, é um direito distin- aldade natur~ loca no centro de sua ropa anda.
to do um direito historicamente inutilizado e O próprio Cromwe em sua conhecida proposta, adotou a
s~-GmQU . E.m consequência à sua opo_g,i- ióia media Teoricamen riu ao direito natural, tal como
ção;-de-aplioott-êat~Q..a ideologia do direito natural no lugar dE foi emonstrado em s discurs , frequentemente citado, de 9 de
sua re01sa teó&ica dos direitos do homem. novembro de 1564, quan o se declara em favor de "um direito
Semelhante anta~ ·~ teórico existente entre Prynne e fundamental, algo como uma Carta Magna". Contudo, ele não
Sé en enc ntF - e no evellerÍi. Lilburne é ao mesmo tempo um realiza na prática essa ideia do direito naturâl; para ele, a criação
"beral e um democrata E e postula simultaneamente o direito er soberano eficie
Também se sabe que o · eito natur
arma nas mãos dos monarguistas, que consideravam gue tal di-
22 HOLDSWORTH. English Law, V, p. 475. reito..s.eria uma segurança para o rei.
23 MCILWAIN. High Court, p. 91.
24 GOOCH e LASKI. English Democratic /deas, p. 99; MCILWAIN. High Court,
p. 154.
142 - Ü I M P~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 143

4.2.4. o natural. Enquanto na Alemanha a burguesia deixou a garantia


de suas liberdades nas mãos de uma pseudodominação do direito
Com a estabilidade da supremacia do Parlamento, o direito das cortes (Rechtsstaatsidee), na Inglaterra a luta política no Par-
natural definitivamente deixa de exercer algum papel na Inglaterra. lamento e em tomo dele poderia resguardar aquelas liberdades
Mesmo no tempo de Henrique VIII, o caráter legislativo dos
J
muito melhor do que poderiam as cortes e a burocracia26 •
decretos do parlamento não poderia ser negado: o dever dos juízes
em obedecer a esses decretos era incontestável25 • Mesmo no século
XVI, portanto, a fórmula corrente da supremacia do direito de
modo algum significa a supremacia do direito natural (de um direito
material), mas exclusivamente a ~upremacia de um direito criado
12elo arlamento, u · ·to olítico. E a morte prematura do-
direito natural na glaterra, após uma vida aflitiva, se deve
exatamtmte-a..es~envo vimento precoce do parlãffientarismo.
G-clireite-natnr-al ing_~s.QQ.ij;!OU uma posição meramente secundária."
\ ).gmo_foLJ:laramente demonstrado pela, história constitucional e;.
, · in lesa.
É óbvio, contudo, que a identificação da supremacia do di-
reito com a supremacia do parlamento não exclui o fato de que
na Inglaterra certos postulados foram mantidos no que toca à
estrutura formal e aos conteúdos do direito. Havia uma concep-
ção muito clara do conteúdo e da estrutura do direito, mesmo
que ela por muitas vezes permanecesse implícita. Mencionamos
esse ponto ago a com a finalidade de retomá-lo com mais detalhe
adiante. Tanto no continente como na Inglaterra, es e o estabe-
l~Gimen.to da soberania do direito no século XVII, o 4direito" sem-
p.r i entendido como sendo uma norma geral emitida elo
-a:r-lam.eato. O direito natural consiste na autori a e estabeleci-
da por uma norma ge(!:" ·tiva. A morte prematura do direito .u. Um outro exemplo fo i oferecido pela teoria fra ncesa da "soberania da razão",
natural, garantindo as "herdade com base na ideia fundamental como em Quesnay, Ou Po nt de Nemours e outros. Esta teoria j ust ificou a
monarqui a. Karl Marx (Die Heilige Familie, cap. VI, 1) deu atenção direta ao fato
da..sohera.D.Úl. o de fato contribuiu, aradoxalmente, ara o de que "os doutrinadores que procla mam a soberania da razão em oposição à
cumpriment€>..d~q11cla_s lib,Wade_s co tidas na ideolo · do direi- soberania do povo [assim o fez) para excl uir as massas e dominar sozinhos" .
Hoje [1936] especia lmente o retorno da soberania da razão contra a soberania
do povo, que se tornou perigosa para a propriedade pri vada, é cla ramente
apresentada em Barth élémy-Diaz, Traité de droil constitutionnel, p. 78. Cf.
ta mbém a discussão escla recedora em Ki rchheimer, " Remarques sur la théorie
de la souverain eté nation ale em A ll emag ne et em Fra nce", Archives de
25 Cf. HOLDSWORTH . English Law, IV, p. 187. Philosophie du Droit, IV, nº 3, 4, p. 239 e 55.
Capítulo 5

Bodin e Althusius
F RANZ NEUMANN - 147

O antagonismo entre soberania absoluta e o Império do Di-


r ito material é claramente apresentado nos trabalhos de Bodin 1• A
onstituição de ambas as esferas - da soberania e da liberdade ga-
rantida pelo direito material - encontra-se lado a lado em seu tra-
alho porque ele não demarca os limites de urna frente à outra.

A soberania é o poder absoluto e perpétuo do bem-comum


1ue os romanos chamaram de maiestas2.
A soberania é a soberania do príncipe. O Estado ainda não
distingue de seu órgão supremo, e assim a questão do poder
upremo do Estado ainda não foi separada da questão do poder
upremo dentro do Estado, com pouquíssimas exceções.
O caráter absoluto da soberania implica primeiramente a
inexistência de um direito de resistência; enquanto na teoria dos
monarchomachs permitia-se aos magistrados solicitar as tropas para
lutar contra o exercício ilegítimo do poder estatal, Bodin nega esse
1lireito aos oficiais (III.IV), e eles nunca devem esquecer que seu poder
1 riva apenas do príncipe. O caráter absoluto da soberania implica,
m segundo lugai; a concepção do direito político. O direito é somente
f.XJ t nas ão necessariamente ratio. Todo comando do soberano
oluto é lei O se~ pgde emitir normas gecais hem como
andos individuais. 9 príncipe pode libertar-se mediante o direito
l~ões gue e e mesmo havia assumido anteriormente em sua
nção; Pois o príncipe é o criador e não o sujeito do direito positivg3.

CHAUVIRÉ, Roger. Jean Bodin, Auteur de la Republique; ALLEN, J. W. A


History of Political Thought in the 16th Century, p. 394; MEINECKE, Friedrich.
Die ldee der Staatsraison, p. 70 e ss.; SCHMIIT, Carl. Die Diktatur, p. 25 e ss.;
FIGGIS, J. N . Studies of Political Thought from Gerson to GroUus, p. 123 e ss.;
BODIN, Jean. Les six livres de la République.
Cf. BODIN. Les six livres, 1.Vlll.
"A lei não é senão o comando do soberano usando seu poder" e "A lei (...) retira
sua força daquele que tem poder de coma ndar a todos", Ibidem, 1.X; "Se o
148 - Ü IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ NEUMAN N - 149

O direito consuetudinário também deriva sua validade do comando


do príncipe, permanecendo abaixo dele - sua validade como
exercício permanente é negada tal como nas teorias de Hobbes, Por outro lado, a soberania não deve ser um poder absoluto
Filmer e, depois, Kelsen (IX). m todos as partes relevantes de seu trabalho. Ela é limitada, ao
Da soberania do príncipe se segue que todo poder feudal é enos parcialmente, pelo postulado do Império do Direito ma-
derivado necessariamente de sua plena soberania. Trata-se, portan- t rial, e às vezes é mesmo consideravelmente limitada. O Estado
to, de um p~al. Em p · , · · dição feudal é o t m de ser um "governo justo"6 • Isso, contudo, é o Império do
resultado da ~e não da dominação feud (V.II; III.V.). 1 ireito material. Nesse contexto, o direito não é apenas vo/untas,
Consequentemente, os estad nncr as também ratio.
sbbeI-aR(,}.-Eles podem protestar. mas não podem se opor ao sobera- Ele postula inicialmente o princípio e então procede con-
o-:-AQ... invés ..de um radicalismo jurídico, Bodin não perturba a ·r tizan -o.
disti:ibuição factual do poder entre príncipe e or~ção feudal. O objetivo do · eito é a justi . O direito é a criação do
Essa teoria da soberania é ca-rm:en ríncipe. O príncipe é a jma,gem e Deus. então o direito bnma.ll()
tos: falta-lhe, em primeiro lugar, r-iadQf>or ele deve ser necessariamente a imagem do direito divin_u7 •
mostraremos, qutt direito natural divino e secular se colocam aci- e acordo com sua segunda teoria, e em contradição com a primeira
ma da soberania, mas eles não a justificam; eles meramente a res- t oria, direito-.!latural divino e humano encontram-se acima do

omo será mos .a o em 5.1.3. Mesmo depois de J rfutjpe, o qual deve ser obrigado pelo direito e não deve agir e~
s refer-ê cias a eus ao príncipe orno o "represen- ntradição com este; seu poder não se estende, portanto, para além
tante deJ)eus na Terr / separando-as de to a sua teoria da sobe- d direito divino ou natural8 • Essa ~n - da ideia do direito
rania, o conteúdo principaLde..aelLSistema permanece inalterado 4 • i plica uma atitude polêmica a Maquiave; pois a França,
gundo os contemporâneos e Bodin f01 governada "à /'ita/ienne
E e preten.de, ante_s~.,erar uma analogia entre a ordem da na-
u à la F/orentine"9. É questionáve se Catarina de e ci re ente
tureza._e a..orderrw::la..so.ciedade como a base para a justificação de
1 u Maquiavel antes da Noite de São Bartolomeu em 1572. Contra
sua teoria da soberania. P ra-el natureza aparece como sendo o
; influência perversa de Macp1iavel, Bodin pcetende constmjr q
conjunto das relações de su erordenação subordinação. Em suma,
• tado__com base na ideia do direito e limitá-lo por meio dessa
a natur ent a hierar uia. A sociedade e@-
:oncep~ão. No prefácio de seu livro Bodin ataca voluntariamente:
ti~~êF-€GmpGSt Q..mesmo modo. Mas uma analogia
"Maquiavel jamais aproveitou o ensejo da ciência política que não
nunca é uma pmva,...mantendD.;Se bem longe da 9uestão de saber
se essa condição pode ser corretamente mantida5•
h "A República é um governo justo formado de muitas casas e daquilo que lhes
é comum, com o poder soberano", Bodin, Les six livres, 1.1.
"Pois se a justiça é o fim da lei, e a lei é obra do príncipe, o qual é imagem de
Deus, segue-se da razão que a lei do príncipe seja modelada pela lei de Deus",
príncipe soberano está livre das leis de seus predecessores, ele está muito
Ibidem, l.Vlll.
menos sujeito às suas próprias leis e ordens; pois pode-se muito bem receber
ordens de outro, mas é impossível por natureza dar ordens a si mesmo (. .. )", "Mas quanto às leis divinas e naturais, todos os príncipes da Terra devem a elas
Ibidem, l.Vlll. se sujeitar, e não está em seu poder contradizê-las. E, por isso, o poder
abso luto dos príncipes e o dos senhores soberanos não podem jamais se
4 ALLEN. Política/ Thought, p. 415-16. desligar das leis de Deus e da natureza", Ibidem, l.Vlll.
5 BORKENAU. Vom feudalen zum bürgelichen Weltbild, p. 119. 1) MEINECKE. Staatsraison, p. 64.
150 - Ü I MP~RI O DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 151

resultasse numa tirania astuciosa". Certamente é óbvio que a nsentimento do povo · , , dos estadas gera,is! 4• Embora, por
influência externa do utilitarismo maquiavélico é aparente em quase um lado, como já mencionamos, ele negue que os estados gerais
todas as páginas do trabalho de Bodin. Esse princípio do Império participem da soberania, e não os subor rne 1un camente ao
do Direito material é concretizado de três modos. ' i12e ele lhes concede, par outro lado, o direito de consent:ii
1

A base e a essência do Estado é a família • A família é "a 10 m o imposto. Allen, contudo 15 , nega corretamente que do
verdadeira fonte e origem de toda República e membro prin- conhecimento des · eito deve-se necessariamente derivar a
o~" (1.III). Nenhum Estado pode ser considerado be""ro. eita'ião da teoáa da soberania popnlat. Os dois não têm nada
administrado se não foi construído com base na faro ília 11 . Na m comu ~ A proibição da coleta de impostos sem o
constituição da família ele uzidos dois elementos nsentimento dos estados erais é exclusivamente um elemento
característicos do Estado: ;us oibindo a subjuga- da o da ro riedade
ção da mulher e dos filhos, e o p ta potestas que é considera-
do um tipo de.-soberania natural. s a o é composto de
"famílias" individuais. Enquanto ele, por um lado (e como já mencionamos), adota
O reconhecimento desse papel da família implica para Bodin \ posição segundo a qual o soberano não é obrigado pelo direito
o reconhecimento da propriedade, pois í1 família está baseada na positivo mesmo no caso em que o direito positivo é bom e razoá-
propriedade. Toda a forma de comunismo igualitário lhe é vel16, por outr o sustenta que o príncipe é obrigado por
completamente estranha. So ente a desi e do hom e uas próprias messas fren a uutros príncipes e também fren-
prresponder à natureza humana. A abolição do "meu e do te " a ~róprios sú tos 17 •• Essa obrigação em observar os con-
arruinaria a base fimdamental do Estado!2 • Portanto, o so erano tratos se segue da igualdade natural e da "fidelidade do príncipe"18•
não pode roubar, pois não pode transgredir os limites que são
impostos sobre ele pelo direito natural. Apenas "com justa causa"
o soberano pode destituir uma pessoa de sua propriedade - ou
seja, por liquidação ou troca, ou por imposto legal, ou como
reparação contra os inimigos, etc. 13 • A proteção da propriedade
implica a inadmissibilidade da coleta de impostos sem o

14 Não está sob o poder do príncipe do mundo aumentar o imposto como lhe
10 Cf. CHAUVIRt. Bod in, p. 304 e ss. convém, nem tomar os bens de um outro", Ibidem , l.IV; VI.li.
11 "É impossível que a República tenha algum va lor sem as famíli as, que são os 15 ALLEN. Political Thought, p. 421 .
pi lares daquela e sem as quais não se sustentaria" . BODIN. Les six livres, l.IV.
16 "Embora a lei civil seja boa, j usta e razoável, ainda assim o príncipe não deve
12 Ibidem , VI.IV. de modo algum se sujeitar a ela" . BO DIN. Les six livres, l.Vlll.
13 "Compreende-se erroneamente quando se diz que o príncipe soberano tem o 17 "O prínci pe soberano deve cumprir os contratos segundo as leis existentes,
poder de roubar o bem de um outro e de lhe fazer mal; vê-se que se trata antes sej a com seus próprios súditos, seja com estrangeiros", Ibidem, !.VIII.
da incapaci dade e da frouxidão do coração. Se, portanto, o príncipe soberano
não tem o poder de rom per os limites das leis da natureza, que fora m 16 "A obri gação é dupla: um a devi do à equ idade natural que deseja que as
estabelecidas por Deus, do qual aquele é imagem, ele também não poderá convenções e promessas seja m mantidas; a outra por ca usa da fidelidade do
tomar os bens do outro sem que para isso tenha uma causa j usta e razoável, príncipe", Ibidem , 1.Vlll.
seja pela compra ou troca, ou pela confisco legítimo, ou em acordo de paz " O ra, a diferença mais nobre entre o rei e o tirano consiste em que o rei se
com o inim igo", Ibidem, !.VIII. conforma às leis da natureza, e o ti rano as esmaga sob os pés", Ibidem , li.IV.
152 - Ü IMPÉRIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 153

"bem reconhece, somando-se a isso, o tirano absque titu/02°. A famí- nvolvendo a infração ao direito natural divino. Mas mesmo nes-
lia, a propriedade e a obrigação de cumprir os contratos dizem te caso, o magistrado mente recusar obedecer e não, tal
r~speito à esfera ue ertence ao direito rivado e que tem como orno na teoria dos onarchomac , o direito de chamar as tropas
f m a constituição de uma esfera de libel:..dade frente ao poder ~­ e organizar U@ª resistenci finalidade de depor o príncipe.
l'mo. Bo~ 'm pensa ser possível limitar soberania com os mesmo se aplica aos súdifosênt SttftS " las-9ea-eoííi õs"magistra-
direito constitucionaist por exemplo, pela /e~., relaciona- os (III.IV; III.V). Bodin, contudo, não é lógico no desenvolvi-
das ao Esta Q e rmp cadas na soberania21 • No caso da França, ele mento do problema, poi.s_ohriamente surge a seguinte questão: o
r~conhec~s limitações como a /ex salica e a proibição da venda do que deve seú.eitQ-(;em-a'il:l~mWGs-e cidadãos ciue a.pe-
t~-tQi;io._estatal; a terra pertence ao Estado, à república (VI.Il) 22 • lam_ao direito natin:al divino pwGW:aaGG jm tifiq r sua resistência
pas.s.iva se o príncipe ordena sua ~o?
5.1.3. Bodin não tem uma resposta para essa pergunta; ele nem
mesmo notou o a23 . Por essa razão, Bodin não deu espaço
Segundo nossa definição, podemos dizer somente que na ara uma i titucionaliza a.ds:q.uada do direito natural. Pelo
t'!oria de Bodin o lm_,,Pit:~·do Direito material é instituído por- at0-de..lte.c..JwlSiQQ:QíüDciw~lal-'~esis.W:iJ~.p.w~:J;Q.Jo.wl.i
que ele concede ao ffireito na a exp~ctativa de que será leva- do um direiw-pa~ia.para casos extremas, ele..se.pa
do a cabo mesmo s~e· positivo se coloca antagonic~ r u-se dos monarchomachs.
à s\:la-rnalização. Uma tal expectativa, como mostramos, pode ser
- Per...outro lado, contudo, temos de admitir que as normas do
criada pela positivação ou institucionalização das normas do di-
direito na são.foncretizadas em seu trabalho. A família, a pro-
reito natural; isso pode ser alcançado pelo reconhecimento do
priedade, a proibição do aumento de impostos sem o consentimento
direito de resistência, por exemplo, ou, quando um tal grau de
os estados gerais, o reconbecimr:oto do princípio segundo o qual os
llistitucionalização é inalcançável, pela concretização suficiente
ontratos têm de ser curo · , o reçcmbeciwento dos direitos cons-
das norm~trdirei~al. Se isso não ocorrer, a declaração do titucio_rntis..que-obrigam~eberm , too~tes...ção sem..i:liJMidas coa
Unpério ~se_!oma mera retórica na tentativa d~ cretizações ade das de seu ·
oçultar a verdadeira soberania absoluta do w.ín~
e
Bodin recusa fundamentalmente o ~a; mas 5.1.4.
apenas o direito ativo. Ele admite em certas circunstâncias a exis-
tência de 'l!lm-direiw-passillD de resistência. O oficial tem que Qyais funções sociais se referem a esse sistema do direito
l<>:var a cabo tais comandos do soberano mesmo quando viola as _ natural em sua relação com a noção de soberano? A resposta a
IlGr..mas do di r.eito nam ra l. exceto no caso daqueles comandos essa questão só pode s da considerando-se o sistema
com base em uma ciologia do conheciment
2O "Aquele que se faz príncipe a partir de sua própria autoridade, sem eleição, Politicamente, Bodin..p_ertence ao grupo médio dos "políticos".
nem por direito de sucessão, nem devido ao destino, nem por um a guerra
justa, nem vocação especial de Deus", Ibidem, li.V; Chauviré, Bodin, p. 322.
ocialmente, portanto. ele é parte da burguesia. A dupla face da
21 "As leis que co ncernem ao Estado do Reino e ao estabeleci mento deste (...) teoria corresponde ao duplo interesse do estrato ao qual pertence:
anexados e unidos à coroa", Bodin, Les six livres, l.Vlll.
2'.;2 Este é um dos casos já mencionados, em que já faz a distinção entre soberania
e o portador da soberania. 2J ALLEN . Política/ Thought, p. 417.
154 - Ü I MP~RI O DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 155

de um lado, ele estava interessado no estabelecimento do poder tal, mas também ao interesse do grupo social ao qual ele pertencia,
estatal coercitivo o mais forte possível, e de outro lado, estava u seja, à burguesia, que precisava limitar o poder do Estado. Bodin
interessado em canalizar o exercício desse poder coercitivo na expôs suas convicções econômicas em um panfleto publicado em
direção de seus próprios interesses. A ênfase na teoria de Bodin 1568, Respostas aos paradoxos de M Malecstroixt26. Nesse panfleto
recai no soberano; isso corresponde ao desejo de estabelecer um ele faz objeções à desvalorização d eir e enfatiza a ne
poder estatal coercitivo muito forte; e a interpretação comumente de.livre comércio; comprmra a detemunacão econômica das relações
incompleta da teoria do Estado desenvolvida por ele ultrapassa a oliticas extemas27• Sua luta contra a igualdade e o coletivismo Já foi
importância dessa tarefa. Essa posição era essencial se se quisesse mencionada, assim como seu..p.ostidado de aue a soberania funda
terminar a guerra civil suicida: "Para os políticos, o direito divino eus limites na família e na propriedade, e que o soberano se colocou
dos reis era antes o direito natural do Estado, e isso expressava a spb a obrigação de manter sua promessa.
recusa de arruinar o Estado em nome de questões religiosas" 24• A
s · a ão de questões seculares às religiosas foi atacada or
el , assim €ome po o 1t - que, aliás, de uma
man~ira..ainda..mais..exasperada do que Bodin, rejeitou todos º!
ti os de do as se' am calvinistas, reformistas, mohamedianos
Ele conde o ateísmo, é ver ade, mas che
do "contrato" de troca da socjedade burguesa moderna· trata-se
· A demanda por um poder coercitivo forte do Estado não do..conttato ds; stqtus da saciedade feudaj. - o elemento da socie-.-..
poderia mais ser justificada divinamente, mas apenas imanente- dade a part,jr do qual aqyela sociedade foi constituída, e pelo qu_3!
mente. Havia duas razões para isso: a ideia do direito divino dos toda..parte çontratante tem seu lusar algsado na h jerarqu ja dos
reis foi derrubada pelo violento ataque dos monarchomachs e já se estados ~ A manutenção desses contratos, portanto, implica a ma-
tomou anacrA · ntido, Bodin substituiu a justificação nutenção da ordem feudal. O reconhecimento dos estados gerais
divina pela ia ·urídica de soberani . Ainda mais, o Estado não como órgãos de arrecada - impostos e como um meio de
poderia mais ser justifica o a equadamente com base em sua mera queixa pública também rve ao du in'.!:t~
er~e~ss~e~d~
a ~ü-é-~
existência - como n t · do direito divino dos reis - mas a e- ssegura prQteçãQ a cada um jndiridualmente e, ag mesmo tem-
nas..segundo suas ªções. Vimos que essa justificação imanente to- po., proteção à ordem fen da!.
mou.-somcmt um-aspeutE>-RegatiJUJ .ca t<:,QÓi de Bocfui. pois ele.. Sua teoria, port sui três aspectos: institui um Estado
~ admitir qualquer comportamento do Estado que fosse _ forte que garanta a em e a seguran atividade ue sem re
çontrári o ao direito nan1ral. estiver em harmonia com os interesses dos estados, e em particular
Essa última limitação da atividade do Estado não somente cor- com o_s_int0resses da Ter~eiw Estado, a hurg11esia, que ainda ep-
respondeu à necessidade de uma justificação adequada do poder es- contra.seu..lugar e sna snhsistêpcja ng jgterior da ordem feu<h!.

24 FIGGIS. Po/itica/ Thought, p. 126. 26 Até o momento esse panfleto foi pu blicado com diferentes títul os.
25 CHAUVIRÉ. Bodin , p. 148 e ss., e 161 e ss. 27 CHAUVIRÉ. Bodin , p. 482-3.
156 - Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 157

A soberania e o direito material, desse modo, encontram-se s indivíduos não podem escolher livremente se desejam ou não
lado a lado, e são, por isso, opostos. As esferas são igualmente divi- ~ o comando de um Estado. Nisto reside a diferença com
didas entre os dois elementos constitutivos do Estado moderno. ..__....... com todos os outros teóricos do contrato liberais para
rotiusJe
Contudo, a posição hlstórica precisa dar ênfase à soberania. Esse <1uem uma livre escolha é passfa!;el.
sistema de equihbrio poderia funcionar na realidade social apenas
Althusius, em contraste com os monarchomachs, se opõe à
enquanto os interesses da coroa e dos estados fossem idênticos28, e
necessidade de um ~lo governo do príncipe e dos estados, e
enquanto a própria ordem feudal não fosse desintegrada.
.tu.la com Bodin a existência de um único portador da soberã-
@;..~.p_Q~:.,_s;:m,.~~~iWJ~~- Isso implica a fundação do
5.2. ALTHUSIUS
btado segundo um ntrato soci or meio do ual o soberano
Contrariamente à teoria da soberania desenvolvida por Bodin, determinado primariamen e, seguido de um outro contrato de
aquela de Althusius significa um avanço importante numa direção ltjcição. no qual o povo delega seu poder soberano aos vários
que tentaremos descrever abaixo29• O fato de que seu trabalho consistiu 1 rgãos do Estado.

em um avanço não impediu, contudo, que Althusius recusasse utilizar Althusius é~~direi al no mesmo sentido
a concepção da soberania, polemizando constantemente contra Bodin. 11ue chamamos íqgbbes1~ ufendo de teóricos do di-
Hoje em dia trata-se de um lug;ar-comum o fato de que ele deve r ~ natural. O · eito natural aqui não constitui um sistema de
muito a Bodin e que forma uma continuação de seu trabalho 30 • n rmas cuja validade é deixada sem pçrturbações nas m ãos de um
Podemos admitir que as políticas de Althusius são resultado da luta lillado. Ele é uma teoria da emagên cja do Estado a partir de um
da Holanda e de sua situação social como síndico do calvinista Emden 1 . essup~st"2d o ÀtwnPm:~ cujas leis são comparáveis com
- o resultado de sua convicção calvinista e da luta contra os príncipes quela.s de.urna naau;eza extel"Íer..
luteranos. A intênç_ão de suas políticas consistia em justificar a revolt,?-
Não se considera que o ho~e~enas um lobo - e nesse
-\,çontra a Espanha, não apenas uma revolta de imporu::__cia naci~
•ntido Althusius se distingue dé'.-~ -, mas antes o homem
mas de importância social considerável31•
1 m de se.r considerado como possuidor de muitas virtudes. embora
11 possua a p.erfeição que lhe é atribuída por Locke. Ele se encontra
5.2.1.
ntre dois extremos, com uma inclinação específica em direção a uma
v' ão levemente p simista de s . O Estado criado
O ponto de partida da. teoria de Althusius sobre o Estado
o contrato social consiste
consiste na necessidade, ou mesmo no ~2 •

28 Como notou Chauviré, Bodin assum iu a lea ldade por parte dos estados diante
da coroa.
29 FRIEDRI CH, C. J. (ed.). Politica Methodice Diges la o f Johannes Althusius;
FI G GI S. Po lítica / Th o ught, p. 203 e ss.; VON G IERKE, Otto. A /thusius;
BO RKENAU . Weltbild, p. 122 e ss.; WOLZENDORFF, Kurt. Staatsrecht und
Naturrecht, p. 108 e ss.
30 FRI EDRI CH. Política Methodice, p. 59.
31 Ibidem, p. XXIX e XXXVll; FIGGIS. Política/ Thought, p. 218 e ss.; BORKENAU.
Weltbild, p. 122 e ss. 11 C. 9, 4 (p. 88): " Nam et regni proprietas est populi (...)".
32 FRI ED RI CH. Polilica Methodice, p. 52 . li Cf. FRIEDRICH. Política Methodice, p. 91.
158 • Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 159

todo o uso da noção de soberania. O próprio Estado é, portanto, istrado supremo: , s a ;m~a da assembleia r.epreseat~40 •
soberano. O magistrado soberano é apenas o portador, o administrador, • m oposição ao arjter abSõil: da legislatura ele apresenta so-
da soberania, cuja propriedade e usufruto encontram-se com o povo. mente certas recomendãçoes, como ao dizer q.ue a legislatma dç-
Mas quem é "o povo"35 ?Aqui, como em todas as outras teorias veri.a refrear~o tanto quanto possível em exercer seu pod;r
burguesas do contrato, reside o verdadeiro calcanhar-de-Aquiles do legislativo, uma recomendação que é comum a todos os teóricos
argumento. De modo algum Althusius é um democrata. Para ele, a dQ direito natural, e q.ue Roscoe Pound41 vê mmo um elemento
democracia não é uma "boa" forma de governo, mesmo se ele a reco- specificamente puritano.
nhece como sendo uma forma possível No trabalho de Althusius, Por outro lado, contudo, o direito positivo encontra-se sob o
como também no trabalho de Hobbes, o cesarismo democrático, direito material direito natural consistindo essencialmente
após o exemplo de Guilherme de Orange, não pode mais ser postu- dos últimos
lado36. A totalidade dos cidadãos elege ephors37, que em sua termino-
logia calvinista são os oficiais que, por sua vez, elegem os magistrados
soberanos - os summus magir~-~uenciam o exercício de seu
poder por meio da consulta ~o 38 • O oref'ésiG da soberania
p~rmanece....in.teiramente com o monarca. .Uma monarquia é a me-
lhor forma de governo, mesmo se a s stância da soberania reside no
, ovo representado elo hors. A assa do pov , a plebe (vulgus), só é
UIIW)bjcto-d_~o,_uma,.v:~ cessQ).l sep papel ffiIDO súditQ:_
Log oficial su remo dos m ·strados é instituído, a teoria diz
respeito,_portaut.Q,_à..momrq · de ori em democráti
impfu do o extermínio de todos os direitos privilegiados dos esta-
dos, e mesmo sua exclusão da form ão da vonta e o t1

5.2.2.

Em
teoria do

40 29, 4 (p. 275); 29, 5 (p. 276).


41 POUND, Roscoe. The Spirit of Common Law, p. 1.
42 e. 1o, 7 (p. 96).
43 C. 38, 1 (p. 337): "Tyrannis igitur est justae et rectae administratione contraria,
qua fundamenta et vinicula universalis consociationis obstinate, perserveranter
35 e. 9, 16.
insanabiliter contra fidem datam et praestitum juramentum, a magistratu summo
36 BORKENAU. Weltbild, p. 131. tol luntur et evetuntur"; C. 39, 9.
37 e. 18, 48 (p. 143). 44 C. 38, 28 (p. 382): "Cognita tyrannidis natura videndum nunc est de remedia,
38 e. 18, 91 (p. 151 ). quo tempestive ilia tollatur; quod consistit in resistentia et exauctoratione
39 e. 18, 91 (p. 151 ); 29, 2 (p. 275). tyranni , so lli s optimatibus concessa"; C. 38, 65 (p. 390): "Quid vero de
160 - Q I MP~RI O DO ÜIREITO FRANZ N EUMAN N - 161

Por causa desses elementos juridicamente naturais pode-se


concordar com a caracterização que Figgis fez da teoria de
Althusius: "Todo poder está concentrado num único centro, e
toda a forma de direito ou liberdade tem a natureza de um
privilégio, estabelecido tácita ou expressamente pela autoridade
central, a qual pode ser o rei, os nobres ou o povo". Se Althusius
postula uma monarquia absoluta nesse sentido, a dinâmica
psicológica de sua teoria, e ~ sua rece ão areceri e ar a wna
d.ire ão revolucionária, devido à institucionalização democrática
original da monarquia absoluta. A aceitação da teoria parecia
implicar um Cllrei o gar Ido- ao povo de remover o poder legal
que eles mesmos delegaram ao monarca - tanto que Althusius
declara que a substância da soberania permanece com o povo.
Essa dinâmica revolucionária é nutrida posteriormente pelos
elementos do direito natural que contêµi não apenas os direitos
usualmente reconhecidos de existência, mas que contêm demandas
morais distintas. Isso vai significar finalmente uma esfera de
liberdade frente ao poder soberano do Estado, e ao mesmo tempo
a canalização do exercício da soberania na direção desejada. Essas
reminiscências do dir y.ro-na ora apenas parcialmente
concretizadas no ~stema de Althusiu estão t s ra
~a.çâ! ses àe entos d to a al assim c
na conçep.ção demoaá.tic.a....so i.tigem. da sohernoia, reside a ;
continuidade do desenvolvimento das teorias dos monarchomachs, 0
~e, c omo yi mos letamente haseadãs no direitq
stitucionaLp._0_ ·ti o cu· a im ortância necessariamente ces
quaod . - sistema..fi tá vinculado che ao seu fim
Ao desenvolver as exigências dos monarchomachs, justificadas não
apenas mediante o direito positivo, mas (embora de modo
contraditório) com a ajuda do direito natural, Althusius pavi-

subditis et pri vatis ex popu lo setiendu est? Nam quae hactenus diximus de
ephoris, perso ni s publicis dieta sun t. Pl ane hi privati, quando magistratus
tyrannu s est exercitio, quia non habent usum et j us gladii, neque co jure
uten tur (... ) sed quiesent et injuriam patien tes, j ugum tyrann i ferent (... )". 45 W O LZENDORF. Staatsrecht, p. 223 .
Capítulo 6

Grotius e Pufendorf
FRANZ N EUMANN - 165

.1. HUGO GROTIUS

Grotius contribuiu relativamente pouco para a solução de


nosso problema, uma vez que seu trabalho é dedicado principal-
mente à discussão do direito internacional1•

A ordem social, e portanto o~l, deve ser direcio-


nada para a manutençãç____de um res~o à propriedade, à
brigação de rnmpár promessas, para a restítwçâo contra danos
u dos ela violação de con ara a punição justa da cul a
(Prol 9, p. 1 . ortanto, o e1 o na os a a manutenção
de.J.!!!!.. sistema jurídico particular. t eia de uma justiça distribu-
tiva__é_rejeitada expressamente 2 • O direito não pode se diferenciar
de acordo com o grau de sabedoria ou segundo a propriedade e o
parentesco de um homem. Ele concerne exclusivamente à manu-
tenção do si§tema existente da propriedade. O princípio básico do
direito-aatw:al.ronsiste..na afirmação, já válida no estado de na~­
za,_, e ue os contratos deyem ser rnmpàdos. Esse é, sobretudo, a
"mãe do direito municipal" (Prol 16, p., 15). Grotius vê, assim
orno Pufendorf o f~ com menos clareza, que o direito precisa de
uma maquinaria de sanções se quiser se manter válido (Prol. 19J>:
16). Não obstante ele: afirmar tal validade, esta "não é inteiramente
~enta de consequência" (Prol. 20, p. 16). Essa consequência, co~
m ostraremos, consiste no reconhecimento do direito de resistência.
Seu direito natural é um sistema de normas morais deduzi-
das da, e coincidentes com, a natureza racional, mas que contém

GROTIUS. De jure belli ac pacis libri tres (Tradução F. W. Kelsey, Oxford, 1925);
KNIGHT, W. S. The Life and Works of Hugo Gmtius, London, 1925; WOLF,
Erik. Grotius, Pufendorf, Thomasius, Tübingen, 1927; NEUMANN, L. Hugo
Grotius, Hamburg, 1884.
2 Prol. 9, p. 13: "Há muito tempo muitos perceberam que essa distribuição
discriminada é uma parte do direito (... ) embora o direito (...) tenha um a
natureza bem diferente, porque sua essência consiste em dar ao outro aquilo
que lhe pertence, ou em cu mprir nossa obrigação frente a ele".
166 - Ü I MP~RIO DO DIREITO F RANZ NEUMANN - 167

comandos e proibições3 • Seu ponto de partida, bem como suas dizer que a dominação sempre é exercida nos interesses do povo
exposições tardias, mostra que ele confundiu constantemente di- (l.III.VIII, p. 104, 109). Nesse sentido, rejeita-se um direito de
reito e moral4 • Esse direito natural não tem como um de seus r sistência mesmo contra um 8J. Entre outras razões, esse
conteúdos apenas a regulação de coisas que estão fora do domínio direito é rejeitado porque lhe parece extremamente dificil decidir
da vontade humana, mas diz respeito, sobretudo, à própria von- e uma certa ação de um dado rei pode ser considerada boa ou má
tade humana, especialmente à propriedade, a qual deriva da von- (1. III. IX, p. 11).
tade do homem, e que uma vez introduzida torna-se parte do A diferença no · eito priva o entre propriedade (direitos
direito natural (I.l.X.5, p. 40). Esse direito natural é imutável - integrais de propriedade, patrimônio) e usufruto corresponde à dis-
mesmo Deus não pode alterá-lo (I.I.X.5, p. 40). tinção no direito público entre a própria soberania e o portador da
A natureza humana está direcionada para a socialização. O berania5• Trata-se aqui sempre da pressuposição de que o rei,
. ornem definitivamente possui um "appetitus societatis". uma vez derivado seu poder da vontade do povo, tem somente o
- Além rsse--direito natural, também há um direito volitivo, que u~ de modo que nesse caso o povo tem o direito
pode ter origem hum outffiViha (I.1.VIII, p. 44). A parte princi- se prever contra a alienação da soberania (I.ill.XIII,,p. 119).
pal do dirci;-·..-um
-- an-o é o direi o municipal, ~ual deriva do pod~r No~~s~ntudo, a relação postulada entre o direito
civil:--0 poder civil é aquilo que "influencia o Estado". "O Estado é n tur , ~ ~· e a soberania, que deve ser considerada o
uma associação completa de homens livres se relacionando conjunta- oder supremo? E entre normas gerais e decisões individuais?
mente para gozar de direitos e para atingirem seus interesses comuns" rotius postula que o direito natural obriga todos os reis mesmo
(l.IXIV, p. 44). Somando-se ao direito municipal também há o di- Q..patrimonial. Isso é tão compatível com a soberania quanto o fato
reito que não é diretamente constituído pelo poder do Estado, mas de que o rei...pode obrigar-se a si mesmo nos contratos co~
que está sujeito a ele: os comandos do pai sobre o filho, ou do senhor úditos ou com De l.ID. ). Até esse ponto os princípios
sobre o servo, por exemplo, encontram-se sob essa categoria. ão claros. As mplicaçõe em ~s~u~a~~o~S!ljl;.aQc..C!llll~UH-a:Hn1
O soberano é um poder "cujas ações não estão sujeitas ao institucionalização desse direito .natural. Com essa questão dos
controle jurídico de um outro, de modo que elas não podem ser dir~~e resistência se torna claramente visível o eterno dilema
anuladas pela operação de uma vontade humana" (I.Ill.VII, p. do p~s que ~ a.segurança e a ordem, mas não quer
~02). Portanto, o sqh_erano pode alterar arbitrariamente suas pr_,é- . ue interfiram na sua propriedade e na sua liberdade. Grotius inicia
}irias decisões. om a afirmação que "se as autoridades emitem uma ordem que
eja contrária ao direito natural ou aos mandamentos de Deus, a
A soberania não eside empre com o poJlO: pois o próprio
rdem não deve ser cumprida" (l.IV, p. 138). No estado de natureza,
pQllO pode tomar-se escrayo em seu todo. É incorreto també~
todo homem po~e obviamente resistir justamente a qualquer injúria.
Na .g>ciedade civil, contudo, o princípio se inverte. O Estado foi
3 Bk 1, C.l.X.1 , p. 38: "A lei da natureza é um ditado da justa razão que mostra
edificado "com a finalidade de manter a tranqci'frdade pública":
que um ato, dependendo do fato de estar ou não em conformidade com a
natureza racional, possui em si uma dualidade de fundamentação moral ou
necessidade moral; de modo que, por conseguinte, tal ato ou é proibido ou
permitido pelo autor da natureza, Deus". Bk 1, C.111.XIV., p. 120: "Em si mesma, a soberania tem de ser distinguida
4 MEINECKE, Friedrich. Oie ldee der Staatsraison , Munich e Berlin, 1924, p. 261. daquele que tem a posse absoluta dela".
168 - Ü I MP~RI O DO ÜIREITO FRANZ N EUMANN - 169

portanto, o Estado pode int interesses da paz e da segurança t ncia (l.III.VII, p. 154). Esse ~·J.M.U.·~~
pública, e o tanto quanto or necessári ' , derivando assim o direito pelo direito positivo contém o seguintes caso : um governante
d~r~~ ~o :eito na . e tenta provar essa afirmação que u esponsáyel pelo povo, mas que VlO a a lei, pode ser punido
lançando mao e levantãíúento histórico íilfíilíto e de ataçod om a morte; um rei. "que te nha renuncia . d"
o . ou um rei. "gue
r e Só les Eurí ides, Sallust, Sêne Tácito bem comó aliena seu reino. ou o coloca sob a sujeicão de um outro rei", pode
do Yelha e da NollO Icstameu_tos (I.IV.II, p. 139-40). Em sua r um direito de resistência pertencente ao direito
visão, a teoria de Junius Brutus está errada, pois o direito de ositivo. O direito positivo e resistenaa e conce ·do posterior-
resistência que Brutus atribui aos magistrados começa com a mente se o poder constitucional for distribuído entre o rei e o

direitos do que o próprio súdito. O


ser alienado pelo Estado em casos de
kc
suposição incorreta de que um magistrado subordinado tem mais
tcs~e
· o extremo e iminen .
ovo, e se o rei tenta alterar essa distribuição em seu próprio favor.
direito de revolução é concedido constitucionalmente contra o
rei que "demonstra ter uma intenção verdadeiramente hostil em
Ainda assim, le é cuidado plementar que mesmo em !!! estruir todo o povo", ou se um povo reservou expressam~e
c s oa do rei de e ser ou ada" peuas_para si g Elifeit6 à:e resistêneill. Pôr íim, o fHWO tem o direi-
(l.IV.II, p. 151). "Esse direito sobre o qual estamos discutindo - o º de-~istir contra l:1Hl Yiiw=paàor (Bk. I, C. IV.VIII-XV).
direito de não resistência - parece retirar sua validade da vontade
daqueles que se associam primeiramente para formar uma sociedade 6.1 .3.
civil; ainda mais, a partir dessa mesma fonte deriva o direito que
passa pelas mãos daqueles que governam. Se pudéssemos perguntar ·~~~....._~:...E
~ stado e do direito é a primeira
a esses homens se eles pretendem impor sobre todas as pessoas a teoria quase · te almente burgues . Ela é quase uma teoria se-
obrigação de preferir a morte em vez de, sob quaisquer circuns- cular, porque o direito natural é fundado diretamente na razão.
tâncias, pegar em armas p~x;ecaver-se contra a láolência daquels:s Uma vez reconhecido segundo razões, o direito natural se toma
que possuem wna 1tt1~riàaàe ~efieF;~ e.i..se respondeàam independente até de Deus. A natureza humana e a divina estão
afu:mati.vam.cn~&SC'l'j1"alvez;.s~iderássemos que a resistência divorciadas. O rompimento com os escolásticos chegou definiti-
não poderia ocorrer sem grandes perturbações ao Estado, e sem a v rmo. A teoria de Grotius é, além disso, quase com-
destruição de uma grande quantidade de pessoas inocentes" pJetamente racion ; ou seja, ela é orientada pela vontade do
(l.IV. VII, p. 148). Mais tarde o mesmo se passou com Locke ao homem. o em, o ovo ue cria a vontade do Estado não é conce-
usar Barclay para a justificação desse direito de resistência. bido de um odo democrátic . Grotius postula um Império do
Direito material; nesse caso. contudo. o Estado foi entregu~
6.1.2. conflitos de grupos sociais que podem destmHo com base no
dir.ei ta de resistência, concebido a partir do direito natural. Por-
O progresso decisivo no sistema de Grotius ocorre quando o Estado não é concebido como uma unidade autônoma
direito de resistência que deriva do direito natural é sabiamente Grotius, diferentemente de Pufendorf, pertence
distinguido do direito de resistência aferido na própria constitui- aos harmonistas. q.ue acreditam em JJ ma coincidência entre os
ç~m..todos os casos em que a constituição delega ao povo um iQteresse comuns e os individuais (Prol. 4). Ele acredita gue seja
c'om dominj;pn, OY..J lm direita_de deposicão, ou outros direitos passível prevenir a dissolução do Estado por meio da postulação
c~til::!;©Õnais, ode-se.f-alar.pr.op · _ - e de um direito de resis- simultânea do império do direito natural.
170 • Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 171

O Império do Direito material é o império das normas mo-


rais, e sua moralidade é aquela dos burgueses, que, contudo, pos-
sp c: , de medida, motivos piedosos. O postulado do O ponto de partida do sistema do direito natural de Pufendorf
Íhlpério do Direit aind~ não adotou, portanto, aquela funçã~ ação humana baseada na vontade e na atividade do homem. A
e a Isso pode ser mostrado, por ão h a é livre or ue est ' vo t de.
exemplo, em sua teoria dos contratos. O contrato é baseado na as frequentemente essas vontades livres individuais não coincidem.
igualdade das partes contratantes (II.VIII, p. 246). As partes Jlas divergem e só podem ser reunidas através do direito (De oJJ.
contratantes de~cr. "a liberdade de escolha" (II.X, p. 348), o 1.1.2, p. 3; Il.1, p. 3). Nesse sen · , o djreito é um direito p olític;o
que implica, e sua vis- , uma igualdade de ação mútua por Otl seja, a comando do poder soberano (De oJJ. l.II.2, p. 12)7.

par.t~s. "A igualdade exigida no ato principal do contra.? , nse uentemente ele é le ' . o. m

to é a de que sua exatidão depende do quanto é justo" (XI, p. O direito se divide em direito divino e direito humano, que
349). Consequentemente, ele rejeita os monopólios; ele admite r seu turno pode ser ou direito natural ou direito positivo (De
monup.óli.o.s_estatais,--mas monopólios privados devem ofertar_a . I.II.16, p. 16).
pre~yustos e nunca podem m ar seu poder para fechar os m.sr- O direito natural contém os princípios fundamentais e as
cados-(11.XIJCVI, p. 353). inferências são retiradas deles (E/em. 1. def. Xlll.16, p. 159; II.
bs. IV.5, p. 242). Os dois princípios fundamentais do direito
6.2. SAMUEL PuFENDORF 11 tural derivam da naturezaª. De acordo com esses princípios, o
h mem é uma besta; mas ele é ainda pior do que uma besta,
Pufendorf é frequentemente considerado um típico repre- 1 rque as forças de seu intelecto o possibilitam cometer o mal de
sentante do direito natural racionalista6 • Se entendemos por di- orma consciente (De oJJ. I.ID.5, p. 18). O homem é malicioso e
reito natural um sistema de normas materiais que garantem a alta-se facilmente. Por outro lado, ele carece de ajuda e, portan-
liberdade dos homens frente ao Estado, então essa definição t , "adaptou-se para promover o interesse comum" (De oJJ. l.III.7,
não pode ser aplicada a Pufendorf. A característica específica de I · 19). Sendo assim, o homem é um animal genuinamente polí-
Pufendorf implica que a racionalidade justifique o poder coer- co Já o; estado de natureza ele presta honras a Deus e se distin-
citivo do Estado com a capacidade sistemática de um jurista ue, com isso d De o . II.1.3, p. 89). Ele é livre, e por
continental, e que dessa racionalidade sejam deduzidos os fins e ~.t:.!,~~:::!~~o~r~Nesse sentido, o estado de natu-
ropós1tos · Estado. N · tema não há lugar para a a distingue-se do sta o ci · (De oJJ. II.1.5, p. 89). O único
dade individ hl - par o ius natura como já enfatizamos vemante no estado de natureza é Deus. A partir dessas duas
mais de uma vez ue o lm eno do Direito material seja lracterísticas do homem no estado de natureza, ele deduz os
alge-f"-ea:l,-devc.- hav~i:-uma.ex,pecta tiva suficientemente grande d is princípios básicos de seu sistema do direito natural. O pri-
parn-s~-a ealização, mesmo se o direito positivo o contradiga. llt iro consiste no direito de sociabilidade (De oJJ. I.ID.8,9, p. 19).

"O direito (...) é um decreto por meio do qual um superior obriga um sujeito
6 PU FENDO RF, Samuel. Elementorum Jurisprudentiae Universa/is. Ubri Duo, 1660 a conformar seus atos a suas própri as prescrições."
(Tradução de W. A. Oldfather, Oxford, 1931); idem, De Officio Hominis et O vis
"O homem parti lha com todos os animais o fato de (...) não estimar ta nto algo
juxta Legam Natura/em, Ubri Duo, 1673 (Tradução de T. G. Moore, Oxford, 1927).
senão a si mesmo, e ansiar sua própria preservação", De Officio, 1, c. 111.2 (p. 17).
172 - Ü IMP~RIO DO ÜIREITO
F RANZ NEUMANN - 173

O direito natural ensina como deve ser o comportamento de um O direito de autoconserva ão foi garantido pela afirmação
homem de modo que possa tomá-lo um bom membro de sua de Pufendorf da i áldade natur entre os homens (E/em.
própria comunidade. O homem deve manter a sociabilidade pelo II.obs.IV.22-3, p. 259-68; e Off. I. e ss.). Contudo, a
J tempo que puder, e deve, portanto, aprovar os meios para a reali- al natural não significa · aldade jurídic polític , nem
\}zação dessa sociabilidade9• esmo soci Ela significa simplesmentê que no es o e natq-
't:;.{ ~ segundo princípio básico consiste no direito de autoconser- rez to o ornem ossui a mesma força e, portanto, chances i s
\0 vação (E/em. II. Obs. IV.4, p. 242) 1 ~ste direito obriga e autoriza o de autoconservação. Não é mmto c o se ele conseguirá realizar
homem a proteger sua própria vida e seu corpo e tudo o que lhe tais chances na sociedade civil.
pertence, enquanto assim for capaz. Ele infere o seguinte a partir do princípio de igualdade: a
Esses dois princípios fundamentais podem, contudo, entrar em proibição de injúria física, do estupro de mulheres, de calúnia ou
conflito. A harmonia natural entre interesses individuais e coinuns, de adultério, ou da violação da propriedade; a obrigação de manter

~
como foi assumida nas teorias dos fisiocratas e pelos economistas as promessas e de pagar os prejuízos quando contratos forem
clássicos, tais comei'Adam Smith, não somente deixou de ser admi- quebrados; nenhum homem poderá ser juiz em seu próprio caso, e
da, como aparece nas suas notas em De off. (I.V.5, p. 28), e também o dever do juiz i escutar de forma equitativa ambas as partes.
foi aparentemente rej,eitada; embora ele expresse a esperança de que Indiretamente a..partir do princípio de auto-conservação e
a tal harmonia assa s · se o homem usou seu corpo e sua diretamente a partjr do direito de igualdade se seguem certas
alma de forma . aoo De 11 sse conflito onse uências, as quais serão elucidadas no decorrer de De officio.
entre direito de s ciabilidad e direito de autoconserva~ é resolvi- Na realidade, elas formam o nu eo o s1s ema o eito naturãl
do no estado de natureza por meio da luta e da autodefesa: no estado de Pufendorf. Elas são o que a ciência jurídica inglesa chama de
~do, t.al..autodefesa parece ser inadmissível (De off. l.I.Ü, ·urispmdênci& e a ciência jÚrídica alemã chama de doutrina geral
p. 32). Esses dois dir,eitos naturais são únicos. Todas as outras nor- ôo direito C4(Jgemeine Rechtslehre~. Ele nota corretamente que o
mas do direito natural são deduzidas racionalmente a partir deles. princípio do cumprimento dos contratos é uma garantia suplementar
da propriedade, e que o princípio pacta sunt servanda é a base dos
cálculos do processo de troca (De off. l.IX.3, p. 48)u. Porém, essa
9 "Aquelas que ensinam como o homem deveria se conduzir para se tornar um obrigação em manter as promessas não é uma obrigação
bom membro da sociedade humana são chamadas leis naturais (... ) A lei
natural fundamental é a seguinte: que todo homem deva estimar e manter a
incondicional, mas é condj-cjonada pela legitimidade do contrato
sociabilidade, na medida em que esta reside em si mesmo. Segue-se disso carrespoudente (0."1~1, p. 48). Na medida em que o princípio
que, um ue a uele que deseja um fim, deseja também os meios, sem
o uais o fim não po en a ser o 1 , da necessidade de se cumprir os contratos é deduzida do direito de
iv ente ara a so igualdade, isso só pode operar se o próprio contrato concorda com
lil~ · eito natura, a o con un e ou es
Os preceitos existentes sao meros coro anos, por ass im izer, desse direito o princípio de igualdade, ou seja, se todas as partes contratantes
geral, e a luz natural com a qual a humanidade foi dotada declara que eles
são evidentes", De Officio, 1, c. 111.8, 9 (p. 19).
1O "Qualquer um deveria proteger sua própria vida e membros o quanto fosse
ca paz, e salvar a si mesmo e aquilo que lhe pertence."
·12 "Pois, sem isso, deveríamos perder a maior parte da vantagem adequada para
11 "Um homem tende a promover indefinidamente a vantagem dos outros se com a raça que surge do intercâmbio de serviços e de propriedade. E quando não
isso cu ltivar sua própria alma e seu próprio corpo, de modo que ações há a necessidade de se manter as promessas, não podemos estabelecer os
proveitosas possam emanar dele para os outros." cá lcu los de alguém com firmeza somente com base no apoio dos outros!"
174 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 175

recebem igualmente ao assentirem ao contrato. Pufendorf é da regra de conduta (a punição a ser aplicada sobre aqueles que a
opinião de que uma realização do princípio é possível apenas onde infringiram) (De off. 1.117, p. 14; ibid., ll.XII.4, p. 124).
os preços são fixados por estatutos ou pelo costume do mercado O direito natural, contudo, Qão conhece qualquer forma de pu-
(De off. 1.XV.3, p. 74) 13 • - conhece er rocesso ·urídico para os casos de
A propriedade privada é introduzida pela vontade de Deus cumprimento de contratos. Seu cumprimento é "deixa o somente ao
e pelo consentimento explícito ou implícito dos homens (De off. j ento divino" (Elem. 1. def. XIII, 18, . 60). O medo perante
I.X.II.2, p. 62) 14 • Dei1s e a consciência individual, qµe operam no caso do direito na
ara.reforçar p cumprimento dos contratos de modo algum represen-
O sistema inferido a partir do princípio da sociabilidade é
~e off. 11.V.8, p. 10416 ; ibid., 1.IV.7, p. 104)17•
consideravelmente mais pobre. O princípio supremo ordena "que
todo homem promova a vantagem do outro até onde possa convir"
6.2.3.
(De off. l.VIIl.I, p. 41), reforçando a obrigação de que a sociedade
humana não seja perturbada15 • Ele expressa a esperança de que a
A ineficiência do direito natural em garantir a paz resulta no
vantagem de um possa tomar-se a vantagem de um outro (De off.
fato de os homens serem compelidos a erigir o Estado. Somente no
l.VIII.2, p. 49). De qualquer modo, todas as deduções que se
pelo Estado a paz e a segurança podem ser plenamente consuma-
guram do princípio de autoconservação podem ser igualmenty
as (E/em. II. Obs. V2, p. 274 e 15, p. 286). O Estado está funda-
~das do direito de sociabilidade.
do no contrato, isto é, em dois pactos e um decreto (De o.ff. ll.VI.7,
6.2.2. p. 107). O contrato é inicialmente feito quando os homens decla-
nun sua intenção em erigir um Estado: "todos devem concordar
onjunta e in~nte"; em seguida a forma de governo é de-
O progresso decisivo do sistema de Pufendorf consiste na
terminada põ~, e finalmente um pacto é concluído com
tese da validade factual das normas do direito natural. Ele alega
todas aquelas pessoas para quem o poder do Estado foi delegado.
que sua validade está incompleta e é insuficiente tendo em vista
as necessidades da vida social (E/em. II. Obs. V.I, p. 273). O Uma vez surgido o Estado desse modo, ele se torna uma pessoa
jurídica cu' a vontade é im utada a todos, e cu·o ob'etivo é a manu-
direito é válido somente se for acompanhado de sanções. Todo
tenção da Raz e da se5ça comum De o.ff. ll.VI.10, p. 10818 e 5,
direito válido contém duas partes: uma regra de conduta (o que
p. 107)19 • O órgão esta2onsntuído por decreto pode ser o monar-
pode e o que não pode ser feito) e a sanção apropriada para esta
ca, o Senado ou o povo. As formas de governo são, portanto, a mo-

13 "Todos os contratos onerosos (...) possuem essa característica segundo a qual 16 "O Direito Natural não é suficiente para manter o homem afastado do mal.
a igualdade tem de nele ser preservada; em outras palavras, que cada uma das Nem o medo da D ivindade nem o remorso da consciência são sufi cientes."
partes contrata ntes tem um ga nho igual; e quando surge um a desigualdade,
17 "A razão genuína e principal para que os patriarcas, abandonando sua liberdade
aquele que recebeu menos adquire o direito de que essa desvantagem lhe
natural, fundassem os Estados foi a de que eles tinham de se fortificar contra
traga consequênci as positivas, ou o contrato será inteiramente quebrado.
o mal que intimidava o homem contra o próprio homem."
Contudo, isso é particul armente o caso nos Estados onde os preços são
18 " Um Estado é defin ido como uma pessoa moral composta, cuj a vontade,
fixados pelo uso dos mercados ou pelo direito. "
entrelaçada e unida em virtude da condensação de muitos, é considerada a
14 "Pela vontade de Deus, a pressuposição do consentimento dos homens e um vontade de todos, de modo que pode usar os poderes e elementos do todo
acordo ao menos tácito, a propriedade sobre as coisas, ou a posse, foi introduzida." para a paz e a segurança comuns."
15 " Ele não deveria perturbar a sociedade humana, ou, em outras palavras, ele não 19 "As vontades de muitos só podem se unir se cada um submeter sua vontade à
deveria fazer nada que tornasse a socialização entre os homens menos tranquila." vontade de um homem, ou um conselho, de modo que sempre que este homem
176 - 0 IMP~RIO DO Ü IREITO FRANZ N EUMANN - 177

narquia, a aristocracia ,e a democracia. Todas as três formas de gover- anto, a lei é comando, e ~- ''As leis procedem na verdade
no são diferentes do ponto de vista organizacional, mas são somente daquele que possui o com~emo" (Elem. I. def. XIII. 10, p.
aspectos de um úrúco conceito de Estado (De ojf II.VIIl.3, p. 113). 194). O cidadão es.tá sujeito a todo comando do Estado, tenha um
Por essa razão, Pufendorf traça uma linha definitiva entre soberania t comando a forma de uma norma geral ou de uma decisão indi-
do Estado e soberania de um órgão do Estado. vidua}. " · n s ci a aos sao o n a os a o e ecer tanto os
As monarquias são preferíveis em relação a todas as outras coroªndos partjgtlares de seus governantes guanto as eis g
formas de governo porque a rapidez das decisões do Estado é de (De. Ojf. Il.XII.9, p. 126). A es.fei:a-legitima g9 direito pasiti"R.l.
grande utilidade, e o monarca pode implementar sozinho tais deci- determinftà& àtt Mesm;a m 3pejr3 cp e na teoàa de SpinoZíJ. Ü legis-
1

sões, ao pa~êmGmàas e aá stocracias é preciso reunir ~ lador pode ~ qualguer coisa que ele tenha a capacidade de
sembleias (De off. Il.IX.6, p. 117). As constituições mistas são im_plementar. Portanto, a ele não cabe o poder de regular processQs
consideradas problemáticas, embora as limitações constitucionais psicológicos23 Formas de liberdade como aquelas que prevaleciam
do poder absoluto sejam assunto comum. "É sábio circunscrever o anteriornJepte à exi 5f-êpci 3 do Estada são , por consegi 1inte, inad-
exercício de sua autoridade sob certos limites" (De off. Il.IX.6, p. missíxci:;. Mesmo a propriedade é assegurada pelo Estado. Dessa
117). Em todos os casos a presunção fala contra um tipo patriarcal concepção se segue que, se o monarca transferiu propriedade dire-
de governo (De ojf II.IX.6, p. 117). tamente a um cidadão, a decisão quanto aos conteúdos dos direitos
de propriedad<; deve residir ainda em suas mãos. Se toda proprie-
6.2.4. dade é adquirida pelo "próprio trabalho", o dono está sujeito à in-
tervenção do Estado de três modos: o Estado pode prescrever o uso
Quais são agora as relações entre Estado e direito natural? A a propriedade de acordo com os interesses do Estado mesmo nos
resposta indica que não há conexão alguma entre os dois - ou seja, detalhes referentes à quantia, qualidade e método de transferência.
que o Estado deve ser concebido como soberano em sentido abso- O Estado pode transferir a si mesmo sob circunstâncias normais
luto. A soberania do Estado é suprema (E/em. I, def. IV, p. 18); sua uma pequena quantidade de propriedade - por exemplo, em for-
autoridade é absoluta (Elem. II, Obs. V. 18, p. 289). Ele é inde- ma de impostos -, pois aquele que deseja proteção deve pagar. Fi-
pendente de qualquer outro poder e pode agir de acordo com sua nalmente, em casos de emergência, o Estado pode confiscar toda a
própria avaliação. EÍe não-é..abiigado a sr-Justificar a 0 ingi 1érg20• ropriedade (De Ojf II.XV.1-4, p. 136). No seu sistema absolu-
EJ:e-não-é..Gbr.ig;ad eis humanas ue são roduto seu21 • Por- sta não há espaço para uma limitação da soberania do Estado.
Se as leis se chocam com o direito natural do homem, as leis
positivas do soberano têm precedência. É verdade que o bem-estar
ou conselho escolher de acordo com aquilo que for necessário ã segurança
comum, a vontade de todos será consi derada, coleti va e singu larmente."
20 De officio, li, C.IX.1 (p. 116): "Toda a autoridade que condu z um Estado, em
qu al quer form a de govern o, poss ui a quali dade de se r supremo, de não
22 De officio, li, C.X ll.1 (p. 124): "As leis civis são decretos dos líderes civis por
meio dos quais é determinado aos cidadãos o que eles podem fazer na vida
depender em seu exercício de qualquer homem como um superior, mas opera
civi l e o que eles deveri am deixar de fazer".
segundo seu próprio j uízo e avaliação, de modo que seus atos não podem ser
anulados por qualquer homem que lhe seja superior". Elementorum, 1, def. Xlll.1 9 (p. 162): "Os objetos do direito civi l são em geral
tudo aq uil o qu e pode ser efeti va mente determ i nado por uma autoridade
21 De officio, li, C.IX.3 (p. 11 6): " ~ superior às leis humanas e civis e assim não
humana suprema. Os atos internos do espírito, em relação aos quais as leis são
está diretamente suj eita a elas. Pois segundo sua origem e duração, tais leis
insti tu ídas em vão, estão excl uídos porq ue, na verdade, eles ultrapassam a
dependem de uma autoridade suprema".
capacidade dos homens em saber se foram submetidos à obediência".
178 - Ü I MP~RIO DO ÜJREITO F RANZ NEUMANN - 179

do povo é a razão de ser do Estado. O Estado outorgou o poder De O.ff. !.II.XII, p. 126, a solução para o problema é reduzida
do povo para esse propósito (De O.ff. IIXI.3, p. 125), e o caráter a uma mera fórmula24 •
e a extensão de sua soberania são derivados desse fun. Mas, como ,,...--.<ll!'os portanto, que o direito de resistência concedido de
Gierke-m.astr conclusivamente, esse objeto do Estado se refere orma relutan é praticamente sem sentido, e não foi instj.-
ao e< do de nature e, portanto, como todo direito no .u.u.141.u..a.i.ll.lw.!l"-4:~rm
~.e,
a~al~~m~a. Em primeiro lugar, o motivo e o

t
~assa de uma obligatio imperfecta. Portanto, é objeto dQ direito de resistência são claramente distintos. Seu
possível falar de Império do Direito material porque esse pro- xercício depende do ..s.oberano QUe emite_wn comando. dos...
sito do Estado de fato não foi cumprido. pr-0.prios cidadãos gue obedecem esse comando. da violação ao
Logo que o direito natural dº · as decisões individuais cfu:ei.t o p3h1ral por esse comando, e do cidadão não yer possibilidade
entram em conflito com o ireito positi o, as maiores difi- d,e escapar ou se ocultar. Poss · muito pouco valor um direito de
culdad~urgem para Pufeadorf, como ele mesmo admitiu. Ele resistência contra uma rma er . equivocada emitida pelo
percebe corretamente que a dedução do Estado a p; rtir da oberano que não prescreve certos reparos aos súditos. Além disso,
vontade dos sujeitos implica a inadmissibilidade de um direito um cfu:êit0 ia9MàtiiM IH re&is.têa@ia é a&t;.ick> ap;nas mima esfe; a
de resistência: "Aquele que confere a uma segunda pesfo'a muita limitada. A concepção de que todo poder reside com o
autoridade sobre si me}ID contrata ao mesmo tempo a obrigação povo, o qual é aµtorizado a depor ou punir os reis, é rej~o
de não resistir à sua~, pois, certamente, isso implicaria coma um erro perigoso, em lugar de sua ms1stênc1a sobre a b~se
que alguém p ossui o direito de exercer o comando sobre alguém; contratual do Estado (E/em. II.obs.V.20, p. 291). Não há direito
conn1do, a outra._pessoa manteria a autoridade para resi~ir" de resistência por parte do povo mesmo se o rei se degenera num
(Elem. II. Obs. V., p. 287). Ele investiga assim "qual é a extensão tirano, porque seria impossível decidir se ele está de fato
dessa obrigação de não resistir". Na sua interpretação, trata-se governando de forma tirânica (E/em. II. Obs .V.21, p. 292).
de uma questão de consciência individual decidir se retrocede Somente o indivíduo atingido tem o direito de resistir. Seus
sem uso da violência e viola os comandos da religião, ou se oferece companheiros não têm permissão para ajudá-lo, pois a violação
resistência. Se o poder secular comete o desatino de emitir dos direitos de um cidadão não isenta os outros de seu deuer de
co~dos contlitaotes com o direito.natura l humano ou divine;. obediência (E/em. II.obs.V.22, p. 293). Partidos ou qualquer
a,,culpa não reside nos cidadãas, mas no soberan o e nesse caso o_ utro poder intermediário entre os cidadãos e a autoridade central
· revolta . Apenas se ao realizar tais são inadmissjyeis.
comandos o próprio cidadão cometesse um pecado, ou se O direito de resistência no sistema de Pufendorf é, portan-
preferisse a morte em vez de cumprir uma ordem, ou se o to, uma quantidade negligenciada.
comando parece desarrazoado - então o soberano se torna "um
inimigo livre" contra quem um direito de resistência deve ser
reconhecido porque ele não mais trataria seus súditos como
súditos, mas como inimigos. Mas mesmo em tal caso o direito 24 "Os cidadãos, na medida em que não entram abertamente em confli to com o
de resistência só é considerado se os cidadãos acham impossível direi to divino, devem obediência ao direi to civi l, não pelo mero receio da
punição, mas por ca usa de uma obrigação intrínseca, confi rmada pelo próprio
escapar ou se esconder (E/em. II. Obs. V.17, p. 287-288). Em direito natural; pois entre seus preceitos também encontramos aquele que
ordena obedecer os governantes legítimos."
180 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO

6.2.5.

O sistema do Estado e do direito de Pufendorf é aquele do


despotismo esclarecido. O primeiro elemento do Estado burguês, a
~oberania do J: , arece nesse sistema, mas não o segundo
M emento do Éstado burgue a saber, a esfera da liberdade individual.
Esta atitude é po ticamente inteligível. Pufendorf foi um burguês
por descendência e por educação, um jurista por profissão, e ~
empregado do Estado na Suécia e em Brandenburg. Ele combina
em alto nível formação histórica, experiência política e conhecimento
jurídico. Suas confissões políticas foram publicadas em seu famoso
livro De statu imperii Germanici ad Laelium fratrem Dominium
Trezolani liberun us, sob o pesudônimo de Severinius de Capítulo 7
Monzanbano, Genova, 1667. O Sagrado Império Romano-
Germânico apareceu para ele como um monstro. A Constituição
do Império parecia contradizer inteira~ente todas as exigências
naturais. Universalidade da moeda, liberdade de transporte e de
Hobbes e Spinoza
comércio, reforma judicial, todas lhe pareciam necessárias, porém
sua introdução era impossível sem o estabelecimento de um poder
central fi e por parte do príncipe. Para poder satisfazer os interesses
da -urguesia em asc~nsão, ele tornou-se o jurista do des12otismo
eselar-6Gi4G, e seu mestre, Q grande elejtgrado. já bayia concordada
cmn-Hatalha..fulal ~QPtra os Estados e extçqninado os poderes
ffiteimMiários entre eàadão e &tido.
Í AANl Nt UMANN • 18

~~!IM~Ha~~J!n~do a qual a introdução do


ério do Direito maten e a justificação racio-
al e secular do Esta o evam necessariamente a consequências
volucionárias, pode ser claramente demonstrada no sistema de
lobbes; embora Hobbes geralmente seja considerado imune con-
quaisquer tendências revolucionárias1•
Para um período iluminista, Hobbes surgiu como um segun-
c.l MaquiaveF. Seu único objetivo seria a fundação do puro deSQo:_
· mo, e toda a pequena burguesia o olhava com sentimentos confuso~.
A de-se mesmo dizer que ªjtadiciooal teoria política liberal ingle-
a envergonhou-se com o a~ecimento de Hob~ Uma t.al intet,-
retação está bem fora de moda, ao menos desde o livro do Toennies,
ifflt3i:cssiooant.c que ela tenha um dia surgido, porgue é muito
ificil que outra teoria política tenha sido formulada com tanta
clareza e; eyatidão quanto aguela de Hobbes.

7.1 .1.

Na primeira parte deste trabalho já apresentamos o conceito


de dir · oi desenvolvido na teoria do Estado de Hobbes.
Essa noção de direito não passa de uma formulação JUfl ca e a
concepção de oberam . Vimos que nas citações transcritas
anteriormente o direito a arece somente como ~, e não
necessariamente como 'fltio assim, a lei e o llisto são idênticos, e o
direito e o Estado são ordens idênticas. A interpretação ma.is comum

FEUERBACH, Paul )ohann Anselmm . Anti-Hobbes, 1798; TOENNl5, Ferdinand.


Thomas Hobbes, Leben und Lehre, 3ª ed.; HÕNIG5WALD, Richard . Hobbes
und die Staatsphi/osophie, Munich, 1924; Z. Lubiensky, Die Crundlagen des
ethisch-politischen Systems von Hobbes, Munich, 1932; LIP5, Julius. Die
Stellung des Thomas Hobbes zu den politischen Partaien der grossen englischen
RevoluUon, Leipzig, 1927; LAIRD, John . Hobbes, London, 1934; VAUGHAN,
C. 1. Studies in the History of Political Thought before and after Raousseau, vol.
I, Manchester, 1925, p. 25 e ss.; Th e English Works of Thoma s Hobbes,
Molesworht (ed.), London, 1839 e ss.
2 Cf. FEUERBACH. Anti-Hobbes, p. 3.
184- 0 I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 185

de Hobbes sustenta que não há direito em seu sistema fora do que os homens não pudessem retirar-se de sua jurisdição: "A Lei
Estado - que o Estado é o único criador do direito, que pode decidir da Natureza é um preceito ou norma geral, estabelecido pela razão,
sozinho o que é certo e o que é errado, que o próprio Estado não mediante o qual se proíbe a um homem fazer algo destrutivo
pode causar mal algum, que a obediência às leis do Estado precede contra sua própria vida"5 • Isso implica, porém, que seu direito
em importância todos os deveres da consciência3 - que falta, de natural seja determinado materialmente, pois sua tarefa central
fato, qualquer forma de direito natural. consiste na conservação do homem. Em consonância com o direito
Tais interpretações, contudo, erram na medida em que exage- natural, tais medidas e açPes servem para a realização desse fim ,~
ram indevidamente certas tendências em seu sistema - e será nossa tado ' ela rim eira vez ·ustificado racio-
~\ tarefa mostrar que áiste na teoria de Hobbes um direito natural almente. Apenas Esta , ape~n~a!.:s~~ orwm !il<.
eiUJ-w;;....w"1..iJ.1.1.l.IJ;.l
, ' e fato e ue a teoria a arentemente monista é, na verda:'.° coercitivo central extremamente forte, a paz e a segurança podem
de, uma teoria dualista, assim como todas as teorias urguesas. Ao ser mantidas e a vida humana ser asse~rada. No estado de
invés de uma incoerência imediata entre direito positivo e direito natureza os homens são lobos. O estado de natureza consiste na
natural, no lugar de uma dedução direta do direito a partir do guerra de todos contra todos. Dessa justificação do Estado se segue
E tado há um direito natural servindo de limite à soberania abs:- que deve haver algtiII!a limitação indireta da esfera da soberania
d0 Es.mdo. 12ois o direito natural exige a conservação da vida
s;
hum-a~ e a lei do Estada não &e ~oilfurrna a tai~ exigências,
qual dos dois direitos terá precedência - direito natural ou direito
F'esitilW? O próprio Hobbes se declara a favor da precedência &;
7.1.2. direito natural, implicitamente abandonando assim seu conceito
político de direito. Seu primeiro direito natural é: "Todo homem
Hobbes diferencia claramente direito natural e direito deve esforçar-se por alcançar a paz", e se isso se mostrar impossível,
"po.r.._quaisquer meios temos qye nos defend:r". Para garantir a
paz temos de "tta.nsferi.r...r,.g_ta,.is-Q.H:ejros como ~
COflSt!-orassem nm pedaço da bumanidack:' 6• Além disso, quinze
direitos naturais eternos e imutáveis postulam que os homens
têm obrigação de transferir seus direitos ao Estado, de mante
promessas, etc. Mas como esses ireitos naturais podem ser
-sesee:~~~§.S<.l~~il!l~a2.SD.Y:!;~i..1,S~~~!Q..!!!!~t2_!~~~
realizados se os ens realmente são o ? Como as mensagens
Na sua visão, o · ito '-concebi do uer validade em um tal
e.validade. não poderia ser alterada. Na verdade ele delineou o mundo? Por exemplo: "Age como se fosse motivado por isso"?
direito natural a partir dos instintos básicos dos homens, de modo Essa objeção contra Hobbes já foi levantada por Rousseau7 • Se

3 Por exemplo, SCHMITT, Ca rl. Die Diktatur, 2ª ed. Munich e Leipzig, 1928, 5 Ibidem, Ili.XIV, p. 117.
p. 22-3; FOSTER, M. B. The Political Phi/osophie of Plato and Hegel, Oxford, 6 Ibidem, Ili.XIV, p. 11 7-8.
1935, p. 147. 7 Cf. seu fragmento "L'État de Guerre", que está presente em VAUGHAN . Political
4 HOBBES, Thomas. Levia than, Molesworht (ed.), Ili.XVI, p. 147. Writings of Rousseau, vol. 1, p. 305.
186 - Ü I MPÉRIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 187

essas normas do direito natural têm precedência sobre o direito fluenciada pelas concepções medievais, embora nenhum outro
positivo, o direito estatutário, embora, a fim de ter validade, não ornem tenha contribuído tanto na destruição da dominação es-
deixe de ser calculado para auxiliar a preservação da vida humana, olástica. Ao invés disso, ele é capaz de usar, em toda sua exten-
na verdade opera contrariamente a esse princípio? Sua resposta, são, todas as armas forjadas pelos escolásticos para romper com
que de um modo geral nós já antecipamos, é a seguinte: "As regras sua própria supremacia12.
que não protegem o próprio corpo humano são vazias"8• Desse Temos de admitir, portanto, que seu~consi­
princípio básico ele infere certas consequências concretas. Ninguém derado um sistema de normas materiais, colocou-se acima do Es-
"é obrigado a confessar um crime". Ninguém é obrigado a matar a tado,..qu...e seu conteúdo é a preservação da vida humana. e que por_
si mesmo ou a outra pessoa. A compulsão universal para servir ao c~asegHiate g pgdeE do Estado é )jmitado por um forte direito
exército é ilegítima. na-1:ttral; "Se o soberano ordenar a um homem, mesmo que justa-
Ao tratar do problema da delimitação da esfera da sobera- mente condenado, que se mate, se fira ou se mutile a si mesmo;
nia, o modo com que Hobbes abandona sua clareza usual é carac- 01.up1e não resista aos que o atacarem, ou que se abstenha de usar
t~stica. Ele claramente postula o dever de obediência a todas as os alimentos, o ar, os medicamentos. ou 011tras coisas sem as quais
leºs posit:iyas por parte dos cidadãos. Mas às vezes ele abandona não poderá yiyer, esse homem tem a liberdade de desobedecer"13 .
essa obediência incondicional e che a a formula ões bem va as, Ele não responde à questão sobre o que está entendendo por "ou-
tais como: "A Lei da Natureza sempre obriga na consciência oro tras coisas" que~~pe~:v~ vida. Aqui, bem como no
interno), mas nem sempre infaro externo"9 • A frase "nem sempre" problema da ~o ~' Hobbes é abandonado
implica que o direito natural obriga às vezes in faro externo, de por sua clareza usual de eQPosj ~ão. A frase "outras coisas sem as
modo que o postulado de obediência incondicional é confronta- quais não poderá viver" poderia estar aberta a muitas interoreta-
do com o postulado antagônico de um direito de resistência. çÇ>es Ela pode ser tão amplamente interpretada a ponto de incluir
Aqueles aspectos vagos e contraditórios presentes no sistema de uase todos os elementos socialistas no sistema do djrejto naOJ[lll.
Hobbes, que se multiplicaram na literatura sobre o assunto 10, são Nossa afirmação de que o postulado que restringe a esfera da so-
füistoricamente incompreensíveis. É verdade que ele sustenta com berania por I}!eio do direito material deve levar necessariamente à
veemência a criação de um pod~r estatal forte, parecendo-lhe ne- desintegração do status quo aplica-se igualmente a Hobbes.
cessário, de um modo quase tão veemente, recusar o caráter pr_§-
-estatal da liberdade e da propriedade, os quais ele considerav!.. 7.1.3.
e o elo..Estado 11 : ele não quer
fazer do Estado algo que vá além de u viatã ue ~ygra tu@.. Soma-se a isso o fato de que a função desintegradora da
.Ainda_mais, sua teoria ética e política continuou fortemente in- justificação racionalista do poder coercitivo do Estado e do direito
cl d aramente indicada no sistema de Hobbes. Esse fenômeno
foi descrito diversas vezes. No conflito em torno do problema
8 HO BBES. Leviathan, Ili. XV, p. 145. de saber se o Estado é criação de Deus ou da "natureza humana",
9 Ibidem , Ili.XV, p. 145.
1O LUBI ENSKY. Crundlagen, p. 179-85; JAGER, Georg. " Ursprung der modernen
Staatswissenschaft und die Anfan ge des modernen Staates". ln : Archiv für
Ceschichte der Phi/osophie, VI. XIV, p. 570; LAIRD. Hobbes, p. 205. 12 LAIRD. Hobbes, p. 57-9.
11 HO BBES. Leviathan, Ili. XVIII, p. 165 . HOBBES. Leviathan, Ili.XX I, p. 204.
188 - Ü IMPffilO DO ÜIREITO
FRANZ NEUMANN - 189

esta última é, historicamente falando, sem dúvida a explicação "O direito natural ~ vai de Grotius a Kruit é umª fundação
mais progressista; mas ambas as explicações são igualme~ festífica para a revolução"17 • Obviamente o objetivo de Hobbes
~as. Ambas ocultam a verdadeira causa da origem ~ não consiste em justificar a monarquia absoluta; ninguém que
~o 14 • A j · 1ca ão individualista da ideolo ·a ·usnaturalista tivesse lido se s chegaria a uma tal conclusão. Ele pretende
p sui uma dinâmica ue como foi demonstrada por Gierke 1 , nstituir a utonomi do eróprio Estado independentemente
jâ-fui ghservada por um contemporâneo de o es, o n das ações das forças sociais e dos conflitos em seu interior. Tenha
Frw:lrich H orn ) em seu ]jy rn Politjcorum 1Pars architectorum=:ie
ai.3;itate (Traj.a.Rh. ,- 1964)16 • Horn já havia tentado provar o
caráter imanentemente revolucionário da teoria hobbesiana. E
> le-íicado do lado da monarQuia mi da reyolucão. seu objetivo era
1 penas o triunfo do dualismo dos monarchomachs. Essa intenção
ncontra sua expressão mais clara na escolha dos termos, na aguda
-
Freidrich Julius Stahl, que em seu livro Sobre os partidos atuais divisão entre soberania e o portador da soberania (Estado igual a
no Estado e na Igreja {Berlim, 1883) divide os partidos políticos "bem-comum"). Todas as suas definições abrem a possibilidade
entre aq.ueles com desejos conservadores e aqi1eles que desejal!,1 e.. nm Estado pão monárg.uico; desse modo, quando
a-.revolução, tenta provar que todos os partidos revolucionári~
~ tê.m...cG.AAYõe5 bem pbé~as ç9m Q direjtg paturaJ e geralmen;ç_
p.ossuem um traço individualista. Em ~ontraste, ele afirma que ~ der soherapo" 19 , ele pnnca abdi cou da cgp 5cjêgcj3 da
os partidos conser1 ores e~ecem algo superior ao homem, nee&ss.i~ de de justificação da 5n p rem 3çia d9nlt&tado epquanw
algo que obriga, i condicionalmerite, uma ordem dada or D s, ai , e não de um de seus órgãos. A possibilidade de uma
que-se-coloca purciJna.. a-voi:itad &-pQl 1Qj e ele cai;açterizª QS interpretação revolucionária de Hobbes induziu alguns teóricos20
p evolucionários como ccgw::: "Essa é uma revolução considerá-lo desr · como um artidário dos Ro .
que procura opor a sociedade civil ao estado de natureza, e com 1
Isso, contudo, na é verdade . Na realidade, Hobbes sempre
isso visa libertar os homens de todas as tradi ões do direito e olocou sua.,consciêncra a ·sposição do poder político mais forte
costumes,...r.eduzir a.sociedad~~m-rudenada a lHft ea9s grigjnª1 du momento 22 • Ele experienciou a Grande Rebelião em que,
e l'êtit:ar desse_ e e uais é medida a durante a Jura entre g s partjdos g próprio Estado est eve em peósg
m so · . Trata-se de uma revolução para destruir todo o de dissoluçâQ23 • P w ecia para ele. portapto. Qlle uma ordem juádica
corpo público do Estado, toda a ordem moral da nação, e não enquanto tal era boa. independentemente de suas fun~ões na vida.
deixar nada, exceto os direitos e a segurança mútua dos ociª1 das pessoas e sem consideração da subestrutura social que
indivíduos. Por fim, faz parte da essência da revolução negar a e]a preservava. Suas visões, que, contudo, não foram trazidas até
autoridade do poder em seu direto próprio, encontrando-a na
vontade do povo".
17 STAHL, F. J. Über die gegenwiirtigen Parteien in Staat und Kirche, Berlin, 1883,
p. 23.
14 Cf. HORKHEIMER, Max. Anfange der bürgelichen Geschichtsphilosophie, 18 HOBBES, Thomas. Philosophical Rudiments, Molesworth (ed.), 11.CXIV, p. 183.
Stuutgart, 1930, p. 56. 19 Idem , A Dialogue, Molesworth (ed.), VI, p. 26.
15 VON GIERKE, Otto. Althusius, 2ª ed., Breslau, 1902, p. 70. 20 Cf. LIPS. Stellung.
16 J. F. Horn, aparentemente o mais importante crítico contemporâneo de Hobbes, 21 Ibidem, p. 46-7.
nem mesmo é mencionado no trabalho de J. A. Thomas, "Some contemporary 22 HORKHEIMER. Anfiinge, p. 39.
critics of Hobbes", Economica, 1929, p. 185 e ss. 23 LASKI, H. J. State in Theory and Pracüce, p. 18.
190 - Ü I MP~RI O DO DIREITO F RANZ N EUMANN - 191

sua conclusão lógica, surgiram no período em que "devem ter mesmo tempo instituiu definitivamente aquele órgão do Estado
dado aos amantes da segurança a mesma sensação de vertigem que o representa. Mas mesmo ness~ caso um direito democrático
que foi produzida em nossos dias pelo bolchevismo"24 • de...deposis;ãG aã9 pode ser excluído, como G. P. Gooch observou
-.....L . soberania do Estado está baseada na necessidade - aquela corretMUente: "Sua teoria do contrato não fechm1 a porta para a
[:elo monarca, contudo na conveniência~ A necessidade rehelião"29• Hobbes deduz a inadmissibilidade de uma =;
de uma maquinaria s atal fort , cent;ral e coercitiya consiste. de na .forma de governo o contrato de sujeição que todos assumem
fat-0 ue sem o contrato de sujeição sobre o ual o Estado fo. entie-si. Ele acusa de mentirosos aqueles que pretendem justifi-
iado uia rev eceria: "Pois antes da constituição do po- car o direito de resistência com referência a um contrato com
der soberano( ... ) todos os homens tinham o direito de fazer qual- D eus: "Essa pretensão de um pacto com Deus é uma mentira tão
quer coisa, o que necessariamente causaria a guerra: por essa razão, evidente mesmo naqueles que a defendem com sua própria cons-
sua propriedade é necessária para a paz e depende do poder sobe- ciência, que não se trata de um ato fruto de uma disposição ape-
rano para preservar a paz pública"25 • As grandes vantagens e des- nas injusta, mas também de uma vil e improvável"3º. Também
vantagens de uma monarq1úa baseada na conveniência consistem, estão errados aqueles que declaram que a soberania pode ser con-
~cada; el:s .estão en:ados porqu~ o soberano "não faz um pacto
cohmdo ue "qual uer súdito pode ser privado de tudo que
possui-( ~ eria melhor isso acontecei; on tom seu sudito anteapadamente . Ele não pode fechar qualquer

- -•·"-'LU.L~as.sembleia"26 •
Se o Estado se apoia num contrat
considerar o caso de um ç@..oom o direito na
é possível, sem
, constituir
contrato com o povo como um todo, porque o povo como uma
unidade não existe. No lugar dessa oposição a um direito demo-
crático de resistência o sistema provê um grau de democracia, e
H obbes seria o último a recusar seus direitos. O fato de que o
o d<M:L de obediência por parte dos cida aos para prever uma Estado é fundado no contrato de todos com todos implica a exis-
qmdança na forma de goverqo? Ou seja, como é possível excl\Iir
tência original da democracia: ".Agueles gue se reuniram com a
um direito de resistência baseado não no direito natural, mas na
intenção de eàgir uma cidade estavam quase a formular o verda
democracia? Por que não é permitido ao povo repudiar o contra-
de.iro ato de produzir uma democracia, pois na medida em que
to, ou ao menos privar o soberano de seus direitos e de seu poder, eles se reYnifam mhmtaáaroente, deveriam ser obrigados a (;b
1

e e~ .em seu lngat? 1:-º


responder essas questões decisi- se~rar o que foj determ jpado pela maioria; enquanto esse acord;
vas ~scila, tal como foi mostrado cl~amente por Frédéric
durou eert0s dias ou deslocou-se para certos lugares, tratou-se
A tge2 7• Em De Corpore Político, e no De Cive2 8, Hobbes avanÇa a
'clarameftte da rJ1m9wi..i2; pois aquele acordo, cuja vontade é a
~ a teoria da tradução, a renúncia definitiva dos direitos dos
vtnitade de todos os cjdadãos. porta a autoridade suprema"31. -
sildi!os na criação da so erania. o eviathan, por outro lado, o
A democracia é, assim, "por necessidade", a primeira forma
contrato que estabeleceu o poder representativo do Estado ao
de governo, "porque uma aristocracia e uma monarquia requerem
pessoas que concordem que um acordo tem de consistir (... ) no
24 CARRIT, E. F. Morais and Politics, p. 32-3 .
25 HO BBES. Leviathan, Ili.XVIII, p. 165.
26 Ibidem, Ili.XIX, p. 175. 29 GOOCH. G. P. Political Theory, p. 48.
27 ATGER, F. Essay sur l'Histoire des Doctrines du Contrat Social, 1906, p. 176. 30 HOBBES. Leviathan, Ili.XVIII , p. 160.
28 Oe Corpore PoliUco (li. 1.23.3); Oe Cive (1 1.5.6). 31 Idem , Philosophiçal Rudments, li, p. 96.
192 - Ü I MP~RI O DO ÜIREITO FRANZ N EUMANN - 193

consentimento da maioria; e quando os votos da maior parte abar- utros"33 . Não se concebe, contudo, a existência dessa liberdade
carem os votos do resto, há na verdade democracia"32 • tes do Estadoj embora ele ytja clara mente.que sem um pad, r
Portanto, não é uma surpresa que seu trabalho, juntamente st~ta l forte as relações de propriedade, tal como as coRheceu. n,!2
com aqueles de Bellarmine e Buchanan, tenha sido queimado em (lQderiam ser garantidas 34•
Oxford em 1683. Não surpreende que os partidos políticos te-
nham suspeitado dele durante os conflitos, e que Clarendon o 7.2. SPINOZA
tenha descrito para Charles II como se segue: "Eu nunca li um
JKretJmt-Qj;i.,.r..,stado de Spinoza, especialmente a relação entre
livro que contivesse tanta sedição, traição e impiedade".
oberania e liberdade é assunto de interpretações diametralmente
J No trabalho de Hobbes devem ser encontrados todos os ele- divergentes . e36 vê em Spinoza o re.preseptante de um p'M0-
l'mentos consti_mintes de um Estado e de uma sociedade burgueses. • stado absolutista que não reconhece gualguer esfera de liberdade
Toennies mostrou que a livre competição corresponde à sua teoriá ara o indivíduo. A afirmação d ·~ - ais direitos subjetivos
do bellum omnum contra omnes. Contudo, sua noção de uma com- é nomeada por ele como a série de sofisma . MenzeP7, por
etição violenta e destrutiva consiste numa forte oposição àquele outro lado, afirma que os ili!;eitos dos homens dificilmente fo ram
da r mais..claramepte defipjdçs do qye no TratqdLJeológjro-.paliticcr, e
tenham partido do máximo da igualdade competitiva. Hobbes &r Frederick Po!lodcª n;j,jta wda afirmação que atà™ii a Spinwa
ma a igualdade aproximada de todos os indivíduos no estado de
um.Estado ahsgh1tjspi e chega &conclusões similares às de M em cl.
natureza. Apenas ao assumir uma tal hipótese lhe foi possível de-
Aqui e ali também é afirmado (por exemplo, nos trabalhos de
senvolver a soberania a partir da competição. Assim como na teoria
Eckstein) que SR-inoza é um teórico do direito natural, reconhecendo
competição entre competidores iguais de Adam Smith, a sobe-
ade.
. ser eri ·da somente ao se admitir uma tal hi ótese.
Hobbes criou o caráter básic o · , ·o (Machtstaat)
burguês, uma esfera enorme ae soberania absolu . Todos que
33 Idem, Levianthan, Ili, p. 199.
acreditam que -G-Ksta<àe-9~ve-&M-um Estada nega.t~o, 34 Idem, E/em ., IV, p. 84.
:fraee;-eu-m~G-fu:.tício,.+a ractecizará a teorja dr H obbes com.o 35 DUFF, Robert A. Spinoza's PoliUca/ and Ethical Philosophy, Glasgow, 1903; Sir
POLLO CK, Frederi ck. Spinoza, H is Life and Ph ilosophy, Lo nd on, 1889;
~~exemplo, fu scjstas e reformadores sociais. Isso, ECKSTEIN, W. Zur Lehre vom Staatsvertrag bei Spinoza, Zeitschrift für ôffentliche
contudo,~. Ao postular urp poder central forte do Estajp Recht, va i. XIII, 1933; ECKSTEIN, W. Die rechtsphilosophische Lehre des Spinoza
im Zusammenhang mit seiner allgemainen Philosophie, Archiv für Rechts - und
~le-tiimbém exigiu simultaneamente uma esfera de liherdage Wirtschaftsphilosophie, vol. 26, 1933; M ENZEL, Ado lf. Beitrage zur Geschichte
econômica e cultura] para o cidadão individual: "A liberdade de der Staatslehre, Vienn a e Lei pzig, 1929; VAUG HA N, C. F. Studies in the
H istory of Political Thought before and after Roussea u, vo l. 1, M ancjester,
vender e, de todo modo, fazer contratos com ~ outro, o direito 1935, p. 62 e ss.; Spin oza, Tratactus Teologico-p oliticus (TIP), 1670; idem,
Tratatus Politicus (TP) (Opera. Van Vlooten & Land, 3' ed., 19 13). (Pa ra a
de escolher seu próprio domicílio, seu próprio modo de vida e tradução em português usaremos as seguintes edi ções: Trata do po lítico. ln:
educar seus filhos como eles mesmos pensam fazê-lo , entre Spinoza, Coleção O s Pensadores. Tradução de M anuel de Castro. São Pa ul o:
Abril, 1973; Tratado teológico-p olíUco. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São
Paulo: M artins Fontes, 2003).
36 GIERKE-BAKER, l , p. 11 2.
37 M ENZEL. Beitrage, p. 375.
32 Idem, De Corpore PoliUco, IV.li , p. 138. 38 POLLOCK. Spinoza, p. 292 .
194 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 195

Como são possíveis tais contradições? A interpretação de ão aquelas de uma sqciologia livre de juízos de valor, ou seja, de
Menzel me parece incorreta. Girke está parcialmente correto, caráter não normativo. Essa afirmação geralmente é baseada em seu
contudo apenas parcialmente; porque além da teoria do Estado rograma científico, que ele formulou desse modo. Enquanto outros
absolutista, há em Spinoza uma _Eeoria da legitimidade do factual lamentaram ou. derivaram as qualidades humanas louvando-as ou>
~9de justjfü;ar toda...possAA;l RU?Pce entre OS extremos Cfu rep.reendendo-as, ele quis entendê-las do mesmo modo que con-
· ar · gimdo ~ distribuição factual do templaria um problema matemático. Ele quis, com suas próprias
poder entre o Estado e a sociedade. Ainda mais, nós não atribuímc?s palavras, considerar as ações humanas exatamente como se tivesse
qualquer significado decisivo às mudanças na teoria do Estado de lidando com linhas, planos e corpos geométrico~de que as
Spinoza. No 'ITP (public ·ssão da liberdade é matemáticas não contêm afirmações de um ~"· O que
aparentemente desejável e ora não sejaobrigatón No TP(1660) normalmente se chama direito natural não contém em si tais normas,
a lihudade...é mencinoada apegas ocas10 ente. A razão disso mas sim as afinnações pertencentes à categoria de existência. a saber.
resid como Menzel mostrou em vários lugares de forma nttoolas relacionadas às caraçteá5tjç,a5 do estada de n21J rez,a e .à
1

SQtl 39 na m dan d ·ma -o olítica da Holanda ue emergência do Estado ag sair dessa condicão. Contudo, sua teoria
.ocorreu durante esse período. A amizade de Spinoza com Jan de do Estado não é sociológica. Suas leis são, apesar dessa afirmação,
Witt é bem conhecida. Este último foi um membro do Partido afirmações pertencentes à categoria da essência e não da existência,
Rw~no, que representava principalmente os interesses
de mgdo que~ se pode e~r diferenças entre ele e
istocrata;::>e era hostil em relação à Guilherme de Orange e aos
represen_tantes do Estado. Em 1672, Louis XIV invade a Holan&;°
Hebbes. Pois s~n;do direito natul: ou melhor. do esrad 0 de..
natw."eza-, 'llJP em si mesma e composta de afirma~ões pertencent:e.s.
cai o governo republicano, há um levante popular e o amigo de à esfera do "ser", tem no inteáor de seu sistema apenas a função de
Spinoza, J an de Witt, é assassinado nos arredores de sua própria mos~ aqaela~ pressnpasições que de-i~m ser ftfll't!Sefltadas para se
casa. Menzel relaciona a esse assassinato o fato de que no TP o justificar G poder coerritjyo do Estado; na verdade, para adequar.P
postulado da soberania do Estado é ainda mais enfático do que foi consetiti.meAtG dos homens à fonna do Estado.
no 'ITP. Porém, mesmo ad itindo-se · parece não haver umíl
diferença decisiva entre o TTP e o TP. &:19 contrário, tpdas as ideias 7.2.2.
qúe-se-eaJ;Ontram expressas ºº TPjá hayiam sido urenunciadas ng
TXP, de modo que a essência dessa atitude não se modificou. O estado de natureza é caracterizado pela liberdade com-
pleta e pela igualdade factual ent.r homens. No estado
7.2.1.
de natureza os homens não são bri ados pela le" O direito natu-
ral do estado....de natun:za peunite que todo jndjyíduo se esforce
Sua derivação da soberania do Estado é semelhante àquela
sem nenhuma outra considera ão exceto aquela
de Hobbes.
.que ele tomrn1 para si mesmo. A todos os homens é permiti o
O estado de natureza é caracterizado como a ausência de agir de acordo com seus desejos e inclinações, sejam eles tolos,
normas éticas. Isso, contudo, não significa que suas afirmações insanos ou saudáveis. Tudo que o homem faz, ele o faz por força
de um direito natural. Pois a natureza não é guiada pela razão
39 MENZEL. Beitrage, p. 282 e ss.
humana, a qual visa somente o benefício do homem e sua preser-
196 • Ü I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 197

vação. No cosmos, o homem é somente um modus, guiado pela trato, portanto, cada um transfere toda sua liberdade para o Esta-
necessidade de agir da forma como de fato age 40 • do, de modo que o EstadQ.-.Obtém soberania absoluta sobre oy
Os homens que se encontram no estado de natureza, tipica- homens. Esse poder soberano não é limitado por quaisquer leis.
mente livres e iguais apenas factualmente, não estão submetidos a odas estão sob obrigação de obedecer ao soberano. Ao estabel;-
qualquer outro poder. Eles são, portanto, sui juris e não alienus erem o contrato todas as partes se colocam inteiramente à dispo-
juris41 • Ele entende por alienusjuris todos os homens vivendo sob i~o do Estado. Desse modo, tendo agido como requeriu a razão

um poder exterior (potestas). Porém, uma vez que o estado de • a necessidade, agora eles estão absolutamente compelidos a obe-
natureza é_governado por meio do conflito, e a luta deve terminar decer aos comandos do soberano. por mais absurdos gue possam
na-m!~ão de alguns, ao invés de conquistar uma autonomia e1. Se eles i:e recusam a obedecer, tornar-se-ão inimigos públi?os
'\>típi.Ga,-o homem, no estado de natureza, se torna alienus juris e"l agindo contra a razão 44 •
~ aos outros homens.

an leva os homens ao Est do, ou


seja, à formação de m contrato Nessa medida, sua construção é
quase inteiramente idêntica à de~s. Contra isso, tem sido
dito que a diferença decisimi rnsiàiria fl6 fare àe EfYG R.a teoria dt:
Heàbês-o contrato é o elemento constitutivo do Estado. a ação
'ivaluntária dos homens, enquanto na teoria de Spinoza os homc;_~s c;omando gg so~emA.o. Q.<ki reguum só pode exist.H aka'AÍs do
são lev:rdos ao ~sta4e pela necessidade do djrejto natural. de modo edium do poder soberano As lejg di 1 cinas são válidas não sew 1 ª
m_
de os comanEios de Deus, mas apenas por meio dp medium da
soberafti.a t;11mp~mu45 .
A justiça e a injustiça, portanto, são possíveis somente no
Estado 46 •

44 TTP, cap. XIV.


45 TTP, cap. XIX: "Para que os ensinamentos da reta razão, ou seja (...) os próprios
ensi namentos de Deus, tivessem absoluta força de lei, foi preciso que cada um
O homem recebe segurança apenas do Estado. Apenas com renunciasse ao seu direito natural e que todos o transferissem para alguns, ou
para um só. Então é que su rgiram, pela primeira vez, as noções de justiça,
a ajuda do Estado os homens odem ad uirir seus direitos. Ape- injustiça, equidade e iniquidade. A justiça, por consegui nte, tal como todos os
nas o Estado exclui a força cega do estado de natureza . o con- ensi namentos da reta razão, incluindo a caridade para com o próximo, só
assume força de lei e de mandamento em virtude do poder político, isto é (...) da
decisão exclusiva daqueles que detêm a soberania. E como o reino de Deus,
conforme já demonstrei, consiste unicamente na imposição lega l da justiça e da
caridade, ou seja, da verdadeira religião, resulta, como pretendíamos, que Deus
40 Cf. SPINOZA. Opera, vol. 3.
não exerce nenhum rei nado sobre os homens a não ser através daqueles que
41 TP, Xl30. 11, p. 9-11.
exercem o poder político" .
42 Menzel, contra Gierke, Althusius (2ª ed., p. 343; 3ª ed., p. 379-80).
46 TP, li. 18; "Vê-se claramente, pelo que aca bamos de demonstrar neste capítulo,
43 TTP, cap. XIV.
que no estado natural não há a noção de pecado" .
198 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO F RANZ N EUMANN - 199

V}' Sua noção de direito é, por isso, a noção política47 • à natureza da atividade do Estado. Pelo contrário. Em inúmeras
A afirmação de que os contratos devem ser cumpridos não é passagens ele fome e recomendações sobre o conteúdo do exercí-
válida, por:tanto_,,.,ao.estado de nanu:eza . Ela é válida somente como cio~~~:i:a~L.e..s.aJtm::_a.;figo~r:!]mgJai!_QQO~W..ao ssas recomendações,
uma parte do ~ito positivo do Estado. A propriedade é igual- ontudo, tal COillQ devem ser aferidas repetidamente. especial-
meate-.apenas uma categoria do dífeito positivo. O estado de na- mente co11tra MeHZel, são Qfl&nas tee&meftàti~ faltan do ql!!1-
eza não conhece qualquer propriedade. Nessa condição, toêfos q1:1eF--tllemeato de institucionalizacão.
possuem somente o que po em conquistar pela força bruta48 • *
A razão do Estado tem precedência sobre qualquer coisa. O recomenda que a dominação do Estado não deveria
direito supremo do Estado é seu próprio bem49 • O Estado pode er s . meta Os homens não d~ se.r..mai:lti.dos sob mndições
violar seus próprios princípios se o bem comum assim o deman- de t~rror, mas deveriam ser libertados do terror, de modo a viverem da
~~o .. ~ ~stado, ~ss~, transfo~a to~os os homens de s~i juris a forma- ealizar sua ljberciade; pois o
4/ieni ;urzs.J) pro_pno Estado e tão livre quanto eram livres os o é a liberda Sempre que somente através
.h_omens no estado de natureza51 • Desse modo, no que concerne à ssa ser intimidado e-
extensão da esfera da soberania do Estado, Spinoza yai bem além · se falar ne ente de ausê · d e
d,e Hobbes. Nesse ponto ele só é se ·d0 por Rousseau, contudo positivamente de 1mz. A Raz não é so~~as é antes a
GQ!!1 uma diferença fundamental Rousseau, como veremos adiaÕte, vontade de seguir com satisfação os oomandos do Estad 52 • Um Es-
postula s ente uma soberania condicionalmente absoluta para tado cuj e ende da inércia de seus 'dadã.os ••o.n dnfam.de.que
o ,Estado. ou seja, somente se ela tiver uma certa estrutura po '~ · dos como rebanho, ode ser considerado mais
(de~ · ll; ~~pa rn Rousseau apepa§ a forma política come um estado de solidão do cpie propcamente cama um Esta-
d o e u subestru oci ntem a 'usteza do exercício do53. Contudo, m · arte do que seu desejo entusiástico por uma
d ania d E t do. Spinoza, contudo, concede soberania coincidência e tre vontad do Estapo e agµela dos indi~duos; @seu
absoluta para todo Esta sem considera ão de sua estrutura ceticis~o à possibiliciade de se reªlizar esse ideal Segundo
p2!f_tica e de sua subestrutura social. de, nenhum Estado cuja manutenção depende da fé é segyro54•
mel
A sujeição dos cidadãos à obediência absoluta em Spinoza,
contudo, não implica que ele seja indiferente à estrutura política
52 TP, V.2: " Conhece-se, facilmente, qua l é a condição de qualquer Estado
considerando o fim em vista do qual um estado civil se funda; este fim não é
senão a paz e a segurança da vida. Por conseguinte, o melhor governo é
47 TP, IV.5: "Vemos, portanto, em que sentido se pode dizer que a cidade está aquele sob o qual os homens passam a sua vida em concórdia e aquele cujas
submetida às leis e pode pecar; se por leis se entende a legislação civi l, o que leis são observadas sem violação"
pode ser reivindicado em virtude dessa legislação, e por pecado o que ela 53 TP, V.4: "Se num a cidade os súditos não tomam as armas porque estão
proíbe, isto é, se tomarmos estas pa lavras no sentido próprio, não podemos de dominados pelo terror, deve-se di zer, não é aí que reina a paz, mas, antes, que
modo algum dizer que a cidade seja obrigada pelas leis ou possa pecar {... ) a guerra aí não reina. A paz, com efeito, não é a simples ausência da guerra, é
Quanto à legislação civil, depende apenas do decreto da cidade{ ... )" . uma virtude que tem a sua origem na força da alma, pois que a obediência é
uma vontade constante de fazer o que, segu ndo o direito com um da cidade,
48 TP, 11.23: "Mas tudo é de todos, isto é, cada um tem direito na medida em que deve ser feito. Uma cidade, é preciso dizê-lo ai nda, em que a paz é efeito da
possui poder". inércia dos súditos conduzidos como um rebanho e form ados unicamente na
49 TP, 111.1 6. servidão, merece mais o nome de solidão que o de cidade".
50 TP, IV.5 . 54 TP, 1.6: " Um Estado cuja sa lvação depende da lealdade de algumas pessoas {...)
51 TP, IV.5. não terá qualquer estabilidade".
200 • Ü I MP~RI O DO DIREITO F RANZ N EUMANN - 201

* uma recomendação. A paixão com que ele faz tais recomendações


Suas recomendações com relação à estrutura política sofre- não lhes atribui um caráter absoluto.
ram uma mudança que foi mencionada por Menzel. Nos seus
últimos anos ele adv_Qgç_u_abertamente em favor da aristocracia.
No ITP, apesar disso, ele deu preferência à d~cia por duas
i'aWes. Por um lado, na democracia cada um é obediente á si A distribuição das sferas da soberaru e da liberdade é, de
mesmo 55 , "de modo que cada um obedeça a si mesmo e não aos oord0-G9m Spj noza. idêntica à ·stn uição de poder entre Esta-
seus semelhantes"~or--& lado, a democracia é a que mais do. . e indivíduo Csgcjedade). A potentia essoa, ou seja, o
se aproxima do estado de naturez 56 : "Democratia maxime ad der sobre o mundo que confere · eito natur é uma função
4atum natura/em ~tl"~ monarquia absoluta foi rejeitada, do poder efetiva do Fstaà 0 EJ:ttC se eotoea-à-àispesiç-00 daqn e]íi
embora em sua opinião esta seja mais duradoura do que gu»J- pe.s.s_oa. Todas, pot:.tailto, têm tanto direito guanto possuem po-
f}Uer autg_ t orma de Estado 57 • A monarquia constitucional, em d f. Ao t!*t:reer 0 fM;)de r unis soberano o Estado tem, assim~­
1 -

qu~av-emante está sujeito ao direito. e o direito é a vontade


'

bém o di:reito Hrftis Bttf'l'@Hlo. Os jnd jyíduos possuem tanto direito


d i mas nem toda vo e do rei , · deve ser quantõ sãe eapazes de dispor de poW:r6º.
, el em rela ão à manar ui ab ~oluta58 • O postulado de Se, contudo, o Q é igual ao ~' segue-se aparente-
uma partilha de poder pelo onci tu transforma o monarca, mente que, exceto em limites bem espeoocos, aão se pode fazer
com.suas ideias constit11cionais ••praticameore no-mei:o.xulto de serções universais quanto à relas;ão entre soberania e liberdade;.
.!!._m rei. Por aristocracia ele entende aquela forma de Estado em ssa teoria justifica inteiramente, de acordo com a distribuição exís-
que o poder vig ·do por pessoas selecionadas 59 • Se a t nte do poder, tod~ntre os extremos do absolutismo e d~
dominação está ~a no dir~ , mesmo se em consequência mar_quismo. O único limite universal da soberania, e portanto a
de •ti s oucos têm o, nica esfera existente de liberdade que pode pretender universali,:
podemos falar somente de democracia. e pãçde arjstoçracia. Sua dade, é determinado vela impossibilidade de regular os fenômenos
concepção de democracia abrange, desse modo, aquela forma de icos com qual.Qµ er tivo de interferência externa e, portanto. po
g~ demo or aristocracia e seu lítica.. Consequentemente, todos aqueles casos que ele menciona
~louv or f)elMem6<!r-aei~M'Qcce spQJJde; à sua posição política, e é, mo limite da soberania do Estado encontram-se sob essa catego-
de fato. um p, , ico da aristocracia. .a. da liberriade jnaljeníjyel do pensamento e do sentimento61 •
Sua teoria dos fins e da forma do Estado é, contudo, como Se ele identifica o · · s do oder do Estado com o limite da
deve ser constantemente repetido, desenvolvida somente como , a ponto de o Estado

,o Cf. DUFF. Spinoza, p. 146 e ss., e TTP, XVI; TP, 11 .4: " Por direi to natural,
55 TTP, V. portanto, entendo as própri as leis ou regras da Natu reza segundo as quais
56 TTP, XX. tudo acon tece, isto é, o próprio poder da Natureza. Por conseguinte, o direi to
natural da Natureza inteira, e consequentemente de cada indivíduo, estende-
57 TP, Vl .4.
-se até onde va i su a capaci dade, e porta nto tudo o que faz um homem,
58 TP, Vl l. 1: " Um Estado monárquico deve, para ser estável, estar ordenado de ta l seguindo as leis da sua própria natureza, é em virtude de um direito natural
forma que tudo nele seja feito apenas por decreto do rei, mas não que toda a soberano, e tem sobre a Natureza ta nto direito quanto poder".
vontade do rei tenha força de lei". llÍ Pa ra um a formul ação semelhante, cf. PUFEND O RF. Elementorum, 1., def.
59 TP, Vlll.1 . Xlll .19, anteriormente citado.
202 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 203

não ter poder quando seus cidadãos não podem ser compelidos a Estado. Porém, essa vontade do .g_overnante, por seu 111rna, se segue..
obedecer, seja por ameaça ou por recompensa62 , ~o significa ape~ de....motivos heterônomos. Essa afirmação, contudo, não contém
~ue os súditos têm essencialmente liberdade sobre seu pe~to qualquer tipo de limitação para o poder do Estado, a menos que se
J; seu sentimento. Se for possível compeli-los a qüãlquer outra coisa, impute a Spinoza um otimismo bastante banal. Trata-se antes de
a fronteira que ·ele erige é praticamente inexpressiva. Isso é apresen- uma justificação do absolutismo do Estado, pois mesmo a tirania é
tado em todos os seus exemplos. como no caso em que njngnéq;i justa, uma vez que ela é uma parte da natureza.
pode ser forçado a amar um homem gue se odeia63 ; ou aquele e~ *
gue a alma é livr · ele só pode conceber uma liberdade de
A segunda objeção geralmente está apoiada em sua famosa
ºP™º• e não a liberdad para s gpressar a opinião. Mas de arta a Jelles 66 • Nela ele escreve: "No que concerne à política, a
acordo com sua teoria, mesmo esta liberdade interna de sentir e pe.o.;
diferença entre Hobbes e eu, a respeito do q.ual você pergyRta,
sârpoderia-ser-retraícla e-fesStl-fl@SsB.re.ldescohrir &Qffi noyos instl],l.- onsiste no fato de que eu realmente mantenho.intacto o dirMt:o
rtrentos-es-eq11Íllalên · a al. De modo que o poder supremo em um Estado não tem
Essa fraca concepção em relação à reconhecida esfera de li- mais-àtrcito sobre ttm 6Ú.dito do cpie é propo'ÓQRal ao pad?r
berdade individual é contradita por sua defesa apaixonada pela por meio do qual o torna superior aos outros súditos. É isso ~e
liberdade de opinião. Ele lutou contra toda restrição dessa liber- empr!f.5encontra no estado de natureza". Essa passagem deixa
dade64, e advogou veementemente e.til..1'~[rJd~!t.!j~~l.O...ts:ll@ü.;. aro que el, nãQ enti:oge por direito natural um jus naturae
65
mas no TP tratou a enas incidentalmente desses assuntos. e. m um conteúdo imodificável. A senten a apenas confirma
ual uer a

*
Três objeções podem ser le,vantadas contra essa interpretação.
Finalmente, ele considera como uma mera teoria a constru-
* o segundo a qual o homem, ao fumar o cgptra to cede todos os
No Capítulo IV do TI'P, ele afirma ser falso sustentar que o us direitos ao Estado, porque ninguém poderia transferir tanto
dir"{!~sitil'o do Estado, cp1e é o exercício da soberanifu poderia po.c.to de deixar de ser um 5er bumago67 •
ser arbitrário, pois am\.eles homens p e são os instrumentos da ati.- Mas o que constitui um ser humano? A resposta é fornecida
'Viàadtw:la Estacio também são uma parte da naturezàPortanto, ele o Capítulo XX de TTP, é somente a liberdade da alma, somen-
exige que nós deveríamos não somente investigar as causas mais 1 a liberdade da vida interior. Pois nesse capítulo ele nota que
íntimas de suas ações, mas cqnsiderar a interdependência das cau-
sas-em-toda a pmçeli~oque se desdobra no mundo. Pode ser verda-
de que a vontade do governante seja a causa m~s íntima da lei do Cf. WOLF (ed.), The correspondence of Spinoza, London, 1928, Epist. 50.
TTP, XVII : " Por mais que a doutrina apresentada no capítulo anterior, em torno
do direito absoluto das autoridades soberanas e do direito natura l do indivíduo
que para elas é transferido, seja compatível com a prática, e por mais que esta
62 TP, 111.8. possa estar regul amentada de maneira que se aproxime cada vez mais de tal
63 TP, 111.10. doutrina, é, todavia, impossível que em muitos aspectos ela não seja mera
64 TTP, VII . teoria. Ninguém, com efeito, pode alguma vez transferir para outrem seu poder
65 TTP, VII. e, consequentemente, o seu direito, a ponto de renunciar a ser um homem" .
204 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 205

democracia. Isso pode ser notado no seu tratamento do problema


do sui juris e do alieni juris, um fato para o qual Manzel voltou sua
atenção. Todos os homens são alienijuris no Estado porque o Estado
é o único senhor71, mas essa falta de liberdade só acontece em relação
ao Estado. Nada é mencionado sobre a relação mútua entre os
cidadãos. Nessa relação certos grupos de homens sempre são alieni
juris em relação a outros grupos, quando contam somente com sua
capacidade física ou psíquica para viver, como, por exemplo, a esposa
os filhos estão sujeitos ao patria potestas, e os criados estão sujeitos
ao potestas do senhor. Enquanto viverem sob o poder externo,
também não é permitida igualdade política72 a esses grupos de
homens que vivem sob o poder externo, na medida em que são
alienijuris. Se forem capazes de romper com essa dominação, eles se
tornam livres e iguais73 • Segundo essa proposição, a noção de
igualdade política que serve de base para a democracia é
arbitrariamente restrita a certos grupos de cidadãos, de acordo,
contudo, com sua posição social e com a convicção de seus
ontemporâneos.\§ua teoria da estrutura política do Estado é
socialmente a construção típica das classes de proprietári~ Isso se
7.2.5. torna ainda mais claro qttllftdo de wnsideta stta s\igtistáQ ~omo
valendo par:1 e gerdcio da sOOerania No Capítulo V do TTP ele
Por essa razão, sua teoria tem uma dupla face; e nesse caso, descreve a sociedade ideal fundada na divisão do trabalho, na troca
nos opomos fortemente a toda interpretação da teoria do direito de àe-mercad~rias e na ajuda mótua; uma sociedade qµ e se toma Estado
Spinoza sobre o Estado. Ao dualismo do absolutismo estatal de PQt. meio da instituição de normas jurídicas obrigatórias. Nesse
um lado, e à teoria da legitimidade do factual de outro lado, capítulo ele postula decisivamente a liberdade de comércio. Essa
corresponde o dualismo de interesses que ele representa. O Estado
é absoluto com a finalidade de manter a segurança, que, para ele,
enquanto burguês, parece ser o bem supremo. V rmos, contudo, 71 TP, 111.5: "Vemos, portanto, que cada cidadão depende não de si mesmo, mas
que ele não é indiferente ao conteúdo do exercício da soberania e à da cidade, das injunções às quais é obrigado a obedecer".
estrutura política do Estado. Às recomendações já mencionadas 72 TP, Xl.3: " Pelo que precede, é man ifesto que podemos conceber diversos
gêneros de democracia; o meu desígnio não é falar ?e todos, mas de .me cing'.r
devemos adicionar algumas outras. Mencionamos que não há em ao regime em que todos os que são governados unicamente pelas leis d~ pais
não estão de forma alguma sob a domin ação de um outro, e vivem
suas obras a ménor indicação de que Spinoza aderiu à ideia da honrosamente, possuem o direito do sufrágio na assembleia suprema e têm
acesso aos cargos públicos".
73 TP, 11.9: "Segue-se, do que precede, que cada qual está na dependência de um
68 TP, 111.10. outro na medida em que está no poder desse outro, e que pode repudiar
69 TP, 111.10. qualquer violência, castigar como julgar bem o dano que lhe é causado e, de
70 VAUGHAN. Studies, p. 79. uma maneira geral, viver segu ndo a sua própria compleição".
206 • Ü I MP~RIO DO ÜiREITO

atitude em direção ao problema do comércio é fortemente


determinada pela sua amizade com os irmãos de La Court, cujas
perspectivas são citadas com aprovação no TP4 •
O Estado forte, portanto, implica a dominação política pela
burguesia, e garante a livre troca de mercadorias. Contudo, contra
um Estado que não realize esse objetivo social e político, há de fato
um direito de revolução que se segue de sua proposição da identi-
dade entre direito e poder. Essa teoria da legitimidade do factual
serve, num primeiro momento, para esmagar o poder do povo, o
qual é bem compreensível que ele odeie. Na sua visão, os plebeus
não deveriam gozar de proteção do Estado, pois já possuem a van-
tagem de ser em grande número. Pelo contrário, o Estado não de- Capítulo 8
veria se proteger contra esse grande número, e assim o faz ao ceder
alguns cargos oficiais aos plebeus 75 • A proposição que diz que o
direito se iguala ao poder serve, num segundo momento, para com-
bater o perigo da monarquia. Em suma, a teoria da legitimidade do JohnLocke
factual é a teoria da classe dominante, e é assim uma teoria conser-
vadora· mas a ui ela se toma a teoria da o osi ão o

74 TP, Vlll. 21.


75 TP, VIII. 4-6, 13-14.
FRANZ N EUMANN - 209

8.1.

Um dos postulados da teoria política de John Locke é o da


segurança da liberdade dos indivíduos frente ao Estado, a qual é
concebida como existindo antes do Estado1 • Mas apresentar ape-
nas esse elemento de sua teoria política significa oferecer uma
interpretação incompleta e parcial. Assim como é certo o fato de
que ele estendeu a esfera de liberdade individual frente à sobera-
nia do Estado, é certo também que ele constituiu urna esfera de
soberania estatal que de modo algum é insignificante. É verdade
que a palavra "soberania" não aparece em seus escritos; mas esse
fato não nos leva a assumir que ele ignorava a realidade.
Seu ponto de partida2 é a identidade da lei da razão com a
lei da natureza, que é declarada como sendo urna parte do direito
divino. Este direito divino é percebido pela razão: "A razão é a
revelação natural por meio da qual o Pai Eterno de luz e fonte de
todo conhecimento comunica à humanidade aquela porção de
verdade que Ele depositou no escopo das faculdades naturais"3 •
O direito natural se aplica a todos. Seu conteúdo é a proibi-
ção de autodestruição, a igualdade dos homens e a proibição para
que ninguém maltrate seu vizinho, nem sua vida, sua liberdade,
u sua saúde. Aquele que viola esses princípios não vive de acordo
com as leis da razão e, por isso, deve ser punido4 •
Como s os teóricos do direito natural e rocura construir
\ln:@ esfera de liberdade contra o Estado? ele parte de urna oraçao
,

LOCKE, John . Of Civil Government, Two Treatises; BASTIDE, Charles. John


Locke, 1907; BOURNE, H . R. Fox. The Life of John Locke, London, 1876;
LASKI, Harold J. Politica/ Thought in EngÍand from Locke to Bentham; LARKIN,
Pashal. Property in the 1Bth Century with Special Reference to England and
Locke, Cork, 1930; VAUGHAN, C. E. Studies in Political Thought, vol. 1, p.
130 e ss. (Para as citações em português do "Segundo Tratado", utilizaremos a
edição de Locke. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes,
2001, tradução de Julio Fischer).
Cf. o cap. sobre Tomás de Aquino.
LOCKE, Thomas. Essay Concerning Human Understanding, Livro LV, cap. IX.
li, cap. Ili, 19.
210 - Ü I MP~R I O DO ÜIREITO
FRANZ N EUMANN - 211

positiva da natureza humana, e assume a harmonia universal entre o introdução do Império do Direito material de um lado, e pela
r \ interesse individual e o interesse comum. Sua descrição do estado de paração de poderes do outro.
\'J natureza contém uma crítica implícita a Hobbes. Ele escreve sempre
com os olhos voltados para Hobbes5. O estado natural é um estado
de paz, boa vontade, ajuda mútua e preservação6• Mas a questão que
surge então é a de por que em tais circunstâncias o surgimento do Concordando com Hooker, Locke postula o Império do
Estado é necessário. O Estado é justificado exatamente como na ireito material. Apenas o direito deve imperar, e o direito é o
teoria de Hobbes; ou seja, ele existe para excluir a possibilidade de overno do povo9 • O Império do Direito material implica pri-
conflitos violentos, para preservar os direitos da liberdade natural e meiramente que o poder legislativo não pode dispor arbitraria-
para proteger a propriedade. Estes são os motivos para o surgimento mente das vidas e da propriedade dos indivíduos 10 • Aplicando as
do contrato social7 • A propriedade, contudo, não significa somente velhas categorias do direito privado, ele conclui, em oposição ao
um poder sobre as coisas, mas inclui também a liberdade individual direito romano, que ninguém pode transferir mais direitos do
e a proteção do cotpo. Essa propriedade já existe no estado de natureza8• que possui. Assim como o estado de natureza não dá às pessoas o
....i Portanto, ela não é criada pelo Estado, como é o caso nas teorias de direito de afetar a liberdade e a propriedade, então eles também
w obbes, Spinoza e Rousseau; trate-se antes de um direito anteric;>r não podem transferir tal poder ao Estado 11 • Da restrição da sobe-
ao Estadq. Desse modo, os principais elementos do estado de natureza rania do Estado descrita acima frente à propriedade, segue-se que
são mantidos mesmo depois da criação do Estado. O estado natural é inadmissível aumentar os impostos sem o consentimento do
não é inteiramente reposto pela sociedade civil, como no caso das povo ou dos órgãos representativos 12• A ideia da proteção da pro-
teorias absolutistas; ele é antes apenas limitado pela sociedade civil; e
istu...s._ó ocorre na medida em que tal limitação parece ser necessária
-para a proteção do cerne remanescente do estado natural Nos termos li, cap. XI, 134: "Sendo o principal objetivo da entrada dos homens em sociedade
o desfrutar de suas propriedades e m paz e segurança, e estando o princ ipa l
d()s-proc · tos ·urídicos isso si · ca que existe aí um pressu sto instrumento para ta l nas leis estabelecidas naquela sociedade, a lei positiva primeira
e fundamental de todas as sociedades políti cas é o estabelecimento do poder
legaJ.- para a existência do estado de natureza em como contra _g_ legislativo - já que a lei natural primeira e fundamental, destinada a governar até
-poder coercitiyo do Estado. mesmo o próprio legislativo, consiste na conservação da sociedade e (até onde
seja compatível com o bem público) de qua lquer um de seus integrantes. Esse
Se, porém, o objetivo do contrato social é preservar o estado legislativo é não apenas o poder supremo da sociedade política, como também é
sagrado e ina lterável nas mãos em que a com unidade o tenha antes depositado".
de natureza o quanto for possível, parece necessário limitar a so-
1O li, cap. XI, 135: "Embora o legislativo, quer colocado nas mãos de um, quer de
berania do Estado que nasce do próprio contrato social, com a mais, quer esteja sempre em fun ção, quer funcionando em intervalos, constitua
finalidade de prever um antagonismo presente na razão de ser o poder supremo de cada sociedade política, não obstante, em primeiro lugar,
não é, nem pode ser em absol uto, arbitrário sobre a vida e os haveres do povo".
(raison d 'être) do contrato social. Esta limitação é alcançada se- 11 li, cap. XI, 135: "Pois ninguém pode transferir a outrem mais poder do que ele
gun~o dois fatores, um material e um institucional; ou seja, pela próprio possui; e ninguém dispõe de um poder a rbitrá rio abso lu to sobre si
mesmo, ou sobre quem quer que seja, para destruir sua própria vida ou tomar
a vida ou a propriedade de outrem".
12 li, ca p. XI, 140: "Contudo, será medi ante o seu próprio consentimento, ou
seja, o co nse nt ime nto da ma io ri a, dado di re ta me nte ou a tra vés dos
5 VAUGHAN . Political Thought, p. 131. representantes por e la esco lhidos; pois, se alguém arrogar-se um poder de
6 li, cap. Ili, 19. impor e co letar tributos junto ao povo por sua própri a autoridade, e sem esse
7 li, cap. li, 11 ; também li, cap. V, 34; li, cap. XI, 134-7; li, cap. XVI, 183 . consentimento do povo, estará violando, com esse ato, a lei fundamental da
8 li, ca p. V, 27. propriedade e subvertendo o fim do governo".
212 - Ü I MP~RIO DO Ü IREITO
F RANZ NEUMANN - 213

priedade é tão forte que na sua perspectiva embora os soldados


O poder legislativo sempre está nas mãos do parlamento. Uma
sejam obrigados a obedecer mesmo às ordens mais desesperadas
delegação deste poder legislativo para outros órgãos lhe parece inad-
de seu superior, este não pode interferir mesmo que seja num
missível, pois o povo não transferiu um direito correspondente18 •
pequeno punhado de sua propriedade 13 •
s poderes executivo e legislativo derivam do poder legislativo, e
Parece que para Locke uma tal limitação do direito positivo o legitimamente unidos por um lado, embora sejam distintos por
do Estado pelo direito natural pode ser realizado somente se o outro lado. Pois ambos necessitam de poder, e está fora de questão
direito positivo possuir o caráter de uma norma geral14 • Por "leis olocar o poder do Estado em várias mãos19 • Geralmente adota-se a
permanentes" ele entende as normas gerais, tal como mostra sua visão de que na teoria de Locke não há distinção real entre poder
citação de Hooker15 • executivo e federativo 20 • Veremos depois, contudo, que esta obje-

~
Essa obrigação do Estado em exercer seu governo apenas ão contra Locke não é válida, mas que o poder federativo desem-
através de normas gerais que sejam reconciliáveis com a ratio é penha uma certa função distinta em seu sistema. O Império do
válida, em sua visão, para toda forma de governo, mesmo para Direito material é suficientemente institucionalizado pelo reco-
uma democracia 16 • nhecimento de um direito de resistência. Nós analisaremos isto
mais tarde. Contudo, o que acontece se descobríssemos repentina-
8.3. mente que nem todos os homens são bons; que, às vezes, eles são
"mascates ávidos, tiranos violentos, rebeldes"21 ? Em geral, deve-se
A segurança organizada para o Império do Direito material lembrar daquilo que o próprio Locke admitiu de forma bem im-
contra o direito positivo é alcançada pela instituição da separação prudente, a saber, que o direito positivo é sempre somente uma
de poderes, que implica que a legislação tem precedência frente imagem bem incompleta do direito natural22 •
aos outros dois poderes 17• Todos os outros elementos de sua teoria
Finalmente, o Estado não existe isoladamente. Ele existe em
do Estado e do direito são deduzidos desses princípios básicos.
comunidade com outros Estados. Em face da guerra, é impossível
considerar o estado de natureza entre os Estados como um paraíso.
13 li, cap. XI, 139: "Vemos, todavia, que nem o sa rgento, que poderia ordenar a
um soldado marchar até a boca de um canhão ou posta r-se em uma brecha, 8.4.
onde quase certamente perecerá, pode ordenar ao so ldado que lhe dê um
vi ntém do seu dinheiro".
14 11, cap. XII, 144: " Porém, como as leis elaboradas de imediato e em pouco
Estas três objeções são tratadas por Locke a partir da insti-
tempo têm força consta nte e duradou ra (... )". tuição da prerrogativa. Por prerrogativa ele entende o direito do
15 A citação de Hooker ocorre no cap. XI, 136.
16 li, cap. XI, 137: " Por conseguinte, seja qual for a forma da sociedade política,
o poder que exerce o mando deve governar segundo leis expressas e acatadas,
e não por ditames extemporâneos e resoluções indeterminadas. Do contrá rio,
os ho mens se encontrarão em condi ção mu ito pior do que no estado de 18 li, cap. XI, 141: " Não pode o legislaUvo transferir o p oder de elaborar leis para
natureza, por terem armado um ou alguns homens com o poder conjunto de outras mãos, poi s, não sendo ele senão um poder delegado pelo povo, aq ueles
uma multidão, para forçá-los a obedecer a seu bel-prazer aos ilim itados e que o detêm não podem transmiti-lo a outros".
exo rb itantes decretos de seus pensa mentos repentinos ou sua s vontades 19 li, cap. XII, 148: " Embora, com já di sse, os poderes executivo e federativo de
desenfreadas e até então desconhecidas, sem terem estabelecido qu aisquer toda a sociedade política sejam rea lmente di stintos entre si , dificilmente podem
med idas capazes de orientar e justificar-lhes as ações".
17 ser separados e depositados, ao mesmo tempo, nas mãos de pessoas diferentes".
11, cap. XI, 134: " Esse legislaUvo é não apenas o poder supremo da sociedade
20 Para uma visão geral sobre essa questão, cf. LASKI. PoliUcal Thought, p. 40.
política, como também é sagrado e inalterável nas mãos em que a comun idade
o tenha antes deposi tado". 21 VAU GHAN . Politica l Thought, p. 169.
22 li, cap. VIII, 111.
214 - Ü I MP~RI O DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 215

poder executivo e federativo para emitir decisões individuais e 8.5.


comandos externos, mesmo que seja contra normas gerais. A prer-
rogativa é portanto um poder discricionário não regulado pelo Neste ponto temos de considerar a teoria do direito de resis-
direito 23 • O portador da prerrogativa pode, desse modo, agir sem tência [de Locke]. Este direito é admissível somente contra um
o direito, mesmo contra o direito. Não há nem mesmo a necessi- déspota. Mas quem é um déspota? O poder despótico é definido
dade de uma ação de indenização. O exercício da prerrogativa só como um poder arbitrário que priva o homem de sua vida com
é funcionalmente restringido pelo seu postulado de que deve ser base na vontade do déspota27•
utilizado em nome do bem comum. O despotismo pode ser primeiramente o resultado da con-
A soberania do Estado compreende, como vimos, duas coisas: o quista. U}Il direito de resistência sempre é concedido contra o
direito de emitir normas gerais e o direito de emitir comandos indi- ladrão28 • O despotismo pode ser, portanto, a consequência da usfu-
viduais. O antagonismo que mencionamos [acima (2.3.)] como sen- :&ção (conquista doméstica). Finalmente, o caso mais importap.~
do um antagonismo possível é excluído por Locl<.e por meio de sua te de despotismo é a tirania. Por tirania ele entende o exercício do
afirmação da precedência do poder de emitir comandos individuais poder s espondente29 • Esse tirano é, por isso,
antes do poder de promulgar normas gerais 24 • As razões comple- um rannus uoad exerciti . Mesmo James I, que ele cita..Jl9
mentares para o reconhecimento do poder ijUe detém a prerrogativa ca11ítulo vn, expressrn1 a visão de que o rei pode agir somente de
são, de acordo com Locl<.e, a imprevisibilidade de eventos futuros eei:do com a lei, e toma-se um tirano sempre que abandona o
pelo-legislati:vera-rigidez das noITQas gerais. gµe quando aplicacfu.s direit~0 • O direito de resistência é admitido então contra um tal

com-s~Y-tigor podem frequentemente ter um efeito injusto; e o fato ó ode ser tada com violência31• Conside-
--cl~1:1~ assemhleia.l.egislatjya nem sempre está reunida, e tcaba!b7
muito lentmne 0 te..J::m füoção do grande número de seus membros.
27 li, cap. XV, 172: "O poder despótico é o poder abso luto e arbitrário que um
A preeminência da prerrogativa frente às normas gerais é tão homem tem sobre outro, para tirar-lhe a vida quando quiser''.
28 li, cap. XVI, resumido no 196: "O resumo da questão da conquista é o segui nte:
grande que nem mes o se c ovo um direito de resis- o conqu istador, se tiver uma causa justa, tem um direito despótico sobre as
tência contra seu exercício. É permitido ao povo somente o apelo pessoas de todos aqueles que de fato ajudaram e concorreram para a guerra contra
, 2s .ntre
ao. eeu E · que exerce sua prerrogattva, e o poder
o executivo
ele, e um direito de compensar seus danos e custos com o trabalho e haveres
deles, de modo a não prejudicar o direito de mais ninguém. Sobre o resto do
legislativo, não há juiz na Terra26• povo, se houve quem não consentisse na guerra, e sobre os filhos dos próprios
cativos, ou sobre as posses de uns e de outros, não tem ele poder algum''.
29 li, cap . XVIII, 199: "Tirania é o exercício do poder além do direito, a que
ninguém pode ter direito. Consi ste ela em fazer uso do poder que alguém
tenha nas mãos não para o bem daqueles que estiverem submetidos a esse
23 É preciso chama r atenção, contudo, que em certas ci rcunstâncias ele afirma a poder, mas para sua va ntagem própria, distinta e privada''.
existência de tal limitação da prerrogativa por meio de normas gerais.
30 li, cap. XVIII, 202: "Onde termina a lei, começa a tirania , se a lei for transgredida
24 11, cap . XIV. 160: "Esse poder de agir conforme a discrição em prol do bem
para prejuízo de outrem. E todo aquele que, investido de autoridade, exceda
público, sem a prescrição da lei e por vezes até contra ela, é o que se chama
prerrogativa". o poder que lhe é conferido por lei e faça uso da força que tem sob seu
comando para impor ao súdito o que a lei não permite, deixa, com isso, de ser
25 li , cap . XIV, 168 : "E onde quer que o co rpo do povo ou cada homem
magistrado e, agi ndo sem autoridade, pode sem combatido, como qualquer
individualmente for privado de seu direito ou estiver submetido ao exercício de
~m poder sem direito ~ não tiver a quem apelar sobre a Terra, todos têm a outro homem que pela força invade o direito alheio".
liberdade de apelar aos ceus sempre que julguem ter a causa suficiente importância". 31 li, cap . XVIII, 204: "A força não se deve opor a coisa alguma, além da força
26 11, cap. Xl:V, 1~8 : " Entre um poder executivo em função com uma tal prerrogativa injusta e ilegítima; quem quer que faça qualquer oposição em qualquer outro
e um leg1slatlvo que dependa da vontade desse poder para sua reunião, não caso chama a si uma justa condenação, tanto de Deus como do homem. Assim
pode haver juiz sobre a Terra". não resultará nenhum perigo ou confusão, tal como se alega com frequência" .
216 - Ü I MP~RIO DO DIREITO
F RANZ N EUMANN - 217

ra-se que um tal direito de revolução é politicamente inofensivo e prerrogativa é a política externa, ou seja, o poder da guerra e
legalmente legítimo. Ele é politicamente inofensivo porque, se da paz, a decisão das ligas e alianças 34 • Ao invés do significado
alguns indivíduos oferecem resistência, seu ato não destrói a esta- extraordinário da política externa para a vida do Estado, sua
bilidade do Estado. Se, contudo, o ato do tirano atinge a maioria conduta pode ser baseada somente de um modo muito limitado
das pessoas, ou se a injúria causada a um indivíduo é tão impor- em normas precedentes ou em normas gerais abstratas; porque
tante a ponto de ser sentida pela maioria das pessoas, então a a implantação da política externa depende em grande medida
revolução toma-se um fato consumado que, em qualquer caso, das ações de outros países que não podem ser previstas35 • A
não pode ser prevenido 32• esfera da política externa é assim aquela de uma avaliação
O argumento jurídico para o direito de revolução está fun- plenamente gratuita.
dado ·sobre a visão de que quem exerce a violência sem a lei coloca A distinção entre o poder federativo, dominado pela prerro-
a si mesmo em estado de guerra com a sociedade: e para a justifi- gativa, e do poder executivo não é somente inexplicável, mas é
cação de um tal direito revolucionário é citado até Barclay, o qual condicional, com base no caráter imperialista do sistema político
considera a autodefesa uma parte da lei da natureza33 • de Locke. Sabemos que o absolutismo de Charles II e de James
A questão que surge agora consiste em saber como tal direi- II, juntamente com sua intolerância religiosa, levou a um conflito
to de resistência pode ser reconciliado com o reconhecimento do crescente com as colônias americanas; um conflito que atingiu
poder que detém a prerrogativa. Já vimos que a resistência não seu clímax em 16 uando Massachusetts aboliu a Carta. Ape-
pode-sê1!-a4mitida-oontra a exercÍcjo dâ prerrogativa. Mas pode- nas a revolução 1689 u ossível uma so .e
mos aprende da esto1tnra dessa teoá a Q,Ye um direito de resis- flito, ley:rnda à restauração do autogoverno colonial. O próprio
, é ad ·ssível contra o direito de prerrogativa quando o Locke colocou-se conscjepteweute do lado da tradição jmperia-
lista_iniciada por Cromwell, o primeiro imperialista consciente e..
que-fei,-além..Gisso,.seguida por Charles II e !ames II. Durante o
período de vida de Lock~cia econômica e financeira
'Enrontr-ama~.t .guinte distribuição das esferas das colônias tomara-se árda vez mais eviden . O próprio Locke
'--aa-t@c::n:i Locke. via-se IJ.gado a essa tendência impen sta evido a interesses e
5 exões pessoais. Durante um certo tempo ele foi parceiro de
8.6. Sir W. Colleton nos negócios do Bahama Street36 • Sua amizade

Encontramos primeiramente uma esfera de soberania


incontestável do Estado, cuja característica coincide com a esfera 34 li, cap. XII, 146: " Este contém, portanto, o poder de guerra e paz, d ~ firmar
de competência do poder federativo. A esfera específica da ligas e promover ali anças e todas as transações com todas as sociedades
políticas externas e, se alguém quiser, pode cha má-lo de federativo. Sendo
entendida a questão, o nome é indiferente".
35 li, cap. XII, 147: "E embora esse poder federativo, bem ou mal gerido, possa ser
de grande importânci a para a sociedade política, é muito menos passível de
32 11, cap. XVIII, 208 e 209.
ser dirigido por leis antecedentes, fi xas e positivas que o executivo e, por isso,
33 li, cap. XIX, 232, 233 a 239: " Naquilo que não tem nenhuma autoridade ele deve necessariamen te ser deixado à prudên cia e à sabedori a daqueles em
não é rei e é possível resistir-lhe. Pois onde quer que a autoridade cessa, o rei cujas mãos se encontra, para ser gerido em favor do bem público".
cessa também e toma-se como os outros homens que não têm autoridade".
36 Cf. BOURNE, Fax. Life, vai. 1, p. 292 e 311.
218 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 219

com o conde de Petersburgo também é bastante conhecida37• Sua de, não há garantia alguma contra tal interferência. A extensão do
hostilidade em relação à França veio à tona diversas vezes 38• poder executivo deve ser tolerada em nome da segurança do bem
A essa esfera de soberania indiscutível do Estado - a esfera da comum contra eventos imprevisíveis. Locke poderia conceder um
prerrogativa - também pertence uma parte do poder executivo; ou tal poder tão amplo ao executivo porque ele mesmo tinha grande
seja, na medida em que o poder executivo parece ser necessário para fé no novo monarca, Guilherme de Orange.
a manutenção do Estado burguês recém-nascido. Já vimos que os
comandos do executivo que não se baseiam em normas gerais, 8.8.
emitidos até contra a ordem jurídica existente, são admissíveis
Finalmente, a terceira esfera corresponde àquela do direito
quando dirigidos para o bem da comunidade39 • Concretamente,
material que garante a liberdade. É sem dúvida verdade que essa
para Locke, o bem da comunidade, em seu aspecto político, era a
esfera possui a mais ampla extensão. O conteúdo do direito ma-
manutenção do império de Guilherme de Orange e a ruína de toda
terial é suficientemente concretizado, e é institucionalizado por
tentativa jacobina de restauração; e, socialmente, a manutenção da
meio do direito de resistência.

~
ordem existente da propriedade. Na-medida em que tais medidas
irulividua:is--sep,ciam a esses dois fins, na cabeça de Locke isso O postulado do Império do Direito material está relaciona-
sígn.ificava-ia~tit:..o poder eyegrtiyo com a prerrogativa. - do à subestrutura social de uma propriedade de pequena e média
escala distribuída de uma forma relativamente equitativa. O di-
8.7. reito material serve à manutenção da distribuição da proprieda-
de. Somente a ausência de monopólios, ou seja, a igualdade relativa
Entre a soberania, de um lado, e o Império do Direito, do das posses, toma possível o governo através de normas gerais. Va-
outro lado, Locke reconhece uma segunda esfera que chamare- mos agora somente tocar neste problema, deixando para depois

~
mos esfera da discrição. Qyando o executivo age prescindindo, ou uma abordagem mais completa. Se o legislador é confrontado
mesmo contra o direito positivo, há neste caso a possibilidade de com uns poucos monopólios, ele é compelido a ter recursos para
abuso de poder. A extensão deste ,abuso do executivo pode leyar_ regulações individuais. Se, contudo, numa economia de livre com-
áo-i:kspotismo, frente ao qual se pode resistir. Porém se não há petição, ele se defronta com uma multiplicidade de unidades re-
despotismo,...was som,en.tÇ.J,YD. uso equivocado do poder execug- lativamente uniformes, deve promulgar normas gerais se quiser
ve, º" melhor, se as a_ç- · ainda adem ser reconci- tratar desse problema com todas estas unidades de forma equita-
liaàa be · ade resta aos cidadãos apenas o tiva. Locke entende por propriedade as propriedades de pequena
1ssão de e média escala, e também força de trabalho. Por força de trabalho,
ontudo, ele entende não aquela do trabalhador manual depen-
ela do em resário ca itali 40 • Essa
i:esários capitalista juntamente com a nobreza, a
alta classe e o clero, consotui "o povo". O trabalhador não tem
37 Cf. Ibidem, vol. 1, p. 508.
38 Cf. BASTIDE, Charles. John Locke, p. 132.
39 li, cap. XIV, 161: " Esse poder, enquanto for empregado para benefício da
comu nidade e confonne aos encargos e fins do governo, é uma prerrogativa 40 LARKIN. Property, p. 67, e ainda BEER, M. History of British Socialism, London,
acima de qualquer dúvida, e nunca é questionado". 1929, vol. 1, p. 192-3.
220 - Ü IMP~RIO DO ÜIREITO
FRANZ NEUMANN - 221

lugar no sistema [de Locke]. Mesmo o interesse do pobre não homens de negócio e os industrialistas apressaram-se em "trocar o
recebe qualquer atenção; e quando rejeita a escravidão 41 , ele se perigo do negócio pelo prazer da vida do campo"44 •
apressa em inserir na Constituição fondamental da Carolina (Art.
O poder legislativo dispõe principalmente de uma classe re-
) 110) a sentença: "Todo homem livre da Carolina deve ter poder lativamente unida. Ela está distribuída entre a alta classe, os co-
absoluto e autoridade sobre seus escravos negros, não importa qual merciantes e a aristocracia, de um lado, e de outro o rei, que por
seja sua opinião ou religião"42 • Larkin notou que "na visão de Locke sua vez mantém relações estreitas com a cidade. A composição da
sobre o Estado não deveria existir pessoas destituídas de proprie- Casa dos Comuns tal como foi apresentada por Edward e Annie
dade. Mas ele não se acostJwiou com todas as implicações de sua Porritt reflete a composição das classes economicamente domi-
....afionaç-ª.9" 43 • A-dinâmica psicológica da repetição da teoria ck nantes. Após o século XVII deu-se a entrada dos negociantes,
.boek-e-m0sa=a, cono1da, que ela poderia muito bem se tomar a comerciantes, dos ourives e dos advogados, os quais criaram a ci-
base--de...um socialismo pequeno-burguês, e veremos mais tarde dade e os burgos; e isso, juntamente com o privilégio do condado
uma dinãmiea análoga na tearia kantiana do direito. ainda baseado na Lei de Forty Shilling Freeholder de 1430, dei-
No sistema de Locke o postulado do Império do Direito xou a Casa dos Comuns sob o monopólio da alta classe, dos co-
material possui, assim, uma função tripla, tal como acontecerá merciantes, industrialistas, e seus agentes pagos, os advogados; de
depois no período do liberalismo. Devemos analisar agora estes modo que o aparato legislativo pudesse se guiar ditado por seus
três ( spectos centrais do siste~a ~beral do direito. .. interesses, ou, antes, evitar que aquele agisse por conta própria.
\Opostulado tem,.~iro lugar, a função de estabilizar O segundo significado do postulado do Império do Direito
~ igualdade Mas essa~ que elç se refere não é aquele material consiste na função dos interesses dissimulados, que tal-
tip9-d · · e 6usca transcender as classes, mas está vez só seja mais clara na teoria kantiM direito do que na
limitwla à esfera da classe proprietária; existe igualdade dentro teoria de Locke. Ao fazer reverência a~" pode-se ocultar o
e e ela de fato existiu no tempo de Locke, bem como fato de que ~to" @ feito pelo homem; pode-se encobrir o
......... , rt . . , . fatQ de que a maioria deu conteúdo a esse "direito". O Império do
AO...pena a segum_te ate o lllicto o cap1 smo monopo sta, am-
da 'füll~~ Mesmo os antagonismos políticos no Direito significa a império da burguesia, e isso guer dizer que se
interior da :l~sse burgu~UÍfam durante esse período. Não trata do gcwerno daquela parte do povo que tem sob seu coman--
havia~nflitos e i s entre o ne ociante e o ca ital industrial, do-a propriedade-e a ednca~ão: "Besitz und Bildung", para usar a
de-U.m-lado,. pital.agi:á.ci.o, dg outro, depois de 1660. Tal frase de Kant. -
como na Prússia, não havia especialmente antagonismo social en- A terceira função do direito ~-""==~
tre classe proprietária de terras, os negócios e as finanças, mas, culável o processo de troca. Se o oder públic só pode interferir
como Guy Miege escreveu em seu Novo Estado da Inglaterra, os na libç e na ropriedade com base em normas gerais, a ma-
téria econômica é protegida contra a interferência ar itrária leva;
da a cabo sem tal autoridade. Com isso, a calculabilidade do
41 li, IV. processo de troca aumenta consideravelmente.
42 Cf. sobre suas contradições em relação à escravidão, LARKIN. Property, p.
76 e ss.
43 LARKIN. Property, p. 65.
44 Citação retirada de LARKIN, Property, p. 36.
222 - o IMPIÔRJO DO DIREITO

Locke constitui, portanto, um sistema tipicamente Whig.

~
Ele é a expressão de um genuíno liberalismo nacional. Seu siste-
ma, que não almeja conhecer a soberania, prova ser um sistema
tipicamente burguês do Estado e do direito, no qual a soberania
não se chama soberania, mas sim prerrogativa. As esferas da prer-
rogativa e da discrição tGm_am possível ao Estado implementar
uma polltica_gtem bem forte manter a ordem dentro desse
Est-ada,eliminar as_oponen«;s políticos, e especr ente se pre-
veait:-contra urna restauração jacobina. Por meio da esfera do
Imp.éri.o.Ji ireito material a osi ãodas classes economicamen-
Mam.inantes é sancionada, e os fundamentos Jurí
"simma-d.e.competição são estabelecidos.
Capítulo 9

Rousseau
FRANZ NEUMAN N - 225

9.1.

O primeiro pensador moderno a ver e solucionar o proble-


ma de uma síntese entre direito material e soberania, entre liber-
dade e governo, é Rousseau1• Seu problema consiste em solucionar
a questão de como é possível para os indivíduos tornarem-se mem-
bros de uma comunidade sem abrir mão de sua autonomia; ou
seja, como é possível realizar ao mesmo tempo o Estado e a liber-
dade, realizar a justiça material no Estado.
As interpretações de Rousseau são variadas. Às vezes ele é visto
como um anarquista, às vezes como um absolutista; às vezes a con-
sistência lógica de seu sistema é elogiada, às vezes sua teoria é consi-
derada como um certo número de contradições irreconciliáveis2.
Gostaríamos de estabelecer neste momento que Rousseau é
absolutista de Estado. Ele não reconhece qualquer esfera de
"berdade:..ffidi~dual frente ao Estado. Portanto, toda interpretação
que considera como pert:encendo à escola do iluminismo, como.i
por-eKmplo, a de Gjerke, está errada. Mas ele se distingue de todo
absolutista&e Estado anterior, tal como Hobbes, Spinoza e
~orf.i...pelo fato de gue mantém todos os direitas naturais dGs
inclivíduos..sab a égide do Estado, e isso quando se cumprem duas
condições: uma política, a realização da democracia genuína; e outra
soeial,a i:tr!izaçãa da igualdade econômjca e social. Apenas se estas
condições são cumpridas as vontades dos indivíduos não só podem

CASSIRER, Ernst. Die Philosophie der Aufkliirung, Tübingen, 1928; " Das
Problem Jean-Jacques Rousseau". Archiv für Geschichte der Philosophie, vol.
41, 1932, p. 210 e ss.; VAUGHAN , C. E. The Political Writings of J. }.
Roussea u, 2 vols., Cambridge, 1915; WRIGHT, E. H. Th e Meaning of
Rousseau, London, 1929; LASKI, Harold J. The Age of Reason : Studies in
law and Politics, London, 1932; GURVITCH, Georges. L'ldée du Droit Social,
f>aris, 1932; CARRIT, E. F. Morais and Politics, Oxford, 1935, p. 56 e ss.;
CORBAN , Alfred . Roussea u and the Modem State, London , 1934;
WOLZENDORFF, Kurt. Staatsrecht und Naturrecht in der Lehre vom
Wiederstandsrecht des Volkes gegen rechts widrige Ausübung der Staatsgewalt,
Breslau, 1916, p. 351 e ss.; SCHINZ, A. La lpensée de}. J. Rousseau, Paris,
1919; REICHE, Egon . Rousseau und das Naturrecht, Berlin, 1935.
2 Cf. a parte "Exposition of lnterpretations", CORBAN. Rousseau, p. 28 e ss.
226 - o IMPIÔRIO DO DIREITO FRANZ NEUW.NN - 227

como devem se tornar impotentes frente à vontade do Estado. Em É certo que Rousseau falou sobre a teoria da Saúde Pública
relação a todos os Estados que não realizam tais condições, Rousseau como uma "Máxima Execrável"6• Mas deduzir disso que Montagne
pode ser considerado um agnóstico, ou mesmo, em grande medida, tenha apelado eq · mente a Rousseau não me arece
um revolucionário. Isso parece claro no Contrato Social (III.10). convince.nte, porque a teoria da Saúde Pública encontra-se de forma
Ele sustenta neste ponto que o Estado dissolve a si mesmo e os mais_ou menos explícita na base de todas as teorias políticas, mesmo
cidadãos recuperam sua liberdade natural, e não são mais obrigados que se dê a ela wn outro nome Eoder-se-ia dizer ainda que Rousseau
a obedecer, se o príncipe não administra mais o Estado de acordo fora hostil com todo tipo de centralização, es ecialmente à
com a lei e usurpa a soberania3• c - o da · · t . m seu Projeto de Cons-
Neste caso, aos cidadãos é concedido novamente o direito de titui;ão para a Córsega ncontramQS a seguinte.passagem: "Ora, se
resistência. Aqui, Rousseau retoma as ideias dos monarchomachs. as cidades são preJU ciais, as capitais são ainda mais; uma capital é
A segunda concepção, que mostra que Rousseau, diferentemente um abismo onde a nação quase inteira perde seus costumes, suas
de Spinoza e Hobbes, não pode ser visto como um defensor leis, sua coragem e sua liberdade. Da capital se exala uma peste
incondicional do Estado absolutista, se segue de sua teoria da contínua que arruína e nação"".
soberania popular, pois o poyo sempre dispõe do poder do Estado, Assim, se com Aulard e Hedwig Hin , nós vemos na bri-
e-a-ins~<+.das autoridades não é µma.parte do contrato socjalr ga entre Mont e a rivalidade entre
mas de uma acão coletiva especial4 • É exatamente esta inserção de Paris-e as proiáncias, não pode bayer dúyidas sobre com quem
fatores sociais e políticos como elementos constitutivos que torna u sim atizou mais. Mesmo assim, estas objeções não pa-
extremamente problemática toda interpretação idealista de deci · . decisão sobre o relacionamento estreito entre
Rousseau, tal como a de Franz Haymann, Moritz Liepmann e
Paul Natorp, e mesmo a de Ernst Cassirer, o qual parte de
problemáticas específicas do idealismo kantiano; a antinomia entre
natureza e a solução desse antagonismo na esfera da transcendência.
Não se pode decidir aqui, contudo, se o convento estava certo Nossa interpretação trata o trabalho de Rousseau como um
bu-erraàe-ae-pretender tomar para si os en~entos de Rousseau; todo orgânico.
_mas não há dúvidas de que Rousseau exerceu sobre aquele uma
influência enorme. Porém, sua influência sobre o espírito foi muito 9.1.1.
ais importante do que sua influência na formação das institui-
..ç§es da Revolução Francesa5• sobre a Desigualdade Rousseau fornece uma aná-
'SO
lise da s · dade existe .e8 • Eu..nãa P.Osso a t Dis-
curso nada tem de teoria política, como Vaughan afirma9• Uma tal
3 "A_ di;550lu_?o do. ':5tado pode dar-se de duas formas: primeiramente, quando o
princ1pe nao admm1stra o Estado de acordo com as leis e usurpa o poder soberano".
4 ROUSSEAU. Contrato Social, Ili, 18: "Os depositários do poder executivo não 6 "Economie Politique". ln: VAUGHAN. Rousseau, vol. 1, p. 253 .
são os senhores do povo, mas seus empregados".
7 Ibidem, vol. 2, p. 307.
5 Cf., sobre a influência na Revolução, ZWEIG, Egon. Die Lehre vom Pouvoir 8 Ibidem, vol. 1, p. 126.
ConsUtuent, Tübingen, 1909, p. 72.
9 Ibidem, p. 14.
228 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 229

concepção significaria a eliminação da toda análise sociológica da nisto, criou~se~vil15 • Finalmente,º. D~scurso dispõe
teoria política, e a aceitação somente de especulações filosóficas de todas as mk!Pretações fictí"ciàs ncia do Estado.
como sua tarefa legítima. O Discurso certamente é negativo 10, as- O Esta..do não'einei:glll nê~ conguista e nem pela combina-
sim como toda análise é negativa; entretanto, a análise é a base çã e os fraco 16 ositiva de sua em7r-
indispensável, explícita ou implícita, de toda teoria política. gência, mas a ass11me; é o contrato sokii).
No Discurso, é apresentada a causa sociológica da desigualdade No Discurso, contudo, ele analisa a função social do Estado,
do homem; as razões pelas quais o homem tendeu para a sociedade que consiste em oprimir os indivíduos mais fracos, dando novos
civil No Contrato Social, por outro lado, ele mostra o caminho para poderes aos ricos, destruindo a liberdade natural e criando o di-
, . uma nova e melhor sociedade 11 • No Discurso, o próprio Rousseau se reito da propriedade privada resultando e d ·gualdades. O
coloca a tarefa de descobrir a base de uma teoria do direito natural, Estado é um instrument · "uma artimanha fu-
ou seja, da determinação da natureza dos homensu.
No Discurso, ele faz corretamente uma distinção entre os
dois elementos constitutivos da desigualdade entre os homens, o
natural ou psíquico e o moral. Ele desenvolve então uma teoria
empírica do estado àe-natur~ gue rejeita tanto a teoria do
bellu omnium contra omnes de Hobbes, bem como o ideal para-
de Locke e recoriliece o ornem como um indiví uo 1so-
latl0--qu mau "ni bon ni méchant") 13; como um
qu_e..ap.enas por m~io da socieda e pode se tornar atlvo
ou assiv . Parece claro que essa descrição do estado de natureza
é mais adequada do que qualquer uma que a tenha precedido14•
O Discurso incorpora a concepção de que a propriedade é a base
da sociedade numa famosa passagem que Anatole France usou
em seu Ilha Pingüim, segundo a qual no momento em que um
homem cercou um pedaço de terra e declarou "Isto me pertence",
e encontrou homens que eram simples o suficiente para acreditar

10 Ibidem, p. 9.
11 WRIGHT. Rousseau, p. 71 .
12 VAUGHAN. Rousseau, vol. 1, p. 137: "Sob o nome de lei os modernos
reconhecem somente uma regra prescrita a um ser moral, ou seja, inteligente, 15 VAUGHAN. Discurs, 1.169: "O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-
livre, e considerado na sua relação com os outros seres (.. .) mas se não -se a dizer: 'Isto é meu', e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar
reconhecemos o homem natural, é em vão que pretendemos determinar as leis nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil ".
que lhes são endereçadas". 16 VAUGHAN. Rousseau, vol. 1, p. 182.
13 VAUGHAN. Rousseau, vol. 1, p. 158-9. 17 Ibidem, p. 181.
14 LASKI, H. J. Poliucal Thought from Locke to Bentham, p. 59. 18 CASSIRER. Aufkliirung, p. 209.
230 - Ü IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 231

mi.nista, e que aceitou a crítica ao feudalismo e ao tradicionalis- 9.1.2.


mo; mas ao mesmo tempo seu pessimismo cultural impediu-lhe
crer numa harmonia natural do mundo. Esse tipo de pessimismo
cultural aparece nos seus dois ensaios que concorreram ao prêmio
da Academia de Dijon19• Por essa razão, Rousseau não pertence à
escola do direito natural. Uma tal interpretação nos coloca direta-
mente em oposição a Gierke, que considera Rousseau como re-
resentando o último estágio na ência dos teóricos do direito
natural20 • A hipótese central d Roussea , ~egundo a qual todos
os...conflitos são empiricamente co · onados e constituem o !!J;:
balho__da_sociedade, g distiogue de todos os outros teóricos do ,.-
..di!eit al. Essas duas afirmações têm indubitavelmente um
significaà evolucionário. Se a criatura humana é empiricamen- taneamente u e i ica o er e o er s1 ica
te corldiciona , se_a...s.ociedad u a é a causa da tirania dos dú:cito. Para estabelecer essa verdadeira comunidade em que as
h.ome.ns entre si e contra a natureza, então fica a car o da vonta e vontades individuais e a vontade geral são idênticas, em que o
dQSÀo ens decisão de a6ol.i:r essa tirania or meio de uma trans- isolamento do estado de natureza é superado em favor de uma
f'()rmàção- d a· "edade; pois Deus não pode ajudá-los. Então, realização da moralidade e da humanidade, os homens devem
mesmo o Discurso bre caminho para o postulado da destruição fazer um contrato social, o qual ó p.o r um contrato social,
da s0ci00ade ci_. e.par Temos de adicionar, ~.w.111..ai1Wi~~~~:4im~1~
· n~a~ã~
o. Através desse
contudo, que nem sua sociologia nem sua solução são aquelas do . ais ao Estado.
socialismo moderno. Ele não experienciou a revolução industrial,
tal como o fez Karl Marx depois dele. Portanto, ele não estava em
condiçã<+-<le--r-ce&ah~~r-<JU de humana era ani uilada
sob certas relações produtivas, e era substituída por necessidade· e
ue a enas a transformação destas re oes ossi · ·t a as-
s . em de uma esfera d~_necessidade ao reino da liberdade. Mes-

22 CASSIRER. Aufklarung, p. 21 O.
23 "Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema
19 "Si le rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les moeurs" direção da vontade geral e ainda recebemos cada membro como parte indivisível
e "Quelle est !'origine de l'inégalité parmi les hommes, et si elle est autorisée do todo."
par la loi naturelle:' 24 Ibidem, 1.6: "Essas cláusulas, bem entendidas, se reduzem a uma única, a
20 VON GIERKE, Otto. Althusius, 2• ed., Breslau, 1902, p. 117. saber, a alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda
21 Cf. a nota 1 do Discours. a comunidade."
232 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 233

desses limites, é inadmissível falar de Rousseau como o prota- versão do Contrato SociaP7. Segue-se, portanto, que ele não indica
gonista de um absolutismo estatal que vai muito além daquela uma limitação obrigatória do absolutismo estatal, mas somente
concepção de Spinoza e Pufendorf. Nessa medida, Gierke está expressa um desejo de que o Estado não possa assumir mais direitos
certo25 • Mas não podemos aceitar a ideia de Gierke de que a naturais do que o necessário para a realização de suas funções.
construção de Rousseau, a qual visa limitar e dirigir esse Estado Contudo, como esse desejo piedoso pertence à família de todos os
absoluto, nada mais significa do que uma série de inconsistências absolutistas de Estado, e não constitui uma limitação obrigatória
e sofismas. da atividade do Estado, segue-se que nesse aspecto Rousseau não
difere em nada de qualquer absolutista de Estado .

Sua segunda limitação da soberania reside no postulado de
que o Estado pode somente emitir leis gerais. A "vontade geral" é
àH@itos.humaaGs oóginajs ao Estado 26( • absoluta. Na mesma medida em que a natureza deu ao homem o
poder absoluto sobre seus braços e pernas, o contrato social con-
9.1.3. fere ao Estado poder absoluto sobre seus membros28 • Esta sobe-
rania é indivisível e inalienável, mas não é arbitrária, pois a vontade
geral em ato é a lei29• Isso significa que a vontade geral se expressa
somente por meio de leis gerais. Qyalquer expressão que não seja
segundo leis gerais está vetada. Aqui reside a divergência decisiva
• em relação a Locke, o qual pela instituição da prerrogativa abre o
caminho para a entrada de um poder sem constrições legais em
seu sistema, mas que geralmente é entendido como realizando o
Império do Direito. Na definição da vontade geral de Rousseau
está implicada sua atividade por meio de leis gerais 30•
Pela mesma razão que a soberania é inalienável, ela é
indivisível; porque a vontade é ou não é geral; no primei-

27 VAUGHAN. Rousseau, 11.44: "~ preciso dizer que tudo aquilo que cada um
aliena por meio do pacto social de seu poder, seus bens, de sua liberdade, é
somente a parte de tudo aquilo cujo uso é importante para a comunidade; mas
também é bom notar que o soberano é o único juiz capaz de avaliar tal
importãncia" (Contrato Social, 11.6).
28 Ibidem, 11.4: "Assim como a natureza dá a cada homem um poder absoluto
25 VON GIERKE, Otto. Althusius, p. 116-7. sobre todos os membros, o pacto social dá ao Corpo político um poder
26 ROUSSEAU . Contrato Social, 1.6: "Encontrar uma forma de associação que absoluto sobre todos os seus e é este mesmo poder que, dirigido pela vontade
defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada geral, porta, como já disse, o nome de soberania".
associado, e pela qual cada um, unido-se ao todos, não obedeça senão a si 29 Cf. Ibidem, quando ele fala da "vontade geral ou a lei".
mesmo, e permaneça tão livre quanto antes". 30 WRIGHT. Rousseau, p. 78.
234 • Q IM~RJO DO ÜiREITO
FRANZ NEUMANN • 235

ro caso, esta vontade declarada é um ato de soberania e


como a vontade que é sua fonte 35• Isso é obviamente um raciocínio
~a a lei; no segundo, é simplesmente uma vontade par- falacioso porque ele nunca prova que o bem-comum só pode ser
ticular, ou um ato de magistratura; ou, quando muito, é
realizado por leis gerais. A generalidade da lei faz referência então
um decreto. 31
a suas fontes assim como à sua validade. A formulação última pode
H~ duas proposições nessa passagem; a primeira, a de que a ser encontrada no texto final do Contrato Socia/36. Do postulado
generali~de da vontade pode se manifestar somente segundo da generalidade da lei ele deduz a inadmissibilidade das leis com
l~is-g~r.ai~egttftàa,.,a~ue as categorias de essência e existw'- efeito retroativo; pais toda lei retroativa é na verdade individual. ô's
~inci.demr-on seja,..para çjrar Christian Morgenstein, o que ob~os das leis retroativas são fatos já realizados na natureza ~ema,
n o, ~de s - de ser. "O soberano, pelo simples fato de q:C podem ortanto erados. Assim, as leis retroativas ~o
ele e~ e sempre tudo aquilo que ele deve ser". Contudo, Rousseau lidam com um úmero inde mas sim definido de fatos já
admite que na ' · · eia e realidade nem sem re coincidem ·dos. Ess o osi ão da inadmissibilidade da
medida em gue ele identifica a vontade geral com a vontade -on- '
da-tna:iõria 32• em se rojeto de ConstituifáO para a Córse ele sustentou a
Mas em que consiste o direito? E o império de tal direito proposição da forma mais ngi em · sso, ele achou difícil
realmente garante a liberdade do homem? chegar a essa co clusão, já que quis prevenir o problema da
Na Economia Política Q_postulado do Império do Direito ·á acumulação da terra em apenas uma mão; e qu guer maneira, ~
~g o foco de sua do~trina. O direito era a causa dã justiça e da negou a admissibilidade da retroação, mesmo em favor da
li~erdade, a :ante da igualdade material. Ele era a "voz celeste que de"S°iategra.ção da prQRriedacie de terra em grande escala, e sugere
dita a todo crdad-o c · - 0 u'blica e os ensina
· aa · ap ulação..deye ser prevenida.
segundCLas-máxima '
e - pt=.op
· · , o e a não entrar e O Estado só existe se ele governa por meio de leis gerais:
co.nt~adição ÇQn~ig. m., 33
Neste trecho a aplicabilidade geral
0" • "O!,ie eles obedeçam e que ninguém comande, que eles sirvam
e uruversal do direito Jª havia sido reforçada, com todas as suas
co_n~~q~ê~cias, e.º ~stado poder"a-hêM as nunca obter
35 Ibidem, p. 492.
pnvileg_ios . Na pnmeira versão do ontrato Socia o postulado da
36 ROUSSEAU. Contrato Social, 11.6: "Quando todo o povo estatui sobre todo o
generalidade de todas as leis ainda fora dedUZI o dos fins do Estado povo, ele só considera a si mesmo; se se forma então uma relação, é entre o
- a saber, a romoção do bem-comum- elo rocesso falacio objeto inteiro sob um ponto de vista e o objeto inteiro sob outro ponto de
vista, sem qualquer divisão do todo. Então a matéria sobre a qual se estatui é
raeiaáni se do o ual uma g oda lei deveria romover 0 tão geral quanto a vontade que estatui. ~ a esse ato que chamo uma lei.
bem..comum então ela teria necessariamente de ser geral, assim Quando eu digo que o objeto das lei s é sempre geral, entendo que a lei
considera os súditos coletivamente e as ações como abstratas, nunca um
homem como indivíduo nem uma ação particular. Assim , a lei pode
perfeitamente estatuir que haverá privilégios, mas não pode concedê-los
nomeadamente a ninguém. Pode criar diversas classes de cidadãos, e até
31 ROUSSEAU. Contrato Social, 11.2. especificar as qualidades que darão direito a essas classes, porém não pode
32
1 7~~: "Para que uma vontade seja geral, nem sem re é
Ibidem,_ 1_1.2, nota ?e dar nomes a ninguém (_ __) em uma palavra, toda fu nção que se refere a um
necessario que seja unanime, mas sim que todos os votos sejam conidos objeto individual não pertence ao poder legislativo".
1
Q ua quer exclusão formal rompe a generalidade". · 37 VAUGHAN. Rousseau, li, p. 343 : "Mas nem as leis agrárias, nem qualquer lei
33 VAUGHAN. Rousseau, 1.245. podem ter jamais o efeito retroativo; e não se pode confiscar terras, adquiridas
34 Ibidem, p. 246. legitimamente, não importa a quantidade, em virtude de uma lei posterior, que
defende uma posse ainda maior".
236 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 237

mas não haja um senhor; que sejam livres de tal forma que, sob cessária e permanente; o povo, como um todo, não pode
uma aparente sujeição, ninguém perca sua liberdade sem preju- deixar nem por um momento de exercitá-la verdadeira e
dicar a liberdade d o"38• Mas a generalidade e aplicabi- plenamente. Não há portanto necessidade de uma justi-
lidade universal da lei é realmen ~ para a realização ficação da revolução, tal como empreendida por Lock.e,
da síntese desejada entre vonta es individuais e vontade coletiva? mas toda a concepção de revolução se toma obsoleta. 41
A resposta só pode ser que o postulado da generalidade da l~i
Apenas a administração das leis não reside com o povo, mas
,J.U'_.,.Cl-IJ!Yuco, já que ele atribuiu a este postulado somen-
nas mãos do governo que implementa a vontade geral como o braço
te um áter form t~ como foi mostrado pela passagem citada.
da lei, como "força aplicada à lei"42 • Porém, a soberania não reside
Q...legislador não pode pressupor qualqyer privilégio, não pode
com o governoJPas com o legislativo; ou seja, com o povo, com a
iinplcmtmtar qnalq.u er diferenciação, seja justa ou injusta, ~
VQ!).tade geral, gue no fundo não é senão a maioria.
ou desi al, garantindo somente que a forma externa da ene-
alidade das leis seja mano e que em seu eito e e evite cui- Segue-se, portanto enhuma ~ações de Rousseau
dadosamente a menção aos indivíduo.s..._ sobre a relação entre vi ntade ger e ~·.ou sobre a relação
• entre lei e MUrt:ade geral, nos dão a menor indicação de que seu
sistêEDa consista apenas pum mero absolutismo estatah,

9.2.
o mas for realmente exercido por ele. Rousseau rejeita
veementemente a representaçao po ca; e sua caracterização do 9.2.1.
sistema parlamentar britânico é bem conhecida39 • Mas temos de
admitir que ele mesmo dificil,mente acreditou na possibilidade Contudo, essa interpretação tem de se~àamen~ente
de realizar este ideal; e recomendou Parª Córsega um governo revisada se mantivermos sob nossa vista qt!e o absolutismo statal é
· e Estados-Gerais 40• O ponto decisivo, portanto, consi; te postulado somente em relação a umª certa suhestrµtura social, e
em que a soberania do povo reside realmente no povo, e não na que a aniquilação das vontades individuais depende da realização
assembleia representativa. ~ seus postulados sociais. O próprio Rousseau não vê a subestru""?
tura social que corresponde a seu sistema político tão çfarameote
Enquanto escritores anteriores (os defensores do direito
como com reendeu a essência da democracia olítica. Ele mesmo,
de revoluçã(}, consi e aratJ:la soberania do povo como
tal como muitas vezes já oi enfatizado, viu somente em uma cida-
uma mera acidade potencilil (latente), que se rompe e
põe f4n a um governo tirânico se necessário, de acordo
ÇQ_m Rousseau trata-se de uma capacidade efetiva nê-
41 STAHL, Friedrich Julius. Oie Phi/osophie des Rehts, 1847, vol. 1, p. 303.
42 VAUGHAN. Rousseau, I, p. 237-41: " Gostaria que meus leitores distinguissem
corretamente entre economia política, sobre a qual estou falando e que chamo
de Governo, e autoridade suprema, que chamo de Soberania: disti nção que
38 Economie Politique. ln: VAUGHAN, Rousseau, 1, 241.
consiste em que um possui o direito legi slativo, e obriga, em certos casos, o
39 ROUSSEAU. Contrato Social, 111.15.
próprio Corpo da nação, enquanto o outro possui somente o poder executor,
40 VAUGHAN. Rousseau, li, 313 e 351 . e pode obrigar apenas os particulares".
238 - 0 IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 239

de-estado a subestrutura social necessária para a realização da de- teoria apresenta um progresso extraordinário quando considera-
mocracia43. Um território compacto, costumes simples, e carências da em relação às construções atomistas da democracia, já que in-
populares simples lhe parecem ser condições necessárias pafa o fun- contáveis conflitos de interesses podem ser resolvidos no interior
cionamento de tal democracia44 • Mesmo Córsega lhe parece muito de cada organização particular.
grande, e no seu esboço para a Constituição da Córsega ele resumiu
o seguinte: "Um governo puramente democrático convém mais a 9.2.3.
uma pequena cidade do que a uma nação" 45 . Se isso for verdade,
seria preciso concordar com a ideia de que a teoria de Rousseau não A segunda contribuição de Rousseau consiste em sua análise
apresenta qualquer progresso decisivo 46 • da sociedade civil e da função da propriedade privada. Vaughan
mostrou que sua interpretação da propriedade privada varia consi-
9.2.2. deravehnente49, um sinal de incerteza em relação a seu problema
central. Contudo, ele fez uma contribuição essencial, e isto é um
Rousseau, contudo, postulou a estrutura orgânica da socie- fato que ainda não foi apreciado adequadamente.
dade; ainda que não tenha sido de forma muito clara, mesmo No Discurso, a propriedade privada é descrita como a única
\ assim-êlê-flega a admissibilidade de poder;es inteqpedi:jrios entre.. base da sociedade, assim como sendo sua maldição. A famosa pas-
o indivíduo e ~i. Essa interpretação de Rousseau será extrema- sagem já foi citada.
mente @"erent , porque geralmente se afirma que gualqu~r ideia Na Economia Política, a propriedade privada ainda continua
dc.uma..d&mocraGia..or A • letamente estranha à teo-

sendo a base da sociedade, mas ela já não é uma maldição, e se
e Rousseau. ?trenmto,..n 's encontramos a confirmação de tornou uma bênção. Ela ~hega mesmo a ser considerada mais
nossa posição na onomia Polític 7 • Aí ele sustenta que toda importante do gue a liberdade, porque ela é o fundamento c;!a
grande sociedade é com o.st~ uenas vilas de vários t ·da, porque pode ser roubada mais facihnente, e porque ela é o
~ Cada uma dessas sociedades imediatas enc -se n fiíndamento da verdadeira sociedade50 -
r-e la: ara seus membros a própria sociedade é uma von-
No Contrato Social, como resultado de sua concepção abso-
tade geral; para o Estado, é apenas uma vonta e particular48 . Esta
lutista do Estado, ele defende que o homem no estado de narure-
za tem..sJ sse e prqpriedade; que a propriedade é
primeiramente conferida aos homens por meio do contrato social
43 ROUSSEAU. Contrato social, 11.1 O.
44 Ibidem , 111.4. GQ.lllQ um direito superior5 1• Isso não significa muita coisa. Essa
45 VAUGHAN. 11, 313. afirmação, como ~~ ~. éJy - omum de todos os absol · -
46 LASKI. Politica/ thought, p. 60.
tas-de-Es: d bes S inoza e Pufendorf. Todos eles con-
47 Economie Politique. ln: VAUGHAN, Rousseau, 1.242: "Toda sociedade política
é composta de outras sociedades menores de diferentes tipos, em que cada sideraram a propriedade como um direito delegado pelo Estado,
uma tem seus próprios interesses e máximas (...) todos os particulares que um
interesse co mum reúne ao compor muitos outros (... ). São as associações
tácitas ou formais que modifica m de muitas maneiras as manifestações da
vontade pública por meio de sua influência". 49 VAUGHAN. Rousseau, 1.169.
48 "A vontade dessa sociedade particular tem sempre duas relações: para os 50 V.1.259: "É certo que o direito de propriedade é o mais sagrado (...)e, em certo
membros da associação, trata-se de uma vontade geral; para a sociedade em sentido, mais importante do que a própria liberdade".
seu todo, é uma vontade particular".
51 ROUSSEAU . Contrato Social, 1.1 ; 1.9.
240 - o IM~ RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 241

sem, contudo, ter a menor intenção de alterar a distribuição exis- A outra alternativa, que ele formula de um modo ainda mais
tente de propriedade. Eles somente foram compelidos pela lógica curto e mais aforístico, também se encontra em seu esboço para a
interna de suas construções para chegar a tais conclusões, que Constituição da Córsega; "Propriedade Estatal". "Longe de querer
provavelmente lhes pareceu extremamente indesejáveis. que o Estado seja pobre, eu desejo exatamente o contrário, que
Não para Rousseau. Qyalquer um que leu a passagem em ele possua tudo, e que cada um partilhe do bem comum na pro-
seu Emílio conhecerá a natureza da subestrutura social que reside porção de seus serviços"55 •
em seu ·âeãfêIOEs~o 52• A propriedade tem de ser privada, ou Assim, ele postula a igual distribuição de propriedade pri-
seja, de ·vada do trabalho, o que..sj~ca ue deve ser i almente vada ou a propriedade comunal. No seu sistema não há lugar para
distribuída. Assim, ela não apenas é isenta de perigo, mas antes uma ordem de propriedade em que existam diferenças entre rico
benéfica. sso t a condição do im ério da ont e e pobre, entre monopolistas e não monopolistas. De acordo com
ade é distribuída i sua teoria, a vontade geral só pode ser a expressão de todas as
vontades individuais das quais aquela é composta, se a principal
matéria de conflito, a luta de classes, não existir.
Eu admito que essas conclusões não foram inteiramente de-
senvolvidas na teoria de Rousseau. Deve-se mesmo duvidar de se
ele era consciente das implicações e das consequências lógicas de
suas afirmações; mas que elas foram indicadas não se pode duvidar.
Portanto, nós achamos que com Rousseau a rendição comple-
ta da vontade individual e da liberdade natural ao Estado depende
v des individuais. Esta afirmação concernente à igual da realização da democracia política plena, com a igualdade políti-
distribuição de propriedade foi.., olvida com a mesma ca completa para todos os cidadãos sem poderes políticos interme-
insistênci as-Carta,r evritar da m qntanbr;53, e em ,.c;na diários; da estrutura orgânica da sociedade; e do império das leis
Constituição da Córseg,::54 • gerais, numa sociedade em que a propriedade ou é igualmente dis-

Essa é uma das alternativas propostas por Rousseau para a


J tribuída entre os cidadãos ou está nas ~ãos. do Estad~-_ O Império
'!>do Direito tem, portanto, uma função mterramente et:J.ca.
forma'ção da subestrutura social de seu sistema político.
9.2.4.
52 Emile (livro 5). ln: VAUGHAN, Roussea u, vol. 2, p. 152: "Ele é inviolável e
sagrado para ela uma vez que permanece sendo um direito particular e individua/: De acordo com uma t · terpretação teoria de Rousseau
Jogo que é considerado como um direito comum a todos os cidadãos, e/e está
submetido à vontade geral, e esta vontade pode negá-lo. Assim o soberano não
é, de-f-at-9y41ma Ílm:J:pretaçãa da tr:ona marxista do definharoento
possui o direito de interferir nos bens de um indivíduo ou de muitas pessoas. Clrr-Es-ta , Aeia de uma sociedade livre de re as exter-
Mas e/e pode legitimamente se apoderar dos bens de todos (... )".
53
nas q1:u1 se auto-admjnjstr&. primeira vista isso tem um resulta-
Lettres de la montagne . ln: VAUGHAN, Rousseau, li, p. 284, carta 9: "(...) quem
teme as exceções ama as leis".
54 V.2.342-343 : "Todos querem que as condições sejam iguais para todos, e a
justiça consiste exatamente nesta igualdade".
55 VAUGHAN. Rousseau, li, p. 33 7.
242 - o IMP~RIO DO DIREITO

do curioso, pois nenhum escritor político postulou com tal força


a soberania absoluta do Estado. Apesar disto, o resultado final de
sua teoria é que, em uma sociedade baseada na liberdade política
e na subestrutura social que ela exige, o Estado deve necessaria-
mente se tornar obsoleto, porque faltam os conflitos decisivos. O
próprio Rousseau formulou esta ideia com uma clareza
cdinária de um outro modo. @rtit,uj~
06,:se.ga, ele enfatiza qu riedade é realmente ro ·
de-paffiewa~~~~~~~~~~~s;!!.!~:Q:

Desse modo, sua teoria relembra aquela de Marx. Para Marx,


uma sociedi«l~~ação política que se auto-administra Capítulo 10
constitui o ~e um.processo históric ta-
d<Hlesaparece, após a proletariado ter-se tornado idêntico à nação
olido o sistema da ro riedad entãa exi tente. Marx,
ortanto, complementou a estrutura lógica e oussea com a
Kant e Fichte
~·Neste ponto ousseau se colocou na onteira do ensa-
mento burguês. O idealismo alemão, que foi construído com base
neste-pens.ameoto, nã9.Jen nenhuma contribuição significativa,
mm...._exceção de Hegel, para a teoria do Estado e do direito.

56 VAUGHAN. Rousseau, vol. 2, p. 355: "Pois se a propriedade particular for


frágil e dependente, o governo só precisará usar pouca força e conduzir, por
assim dizer, o povo com um movimento de seu dedo".
FRANZ NEUMANN - 245

10.1. KANT

tum fato geralmente aceito que Kant1 transformou o contrato


social, que Rousseau considerou um ideal a ser realizado na história,
em uma ideia transcendental; ou seja, em um princípio racional
para a avaliação de todas as constituições2 Se esse distanciamento
em relação a Rousseau provou ser frutífero na prática política é
uma questão em aberto. Na minha visão, nenhuma filosofia provou
ser mais..._desastrosa para o pensamento político alemão do gue a >
~oria kantiana do Estado e do direito, gue, banindo a ideia do
direito para a esfera da transcendência, "abandonou o direito e i
moral existentes à mercê do empirismo e das forças cegas da
tradiçãon:i. A crítica do professor Ginsb~osofia do direito d;
Stammler se ap~almente àquela d~ e a todos os idealistas
com exceção d~arx, em sua crítica à filosofia hegeliana do
direito, caracte · · uência da filosofia do idealismo ale -
e: "Os alemães pensaram na política o que os outros
t:&eralll}I.. A Alemanha foi sua consciência teórica. A abstração
de eu ensamento sem re se con e à
w:Ulat!:ralidade e inadequação de sua atualidade social e política".

10.1.1.

É duvidoso que Kant te oom


4
ua teoria da ética • De qualquer modo, ela não consistia numa

METZGER, Wilhelm. Gesellschaft, Recht und Staat in der Ethik des deutschen
ldealismus, Heidelberg, 1917; LASK, Emil. Rechtsphilosophie: Die Philosophie
im Beginn des 20. /ahrhunders), Heidelberg, 1907; STAHL, Friedrich Julius.
Die Philosophie des Rechts in geschichtlicher Darstellung, Heidelberg, 1874;
BASCH, Vitor. Les Doctrines Politiques des Philosophes Classique de l'Allemagne,
Paris, 1927, p. 60 e ss.; CARRITI; E. F. Morais ans Politics, Oxford, 1935, p. 80
e ss.; LISSER, Kurt. Der Begriff des Rechts bei Kant (Kantstudien, Erganzungsheft,
nº 58), Berlin, 1922; HAENSEL, Werner. Kants Lehre vom Wiederstandsrech t
(Kantstudien, Erganzungsheft, nº 60), Berlin, 1926.
2 Em Über den Gemeinspruch, p. 131 .
3 GINSBERG, Morris. Modem Theories of Law, London, 1933, p. 51.
4 A decisão depende principa lmente da interpretação de sua concepção de
ética. Se, com Lisser (Kant, p. 4), construímos um sentido amplo de ética, o
246 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN • 247

ética do amor ou do poder; pois era puramente jurídica (Rechtsethik)5. de tal maneira como se a máxima de tua ação devesse se
Ela é secular, o que implica rejeição de toda teoria ética baseada na tornar, pela tua vontade, em lei universal da naturez.a.7
crença e na revelação. Contudo, ela não se fundava sobre o princípio A razão humana, portanto, produz na esfera humana ativi-
da felicidade. Pois só podemos dizer que a felicidade pode ou não
dades formalmente análogas àquelas leis que são descobertas na
representar a lei moral derivando tal afirmação da experiência; e a
natureza externa pelo processo de classificação.
lei moral não deve ser derivada da experiência, porque nesse caso
seria arbitrária. A lei moral deve, ao contrário, fundar-se em uma Se a universalidade da lei é o elemento objetivo de sua teoria
lei universal. Finalmente, a concepção de felicidade é subjetiva; isto da ética, seus elementos subjetivos são a moralidade e a legalida-
é, está sujeita à interpretação e é arbitrária. As teorias eudemonistas de. O elemento subjetivo é chamado legalidade se o homem obe-
e hedonistas são, por isso, rejeitadas. dece à ordem objetiva do direito, não para o seu próprio bem, mas
por motivos externos, tais como o medo. O elemento subjetivo é
Desse modo, Kant procura descobrir o princípio "formal" da
oralidade, e precisamente com base em sua formalidade tal prin- chamado moralidade se ele considera como um dever moral ter
cípio pode er validade universal. Todos os princípios ma- de obedecer a uma obrigação legal. Essa discriminação entre mo-
teriais são empírico e, ortanto sem valor etenninas;ãe ralidade e legalidade parece ser clara num primeiro momento,
~~Cl.ilL!.liil..!l:lU.l:l:W.wl:~e~
. Na verdade, contudo, Kant, como já foi mas é inconcebível como ela pode ser compatível com sua pre-
muitas vezes mostrado. de modo algum descobriu o princípio missa da universalidade e da formalidade da lei ética.
da m ralidade mas como seus predecessores, conceb
sistema...material da ética de uma maneira dogmática e usuaJ 6" 10.1.2.
r-q elemento formal na teoria kantiana da ética é o princípio O conteúdo de sua teoria ética é claramente exposto em
~ universalidade e da leg~.Jidade. Toda ação humana deve,
portanto, a.parecer como um caso iodizjdual de uma lei universal. quatro momentos apresentados em sua Fundamentação da me-
~nhuma ação deve ser uma exceção a esta lei universal:
tafísica dos costumes, que ele desenvolve com base numa classifi-
cação de deveres como deveres perfeitos, cuja não realização é
Porque a · dade da lei, pela qual os efeitos se
impensável, e deveres imperfeitos; e depois como deveres inter-
produzem, !].stitui q@Q_que chamamos ro ·
nos, ou deveres para comigo mesmo, e deveres externos, ou de-
naturez.a no sentido mais lato da palavra Cse~dp sua.
veres para com os outros8 • Assim, ele considera impensável o
J orma), a realidade (Dasein) da coisa, enguanto é deter::
suicídio porque ele não pode ser pensado como uma lei univer-
-.minada por leis universais. o imperativo universal do de
sal da humanidade. Os outros três momentos são famosos. To-
.ver.poderia também ser expresso do seguinte modo: Age dos eles mostram que seus deveres dizem respeito principalmente
à manutenção da situação existente, à garantia dos direitos exis-
tentes. Nas exposições futuras de sua Metafísica ele deduz ex-
direito assim está subordinado à ética. Além disso, de acordo com Lisser, todas
as obrigações pertencem, enquanto obrigações, à ética. A interpretação oposta,
qu e a meu ver parece ter mais fundamento, en contra-se em METZGER.
Gesel/schaft, p. 83.
7 Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, 2. Abschnitt, trad. inglesa J. W. Sempl e,
5 Ibidem, p. 17-2 1. 3ª ed., 1871, p. 34.
6 Ibidem, p. 47. 8 Ibidem, p. 43.
248 • Ü IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ N EUMANN - 249

pressamente a proibição de interferência na liberdade e na pro- reside no motivo da execução dos deveres. "A ciência do direito
priedade a partir desse princípio da razão 9• retém o essencial daqueles deveres que existem independentemen-
Todos esses deveres negativos de não interferência são deve- te de todos os motivos de sua execução; a ciência da moralidade, o
res perfeitos, ou seja, sua inexistência é impensável Os deveres essencial de todos os deveres que constituem motivos em si mes-
positivos, contudo, tais como a promoção da cultura e da felicida- mos"13. Além disso, "a legislação ética (embora os deveres também
de, são simplesmente deveres imperfeitos, cuja não realização pode possam ser externos) é aquela que não pode ser externa, embora os
até mesmo ser concebidas, mas não deve ser desejada. Todos os deveres que ela prescreve possam ser tanto externos quanto inter-
elementos de uma ética do amor estão completamente ausentes. nos. A legislação jurídica também pode ser externa. Assim, trata-se
Ele chegou inclusive a desdenhar de tal ética1º. de um dever externo cumprir uma promessa estabelecida por con-
trato; mas o mandamento de o fazer meramente porque é um de-
10.1.3. ver, sem considerar qualquer outro móbil, pertence exclusivamente
à legislação interna"14 • Temos de complementar dizendo que os
A separação entre deveres internos e externos, contudo, é de deveres jurídicos possuem uma validade condicional. A razão disso
importância ainda maior. Esta distinção não é nova, mas foi toma- reside em que um direito ou uma pretensão jurídica pode corres-
da mais explícita por ele. Os deveres frente a alguém são construí- ponder somente à faculdade genuína, à faculdade jurídica: "A todo
dos como pretensões jurídicas do homo noumenon (humanidade) dever corresponde um direito considerado como uma faculdade
em face do homo phiinomenon. Eles são derivados "do direito de (jàcultas mora/is generatim), mas isso não significa que todos os de-
humanidade em nossa própria pessoa", tal como Kant esclarece ao veres não podem impor direitos de outro tipo (jàcultasjuridica) que
tratar da famosa fórmula de IBpiano, "honeste vive, neminem /aede, obrigue outra pessoa. Estes são chamados especialmente de deveres
suum cuuique tribue,,..1• Por causa desta separação entre deveres in- jurídicos"lS. ão não é senão uma formula ão
ternos e externos, e pelo divórcio da legalidade e da moralidade, sua o an nismo entre direito natur vá-
ética está completamente separada do direito. O direito se toma lide-para a consciência interna, e o direito positivo obrigatório vál!.-
autônomo. Consequentemente, ele distingue dois tipos de legisla- .dQ__externamente.
ção, uma ética e uma jurídicau. A legislação jurídica, sendo as nor- Contudo, dpfacesso de desencantamento do djrei~a.tígide
mas da legalidade, se caracteriza por reforçar a execução fática dos div&i:c:ia entre direito e moralidade, do direito positivo e do direito
deveres, mesmo se tal execução ocorreu sob compulsão. Já para a aturai, a ui está completo. Apenas o direito positivo é válido.
legislação ética - as normas da moralidade - a questão decisiva Qiialquer tipo~éâiie1to ou f?Ositivo, quj\poderia obrigar
ou corrigir o djreito posi!;W , stá excluí o. Sua teoria é, portanto,
a justificação de um mero positivismo. O diie1to é apenas o et o
9 Ibidem , p. 44. à coerção.
10 Ibidem , p. 36 e 37. ~

11 Metaphisil der Sitten, Rechtslehre, Einleitung der Rechtslehre. Tradução inglesa


W. Hastie, 1887, p. 54. (Para as citações em português vamos usar como base
a ed ição Kant, 1. Metafísica dos costumes - Parte 1: Princfpios meta físicos da 13 Retirado do Lose Blatter, ed. Reicke, citado a partir de METZGER. Cesellschaft,
doutrina do direito. Tradução de Artur Morão. Lisboa, Ed. 70, 2004, modificando p. 71.
a tradução caso necessário).
14 Rechts/ehre, Einleitung Ili.
12 Ibidem, Einleitung li, p. 15-16 (tradução inglesa de Hastie, p. 15).
15 Metaphysik der Sitten, Tugendlehre, Einleitung li.
250 - 0 I MP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 251

10.1.4. postulado da liberdade de competição, por um lado, e o .postulado


de que qualquer interferência nesta liberdade só será tolerada com
Mas como essa coerção do direito deve ser justificada? base nas leis universais, por outro lado. Já são visíveis aqui os ele-
* mentos básicos do Estado burguês moderno, do Estado de direito
(Rechtsstaat) alemão, que foi declarado como sendo a ideia do Es-
A ideia central de sua teoria do direito e da ética é a concep-
tado enquanto tal
ção da liberdade. Esta liberdade, porém, é negativa; ela é a noção
jurídica de liberdade. Esta concepção visa à manutenção da situa- *
ção jurídica existente. Ela não busca a realização de propósitos Como é determinada a relação entre direito e Estado? Sua
estranhos: "E aqui reside a contradição ao se dizer que nós deve- teoria do Estado diverge em um ponto daquela dos teóricos do
mos designar a perfeição do outro e nos obrigar a realizá-la; pois a direito natural. Seu estado de natureza já é uma relação jurídica,
perfeição do outro, quando considerada uma pessoa, consiste em a saber, a soma de todas as relações sob o direito privado, ou seja,
que esta pode impor sobre si mesma seu próprio fim, em confor- a estrutura competitiva de uma sociedade trabalhando com base
midade com sua própria compreensão de seu dever; e é repugnan- na coordenação. Portanto, o estado de natureza detém "formas
te impor a mim um dever cuja realização somente a outra pessoa jurídicas de sociedade, tal como o matrimônio, a autoridade pa-
individualmente pode efetuar"16 • rental, o lar, etc." 18• O estado da sociedade civil (status civi/is) se
O dever primário é apenas e exclusivamente a manutenção distingue do estado natural apenas pela ausência do direito pú-
dos direitos, de meus próprios direitos assim como dos outros. To- blico que realiza a ideia da justiça distributiva. "O não estado de
dos os outros deveres, tais como o amor fraterno ou o cuidado em direito é a condição da sociedade em que não há justiça distribu-
relação à perfeição moral dos outros, ou são secundários, ou chegam tiva. Ele é geralmente chamado de estado de naturezani 9• O esta-
a ser inconcebíveis. A liberdade consiste, portanto, em abster-se de do de natureza é, portanto, um estado que já conhece a
infringir a ordem jurídica, e na execução compulsória dos deveres propriedade, mesmo que seja apenas provisoriamente, e em que
impostos por esta ordem. A ideia primária é cada um por si e Deus os contratos podem ser estabelecidos2°; mas em que a proteção
por todos. Todos têm suprema liberdade; mas esta liberdade não é jurídica está ausente. Ele é, portanto, um estado de ausência de
arbitrária, pois está restrita por leis universais que tomam calculável legalidade, porém não necessariamente de injustiça. Trata-se de
qualquer interferência nestas liberdades. A melhor das sociedades estado de potencial bel/um omnium contra omnes;_
é, portanto, aquela que possui o grau mais alto de liberdade e assim A ideia anuten ão da lei postula cate-
um antagonismo penetrante por parte de seus membros, e ainda a goricamente que os homens deixam o estado e natureza e _ e
determinação e segurança mais exatas dos limites dessa liberdade,
de modo que a liberdade de cada membro possa coexistir com a
liberdade de todos os outros 17 • Nesta formulação encontramos o e, portanto, a mais precisa determinação e resguardo dos limites desta liberdade
- de modo a poder coexisti r com a liberdade dos outros". Tradução utilizada
em Kant, 1. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita.
Tradução de Rodrigo Naves e Ricardo Terra. São Pa ulo, M artins Fontes, 2003.
16 Ibidem, Einleitung IV. 18 Rechtslehre, 1.3, § 4 1.
17 ldee zu einer al/gem einen Geschichte, quinta proposição: " (.. .) que permite a 19 Ibidem, § 41.
máxima liberdade e, consequentemente, um antagonismo geral de seus membros 20 Ibidem, Parte 1, Capítulo 1, § 9.
252 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEU MAN N - 253

mera propriedade privada, e entram na sociedade civil, isto é, o O ato lógico e ao mesmo tempo a ideia transcendental para a
estado do direito público - o Estado enquanto tal: "Uma Cons- avaliação de todos os estados é o contrato social. O contrato social é
tituição civil é objetivamente necessária como um dever, embora a fonte de toda lei, não historicamente, mas sim sistematicamente;
subjetivamente sua realidade seja contingente. Por esta razão, há ele é, portanto, a origem, e não o início, de toda lei23 ; e é também a
um direito conectado com uma lei natural real, ao qual a aquisi- criação de toda lei. Portanto, "o ato pelo qual o próprio povo se
ção externa está submetida"21 • constitui como Estado, em rigor só a ideia deste, que é a única pela
• qual se pode pensar sua legalidade, é o contrato originário, segundo
o qual todos (omne et singult) no povo renunciam à sua liberdade
Com essa afirmação o Estado se tornou o postulado lógico
exterior para, em seguida, a recuperar como membros de uma co-
do direito privado, e como o direito privado é essencialmente o
munidade, isto é, como membros do povo considerado como Esta-
direito da propriedade privada e da liberdade de contrato, o
do (universi)". A liberdade que os cidadãos recebem de volta é aquela
Estado se tornou o postulado categórico da propriedade priva-
de uma "ordem regulada de dependência"24.
da. Ao elevar a propriedade privada à posição do princípio su-
premo do Estado, sua maravilhosa construção lógica, sua
10.1.5.
justificação transcendental do Estado, colapsa. Seus argumen-
tos possuem um genuíno círculo vicioso, Com a finalidade de
O Estado construído de tal modo "é a união de um conjun-
poder construir o direito e os deveres jurídicos, ele tem de afir-
to de homens sob leis jurídicas. Enquanto estas leis, consideradas
mar a existência da propriedade privada provisória no estado de
a priori, são necessárias (não estatµtárias), isto é, enquanto deri-
natureza. Esta propriedade provisória se torna, com a ajuda do
vam por si mesmas dos conceitos do direito externo em geral, a
Estado, uma instituição permanente. Mas nenhuma razão é ofe-
sua forma é a de um Estado em geral, isto é, o Estado na ideia, tal
recida à proposição o estado de natureza deve conhecer necessá-
como deve ser segundo os princípios puros do direito"25 • Com
ria e originalmente a propriedade privada provisória. Sua teoria
isso, Kant aceita fundamentalmente a construção de Rousseau,
do direito e do Estado é simplesmente uma declaração dogmá-
mas enquanto este, segundo seu princípio de uma democracia
tica do mesmo tipo daquelas de todos os teóricos do direito
pura e pelo seu postulado social da igualdade econômica, oferece
natural. Ele próprio formulou-a claramente: "Da condição do
uma chance genuína para que as vontades individuais possam
direito privado no estado de natureza surgiu o postulado do
formar na vontade geral uma unidade verdadeira, permitindo as-
direito público. Ele deve então ser expresso assim: na relação de
sim que a liberdade natural seja apenas formalmente transforma-
coexistência inevitável com os outros, devemos passar do estado
da em liberdade política, ainda que mantida de forma igualitária;
de natureza para uma união jurídica constituída sob a condição
na teoria de Kant é preservado somente o postulado de que o
de uma justiça distributiva. O princípio deste postulado pode
Estado deve realizar a ideia do direito. "A liberdade é a indepen-
ser desdobrado do conceito do direito nas relações externas, em
dência da vontade compulsória de outro, e somente enquanto
contradição com a mera força entendida como violência" 22•

23 LISSER. Kant, p. 18.


21 Ibidem, 1.2, § 15. 24 Rechts/ehre, 11.1, §47.
22 Ibidem, 1.3, § 42. 25 Ibidem, §45.
254 - 0 IMPlRJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 255

puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei Kant em relação à revolução é claramente definida, embora seus con-
universal, ela é o único direito original e inato pertencente a todo temporâneos o considerem um partidário da Revolução Francesa28•
homem em virtude de sua humanidade"26 • Essa fórmula revela Nesta construção, o poder soberano existente é glorificado
que a liberdade natural dos homens é completamente abandona- com a ajuda da ideia do direito. Se, contudo, a revolução for vito-
da no Estado; pois a decisão de saber se minha liberdade pode coexistir riosa, Kant é suficientemente realista para recomendar obediên-
com aquela dos outros membros está apenas nas mãos do Estado sobe- . 29
eia ao novo po der soberano que emergm .
rano. A concepção do contrato social implica, portanto, uma ren-
dição completa da liberdade. As reservas que Kant faz em relação 10.1.6. NÃO HÁ LIMITE EM FACE DESTE ABSOLUTISMO ESTATAL?
à liberdade individual são apenas uma repetição das banalidades
da teoria do direito natural de Spinoza e Pufendorf. Elas não A ideia do direito não oferece restrição alguma para a atividade
contêm senão o credo da liberdade de pensamento e de senti- do Estado soberano. Mesmo a ideia do direito é formal, não
mento; por exemplo, as afirmações de que ninguém pode me permitindo que se deduza algo concreto a partir dela; a derivação
obrigar a ser feliz do seu modo, ou que o Estado não pode decidir de algo concreto a partir desta ideia do direito seria possível apenas
que as pessoas não podem progredir em seu esclarecimento. através de inserções arbitrárias durante o processo de dedução. Nós
A decisão do Estado soberano é abs,oluta; não há apelo con- tentaremos esclarecer este ponto com o exemplo da justificação da
tra sua decisão. Os súditos podem reclamar, mas em nenhum caso pena de morte oferecida por Kant. Ele distingue a "punição judicial
podem se opor às decisões do Estado. Um direito de resistência é ou jurídica (poena forensis)( ... ) da punição natural (poena natura/is),
inconcebível, e não pode ter lugar em qualquer constituição: em que o crime, considerado um. vício, pune a si mesmo, não
chegando ao conhecimento do legislador. A punição jurídica nunca
Pois quem deve restringir o poder do Estado há de ter,
pode ser administrada meramente como um meio para promover
decerto, mais poder, ou pelo menos um poder igual,
outro bem, seja para o próprio criminoso ou para a sociedade civil,
quando comparado com o poder que se quer restringir;
mas deve ser imposta em todos os casos somente porque o indivíduo
e como soberano legítimo, que ordena aos seus súditos
que sofre a punição cometeu um crime (... )O direito penal é um
resistir, deve também poder defendê-los e julgá-los
imperativo categórico"30 • A punição é justificada, portanto, pela
legalmente em cada caso e, portanto, poder ordenar
ideia da justiça: "Pois se a justiça e a retidão perecem, a vida humana
publicamente a resistência. Mas esta pessoa, e não a
não terá mais valor no mundo". A retaliação também exige a pena
autoridade existente, seria então o poder supremo; o
de morte: "mesmo que uma sociedade civil resolva se dissolver com
que é contraditório. 27
o consentimento de todos os seus membros( ... ) o último assassino
O direito de resistência é negado em seu todo porque não há encarcerado na prisão deve ser executado antes que esta resolução
um árbitro entre o povo e o soberano. Por essa razão, a atitude de seja executada. O assassino deve morrer". Desta ideia de retaliação
ele deduz a impossibilidade da misericórdia:

26 Ibidem, Einleitung, Divisão B: Pois "a liberdade (independência em relação ao


arbítrio constritivo de outrem), na medida em que pode coexistir com a liberdade
de qualquer outro segundo uma lei universal, é este direito único, originário, 28 HAENSEL. Kants Lehre, p. 61 .
que cabe a todo homem em virtude de sua humanidade". 29 Rechtslehre, Parte 11.1 , Observação Geral A.
27 Ibidem , Parte 11.1 , Observação Geral A. 30 Ibidem, Parte 11.1 , Observação Geral E.
256 - 0 IMP~RIO 00 ÜJREITO FRANZ NEUMANN - 257

Mas qualquer um que cometera um crime deve morrer. castigada segundo a lei; pois enquanto tal, isto é, como criminoso,
Não há nenhum equivalente que satisfaça a justiça. Não não posso ter um voto na legislação. ~O 1 ºsladox_' sagrado"33 •
há equivalência entre uma vida, por penosa que seja, e a Com este tipo de lógica, como mostrou . J. St é possível
morte, portanto, também não há igualdade entre o cri- provar a ilegalidade não somente da pena de morte, mas de todo
me e a represália, a não ser matando o culpado por dis- tipo de punição. B · criminoso é concebido como racional,
posição judicial. 31 tal como desejara dbruch, então é im'29ssfu:I irer ~Qe..de
deveria consentir ntudo, se concebe
Contudo, é realmente verdadeiro que sua rigorosa teoria da
o criminoso c tiano, ria até possível
punição se segue logicamente de sua ideia do Estado, da ideia do
provar a imwss1 ade do crime. m ornem racional não
contrato social? É bem conhecido que Beccaria chega a uma
cfl.DJete gimes. Mas assim como alguém pode provar a necessidade
conclusão oposta. De acordo com ele, a pena de morte é
co de or assrm ãiZer, uma ca
irreconciliável com a ideia do contrato social, uma vez que a ló ·ca também se rovar um o _enuína or
punição tem de ir além da porção da liberdade natural que o ..do assassino para ser executado. Dessa forma, assim como não foi
indivíduo renunciou ao entrar no Estado. De forma semelhante, possível pensar essa questãÕ a partir da ideia de contrato social,
Radbruch deduz da teoria do contrato social a impossibilidade não podemos também encontrar uma resposta a tal ideia de
conceituai da pena de morte 32• "O indivíduo não pode ser pensado retaliação a partir de sua ética, mesmo se afirmarmos que há uma
como consentindo çom a pena de morte. Poderíamos provar o tal relação entre direito e ética35 • A razão para tais deduções
consentimento racional de alguém para todo tipo de punição que arbitrárias já foi suf!cientemente demonstrada. O método
preserve a vida daquele que foi punido, não importa a forma tran dental impossibilita qualquer resultad~ concreto. F. J.
miserável que adote. A pena de morte, contudo, não pode ser St ann arx Ernst M er
demonstrada como servindo aos interesses do criminoso, já que e Morris Ginsherg mgstraram isso. O próprio Stahl disse que a
ela anula o sujeito que porta tal interesse". Todas essas deduções teoria, kantiana da retaliacão era impossível de se compreender.
são arbitrárias, porque do princípio do contrato social não se pode Na interpretação dessa teoria da retaliação Feuerbach acreditou
derivar qualquer conclusão concreta. O próprio Kant despreza as que Kant estava senil quando escreveu sua filosofia do direito.
deduções de Beccaria, e sustenta que chegou a um tal resultado Mas a razão verdadeira parece ser a de que a concepção da liberdade
por meio da "sentimentalidade compassiva de um sentimento representa um princípio meramente negativo da razão especulativa,
humano", e continua: "Eu, como co-legislador que decreta a lei e que consequentemente as noções de indivíduo e de liberdade
penal, não posso ser a mesma pessoa que, enquanto súdito, é são concepções puramente racionalistas que não guardam relação
alguma com as noções sociológicas da pers~de.~ liberdade.
indivíduo no sistema kantiano é um homem univerial, que ao
31 Ibidem, "Pois se a justiça morrer, deixa de ter valor que os homens vivam sobre esmo tempo é um indivíduo3 • Este corresponde àquele homem
a terra ... Se a humanidade tivesse que morrer hoje, deveria antes ser executado
o último assassino que se encontra no cárcere (... ). O assassino tem de morrer
(...) Mas qualquer um que cometera um crime deve morrer. Não há nenhum
equivalente que satisfaça a justiça. Não há equivalência entre uma vida, por 33 Rechtslehre, Parte 11.1, Observação Geral E.
penosa que seja, e a morte, portanto, também não há igualdade entre o crime 34 STAHL. Oie Philosophie des Rechts, p. 701 .
e a represália, a não ser matando o culpado por disposição judicial".
35 LASK. "Rechtsphilosophie", p. 289.
32 Crundzüge der Rechtsphilosophie, 1ª ed, p. 1.
36 SIMMEL, Georg. Kant, p. 254.
258 - Ü IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 259

natural cujo cerne, destituído de todas as qualidades individuais, Diferentemente, a lei geral pode ter um conteúdo material.
~l permanece sempre o mesmo.~ consciência desse indivíduo não é Se este for o caso, a crítica de Hegel toma-se ainda mais relevante.
'l mais do que o sentimento geral da mera existên~ Ele é aquele No seu trabalho de juventude Sobre o modo de comideraçáo cientí-
ser infinitamente erfeito, um ser m ' ·co. Assim, é fica do direito natural (p. 22), o conceito de generalidade ou uni-
compreensível por que Kant, enquanto um individualista, atribuiu versalidade da lei é considerado não somente inútil, mas também,
com força tão extraordinária uma individualidade ao Estado. Se por suas consequências, imoral - ideia que foi desenvolvida em
ele atribuiu à atividade criativa do homem uma esfera desconhecida sua Fenomenologia do espírito e na Filosofia do direito. Hegel se
de poder3 7 , de forma nenhuma isso prejudicou a soberania do refere à passagem da Crítica da razão prática em que Kant inves-
Estado, nem mesmo isso levou à anarquia, já que se admitiu uma tiga o problema de s@er se possuímos liberdade ao defraudarmos
harmonia pré-estabelecida de todos os indii@uow; e esta poderiâ de ósito, se o depositante não pode provar que fez tal de ó-
or ue os indivíduos constituem os mesmos pontos ~ Kant se pergunta se t prol 1çao para e auaar um depósi-
lógicos de atribuição. to pode ser pensada como uma lei universal, e responde que se tal
• proposição pudesse ser pensada como uma lei universal, então
nenhum depósito poderia ser efetuado39 • Contra isso, Hegel re-
Na introdução das leis gerais encontramos alguma limitação da
plica que se não houvesse mais depósitos, que contradição isto
soberania do Estado? Assim como em Rousseau, a lei geral ou uni-
representaria? O fato de que não há depósitos contradirá outros
versal é o ponto central da teoria jurídica de Kant. Seu postulado
determinantes necessários (... )E ele vai adiante para dizer que só
segundo o qual o Estado deveria governar somente através de leis
podemos saber se um certo fim pode representar uma lei univer-
gerais é levado a ponto de excluir a aplicação dos princípios de equi-
sal caso já saibamos se tal fim é digno de ser exaltado. É possível
dade e de perdão. Equidade, em sua visão, é uma lei sem sanção,
considerar todo fim como uma lei universal, e não há nada que
"uma deusa parva que não pode pretender o reconhecimento do n-o 12 d atamar de uma lei universal; e or ue
direito. Por isso, segue-se que uma Corte da Equidade, para decisões o sariamente a existência da coli-
de questões do direito em disputa, envolveria uma contradição"38• - · · ' ' egel conclui que se Kant coloca a
Mas a generalidade da lei garante muito pouco. A lei geral b stituição da propriedade privada no patamar de uma lei univer-
tem um significado duplo. ma de Rousseau, sua al, ele assume que esse interesse na propriedade privada é parti-
generalidade tem um significado meramente no · QlJ seja, Sêlb- lhado por todos os homens ~ Mas todos são livres para repudiar a
al er re ão ar itrária, individual e in- propriedade privada podendo chegar a leis universais completa-
mente diferentes. Esta é a razão pela qual Hegel considera imo-
-lação da lei a indivíduos ou a con çoes m Vl uais. ma tal lei rais as concepções da lei universal na teoria kantiana; pois não
geral, que exige apenas uma certa sagacidade por parte do legisla- importa o quão podero~é o desejo de alguém, nenhuma objeção
dor, constitui somente uma débil limitação da atividade do Estado, pode ser feita contra ela ao ser levada ao patamar de uma obn ga-
como será mostrado na última parte deste livro. lào mor . Po emas atri wr a uer mot:J.vo umano a a-
d~ lei. Kant aceita então o Estado e a propriedade como

37 Idem, Prob/eme der Geschichtsphilosophie, Munich e Laipzig, 1919.


38 Rechtslehre, Apêndice à Introdução 1. 39 KPitik der praktischen Vernunft, 1.1.1 , p. 4 (nota).
260 - o IMP~RIO DO DIREITO F RANZ NEUMANN - 261

fatos que ele não questiona, e apenas investiga com seu método cidadania ~· Eles são assim o sui juris de Spinoza, os
transcendental as condições da existência possível do Estado e da qu~s são os únicos cidadãos ativos. enQuanto todos os outros são
propriedade, encontrando como condição principal o dever de cum- chamad9s de cidadãos passivos.
\ l prir os ~ontratos . A ~tica de Hegel é, no geral, idêntica à nossa O aprendiz (...), o criado (que não está a serviço do Esta-
~ afirmaçao de que o metada &l:aA.s~end enta! toroa im íve -
do); o menor (naturalitervel civiliter), todas as mulheres
gar a aualguer resultado concreto. Portanto, a introdução da noÇão e, em geral, quem quer que não possa conservar sua exis-
de lei geral ou universal, por meio da qual o Estado deveria gover-
tência (o seu sustento e a sua proteção) pela sua própria
nar, do ponto de vista formal não tem qualquer função decisiva na

~
tividade, mas se vê forçado a se por às ordens de outros
limitação da atividade do Estado, ou se lhe atribuirmos um con-
exceto às do Estado), carecem de personalidade civil e a
teúdo concreto ela continua tendo uma função puramente dissi-
ua existência é, por assim dizer, só de inerência. 41
muladora. Os momentos na teoria de Kant mostram que sua lei
-1J 1 L~i-W:rsa1 é d~ fato estruturada materialmente, e~o materaj Apenas o proprietário tem~; e a teoria da
pmpàedade de Kam, comparada Gom aquela de Locke, é uma
~pal consiste na m anutencão da propriedade privada. Na teo-
na de Kant, portanto - da lei eral tem rincip, ente uma teoria prussian.a re~cionária. Sua teoria do~: m ~ que so-
~ção dissi.muladora. que consiste em coµferir ao sistema de vro-
mente o propnetáno de terra controla o destino_olí~o Esta-
pnedaàe C:}HSfflnk a dignidade de um orintjpio moral. do.__:t uma questão a de saber qual é a extensão do direito de
posse do solo? NA medida em que se trata da capacidade de tê-lo

so oder de alguém, a resposta diria que isso é possível acei-
tando-se que aquele que vai se apropnar este so o po e tam em
defendê-lo, rnm p se o próprio saio dissesse· 'Se não puderes 12r~
te~r-me, então não podeis Gisper àe-mim'"42 •
'1<ant, tal como reconheceu Marx, escreveu a teoria alemã da
evolução Francesa.:Sua teoria, admitindo-se que as teorias têm
alguma influência política, é responsável pela derrota da burgue-
sia alemã em 1813, 1848 e 1860, e frustrou a emancipação polí-
tica da burguesia. Trata-se de uma típica teoria liberal do &chtsstaat
(Estada de Direito), que foi operativa no Estado de 1812a1819,
com um monarca que fundou sua for~a na propriedade de terra e
na educação. numa burguesia que estava politicamente num es-
taàe-de S\:ljeição e se coptentava em fazer dinheiro; cuja proprie-
dade é protegida pela separação dos poderes, a independência dos
juízes, e o exercício da soberania através do medium das leis gerais

41 Ibidem, §46.
40 Rechts/ehre, Parte 11.1 , §45. 42 Ibidem, 1.2. 1, §15.
262 - Ü IMP~RIO 00 DIREITO FRANZ NEUMANN - 263

que perpetuam a dem de propriedade existente e velam a do- - sem sucesso, como vimos - apenas arranjou as pretensões existen-
minação política. direito natural desapareceu; mas com isso tes em ordem de-: riori e, Fichte procura mostrar em sua ética o
ambém desapareceu a democra~ A coq_tribuição origin~ ~último e absol11to· a d eseny alvimento do homem n1mo à per-·
contudo, consiste no princípio de que o máximo de liber- feºção absoluta44 • Ele descreve esse processo como um progresso -
~antido somente se a atlvi e o sta o, que mte 4e contínuo de uma co!!.__dição limitada para uma menos ljmjtada45,
n libeffiade e aa pmpriedadê;-paàe ser aa:ib ída a uma lei gt!.91.
11
at~.QJie no fim esta condição apareça como liberdade absoluta frente
O...!ireito natural,, com isso, transformou-se em leis gerais.

10.2. flCHTE
- a-tedos os ahstáodos46; como independência absoluta e auto-ativi':'"
dade47, de modp que o desenvolvimento seja 0 tomar-se Deus j);r
m€io de Y:rA p;gçesso jofinit'2!8. ..
Essa ideia é claramente apresentada em seu panfleto revolu-
Estado e do direito, soberaniare1ttt:nm~~:o.al.!:!~~~ cionário49, e em suas aulas de 179450 . O propósito último da vida
fundamental, que na verdade humana é vencer toda irracionalidade e agir de acordo com suas
seu pi:ime1ro p e próprias leis. Em sua Doutrina ética de 1798 esta ideia encontra a
ao Estado; no segundo, um sistema de liberdade absoluta do Esta- seguinte formulação 51 :
~ Entre os dois períodos encontram-se várias tentativas de sínte- A independência, nosso fim último, consiste (... ) em que
se, em que os d<;>is elementos encontram-se irreconciliados lado a tudo depende de mim, e eu não dependo de nada; que
lado. Fichte pertence ao período transitório do último racionalis- em todo o meu mundo dos sentidos acontece o que eu
mo para o primeiro romantismo. Sua influência se deve não à ori-
quero; absolutamente, e apenas porque eu o quero( ...) O
ginalidade de seu sistema, nem à clareza de sua teoria, nem mesmp
mundo tem de ser para mim o que meu corpo é. Este fim,
à-pFGtimdidade de suas ideias, mas ao vigor extraordinário com que
contudo, é inalcaoçável, mas eu devo me aproximar dele
sua personalidade.. inteiramente jsenta de comi;irometimento, re-
(... )Esta aproximação é meu fim último.
sultou em sua. ectiva filosófica.
Fichte, contudo, not~ homem vive em sociedade, e
10.2.1. portanto mesmo antes d~le ·á co e · e-
. te ideia: "Aponta-se que o homem yiye em ll'ê>wit!àad@;-Cle
O antagonismo dos dois sistemas já é visível em sua ética. Essa deve.viver em sociedade; ele é jocowpleta.J:Omo.homem-e-se-ma-
ética conhece dois valores, o eu e os outros; a realização da persona-
lidade individual e seu sacrifício pela comunidade. Enquanto Kant
44 CW, VI, p. 300, 1794.
45 CW, VI, p. 72.
46 "System der Sittenlehre", CW, IV, p. 166, 1798.
43 LASK, Emil. Fichtes ldealismus und die Ceschichte, 1914; WEBER, Marianne. 47 CW, VI, p. 58 e ss.
Fichtes Sozia/ismus und sein Verha/tnis zur marxschen Doktrin, 1900; METZGER. 48 CW, IV, p. 256.
Cesel/schaft; BASCH. Les doctrines poliüques, p. 72 e ss.; ENGELBRECHT, H. 49 " Beitrag zur Berichtigung der Urteile des Publikums über die franzõzische
C. Johan Cottlieb Fichte, New York, 1933; STRECKER, Reinhard. Die Anfange
Revolution", CW, VI, p. 86 e ss., 1793 .
von Fichtes St.aatsphi/osophie; Fichte, Samtliche Werke, ed. J. H. Fichte em 8
vols, Berlin, 1845-6, citado como CW; idem, Fichtes Nachgelassene Werke, 3 50 CW, VI, p. 297 e ss.
vais, Bonn, citado como NW. 51 CW, IV, p. 329.
264 - 0 IM~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 265

tradiz caso viva isolado"52• E em 1798 ele declara que "Todos sacrifício do indivíduo em f~ e afirma que "o indi-
devem viver em sociedade"53• víduo deveàa esquecer-se na espege, e deveria emergir sua vida
J Mas a soberania do indivíduo pode ser reconciliada com a ~~ do todo" 59 •
~ necessidade da vida social? Em sua ética, três diferentes sistemas podem ser distingui::
O reconhecimento da lilw"dade do indivíduo impfü=a, se~­ dõs. aqnclc do inõi<Ãdua1ismo absoluto, a partir do qual não há?
do-Fi.4te,. o recovhecimeoto dos outros. Os outros indivíduos não .h!gar pana e EEtad 0 ; aquele da coordenação dos costumes, que
são uma natureza externa que deve ser conquistada pelos homens; pode leyar à fimdacão do Estado somente se for aceita uma har=-
por isso o aparente antagonismo da lei moral com ela mesma54 é mopja pré-estabelecida de todos os indivíduos; e finalmente,
solucionado psg aquilo que pode ser chamado de um sistema de aquek de uma étj(3 da espécie, em que a liberdade do indi-yí-
0,ooo~ção dos dostumes 55 • teoria não re resenta ual uer ,duo desaparece.
p_!2gresso. No furi. o, trata-se apenas de uma exposição da teoria o
.._[direito ;;niral em que todos os homens são liVres e iguais, e supe:: '." 10.2.2.
ciores à natureza exterior. Ao invés desse sistema de coordenação
dos costumes, o homem individuais considerado de fonua isola4ª, A esta mudança na ética correspondem várias mudanças na
teoria do direito e do Estado. Fichte, aliás, separa tacitamente
dir~ca; mas essa fase é precedida por uma teoria geral do
• dir~al, em que sua ética jacobina encontra expressão pa
teoria 1acobina do Estado.
Em 1789 acontece a primeira mudança. Depois dessa data,
j o próprio eu é apenas um meio e os outros se tomam o fim: "Para •
'\Jada um, todos, exceto eu mesmo, são o fim"56 • Todos, contudo, Em sua Contribuição para a retificação do julgamento do público
são apenas meio a serviço da realização da razão. sobre a Revolução Francesa o Estado não enc.Qntra lugar algum 60•
Uma segunda mudança acontece em su@ 7
, q11e agoi;a,
Esse panfleto é uma confissão em favor dos ideais da Revolução
-\ em-polêmica aberta contra o período do Esclarecimento, declara Francesa, EJYe fui aclamada com entusiasmo por SchWer e Goethc:.z
.çpie "apenas a espécie existe realments.,". 1<1º.pstock e Herder, pelos historiadores e juristas. e até mesmo
por Kant. Todos eles foram profundamente influenciados pela
Aqui ele empreende um.a inyersão completa de sua ética.,.e
Revolução, a qual dividiu toda a civilização europeia em dois
deda:ra qtte sa1~ad~diiádno pão existe58 • Ele exige o
campos. O panfleto de Fichte é uma defesa dos princípios da
Revolução Francesa contra a reação literária iniciada por Burke, o
52 CW, VI, p. 306.
qual encontrou discípulos naAlemanha .....Nesse panfleto, o homem
53 CW, IV, p. 234. vive sempre no estado de natureza. O Estado é supérfluo ~
54 CW, IV, p. 230. ~gum ele se distingue de uma associação privada.
55 METZGER. Cesel/schaft, p. 125.
56 CW, IV, p. 253.
57 "Vorlesung über die Grundzüge des gegenwãrtigen Zeitalters", CW, VII, p.
26, 188. 59 CW, VII, p. 35.
58 CW, VII, p. 38. 60 CW, VI.
266 - Ü IMP~RIO DO ÜJREITO
FRANZ NEUMANN - 267

novo Estado no território do ró rio Estado. As deci-


ões da maioria não têm validade.
É bastante curioso que a propriedade pertença aos direitos ina-
tos e inalienáveis. Ela é, contudo, um direito conferido não por ocu-
pação, mas pelo trabalho. Ele aceita, portanto, a teoria da propriedade
tura1 de eaoonana e propne -

e e se torna
=:::::::man;::::n~clt::~: ;a~t~á= ~u;t~a~
o..pmdnto do trabalh21 tem assim implicações sgcjªlistas.
Esse panfleto, contudo, também contém a confissão de fé na
Mas como entendemos os direitos inatos por oposição aos livre competição. "Dê liberdade de troca, com a herança natural do
direitos adquiridos? Ele distingue entre direitos de "espirituali- homem, com seus poderes", e veremos que os problemas sociais
dade inalterável" ("unverãnderlichen Geistigkeil') e aqueles de uma podem ser solucionados sem intervenção estatal, sem "leis agríco-
"sensibilidade modificável" ("verãnderlichen Sinnlichkei"). É im- las drásticas". Mas ele exige livre competição com base na igualda-
possível alienar os primeiros, mesmo que' se deseje fazer isso. Os de de propriedade, e, obviamente influenciado por Momoro, ele
últimos são divididos entre direitos internos e externos. Os inter- declara que "todos os homens têm um título jurídico a igual por-
nos são inalienáveis; sobre os externos (a capacidade de agir sobre ção de terra, e que o solo deve ser distribuído em partes iguais"64 •
a natureza externa e sobre as pessoas), um mínimo é igualmente O sistema de Fichte realiza o Império do Direito material.
inalienável, pois todos devem viver62• Os outros direitos externos O homem está sob uma lei dupla, a de sua natureza, por um
podem ser alienado ato. Todas as mudanças jurídicas lado, e a do contrato, ou seja, o direito positivo, por outro lado.
~evem adotar a orma dos contrato ,,,_os quais são contratos de Este último, contudo, está inteiramente sob o direito natural; e
goca ou de doação. Contu o, é um direito inalienável do homem aqui ele se opõe a S inoza e Pufendorf. Em uma apaixonada
eoder romper qualquer contrato. Ãssrm, aqueles que são op~­ polêmica contra obbe , Fichte toma a posição de Locke e a
dos podem a qualquer momento dissolver o contrato por meio do 1 re-
qual eles mesmos se entregaram à dependência e à escravidão: "É za-i:i.ão cessa. mas continua a existir no Estado65 • O Estado não
um direito inalienável do homem, ao menos de uma das partes, e tem lugar em seu sistema. "Ninguém é educado, mas todos de-
sempre que desejar, anular qualquer um de seus contratos; a imu- vem educar a si ró rios"66 • A tarefa do Estado de lftchte é
tabilidade e a validade eterna de qualquer contrato é a violação tornar-se upérflu · "O Estado, assim como todas as institui-
última dos direitos essenClals da humarudãde" 113 • Portanto, todos çõ~ humana gue são meros meios, tem como fim sua própria
1

podem-à~do up rnlquer momento: todos podem e~ta- ani!}uilação: o fim de todo governo é tornar o próprio governÕ

61 GW, VI, p. 81. 64 GW, VI, p. 121.


62 GW, VI, p. 178. 65 GW, VI, p. 132.
63 GW, VI, p. 111. GW, VI, p. 90.
66
268 · 0 IMP~RlO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 269

ousseau reduz a atividade do Esta- institua um Éforo* c


o conflito entre o

Pode-se considerar, portanto, a teoria de Fichte de 1_793 como


a teoria fisiocrata alemã.

Entre esse sistema inicial e o sistema tardio de 1812 e 1813,
ocorreram alguns sistemas intermediários, que são caracterizados
Vamos deixar de lado seus desenvolvimentos seguintes para
pelo fato de Fichte descobrir o conceito político do direito, e se;
nos voltarmos imediatamente ao seu sistema final, sua Doutrina
--15õnfrontat com a: tarefa àG i:@'70ncj)iá-lo com a concepção do di-
do direito de 18U e sua Doutrina do Estado de 1813.
foito mateáal 68 •

O rompimento final com o período do Esclarecimento sur-
ge em suas leituras de 1804 e 1805 nos Elementos da era moder-
na74.f'Q período do l:sclarecimento lhe parecia "completamente
~ara é caracte · :,pecaminoso\ Consequentemente, sua concepção do dil'eito e do
~os cida - 69
údo, contudo, "o direito positivo", é deter- Estado se modific@. A ideia da Razão de Estado e ga soberani~
minado la natureza da cois . Ele chega a uma recusa categórica o Estado entrou em cena. O Estado agora é reconhecido como
dos direitos dos homensj gual, pela ~rteza dôg;mãfíca, ã sua declà- um poder m erçjtiyo. e caracterizado como dom jpação 75 • Ele não
ra~o anterior de suayxistência. "Não há condições possíveis para os _é mais considerado uma asso · - mas um "todo or A -

direitos originais, assim como também para os direitos originais dos nica indivisível". O Estado~ ' ºdade econômica, assim
homens(... ). Um direito original é uma meraficção" 7 Ao se tornar º. como também não é uma categoria jurídic ; el~e.veffiKer,
cético nesse ínterim sobre a concepção democrática liberal - demo- um Estad.o. mi rural, que combate o ar arismo, subordinando a
cracia é para Fichte agora uma "constjhijçãa absolutamente j!cga1"71 na. homen o as artes 76• Agora ele é
- ele deixa a decisão em relação à consistência da natureza das coisas uma unidade, um oduto natural orgânic 77• Ele se toma "um
nas mãos do executivo. Ele rejeita agora a separação de poderes. Ele dever absoluto ditado pela consciência para unir-se com os outros
até contesta a possibilidade de se distinguir o executivo do judiciá-
rio; mas sua desconfiança frente ao executivo o leva a sugerir que se
O termo Éforo (ephorate) se refere historicamente a um corpo de cinco magistrados
eleitos que ti nham o poder de supervisionar os reis de Esparta (N. do T.).
72 CW, 111, p. 112.
67 "Bestimmung des Gelehrten", GW, VI, 306. 73 cw, Ili, p. 182.
68 Cf. principalmente " Grundlage des Naturrechts", GW, Ili, 1796. 74 Die Crundzüge des gegenwãrtigen Zeitalters, CW, VII, p. 3.
69 Ibidem, p. 160. 75 CW, VII, p. 157.
70 CW, Ili, p. 11 2. 76 CW, VII, p. 143, 157, 162.
71 "Grundlage des Neturrechts", GW, Ili, p. 159, 1796. 77 Crundlage des Naturrechts von 1796, CW, Ili, p. 202.
270 - 0 IMP~RJO 00 DIREITO FRANZ NEUMANN - 271

para formar um Estado"78• Por outro lado, ele ainda mantém a


existência dos direitos dos homens, especialmente o da liberdade
de religião e da liberdade da ciência. Contudo, o Estado tem di-
~to..d~mobilizar todas as forças dos cidadãos, mas sempre com~
fifliWdade de tomar-se supérfluo .

Auxiliado pelas impressões que teve durante sua viagem à
França em 1807, essa concepção dual, relacionada ao Estado e à
nação, foi ganhando cada vez mais força sobre seu pensamento.
Seus vários porém pequenos trabalhos desse período79 atestam sua
M.a..ç: iave ismo e no Idealismo, para usar a ex ressão de
tentativa de construir um Estado forte baseado na ideia de uma
einecke 85 , foi buscada somente em 18 3, e nessa junção nós
gostaríamos de enfatizar que sua solução está fundada antes no
impulso do que no raciocínio 86 • É de suma importância o fato de
que Fichte abandona a cional do Estado. É
verdade que em seus '/ementas da era modern a justificação
racional ainda pode ser ençoptrad a. O Estado tem a tarefa de
aboli.t;. os privilégios feudais, de liberar os camponeses, de restaurar
E tado cul
um Estada empôJPico ou jµúdico87• Por outro lado, Fichte sempre
declara que as perspectivas da religião, da ciência e da virtude
nunca podem se tomar os objetivos do Estado 88• Sob a influência
Desde a Revolução Francesa, a doutrina dos Direitos do da opressão napoleônica, o gênero que deve ser realizado pelo
Homem e da Liberdade, assim como a da igualdade ori- Estado é para ele agora a nação. A nação se toma um meio de
ginal de todos - que são, certamente, a base eterna e regeneração do ;u.ndo :S:ua.GOncep.çi2__de nação, contudo, se aplica
indestrutível de toda organização social que nenhum somente ao am o da política exteiha. Fichte está longe de
Estado pode infligir, mas que também somente com eles identificar o Estado reaaonano existente com a nação. Para ele, o
nenhum Estado pode ser edificado ou administrado -,
foi bastante acentuada por alguns de nossos próprios fi-
lósofos no calor da batalha (...)81 82 Angewandtes Naturrecht, GW, Ili, p. 235.
83 Der geschlossene Hande/staat, GW, Ili, p. 51 O, 1800.
84 Handelsstaat, GW, Ili, p. 399.
78 GW, IV, p. 236. 85 MEINECKE, Friedrich . Die ldee der Staatsraison , Munich e Berl in, 1924,
p . 466.
79 Cf. ENGELBRECHT. Fichte, p. 95-107.
uüber Macchiavelli ais Schriftsteller und Stellen aus seinen Schriften", 1807,
86 Ibidem, p. 465.
80
NW, Ili, p. 401 . 87 GW, VII, p. 181.
81 NW, Ili, p. 428, traduzido a partir de Engelbrecht, Fichte, p. 110-11. 88 GW, VII, p. 166.
272 - Q IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 273
I
conceito de nação ainda é uma concepção jacobinista89 • Essa nação mente distinguidos, e gya!qner rel~ãe eatre àiceito positivo ;
de cidadãos livres e iguais é a _gibestrutura que cria o ~ gr~ Qatural é negada. "Fora do Estado não há lei; não há direito natu-
qaê-0-Estado deve dominar para pocler sobreviver. Nessa relação r:i,!, mas apenas a lei do Estado"93 • Por conseguinte, o direito agora
entre Estado e nação há, contudo, uma indecisão intelectual, que est' ado com o oder. "o oder é a condição do direi-
Fichte não resolveu porque era im ossível reconciliar seus dois t~. Nesse sentido, postula-se a soberania absoluta do sta o,
po~tulado cratlca ·vre. Era ou..s..eja, o império formal do direito político Todos os direitos ~
importante criar uma unidade alemã; unir em uma nação todas dekgados pelo Estado; e portanto também a propriedade. O Es-
as pessoas com base na liberdade e confrontar a família com essa ta..Qo é o único dono da terra95 • O mercado é um monopólio do
nação livre; mas tão importante quanto a criação da nação era a Estado; os comerciantes são oficiais do Estado96 •
reconstrução de um aparato estatal eficiente, já que o Estado fora Como esse sistema de um completo absolutismo é recon-
destruído durante e após as guerras napoleônicas. Essa última ciliado com seu ponto de partida individualista, que nunca foi
tarefa na teoria de Fichte parecia realmente ser constante: "O plenamente abandonado? Seria vão recapitular aqui toda sua
Estado, enquanto administrador supremo das questões humanas metafísica e apresentar seus argumentos falaciosos e os saltos lógicos
e o guardião daqueles que estão na menoridade, e gue no exercíc~ que ele dá com a finalidade de provar a identidade necessária da
de-seu.-poder só pode ser questionado por Deus, tem poder vontade do indivíduo e aquela do Estado.
absoluto para coagi-los - ou seja, as crianças - pelo bem deles"90•
Finalmente, ele não chega a uma conclusão diferente daquela
A relação entr~ ão é semelllante àquelâ existente na
de Spinoza; a de que somente o espírito é livre97• Duas formas
ideologia do fascismo italiano Meinecke91 considera a concepção
institucionais de escapar desse problema são proyidencjadas pela
e nação d.e Fi te uma concepção meramente racionalista, e não
limitação da atiyidade do Estado a saber jp5tjh1tos educacionais,
histórica. Parece, contudo, ser mais importante enfatizar o fato
que a Estado deye criar Parª educar as pessoas Parª a liberdade98 , e
e ue na teoria fichteana a nação é molêlãda pelo Estado. O
o..governo dos melhores99 • "Na teoria o juízo do povo é correto
1t ano em con as e com o nacional-
porque não há um juiz superior. Mas como ocorre na prática? Pode-
-s ão a colocar o Estado acima da na ão e fazer
-se confiar muito mais n o e homens sábios do que
naçã&-G-Gbjct-0-.do..Esta - a saber a ineficiência do E do ré-
numa maioria ue só Deus sabe como foi constituída"100 • as nao
~-0· · ecisivo no caso de Fichte. Ele se torna
é claro como devemos encontrar esses homens sábios. Devemos nos
~amor do a_ b§glutismo estatal exatamente como veio a
poupar do exame de sua Doutrina do Estado de 1813 101 • Aqui ele
o fascismo i o.
Seu último trabalho foi uma tentativa de justificar seu novo
maquiavelismo do Estado. Em sua Doutrina do direito de 181292, 93 NW, li, p. 515 .
direito e moralidade, direito positivo e direito natural, são clara- 4 NW, li, p. 514.
5 NW, li, p. 548.
96 NW, li, p. 568.
7 NW, li, p. 537.
89 ENGELBRECHT. Fichte, p. 158. 98 NW, li, p. 540.
90 Reden an die deutsche Nation, CW, VII, p. 436. 99 NW, li, p. 629.
91 MEINECKE, F. Weltbürgertum und Nationa/stat, Livro 1, cap. 6. 100 NW, li, p. 633 (tradução de Engelbrecht, Fichte, p. 13 7).
92 NW, 11, p. 493. 10 1 GW, IV, p. 369.
274 - o I MP~RIO DO DIREITO

tenta novamente restaurar a razão, após ter en~ o poder


p.uro (volunJ.as). Agora ele sygere que um areó~rofessores
e · trutores do povo deveria selecionar o governante 1º2 • :>

Não trataremos mais da teoria e ichte porque ela não trou-


xe qualquer contribuição original. O absolutismo estat
claramente ~efttilà9-~ pineza,..~.ifu.ulorf e Kan!;
-fl... t · · · natural também é bem mais convincente
'dmtins e Locke. Consideramos a teoria de Fichte a enas or e
se trabalho contém todos os elementos de uma teoria racionalis-

Capítulo 11

Hegel

102 CW, IV, p. 450.


FRANZ NEUMANN - 277

Na teoria do Estado e do direito de Hegel colocam-se irre-


nciliavelmente lado a lado os direitos dos homens e a soberania
da_Estado, a justificação racional do Estado e do direito e o abso-
-::>
tismo estatal1• A síntese dialética entre soberania e direitos dos
homens é em Hegel um mera posmlado ou um conceito metafí-
.c . Com essa afirmação não estamos dizendo algo contra o mé-
do dialético, e especialmente nada contra a dialética materialista.
Em seu artigo, o qual já foi mencionado, sobre o tratamento
·entífi.co do direito natural (Sobre o modo de consideração científica
do direito natural, 1802-3), ele analisa e .critica na primeira parte o
direito natural empírico, ou seja, pré-kantiano. Ele mostra correta-
mente o caráter dogmático desse direito natural, especialmente no
caso da teoria do estado de natureza de Hobbes. Essa teoria é dog-
mática porque a.penas um fator, seja o impulso ou a vontade huma-
na,-é-tomaàe eeselwt.9, e o Estado e o direito são deduzidos a partir
dess;·~tor;~~~~~~~~~~~~~~~~

ROSENZWEIG, Franz. Hegel und der Staat, 2 veis., Berlin, 1920; HAYM, R.
Hegel und seine Zeit, 1857; DILTHEY, Wilhelm, " Die Jugendgeschichte Hegels",
Gesamme/te Schriften, vol. IV, 1921; METZGER, Wilhelm. Gese//schaft Recht
und Staat in der Ethik des deutschen ldealismus, Heidelberg, 1917; HELLER,
Hermann. Hege/s Gesellschaftsbegriff und seine geschchtliche Fortbildung durch
Lorenz von Stein, Mane, Engels und Lassa/e (Katstudien Erganzungsheft, nº 59),
1925; LÔIWENSTEIN, Julius. Hegels Staatsidee, ihr Doppelgesicht und íhr Einfluss
im 19. Jahrhundert, Berlin, 1927; BASCH, Victor. Les Doctrines Politiques des
Philosophes Classiques de L'Allemagne, Paris, 1927, p. 111 ; CARRITI, E. F.
Morais and Polítics, Oxford, 1935, p. 105, 159; FORSTER, M. B. The Political
Philosophies of Plato and Hegel, Oxford, 1935; HEGEL. Vorlesungen über die
Philosophie der Geschchte, ed. Von Lasson, 1922; idem, Grundlinien der
Philosophie des Rechts, ed. Von Lasson, 1921 (tradução inglesa de Dyde); idem,
Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie, ed. Von Lasson, 1913, contendo
"Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts", p. 396.
2 "Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts".
278 - Ü IMP~RJO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 279

A terceira parte deste artigo, a parte positiva, não precisa ser consi
derada agora, poi~ vamos tratá-la depois juntamente com sua Fili
so · "to. E decisivo nesta terceira parte, contudo, que
P!"Opriedade priva e o Esta o s t o destino dos home
eaquan gd exalta a lc:gislaç.ão solônica e vê na prn;
p e rivada uma erversão da liberdade3•
Obviamente uma tal sincronização entre vontade individual
11.1.
v ntade do Estado é possível apenas se os inte~esses de todos os
A mudança decisiva na teoria de Hegel começa em 18054 • mens que fundaram o Estado são semelhantes; ou seja, se uma
rta homogeneidade de interesses é pressuposta ou garantida.
11.1.1.

Após 1805, a vontade livre dos homens é o princípio funda-


mental do Estado. Em seu Sistema da eticidade de 18025, ele ainda
i~entifica a liherda ~tiva e o crime. Agora, contudo, o homem
livre que se autorre · 12arece como a máxima fundamen
E~<:>. Não eocootramgs em suª teoria uma concepção jurídica
ne. ~ tlv tal co o enco os no sistema de t mas uma corí-
ce ~o filosófica. O homem não deve apenas se emancipar de seus
dese1os, como exige a ética kantiana; antes, ele deve realizá-los. Na
medida em que Hegel funda o Estado sobre a vontade livre dos
homens, ele aceita o princípio racionalista do direito natura16. As-
sim, o homem individual não pode desaparecer no Estado. "A von-
tade livre recon · · o. ess sentido, a reconciliação acontece
to através da tagem individ uanto por meio dos interes-
r · . A indi · e não ode ser sacrificada"7• .....

Hegel, portanto, se coloca o mesmo problema que se colocou


Rousseau, Kant e Fichte; ou seja, o problema de saber como a von-

3 ROSENZWEIG. Hegel, 1.1 59.


4 METZ~ER . Gesellschaft, p. 302; ROSENZWEIG. Hegel, 1, p. 191 ; LÔWENSTEIN.
Staatstdee, p. 32. Sobre a influência de Montesquieu em Hegel, cf. M ETZGER. Gesel/schaft, p.
8
5 HEGEL Schriften, p. 450. 3 17; DILTHEY. "Jugendgeschchte", p. 8, 17, 3 1.
6 LÔWENSTEIN. Staatsidee, p. 40. 9 Philosophy of Right, § 145, Adendo.
7 Lectures on the Philosophy of History, p. 4 97. 10 Lectures, p. 83.
280 - Ü IMP~RJO DO DIREITO
FRANZ NEUMAN N - 281

, assim como estou muito menos apto a entender as formula-


imj)ares em Kant, Ficlíte e Rousseau, enfao parece ser mais
apresentar a relação da liberdade e da soberania do Estado
· tâncias diferentes.

Partindo da concepção do~ Hegel desen-


lve p._rimeiramente a concepção da pessoa, e chega, em acordo
~@i.to natura!. ao postulado da igualdade jurídica dos
lll/J.ui;..i....._weu postulado é o seguinte: "U e fom r '"
liberdade uma esfera externa para poder alcançar a completu-
~-'.IJ.~~~_.n,a~ id~eiíii~
a"15. Ao seu repúdio frente à separação entre
·da e o.ralida e corresponde a introdução da concepção
o.sófiça da lil:ierâade no postulado da liberdade da pessoa; de
do..qye sua concepção compreende tanto a liberdade jurídica
to a filosófica.
11.2.

de uma Desses princípios básicos de liberdade e pessoa ele deduz a


teoria da propriedade. Todo direito da pessoa é um direito de pro-
priedade, e apenas na e pela ro riedade a ide· oa ode ser
11 Philosophy of Right, § 260. Devemos dar atenção a uma importante observação ,realiz.ada. Influenciado manifestamente por Ciam Smi , ele de-
de Metzger (Cesellschaft, p. 313, nº 1): Metzger chama atenção ao fato de que envolve uma teoria cultural da propriedade; o uso e o trabalho e
na primeira edição da Enciclopédia (1807) o povo ainda exercia o papel
principal; que apenas na Filosofia do Direito de 1821, ou seja, após sua ida · e.As-
para Berlim, o povo foi superado pelo Estado. Uma vez que essa observação
de Metzger é sem dúvida verdadeira, a construção do Estado a partir de dois
elementos (a "liberdade" e o "povo") não parece mais ser possível. Isso, contudo,
se opõe à principal interpretação de Lõwenstein, que, precisamente baseando-
-se na concepção que Hegel tem de povo, vê no Estado criado por Bismarck
uma incorporação da ideia hegeliana. Portanto, parece que Hegel não aplica
o método dialético à construção do Estado. O Estado não é deduzido dos dois
elementos, "indivíduos" e "povo", pois o elemento "povo" desaparece na
Filosofia do Direito, e é substituído pelo Estado. Segue-se, portanto, que o
Estado é um conceito filosófico e político a priori.
12 Crundzüge, p. 928.
13 "O Estado é a efetividade da ideia ética", Philosophy of Right, §257.
14 Ibidem, §142 . 15 Ibidem, §41 .
282 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 283

fcrecida somente se os interesses do Estado e aqueles da socie-


e civil são idênticos. Se eles divergem, o mesmo dilema ocorre
.mesma maneira como acontece em todas as teonas raaonãfis-
. u o Estado abole os direitos de liberdade. ou a sociedade
vil abole o Estado. -

realização da
16 Ibidem, §62, conferir o final do parágrafo. dll-00.mlDllSWlÇaQ~IY§!!~~
17 Ibidem, §200.
18 Ibidem, §270, nota.
19 Cf. principalmente ibidem, §319, nota. 21 Ibidem, §182 .
20 Ibidem . 22 Ibidem, §187.
284 • Ü IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN • 285

em tal liberdade contra possíveis infortúnios, e o cuidado pelos


interesses comuns através da polícia e da corporação.

mã27; mas ele não pôde conceder um quarto 0stamento em seo


_ ..................,~~t~.......,....t!o!Js. Se tivesse feito isto, ele não poderia cens-
o stad , pois, corno já dissemos diversas vezes, uma tal
cmstmção racional do Estado só é possível se se pressupor a
IU'Jllonia dos interesses entre todos os grupos que formam o E;-
d Para introduzir o quarto estamento em seu sistema sem
andonar esse pressuposto, ssria necessário aceitar a proposição
gundo a qual os interesses dos trabalhadores dependentes e da-
queles proprietários de terra e de capital são idênticos. Essa afir-
ação, contudo, ele não poderia fazer sem cometer violência com

11.3.2.

A sociedade está dividida em estamentos de acordo com JlS e a soberania.


-
tividades dos ho Mas essa ordem estamental, que ele pro- cimeiro estamento, e que na realidade esse estamento universal
clama na sua ilosofia do direi , praticall!_ente não tem qyalquçr a burocracia e do exército se torna o portador do Estado e a
conexão com a om dos estamentos. Hegel não ape- r@zação da vontade ética28 •
13as reco · 's r fi - o exi e _ a-
~25. O primeiro estamento, estamento univers compreende 11.3.3.
os oficiais, profe,SSores-e-funsGnários; o segundo e terceiro. a&.
campoaeses M'&-SOmerciantes, n:spectivamente. Ele não reconhe-
ce um quarto estam o de trabalhadores dependentes. Obvia-
mente o fenômeno da pobreza não escapa aos seus olhos; ele chega
~ a notar que a acumulação dos ricos, de um lado, produz a pobre-
~a, do outro 26 • Ele chegou até a ver o fenômeno da substituição

23 Lectures, p. 888.
24 Philosophy of Right, §199. VOGEL. Cesel/schaftsbegriff, p. 107.
27
25 ROSENZWEIG. Hegel, 11, p. 120-1 . 28 FORSTER. Politica/ Philosophies, p. 160.
26 Phi/osophy of Right, §§244, 253. 29 Phi/osophy of Right, §230.
286 - 0 IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ NEUMANN - 287

!i!.!d~ade civil, mostra claramente que ele


1iu.ll>'-'...,..-M.A-1:.

o riedade priva como a instituição principal, lg>


p · eradas su lementares; ou seja,
como servindo à instituição da propriedade. Consequentemente,
"o direito passa a existir apenas porque ele é útil para carências"30 • em a tarefa ainda de diminuir a pobreza
~O direito terp validade geral, não importa se for estatutári'? ~ ( 241) "flJe cn:~s-.;ce=-c-./om a ag 1mu.lação do capital. Consequent;:
~do a<>S costiJmes. Pois "o direito do sujeito à liberdade econô- ente, certas restrições devem ser adotadas, e o país deve ser colo-
mica é assegurado ela condição de que a determinação do dir ·- izado. As corporações.._gue, juntamente com a família constituem
h
to._pela razão devearra.r o det e partiºcular de sua execu~ - "31 .
r · moral do Estado (§255), devem unir o e o-
A generalidade do direito é em sua visão a garantia fundamental tcger seus memhms o e ão crpe utQA.Gmos,
da liberdade. Mas ele dá preferência ao direito estatutário, de as estão sob Q cogtmle do Estado (§255, Adendo). A polícia e
decisões arbitrárias dos 'uízes 32 • O único direi- ..ÇQ_I}20rações são então instituições corretivas e suplementares
eito positivo ue omana da autoridade do Estado (§212).
d livre competição.
A · ca subsumir um caso concre
JW"mt4~-l!:l:'do; a atividade do juiz não
é meramente a atividade de a má uin (§211, Adendo). Mesmo
a vontade do juiz · controlada elo direito positivo, tem um si Os indivíduos, a família, as corporações, a ~-
cado decisivo §214). As cortes devem ser independentes. Elas ta é a sequência que leva ao Estado.
"sem a inclina ão sub' etiva d ·

O Estado se distingue da ~1, a qual é somente


um de seus el tos tal como~ re etidamente. O
11.3.4. ' stado e ste por si mesmo o sta o, os antagonismos das ca.-
r ncias são soluCJooa os em uma esfera superior, como uma ideia.
Estado, tomado como uma ideia, se coloca acima da sociedade
·vil. A família e a_sociedade são duas estruturas em que o ho-
m vive e através das quais ele se prepara para o Estado. Mas na
realidade é yerdade que a úruca arrerra o stado é a sociedade
ºvil34 • A sociedade civil não é somente um elemento do Estado;
la é na verdade o Estado. Ele a subordiíía, a torna seu serviç'il.
30 Ibidem, §209, Adendo.
egundo Hegel, o Estado está em relação com a família e com a
31 FORSTER. p. 121 .
32 Aqui (§211) Hegel critica o Common Law inglês, mas observa corretamente
que o Common Law é direito escrito. Neste ponto também encontramos a
crítica a Savigny e uma defesa a Thibaut, sem mencionar seus nomes.
33 §219 . 14 ROSENZWEIG. Hegel, li, p. 154.
288 - 0 IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 289

unidade individual, que, portanto, é o ápice e o começa de tcW.o.


lst.2_ é a monarquia constitucional'35 •

Essa fqmro:laç~eria nos levar a concluir que Hegel iden-


tifica a sobe~a do Estado com a soberania dos órgãos do Esta-
dQ; isto, contu o, não é o caso, como mostra o parágrafo 279. "O
monarca não é soberano: apenas o Estado é soberano; mas a sobe-
rania é monárquica: o Estado soberano exige o indivíduo
monárquico"36• Nesse sentido, o poder do Estado é identificado
com_ ' ci e· ois o oder monárquico contém, como mos-
tra o...pai:ágrafo 275, todos os momentos a totalidade. Ele com-
preende o direito para promulgar normas gerais assim como emitir
O Estado é aJ!rganização dos interesses gerais da sociedade por decisões concretas. Podemos nos poupar dessa justificação extre-
io de seus interesses particulares. Poderíamos formular dessa ma- mamente c licada de sua teona. O ponto decisivo reside em
eira a teoria stado (§270, Adendo). que a soberania não si ca apenas o direito de emitir normas
·aio,-t1E!ali'-°'llllw;Jl11..:!M;.!~~~~~M.l!.~J<-14'Wõ-lõ:w:&.:.-lllu-i~
- em

11.4.2.

Hegel ad~erincípio da separação dos poderes como 11.4.4.


uma garantia à ·herdade §272). Mas essa distinção entre os três
poderes Iláo deve evar à separação absoluta, já que o significado ~~§CJ"-1.l:-il.U-~e~co~ntramos limites institucionais

dG-pàncípio dos três poderes aponta para uma relação restritiva ao exercício da berania monárquica Pois se o Estado é integra-
is isto acarretaria em sua visão a destruição do Esta-
do pela monarquia, se a ma1esta e do monarca é a única garantia
de-imidade, então são inconcebíveis quaisquer limitações ao po:.
uu....,;;<...,....'"'~ar~a ele a unidade das propostas o stado é de im-
rtância decisiv: · e a clisti~ão entre os poderes é, tanto para ele
der. do monarca. Aqui, na realidade, reside a chave da teoria d-;
H egel. Com "i identidade não comprovada racionalmente entre "a
ente uma consequência necessária da
v0 de do e" se torna verdadeiro
complexidade a:eseeRte da atividade do Estado. Os três poderes
quN Estado é a condição necessária de seu exercício", mas será
são o legislativo, ou seja, "o poder para estabelecer e fixar o aj-
verà bém ue seu exercício está confinado a um corpo
~ executivo, ou seja, "o poder que subs e as esferas ar-
limitado de homens. Apenas em sua vonta e sera re · a a ett-
tieuJai:es e as casos individuais sob o universal"; e o poder
monárquico, isto é, o poder de tomar a decisão final - "Poder no
qual os outros dois diferentes poderes estão compreendidos numa 35 Philosophy of Right, §273 .
36 ROSENZWEIG. Hegel, li, p. 144.
290 - 0 IMP~RIO 00 ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 291

it) absoluta e a posse desta liberdade e a realiza- Hege A legalidade da administração é ga-
-ção desta icida vão pressupor a ~ência de outro corpo_Q.e dife1to de ~sistência, mas elas mstltwç~s
homeas-n e excluídos da arriei a ão 37• Nem a proprie- p rmanentes tais como a burocracia; e pela interação que, ao
dade, nem a liberdade política nem o postulado de que o Estado invés de eparar.,.t . entre o sta a e c1 .
governa por meio de normas gerais constitui no sistema de Hegel Essa garantia é reforçada pela distinção entre os três poderes
alguma limitação ao poder monárquico, embora ele mesmo de- (§290) e pelo autogoverno (§295). O autogoverno "suplanta a
clare a existência de uma limitação subjetiva na consciência do partir de baixo o controle que vem de cima"38 •
governante, e uma objetiva no direito e na constituição (§285).
Mas o ró rio con eúdo do direit ' determinado elo soberano. 11.4.6.
A~s"-t"""'""~~~~~...P~~~~~~~~~~~~~
(§__,........_=='.~::..;::::;;;:;,:;=~~~~~~~~

11.4.5.

Em contraste com o poder monárquico, que é decisivo, o


poder executivo tem meramente a função de aplicar as decisões
já estabelecidas pelo monarca. Sua função é administrativa
(§287). O poder monárquico e o executivo estão ambos em re-
lação com os atos governamentais ou atos administrativos. A fun-
ção do executivo abarca a administração da justiça. O governo e
a administração da justiça envolvem a aplicação de normas. Nesse
caso, Hegel se distingue de Montesquieu, que não conhecera
uma administra ão interna uma vez ue sua aten ão estava cen-
obre a lngl.i!..atfJ:e;.1;i;u~,...J.o;>.ruie..~l.QlllllllllSl=Lailí~-.llM!!IRQ.-C1~"'1.
da no Parlamento e ortanto não se a re entava como
a fun ã distinta. Hegel, contudo, tinha a buro-
cracia prussiana frente aos olhos, e, assim, como já vimos, e como
mostram os parágrafos 290 até 294, a burocracia como o pri-
meiro estamento, o único universal, exercia um papel decisivo u..u...1,1.1~-.....~"""1.!~c:Al·~d~diã" (§307). O terceiro estamento com-
na sua construção do Estado. Apenas a burocracia pode garantir preende o "lado flutuante da comunidade civil".
a liberdade dos cidadãos. Essa afirmação prova a justeza da in-

38 Phi/osophie of Right, §295.


37 FORSTER. Politica/ Philosophies, p. 162 . 39 Ibidem, §321 .
292 - 0 IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 293

11.5.

11.5.1.

No sistema de Hegel, dois elementos podem ser discerni-


dos: a justificação racional do Estado, por um lado, e a história
como um dado, por outro, isto é, o aparelho coercitivo do Estado
eram os fundamentos do Estado ue ele aceitava c
representado pelo monarca e pela burocracia. Seus argumentos
vios Rudolph Haym42 já chamou a atenção para o fato de que
racionais não são levados até &\la ooi:whisão lógica. "Hegel é culpa-
•stado de Hegel poderia apelar àquele de Stein e Humbolt.
dcn:ie-tersido indecisa aG C."f'licar a 6!osofia como a existência do
&pírit-<:>-Absolnto e ao mesmo tempo recusar permitir-se aceitar
o-ffiàMdug filosófico real como o Espírito Absoluto" 40 •
A liberdade dos cidadãos não é garantida nem pelo direito Sua solução para o problema da síntese entre liberdade e
de resistência, nem pela admissão da p:µticipação no poder polí- < erania, entre os direitos dos homens e o Estado, depende,
tico, nem pela separação dos poderes. A proteção é transferida rtanto, de uma série de afirmações que devem ser rapidamen-
exclusivamente para a sociedade civil, que por seu livre consenti- t analisadas.
(\ mento justifica o Estado. *
\ \ -'to\6&m~aa concepção do Estado de Hegel não é aquela do
stado autoritáno Machtstaat) tal como apresentada por Helle;.
' e isto tam emc..ta.n.to em relação à política interna quanto à
e)íterna. Mesmo se a decisão do monarca é considerada coriiô
um elemento constitutivo do Estado, os remanescentes do direitd
nát:tlfl1l-aiada se rrumteriam intactos. No que concerne à políti:Ca
externa, Hegel nunca glorificou a guerra, tal como pode ser notado
especialmente por sua crítica a Heller (§258). Ele rejeita os
A identidade entre liberdade e Estado é possível apenas se
métodos maquiavélicos na política externa e enfatiza a im-
interesses da sociedade civil e do Estado, ou seja, do monarca e
portância de se manter os tratados internacionais (§333). Se ele
burocracia, par um lado, e do proprietário de terra, do indus-
expressa a visão de que a guerra é o último recurso para uma
trial e do Gamerciaate, par awtw, furem basicamente idênticas...
decisão entre estados (§334), re·eita a afuma ão kantian
or sua vez, isso pressupõe que a própria sociedade civil tem um
possibilidade da paz peq?étua (§333, Nota), ele prestou à ciência
interesse comum e unificado. Hegel assume isso. Para ele, como
da política um serviço mais grandioso do que fez Kant, porque

41 ROSENZWEIG. Hegel, li, p. 161 e 55.


40 MARX, Karl. Oie Heilige Familie, 6; idem, Kapitill, 1".
-12 HAYM. Hegel, p. 391 .
294 - 0 I MP~RJO DO D IREITO FRANZ N EUMANN - 295

rasse a existência do quarto estamento dos trabalhadores, e


vasse que a teoria dos harmonistas era uma doutriria falsa.
foi feito elo marxismo.

...___
não existiu .

11.5.3.

Se se aceita a teoria hegeliana do Estado sem referência às


duas hipóteses em que está apoiada, ela poderia se tomar uma
deria ser transformada num
~~~~!ã,l;!!l...iW.l~Wil~~l.4t~~~a ual ela realmen-
te se tomou. Sem dúvida é verdade que o próprio Hegel é cul-
pado por essa interpretação. No prefácio à sua Filosofta do direito
de 25 de junho de 1820, ele louvou o Estado prussiano; o Esta-
do romessas uebradas, das esperanças desapontadas; um
e -o se reocu ou com as mstttui ões livres. Não se
rdoar Heg elo fato de não ter sido suficientemente
ecer o verdadeiro caráter do Estado russia-

43 Tal como faz LÔWENSTEIN. Staatsidee, p. 62.


III

A VERIFICAÇÃO DA TEORIA:
Ü IMPÉRIO DO DIREITO NOS
SÉCULOS XIX E XX
Introdução

A Crítica da Teoria Liberal


do Direito ao Estado
.tar10
, .
FRANZ N EUMANN - 301

Pertence aos truques mais comuns de um certo tipo de ciên-


.a política confrontar a ideia de um tipo de Estado com a reali-
dade de ~; confrontar a ideolo · de · · ,· a
com a soc~e uma teoria antagônica. Não estamos afirman-
do que esse quque sempre é aplicado de forma consciente; mui-
tas vezes ele é a licado com tal indiferença que odemos até mesmo
pens o autor não faz 1 eia a maamissibilidade de tais pro-
edimentos. Nesse sentido, o fascismo italiano confronta ai eia
o sta o corporatista com a realidade do capitalismo liberal; o
nacional-socialismo confronta a ideia da liderança de um Estado
com a chamada sociQ}Qgia da democracia parlamentar; o bolche-
.smo Gonfronta a ideia do sistema soviético com a realidade saw -
"l!t""1:t6'1J.W~~....,,~~-"- Isto não ocorre somente com
das ministeriais dos países con-
os habituais de seus teóricos. A.s

Deve ser óbvio para uma ciência da política que uma ideia
ossa ser o d somente com uma ideia, e uma realidade
Q.._mente com outra realidade.
302 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 303

imagem demoníaca da democracia liberal, e muitas vezes produ- la desconhece o


zem para si mesmas um álibi frente ao novo mestre.
Apesar da abundância dos panfletos e trabalhos nacional-
-socialistas, apenas al mas es écies de difamação contra
liberalismo e a democracia serão consideradas aqui. "O sangue
se impõe contra a razão formal, a raça contra a ação racional
com respeito a fins, a honra contra a profissão, a união (Bindung)
contra a arbitrariedade que é chamada de liberdade, a totalidade
orgânica contra a dissolução individualista, a preparação para a rve apenas_aos interesses privados. Ele é meramente estatísti-
luta ( Wehrhaftigkeit) contra a segurança burguesa, a política 10. Sob a influência de Franz von List, o crime foi considerado

contra a supremacia da economia, o Estado contra a sociedade, mo um fe~A . amente natural. O código penal foi con-
o povo contra o indivíduo e a massa". Essa citação retirada de i erado a arta Magna o criminoso 11 • F.nndameutalmente,..Q
um panfleto do filósofo Ems Krieck1, o sucessor de Heinrich li fil".alismo e o et o são mutuamente excludentt:s. Sua aliança
Rickert, pode ser considerado como um epítome da crítica tá.baseada somente na necessidadeu. O juiz é apenas uma má-
nacional-socialista contra o sistemaliber~ Todas as outras críticas l · a para a administração da justiça. A teoria liberal do Estado
concernem a certos fenômenos específicos do sistema liberal, do direito foi criada especialmente sob a influência de teóricos
sua teoria econômica, sua teoria da sociedade, e sua concepção acialmente alienados" (artfremder Theoretiker) 13 • O Estado da
do Estado e do direito.
O Estado liberal é considerado ~2 , "negativo", um
BINDER, Julius. Der Deutsche Volkstaat, Tübingen, 1934, p. 17.
"Estado fictício, um mero aparelhamento , e a descrição do Es- KOELLREUTER, Otto. Vom Sinn und Wesen der nationalen Revolution,
"'\ta{{Q... liheral oomo um "Estado guarda-noturno". oferecida por_ Tümbingen, 1933, p. 17.
Dr. Von Leers (Duetsche Hochschle für Politik), na Introdução a Kerl Lohmann,
Lassalle, é agora geralmente aceit~4 • Diz-se que esse Estado nega- Hitlers Staatsaufassunfg, Berlin, 1933, p. 1O.
tivo não deve ter substância5 , não tem ca acidade ara tomar de- SCHMITT, Carl. Hüter der Verfassung, Tübingen, 1931.
10 SCHAFFSTEIN, Friedrich. Politische Strafrechtswissenschaft, Hamburg, p. 8.
cis.Qes, está inapta a determinar se alg.o é bom ou ruim, bonito ou li Ibidem, p. 9.
feio, justo ou iojnst:Q. Qliheralismo é a mera degeneração da idei;;: 12 LANGE, Heinrich. Liberalismus, Nationalsozialismus und bürgeliches Recht,
·herdade. Ele ICJra à-aa~Wa-Ele i:C: dissolve. é materialista, e":
Tümbingen, 1933, p. 5.
SCHMITT, Carl. Staat, Bewegung, Volk, Hamburg. 1933, p. 13. Schmitt se refere
por:...essa razãa,-ÍstQ...tamhém se aplica ao socialismo marxista, i; a F. J. Stahl e Hugo Preuss, o criador da Constituição de Weimar e predecessor
de Carl Schmitt na cadeira de direito constitucional na Handelshochschule em
'<!~c:msi~ples variante do liberalismo. A de- Berlim. Carl Schmitt lhe fez uma bela homenagem em um discurso que também
foi publicado como um panfleto (Carl Schmitt, Hugo Preuss, sein Staatsbegriff
und seine Stel/ung in der deutschen Staatslehre, Tümbingen, 1930). Eu retirei
duas passagens que mostram como Carl Schmitt mudou sua opinião sobre
KRIEK, Ernst. Nationalpolitische Erziehung, 1933, p. 68. Hugo Preuss, o teórico " racialmente alienado" - quem, aliás, foi o discípulo
favorito de Otto von Gierke - após a chegada de Hitler ao poder. Em seu
2 FORSTHOFF, Ernst. Der totale Staat, Hamburg, 1933, p. 13.
discurso sobre Preuss, Schmitt louvou "o espírito independente de um homem
3 Ibidem, p. 14. cuja vida e trabalho deu provas do vínculo entre a educação burguesa livre e a
4 GERBER, Hans. Staatsrechúiche Grundlagen des neuen Reichs, Tübingen, 1933, Constituição do Estado", e continuou: "( ...) a história da burguesia alemã mostra
p. 16. que seu vínculo não é incidental, mas essencial, e o fato de a intel ligentsia e a
5 Fbr exemplo, HUBER, Ernst Rodolf. "Die Totalitãt des võlkischen Staats", Die educação alemãs portanto estarem inseparavelmente ligadas com o (ato da
Tat, parte 1, p. 30. Constituição de Weimar" (0 itálico é meu).
304 - 0 IMP~RIO DO DIREITO

Capítulo 12

O Rechtsstaat e o
Império do Direito
(A Apresentação
do Problema)

Portante, emos de recon~ a teoria liberal da sociedade


d · eito e do Estado.

14 Citado a partir da nova edição alemã, editada por Ludwig Fischer, Der St-aat
Cottes, Karlsruhe, 1933, p. 293.
FRANZ NEUMANN - 307

1. A TEORIA ALEMÃ DO RECHTSSTAAT

A forma jurídica de um sistema baseado na liberdade política


nômica difere na Alemanha e na Inglaterra. O fenômeno es-
ificamente alemão é o então chamado Rechtsstaat (Estado de
ito)1• A criação espe~~inglesa é a união de duas no-
de supremacia, a do ~ a do mpério o ire1to.
Podemos entender por Rechtsstaat duas coisas erentes.
· o direito to stadKum Rechtsstaat, seja
democrátic ou ditatori , fuscista ou bolchevi . e.
solu tadura fascista são Re

BÃHR, Oito. Der Rechtstaat, 1864; BLUNTCHLI, ). C. Allgemaine Staatslehre,


6ª ed., 1886, vol. 1; DICEY, A. V. lntroduction to the Study of the Law of the
Constitution, 8ª ed., London, 1915; idem, Lectures on the Relation between
Law and Public Opinion in England during Nineteenth Century, 2ª ed., London;
DICKINSON, John . Administrative Justice and the Supremacy of Law in the
United States, Cambridge, Mass., 1927; DRUCKER, Peter. Friedrich Julius Stahl,
Tübingen, 1933; FLEINER, Fritz. Jntitutionen des deutschen Verwaltungsrechts,
8 ª ed., Tübingen , 1928; GNEIST, Rudolf. Der Rechtsstaat und die
Verwaltingsgerichte in Deutschland, 2ª ed., Berlin, 1879; HELLER, Hermann .
Rechtsstaat oder Diktatur?, Tübingen, 1930; HAINES, C. G. The Reviva / of
Natural Law Concepts, Cambridge, Mass., 1930; idem, The American Doctrine
of Judicial Supremacy, 2ª ed., Berkeley, 1932; JENNINGS, W. lvor. The Law and
the Constitulion, London, 1933; LASKI, Harold. The State in the Theory and
Praclice, London, 1935; MASUR, Gerhard. Friedrich Julius Stahl. Geschichte
seines Lebens 1802-1830, 1930; MAYER, Otto. Deutsches Verwaltungsrecht,
3ª ed., Munich e Leipzig, 1924; VON MOHL, Robert. Geschichte der Literatur
der Staatswissenschaften, vol. 1, 1855; idem, Enzyklopadie, Tübingen, 1859;
idem, Politik, vol. I, Tübingen, 1862; NEUMANN, Franz. Koalitionsfreiheit und
Reichsverfassung. Die Stellung der Gewerkschaften im Verfassungssystem, Berlin,
1932; SCHINDLER, Dietrich. über den Rechtsstaat in Festgabe für Max Huber,
Zürich , 1934; SCHMITI, Carl. Verfassungslehre, Munich e Leipzig, 1926;
STAHL, Friedrich Julius. Die Philosophie des Rechts, vol. li, Rechts- und
Staats/ehre auf der Grundlage christlicher Weltanschauung, 3ª ed., Heidelberg,
1856; VON STEIN, Lorenz. " Rechtsstaat und Verwaltun gsrechtspfl ege",
Zeitschrift für das Privat - und offentliche Recht, ed. Von Grünhut, vol. 6,
1879, p. 399 e ss.; THOMA, Rich ard . " Rechtss taatsidee und
Verwaltungsrechtswissenschaft", Jahrbuch des offentlichen Rechts (1910), IV,
p. 196; WELCKER, C. T. " Staatsverfassung". l n: ROTTECK -WELCKER,
Staatslexikon, vol. XV, 1843.
308 - 0 IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 309

É neste sentido que a ideia do Rechtsstaat é interpretada ada. Essa classe identifica s u Estado com o ró rio Estado
Laski2 : uanto tal e or isso ne a o caráter de Rechtsstaat de qualquer
Estado, caracterizando-o co - Esta o e · ·
Mas a ideia de um Rechtsstaat é uma noção puramente
co/1 · Trata-se de uma categoria de essência, e não
orno um Estado de injustiça ( Unrechtsstaat).
da realidade. Ela torna os üderes de um Estado sujeito§ A essência do Rechtsstaat consiste na separação da estrutura
1~ Criam; mas ela ainda os de~ livres~ ti~ ~o Estado de sua organiza~ . ' ·ca, a qual sozinha -
"llé ~p.ropri a das, para criar a lei. O CJa, mdependentemente da e tura polí a - deve garantir
tado hitleri , bem cQ!Ilo o da Inglaterra, da França ou rdade e a se ança Nessa inte e a ao reside a diferença
da Te ecos ovás;i · é um Rechtsstaat na medida em e-.o Recbf.rstaat alemão e a doutrina inglesa da relação entre
o._p.oder .ditatorial foi transferido ao üder (Führe,) pda. ~ia do Parlamento e o Império do Direito.
dem ·urídica ( ...2 A ideia de um R.echtsstqpt sempre foj O Rechtsstaat não é, portanto, a forma jurídica específica da
cte · da elo fato de mie 2 E stado! por meio de sua .Q_cracia, mas ele é neutro em relação à estrutura política. Essa
ãQ_radical entre forma ao Estado e estrutura jurídica se
pleta ra de Friedrich ulius Stahl:
O Estado deve ser um ste é um slo ,e
expressa o qye na..yerdade é a tendência do desenvolvi-
mento mo mo. Ele deve definir exatamente e assegurar
inviolave ent -o e os limites de sua operação,
bem como a esfera de liberdade de seus cidadãos! através
dalej;_entãci.d e deve realizar diretamente apenas aquilo
que rtenc ' ra do direito. Esta sim constitui a con-
cepção do chtsstaa , e não a ideia de que o Estado deve
someQ!e aplicar a ordem jurídica sem fins administrativos,
ou então ~tiros direitos dos indivíduos. Ele significa
sobretudo não os fins e conteúdos do Estado m en-
eza de sua realiza ão. 6
É característico que não somente os liberais como Rudolf
n ist, Lo~on Stein e Otto Balir chegaram a essa formulação,
antes ::S~ o autor da teoria conservadora cristã do Estado;
tiue G neist e Bahr8 lhe eram seu as en ento. O postulado

2 LASKI. State, p. 177-8.


3 GNEIST. Rechstaat, p. 333, nº 2. STAHL. Philosophie, vai. li, p. 137.
4 VON MOHL. Ceschichte, vai. I, p. 296 e ss. GNEIST. Rechtsstaat, p. 33.
5 VON STEIN . Rechtsstaat, p. 350. BÃHR. Rechtsstaat, p. 1-2.
310 - 0
\
IMP~ RIO DO ÜiREITO FRANZ N EUMANN - 311

ntrário, em oposição a Stahl, a ideia do Rechtsstaat foi criada


a servir às atividades culturais e de bem-estar do Estado 13 •
te aspecto do Rechtsstaat foi especialmente acentuado por
bert von Mohl em sua Enciclopédia de 185914 :
Sua essência consiste em que ele deve proteger e imple-
mentar todos os fins naturais reconhecidos pelas pessoas
como os objetivos vitais dos indivíduos, bem como aqueles
da comunidade. Para esse propósito ele cuida para que to-
das as atividades de seus cidadãos e do poder governante
sejam levadas a cabo dentro do limites de um sistema jurídi-
co que abarca tudo; e que neste agregado da vida dentro de
seus limites, na relação dos indivíduos entre si e na relação
do todo com suas partes, o direito não pode ser violado. Por
outro lado, ele realiza as várias capacidades e interesses de
seus cidadãos, na medida em que as capacidades destes são
insuficientes e o próprio objeto justifica a aplicação de um
poder total. O estabelecimento e a manutenção da ordem
jurídica, portanto, não é sua base, nem mesmo seu objetivo
mais importante, mas o caráter dominante, o lado negativo
inriolável de todas as suas operações.

9 MASUR. Stahl, p. 211.


10 STAHL. Phi/osophie, vai. li, p. 88.
11 BÃHR. Rechtsstaat, p. 2, 5. 11 H ELLER. Rechtssraat, p. 8.
12 GNEIST. Rechtsstaat, p. 24-5. li VON MOHL. Enzyklopiidie, Tübingen, 1859, p. 106, 38 e 55.
312 - 0 IMPERIO DO D IREITO
FRAN Z NEUMANN - 313

os fins mutáveis do Estado, de um lado, e a forma igual e inalte- supremacia do Parlamento. Esta correlação das duas doutrinas é
rável por meio da qual todo Estado deve realizar seus fins, do ontrada nos Comentários de Blackstone, e é a consequência do
outro lado, se tomou uma realidade constitucional. Nessa teoria, aparecimento de um direito natural genuíno durante e após a
a estranha aliança entre o trono e o altar, por um lado, e o sistema i:ande Revolução. Para Blackstone, a supremacia do Parlamento é
econômico competitivo, por outro lado, é consumada15. have do sistema constitucional O Parlamento pode fazer qual-
Dito isto, características essenciais do Rechtsstaat são, portan- cr coisa que não seja naturalmente irnpossível17. Esta suprema-
to, as seguintes. O princípio fundamental da legalidade é a admi- do Parlamento deve realizar ao mesmo tempo o Império do
dlistração16,...ou sejã: o postulado de que a ãdiíífuístracão do Estado ireito. A correlação das duas doutrinas foi datada por Roscoe
"\ estLsujeito a suas próprias leis e QYe toda interferência do Estado und 18 em 10 de novembro de 1612, quando Coke, por ocasião
deve ser reduzida a tais leis. Isso implica a supremacia da lei e so- Caso das Proibições, se opôs às pretensões do rei James 1 em ser
mente da lei; mas de um certo tipo de lei, a saber, as leis gerais. próprio um juiz; e essa identidade entre as duas doutrinas foi
Disto se segue que a ão entre Estado e os indivíduos tem de belecida com clareza na Petição dos Direitos de 1628. Nesse
ser reviamente determinada pelo direito racional formal. A inter- o, o direito natural finalmente cessa, e a supremacia do direito se
ferência do . stado na liber e e na ro rie e eve oder ser ma a supremacia do Parlamento. A correlação das duas doutrinas
eve ser defini l estabelecida conclusivamente no famoso livro de Dicey. Em
sa visão, o capítulo XIII, que lida com a relação entre a sobera-
parlamentar e o Império do Direito, parece ser decisivo. Dicey
nhece claramente o t onismo lógico entre as duas concep-
~ fundamentais; mas enquanto pensa or esseno ente políti-
ele chega à conclusão de que "sua aparência é enganosa; a
· do Par o em contraste com outras formas de o-
r ~oberano, favorece a supremacia do direito, enquanto a predo-
inância de uma ri ·da le ·dade e e assa nossas institui ões
ca as atividades do Parlamento, aumentando assim a autoridadt
12.2. 0 IMP~RIO DO DIREITO E A SUPREMACIA s-;;-berania artaIIlentar"1 9•
DO PARLAMENTO

ara a

BLACKSTONE. Commentaires, vol. 1, p. 160, com a citação do livro de Coke


Fourth lnstitute, p. 31 ; DICEY. Constitution, p. 39. Além disso, ver HAINES, G.
The A merican Doctrine, p. 9 .
15 DRUCKER. Stah/, p. 8. POU ND, R. Spirit of Common Law, p. 60.
16 THOMA. " Rechtsstaatsidee", p. 204. DICEY. Constitution, p. 402 .
F RANZ NEUMANN - 315
314 - 0 I MP~RIO DO DIREITO

Sua primeira tese é, portanto, a de que a soberania do Parla- A supremacia do direito significa, portanto, a supremacia
mento promove o Império do Direito do país. O fato de que os quele direito decretado pelo Parlamento, ou seja, o direito es-:-
comandos do Parlamento "podem ser proferidos apenas através da tário que se opõe histórica e politicamente à supremacia do
ação combinada de suas três partes constituintes (... )previne aque- mmon Law. Essa doutrina da supremacia do direito estatuído
las usurpações contra o direito do país que um monarca despótico rge historicamente em todo período no qual o poder criativo
como Luís XIV, Napoleão I ou Napoleão ill pode causar por meio Common Law foi negado. O século XVII, em que se traça o
de ordens e decretos ou que as diferentes assembleias constituintes ·unfo da burguesia, é acompanhado também do triunfo do Par-
da França e, sobretudo, a famosa Convenção, implementaram com enta e da supremacia da legislação parlamentar. A partir desse
suas inesperadas resoluções"20 • O mo ·slação pelo Par- mento, o direito estatutário passa a ser dominante, embora o
lamento, com o equihôrio entre a asa dos Comuns a Casa dos mmon Law tivesse se desenvolvido ainda mais plenamente. Essa
bordes-e a rei. também reforça o poder os J , que até agora se ia foi formulada com clareza por Blackstone24•
rerusaFam a intemretar um ato do Parlãffiento diferentemente dQ As contradições e deficiências das construções de D icey fo-
que era necessário segundo as palavras contidas nesse mesmo ato; e, m conclusivamente examinadas no livro do sr. Jenning. Mas
finalmente, explica a ausência do direito adffiiíiistrativo. a crítica não concerne ao roblema sociológico decisivo, pois
Sua segunda tese mostra que a supn:macia do direito reforça se Eode ne ue a construção e 1cey não cionou, e
a soberania do Parlamento21 • O direito é rígido e, por sua rigidez, da continua o erando. É inegável que a soberania parlament~
frequentemente obstrui as atividades do executivo. Se o poder Império do Direito - ou seja, a soberania e o direito material,
executivo desej~ · com eficiência e de forma retensiosa, ele u as concepções política e material do direito - tê~esmo
deve se livrar da ri ·dez do direito em certas circunstâncias. Essa 'gnif!cado no tem o de Dic~. Portanto, é preciso investigar por
pelo Parlamento, seja u não há um antagonismo social correspondente ao antagonis-
de indenização "Um estatuto desse lógico que o próprio Dicey reconheceu. A formulação de Dicey
bém mostr ente a diferen a fundamental entre as dou-

Essa solução não lhe parece


de.que os pn · tivo sem-
pre necessitam de uma delegação arlamentar introduz o contro-
le dos ·uízes. arlamento é o legislador supremo, mas no
momento em que o Parlamento expressou sua vontade como le-
gislador, esta vontade se toma matéria de interpretação por parte
dos juízes do país"23 •

20 Ibidem, p. 403.
21 Ibidem, p. 406.
22 Ibidem, p. 409.
Em Commentaries, vol. 1, p. 87.
23 Ibidem, p. 409.
316- 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 317

leis que eram sistematizadas e interpretadas de uma maneira mui a burguesia não exercia qualquer papel político decisivo; na
refinada com a finalidade de assegurar o máximo de liberdad terra, a um sistema em que a burguesia determinou o con-
contra um Estado mais ou menos absoluto. As causas sociais des o do direito, e o poder político era compartilhado pela Co-
sas duas teorias divergentes sobre a função do direito na vida po- ' nobreza, e burguesia (a estrutura política do sistema jurídico).
lítica e social serão investigadas nos capítulos seguintes.

12.3. TESES SOBRE A CONSTRUÇÃO DO SISTEMA )UR(DICO EM


UMA SOCIEDADE COMPETITIVA A força que integrou aquela sociedade - baseada na liberda-
individual, política e econômica - com o Estado foi a concep-
O sistema jurídico daquele período se centra no seguinte:
de nação (a base irracional da sociedade).
12.3.1. Essas são as teses que deveriam ficar no final deste capítulo,
que, por razões didáticas, já apresentamos e que devem ser
A concepção · dividual e..,política e de liberdade econômig1, nvolvidas nas páginas seguintes.
que implica uma pretensao e liberdade contra o direito de inter- Vamos proceder do seguinte modo: primeiramente, deve-
ven~o do Estado (e chamado carátet pré-estatal da liberdade). analisar a subestrutura econômica a partir da qual o sistema
clico é erigido; em seguida, devemos voltar nossa atenção para
12.3.2. u estrutura política e lidar exclusivamente com o desenvolvi-
rlto alemão, uma vez que a história política inglesa é bem co-
Essa liberdade é garantida pelos direitos racionais formais. .da. Nessa passagem temos de definir a concepção de nação,
Isso significa: pelas leis gerais; e pela aplicação das leis gerais por função ue esta desempenha como um fator de integração na
jttizes-ffidependentes (a estrutura formal do sistema jurídico). · dade moderna competitiva. Finalmente, devemos analisar Õs
i s elementos do sistema ºurídico li er do-nos
12.3.3.

Ele estava cialmen 1: relacionado a um estado de coisas em

~
que-urmr classe-trabalhadora-não-cxi · o um movimento in-
def>enàente~m.q:u.c:...p,ortanto · A •de conflitos de classe
era-simplesm · orada a estrutura social do sistema jurídico).
Ele estava politicamente relacionado a um sistema de separa-
ção e distribuição de poderes; na Alemanha, a um sistema em
Capítulo 13

Subestrutura do Sistema
Jurídico do Liberalismo
FRANZ N EUMANN - 321

3.1. A SUBESTRUTURA ECONÔMICA E A EsTRUTURA MATERIAL

A apresentação do sistema jurídico do liberalismo e da es-


tura econômica que lhe é adequada oferece dificuldades me-
dológicas extraordinárias, as quais serão indicadas aqui sem que
desenvolvamos. Em primeiro lugar, só a apresentação do siste-
jurídico do liberalismo já é por si mesma uma tarefa que está
m das capacidades de um único homem; e certamente é uma
cfa que demandaria um longo período de trabalho preparató-
que não pode ser completado em poucas páginas. Esse traba-
preparatório ainda não foi plenamente realizado. As páginas
·ntes oferecem, portanto, apenas um esboço que se esforça
apresentar o tipo ideal do sistema jurídico liberal. Por tipo
u deve ser entendido, segundo Max Weber, "uma daquelas
t ses que geralmente se designa como ideias de fenômenos his-
i os (... ) Essa imagem mental une certas relações e processos
vida histórica em um cosmos de relações que tem de ser consi-
do consistente" 1• Os tipos ideais são, portanto, "estruturas em
construímos relações que violam a realidade objetiva, que
fantasia, lapidada pela realidade, considera adequada"2 • O
ideal é "uma estrutura mental que não é em si mesma uma
li ade, mas algo com o qual a realidade é mensurada e compa-
". Se, contudo, o tipo ideal não descreve a realidade, por outro
ele não é um conceito a priori. Ele deriva, ao contrário, da
i ade, colocando-se, portanto, entre as noções transcenden-
a priori e uma descrição histórica individual. Ele é construído
liminação de certas características individuais, e pela acen-
de outros aspectos_gue parecem ser essenciais para a cons-
o de um ti o ideal.
Mas por que nós negljg;enciamos certos fenômenos históri-
on-s:i<i~os outros essenciais? Não é verdade que toda

WEBER, Max. Gesammelte Aufsatze zur Wissenschafts/ehre, p. 176.


Ibidem,p. 194.
322 - Q )MP~RJO 00 DIREITO FRANZ N EUMANN - 323

seleção é arbitrária? Há algum padrão de medida que indique total e numa~, e ue ent- ,_pru:...sua~9e~r
quais características históricas individuais são necessárias para a frutíf~ara investigações sociológicas posteriores.
constituição do tipo ideal, e quais são apenas incidentais? A jus-
tificação com base na teoria do conhecimento de Max Weber, a 13.1.1. 0 SISTEMA SOCIAL DE ADAM SMITH E A ESTRUTURA
MATERIAL DO DIREITO
sabet, a fundamentação de sua metodologia a partir do relativis-
mo filosófico da escola kantiana do sudoeste da Alemanha, é in-
dubitavelmente inadequada. Contudo, não podemos dar uma A lei ~os. se torna gradativamente a con-
outra resposta aqui. Será suficiente afirmar que a justeza da cons- sideração entral do sistema libe !.d tava relacionada
trução do tipo ideal pode ser comprovada pelos resultados con- com a teoria econômica do liberalismo clássim; e o,
vincentes das investigações3 • não era somente uma tç0ria-abstflml, m1lS-fte-mesme-temf><:reFa-a
descrição de uma realidade.
A segunda dificuldade metodológica que se apresenta aqui
reside na coordenação de vários tipos parciais e de várias estruturas Essa teoria liberal esteve a · da desde seu início na metafisica.
parciais em um todo estrutural. O que nos dá o direito de dizer Ela consistiu numa comhio~~~a e crença. A expressão
que a construção típica ideal do Rechtsstaat liberal está relacionada característi~ teoria reconcilia~eve ser encontrada no
com a construção típica ideal do sistema econômico liberal? O pro- trabalho de Bolingbro . Eara este, a 1 entidade entre auto-interesse
blema do fenômeno de coordenação a partir de várias esferas já foi e inlgesse comum é um fato óbvio e inegável- "o verdadeiro amor-
exposto por John Stuart Mil14, tal como Morris Ginsberg observa: -próprio e a estima social são a mesma coisa"5,~ duas dádivas
mais nobres da humanidade são "a razão natural e a revelação
01iando situações sociais e as causas que as produzem
sobrena-tural"6 • "A reve çao os m tinta do amor-próprio por
são consideradas matéria da ciência, isso implica que exis-
meio da razão para a realização da benevolência", tal é a regra de
ta aí uma correlação natural entre seus diferentes ele-
ouro da vida ara Bolin broke. Em sua teoria assim como ocorre
mentos. Isso não significa que toda variedade de combi-
ger
nação desses fatos gerais seja possível, mas apenas que
lei·--o->~..:i=~~~~~~::...t::=-:~~~
certas combinações são possíveis; ou seja, em suma, há
uniformidades de co-existência entre as situações que A ~ressão clássica, contudo, deve ser encontrada, indepen-
constituem os vários fenômenos sociais. E tal é a verdade dentemente dos escritos dos fisiocratas, no sistema de Adam Smith7•
(...)
Eles são os axiomata media, os princípios mediadores que, 5 BOLINGBROKE. Works, vol. 1, p. 3 19.
na teoria de John Stuart Mill, justificam a coordenação de várias 6 Ibidem, vol. IV, p. 319; também Walter Sichel e W. Ludwig.
estruturas parciais de várias relações específicas numa estrutura 7 SMITH, Adam. Na Enquiry into the Wealth of Nations, Can nan (ed.}, Oxford;
idem, A Theory of Moral Sentiments, 6ª ed., 2 vol., 1790; idem, Lectures on justice,
Police, Revenue and Arms, Cannan (ed.), Oxford, 1896; HASBACH, Walter. Die
allgemeinen philosophischen Grundlagen der von Quesnay begründeten politischen
ôkonomie, Leipzig, 1890; STEPHEN, Leslei. H ystori of English Thought in the
3 Cf. GINSBERG, Morris. Sociology, 1934; GRAB, Hermann 1. Der Begriff des 18th Century, 2 vols., London, 1927; BONARD, James. Philosophy and Po/itical
Rationalen in der Soziologie Max Webers, Karlsruhe, 1927; MANNHEIM, Karl. Economy, London, 1922; MYRDAL, Gunnar Das politische Element in der
" H isto rismus", A rchi v für Sozial wisse nschaft , 1924; idem, M esch und nationalokonomischen Begriffsbildung, Berlin, 1932; HEIMANN Eduard. Soziale
Cesellschaft in Zeitalter des Umbaus, Leiden, 1935, p. 125-49. Theorie des Kapita/ismus, Tübingen, 192; LOEWE, Adolf. Economics and Sociology,
4 MILL. A System of Logic, livro IV, Cap. X, §§2-6. London, 1935; BÔHM, Franz. Wettbewerb und Monopolkampf, Berlin, 1933.
324 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 325

Adam Smith pertence certamente à escola do direito natu- em dois pressupostos: que o interesse individual é incorporado no
ral. Seu Riqueza das Nações é apenas uma parte de um sistema interesse comum; e que, portanto, o fim da sociedade consiste na
total que, como sua Teoria dos Sentimentos Morais mostra, poderia realização do interesse comum, e não do individual, que é apenas
prover uma teoria completa da sociedade. O mundo é governado um meio - ou melhor, o único meio - para a realização desse fim.
por uma lei natural, e se desenvolve de acordo com esta lei natu- Nesse sentido, o liberalismo clássico se coloca em relação com a
ral. Adam Smith, como m a sua Teoria timentos Mo- tradição do mercantilismo, com a diferença decisiva de que o mé-
rais8, aceita a ideia de · utcheson e de Mande · todo para a realização do ideal de bem-estar distingue-se basica-
combinar-t>S-êkmentos fimdamentais de am: mente daquele do mercantilismo.
l~ade. Hutcheson é rejeitado na medida em que ..__ Todas essas ideias são claramente expressas no trabalho de
nega que o motivo das atividades humanas é o egoísmo. A bene- Adam Smith:
volência, que para Hutcheson deveria ser o único motivo de todas
Como todo indivíduo procura, tanto quanto pode, tanto
as ações humanas, "pode ser, talvez, o único princípio de ação da
empregar seu capital em apoiar a indústria doméstica, e
Divindade" (p. 296), mas não dos homens. Contudo, ele aceita
assim dirigir aquela.ind_ústria para que sua produção seja do
desse "sistema amável" a ideia de que o egoísmo humano pode ser
limitado; que, portanto, as atividades ec?nômicas e sociais têm
máKirnQ_valor, todo indivíduo necessariamente trnbalha rai
tornar o endim to anual da · ·or ue uder.
uma base ética, e que essa fundamentação ética nunca poderá ser
De fato, -geral, e nem pretende promover os interesses

~
abandonada. De Mandeville, por outro lado, adota a concepção
públicos, nem sabe o qµanto está pmmmrendo (... ) ele pro-
de que o egoísmo é o motivo central das atividades humanas, sem,
cura apenas seu próprio ganho, e nisto, como em muitos
contudo, aceitar a ideia da função social do vício.
outros casos, é levado por uma mão invisível a promover um
-------
-___:~~---:-~~---;;~--'~~~~
Conseque~dam Smith divide as atividades huma- §m que não era parte de sua intençãp.9
nas e , egoís e benevolente, e com isso, como todos os teóricos do
Sua crença em que a natureza, "que é um termo polido para
direi o na gel, confronta~m a quesaõ de como "é
Deus"1º, levaá realização dessa identidade é tão forte, sua coollic-
p~-.sG~ade em que o auto-interesse e o mte~
çãe-<le que "tudo que é é justo" é tão profunda, que ele pensa.sg;,
TeSse comum estejaín-tiiEk> a lago- em "J.Ue, portanto, a sobeciriia melhor que o indivíduo nem mesmo deva saber gue perse~e
surja da cQtD.pêfíção,1Ele encontra ~lução desse problema na crença
in~sses comuns ao agrr egoisticameAte.
de que a pers.e_gi~o de intere s s e oístas individuais leva automa-
ticamente, por..causa..de_um.p · ersal do mun o, à realiza -o A felicidade da humanidade( ... ) parece ser a intenção
àoi:nteresse-e0m1mr ou.s~ja,.qiu::, deyjdo à coincidência de todos os original pretendida pelo autor da natureza quando os
inter-ess~ Wiumanos,..a soberania deye necessariamente surgir da li-
trouxe à existência( ... ) Os ricos apenas selecionam d,p
vre-competi - o t to e essa lei natural que realiza o lano moirnrnte o que é mais precioso e a,gradáyel. Eles conso-
mundial não sofra interferências.externas. E preciso reforçar com mem um pouco menos do que os pobres e, ao invés de

toda a ênfase possível que o sistema de Adam Smith está fundado seu egoísmo e voracidade naturais, ainda que signifiquem

9 SMITH . Wealth of Nations, vol. 1, Livro IV, Cap. li, p. 421.


8 SMITH . Moral Sentiments, voL li, parte VIII, seção li, Cap. Ili, p. 286, 305 . 10 STEPHEN. English Thought, vol. li, p. 70, 73.
326 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 327

somente sua própria conveniência, dividem com os po- conquistada por meio · ºúria de um irmão competi : "Nunca
bres o produto de todas as suas conquistas. Eles são leva- algum ..ffidivídm>-..d0-V<'J ~ferir1 propno c m anto mais ardor
dos por uma mão invisível a fazer de uma forma bem acima..de..qualquex:..outroJn · 'duo a onto de fc · ~
aproximada a mesma distribuição das necessidades da outro promrando o beneficio própi:i.G,-não-Obsnmte o beneficio de
vida que teria sido feita caso a Terra fosse dividida em um..d~~gi:-e-iftjúria para um outro"14.
proporções iguais (...) e então, sem pretendê-lo, sem Essa formulação~ é agora aplicada à competição na esfera
conhecê-lo,_ romovem o interesse da socie econômica: "Na corrida por riqueza, honra e prestígio, cada um

~·~·
pode correr o mais-xápº e uder e forçar cada nervo e cada
Essa ·tida harmo · é, em e_rimeiro lu~ U!J)a hamio- m~o com a finalidade de vencer todos os seus compet:J. ores.

rlla-Qo_mercado de produtos, no sentido de uma coincidência Mas sg_Jhe for pe ·tido em urrar ou derrubar qualquer um de-
enmukm~à~ão. Nesse sentido, só se pode produzir les,...a induJgência do.espectador chega inteiramente ao fim. Isso é
perpetuamente aq!:lilo que tiver uma demanda &fetiva; P'*-meio uma-\liolayão àe-j~t~ qual eles não podem admitjr"15 •
dlrqual-se assume uma mais-valia cada vez maioru. Assim, podemos encontrar em Adam Smith os rudimentos
Será de importância decisiva indicar agora as condições rea- de uma teoria da competição que desde então foi desenvolvida
listas para o funcionamento desse sistema harmônico, isto é, para pela jurisprudência alemã; a saber, a distinção entre competição
o surgimento da .soberania a partir da competição. Pois apenas se pela eficiência (Leistungswettbewerb) e competição restritiva
soubermos q_uais condições devem existir na realidade histórica, (Behinderungswettbewerb) 16 • A dife e os dois tipos de
pat:a__Qye a luta entre os mm ·dores não de enere num bell~m competição é, primeiramente, o o -·etivo da lu . Os competido-
õmnium contra omnes de Hobbes, poderemos nos resguar ar co.as. res<..em um mercado livre lutam pela existencia ou aperfeiçoa.:
tra a tentação de separar o postulado da livre competição do siste- m ento econômico. Os monopolistatlutam para abolir a liberdade
ma-sgci melhor absolutizar o ostulado da de-me.reado ou,.se..s- -sucedidos nesta taref: ara fortificar
liw-e-comperiçã~i:i-le-paGa um sistema socjal qye nunca 1pl!~fj!:::pJ~~?:!!!!2lD.eJpQlisJ~. Por um monopolista - e se
fai-pi:etendido,..tal como ocorreu logo após Ricardo. Pois as gene- efinição mar~ - tntendemos qualquer um que
raliza~&~n · - nada mais do que um tenha sucesso em obter e seus clientes termos mais favoráveis d
<s-i-st-tmla-d--=z~::.:::.~~:... que.aqueles as n õe ao.
Consequentemente, não apenas o objetivo da luta, mas também
Competição significa luta; m uta se move dentro de
os métodos são diferentes. Um competidor no livre mercado pro;
limites ordenados. A imagem da mpeti - criada por Adam
qira realizar seu próprio sucesso ecÕnômico. Ele, portanto, se en-
Smith não tem oada a ver mm a descrição gue H éili'bes oferece do
gaja em uma tal atividade que não é em si mesma combativa, mas
es do de com eti -o nunca deve lev
oompanheiro-competidor. A vantagem individual nunca deve ser

14 SMITH. Moral Sentiments, vol. 1, parte Ili , Cap. Ili, p. 339.


15 Ibidem, vol. I, parte li, seção li, cap. li, p. 206.
11 SMITH. Moral Sentiments, vol. I, parte IV, Cap. I, p. 466. 16 Cf. LOEBE . Oie Bekiimpfung unlauteren Wettbewerbs , Leipzi g, 1907;
12 Cf. HEIMANN. Kapitalismus, p. 8-9. NIPPERDEY, C. H. "Wettbewerb und Existenzvemichtung", Karte// Rundschau,
13 LOEWE. Economics, p. 40. 1930, p. 128 e ss.; BÔHM. Wettbewerb.
328 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO
F RANZ N EUMANN - 329

que só se toma assim pelo fato de todos buscarem alcançar fins mercado de produtos, e não ao . É verdade
idênticos. O monopolista, contudo, luta para frustrar os objetivos que para Adam Smith, bem como para seus sucessores, o curso
dos outros, mas não necessariamente com a finalidade de obter do desenvolvimento pareceu ser vantajoso para todas as classes
para si o sucesso econômico, que ele geralmente realiza somente sociais. Pois a divisão progressiva do trabalho "foi considerada um
depois que a luta termina. retomo real permanentemente lucrativo( ...) por estimular a acu-
mulação de capital monetário, e o mesmo progresso técnico man-
"'"'...-l""TI6'a to de aumentar a taxa s arial. Nesse

omente dessa legitimação da competição segue-se sua re-


je"íção aos monopólios2~ Seu repúdio a todos os monopólios e
privilégios tem um si · cado decisivo ara a avalia - -o a e:
nas de sua teoria econfünica , mas da teoria social enquanto tal. E
bem ~ciclo o fato de que ele admitiu exceções somente para
as c~\, mesmo assim emc te durante um período de tran-
siçã 21• A razão para sua os a e ontra os monopólios reside
em ue sua teoria está preocupa a com as necessidades da comu-
nidade como um todo. Os monopólios foram característicos o
rhercantilismo. As leis do mercantilismo ara a rote ão do m -
n~ "como as leis de Draco· ode-se dizer ue estas leis
fo e"22.

Sua atitude negativa em face dos monopólios é implemen-


tada por certos postulados positivos relacionados a uma condição
econômica em que há privilégios e monopólios. Em Cursos, tal
como antes em Riqueza das Nações, ele primeiro afirma expressa-
mente que os monopólios e os privilégios, tais.como...os sindicatos
o adeiros e çougueiras " a o ulência ública. Nesse
_çasa,...semp ma ·strado
Contudo, é preciso reforçar que essa concepção de competi-
lvida ela economia clássica apenas em relãção ao
19 Ibidem, p. 68.
20 SMITH. Wealth of Nations, vo l. 1, livro I, cap. VII, p. 63; cap. XI, parte 1, p.
148; vol. li, livro IV, cap. VII, parte Ili, p. 109, 127, 129; cap. VIII, p. 146.
17 BÔHM. Wettbewerb, p. 274. 21 Ibidem, vo l. li, livro V, cap. 1, pa rte Ili, p. 245.
18 LOEWE. Economics, p. 66, 88. 22 Ibidem, vol. li, livro IV, cap. VIII, p. 146.
330 - o IM~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 331

toda mercadoria livre (... ) não há razão para que isso aconteça, da atividade econômica em que o elemento da iniciativa do
mas é necessário que os padeiros entrem em acordo mútuo para empresário não é fundamental - CID. cpie a atividade econôrnica...Ç
estabelecer a quantidade e os preços que lhes aprazem"23 • Em prinçij! ente O empresário é, portanto, o
outras palavras, a categoria jurídica da liberdade de contrato cons- capitalista que sca seu capi e sua força de trabalho por um
titui uma liberdade sociológica somente no caso de ausência dos objetivo incerto, em snrna, aquele capitalista mie combina todas as
monopólios. Do mesmo modo, o princípio político de não inter- As fimções da pmpriedae e, a ão apenas lc;galmente, mas efe-
~enção _só é desejável~ o mercado for um palco para a luta d; J:iyamente. A~ · · tilização do capital formam o
campetidores em igualdade de condições. Por essa razão, sempre empresário. U separação das fun - ,_uma cisão en~ "pro.prie~e
ue existirem os monopólios, o princípio'"" de liberdade de contra- difusa e controle concentra o , · · - três fun ões da
to e de não intervenção deixa de ser aplicado. Essa visão, em c{ue p~p âiõca ãÕe mãos - tudo isso é comple-
a diferença entre intervenção e não intervenção depende inteira- tamente estranho para ele. O empresário se compreende não como
mente das condições sociais, foi expressa de uma forma bem cíni- um funcionário da sociedade, mas como um empreendedor. O
ca por Talleyrand em relação à política externa: "Madame", diz empresário da economia clássica "eliminou suas próprias tarefas para
ele, "a não intervenção é uma palavra diplomática e enigmática adaptá-las à sua própria medida e detenniná-la segundo seus critérios",
que significa quase · a que intervenção"24 • Em situa- enquanto o funcionári de uma co ração, o administrador con-
ções de monopólio, dam Smi bem ~orno Pufendorf: vê clara- tra tarefas serem eliminadas or outros e 01 o nga o
mente que a liberdade sup ementar que constitui a liberdade de a executá-las"27•
contmt<Ule.vc-sei: ubstin1ída necessariamente pela adminjstraç~ A partir dessa concepçã ' ·o, Adam Smith infere
s~plementar do ato administrativo pertencente ao direito p1íh)j- que ele tem de sustentar o ·sco da empres , e não pode justificar
.--A-àe~da por um controle dos monopólios não é apenas frente à so~e o ato de repassar o nsco a outro5r@spec1.cb:nem:e ·
econciliável com a U:.Oria de Adam Smith, ela é antes uma conse- ao ~ado, seja através de subsídios diretos ou indiretos.,,
l..9,Uêncra eta desta. =--
Apenas se tais condições realmente existirem Adam Smith
0 repúdio pelos monopólios implica a igualdade de acredita na realiza.ção de uma harmonia preestahcleci~n b e fü-
competição e, em acréscimo, umçcerto tipo de empresário. Sabe- ter~es individuais e interesse comum. Apenas sob estas condi-
-se qu Adam Smith r · · · de anônima ções pode-se Vãlídar sua afirmação: "Todos os sistemas, quer de
fu~da por acionistas, e a adytitin apenas em caso de atividades preferênci ~ estrição, portanto, sendo completamente re-
eGQR A ·cas - góciQ batJCáriA..ÃCguw, a mnstmção e nayeg:ação movidos, o ·stema óbvio e sim les da liberdade natural se
das--<;a0ais. e o ahastecjrnento de água de waodes ciciades 25; e é belece or s· ó
característico de sua percepção profundamente sociológica que as
Já mencionamos que esse sistema de uma democracia de
sociedades anônimas sejam consideradas legítimas naqueles campos
pequenos empreendimentos só se aplica ao mercado de produtos.

23 Idem, Lectures, p. 177. 26 KNIGHT, F. H. ·Risk, Uncertain ty and Profit (Número 16 das Reprints of Scarce
24 Citado por Granville Stapleton, Jntervention and Non-intervention or the Foreign Tracts da London School of Economics), p. 291 .
Po/icy of Creat Brita in from 1790 to 1865, London, 1866, p. 15. 27 KNIGHT. Risk, p. 298.
25 SMITH. Wea/th of Nations, vol. li, livro V. cap. 1, parte Ili, art. 1. 28 SMITH. Wealth of Nations, vol. li, livro IV, Cap. IX, p. 184.
332 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 333

No caso do mercado de trabalho, na medida em que não existem os cartéis monopolizam as mercadorias e os serviços; e que,
sindicatos, monopolistas e não monopolistas típicos encontram-se portanto, sempre que for instituído o controle sobre os cartéis, tal
em oposição. O empresário, enquanto proprietário dos meios de pro- controle tambéuulev.e.se.i:..apliaidQ necessaFiamepte aos sindicatos
dução, é tipicamente o mais forte. Na relação entre empresário e - toma-se inadmissíyel. A legislação alemã, visando à diferença
empregado, a liberdade de contrato não garante liberdade sociológi- estrutural entre mercack>-de-pr dutos e mercado de trabalho, fez
ca, mas apenas liberdade jurídica, que oculta o fato da dependência uma clara diferenciação e tre amb s. Esta diferenciação culminou
social. É verdade que Adam Smith, assim como Ricardo, desfrutou no estabelecimento de um..ronttole de cactéis e de monopólios,
de alguma medida de bem-estar para os trabalhadores, mas, ao con- po ·herdade dos sindica s,
trário de sua teoria do mercado de produtos29, ambos não tomaram paumtro. Na Inglaterra, ao contrário, tanto na teoria jurídica
qualquer providência institucional contra uma possível exploração quanto na prática legislativa, .não se delineou qualquer distinção
dos não monopolistas por parte dos monopolistas, nem por uma entre cartéis e sindicatos. Os cartéis também foram incluídos na
restituição da competição na eficiência. Em acréscimo, temos que Emenda dos in ·catos de 187631 • Contra essa posição, temos
.,,.knfatizar o principio sociológico que Max Weber chamou de "van- somente de mar a ui ue s sindicatos certamente de
l\agem dos menores números"30. O menor número de empresários penham funç~s..de.Gaáel~ - e ara vender a for
lhes confere s@pre uma certa superioridadç frente ao maior número trab re o mais alto ossível mas eles também exercem
<-de trabalhadores; e mesmo suas organizações partilham desta vanta- fun ões de sin ·
ge_lll e o menor número de membros sem re ssibilita

~
SW1S-'1dibeniç- es se· am mantidas em segredo, e há uma solidariedade
.be · · e · -
~ dores· de modo que, mesmo no caso de uma orgalliz.ação consti-
~d_ª-J20r dois lados, semere á uma re tiva supenon a e c!s2..
m re ' · . Se a teoria da competição de Adam Smith fosse aplicada
ao mercado de trabalho, se seguiria daí que a liberdade do trabalha- ue as vontades anta ônicas já
dor em sentido sociológico começaria apenas com a organização co- selaram um com romisso.
letiva. Isso significa que o sindicato corresponderia ao empresário
.dµlmtM:or.l.l(lesmo o empresário, que no mercado de produtos não é 13.1.2. A ÜASSIFICAÇÃO DAS INTERFERiNCIAS DO ESTADO

~ ono lis ~pre será um no mercado de trabalho se os sin;.


dígitos estiverem ausentes. No sistema econômico livre então constituído, a intervenção
Por conseguinte, o postulado constantemente repetido - estatal é a exceção. A função do Estado se esgota no "mínimo
individual"33, ou seja, no estabelecimento da segurança pessoal,
segundo o qual os siru!!._catos são cartéis porque monopolizam a
fru:ça de trabalho no mercado de produtos do mesmo modo gyc. na proteção da propriedade privada e na provisão dos meios para

31 Lei de Emenda dos Sindicatos de 1876, cf. SLESSER e BLAKER, 12, 132.
29 HEIMANN. Kapita/ismus, p. 19. 32 NEUMANN, Franz. Koa/itionsfreiheit und Reichsverfassung, 1932, p. 20 e ss.
30 WEBER, Max. Wirtschaft und Cesellschaft, p. 610. 33 SIDGWICK, H. Elements of Politics, 1891, caps. IV, IX.
334- Ü IMPERIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 335

assegurar o cum~rim~nt~ .dos c~ntr~tos: As o~zaçõe~ ~ue ili.adora, como no caso do seguro-desempre , a jornada de oito
realizam esse mírumo mdividual sao a ~a, a~ o-aet'Clto horas de trabalho, etc.
e 6 · ostos, tal como__foi exposto nos Curwr de Adam Smi~.
Ao procurar c intervenção estatal reconhecendo, com
base em tal lassificação o objetivo da lei geral, deveJXl<)s
discriminar entre- nç.Ges
fueia-is dentre as várias formas de intervenção estatal. Nós
determinamos a noção de função social semelhantemente a como
R. H. Tawney definiu a função social da propriedade34 • Admi-
timos que a intervenção estatal nem sempre alcança os objetivos
cuja realização foi sua motivação. Os sujeitos econômicos
frequentemente conseguem escapar da intervenção do Estado por
meio de mµdanças estrumnüs li! íi:H.tt:ionais, as quais eaaft:ontam
imedia o Estado com novos problemas (por exem lo
mfluência--do imposto de movimentação so re a concentração de
c ital na forma das uniões de em resas .
--.) A classificação de acordo com os motivos só pode ser reali-
zada se..!!_vermos em mente os estratos sociais atingidos pel3-s
medidas de intervenção. Portanto, distinguimos a intervenção
em favor do Estado enquanto tal; por exemplo, impostos que A essas regras também pertence um certo tipo de reforma .
proveem os custos da statal. Obviamente, o mo- social; aquelas medidas que são artas para a segurança
tivo encontrado não precisa ser o único O fmanciamento dos social do funcionamento do · .tema econôm1 39 • Um certo,
gastos do Estado nesta ou naque direção pode ser, e geralmen- mesmo modesto, número de medidas para a proteção da cla~e
\::J te-é, motivado também pela consideração de certos ~teresses de traQ_alhadora é necessário em favor dos interesses da produtiri-
~· A intervenção pode acontecer em nome dos ~teresses ~a da.d_e. Mesmo o reconhecimento dos sindicatos pode ser ne-
nação como um todo, por exem lo, controle da saude e da ali- ces~ário P7lra a manutençao da livre compettçãoz par~ a
mentação. Ela tamb~ pode ser motivada el · restauração da paz iDdnstrjal e paca o estabeh;cimento de um
classe...dgs capitalistas industriais. financeiros ou agrários! como cert - grau e trabalha
no_casodau;aàfa~ d s cartéis com ulsórios a r · · -o e em resários.
1ns
· tt.-~u.u·
...,,;. - f>-
"" .· el ode
_ acontecer
_ em favor dos
interes~es..do idores (controle de cartéis e mono ólios;
35 orrell v. Smith (1925) A. C. 700.
legislação antitruste); ou segundo os interesses a classe traba- 36 Ratcliffe v. Evans (1892) 2 Q. B. 524.
37 South Wales Miners' Federation v. Glamorgan Coai. Co. Ltd. (1905) A. C. 239.
38 BROWN, Jethro. The Underlying Principies of Modem Legislation, 1912,
Cap. IV.
34 TAWNEY, R. H. The Sickness of an Acquisitive Society, London, 1920, p. 7. 39 HEIMANN. Kapitalismus, p. 135.
336 - Ü I MP~ RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 337

As intervenções do Estado podem visar conscientemente à do termo. Se, contudo, queremos expressar - como faum os fas-
alteração da estrutura econômica, ou podem levar funcionalmen- cistas e os críticos-d rma social do Estado não intervencio-
te a tal transformação. Uma lei proibindo a competição desigual ni-'.'ta - que este Estado é fraco, e que o stado pos1t:Ivo passa a ser
-sem dúvidas desempenhará funções fundamentalmente diferen- um Es · msta ue sempre será refenvel aquele~ se,
s numa sociedade com etitiva ou numa . Nesta, a contudo, o te~o negativo implica um juízo de valor, temos en-
equidade dos métodos usados na luta econômica não é determi- tão de protestar energicamente contra seu uso. O Estado não in-
nada pela competição, mas pelos próprios monopolistas. A união tervencionista do liberalismo certamente era negati , mas não
entre o atacadista e o varejista na venda das mercadorias e a prote- quer dizer q e fosse fraco; ele foi, antes, tão o e quanto sua
ção desses contratos por injunção ou mesmo multas e indeniza- estrutura social e econômica o fizeram necessª1"io. Sempre que se
çõe~ faum com que a lei_contra ~ com~= !~~:;;:::~:~ tratava da questão de conquistar ou defender n~vos mercados, de
um ms~a.pa ra a m anutcm~a€Mia.li . t ... - - --- domesticar a inquietação interna, de Eroteger a ordem burguesa,
forme num órgão de.sim própàa desmiiçãc. Se o Estad alnão · !lÍI
a onteceu na Alemanha, defende a abri

13.2. A SUBESTRUTURA POLfTICA

13.2.1.

no"-=~.--.;;;;.;;.....;;;...a;;.;;..;..;;;o;;:.:~ ,~~~=i;:~""~~~:;:.:;:;~~~~~~
O sistema jurídico liberal não se relaciona funcionalmente
tios ~stah~foeiment de.ot:~nizaç.ág.c;statal além da orgaajy.-
apei:i conômic mas também com
ção-palítica,..cDmo . o.r..exempl ~irtvl:J#srqtl ..
.subestrutura política particular41 • Tal como na teoria econômica,
Para resumir: apenas sob as condições que a economia clás-
sica tomou favoráveis para a estrutura de um sistema econômico
"beral pocle-se-jttStific!H' o principio lià@ml de não intervenção 40 NASSAU-SENIOR. Politica/ Economy, p. 75.
·de-Estado. Tal Estado tem de ser aquilo que estamos acostuma- 41 Em acréscimo às interpretações liberais nacionalistas e burguesas da história
da Alemanha prussiana, eu gostaria de mencionar especialmente os segui ntes
dos a a. ,S e'Pressão indicamos trabalhos: CAVAIGNAC, S. La formation de /a Prusse Contemporaine, 2 vols,
apenas uma re sé nenhum juízo e valor está im- 1891 , 1898; LEHMANN, Max. Freiherr v. Stein, 2 vols., 1902, 1905; M EHRI NG,
Franz. "Zur preussi schen Geschichte von Til sit bis zur Reichsgründu ng",
pliça~ nela, ne uma o 1eção pode ser evantada contra o uso _ Gessammelt Schriften und A ufsiitze; LASSALE, Ferdinand. Gessammelte Schriften
338 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 339

a teoria política se centra na ideia da harmonia da sociedade, da


identidade do autointeresse com o interesse comum, do equilí-
brio entre todas as forças sociais, de um equihôrio entre Estado e
sociedade. Essa ideia foi formulada com clareza por Bolingbroke42,
que como um eclético típico aceitou todas as tendê
Esse equihôrio foi chamado por Walt~r Sjchel de "ioterde-
~. o racionalismo.de VOitaire e o defamo de seu peóoda, e tam-
dênci · de ende te"44 •
b.ém aplicou a J:e.Q,Ôa da harmo · à esfi
Um rei da Grã-Bretanha é aquele magistrado supremo
que tem uma voz negativa na legislatura, e muitos outros
poderes e privilégios, que chamamos de prerrogativas, es-
tão entregues à sua confiança. As duas casas do Parla- o
mento têm seus direitos e privilégios, alguns dos quais são
comuns a ambas, outros particulares a cada uma. Elas ela-
boram e aprovam projetos, ou simplesmente se recusam a
aprová-los tal como lhes foram enviados. Elas destinam,
aro,
representam, aconselham e deliberam. A judicatura su-
prema reside com os lordes. Os comuns constituem o gmn-
~ de po..r.ta-voz da na~ão; e a eles cabe também avaliar as
de.spesas nacionais e prmreryerha quando necessário.

Se os poderes legislativo e executivo estão plena-


mente nas mãos do rei, então ele seria absoluto; se se
encontram com os lordes, nosso governo seria uma aásto-
cracia (... );se reside com os comuns) seria umª democra-
cia ~ a divisão dos podere5 ~ ) que cgpstjp i 'MP? mg-
1

~ limitada ( ) Se algumtrês ( ) pudesse em


das

algum momento usurpar mais pocier do que o direito lhe Nas batalhas de Jena e Auerstãdt, a criação de Frederico o
eeBeeàe;-ol:Ffazep ma paà le~, as Ql!tras •tande se desintegrou, porque a livre articipação de seus cida-
d~mpregar S!!ª foq;a.,BQderiam recluzir os não er-a..apenas-deseoooeci bs lutis Q clarecido
est~eàerc t ' reoomluz.i...la.aos_s.w próprios limites. É Estado de Frederico, mas foi antes conscientemente repudia-
por este. Os exemplos da Inglaterra a da França, as guerras
panholas contra Napoleão, o levante dos tiroleses, que provou
und Reden, Eduard Berstein (ed.), Berlin, 1915, esp. Vol. 2; artigos de Karl
Marx, especialmente aqueles na Rheinische Zeitung; Walter Koch, Vo/k und
Staatsführung vor dem We/tkriege, Stuttgart, 1935.
42 STEPHEN, English Thought; Walter Sichel, Bo/ingbroke and His Time, London, BOLINGBROKE. " Remarks on the History of England", Works, XI, p. 82-3.
1912; Walter Ludwig, Lord Bolingbroke und die Aufk/arung, Heidelberg, 1928. SJCHEL. Bolingbroke, p. 332.
340 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 341

que uma integração democrática do Estado poderia produzir um seriamente aos junkers, e que foi um gênio no caráter, ainda que
aparelho estatal mais eficiente do que aquele erigido pelo absolu- não pertencesse intelectualmente ao primeiro escalão, nunca pôde,
tismo, tiveram pouca influência na Prússia. com suas intenções voltadas para reforma social, se afirmar com
- O desenvolvimento liberal come ou a enas a ós o fracasso sucesso. Seu sucessor, Hardenberg, foi socialmente um puro
reacionário. Ele não implementou a abolição da isenção dos impostos
pat:a...QS proprietários de terra, que foi planejada por Stein. Ele
introduziu uma regulação feudal para os trabalhadores domésticos
e agrários ( Gesindeord~~m o de 1810), que, apesar
do postulado da ~aldade jurídica na últi Constituição
prussiana de 1850, permaneceu intoçada "Antes...três batalhas de
Auei:stãdt do que um edital de minihro" era o mote dos junkC?!s
pmssianos, e Gnnse~entemente da política pi;ussiana.
Independentemente dessa fundamentação do Estado sobre
a liberdade econômica e reação social, o aparelho estatal foi reor-
ganizado e modernizado. Em 24 de novembro de 1808, um mi-
nistério foi criado pela primeira vez. Em 19 de novembro de 1808,
um governo local para o município__fu,í_,introduzido; uma ideia,
a. verdade, contra a qual Harcienberg - um verdadeiro discípulo
d · . Contudo, o
problema p 'tico decisiv , a-sab6r,..aciuele dil.Participação da bur-
guesia.li . yão da ooatade do Estado, mmca foi ataca-
do e nunca foi solucionado.
É verdade que em 22 de maio de 1815 Frederico Guilherme
III prometeu à "Nação Prussiana" direitos de con dominium. É
igualmente verdadeiro que ele repetiu essa promessa em 17 de
janeiro de 1820, e prometeu ainda fazer débitos apenas com o
consentimento dos estados. Mas ele nunca cumpriu suas promessas.
--{or uma ordem do Giiliinete de 11 de junho de 1821, a decisão do
problema constitucional foi diada or tem o indeterminad . A
nobreza e os rietários de terr , liderad íacipe,
sab om sucesso a re orm al. Esta sabotagem
das promessas de Frederico Guilhenne ID está inseparavelmente
que até entã~a..àesff:utad 0 • Se economicamente o sistema era ligada ao nome e ao sistema de Metternich, que, juntamente com o
relativamente progressista, socialmente ele era o mais reacionário. czar russo, fez de tudo para mudar as ideias de Frederico; uma
Stein, provavelmente o único ministro liberal que ousou se opor
342 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 343

tarefa realizada com relativa facilidade, considerando-se o caráter Viena, executou o o de salvaçã "com o adiamento, a transferêÓcia -
ignóbil e suspeito do rei. Os dois memorandos de Metternich, em e finalmente a dissohiÇ ve -o Nacional. O rei impôs
que enumera as razões contra a reforma constitucional, pertencem uma-aow.constituição em 5 de dezembro de 1848; aboliu o sufrágio
aos mais repulsivos documentos da história da Prússia. O que restara · e introduziu o famoso sufrágio de trêS
das promessas constitucionais foram os regimes provinciais
(Provinziallandtage), que poderiam ser convocados pelo governo Constituição imposta, com o qual ele se saiu naturalmente vitorioso.
conforme lhe convinha, fazendo-o deliberadamente a portas O período seguinte está marcado em seu todo pela reação por
fechadas. O governo escolhia um oficial que presidiria suas reuniões parte da aristocracia proprietária de terra. A reintrodução dos poderes
e se preveniria contra qualquer discussão indesejada. Os estados policiais dos lordes feudais; propriedades de terra inalienáveis
exerciam somente o papel de aconselhamento, apenas o direito de (Fideikomisse); a restrição da liberdade de reunião pelo estatuto
protestar e de trazer à tona suas demandas. O regime era composto reacionário; e a transformação da segunda câmara numa Casa dos
de 584 membros, dos quais 278 eram nobres, 182 representavam Lordes (Herrenhaus) são características,.desse período. Karl Marx
os munidpios!'12~camponeses. Com a finalidade de excluir a notou corretamente que a Alemanha e &.1848 · cilmente alcançara
influência da,Jntell~~Y urbana a enas os roprietários urbanos a condição da·França em 1789,..Q!b como evemos acrescentar, que
~sidiam ~ CliJ J;..pPr mais de dez anos poderiam se e eger. A li loglaterxa já havia alcançado em 1688. Frederico o Grande disse
eleição de qualquer oficial pode~lQ~emo. Apenas que a situação da Prússia na sua juventude correspondia aproxi-
em 1840, após a morte de Frederico Guilherme a burguesia m~ente àquela da França nas riiãos de Francis I.
começOJ ovament a tom ~ esia de Rhineland, É óbvio que essa reação~olítica não poderia impedir a ª~-~
~rada I!ºr Beckerath, Camphausen e Hansemann, e a urguesia censão econômica e social d burguesia; e numa extensão mais
siana do leste sob a lideran mo ª' o reforço de sua osi ão social teve um efeito o tlco. A
"nova era o er smo começa em 1858, quando o chamado-
~s eno liberal de Hohe~llem-Auerswald sucedeu o minis_:: -
eno re ário de Manteuffel. O liberalismo do regente, antes
rei e imperado , Q_uilherme I, que indicou este ministério, foi
condiciona o principalmente pelo fato de que ele precisava de
dinheiro para a refoana do exército e o aumento de seu contur ·
gente, e portanto foi compelido a abolir os privilégios QUe a acis-
·tocracia proprietária de terras tinha sobre os impostos. Pos isso ele
cisava de um · . A burguesia exultava; isso rom-
peu sua op.gfil.ção ao Parlamento azerui~ ~
signar-a.penas...p~.i;a..W1JJ-i.;~1-1.1~~w.u...LU:wu~~~~~~
- · ·stério. Esse..reina_do..i ente um curto
Reríodo de tem o. Ele terminou com a famosa disputa pelas re- ·
formas do exército, que começaram em 1860 e se expandiram até
se tomar um conflito constitucional. O Partido Liberal Progres-
344 - 0 I MP~RIO DO Ü JREITO FRANZ N EUMANN - 345

sista, que insistiu no direito orçamentário do Parlamento, con- por j s independent . Essa distribuição de poderes entre- Õs
quistou 250 cadeiras na eleição de 5 de maio de 1862; um suces- vários estratos a~es governantes não foi alterada após a
so extraordinário, do qual, contudo, não se fez pleno uso. É verdade formação do império. Esta formação enquanto tal e a vitória de
que o Parlamento rejeitou o orçamento militar. Mas Bismarck, tendências unificadoras correspondiam aos interesses econômicos
que era chamado de salvador, governou sem orçamento, em virtu- da burguesia. A Jegislação~o Império implementou todas as
de do Art. 99 da Constituição da Prússia e da teoria constitucio- demandas do liberalismo econômico. Politicamente, contudo, a
nal planejada por ele para tal propósito. O mesmo Partido burguesia ão exercia urri a el fundamental corres ondente à
Progressista, que rejeitou o orçamento militar, consentiu com o s~ importância econômica e social. Na questão decisiva de.co to,
resto do orçamento, negociou com o governo e se satisfez ao de- ou seja, saber se o governo tinha a obrigação de assegurar anual-
plorar a violação da Constituição pelo regime. Nessa via, o libera- mente o consentimento do Parlammt0-quant-0-ao orçamc~a
lismo político se desgraçou frente à pequena burguesia, que muito b~esia foi derrotada. O acordo conquistado por Bismar~k,
cedo, especialmente após as guerras vitoriosas, caíra sob as armas segundo o qual as forças do exército r: os gastos mi1itares devenam
de Bismarck. A ala direita do liberalismo, que se constituiu como se aprovados pelo Parlamento apenas a cada sete anos (e, a pattir
um partido liberal nacional independente, chegou a estabelecer de 1893 a cada cinco anos foi de f: e. Esse
uma paz formal com o regime. acordo durou a ' 191 . Bismarck desmontou o liberalismo, mas ·
Como um resultado dessas séries de derrotas, o sistema par- ~ ·
rornyvn cal! 11u;;~
· • o Pº 1'IÍJCO
· com sua MfermmJ!J.
r,r 1· '- f Ele. precrsava
. -
lamentar foi abandonado, e o princípio monárquico, tal como foi do P,àrtido católi parà apoiar sua política econômica, r: ~
defendido por Friedrich Julius Stahl, realizou-se na prática polí- pattJ.J a -c er e
tica. Todas as decisões eram tomadas pelo monarca, que se iden- uma forma descuidada em relação aos seus próprios interesses, -
tificava com o exército, os proprietários de terra e a burocracia. A sem tentar estabelecer um sistema parlamentar. Ao mesmo tempo, -
influência da nobreza nas corporações de oficio era extremamen- ·=-.;=--""-i.de o..seeialimio, Bismarck ·praticamente cri9u~
te forte. A administração interna da Prússia estava sob o domínio a· ;-q , o, conq o o sufi ágio-tie·
da nobreza.~m 1906, de cada doze s residentes das pro'dxicias, trê asses uência ~a-a.a-Pmssia.
Õ1IZc . ef1l:Hl a gb..,.s; de cad~ tri nta ~ seis presidentes dos distritos O semiparlamentarismo de Bülow no período do bloco reforçou
RegfeRm.. iistdenten tnnta e tres eram nobres; enquanto para os grupos parlamentares, mas não mudou substancialmente a
olf.amoso posto de administrador o conse o an rat , o ti o distribuição do poder. Na Prússia, o sufrágio de três classes
..de conde era necessário 45 • permaneceu. Em sua ida ao Parlamento 2 de novemb de
19-08,...Gnilhecme II prometeu "um desenvolvimento o
Os direitos da burguesia não eram, portanto, assegurados
d ufH · "; c<:>ntudo ele se ant-ev ti à sua-t:r'll't:tiÇão do
pela participaçã_Q.J)a furmação das decisões políticas, isto é, nio
ohenzollern o não manter.a promessa eopreferirenttare acordo
ge nte mas a enas materialmente, por meio do governo
com a rea ão dos jynke o...v..er,ã 909. A influência
...de leis gerais tais como eram decretadas pe o ar ento e aplicadas
permanente dos junkers da Prússia do leste foi possível por causa
do com romis~ com o ~e-tefitl'I etl!Jstag
45 Cf. SCHÜCKING, L. E. Die Reaktion in der inneren Verwa/tung Preussens, 2• e
effii90-9,-naJ>easi-ã d-0 .fb utos-sobre-a et>ra. O grupo
3ª ed., Berlin, 1908. parlamentar conservador no Reichstag era inteiramente dominado

/
346 - Ü IM~RIO DO DIREITO FRANZ NE!JMANN - 347
~·~";l 'i·
1 ~;,.~ f'J ct

pela nobreza e-pelos donos·de terra; por exemplo, em 1909, entre


sessent de utados conservadores, · trinta e oito er e
t~e e oito eram nobres; e. rio Parlamento prus§iaao, de
152 deputados·conservadores, 98 eram donos de terra.e 88 nobres.
~s~a..domi?/çã~ era :ª~segurada ~~lo s~ági~ de três classes. No
Re1ch,,em~tira o 5 · o·fosse uru · alrisso..tmh1111m valor ape~ _.,_ ...,.. - -...... .... , ...,
nohúnal ci:msidenwdo-se a·di\tisãa"RaGS.enááa das constituintes 46~ _O _conçeito ge .i:iação _Q.ey~ ser çor!frqntl!-dÇ> CQ~. ~q_uç_l~ ge ~
A.maioria soci11lista'- )jberal, qne existi'll factualmente no ReichsÍag ~c;st_e_@.timo é t.anto nm feg.qµ:i.~no cy}tural gy;mtp f!:IJh~ .
~ ck:4912, n~o tinha.importância polítiea.· ; . · ·: .. ,· . · < • .,,.. . -· · ..te.:1P!e!~S:~? .1:1-!':~ajj.-~ta_ d_o E~V?_!~- b~ei~ !1~~.P~~p~e.~~~-,
r-j..O J L.. . - • ::: . ,_, , l. ' :. , des naturais, e esp~e te na ra .a no . sen.tido_e e e
~:li;J. ' A NAÇÃO.{;OMO.sQ tf ATOR ·ll''!ffEGAADOR
.. " ~
DA . cone6i'.t<l.i éntendldQ péfu~ep6logÕs~··"Pór raç~ os ~trbpófo:~·
Sdcm>AE>E COMPETITIVA . -. . · .. . .... :. . gos entendem um grupo mdividuãCqüe, dentro de seüs liffiiteS:
de V-ariaÇão, ssui em co -uin -~a cô.m binação 'de traços lieredF :
táàe-S-:SU:tkieat~ .,- ~ · gi:!! ·os e- tais· ili::: '
'i :t:t 1. ·o Co~cÉ~r8 3ÕFN~{j.-O
1

1 !. • : . . ~ '. \. .. ~ .~ ·, 1 ferenÇas -nãlü.rais põdem seF õbjétivàinehfe dêtermináveíiÇS'e elãs"'
1. 1 1 1 . , surgein· poJ" si mesiliás,-qú·.:sé éstã~»e~ : ái'ldé iri~clidá - :- .-_: -. '
, A nação é a-prinC:!Pid-irttegta~àr do Es~~ modemo 47 • E . a e~p,iritualmente ·condicion-a.da.S, são perguntas -.que· estão~· fora· d©s ;
ligáção Unificadóra'êfifieb in'd.Mduo e"o 'Estàdo rtos ·sécUlüs-XIX e limites -de nossa discussão.-N~o ·precis3;ID°'S e~pecialmente'Í_!l-ves­
~ o
Estãdó ~m6detrlo ~nke'Ssitá' 'cie -leg'.ifilrlàÇão. · A legitirríação tigar o problema de saber se há um .~~o qu.e...Je.Y.e dofo~eJ!fb
· O.orlai rêside nà' furlôame'ntaÇão ·âà sob~tania com base'nas libet-
de ,r~--~té}auelC:'.fi.e ~~~º- -O.- fgnpq1~,.sqcj.~e. gnlí~p~ @11
tl-átles política e-edcnôfniéâ, ,óirsejá,:Ó.d rédúÇã'o da vaO:taâe do Esta-
953 ~~ o,~~al :&pciali.smo.. s5i:á ..c,ónsiQ.e~QC!; ~s.~it:<;-q do
tlô aqilelas dos irldivíduos; porém; essas vorttades individuais coliâem
e ;-: ,. Ji:n~!<>:- wnaJ.o.nn.a~q CY..ltl;lral., ço11ti.lde-,-q, -ppy-Q-é-:eans~; ")
entre si, Cada hómem rê'presenta a soma.de:vários interesses e ·p er-
taj~Q, ÇPJPP q,ma-·µQÍ~à~ ·soçiqlágiel! deviào a -~:·abU:H.çl~eiao_çlerc

... fator~n~~s: ~~~~~'A. di1<s,ç~l1~~~,a ·po~p ~/C·


~OJ<e11ll:lffl,.~lín~!l;;religiã0; es.f&&tum~la<ciência,-.toà0 .. -
46 - •. c;:f. .as estatístkas-e.0s, mapas em KOCH .-StaatsftJhtung, p.- 10,_Apêndicf!.
fatores objetivos CKercem l:1IJl papel;-e· seus si cados· indivi_d~~ '
471 ,, . · B_AU ERr p~o, f?.it; .t:'!!!iº'!~~t~ten_fr_age.'} :ind_di~-~o_z_iafdet'nçkrati~ (Marxs~'!~_ien.! -:Y '·-1
vo(. 2), Vienna, 1924; BAKER, Ernesl The Nationa/ Character and the Factors variam de aeo1d0 com a. situação histórico-política~º. Mas ess~s ele-
•1L ' os· its Formatio·ri, ·L'~ridbn, 1917; GINSBERG, Morris, Sociology, London,
) 934; HAWTRY, R. G. Economic ,l\spects of Souvereignty, London, 1930;
mento~ objetivos não são s ·para conshtmr o povo "emo--
'-HEl.:'l:ER; HefiTlanh.•Staâis/e'líref -Le°iden, '1'934; fl·i 178-e ss.; HERTl,, FfiEidricli: uma ·unidade-. A ina~equação- da teoria objetiva também deve ser:..
.. _ ''Wesen und Werde,n der N_ation", Erganz'!ngsband der Jahrbücher für
- ·sõziolàgie, Karls.ruhe, 1927; JóHANNET, Rerié. Le principe des nationalités, acompíll)had~ pela teoria s.abj~tiya;. que encontrou expressão na.' ,
.-..;_, -- Paris, 1923;- LASKI, r.!arold J. Nationalism and tha. Fulure of Civilization, famosa_ fó1;rm,tla de-Reqam que o povo ·é ~um plebiscito-de tod<:>_H>i> ·
London, 1932; DE MALBERG, R. Carré, Contribution à la théorie générale de • 1 • •

- ·/ 1 ttât, 2 vols. , Pa"ris·, 1920; "MEINECKE, · Fr1edii c h, Weftliüfgertum und - '. .. . .. -· - .. ·- :- ,;


Nationalstaat, 6ª ed., Münch e Berlin, 1922; NEUMANN, J. Volk und Nation,
Leipzig, 1888; REl'-JAN, Ernst. Qu'est·ce qu'une nation, Paris, 1882; RENNER,
48
·. . .. .(·(_;_ : : ...... .: : . ··.: .
RENNER. Nationen.
~ .- -·
Karl. Das Selbstbestimmungsrecht der Nation in besonderer Anwendung auf
'! ~ ôsterreiGh, 1; Nation-und Staát, L-eipzig e Vienna, 1g18; ZIEGLER, Heinz O. 49 GINSBERG. Sociology,p. 56.
Oie moderne f'iJation, Tübingen , 1931 . 50 BAUER. Nationalitiitenfrage, p. 114.
348 • o IMP~fllO DO DIREITO
FRANZ NEUMANN • 349

diasrs~~.Aqui, .c-Oatudo; não·a· existência, .mas ·ã- cónsciência, a deci- especialmente um~ ~· A produção capitalista
são -consciente do-ind.i.vídooide-pertenêe.r·a·lllll pova, é'·considerada de mercadorias4-mais.aw:i do ue a na ão. Consequentemente,
decisiva. É óbvio que esta teoria não pode resistir ao-teste da expe- é nas ci~stados italianas que encontramos os primeiros çs-
tj.ênoia-tl~ i.fudecisão ~ns-áenre · em· simesma . normalmente não· faz tados modernos. Esses estados não eram resultado do trabalho
~wque· b· homem ·se..rolilsti~t:omo :wn:meml;>ro.do pov.o;.l'lem.a das nações, mas de ricos capitalistas que compravam soldados e
posição· de membro ·pG>de 1 i;~··reire.i:rida. por timll! mera ·dccisão.·A com sua ajuda eram capazes de estabelecer suas tiranias. O capi-
conce~o · rultural1de lnaçãoj'lcori~Of:IDuiirnó..inextricivel <le-ele- talista usava então seu poder militar, que era baseado no dinheiro,
mentos 'Objetivos e'8ubjetivos1'e, entre ~s elâ:'mentos ~objetivos:, uma para explorar a massa do povo ao cobrar novos impostos. Faltava a
mi.stura>entre· fat<íJ.Tes ,naturais e cultuqils; ., todas essas tiranias ual uer ti o de le ·tima ão. A dominação
o conéeito àê háÇãd 'séJ pÓdé s~r álàit1ÇadÓ' pói nieio dé ·suas
. ')
1
era justificada ela for a bruta. Uma ideolo ·a nacion estava
~ortexões .:órn o cdli:eeifu de Est'âdÓ, Um povó se torna uma nação completamente ausente54; mas-G-Estado-m0àem~tava lá..
se tlver·:eonsdênêia·dêi!Hins po'líticos"iiídiVldtiais 'e comilns, se.for A função decisiva da nação consiste em tomar possível a uni-
cap'a z ae' a:dquirif~1e·hfatrte1' uiii:a vgnfa'de "p'ôlítica rélativaménte ficação de uma multiplicidade de energias individuais, num perío-
u
úfüfi<:àaa53 • mà •-tre~ qüe 1êhtenlaemo~- pcfr> "fialítico" rtiêlo àqtiilo do em que a burguesia tomava consciência de seu próprio valor
qtie está direcrbriidà à 'ª€JÚtsição e manutenção do poder no e político, tornando universalmente obrigatórias suas decisões cultu-
sobreíô-Estado! o. cohae'it-o1de nação ·está irisepara'felm'ente ·ligado rais e políticas. A nação, portanto, substitui em primeiro lugar toda
ào de E stado,: .... 1 .-.· .. ! '· . .- ! . · : •• • · '.'
..
'\ !.,i
• ' 1
legitimação não secular, e assim passa a ocupar uma posição anta-
gônica em relação à concepção do Estado como uma instituição
1,3.3.-2. ESTADO, f . NAÇÃO ' " ••• J
divina. Em segundo lugar, ela provê uma justificação para todo
. . . .. , .. ·. ,., .i .
Estado, colocando-se então em~alismo da I~i<:
! • • • .

· .. Q ·Estada moq~r~~t~ãoÁ é,. ç~ntudo, ,o milia.IJao de uma n~- ~a. ~ugar - e e nto e decrs -, ela subsotw
, ~-; e!~ _é,1ant.es,: ofi~w Àll- pr9duçã~-4e merça~tj.as'\Apenas. quaq.­ a l!;~ O Estado moderno na França e na Alema-
H!? q,p~~~to do traJ>a4i~ ,se _torpan.q~3'.ql~PJ.doria,-e se conv.erte~ nha desenvolveu-se a partir da organização do Estado feudal. O
e,m.,~e,ir9,. J:lWll;; AA.rtF.'..t~~e-. ~ekq. Piº-~ ,ser-_11s~q_?. ~~vé_s d~ reinado, cujo.portador era o lorde feudal.supremo. transformou 9
iwE~~gs:. P~.R.~c],am-çq~o._fi.~u:§:s~~4q_ mR~-~xp.ç -~~9-!I"~c!o,_ E stado feudal em um Estado moderno ao se utilizar dos novos
MP~-~;--~-~ "m.~q~~l};B\.Pa~ ~-~.ajl~~~~,., a_,_~9.ci~g~~~1 mcios de produção de mercadorias, e, com a ajuda de soldados e
oficiais que-tinham-si os lordes feudais.
"'· . ;• ....... ; : a::.- • \ .· "·I' f'" •'••., . _;,, .. . .~ • ..-~ ··? ,. .,., .... ·. ..... - . ' ·· 1 • · . ...... Esse desenvolvimento começa n rança de Felipe , se torna efe-
s1 R1~AN. ó? 7est~~~ g~iJri~"n~Üort p:'27'. · '. l' ' ":" '_ · ' " '· ~.: ' ' " ' ' tiVí uís XI, e chega ao fim com ws . Na Alemanha, o
1;:11 4 ~:'Wbk~:liolíflGi tfá•tiiotia \:lé RetinJi:'&a~~~r~~'to.:Oà f't-áliç~~-iiiffr ~ÍS<ice-lorra!ilé
f"Cil · :..:_._(c[::, tt~~f?'.; (W.~r:t ~'!l!'l!\ Werpfü(<::fi-3.iPJ;; ;,;_,,, i:'' .;: ' ,.-_•;e, . 1 .: , . . . . • .- mesm9-dese ento o e es êl'õn'el · on3.l.S
Si3 l .... Çf: D,ISR~E,LI, ~e~Jârni o .!':ll) r ~Tne .S.o.f.i.~. 9t .W..~ i:ggisrp_''. , . 1 8~ 6" r~E!d itadc;i ~!TI cipalmente-porquc..a.lm mão estava mais interessado nos
nc ' ' ·' ·'Wii11JS ariâ Migg7sm:'Pô'Tit1tal"Wr7iiAgii5y'8: 'a1~râ'eli,1 l'&'do-ri; 1'9t3;·p. 343:.-fid
termo 'o povo' é completamente sem sentido. Não se trata de um termo alto ll:leros r du!r,ão italiana de mercadorias do ue nos baixos
::-· .-.. ~ político, .mas-_perteo.c.e: si m à história natural. Um povo é uma espécie; uma
c9")_u[1 i d.í!d~ civilizada é uma n_ação._Agora( uma n a~ão é, uma obra de ª'1e e
Ümà"o5ra 'dê 1úfuà ~J?'.5d Umà
h";aÇáo 'é giâi.lúafrTfé'ii'ttl"ériiii'fâ' j5'0r 'U ma' varieda~
de 'i~fl Jêii~ias (...Y.·
1
54 BAUER. Nationalitii.tenfrage, p. 165-6.
350 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 351

lucros da produção urbana alemã, e por isso deixou este campo Aqui se encontra o princípio unificador que toma possível inte-
para os príncipes dos territórios alemães. grar a sociedade competitiva essencialmente secular e declarar um
Em todos esses períodos de feudalismo, do Estado absolu- vínculo universal de suas decisões sociais e políticas.
tista, e de absolutismo monárquico, o conceito de nação em sen- Todas essas ideias foram claramente expressas por Sieyês.
tido moderno não pode ser encontrado55 • Neste período, o Estado Segundo este, apenas o Terceiro Estado é produtivo; os Estados
foi criado, mas não a nação; a legitimação do Estado ou é divina, até o momento privilegiados são negativos, encontrando-se por
ou está apoiada no direito natural. isso "fora da nação". Para ele, a nação se constitui no agregado
No continente, a nação surge primeiramente como um fator daqueles indivíduos que se encontram sob um direito comum e
são representados pela mesma assembleia legislativa. A nação é
independente na Revolução Francesa, e apenas depois disso se
soberana; seu ser é a justificação funcional de sua existência; sua
tomou o objeto das análises sociológicas56 • Os fatores objetivos
vontade é a lei suprema, e encontra expressão legal no poder
que constituem a nação obviamente emergiram muito tempo
constituinte. O Estado está a serviço da nação. Seu poder é
depois; mas nesse período os fatores subjetivos, que, jurtamente
justificado somente se for legitimado pela nação. Esta concepção
com o fator objetivo, formam a nação, se tomaram visíveis pela
de nação é revolucionária e está direcionada contra a monarquia e
primeira vez57• Nesse período, apenas uma classe se constituía a aristocracia. A aristocracia francesa viu claramente as implicações
como uma nação. A nação se tomou, por 'assim dizer, a proprie- dessa nova concepção e objetou a Sieyês (de Montlosier e de
dade da burguesia. Pela nação, a burguesia conquistou a cultura, M aistre) que somente a aristocracia, ou esta juntamente com a
e adotando esta característica de nação ela legitimou o governo monarquia, representa a nação 60 • Trata-se da nação democrática
centralizador do Estado. de cidadãos livres e iguais, a concepção jacobina da Revolução
A Revolução Francesa resume o desenvolvimento que foi Francesa.
interrompido em 1615, e que culminou na proposta do Terceiro Esse novo conceito político polêmico possui certas funções
Estado nos Estados-Gerais para repudiar os princípios monár- sociais concretas. Em primeiro lugar, o desenvolvimento demo-
quicos e estabelecer a soberania da coroa, mas substituindo a di- crático moderno impele ao reconhecimento da nova nação 61 • A
nastia pelo princípio nacional58• A ideia de nação ganha uma força necessidade de amplos territórios econômicos, com grande densi-
revolucionária ao unir-se com o conceito de soberania popular59• dade populacional, toma necessária a criação do Estado, em que
uma moeda comum, um imposto unificado e um sistema co-
mum de transportes prevaleçam. Portanto, a Constituição de 1791
55 ZIEGLER. Nation, p. 75. (Tit. ID, Preâmbulo, Art. 1°), a Constituição de 1793 (Declara-
56 São importantes: MONTESQUIEU, Esprit des Lois, 1748, livro XIX; VOLTAIRE, ção dos Direitos, Art. 25) e a de 1848 (Art. 1) afirmam que a
Essays sur les Moeurs et l'Esprit des Na tions, 1769.
57 Apenas nesse sentido podemos concordar com a afirmação do professor Baker: soberania da nação é "indivisível, imprescritível e inalienável"62 • A
"É possível para as nações ex istirem - mesmo existirem por séculos - em um
silêncio irrefletido" (National Character, p. 116). Até que se inicie a reflexão,
podemos falar somente de um povo e não de uma nação.
60 Cf. NEUMANN. Vo/k und Nation, p. 124; DE MAISTRE afirma o seguinte: "O
58 As discussões sobre os conceitos de povo e nação nas deliberações do Terceiro t
que é uma nação? o soberano e a aristocracia".
Estado de 1789 foram colhidas em NEUMANN (Vo/k und Na tion , p. 123) e
61 BAUER. Na tionalitlitenfrage, p. 177.
MEINECKE (Weltburgertum, p. 24.).
62 A distinção entre soberania do povo e a soberania da nação também tem suas
59 Cf. DE M ALBERG. La Théorie ... de l'(tat, vai. 2, p. 168.
consequências jurídicas, de acordo com a visão adotada pelos constitucionalistas
352 - 0 IMP~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 353

nação mantém os olhos com desconfiança sobre seus direitos. Os estava presente. A nação se tornou .~u m corpo efetivo de membros
deputados são eleitos em seu nome, e não em nome dos Estados, unidos por um senso de interesse comum"64• ,,

dos poderes territoriais, ou de grupos sociais. Ninguém pode se O des~inglês diferiu do continental65 na medida
interpor entre o indivíduo e a nação, tal como foi notado pelo em que o c~ção, etnboxa fusse co~do, não exercia
deputado Le Chapelier, quando alterou sua famosa lei de 14 de q~pel ~:w Ricardo I costumava per~tar _gu_mdo
junho de 1791, proibindo a associação de trabalhadores; "o indi- desejava desdenooMt:lrte_ r.e~1tar alguma s9liê~ão àe~arr;t;;6a­
víduo", disse nesta ocasião, "deve obediência apenas e exclusiva- da::.:.llru:~~!2!~~o~r~um~~in~g~lês?". O Estado inglês muito cedo se
mente ao Estado, e a mais ninguém". tomou e superou os poderes fendais ~a.tl.t~E>
Até o momento o capitalismo é imperialista; o sentimento que os estados f.etteais. Na literatura política, o conceito de nação
nacional se torna nacionalismo e com isso servo dos interesses encontra-se com muita frequência nos escritos de Bacon; por exem-
econôrnicos 63 • A ideia de nação mobiliza as nações para a guerra. plo, no seu Ensaio XXIX (Da Verdadeira Grandeza dos Reinos e dos
Portanto, a nação cria para o capitalismo o Estado eficiente. Estados), no qual ele contrasta povo e nação. Q.. ovo é a massa dos
trabalha~dia; "As medianas da ln laterra
Distintamente de sua função econômica, a nação também
se tomam bons soldados". A nação é re resentada ela nobr
possui uma função sociológica. Se uma sociedade deseja distin-
p alta classe, que detêm o poder e a andeza do do. Na
guir-se das outras, ela deve se destacar desses outros grupos. A
Grande Re ao, e o que a nação exerce um papel importante.
integração de uma sociedade numa unidade só é possível se esta
O Parlamento Coto apela à nação. A Casa dos Lordes é abolida ao
sociedade for confrontada com outras, e se o fator integrador for
se referir à autoridade suprema da nação. Mas no Instrumento de
eficiente o bastante para investir esta sociedade com característi-
governo de Cromwell "o povo" aparece como a base de justificação
cas particulares pelas quais ela pode ser distinguida das outras.
do Estado, uma vez que aquele é representado no Parlam :nto-e.
Esse processo de individualização foi realizado, após a derrocada
compree três nações. Em com o desenvolvimento
do universalismo medieval, pelo princípio dinástico. Mas o direi-
frances, vo se tojJla, por causa da pluralidade de nações, o laço
to divino dos reis se tornou obsoleto. O Estado enquanto tal não
unificador..Após este período, o conceito de na ão de· e
se.rve como um fator integrador para a sociedade liberal, pois de
pm-um._papel-importante na Inglaterra; em primeiro lugar, Pºt
acordo com a ideologia liberal o Estado tem funções puramente
causa....de sua posição insular; depois, porque o absolutismo da di-
negativas: as funções de garantir a liberdade e a segurança, de
~udor er · do e mais o ular
pr~servar o estado de na~~a, de protege~ a liberdade e a pro-
do que..s · ainda porque a Inglaterra não
priedade. Portanto, a funçao mtegradora foi sucedida pela nação.
conhecia uma burocracia tal como a conhecia o continente, de modo
A nação francesa, por exemplo, foi considerada diferente e dis-
que o antagonismo entre Estado e sociedade nunca foi muito forte;
tinta de outras nações. O elemento constitutivo da sociedade civil
e, por fim, por causa da existência de um império colonial que

franceses; o Senado é irreconciliável com a soberania da nação, mas não com


a soberania do povo. Cf. DE MALBERG. La Théorie... de /'Ílat, vol. 2, p. 175. 64 HAWTREY. Sovereignty, p. 15 e 27.
63 LASKI. Nationalism, p. 26-7. 65 HERTZ. Wesen und Werden . p. 9 e ss.
354 - 0 IMP~RIO DO ÜIREITO

tendeu naturalmente a investir mais na força integradora da mo-


narquia do que naquela da nação inglesa.
Na Alemanha pré-guerra, o conceito de nação no sentido jaco-
bino não exerceu qualquer função; do mesmo modo que a ideia do
' chtsstaat se separou da subestrutura política, o conceito de nação
eparou-se completamente do conceito de soberania popular; nos
alhos de Wtlhelm von Humboldt66, a soberania da nação é ex-
pressamente negada. Durante o periodo de Bismarck, a concepção
da nação é refutada em seu todo, especialmente por Treitscheke67•
Nesse período de ascensão da burguesia, é inegável que esta
foi social e politicamente idêntica à nação. A burguesia é, nesse
período, a classe historicamente mais progressista. No momento
em que, contudo, a burguesia realizou sua missão histórica, e
Capítulo 14
quando, portanto, surge um movimento trabalhista politicamen-
te consciente de si, começa então necessariamente a luta em tomo
da questão de saber a quem pertence o conceito de nação. Nesse O SistemaJurídico e a
momento a nação perde sua força integradora. A pretensão da
burguesia em ser a nação se toma um privilégio que no continen-
te é usado para denunciar todo grupo não burguês como não
Sociedade Competitiva
nacional, até mesmo como inimigo da pátria. Em tal situação,
duas nações existem na realidade. Paul Viénot, em seu livro In-
certezas alemãs, formulou o problema da seguinte maneira: "Ao
lado da Alemanha de Weimar e da Alemanha de Postdam, existe
uma Alemanha industrial e agrária, uma Alemanha proletária e
uma Alemanha das classes proprietárias, uma Alemanha católica
e uma luterana, uma Alemanha dos estados federais e uma Ale-
manha do Reich, uma jovem e uma velha Alemanha e, principal-
mente, uma Alemanha democrática e uma antidemocrática".

66 MEINECKE. Weltbürgertum , p. 39.


67 TREITSCHKE. Po/itik, vol. 1, p. 28.
FRANZ NEUMANN - 357

14.1. A GENERALIDADE DA LEI

14.1.1. 0 CONCEITO DE GENERALIDADE

( Chegamos à conclusão, portanto, de que a ideia central do


sistema jurídico liberal é a da generalidade da lei. Esta lei é, em
primeiro lugar, o direito positivo do Estado, e não algum tipo de
direito natural que se distingue daquele. Desde Kant e Rousseau,
a teoria jurídica liberal se baseou inteiramente na visão de que o
dir
~ válido apenas se for imputado ao Estado sober~
Mas a contradição entre direito natural escolástico e secular
não está completamente perdida; ela ainda sobrevive no postulado
da generalidade da lei. 4- lei geral, consideradã um novo díreirg>
m~al, é confrontada então com o direito num sentido formal.
Temos que estabelecer brevemente, portanto, as características e s-
senciais do conceito de generalidade da lei. A lei geral se opõe a
qualquer tipo de comando individual. A diferença é relativa. É cor-
reto que todo comando que emana de uma autoridade superiqr
pani um órgão inferior exigindo uma certa ação é, em relação à exe-
cus;ão do comando, sempre geral e abstrato; "ou seja, ele nunca abraii-
ge todo detalhe da ão em que deve ser realizado"l. Nesse sentido,
uer comando deixa à pessoa que
fm comandada um certo tipo de iniciativa. De te onto e VIS o
comando in · de ser visto como um comando geral.
Mas é i nte verdadeiro que não podemos esquecer o
fato de que _orçã de iniciativa deixada à pessoa que realiza
uma ~<ttt<m~e-so.ciologirn mente ela
de ser ne li enciada. A fronteira, portanto, entre leis gerais e
comandos individua.i p assa or vários tipos de comandos. Por
isso, entendemos por lei geral, juntamente com arre e berg,
uma norma abstrata que não se refere a qualquer caso particular

FOSTER, Michael B. The Politica/ Philosophies of Platô and Hegel, Oxford,


193 5, p. 11 5.
~;. e ·-' !,,. -

a:• a pe!<~' ':' · , •meadas individualmente, mas que é previamente


t:mitida f "-i' ''' - ~llC ik~ aplique a todos OS casos f: a. todas as pessoas
·~n, ab·rn:r,. · Assjm, apenas dois casos são relevantes_ Primei-
··ameni:t\ .'·· ~1:ordo ("Cm Rousseau., a lei é noruinalmente geral
( · 1°:1msne :·1 1 ,~-énefmfe") sern relaç:ío com o c.onteúdo; mas esta
f:A:»'l;tl~ •. .. ,_t dü (füeito contém ao mesmo tempo um elemento
1

;1rntt:rial ... · • "~r, a proibição de retroaçáo.


A LC:J;'':,'i•.' e! tre esta estrutura formal do direito e a subestrutura
.:;ocial pou•. · dividida em três partes, <:omo será demonstrado:
;1} 2 k ' ..;:···1"a.1 tem uma fimção social e politicamentepmtetora.
Ew é igu;1!i1·.•:·;··. Nisto reside o valor ético da generalidade da lei;
b. >; >· ;,.,::ral tem uma função
dissimuladora. Numa socie-
da1le ,fo . -1~·1·,v·· '> e num <;istema econômico competitivo, uma lei
ge".'al oclür;i . 1i .realidades. Segundo o p ostulado de que o Estado
pude: gove. r a· apenas através de leis gerais,' o sistema econômico
'~1.m:1petiri1>,:· -t cobre cnm a dignidade de um valor moral;

;;) :? :e / ,:-_rnl num sistema et;:onômico competitivo possui por


.'it ;~ a ti:!rl\ - i.: totn.ar: os processos de troca calculáveis e previsí-
v · ,r; l·'.st' 11 , .lio foi especialmf:'nte tratada nos trabalhos de J\1ax
\ iV'eher, ' :· ·,. .• m:cs íudicada por Pnfendorf e Bentham 3•
A e' ncepção na qual a lei geral, bem como o direito material, se
distingue do direito em sentido mer-J.mente formal foi influenciada
deasivarnen!·e pela teoria da separação dos poderes de Montesquieu,
que assumiu s~r possível distinguir materialmente vàóas funções do
Estado. ~'1t:i. r·~nii.a pressupõe, portanto, que o legislativo, o judiciário
·:: a r.dmmita~",·ç-7 o não se distinguem apenas pela execução destas três
fw"lçõeg por ! zt'"l diferentes órgãos do governo, mas que as três fun-

·'u m . 1 ,,, ·s1-rição ciue não visa nem um caso particular e alu a!, nem ta is pessoas
d. rt: 1r" ,,.J.:: ·a~. ·rq -;; quP é ( dilad(I , revi:>men t~ para :ter aplicadã a tod0s º"
1

r-a 5<" " ; pessaas incl uídos nas previsões abstratas do texto regulador", R.
: ·" " ;,. ;v1.1lbe1i,. t d !.oi, xµ1e.'sio:1 de ia volonté généra e, éwde sur le concep t
•1í' " ''· .. :~ ns l.1 Constirurion dt• 1875, Paris, 1931, p. 4; e igualmente idem,
-~ ,.,, · ,, .. ,._.,, .i J,1 théorie géM·rale de /'tta t, v0L 1, Pari5, 1920, p. 289.
4 Cf. BUSS; MONTESQUIEU, E.; CARTESIUS. Philosophische Monatshefte, vol.
',.+ , :'5 (•.inçõ)"~ .-:f. 1",.t, l., ;;baixo.
IV, 1869-70, p. 5. 0113'8!0 oo ot"ll~dl"ll O - USE
360 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMAN N - 361

enquanto presidente do Comitê para a Redação dos Direitos de 5 de fructidor do Ano m faz uma clara discriminação entre as
Humanos, propôs em 17 de agosto de 1789 uma moção que era leis e qualquer outro tipo de ato legislativo, ao falar "das leis e os
verbalmente idêntica à conclusão falaciosa de Rousseau na qual "a outros atos do corpo legislativo"; mas, no Art. 92, é expresso clara-
lei, sendo expressão da vontade geral, deve ser geral em seu objeto". mente que toda resolução do Conselho dos Anciãos é designada
Consequentemente, o Art. 6 da Declaração de 1789 continha a como uma lei. Na Constituição consular de 22 de frimário do
provisão de que a lei é expressão da vontade geral, que se repete Ano vm, contudo, a distinção não é mais mantida. Agora todas
no Art. 6 da Declaração de 1793, e no Art. 6 da Constituição do as decisões do poder legislativo, a emissão do orçamento, a declara-
Anoill. ção de guerra e paz, a conclusão das alianças e dos acordos sindi-
Mas, além dessa noção de lei geral, aparece simultaneamente cais são "leis" (Art. 45, 50); mas, neste período, a lei não se torna
um segundo conceito de lei em sentido formal. O rei ainda tem o mais um ato do tribunal ou do corpo legislativo, mas do governo.
poder de realizar certos atos legislativos; de modo que a Assem- Nas "Cartas" de Luís XVIII e de Luís Felipe, a distinção está
bleia Nacional foi compelida a considerar esta atividade legislativa igualmente faltando, e na Constituição de 1875 (Lei de 25 de
do monarca e a sanção correspondente com a lei de 12 de outubro/ fevereiro de 1875) não se encontra qualquer definição de lei; a lei
6 de novembro de 1789. "Os decretos [da Assembleia Nacional] simplesmente estabelece que o poder legislativo é exercido junta-
sancionados pelo rei portarão o nome e o tí~o de leis"; uma for- mente pelas duas Câmaras.
mulação cujo autor foi Robespierre. A Constituição de 3 de setem- Na teoria constitucional francesa - com exceção de Carré de
bro de 1791 (Título III, Cap. ill, Seção III, Art. 6) contém a Malberg -, a separação dos dois tipos de lei ainda é mantida. Ela
seguinte passagem: "Os decretos sancionados pelo rei, e aqueles
aparece claramente pela primeira vez no Repertório universale racional
que lhes foram apresentados pelas três legislaturas consecutivas, têm
de jurisprudência de Merlin5• Ele levanta a questão de saber se todo
força de lei, e portam o nome e o título de leis". Aqui, o legislador
ato do poder legislativo pode ser chamado de lei; e a resposta é não.
foi mais precavido. le não concebeu a lei formal como lei, mas
Duguit, Esmein e Barthélemy, todos ainda mantêm a distinção
s atribuiu à lei formal o nome
entre lei geral, como lei no sentido material, e lei não geral, que é a
A Constituiçã ·acobina de 24 de ·unho de 179 e c
lei no sentido formal. Uma lei geral é um ato do poder legislativo
tudo, nunca chegou a se e et:Ivar, divide as decisões do conselh,?
que cria uma situação jurídica geral, que é impessoal e abstrata e
, legisla e 01s grupos, "leis" (/ois) e ªdecretos" (délTe~. Os
que procura governar categorias de indivíduos e séries de casos6 •
últimos são principalmente atos administrativos, os primeiros
Nenhuma prova, porém, é oferecida pelos autores mais repre-
devem estar submetidos ao povo. Vemos nessa distinção a grande
sentativos da opinião contemporânea para justificar a distinção desses
influência de Rousseau.
dois tipos de lei. Duguit invoca Aristóteles, Tomás de Aquino,
A influência decisiva emerge da Redação da Constituição
Rousseau e Montesquieu; mas falha em provar que o direito
girondina de 1793, que, na Seção ill, Art. 4, apresenta a seguinte
constitucional positivo da França reconhece essa distinção.
distinção: "as características que distinguem as leis são sua genera-
lidade e sua duração indeterminada". Fora isso, a Redação reco-
nhece ao mesmo tempo os "decretos", que são local ou materialmente 5 MERLIN. Répertoire universel et raisonné de jurisprudence, 5' ed., 1827, p. 384.
individualizados; e finalmente reconhece as "medidas" (mesures), 6 DUEZ, Joseph Barthélemy. Traité de droit constitutionel, Paris, 1933, p. 224-5;
DUGUIT. Manuel de droit constitutionel, Paris, 1923, p. 97; idem, Traité de
Art. 7, num estado de emergência. A Constituição do Diretorado droit constitutionel, vol. li, 3' ed., Paris, 1921, p. 160.
362 - Ü I MP~RIO DO ÜIREITO FRANZ N EUMANN - 363

Nem o Art. 6 da Declaração de 1789 nem as provisões cor- impunham constituições e assim, com base em suas próprias
respondentes da Declaração de 1793 e do Ano ID dão a menor vontades, limitavam sua soberania; mas apenas na medida em que
evidência de que a legislatura só pode emitir leis gerais. Essas concediam o direito de fazer as leis juntamente com o Parlamento.
passagens significam apenas aquilo que a Constituição de 1791 Em tal situação, se tomou necessário, é claro, distinguir aqueles
expressou claramente (Título ID, Cap. Il, Seção I, Art. 3): "Na sujeitos para os quais uma lei - ou seja, uma decisão conjunta entre
França não há qualquer autoridade superior àquela da lei". O monarca e Parlamento - era necessária, daqueles para os quais o
centro de gravidade, portanto, reside na gênese e não no conteúdo monarca ainda era a única autoridade. A característica decisiva para
da lei. Oiie a Constituição de 1875 não dá a menor indicação da tal distinção era a noção de generalidade da lei, que parecia ser
distinção entre os dois tipos de leis já foi provado de forma con- também uma inferência necessária da doutrina da separação dos
vincente por Carré de Malberg. Ele mostrou que a Constituição poderes de Montesquieu e da distinção entre as funções materiais
de 1875 visava apenas tomar positiva a degradação do Parlamen- do Estado envolvido nisso.
to sob o regime de Napoleão, tanto que concentrou sua atenção
na legitimação democrática da lei e não nos seus conteúdos. 14.1.3. A DOUTRINA ALEMÃ
"O domínio da lei não tem limites, como aquele da vontade
geral"7• Ele provou igualmente que a prática çonstitucional francesa A doutrina alemã deve muito à doutrina francesa, porém no
nunca reconheceu de fato os dois tipos de lei8• Porque não estamos final do século XIX elas divergiam de um modo decisivo. Na
preocupados com a discussão dos méritos das várias teorias francesas, Alemanha da metade do século XIX, a doutrina constitucional
será suficiente se referir aos trabalhos de Carré de Malberg. A era inteiramente dominada pela distinção, mencionada acima, entre
declaração de representantes da opinião francesa contemporânea, leis gerais (materiais) e individuais (formais). Apenas a lei geral
tal como Duguit, de que a lei é somente uma norma geral, e que constitui o direito. As leis individuais estão em contravenção com
um comando individual não é uma lei mesmo se emitido por um o postulado da igualdade. Se um conjunto de fatos concretos já se
"pretendido soberano", é uma mera afirmação que na verdade realizou historicamente, e apenas então passa a ser regulado por
representa uma recaída na teoria do direito natural. A prática lei, tal lei é meramente um ato arbitrário. Se a realização do
constitucional francesa conhece de fato um grande número de leis conjunto de fatos ainda não se realizou historicamente, sua
individuais9• Não se pode duvidar que numa sociedade competitiva regulação individual será passível de objeção em qualquer caso 10 •
a lei é tipicamente geral; mas o postulado de que toda lei tem de ser Lei, de acordo com Robert von Mohl, é, portanto, uma pro-
necessária e exclusivamente geral não passa de uma tentativa de mulgação da autoridade legislativa que pretende duração e é
absolutizar uma certa situação histórica. A grande importância que caracterizada por sua generalidade11 • Lorenz von Stein aceita a
geralmente é atribuída à generalidade da lei é decisivamente formulação de Hegel: a lei emerge da consciência do Estado e
condicionada pelo fato de que os monarcas no meio do século XIX precisa, portanto, alcançar dois objetivos - regular as similaridades
da vida factual e estabelecer a diferença entre elas 12 • Klüber, assim

7 OU MALBERG. La. Loi, p. 54.


8 Idem, La Théorie ... de l'État, vol. 1, p. 276, 314. 10 VON MOHL, Robert. Politik, vol. I, Tübingen, 1862, p. 420.
9 Encontramos exemplos em DUGUIT. Traité du droit, vo l. li, p. 168; de 11 Idem, Encyklopadie, 1859, p. 139.
MALBERG. La Théorie ... de l'État, vol. 1, p. 295. 12 VON STEIN, Lorenz. Verwa/tungslehre, vol. 1, p. 78.
364 - Ü IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ NEUMANN - 365

como Blackstone, tomou por base a teoria do direito natural de de uma norma que cria um direito (Rechtssatz ou regle de droit)*.
Burlamaqui, cujo livro apareceu numa tradução alemã em 1848, Estas são duas concepções da lei inteiramente diferentes. A
que postula a generalidade da lei e direitos e deveres iguais para consequência dessa distinção faz com que uma lei possa ser uma
todos os cidadãos em situações similares 13 • O mesmo se aplica a lei formal (no caso do orçamento, por exemplo) porque foi emitida
Gneist, Rotteck e muitos outros. A teoria alemã, contudo, rejeita de acordo com o Art. 5 da Constituição de Bismarck; mas todavia
a doutrina da separação dos poderes de Montesquieu. Christian ela não é uma lei material, porque uma lei formal como a do
Wolff e Kant a aceitaram, mas ela foi rejeitada pela maioria dos orçamento não promulga normas que criam direitos para os
constitucionalistas; como, por exemplo, Bluntschli e F. J. Stahl. indivíduos. Por outro lado, uma ordem executiva pode conter
Contudo, o postulado da generalidade da lei é por si mes- normas criadoras de direitos - por exemplo, uma ordem policial
mo suficiente para garantir um mínimo de separação de pode- que regula o tráfico-, sendo, portanto, uma lei no sentido material,
res; em seu todo, ele é suficiente para estabelecer a independência mas não uma lei no sentido formal, porque não foi emitida de
dos juízes. Um juiz que pode somente aplicar normas gerais acordo com o Art. 5 da Constituição. A distinção entre lei em
não está, por essa mesma razão, sujeito a comandos individuais sentido formal e lei em sentido material, tal como foi desenvolvida
do governo. por Laband, foi universalmente aceita pelos constitucionalistas
alemães. Ela foi repetida por todo texto ou livro sobre direito
Constituições como a Constituição prussiana de 1805 <Art
constitucional e por todo professor universitário15 •
62}-~nstituição de Bismarck (Art. 5) não oferecem qualquer
évklência da existência da teoria dualista do direito. Ambas cons- Mas qual é a norma que cria um direito e que é a base da
>
tituições concernem ag.cnas à 0rig8B'l Ek lei, não a0 seu.canteiíd9. teoria dualista? É em vão que se procura nos trabalhos de Laband
AmbaS--Simplesmente afirmam que a lei é todo estatuto emitidg. por uma definição. Ele nos dá somente uma definição aproximada
.pelas duas C âmws. ao distinguir a norma que cria um direito do contrato que contém
deveres e direitos (claims) 16 • Ou seja, é praticamente a diferença
Sob a influ.ÇJA~~Dnt:Ydct,
entre direito objetivo e subjetivo; de modo que a lei material só
caráter geral

Não podemos confundir isso com o uso presente do conceito de "direito"


introduz, cpnmda.._putra distinção entre lei formal e lei material. (right) na teoria jurídica inglesa ou americana. Rechtssatz se refere à tentativa
de delimitar uma esfera interna do Estado em relação a uma esfera externa.
Para ele, a ~ é simplesmcatc a fuwa com que a vontade Apenas nesta última as normas são descritas como Rechtsaatz. Apenas
da-Estado é drnarada, seIIl'"'COllSitlei;a~ie de seus conteúdos. AÍei recentemente essa noção de um forum internum não jurídico do Estado ficou
sob ataque extremo, e traços desta teoria ainda podem ser identificados
material, por outro lado, consiste essencialmente na promulgação atualmente na prática jurídica alemã {oci dental). (N. do E. inglês).
15 ANSCHÜTZ Gerhard. Kritische Studien zur Lehre vom Rechtssatz und formellen
Gesetz, 2ª ~d ., Halle, 1911 ; MAYER, Georg; ANSCHÜTZ, Gerhard. Lehrbuch
des deutschen Staatsrecht, 7ª ed., Munich e Leipzig, 1919, p. 637-8; KELSEN,
Hans. Hauptprob/eme der Staatsrechtslehre, Tübingen, 1911, p. 538; JELLINEK,
13 KLÜBER, Joliann Ludwig. ôffentliches Recht des Teuschen Bundes und der
Georg. Gesetz und Verordnung, Freiburg, 1887, p. 228; o principal oponente
Bundesstaaten, Frankfurt, 1846, p. 363, 558. é HÃNEL, Albert. Studien zum deutschen Staatsrecht, li, 2, Leipzig, 1888; cf.
14 Um predecessor é VON STOCKMAR. ln: Zeitschrift für deutsches Staatsrecht, também HELLER, Hermann. "Der Begriff des Gesetzes in der Reichsverfassung",
1867, p. 201 . Os trabalhos de LABAND são: Deutsches Reichsstaatsrecht, 7ª Veroffenúichung der Vereinigung der deutschen Staatsrechtslehrer, vol. 4, Berlin
ed., Otto Mayer {ed.), Tübingen, 1919, p. 114, e Das Staatsrecht des deutschen e Leipzig, 1928, p. 98 {em geral, repete a crítica de Carré de Malberg).
Reiches, 5 vols., Tübingen, 1911 - aqui, especialmente o vol. 2, p. 27. 16 LABAND. Staatsrecht, vol. li, p. 2.
FRANZ NEUMANN - 367
366 - Ü IMPtRJO DO DIREITO

existe se o Estado se refere diretamente aos indivíduos em K. Allen e W. A Robson, ele simplesmente adotou a teoria de
relações mútuas, criando assim direitos (claims) de um indiví Burlamaqui19 , cujo trabalho foi traduzido na Inglaterra em 1748.
frente aos outros, com seus deveres correspondentes. Qiialquer a Com sua confissão, contudo, Blackstone apenas defendeu o direito
do Estado que apenas afete a relação entre Estado e indivíduos, o natural "da boca pra fora", pois este não tinha nenhum significado
que simplesmente atinja indiretamente os indivíduos em suas rela- prático em sua teoria. Esse direito natural não foi nem concretizado
ções mútuas, não é portanto lei no sentido material. nem institucionalizado20 • Até mesmo Bentham apontou as
inconsistências da teoria do direito natural de Blackstone: "Ele se
Anschütz, o intérprete mais liberal da teoria de Laband, am-
comprometeu com algo que envolvia todos os absurdos dos dogmas
pliou o campo do direito em sentido material. Primeiramente, ele
entendeu por lei material todas aquelas normas cujo fim imediato que ele desmascarouni1• Enquanto, por um lado, Blackstone postula
consistia na delimitação das esferas da atividade dos indivíduos 17 • a supremacia da lex natura/is sobre a lex humana22, por outro lado,
Com essa conclusão, ele alterou a teoria de Laband ao incluir as ele postula com muito mais insistência a supremacia do Parlamento
relações entre Estado e indivíduo g uma concepção de lei material que pode fazer tudo o que quiser, e reconhece que não há remédio
· tarde contudo 18 ele entendeu r le· terial contra isso.
ttras-q~ra qu indiretamente a ljherclade ou a proprie- Mas essa crítica de Bentham também se aplica à distinção de
dadedos cidadão Com essa am liação, ele raticamente abandonou Blackstone entre vários tipos de lex humana. A lei para Blackstone
a teoria dualista. Pois podemos conceber q quer atlvi ade o é "uma norma de ação ditada por um ser superior", e a lei munici-
Estado que não atinja diretamente os cidadãos? Hoje em dia, reco- pal (direito civil) é "uma norma de conduta civil prescrita pelo
nhecemos cada vez mais a interdependência de todos os fenôme- poder superior de um Estado, ordenando o que é certo e proibindo
nos sociais, e somos incapazes, portanto, de conceber qualquer o que é errado"23. A legislação é "o maior ato de superioridade que
atividade do Estado que em última instância não atinja o status do pode ser concebido e exercido por um ser sobre o outro. A sobera-
indivíduo; seja a organização de corpos administrativos, ou dos tri- nia e a legislatura são na verdade termos que convergem; um não
bunais, ou a criação de empresas públicas. pode existir sem o outro"24. Mas essa soberania não pode ser ilimi-
tada. Nenhuma lei individual pode ser emitida pelo soberano. As
14.1.4. A DOUTRINA INGLESA
leis individuais são inadmissíveis. Uma lei individual não é uma lei:
"Não se trata da ideia de uma lei municipal! Ela é antes uma sen-
tença do que uma lei"25. Portanto, o Estado não pode ordenar por

19 ALLEN, C. K. Legal Duties and Other Essays in /urisprudence, Oxford, 1931, p.


124; ROBSON, W. A. Civilisation and Growth o( Law, London, 1935, p. 47.
20 Sir Frederick Pollock, "A Plea for H istori ca l jurisprudence", Law Q uarterly
O primeiro passo de lacksto e foi confessar sua fé na Review, vol. XXXIV, p. 145; BARKER, Ernesl lntroduction. ln: GIERKE, Otto.
Natural Law and the Theory of Sodety, vol. 1, Cambridge, 1934, xlvi .
existência de um direito natur . o fazer isso, como mostrou c. BENTHAM, )eremy. Comment on the Commentaries, Oxford, p. 152.
21
22 BLACKSTONE. vol. 1, p. 41.
23 Ibidem, p. 37.
17 ANSCHÜTZ. Kritische Studien, p. 33. 24 Ibidem, p. 46.
18 MEYER e ANSCHÜTZ, p. 654. 25 Ibidem , p. 44.
368 - Ü IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ N EUMANN - 369

lei que se confisque a propriedade de uma ou várias pessoas em


inglesa. Embora a lei (bili) privada sirva sempre para um caso indi-
particular. As leis, portanto, devem ser gerais por razões morais,
vidual, a lei (bili) pública não tem necessariamente um conteúdo
posto que leis individuais são injustas; e são gerais também por
geral. As duas noções, portanto, não coincidem. Uma lei (bill) pri-
razões utilitaristas, pois o Estado não pode dar injunções a todo vada pode ser definida como "uma medida para o interesse de algu-
sujeito individual. As leis gerais servem, por isso, à "informação
ma pessoa ou classe de pessoas, seja um indivíduo ou corporação, e
perpétua e direção de todas as pessoas sobre todas as questões de se origina na petição da pessoa ou das pessoas interessadas"; ao pas-
dever, sejam positivos ou negativos"26. Blackstone, contudo, não tira
so que uma lei (bili) pública "é introduzida como uma medida de
todas as conclusões práticas dessa teoria dualista. O postulado da
política pública em que toda comunidade está interessada, e se
soberania do Parlamento se coloca ao lado do postulado segundo o
origina na noção de algum membro da Casa em que a Lei (Bill) é
qual o Estado só pode governar por meio de leis gerais; e o primeiro introduzida"28. A diferença, portanto, incide nos interesses. E a
postulado é muito mais forte do que o último. Portanto, a teoria de
afirmação final do senhor Courtenay llbert, que o assunto de uma
Blackstone não passa de uma recomendação feita ao poder legisla-
lei (bill) privada é um privilegium, uma "exceção da lei geral", não
tivo para emitir somente leis gerais. A generalidade não é um ele-
deve ser entendida como se ele quisesse dizer que uma lei pública
mento essencial de sua concepção de lei.
não pode se aplicar a um caso particular.
O mesmo desacordo pode ser encontrado nos Cursos de Nas decisões das cortes, eu pude encontrar somente um caso
27
Austin • Ele distingue as leis, ou normas, dos "comandos ocasio-
em que a distinção entre leis individuais e gerais foi suficientemente
nais ou particulares". "Agora, se ela obriga em geral as ações ou
discutida: Re v. Crewe (ex parte Sekgome) 29 • A Corte teve de lidar
contenções de uma classe, um comando é uma lei ou uma nor-
com a validade de uma proclamação de uma comissão superior
ma." Se, contu<lg, o sobeVlJlQ legi&laQ.9r ernjte um comando par_;
sobre a detenção de um nativo sob uma Ordem no Conselho de 9
Jicular, Austin é levado a admitir que este comando também t. de maio de 1891, baseada no Ato de Jurisdição Estrangeira de
uma lei. A autoridade legisbtiva do Parlamento é inteiramente
1890 (53 e 54 Vict. C. 37), no qual a ação de habeas corpus foi
ilimitada em sua teori.a, de modo gµ e a teoria dualista não possui
suspensa. L. J. Farwell, ao expressar seu juízo, iniciou com a
ualquer si · cado rático.
seguinte afirmação sociológica: "A verdade é que em países
A distinção entre as duas concepções de lei também pode habitados por tribos nativas que excedem em muito o número de
ser encontrada na Constituição inglesa (V) de Walter Bagehot: pessoas da população branca, tais atos, embora constituam
"Uma lei é um comando geral aplicável a muitos casos. Os 'atos baluartes da liberdade no Reino Unido, podem, se for aplicado
especiais' que abrem o estatuto e que aborrecem os comentadores nesse caso, testemunhar a certificação mortal dos brancos"; o que
parlamentares são aplicados a apenas um único caso". Ele tam- significa que a lei geral que garante a liberdade tem uma força
bém não atribui qualquer significado prático a esse dualismo. desintegradora se aplicada em uma sociedade baseada na
A distinção entre lei geral e individual não pode ser confun- desigualdade. Portanto, ele admite uma ah-rogação da ação de
dida com as leis (bílis) privada e pública da prática constitucional habeas corpus, ou em geral, ou "em relação a um indivíduo

26 Ibidem, p. 53. 28 Sir ILBERT, Coulernay. Methods of Legislation, London, 1912, p. 28.
27 AUSTIN . Lectures, 4ª ed., vai. I, p. 94. 29 (1 91O) 2 K. B. 576, aprovado pelo Comitê Judicial do Consel ho Principal
(1 926) A. C., p. 518.
370 - Ü IM~RIO DO ÜIREITO
FRANZ NEUMANN - 371

particular"; e L.]. Kennedy acrescenta que a proclamação é um Declaração de 1793 proibiam leis penais com efeito retroativo: "O
privilegium, uma "legislação direcionada contra uma pessoa efeito retroativo atribuído a uma lei será um crime". Merlin, con-
particular, e geralmente, como espero e acredito, tal legislação foi tudo, durante a reação de termidor, afirmara que esse princípio
confiada menos aos legisladores britânicos do que aos legisladores deveria ser igualmente aplicado ao direito civil. Consequentemen-
da Roma antiga"; e Rowlett (para a defesa) apontou corretamente te, o Art. 14 da Constituição de 5 de frutidor do Ano ill proibiu
a relação entre tal proclamação e a Bill of Attainder*. qualquer tipo de retroação: "Nenhuma lei, nem criminal, nem ci-
Disso se segue que, embora as leis individuais indesejáveis vil, poderá ter efeito retroativo". O Art. 2 do Código Civil estabe-
possam estar de acordo com a teoria constitucional inglesa atual, lece que a lei pode apenas prover casos futuros, e uma provisão
elas não são proibidas; e sua generalidade não é reconhecida como similar deve ser encontrada no Art. 4 do Código Penal. Contudo,
característica essencial de uma lei. apesar da grande estima com que o princípio da não retroatividade
foi adotado pela teoria constitucional liberal, não há dúvidas de
14.1.5. A DOUTRJNA DA NÃO RETROATIVIDADE DA lE/3º
que a proibição foi endereçada aos juízes e não ao próprio corpo
egislativo32 • Desde o estatuto de 13 de-.anàl de 1908. contudo
A retroatividade é o maior atentado que a lei pode comete~ fie~ claro que ao corpo legislativo é permitido pmmnlgarleis com
ela é o dilaceramento do pacto social, ela.é a anulação das efeito retroativo33 •
condições em virtude das quais a sociedade tem o direito
O desenvolvimento na Alemanha to ou cnn cUfS ar.
de exigir a obediência do indivíduo; porque ela retira as
A Seção VIII da ordem pela qual o ll emeine Landrec de
garantias que lhe assegurara, em troca dessa obediência
fevereiro de 1794 foi publicado, bem como a eção 14 da
que é um sacrillcio. A retroatividade da lei retira da lei suas
introdução aoAllgemeine Landrecht, proibiu a retroação, mas apenas
características; a lei retroativa não é uma lei. 31
ao juiz; ao passo que a legislatura estava livre para emitir leis
Nessas palavras, Benjamin Constant caracteriza a retroativi- retroativas, mas apenas em casos excepcionais. Uma exceção,
dade da lei. Sua característica geral e sua não retroatividade estão contudo, pode ser encontrada no direito penal. Neste caso, a
ligadas mutuamente. Se a lei se aplica sobre um número indefinido pr.oibição da retroação também tem uma funs;ão ética, ~
de casos individuais futuros, uma lei retroativa possivelmente não é encontra ressão nos dois princípios: nullum crimen sine
uma lei; porque aqueles fatos já realizados são computáveis, e assim nulla ,twna ri",../ege. Seção 2 o ódigo penal alemão, válido
a lei é confrontada com um número definido de casos particulares. até 28 de junho de 1935, formulou estes princípios da seguinte
Já chamamos atenção para a teoria de Rousseau, a qual, também maneira: "Um crime só pode ser punido se a punição foi
em relação a essa questão, tomou forma a partir da legislação fran- determinada pela lei antes que o crime fosse cometido". Essa
cesa revolucionária. O Art. 8 da Declaração de 1789 e o Art. 14 da proibição tem sido rigorosamente aplicada na prática alemã; tão

* Ato_ legislativo que considera alguém culpado sem a precedência de um processo


32 DUGUIT, contudo, em seu Traité du droit (p. 230) afirma que o princípio de
ou Julgamento regular em que lhe seja assegurada ampla defesa (N. do T.). não retroatividade também se aplica às leis emitidas pelo legislativo, porque
30 LASSALE, Ferdninad. Das System der erworbenen Rechte. ln: Eduard Bemsteins ele continua afirmando a validade da Declaração de 1789.
(ed.), Gesammelte Schriften und Reden, vol. IX, X, XI.
33 BARTH~LEMY, Cf. J. Sur l'interpretation de /ois par lê legislateur, Paris, 1909.
31 Moniteur, 1 de junho de 1828, p. 755; citou LASSALE. Das System, vol. IX, p. 53.
* Um Código Geral do direito administrativo, civil e penal. (N. do T.) .
372 - Ü IMP~RJO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 373

rigorosamente aplicada que mesmo uma aplicação análoga das Assembleia Constituinte; na Seção 18 da introdução doAllgemeine
provisões do direito penal foi considerada como estando em Landrecht; no Art. Vil do código penal prussiano de 1851; assim
contravenção com esse princípio 34• O Tribunal do Reich como no Código Penal alemão.
(Reichsgericht) decidiu que o roubo de eletricidade não poderia A atitude da teoria e da prática jurídica inglesa é seme-
ser punido como roubo sob a Seção 242 do direito penal, uma lhante àquela do continente. Blackstone postula que "todas as
vez que esta seção prescrevia apenas a punição pelo roubo de leis deveriam, portanto, se iniciar no futuro" 38 • Mas a prática
objetos, e a eletricidade não pode ser considerada um objeto. Para aplica leis retroativas se um estatuto demandar expressa e clara-
tomar possível a punição da apropriação ilegal da eletricidade, mente sua aplicação retroativa39 • Sempre que um juiz, pelas
um estatuto especial foi emitido pelo Parlamento. A Constituição palavras expressas de um estatuto, for compelido a aplicá-las a
de Weimar elevou este princípio ao patamar de uma garantia casos passados, ele expressaria sua indignação em palavras muito
constitucional35 • Os advogados do naci · ·smo declararam fortes; sobre isso, comenta Parke: "Isso parece uma coisa muito
que o princípio nulla poena sine lege difícil de se sustentar (... )"4°, ou Vaughan-Willians: "É impos-
pou;ssa razão, é inaplicável ao sistema o eito alemão 36 • Essa sível de acreditar, penso eu"41 •
afu:mação do caráter não alemão do princípio de não retroatividade
pcc.tendia justificar a famosa !ex Van der Lubbe (de 29 de março 14.2. A LEI E o Juiz
dW23_3, Reichsgesetzblatt, 1, p. 151), que introduziu retroa.:'."
.ti:\lamente a pena de morte para certos crimes. Todo historiador
do direito sabe, contudo, que não tem sentido alegar que o
14.2.1. A APRESENTAÇÃO DA TEORIA E DA PRÁTICA

princípio da não retroatividade pertence ao direito romano. O


direito romano nunca incorporou tal princípio. A formulação O significado extraordinário da lei geral no sistema jurídico
latina do princípio, que deriva de Feuerbach, constitui muito liberal coloca o problema da aplicação da lei no centro da discussão.
menos uma prova de sua origem romana, como se a designação Se a lei, e apenas a lei, provê as regulações para as relações entre os
latina ou grega de uma doença provasse que ela foi descoberta indivíduos e entre os indivíduos e o Estado; se a lei emitida é o
pelos doutores romanos ou gregos. A esse princípio, nulla poena único meio de transformação social; isso naturalmente não signifi-
sine lege, está ligado um segundo postulado, a saber, a aplicação de ca que palavras escritas produzem essas transformações, mas que a
uma lei penal branda, se entre a ação do crime e o julgamento a aplicação dessas palavras por órgãos do Estado, na esfera das rela-
punição for mitigada por estatuto. Esse postulado já pode ser ções sociais, cumpre aquelas tarefas que são atribuídas à lei. A ati-
encontrado no relatório de Merlin sobre o efeito retroativo das tude dos juízes frente à lei, e sua posição no Estado, é portanto o
leis penais37, nos Arts. 1 e 4 da lei de 3 de setembro de 1792 da ponto crucial do sistema jurídico liberal.

34 Cf. Decisions of the Reichsgericht in Penal Matters, vol. 29, p. 11 . 38 BLACKSTONE. vol. I, p. 46, em que ele evoca a formulação de Coke: "Nova
35 Para o caso do EUA, cf. Caldor v. Bully 3 Dali: 386 (U. S. 1798). constitutio futuris formum imponere debit, non praeteritis".
36 Especialmente Dr. Nicolai em /uristisch e Wochenschrift, 1933, p. 2315, e 39 CRAIES. Statute Law, p. 324; BEAL, Edward. Cardinal Rufes of Legal lnterpretation,
também o m.emorando do ministro da Justiça da Prússia para a reforma do 3ª ed., 1924, p. 468.
direito penal, p. 127. 40 Moon v. Durden (1848) 2, sobretudo 22, 24.
37 LASSALE. vol. XI, p. 520. 41 Smithies v. Nat. Assoe. of Plasteres (1909) 1 K. B. 31O, 319.
374 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 375

Muito já se escreveu sobre esse problema; porém, apesar da vidade do Estado em relação às outras 45• As conclusões tiradas
estima com que eu tratei as teorias que foram desenvolvidas, não por Jennings são semelhantes àquelas de Heller. Também ele foi
consigo ver se o problema foi solucionado. Uma das principais incapaz de fazer uma distinção entre administração e justiça, por-
razões para a inadequação das soluções reside no tratamento a- que toda decisão, seja de um corpo administrativo ou de um juiz,
histórico e não sociológico desse problema, e na completa negli- "envolve(... ) a norma geral, a apuração dos fatos, o exercício da
gência da interdependência de todos os fenômenos sociais. A outra discrição"46 • Contudo, ele nota uma diferença na "regra de prece-
razão principal parece ser causada por um sincretismo dos méto- dência". Sempre que uma corte interpretar normas gerais, ela sem-
dos com que tal problema foi abordado. pre criará novas leis; um corpo administrativo, contudo, cujos
Permitam-nos começar com a resposta que a ciência pura do precedentes subsequentemente podem ser desconsiderados a qual-
direito deu a essa questão sobre a relação entre juiz e lei. Nessa quer momento, não cria tais leis, pois ninguém pode pretender
teoria, o juiz não emprega somente um ato de reconhecimento, que "a prática departamental deva ser seguida".
mas também um ato de vontade. A função da decisão judicial é Por essas conclusões, a ciência pura do direito parece
criar "uma norma jurídica individual, uma individualização e uma contradizer a teoria ortodoxa de Montesquieu. Nesta teoria, o juiz
concretização da norma jurídica abstrata"42 • Essa norma indivi- apenas exerce um ato de reconhecimento. O juízo expressa somente
dual, contudo, encontra-se, como já vimos; numa relação de re- aquelas ideias que já estão contidas na norma geral de uma forma
gulação e determinação. Ela se coloca sob a norma geral, assim abstrata. A função do juiz consiste em fazer uma mera subsunção
como a norma geral se coloca sob a Constituição. A norma geral lógica, em que a lei representa a premissa maior, os fatos do caso
determina não apenas o procedimento, mas também o conteúdo são a premissa menor, e a decisão do juiz não é senão a aplicação
da decisão. Mas essa determinação nunca é completa, pois sem- da premissa maior sobre a premissa menor. Essa "teoria fono-
pre há uma certa parcela de discrição por parte do juiz. A distin- gráfica", tal como Morris R. Cohen a nomeou47 , foi formulada
ção entre a função de criar e de concretizar a lei é então apenas com clareza por Condorcet48• A expressão clássica se encontra no
uma distinção quantitativa, e portanto torna-se irrelevante para a Espírito das leis de Montesquieu: "Os juízes da nação são (... ) a
ciência pura do direito 43• O juiz é relativamente livre, quer dizer, boca que pronunciam as palavras da lei de seres inanimados, que
no quadro da estrutura da norma geral44• não podem moderar nem a força, nem o rigor". Por causa dessa
alegada insignificância dos atos judiciais, eles são "de qualquer
Hermann Heller chegou a conclusões similares, a partir de
modo nulos"49; mas apenas se, como na Inglaterra, os juízes são
premissas totalmente diferentes. Ele não conseguiu determinar
escolhidos a partir do corpo do povo em certos momentos do ano.
substantivamente as diferentes funções do Estado. Todas as ativi-
dades do Estado têm substantivamente, portanto, a mesma ca-
racterística. Elas só se distinguem pelas diferentes formas em que 45 HELLER. Der Begriff. p. 98.
aquelas ações são realizadas, e pela validade superior de uma ati- 46 JENNINGS. p. 19.
47 MORRIS, R. Cohen. Law and the Social Order, p. 12.
48 O juiz tem de "fazer um silogismo no qual a lei é a premissa maior; um fa to
mais ou menos geral é a premissa menor; e a conclusão é a aplicação da lei",
42 Reine Rechtslehre, p. 79. Rapport sur lê projet girondin, Archives Parlamentaires, LVlll, citado em
43 Ibidem, p. 90. BARTHÉLEMY, Joseph. Lê role du povoir exécuUf dans les républiques modernes,
44 Ibidem, p. 98. Paris, 1906, p. 489.
49 MONTESQUIEU . Esprit des Lois, XI, 6.
FRANZ NEUMANN - 377
376 - 0 IMP~RJO DO DIREITO

A conexão entre essa teoria fonográfica e a distinção de funções opinião, é impossível criarmos qualquer nova dou~~ da comm_on
subs-tancialmente diferentes do Estado foi claramente formulada law"57. E Lord Shaw, um membro do Comitê Judioal do Pnvy
por Cazalés50: "Em toda sociedade política, não há senão dois Concil", deu a esta ideia uma formulação final: "O legislador é
poderes, aquele que faz a lei e aquele que a executa. O poder livre, e o judiciário é obrigado"58 ·
judiciário, apesar do que disseram muitos juristas*, é apenas uma Benthams9 argumentou em favor da codificação com as se-
simples função, posto que consiste na aplicação pura e simples da guintes palavras: "Um código (... ) não requer especi~stas para
lei"51 . A mesma ideia está expressa no Federalista5 2 • Neste, invo- sua explicação nem casuístas para decifrar suas entrelinhas. E~e
cando Montesquieu, Hamilton considera que isso é "a fraqueza falaria uma linguagem familiar para todos; cada pessoa po?ena
das três repartições do poder". "As cortes devem declarar o sentido consultá-lo quando precisasse (... ) Os juízes .não faze~ a lei (...)
da lei." Hobbes também aceita essa teoria ao dizer: "Pois todo Os comentários, quando escritos, não devenam ser atados (.._.).
juiz do que seja o certo e o errado não é juiz do que seja cômodo Se um juiz ou advogado pensa ter notado um erro ou uma omis-
ou incômodo ao bem comum"53. E mesmo Hale, em sua História são, deixe que ele certifique sua opinião com a legislatura"·
da common law 54 , afirma que "eles não podem criar a lei, A doutrina francesa levou o postulado de Bentham à sua
propriamente falando, pois apenas o rei e o Parlamento podem". perfeição lógica, chegando mesmo a transfo~á-lo numa reali~ad~.
Chama-se de jurisdição** um processo de "d!!dução e ilação sobre A Assembleia Constituinte aceitou a teona de Montesqmeu .
aquelas leis". Nessa teoria fonográfica, "a lei é considerada completa Robespierre declarou: "Essa palavra da jurisprudência dos tribunais
e auto-suficiente, sem antinomias e sem lacunas, esperando somente (... )deve ser apagada de nossa língua. Em um ~stado q~e te~
arranjo, desenvolvimento lógico das implicações de suas várias uma constituição, uma legislação, a jurisprudênoa dos tnbunais
regras e concepções e exposição sistemática de suas muitas partes"55 . não é senão a lei"61. Consequen-temente, o decreto de 16 e 24 de
A teoria jurídica inglesa moderna aceita na prática essa teoria agosto de 1790, que implementou a doutrina .da separ~ç~o .dos
ortodoxa: "Não há, de fato, algo como um juiz-que-cria-leis, pois poderes, proibiu que o juiz interpretasse uma lei. Se um JUlZ tiver
os juízes não criam as leis, embora eles frequentemente apliquem dúvidas sobre como um estatuto deve ser interpretado, ele tem
a lei existente a circunstâncias para as quais não havia previamente que pedir ajuda ao poder legislativo. A lei diz: "Os tribunais devem
autoridade para que neste caso a lei fosse aplicável"56. "Na minha se endereçar ao corpo legislativo todas as vezes que ac?ar~m
necessário interpretar uma lei". As funções desse referendo legislativo

50 Archives par/amentaires, 1ª série, vol. XV, p. 892 .


Cazales emprega o termo publiciste, que pode significar mais precisamente o
jurista especialista em direito público, segundo a terminologia francesa do 57 Farwell, L. J., in Baylis v. Bishop of London (1913); d. também Mireho~se v.
século XIII (N. do T.). Rennell 1 CI. E F. 527, p. 46; e a observação de Dicey em Law and Optmon,
51 Arquivos parlamentares, 1ª série, vol. XV, p. 892. p. 336, 367.
52 Nº LXXVlll, Hamilton. órgão de aconselhamento da monarquia britânica (N . do T.).
53 HOBBES. Leviathan, Cap. 26. 58 American Law Review, 1911, p. 275 .

..
54 HALE. History of the Common Law, Runnington, 1820, Cap. IV, p. 90.
Aqui e adiante Neumann provavelmente se refere à decisão judicial quando
fala sobre "jurisdição". (N. do E. inglês).
59 BENTHAM, Jeremy. Great View of a Complete Code of Laws, Browing (ed.),
vol. Ili, p. 210. . .. ª
G~NY François. Méthode de /'interpretation et Sources du Dro1t Pos1ti{, 2 ed.,
60
55 POUND, Roscoe. An lntroduction to the Philosophy of Law, New Haven, · '1919 , p . 77 , 84·' DE MALBERG ' La Théorie... de l'ltat, vol. 1, p. 719._
Pans,
1924, p. 48; similarmente WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft, p. 395. 61 Archives par/amentaires, 1ª série, vol. XX, p. 516; formulações similares sao
56 Lord Esher, M . R. in Willians & Co. V. Baddeley (1892) 2, Q. B. 3241326. utilizadas por Chapelier.
F RANZ N EUMANN - 379
378 • Ü l MP~RIO DO DIREITO

foram adotadas mais tarde pelo Tribunal de Cassação (de O referendo legislativo foi formalmente abolido pelas leis de
Corte de Cassação) , que tinha a tarefa de controlar to 30 de agosto de 1828 e 1° de abril de 1837.
julgamento com a finalidade de saber se este continha O significado decisivo dessa instituição é tentar levar a supr~­
contravenção expressa da letra da lei. Mas é preciso lembrar macia do Parlamento à sua conclusão lógica, e prever o estabelea-
esse tribunal não era considerado uma corte, mas um mandat mento de um governo de juízes encoberto pela teoria fonográfica.
do poder legislativo, tal como previsto na Constituição de 179 Essas tentativas, por mais que nos pareçam ridículas hoje, distin-
(Título III, Cap. V., Arts. 21 e 19): "Haverá um tribunal d guem esse período dos séculos XIX e XX, quando a teoria ortod~xa
cassação, estabelecido junto ao corpo legislativo". O referendo de Montesquieu prevalecia sem que se encontrasse seu corretivo
legislador foi abolido pelo Art. 4 do Código Civil, e o Tribu em tais instituições. Hoje, a teoria ortodoxa é uma doutrina que
de Cassação modificou suas funções; este agora não precisa oculta o poder dos juízes. O período revolucionário francês, con.t u-
dar atenção somente a uma violação formal da letra da lei, mas do, ao estabelecer o referendo legislativo, realmente tentou reduzrr o
também às interpretações equivocadas 62 • Com isso, a admissi- quanto foi possível o poder dos juízes.
bilidade da interpretação era implicitamente admitida. Portalis, Desenvolvimentos semelhantes aconteceram na Alemanha.
que exerceu uma influência decisiva na elaboração do Código Um decreto de Frederico o Grande, de 14 de abril de 1780, tam-
Civil por causa do seu D iscurso preliminar, iitribuiu expressamente bém proibiu os juízes de interpretarem as leis65 ; e esse decreto só
ao juiz o direito de interpretar a lei e preencher suas lacunas: foi rejeitado pelo seu sucessor, com o decreto de 8 de març~ ~e
"Nós reconhecemos nos juízes a autoridade para estatuir sobre 1789. A Seção 4 da Introdução do Allgemeine Landrecht pro1bm
as coisas que não são determinadas pela lei"63 • De acordo com os juízes de interpretarem as leis contra a letra da lei e o contexto
Portalis, é impossível para o legislador prever todos os casos das letras de uma lei. Paul Johan Anselm Feuerbach, o fundador
possíveis. Portanto, o juiz tem que preencher as lacunas "pelas da ciência alemã do direito penal, se opôs a qualquer forma de
luzes naturais da retidão e do bom senso" (Vol. 1, p. 467). comentário tal como o havia feito Bentham. Ele declarou ser um
Contudo, essa ideia de Portalis, que encontrou sua forma no absurdo interpretar as leis penais utilizando-se de livros, e é pro-
Código Civil, não prevaleceu na teoria e na prática jurídica vável que a Instrução da Bavária de 19 de outubro de 1813, ao
francesa. Ao contrário, a Escola de exegese foi plenamente proibir oficiais e especialistas de escreverem ~ co~ent~~ ~~
vitoriosa64 • Código penal da Bavária de 1813, se deve~ a sua influenc~a .
Bonnecase menciona o fato característico segundo o qual o Mas 0 grande oponente de Feuerbach, Savmy, adotou pratica-
ponto de virada na história do pensamento jurídico francês é o mente a mesma linha67 • Ele vê nos estatutos e nas leis consuetu-
ano de 1830; a partir de então, por um período de meio século, dinárias as únicas fontes do direito. O juiz tem somente a função
essa doutrina permaneceu praticamente sem modificações. de reconhecer a lei em sua verdade. Mesmo o preenchimento das

62 G~N Y. Méthode, vol. 1, p. 92 e ss. 65 Igualmente, na Áustria, Joseph li i ntroduziu, no Art. XIII de s~u- Código de
63 Citando FENET, Recuei/ Complet des Travaux préparatoires du Code ci vil, 1-X IV, 1786, 0 referendo legislativo se não se encontrasse alguma dec1sao clara em
Paris, 1836, vol. 1, p. 467-76. um estatuto.
RADBRUCH, Gustav. Feuerbach, Vienna, 1934, p. 85.
64 G ~NY. Méthode, vol. 1, p. 17-60; BONNECASE, Julien. La Pensée /uridique 66
Française de 1804 à /'heure presente, 2 vols., Bordeaux, vol. 1, p. 246. 67 SAVIGNY. System des heutigen romischen Rechts, vol. 1, Berl in, 1840.
380 - o IMP~RIO DO DIREITO
FRANZ NEUMANN - 381

lacunas deve ser realizado pela lei positiva. Portanto, qualquer rais69 defenderam o direito de revisão judicial; os conservadores, claro,
tentativa de fazer com que Saviny seja um defensor da Escola da o repudiaram70. Embora a quarta reunião dos juristas alemães em
Livre Discrição deve falhar. 1863 tenha se declarado favorável à revisão judicial, o número dos
Com a vitória do positivismo jurídico por volta da metade do que aderiram a esse princípio diminuiu rapidamente durante o
século XIX, o triunfo da teoria de Montesquieu se completa. A lei período de Bismarck, de modo que no final do século XIX a teoria
é um dogma, a interpretação, portanto, dogmática. A diferença entre e a prática eram quase unânimes quanto à rejeição do direito de
a escola histórica e a escola dogmática não é grande. Pois a escola controle por parte dos juízes. A cortes alemãs reconheceram tal
histórica estava convencida da existência prejudicial da lei, e, en- direito apenas em relação aos decretos, concedendo aos juízes so-
quanto para a escola dogmática a lei só se realizava em estatutos e mente o direito de examinar se tal decreto executivo foi encoberto
códigos, para a escola histórica ela estava ligada à lei codificada e por delegação através de um estatuto. A Suprema Corte admitiu
consuetudinária. Ambas repudiavam o direito que o juiz tinha para depois a autoridade dos juízes para examinar as leis dos estados
tecer considerações sobre equidade ou moralidade 68. A sujeição federais quanto à sua compatibilidade com a lei do Reich71 • A
absoluta do juiz frente à lei é suplementada pela recusa completa admissibilidade da revisão judicial dos estatutos do Reich e dos
do direito de revisão judicia!'. A partir da definição lógica da con- estados federais em relação à sua compatibilidade com as constitui-
cepção da separação dos poderes, nada pod~ ser deduzido quanto a ções concernidas foi negada de forma clara e inequívoca72 •
saber se tal revisão judicial se segue daquela noção ou é incompatí- Qyase as mesmas posições foram assumidas pela teoria e
vel com ela. É certo que se pode argumentar, com Hamilton no prática inglesas 73 .
Federalista (N. LXXVIII), que "não há posição que dependa de
A outra posição radical foi adotada pelos realistas america-
princípios mais claros do que o fato de que toda ação de uma auto-
nos74. Se para a ciência pura do direito a lei é a soma da constituição,
ridade delegada, contrariamente à tendência da comissão sob a qual
ela é exercida, é vazia. Portanto, nenhum ato legislativo contrário à
Constituição pode ser válido". Com uma lógica igual se pode de- 69 ZACHARIAH . Archiv für civi/istische Praxis, va i. 16, p. 170; SCHULZE e
duzir da superioridade do poder legislativo o exato oposto da teoria GÃVERNITZ, Die Prussische Saatsrecht, vol. li, 2ª ed., Leipzig, 1881 , p. 40.
70 STAHL, F. J. Rechts- und Staatslehre, vai. li, p. 508.
de Hamilton. A decisão quanto a saber se a revisão judicial é com- 71 Decisions on the Supreme Court in Civil Matters, vol. 24, p. 3; vol. 40, p. 69;
patível com a ideia da separação dos poderes nada tem a ver com vol. 48, p. 87.
72 Ibidem, vol. 77, p. 23 1; também no )uristische Wochenschrift, 1916, p. 596.
lógica, mas tem tudo a ver com política. 73 Cf. Chih-Mai Chen, Parliamentary Opinion of Delegated Legislation, Columbia,
Na Alemanha, o problema se tomou rático ela rimeira 1923, p. 20; WILLS, John. The Parliamentary Powers of English Govemment
Departments, Cambridge, M ass., 1933, p. 91; ROBSON, W i llian A. Justice
vez em Hessen em 1842. quan o os juízes declararam nulo um and Administrative Law, Cap. 111; e as seguintes decisões: Sands v. Chi ld 3 Lev.
532 (1693); Raleigh v. Goschen 1 Ch. 73 (1898); Re Petition of Rights (191 5)
decreto de impostos do governo. Por consequência desse conflito, a 3 K.B. 694; Att. Gen. V. De Keyser's Hotel (1920) A. C. 508.
teoria constitucional alemã se dividiu em dois campos. Os libe- 74 GRAY, John Chipman. Th e Nature and Sources of Law, New York, 1916;
LLEWELLYN, K. N. A Realistic Jurisprudence. Columbia Law Review, 1930, p. 431;
idem, Some Realism about Realism. Harvard Law Review, 44, 193 1, p. 31; idem,
Priijudizienrecht und Rechtsprechung in Amerika , Leipzig, 1933; M O ORE,
Underhill. Rational Basis of Legal lnstitu tions. Columbia Law Review, 1923, p.
68 Cf., por exemplo, as seguintes decisões do Supremo Tribunal alem ão nas
609; FRANK, Jerome. Law and the Modem Mind, New York, 1930; GOODHART,
questões civis: vai. 95, p. 35; vai. 97, p. 312; vai. 98, p. 124.
A. L. Some American lnterpretations of Law. Modem Theories of Law, London,
O termo "revisão judicial" (judicial review) está sendo usado em um sentido 1933, p. 1 e ss.; COHEN. Social Order, New York, 1933; KANTOROWICZ,
amplo, referindo-se ao controle dos atos legislativos. Hermann. Some Rationalism about Realism. Yale Law Review, 43, 1934, p. 1.240.
382 - 0 IMP~RIO DO ÜIREJTO
FRANZ NEUMANN - 383

das normas gerais, das decisões e dos atos administrativos; e se uma corte com respeito àqueles fatos, na medida em que
a jurisprudência dogmática a única lei é aquela codificada e esta.tu tal decisão atinge aquela pessoa em particular. Enquanto
tá.ria; para a jurisprudência realista, a lei não passa da soma das de · uma corte não examinou tais fatos, nenhuma lei que se
sões judiciais: "A lei do Estado {... ) é composta de regras que aplique a tal questão pode existir. Anteriormente a tal
cortes, ou seja, os órgãos judiciais daquele corpo, empregam para decisão, a única lei disporúvel é a opinião dos advogados
determinação dos direitos e deveres legais"75 • O juiz não é apenas em relação àquela pessoa e àqueles fatos. Tal opinião não
descobridor da lei, mas também o autor76 • A razão pela qual

~
é ainda uma lei existente, mas somente uma suposição
juízes não gostam de admitir esta simples proposição reside no fa sobre o que a corte decidirá. 79
de que eles querem encobrir seu poder. Cons uentemente a · ·
Portanto, ele faz uma distinção entre lei existente, que con-
pru • eia realista su re e os estudantes passem do estudo d
siste nas decisões já tomadas, e lei provável, que contém uma
direito material para aquele do comportamento judiciaJ77 • F
suposição em relação às decisões futuras. Sua tese final consiste
por exemplo,~ qualquer certez.a da lei. Ele admite que a opinião
em que o jurista tem de "captar o espírito de um cientista criativo
públiai pe'®1Jlta pela certeza. mas a ãfullíação de que a lei é certa I!
para ele um mero mitQ, A lei é "amplamente vaga e incerta", mesmo que não aspira por segurança, mas por risco, não por certeza, mas
em uma sociedade relativamente estável7~. Ele procura apresentar pela aventura que emerge na experimentação, por invenção e no-
uma interpretação pgcial desse impulso pela certeza. e ele a epmn- vidade, e não por nostalgia pelo absoluto, que se devota às novas
m bases sicoanalíticas, no fato de que o homem, tal como formas de manipuhçãt> dos vários particulares, e não pela busca
de universais integraisns0• O processo de aplicação da lei começa,
portanto, com o a "intuição" do juiz, que apenas subsequente-
mente é racionalizada. A teoria tradicional, segundo a qual a apli-
cação da lei não é mais do que um ato de reconhecimento, é um
mero disfarce. As normas têm apenas a tarefa formal de justificar
o juiz, e às vezes elas chegam a atrapalhar uma boa decisão81 •
Na maioria das vezes, ~ando apropriadamente empr~­
~as, elas têm um valor inegj.vcl. O juiz consciente, após
tentar chegar a uma conclusão, pode verificar se tal con-
clusão (... ) pode se vincular a pontos de vista gene-
ralizáveis (... ) Se isso não for possível, ele é forçado a
Para toda pessoa comum em particular, a lei, em relação a considerar com mais rigor se sua conclusão é sensata, tan-
qualquer conjunto particular de fatos, é uma decisão de to em relação ao caso ocorrido antes de sua decisão, quanto
em relação às possíveis implicações para casos futuros.

75 GRAY. Natural Sources, p. 191.


76 Ibidem , p. 21. 79 Ibidem, p. 46.
77 LLEWELLYN. /urisprudence, p. 442 . 80 Ibidem, p. 98.
78 FRANK. Law, p. 5-6. 81 Ibidem, p. 130.
384 - 0 IMP~RJO 00 DIREITO
FRANZ NEUMANN - 385

As normas, portanto, não passam de "roupagens formais" para atender às demandas do princípio de igualdade. Essas nor-
para o juiz. Na segunda parte, ele aplica sua teoria às doutrinas de mas são encontradas pelo juiz, que não é, portanto, uma mera
"certos pensadores jurídicos brilhantes" 82• Ele questiona juízes "máquina", mas exerce funções criativas.
adultos, tais como o sr. Justice Oliver Wendell Holmes, que teve
A essa teoria das fontes da lei estão vinculados certos postu-
que compensar seus complexos patemais.
lados da reforma do sistema jurídico, que foram mais bem apre-
Se a busca pelo pai-juiz tennina, se o modo autoritário de sentados no famoso panfleto de Gnaeus Flavius (Hermann
considerar a lei é eliminado, se os homens veem a lei Kantorowicz), e nos panfletos de Ernst Fuchs, os quais estão di-
como um ajustamento humano e não como uma dádiva recionados para a revisão da relação entre a lei e o juiz. Essas duas
ou um mandamento de alguma fonte externa, nenhuma partes - as observações teóricas sobre as fontes da lei, e a teoria
transformação necessariamente ocorre ou ocorrerá. O re- política postulada - devem ser rigidamente separadas. Na medi-
médio contra o medo de mudança não precisa resultar da da em que a Escola da Livre Discrição representa uma teoria po-
adoção de uma política de incessante mudança, mas le- lítica, ela exige a supressão da lei racional formal por meio das
vará a uma política de crescimento saudável e vital. 83 cláusulas gerais. Enquanto Kantorowicz, o fundador alemão da
A r:.,eação continental contra a juóspmdêncja dogmática é;. escola, em seus últimos trabalhos, insistiu ainda mais nos aspec-
~sa aa teoria da Escola da Livre Discrição 84 • A Escola da
tos teóricos do ensinamento da Escola da Livre Discrição, seus
Livre Discrição é decisivamente fundada na teoria de Franço~ sucessores sublinharam principalmente seus postulados políticos,
de acordo com a qual a lei não está apenas contida nos como, por exemplo, no caso de Ernst Fuchs 85 :
~st os sistema ·urídico não está ec o e completo, O Código Civil é bom somente em uma circunstância, a
my s tem lacunas que precisam ser preenchidas. E elas só po em saber, quando abandona os casuísmos abstratos e sim-
ser preenchidas com normas legais; portanto, a decisão do juiz plesmente ergue o dedo em riste. Nele vê-se a inscrição:
precisa ser uma decisão legal. Essas normas têm que ser gerais "Entrada para o Livre Estado de Direito das N ecessida-
des de Troca". Trata-se da seção 242. Este parágrafo ré-
gio provou ser subsequentemente o ponto arquimediano
82 A seleção é muito estranha. É certo que Dean Pound e Cardozo são "pensadores a partir do qual se poderiam abalar as fundações do velho
jurídicos brilhantes"; mas é igualmente certo que este termo não pode ser
aplicado a Jhering, Demogue e Wurzel. Os pensadores jurídicos mais influentes
mundo jurídico.
do continente estão fa ltando, tais como Gény, Duguit, Hauriou, Lambert na
França, e M ax Weber, Eugen Ehrlich e Radbruch na Alemanha.
83 FRANK. Law, p. 250.
14.2.2. A AVALIAÇÃO TEÓRICA DAS DOUTRINAS
84 EHRUCH, Eugen. Freie Rechtsfindung, 1903; Grundlegung der Soziologie des
Rechts, Munich e Leipzig, 1913; Gnaeus Flavius [Hermann Kantorowicz], Der
Kampf um die Rechtswissenschaft, 1906; idem, Rechtswissenschaft und Essa pletora de doutrinas não evitará que reconheçamos com
Soziologie, Tübingen, 1911; idem, Tat und Schuld, Zürich, 1933; idem, Aus clareza alguns fatos fundamentais. Ora, para nós não se encontra
der Vorgeschichte der Freirechtsschu/e, 1925; idem, "Some Rationalism about
Realism '', p. 1240; NEUMANN , Franz. " Richterliches Eremssen und no centro da discussão o problema teórico de saber se esta ou
Methodenstreit im Arbaitsrecht", Arbeitsrecht, 1929, p. 321 e ss.; idem, Die aquela teoria é correta ou errada, mas antes o problema sociológi-
politische und sozia/e Bedeutung der arbeitsgeschichtliche Rechtsprechung,
Berlin, 1929; BONECASE, La Pensée }uridique; GÉNY, Méthode; KORNFELD,
lgnaz. Soziale Machtverha/tnisse, Vienna, 1911; FUCHS, Ernst. juristischer
Kulturkampf, Karlsruhe, 1912; Was wi// die Freirechtschule?, Rudolfstadt, 1929.
85 FUCHS, Ernst. Die }ustiz, vai. 1, p. 349.
386 • Ü IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 387

~ Lco-~olítico de por que num certo período histórico uma certa ação dos depoimentos das partes e das testemunhas, na medida
(jl teona se torna prevalente, e que tipo de função social é realizada. em que as rígidas leis de evidência não excluem a possibilidade de
Não se pode duvidar de que a função do juiz não consiste tal interpretação, é em grande medida o trabalho do juiz e não de
num mero ato de reconhecimento. Hegel já chamou atenção para um mero processo lógico. A avaliação da evidência é, por assim
este fato 86• O processo judicial é, portanto, uma mistura indistin- dizer, dependente do clima mental do juiz. A segunda esfe~a em
guível de elementos teóricos e práticos de reconhecimento bem que o clima mental do juiz se torna operativo consiste na inter-
como de elementos criativos, reprodutivos e produtivos, científi- pretação das regras jurídicas, estejam elas contidas em um código,
cos e supracientíficos, "objetivos e subjetivos 87 • Desde que Karl estatuto ou em precedentes. Uma abundância de normas jurídi-

~
Mannheim elevou a sociologia do conhecimento ao patamar da cas está aberta à interpretação. Se o juiz prefere esta ou aquela
ciência, estamos de posse de uma técnica, ainda não plenamente interpretação, se ele aplica um precedente ou o desconsidera com
desenvolvida, que nos permite distinguir a determinação existen- base na sua perspicácia, trata-se de uma questão de livre arbítrio.
cial do pensamento 88 : Portanto, sempre que um livro sobre processo judicial come-
A determinaçã~ do pensamento deve ser um çar pela demonstração de que este processo não consiste num mero
fato demonstrado, naquelas esferas em que conse~os ato de reconhecimento, ele estará somente provando o óbvio.
l_IlOStrar (a) que o processo de reconhecimento não se de- Dada essa pressuposição básica, a ciência pura do direito está
senvolve historicamente segundo "leis imanentes de de- certa ao sustentar que a criação das leis não seja identificada com
senvolvimento"; gye de forwa alguma é determinado pela o conceito de egislação, e não pode ser confundida com a ativida-
"natureza das coisas" e por "possibilidades puramente de de certos órgãos do Estado; e que, portanto, o conceito de
lógicas", muito menos por uma "dialética espiritual direito (Recht) não pode ser identificado com o de lei estatutária
imanente"; mas gue fatores extrateóricos decisivos de um ( Gesetz} 89; mas a conclusão da ciência pura do direito de que não
otalmente diferente, que costumamos chamar de existe distinção teórica entre legislação e jurisdição não tem mui-
,fatores da existência, surgem e determinam o processo e ta importância. Contudo, a posição teoricamente inatacável, se-
pensamento; e (b) que a emergência desses fatores da gundo a qual não há distinção entre legislação e jurisdição, é
existência que determinam o conteúdo concreto do co- importante para a refutação de todas aquelas doutrinas que afu-
nhecimento não possuem apenas um significado perifé- mam a existência de um fosso intransponível entre legislação e a
rico, mas determinam seu conteúdo e forma, bem como aplicação da lei, tal como, por exemplo, a decisão da Suprema
sua estrutura e seu modo de formulação. Corte americana no caso de Schechter de 1930.
Essa determinação existencial do processo judicial acontece A partir dessa posição básica, contudo, a contribuição do
em primeiro lu juiz tenra drsrnhrjr os fatçs concre- realismo americano, embora significativa, não foi decisiva. Vamos
tos da caso. A distinção entre fatos materiais e imateriais, a avali- nos concentrar no livro de Frank. Ele insiste diversas vezes que
sua interpretação é somente uma interpretação parcial. As
interpretações parciais, contudo, têm apenas um aspecto ilusório
86 HEGEL. Phi/osophy of Right, §211, Adendo.
87 RADBRUCH, Gustav. Rechtsphilosophie, 3ª ed., Leipzig, 1932, p. 111.
88 MANNHEIM, Karl. Wissenssoziologie. ln: Handwõrterbuch der Soziologie, p.
659; GINSBERG, Morris. Sociology, p. 216 e ss. 89 KELSEN. Allgemeine Staatslehre, p. 231 .
388 - 0 IMPt RJO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 389

se se omite estabelecer a relação de uma parte com as outras. N Esse problema só pode ser solucionado por meio do método
ponto, Frank permaneceu em silêncio. Ele afirmou repetidam da sociologia.
que a teoria do pai-como-um-juiz não representa toda a ver O pensamento do juiz é determinado por dois conjuntos de
Mas a paixão com que recusou qualquer outra interpretação m fatores. Em primeiro lugar, por dominantes individuais; ao des-
que sua interpretação parcial transformou-se numa interprc gostar ou gostar de certos advogados ou partes em disputa, de
completa. Sua capacidade de determinar sua relação com homens ou mulheres, de católicos ou protestantes, ou judeus. Estas
fatos fica clara quando ele lida com a ~ção das normas. Ele dominantes individuais são indetermináveis. Elas somente po-
pode ignorá-las, mas as considera somente como vestimc dem ser racionalizadas ao se tornarem hábitos típicos e poderem,
f?rmais dos juízes. Mas em sua teoria elas representam ainda portanto, ser observadas e levadas em consideração.
E verdade que a decisão começa com uma "intuição" (hunch),
Contudo, é ainda mais importante o fato de que a estru-
na sua visão o juiz deve abrir mão de sua "intuição" caso ela e
tura social condiciona a mentalidade90 • A maneira com que o
em aberta contradição com a norma ou o caso. De modo q
juiz observa uma coisa, o que ele apreende, e como ele a trans-
norma, de um ponto de vista prático, distin~do-se da de
forma mentalmente, é determinada basicamente por sua posi-
do...juiz. possui uma realidade própria. Seu erro, tal como o
ção social. A determinação existencial do pensamento difere
to os os outros realistas consiste em não ver a real existência
nos vários estágios do processo judicial. Seguimos aqui a dis-
--Dºnnas. A n rma é um meio ara a adaptação dos homens, as
tinção de Mannheim entre os vários estágios do pensamento91 •
cama a decisão do juiz. gue para ele é o úruco meto. a no
O primeiro estágio é aquele da intuição (Finden). Neste passo,
tampouco um presente ou um mandato de algum põder extc
o juiz espera por uma "intuição" (hunch). Trata-se do estágio
assim como também não é a decisão judicial. Ela é antes tan
mais primitivo do pensamento, o qual é realizado na justiça de
trabalho de um homem como o julgamento de uma corte.
Kadi, ou na atividade do júri. Neste estágio, o papel desempe-
mérito, contudo, consiste em ter demonstrado que a busca
nhado pelo pensamento é relativamente pequeno, ou inexis-
certeza, pela segurança absoluta, é um fenômeno da socie
tente. A decisão é principalmente uma reação inconsciente.
burguesa. O burguês, apesar do fato de que em sua filosofia
indivíduo se move no centro do universo, serru~~-""''"" Mas o juiz não pára neste estágio. Ele ascende ao estágio do
absoluto; e este absoluto é, desde Descartes, lei univers pensamento inventivo (Erfinden). O processo de subsunção co-
sim lesmente substitui a lei absoluta pelo JWZ a soluto, meça. Não se permite que o juiz se satisfaça com uma intuição;
qual assume o pape o ' ele é impelido a produzir argumentos, ou seja, racionalizar a in-
portanto, uando o rofi tuição. Neste estágio do pensamento inventivo, o pensamento
dea·~~.-esQ()Ja-l:eQliE~~lícm..a-1.M~impl~dc...iJ-
. desempenha um papel bem grande, porém a existência determi-
na o pensar. Se o juiz agora começa a pensar sociologicamente, ele
~guega..q,ua nto a teoria ortodoxa de Montesquieu. ascende ao terceiro estágio, aquele do pensamento planificado
(planendes Denken). Sociologicamente, isso significa que - do
Sua teoria não explica por que um juiz decide desta ou
~u hrfonna, e PM-Elue e>cistem tais opiniões correntes quanto
mtetpretakão das normas. 90 MANHEIM. Wissenssoziologie, p. 662 .
91 Idem, Mensch und Gesel/schaft im Zeitalter des Umbaus, Leiden, 1935, p. 93.
390 - o IM11RJO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 391

ponto de vista do juiz - ele se torna consciente do fato de que seu falando de imparcialidade consciente; mas os hábitos com os quais
pensamento é determinado existencialmente. A auto-análise so- se está acostumado, bem como as pessoas com quem você se rela-
ciológica é, na minha opinião, a tarefa primeira do juiz. Esse pro- ciona, nos levam a c as classe de ideias de uma natureza tal que
blema foi apresentado de uma forma bem interessante na quando se tem de lidar com outras ideias, você não as entende ";
Alemanha por ocasião de uma controvérsia entre o presidente da nem.as._julga com o midade qtte gestaria". E sobre as disputas
J Suprema Corte, dr. Simons, e Radbruch, ministro da Justiça do trabalhistas, ele acrescentou: "Às vezes é muito dificil ter certeza
~ Reich e professor de Filosofia do Direito. Dr. Simons declarou s~ você se colocou numa posição ----imparcial entre os dois laàos em
que nenhum marxista poderia se tomar um juiz, uma vez que disputa, um de sua própáa classe, e a ou tro que não é da -stta
todo marxista seria tendencioso devido à sua concepção de luta .classe". Ek chegou inclusive a afirmar gue enquanto as cartes
de__classes; Radbruch replicou qu__e apenas um marxista pode.á.a com erciais são aconselháveis porgue precisam lidar com litígj.os
s~uiz, pois ele é capaz de ver consoentemente a detemuna.? nQJllesmo estrato da sociedade. as cortes industriais são extrema-
~Ç J Cu processo judíêiãl segjlrnln s113 eajstencia e a dãs partej ~ Jlfll~áÂa& pgrque as partes pertencem a classes antagônicas
em litígio. Materialmente, pensamento "planificado" significa - e possuem convicções antagônicas.
de acordo com sua função - o ajustamento da decisão do juiz não
r
O grande liberal alemão Gneist94, que, longe de ser um mar-
somente em relação a um sistema lógico ,de normas, mas a um xista, considerou a lei como o sedimento dos conflitos da sociedade
sistema social que é determinado pela constituição. assentados em classes, afirmou que o juiz compartilha o sentimen-
to, os interesses e as ideias da classe instruída à qual ele pertence.
É óbvio que somente por meio de investigações específicas
pode-se provar se a determinação existencial do processo judicial é
válida ou não, no sentido de que o processo judicial seria essencial-
mente condicionado pelas relações de classe.
As investigações sociológicas dessas duas bases - a sociologia
do conhecimento e a sociologia das ideologias - têm de lidar com
os seguintes problemas.
( Na teoria e na prática, uma distinção é estabelecida entre a
legislação e a..aplicação da lei Afirma-se que existe uma di&Ee~a
s stancial entre esses dois tipos de atividad e. É verdade que a
jurisdição envolve a cnação e elS, m como há diferenças entre a
le · -o e a atividade do ·uiz. Estas diferenças não possuem uma
natur--.e categórica. Elas são condiciona as ·stórica, política e
s~. Nesse sentido, elas não têm qualquer interesse ~
ciê~pura do direito e para o realismo americano; mas para qualquer
92 FRAENKEL, Ernst Zur Soziologie der Klassenjustiz, Berlin, 1927, p. 27.
93 SRUTTON. The Work of the Commercial Courts. ln: Cambridge Law /ournal,
192 1, vol. 1, p. 8. 94 GNEIST. Der Rechtsstaat, p. 259.
392 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 393

sociologia do direito seu significado é decisivo. Nós concordamos Segundo a ciência pura do direito, não há uma diferença formal
plenamente com as atentas avaliações do sr. Justice Cardozo95 e do entre jurisdição e administração, pois a administração, assim como
prof. Goodhart96• Concordamos com eles em que, apesar da grande a jurisdição, é somente a individualização e concretização de nor-
importância dos fatores subconscientes no processo judicial, a mas gerais. A diferenciação entre justiça e administração é, de
importância dos fatores conscientes não deve ser subestimada97; mas acordo com essa vinculação, "em um grau maior ou menor, uma
.J.
que o método lógico leva somente até certo ponto, e deve ser sucedido arbitrariedade histórica"1 00 •
~elo método sociológico98 • Contra os exageros da doutrina que enfafua
Mas o que é irrelevante do ponto de vista da ciência pura do
a atividade criativa do juiz, o sr. Justice Cardozo insiste especialmente
direito é decisivo do ponto de vista da sociologia.
no fato de que, embora haja inúmeros casos, ainda na sua maioria a
lei é clara e não está aberta à intecpreta~o. Todo advogado exercendo Costuma-se concordar que podemos falar de administração
sua prática sabe disso. A_ supervalorização nos Estados Unidos da sempre que "a arma executiva do governo interfere nos indivíduos
atividade criativa dajuiz deriva especialmente do fato de que o iot~ e em seus próprios movimentos, agindo anteriormente e descon-

~
e'stá centrado nas disputas constitucionais, e que a Caostituiçjo siderando a existência de qualquer controvérsia entre eles"1º1•
r~ente.-AãA..CQnsiste de noonas legais abstratas. mas de cláusulas Concorda-se de modo similar que a atividade administrativa do
gerais indefinida$. as quais não têm conteúdo ou seu conteúdo é Estado inclui a atividade de qualquer tipo de corpo administrati-
indeterminado. Essas pro · - constl · não são regras jurídicas; vo. Nesses casos, o Estado realiza diretamente seus fins, por exem-
na verdade, elas são princípios jurídico . A supervalorização plo, ao construir hospitais, controlar o tráfego, bem como criar

~
gçralmente é condici~ e a teoria ·urídica lidai bancos, serviços postais, etc.; enquanto, em todos os outros casos,
~P.iamcmk--c~as dceisões-;+RãO mm as dj§putas jurídicas qµe o Estado provê aos sujeitos certos padrões de comportamento,
J11mca chegarão ao estágio de füígio. Fma!mente, ela está condicionada através dos quais aquele realiza apenas indiretamente seus fins.
pelo fato de a teoria juádica preocupar-se propriamente com as Mas o Estado não lida somente com as relações entre ele
decisões relatadas, mas quase nunca considerar os julgamentos r&i_ mesmo e os cidadãos, mas também com conflitos entre os cida-
relatados cu·o n' ero é bem
dãos. Essas disputas sã~ em geral, decididas pelas cortes. e são,,.
~ão à ~lei, temos que fazer uma distinção matéria de jurisdição, Mas isso não acontece necessariamente as...:.
entre~ e a~o. Não te!llOS a intenção de acr~s­ sim: e em qual uer caso, o fato de eles serem decididos or meio
centar uma nova investigação àquelas já existentes; visamos ape- de-oott.es ordinárias não nos diz na a sobre a natureza desses con-
nas-fazeumL.esboç0 desse problema que nos parece decisivo 99 . " flitos. A lei positiva obviamente p de alocar uai uer disputa na
:::;:>
esfera_das cortes ordinárias. Pode-se inclusive indicar tribunais
95 CARDOZO, Benjamin N. The Nature of the Judicial Process, New Haven,
administrativos para a decisão de conflitos civis genuínos. A deci-
1921; idem, The Growth of Law, New Haven, 1924.
96 GOODHART. Some American lnterpretation5 of Law. Modem Theories of Law,
p. 1 e 55.
Verwaltungsrecht, Tübingen, 1927; DICKINSON, John. Administrative Justice
97 CARDOZO. Judicial Process, p. 31; idem, Growth of Law, p. 61 ; GOODHART. and the Supremacy of the Law in the United States, Cambridge, Ma55., 1927;
American lnterpretations, p. 76. ROBSON. Justice; JENNINGS, lvor. The Law and the Constitution .
98 CARDOZO. Judicial Process, p. 43. 100 KELSEN. Staatslehre, p. 238.
99 Cf. FLEINER, Fritz. lntitutionen des deutschen verwaltungsrecht, 8ª ed., 101 DICKINSON . Administrative Justice, p. 11 ; igualmente KELSEN. Staatslehre,
Tübingen, 1928; KELSEN . Staatslehre; MERKL, Adolf. A//gemeines p. 238.
394 - 0 IMP~RIO DO DIREITO F RANZ NEUMANN - 395

são quanto a saber se a decisão de uma disputa jurídica pertence à reconciliação de interesses conflitantes, e não à determinação de
sociologicamente à jurisdição ou à administração não depende de direitos conflitantes. Tais padrões tomam possível considerar as
decisões tomadas no quadro da lei positiva, mas de critérios ma- questões de conveniência, e não somente questões da lei. Se, por
teriais. Contudo, é preciso perguntar se é útil descortinar tal cri- exemplo, uma corte dissolve um casamento porque "todos os fa-
tério material, uma vez que a lei positiva já tomou uma decisão tos por meio dos quais podemos constatar que na relação matri-
sobre se uma disputa pertence à jurisdição civil ou administrati- monial os deveres matrimoniais foram rompidos ou que hou~e
va. A resposta para essa objeção reside em que a análise sociológi- conduta desonrosa e imoral por parte de algum dos cônjuges,
ca é preparatória para uma reforma do direito. Se descobrirmos, tomam a própria relação insustentável a ponto de o requerente
por meio de uma análise sociológica, que uma certa atividade do não poder esperar de forma justa que o casamento continue" (Se-
Estado pertence estrutural e funcionalmente à administração e ção 1.568 do Código Civil alemão); se a Corte decide a legalida-
não à justiça, podemos postular em certas circunstâncias a aloca- de de uma greve ou invasão a uma empresa por parte dos
ção dessa questão à administração ou aos tribunais administrati- trabalhadores considerando sua moralidade (Seção 826 do Códi-
vos, e não às cortes ordinárias. Desse ponto de vista, a análise deve go Civil alemão); se um cartel industrial pode ser dissolvido "se
ser considerada como justificada. qualquer acordo ou convenção( ... ) colocar em risco a vida econô-
Definimos como disputas administrativas aquelas disputas mica da comunidade como um todo" (Seção 4 do decreto contra
entre os indivíduos que são exclusiva ou preponderantemente deci- o abuso do poder econômico de 2 de novembro de 1923); se as
didas com base em cláusulas gerais; ou seja, por livre discrição. Sabe- cortes inglesa ou americana decidirem a legalidade de uma asso-
mos que não há qualquer distinção categorial entre livre discrição ciação ao restringir o comércio baseando-se inteiramente no fato
~e.. a obrigaçãõêlojuiz perante a lei, pois a livre díscnção é obvià-.. de se tal restrição é razoável ou não; então as cortes, mesmo se a
mente ·· dem · 'dica. Nesse sentido, os atos de decisão tent_ a forma de um julgamento ordinário, são de fatq
livre cliscri ão são atos jurídico . Estamos também conscientes do re~ciliadoras de interesses conflitantes e com isso exercem u m_

f: o de ue mesmo a atividade das cortes ordinárias é em grande íioder administrativo.


medida uma ativi A distinção é importante porque os atos administrativos e as
~es administrativas sãg essencialmente mais polít.i.~os do qi.ie
cortes ordinárias.

14.3. A DúVIDA LEVANTADA PELO DIREITO INGL~

14.3.1.
ca..púbUca, ou ra:roah jljd adet. Em tais casos. a atividade das co,!!es
o.i:dir.wias_( de administrativa. As cláusulas
gerais e a livre discrição, que é a realização de tais padrões, servem

102 JENNINGS. Constitution , p. 45 e ss.


396 - Ü IMf'tRIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 397

cionalidade, certeza, calculabilidade e previsibilidade 103• Já vimos econômico competitivo e um tipo particular de sistema jurídico,
que a generalidade da lei, sua não retroatividade e a posição do juiz que se expressa na generalidade da lei, na sua racionalidade e na
são fenômenos estruturais típicos do sistema jurídico liberal no função meramente declaratória do juiz.
período da livre competição. A questão que agora tem relevância Para tal propósito, a análise do sistema jurídico inglês é um
soOOló · r e tais caracteríslícas sao ou não elemen-
possível teste de validade de nossa tese. Estamos conscientes da
to constitutivos de todo sistema jurídico na era da livre com eti-
dificuldade que um jurista continental precisa enfrentar ao apre-
sentar uma análise do sistema jurídico inglês. Contudo, temos sor-
te de na literatura anglo-americana o problema já ter sido tratado,
pois assim podemos nos apoiar nos resultados dessas investigações.
A diferença decisiva entre teoria jurídica continental e inglesa
reside no fato de que a teoria jurídica inglesa nega que o direito
seja um sistema fechado que expressa um corpo lógico e
consistente de normas. Não é a falta de uma codificação que toma
a abordagem de um jurista continental do problema do direito
inglês tão dificil; trata-se antes da convicção dos advogados ingleses
de que o direito não apresenta um sistema. Esta convicção foi
expressa, por exemplo, por lorde Halsbury: "Um caso apenas
1 03 ALLEN, C. K. Law in the Making, 2ª ed., Oxford, 1930; idem, "Case Law, an
confirma a autoridade daquele que de fato decide. Eu nego
Unwarrantable lntervention", Law Quarterly Review, 51 , 1935, p. 33; idem,
Legal Duties and Other Essays in furisprudence, Oxford, 1931 ; ASHBURNER. inteiramente que se possa concluir de uma proposição aquilo que
Principies of Equity, 2ª ed. Denis Brown (ed.), London, 1933; BEAL, Cardinal
se segue logicamente dela. Um tal modo de argumentação assume
Rufes; FIFOOT, C. H. S. English Law and its Background, London, 1932;
GOODHART, A. L. Essays ín furisprudence and the Common Law, Cambridge, que o direito é necessariamente um código lógico, embora todo
1931 ; idem, "precedente in English and Continental Law", Law Quarterly Review, advogado tenha de reconhecer que o direito não é lógico de modo
50, 1934, p. 40; idem, "Case Law - A Short Replication", Law Quarterly Review,
50, 1934, p. 196; Sir Willian Holdsworth, History of English Law, 5' ed., Oxford, algum" 1º4• Esta é uma formulação que um jurista continental
1925; idem, Some Lessons from our Legal History, New York, 1928; idem, "Case
simplesmente é incapaz de entender. A teoria da consistência
Law", Law Quarterly Review, 50, 1934, p. 180; JÃGER, Geog. Das englische
Recht zur Zeit der Klassischen Nationalokonomie, Leipzig, 1919; KERLEY, D. M . lógica do direito que prevalece no continente é substituída no
An Historical Sketch of Equitable furisdiction of the Court of Chancery, Cambridge,
direito inglês pela teoria da continuidade histórica105 • O "direito
1890; LEVY-ULLMANN, Henri. The English Legal Tradition, its Sources and History,
London, 1935; MAINE, H. S. Ancient Law (Oxford Classics); MAITLAND, F. W. do país" consiste numa coleção de princípios que se desenvolvem
Equity; CHAYLOR, A. H .; WHITAKER, W. J. (eds.), Cambridge, 1929; OLIPHANT,
Herman. A Return to State Decisis, 1928; PLUCKNETT, Theodore. A Concise
permanentemente. Não há rompimento com a tradição. Ocorre
History of the Common Law, Rochester, NY, 1929; Sir Frederick Pollock, Essays de outro modo na Alemanha; a dissolução do antigo Reich em
in the Law, London, 1922; idem, A First Book of }urisprudence, 6ª ed., London,
1929; Essays in furisprudence and Ethics, London, 1912; Pollock e Maitland,
1806 também interrompeu a história jurídica alemã. O antigo
The History of English Law before the Tim e of Edward /, 2 vols., Cambridge, Reichskammergericht não tinha conexão com o Tribunal do Reich
1895; POUND, Roscoe. The Spirit of the Common Law, Boston, 1925; idem, An
lntroduction of the Philosphy of Law, New Haven, 1924; idem, lnterpretations of
Legal History, Cambridge, 1923; Sir Paul Vinogradoff, Common Sense in Law
(Home University Library); Percy H. Winfeld, The Chie( Sources of English Legal 104 Quinn v. Leathan (1901 ), A. C. 495, 506.
History, Cambridge, Mass., 1925. 105 GOODHART. Precedents, p. 50.
398 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 399

(Reichsgericht). As diferenças entre os sistemas jurídicos inglês e b) No que consiste a distinção entre ratio decidendi e a
continental residem na existência de fortes corporações de advogados obter dieta?
na Inglaterra que se opõem à recepção do direito romano 106 , evitando c) E em que medida essa teoria é utilizada?
com isso uma sincronia com o de-senvolvimento jurídico continental.
d) Qg.a1 é o papel da equidade no sistema jurídico inglês?
Mas essas diferenças não devem nos levar a negligenciar a
similaridade estrutural fundamental dos dois sistemas jurídicos, e) Qual é a função social da força vinculante do prece-
uma similaridade tão grande que de um ponto de vista sociológico dente e da equidade?
as diferenças perdem seu significado. Começaremos afirmando que o princípio da força vinculan-
te do precedente, enquanto tal, não tem relação alguma com o
14.3.2. sistema do case-law108• A doutrina da força vinculante do prece-
dente é perfeitamente compatível tanto com um sistema jurídico
Começaremos com a primeira tese: a no sistema codificado quanto com a common law. E é característico do direi-
jurídico continental é substituída pela r io deciden do caso to inglês que essa doutrina seja aplicada não apenas à common
do direito inglês. A {Q_rça vinculante do prece ente no caso dQ law, mas é empregada em grande medida no direito estatutário.
dir.e.ito moderno consiste no seguinte: tqdo juiz da Suprema De acordo com a teoria moderna, um precedente contém um
Corte vê-se obrigado pelas decisões da Corte de Apelação e da princípio, uma norma que deve se distinguir da força vinculante
Gas-a-4os_Lordes. mas não pelas decisões dos outros membros da que uma decisão exerce entre as duas partes em litígio. Esse princípio,
~uprema Corte:_A Corte de Apelação é obrigada por suas pró- a ratio decidendi, tem um poder que transcende a força vinculante
prias deci ões e elas decisões tomadas ela Casa dos s. A entre as partes. A técnica foi plenamente desenvolvida por
Casa..dos Lordes está sujei.ta às; SJJas próprias decjsões O Comi- Goodhart109• A complicação se deve ao fato de que o princípio está
têittdiéal-do C 0 nselho Pá vado tecnicamente não é uma corte. embutido nos fatos do caso, de modo que "todo julgamento seja
nesse sentida, mas. na medida em q 11e 5e11 pessoal é idêntica ao considerado aplicável aos fatos particulares que foram comprovados
- ou assumidos como comprovados - desde que as expressões que
da-Casa àes Lei:àes,-i.Clljulgamento, embora p ão seja legalmen-
possam ser encontradas nesse caso não pretendam ser expressões do
t~ht:ig,a.tóÜGr-fem .JlW grande yajor. A eosicão da Corte de
direito como um todo, mas sejam governadas e qualificadas pelos
Apelação C rj mi pal é duvidosa; parece gue ela está sujeita ape-
fatos particulares do caso em que tais expressões foram encon-
na ' ' rias decisões mas a sua relação com a Corte
tradas"11º. Outra dificuldade decorre do fato de que muito
Apelação é indefiaida!,º7.
frequentemente os juízes que concorrem em torno de uma decisão
As seguintes questões, portanto, precisam ser examinadas: oferecem razões divergentes. A conexão estreita entre ratio decidendi
a) O que se entende pela força vinculante do precedente? e os fatos do caso torna necessário, portanto, que se determine
primeiramente os fatos do caso, que se distinga depois os fatos

106 WEBER. Wirtschaft, p. 663; BENTHAM, Jeremy. Rationale of Judicial Evidence, 108 VINOGRADOFF. Common Sense, p. 177; GOO DHART. Precedents, p. 43 .
livro VIII, Cap. 111, §4. 1 09 GOODHART. Essays, Cap. I, p. 4.
1O7 R. V. Denyer (1926) 2. K. B., p. 258. 1 1O Earl of Halsbury, in Quinn v. l eathan (1901) A. C., p. 506.
400 - 0 IMPÉRIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 401

materiais dos imateriais, e finalmente que se siga as conclusões do Tribunal do Reich desenvolveu com perfeição a técnica da dis-
juiz que se debruçou sobre tais fatos. É extremamente difícil tinção, de modo que a aplicação da Seção 137 foi evitada sempre
estabelecer uma regra ao caso; mas, ainda que seja difkil, não pode que possível
haver dúvidas de que a regra é idêntica à lei geral abstrata de uma Na Inglaterra, "somente sob um sistema de precedentes vin-
norma racional formal. Portanto, a ratio decidendi é tanto um objeto culantes a continuidade e certeza necessárias inerentes à concep-
de subsunção por um juiz posterior quanto a provisão de um ção da lei puderam ser alcançadas com base nas decisões
estatuto ou de um código 111 • Não há dúvidas de que essa abordagem judiciais"113 •
indutiva e pragmática para se encontrar o princípio geral apresenta
Portanto, é de vital importância determinar quando ocorreu
dificuldades tão grandes quanto aquelas envolvidas na procura de
pela primeira vez a negação da atividade criadora por parte da cor-
uma provisão apropriadá num código ou estatuto. Contudo, a
tes apoiadas na common law e quando prevaleceu pela primeira vez
dessemelhança entre os dois sistemas, embora grande, não afeta sua
a força vinculante do precedente. Essa questão é uma matéria de
semelhança fundamental; do mesmo modo que a crença de que
controvérsia, e, quando as autoridades superiores diferem entre si, é
uma cláusula apropriada num estatuto ou código pode ser facilmente
impossível para um observador externo tomar qualquer decisão114 •
encontrada e facilmente determinada é obviamente um mitom,
Antes do fim do século XIX, Allen afirmou que "a aplicação do
como sabe qualquer um que mantenha um diálogo mínimo com o
precedente era poderosa e constante, mas não encontraríamos al-
direito continental
gum juiz que admitisse estar absolutamente sujeito a qualquer
A arte de distinguir, ou seja, "demonstrar que um caso cita-
decisão de qualquer tribunal"115 • Allen cita como comprovação geral
do é aplicável ou inaplicável", encontra-se tanto no direito conti-
as decisões de lorde Mansfield116, o qual sustenta que
nental quanto no inglês. Uma comparação entre a técnica bem
desenvolvida da distinção no direito inglês e as decisões da Seção o direito na Inglaterra seria uma ciência estranha caso ele
137 da Gerichtsverfassungsgesetz alemã (a lei de acordo com a cons- decidisse somente sobre os precedentes. Os precedentes
tituição das cortes) mostra que essa arte também está bem desen- servem para ilustrar os princípios e atribuir-lhes uma cer-
volvida no sistema jurídico alemão. Segundo essa seção, uma decisão teza fixa, mas a lei da Inglaterra, que é exclusivamente
plenária dos senados civis combinados ou dos senados penais com- aquela do direito positivo e promulgada por estatuto, de-
binados do Tribunal do Reich (Reichsgericht) era necessária quando pende de princípios, e tais princípios se aplicam a todos os
um dos senados procurava desviar-se de uma decisão já conhecida casos segundo as circunstâncias particulares de cada caso
do outro senado. E uma decisão plenária dos senados civil e penal estejam de acordo com um ou outro dentre tais princípios.
combinados do Tribunal do Reich também era necessária quan- Não conseguiríamos decidir finalmente essa controvérsia. Mas
do um senado penal queria desviar-se de uma decisão do senado podemos dar atenção ao seguinte problema.
civil, e vice-versa. Mas o "horror piem'", tal como foi chamada a
aversão contra tais decisões plenárias, sempre foi tão forte que o
113 VINOGRADOFF. Common Sense, p. 177.
114 GOODHART. Essays, Cap. Ili, p. 53; ALLEN, Law in the Making, p. 150; idem,
"Case Law'', p. 337.
11 1 VINOGRADOFF. Common Sense, p. 182. 115 ALLEN . Law in lhe Making, p. 150.
112 ALLEN. Case Law, p. 33 6. 116 Especialmente Jones v. Randall (1774).
402. Q IMP~RIO DO ÜiREITO FRANZ NEUMANN - 403

A teoria da força vinculante do precedente tem de ser dis- apenas aplicá-la. Nesse sentido, ao invés de uma distinção entre
tin~da da doutrina segundo a qual o juiz não cria a lei, mas as doutrinas, há uma relação estreita, mesmo necessária, entre elas.
sorrente a aplica117• O direito inglês poderia - ao menos teorica- Se descobrirmos que a teoria declaratória foi plenamente
merte - aceitar a doutrina do stare decisis e ainda repudiar a teoria desenvolvida e universalmente aceita antes do final do século XIX,
ortcdoxa de Montesquieu. Ou seja, poderia defender que, na há uma probabilidade de que a doutrina do stare decisis tenha
meCida em que os julgamentos já criaram uma lei objetiva, os emergido ao mesmo tempo.
juízts estão sujeitos a ela. Mas, na medida em que tal lei não se A teoria declaratória, juntamente com a teoria da stare decisis,
encGntra nas decisões precedentes, os juízes têm a liberdade de foi claramente desenvolvida por Blackstone119, que afumou a exis-
criá·la- estão mesmo compelidos a fazer isso. Um tal estado de . tência prejudicial da common law, de modo que toda decisão é
cois~s pressuporia que a interpretação de lorde Halsbury no caso meramente uma "evidência do que é common law" 120 • Bentham e
de O.,!linn vs. Leather está correta; que, em outras palavras, o sis- Austin provaram que esta teoria estava errada; mas suas críticas não
tem~ jurídico não é fechado e último, mas está em permanente nos dizem respeito aqui. É verdade que a teoria presente do caráter
estado de desenvolvimento e cheio de fissuras. meramente declaratório da atividade do juiz não se baseia na hipó-
Contudo, achamos que os juízes ingleses aderem à teoria tese da validade prejudicial da common law, mas apoia-se inteira-
fonosráfica118 • Portanto, não é uma objeção'válida à teoria de Sir mente numa hipótese diferente, a saber, que a corte orientada pela
Willian Holdsworth e do professor Goodhart aquela que diz que
common law exerce uma mera aplicação das normas encontradas
nas decisões anteriores. Portanto, argumentamos então: Sir W.
toda decisão cria lei. Trata-se exatamente da mesma objeção que
Holdsworth, que vê claramente a dependência entre a doutrina da
se tern feito contra o caráter universalmente obrigatório do direi-
stare decisis e a teoria fonográfica de Blackstone, infere que "a ado-
to in>tituído e contra a teoria fonográfica em qualquer sistema
ção de seu ponto de vista concede às cortes o poder para moldar
jurídico. Com a finalidade de fazer justiça com a teoria jurídica
como lhes convêm as condições em que vão aceitar um caso decidi-
ingle;a, devemos argumentar com base na teoria ortodoxa. do ou uma série de casos decididos como tendo autoridade"Ul.
Gostaríamos de assinalar que, ao aceitar a ideia de que qual- Mas porque a teoria da evidência de Blackstone é rejeitada e subs-
quer decisão é uma mera expressão daquilo que uma lei objetiva tituída pela teoria segundo a qual a common law só é encontrada
criada já contém, e pelo fato de que a common law deve ser en- nos casos decididos, segue-se então que o professor Goodhart tem
contrada nas decisões prévias, a doutrina da força vinculante do de estar certo, e que, portanto, a combinação das duas doutrinas
precedente deve surgir no momento em que a teoria ortodoxa leva ao maior grau possível de rigidez122 •
· torna-se prevalente. Se o sistema jurídico é fechado e último, e os Isso implica, contudo, que ao invés da falta de sistematização
julgatnentos, portanto, são meras declarações do que a lei é; e se=a do direito inglês, no centro da doutrina da força vinculante do
le~te apenas nas d~então a única consequência possível
co'nsi~te em q.ue toda decisão posterior terá de seguir a deet;io
n-....:~~ h
4.lll.c;.(l.~em como a oec1s20 postepor ºªº panem mar ae•, ~
1 • - • - 1 , • J • 119 BLACKSTONE. Cap. 1, p. 70: "Essa doutrina do direito diz então o seguinte:
que os precedentes e as normas têm de ser seguidos, a não ser que sejam
manifestamente absurdos ou injustos".
120 Idem, vol. 1, p. 71.
117 LEVY e ULLMANN, Legal Tradition, p. 54. 121 HOLD5WORTH. Case Law, p. 185.
11 8 Cf. nosso Cap. 15. 122 Ibidem, p. 197.
404 - 0 IMf>!!RJO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 405

precedente deve residir a concepção da solidez lógica da lei. Se todas o sistema jurídico não pode ser pensado sem lacunas. Se, contudo, a
as decisões só podem ser tomadas com base nas decisões anteriores, propriedade está fundada somente no "direito de ocupação"126, e
então isto implica que o sistema jurídico é completo, fechado e qualquer outro método de aquisição de propriedade é derivado deste
logicamente consistente, de modo que qualquer mudança neste método primário; se, portanto, a terra for dividida, então o sistema
sistema só poderá acontecer por meio de legislação. Esta ideia foi jurídico deve ser necessariamente considerado como um sistema
apresentada com clareza por GeorgJãger123• Ele provou que a common fechado, desde que na teoria liberal o direito (law) objetivo siga os
law é considerada um sistema do direito objetivo sem fissuras, fechado direitos (rights) subjetivos. Consequentemente, Blackstone foi levado
no tempo e no espaço, e que por isso é inalterável. Toda mudança a repudiar a teoria do valor baseada no trabalho e a afirmar que a
deve consistir apenas numa transferência dos direitos existentes de propriedade "fundada no trabalho e na invenção é mais propriamente
um indivíduo para o outro. A terra, contudo, é distribuída. Toda redutível à questão da ocupação do que qualquer outra; uma vez que
terra precisa ter um proprietário. A posse deve residir nas mãos de o senhor Loclre e muitos outros supõem que o direito de ocupação
alguém. A propriedade não pode estar num estado de suspensão - está fundado no trabalho pessoal do ocupante"127• Não é nossa tarefa
uma ideia que foi expressa por Blackstone124 do seguinte modo: lidar com a justeza da teoria da propriedade fundada no trabalho ou
"Qyando se está..Jk acordo gue tudo capaz de posse deve ter um da teoria da finalidade da lei. Procuramos somente reforçar os
proprietário, a razão natural sugere que aquele gue primeiro declarou seguintes pontos: o repúdio à teoria da propriedade de Locke; a
sua intenção de se apropriar de algo para seu próprio uso, e, êrV. afirmação constante por parte dos juízes ingleses de que eles não
eia desta inten -o realmente tomou posse, deveria com
A
podem criar, mas apenas aplicar a lei; a doutrina da força vinculante
isso coruruist:ar a propriedade absoluta sobre o e que se aposso? . do precedente; todos estes pontos implicam necessariamente que a
Ou, fazendo outra associação, ele sustentou que "o usufruto de toda common law seja um sistema fechado, um corpo último de normas,
terra deve residir com alguém", e mesmo os bens móveis "nunca podem sem lacunas, de modo que qualquer decisão pode ser tomada com
estar em suspensão ou sem dono". A aquisição original não base nas decisões anteriores - e na medida em que o direito estatutário
desem enha um a el im rtante. Os ca ítulos XXVI e XXVI1 não está sendo aplicado.
(~ tiva" e "Confisco" mostram e toda sua teoria
Portanto, uma dessemelhança estrutural frente ao direito
'\:J _ w se baseia na hi ' tese da finalidade le·· a nova lei
continental tem de ser recusada, pois a doutrina continental as-
.cOil.S.Ufmd~~i!m.!~~~!2!l:w2.\&... A teoria da finalidade e da
sume de forma similar que o sistema jurídico é fechado e que
toda decisão é uma mera aplicação de um código, de um estatuto,
ou de um direito consuetudinário.
teoria do valor do trabalho for aceita, é dificil afirmar a finalidade do Por consequência dessas suposições, a doutrina da força vin-
sistema jurídico. Se a propriedade está "fundada no trabalho e na culante do precedente perpassa todo o direito inglês; sua aplica-
invenção"125, constantemente surgiriam novas propriedades; portanto, ção não se restringe àquelas esferas do direito em que é necessária
a autoridade do precedente para a proteção dos direitos subjeti-

123 JÃGER. Das englische Recht, p. 38.


124 BLACKSTONE, vol. li, p. 258. 126 Ibidem, p. 400.
125 Ibidem , p. 405 . 12 7 Ibidem, p. 405.
FRANZ NEUMANN - 407
406 - Ü IMP~RJO DO ÜIREITO

vos, especialmente da propriedade, mas isso "está fundado numa sistema". Essa doutrina foi formulada somente na segunda meta-
teoria mais ampla em que é essencial que haja a certeza da lei"u8• de do século XIX132 • É importante notar que essa culminação foi
possível exatamente naquele período em que na França a "escola
A convicção de que a teoria da força vinculante do precedente,
de exegese" e na Alemanha a escola "dogmática" se tomaram pre-
juntamente com a da finalidade da common law, deve ter surgido
dominantes; no período de pleno desenvolvimento do capitalis-
antes do que acreditava Allen, foi defendida mais tarde pela teoria
constitucional do império do direito, no mesmo sentido em que a mo competitivo.
desenvolvemos; a saber, o império do direito instituídoU9. Contudo, Perguntamos agora se essa doutrina admite exceções. Ao res-
essa doutrina surgiu na metade do século XVII, sendo finalmente ponder tal pergunta, dois pontos de vista precisam ser considerados.
vitoriosa no final deste mesmo século. Sabemos que mesmo Em primeiro lugar, temos de perguntar se os tribunais desviam dos
Blackstone, repetindo a afirmação de Burlamaqui sobre a precedentes já claramente expressos. Esse problema é assunto de uma
supremacia do direito natural, não viu qualquer solução caso o controvérsia entre Holdsworth e Goodhart133; e, embora seja impos-
Parlamento promulgasse uma lei "que fosse irracional"; e na Parte sível para um observador externo tomar uma decisão última sobre
II {cf. acima) traçamos o desaparecimento do direito natural. Se, este ponto, parece seguir-se dessa controvérsia que a tentativa adota-
contudo, o "império do direito" significa a "supremacia do direito da por lorde Mansfield134, que consistia em evitar a teoria dos con-
instituído pelo Parlamento", então obviameIJte a importância da tratos já estabelecida e simplesmente fundir a lei com a equidade,
common law tem de ser reduzida a ponto de se tornar um corpo fracassou. Também parece que a decisão no caso Drummond vs.
de regras fixas. Drummond135 , citada por Sir Wtllian Holdsworth, pode ser expli-
cada pelo fato de que foi baseada em um estatuto negligenciado; de
modo que, neste caso, por causa do direito instituído, o tribunal
passou por cima de uma decisão anterior. Outros desvios podem ser
explicados por causa dos vários graus de autoridade atribuídos aos
muitos relatórios, o que nos leva a concluir que nenhum juiz pode
desviar das decisões anteriores sem abandonar o prinápio da força
vinculante do precedente. Por conseguinte, parece que o sistema da
stare decisis não admite quaisquer exceções.

No entanto, é verdade que a culminação da doutrina da au-


toridack.d precedente ocorre pel atCl.dc. que a própàa Casa 132 Lord Truro, LC, Tommey v. White (1850) 3 H. L. Cas. 48, 69; Lord Cranworth,
ex parte, White & outros v. Tommey (1853) 4 H . L. 313, 333; e especialmente
des-l.onks,.W - o ri da elas suas ró rias decisões. Nas pa- Lord Campbell, Attorney General v. Dean of W indsor (1860) 8 H . L. Cas.
lavras de Vinogradoff131 , este fato é "a pedra angular de todo o 369, 391 ; Beamish v. Beamish (1859) 9 H . L. Cas. 274, 338; Lord Halsbury,
L. C. London Street Tramways Co. V. London County Council (1898) A . C.
375 , 379/380.
133 HOLDSWORTH. Case Law, p. 180; ALLEN. Case Law, p. 333; GOODHART.
128 GOODHART. Essays, Cap. Ili, p. 55. Case Law.
129 LEVY e ULLMANN, Legal Tradition, p. 222 e ss.; BLACKSTONE, vol. 1, p. 87. 134 O qual não é considerado como um jui z da common law. GOODHART.
130 HOLDSWORTH. Case Law, p. 188. Essays, Cap. Ili, p. 53 .
131 VINOGRADOFF. Common Sense, p. 177. 135 (1866) L. R. 2 E., 339.
408 • Ü IMPtRIO DO DIREITO
FRANZ NEUMANN • 409

A segunda questão a ser respondida implica saber o quanto, ção sociologicamente relevante entre o direito inglês e o continental;
segundo suas próprias declarações, os juízes admitem criar novas ou, se há alguma diferença, só podemos interpretá-la no sentido
leis. Na opinião de Allen, os juízes admitem ter criado leis 136, mas de que o direito alemão, por exemplo, é muito menos rígido do
os casos que ele cita137 não comprovam sua afirmação. Se usarmos que o direito inglês139 • A grande liberdade do direito continental
as fórmulas de Allen, elas meramente mostrariam que os juízes resulta do fato de que é codificado. A grande rigidez do direito
criam leis apenas "em um sentido secundário". Em todos os casos inglês é a consequência de seu caráter pragmático e indutivo. Se
que ele menciona, os juízes ou aplicam cláusulas gerais (tais como compararmos, por exemplo, a lei de responsabilidade civil alemã
de interesse público), ou interpretam contratos, ou tratain dares- com as correspondentes provisões jurídicas inglesas, veremos que
ponsabilidade por danos sem negligência. Isso significa que eles o direito alemão distingue três tipos básicos, na Seção 823,
aplicam todos os princípios estabelecidos da common law, mesmo Parágrafo I; Seção 823, Parágrafo II; e Seção 826. Todas as
quando os princípios não foram suficientemente concretizados. provisões da lei de responsabilidade civil são deduzidas desses
Neste caso, contudo, não se encontra qualquer divergência com o três tipos básicos, e, em caso de dificuldade, um juiz alemão sempre
direito continental138 • poderá recorrer a algum deles, um fato que lhe dá uma boa parcela
Para evitar mal-entendidos, reiteramos: não resta dúvidas de de livre discrição. No direito inglês, a questão de saber se a lei de
que a teoria ortodoxa está errada, tal como. já mostramos. Mas responsabilidade civil comporta tais tipos fundamentais perma-
não estamos preocupados primariamente com o problema colo- nece indecisa; de modo que, se um juiz negar sua existência, ele
cado pela juris prudentia de saber se a teoria fonográfica está cor- deve neces-sariamente tentar subsumir todo caso que possa surgir
reta ou errada, mas com o problema sociológico da razão de seu sob um dos casos já estabelecidos.
surgimento, a qual ideologia extrajurídica ela corresponde, e qual Alternativamente, vamos comparar o direito alemão que
é a função social que desempenha. concerne à competição injusta com as normas inglesas corres-
Deste ponto de vista sociológico, podemos resumir o pondentes. Na Alemanha, o estatuto que lida com este pro-
seguinte: não há nem uma diferença estrutural nem uma distin- blema contém na Seção I uma cláusula geral que proíbe
qualquer tipo de competição injusta; de modo que todo com-
portamento injusto por parte de um competidor, se não puder
13 6 ALLEN. Law in the Making, p. 181.
ser subsumido sob uma provisão específica daquele estatuto,
13 7 Rawlings v. General Trading Co. (1921) 1 K.B. 635; Montefiore v. Monday
Motor Components Co. Ltd (1918) 2 K.B. 241; Hartley v. Hymans (1920) 3 sempre poderá se conformar à cláusula geral. Na Inglaterra, ao
K.B. 475; Gayler & Pope Ltd. v. Davies & Son Ltd. (1924) 2 K.B . 75;
Aktieselkabet Reidar v. Arcos (1927) 1 K.B. 352, 362 .
contrário, há somente uma série de muitas provisões firme-
138 Uma exceção ainda não se encontra nos argumentos de lorde Arbinger em mente estabelecidas (que já mencionamos na página 229 aci-
Priestley v. Fowler (1837, 3 Me W.1), onde ele diz: •Admite-se que não há
qualquer precedente para uma ação presente no caso de um ~riado co~tr~ ~u
ma) que dificultam alterar a lei existente de acordo com as
senhor". Aqui, lorde Abinger nega (provavelmente de forma erronea) a ex1stenc1a necessidades do sistema competitivo da sociedade que está em
de um precedente e, com isso, criou a doutrina do emprego comum. ~
importante notar que o Supremo Tribunal Alemão, ao interpretar a seção 278 transformação.
do Código Civil (que expressamente determina a obrigação contratual do
senhor por qualquer culpa por parte de seu criado), negou a aplicabilidade
desta seção ao emprego comum! Mesmo no revolucionário j ulgamento de
Donoughue v. Stevenson (1932, A.C. 562) lorde Atkin nega (na p. 582) que
o Tribunal crie uma nova regra; e na visão de lorde Macmillan (p. 595) a corte
simplesmente aplica "padrões de um homem razoável". 139 GOODHART. Precedents, p. 50.
410 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 411

14.3.3. 14.3.4.

Já indicamos que uma das doutrinas fundamentais do siste- Em relação à equidade, a questão que surge é a de saber se a
ma jurídico liberal é aquela da proibição da retroação. Esta proi- existência da equidade enquanto tal é compatível com a necessi-
bição pode ser reconciliada com o sistema do case law? V mogradoff, dade de um sistema jurídico racional, ou se tal equidade não tor-
que tratou sozinho desse problema, respondeu negativamente a na irracional qualquer sistema do direito. Porém, mesmo esta
essa questão 140• Ele sustentou que o"case law não pode ser identifi- afirmação deve ser negada. É verdade que há muito tempo a equi-
cado com a operação de uma famosa doutrina proclamada pelo dade significava interpretar todo o direito com o espírito da equi-
direito instituído, a saber, que não há aplicação retroativa". Para dade. Esse significado de equidade foi desenvolvido por
ele, essa doutrina liberal só pode ser aplicada à common law se Blackstone, que opôs equidade à lei.
tivermos o recurso da ficção. A partir deste método de interpretação das leis segundo
Pois se um caso é material para um enunciado da lei, a suas próprias razões, surge o que chamamos de equidade;
aplicação desta mesma lei a este mesmo caso é necessa- esta foi definida por Grotius como a criação daquilo que no
riamente retroativa. As partes não poderiam saber o interior da lei (devido à sua universalidade) é deficiente.
que era a lei antes que a decisão tivesse sido apresenta- Pois já que não podemos prever ou expressar todos os
da, e é exatamente este conhecimento que faz toda a casos na própria lei, é necessário que, ao se aplicar decretos
diferença numa disputa: ninguém gostaria de se expor gerais da lei a casos particulares, tenha de existir em algum
à frustração e aos altos custos se soubesse com certeza lugar uma pessoa com o poder de definir aquelas circuns-
que a lei estava contra ~-- tâncias que, se tiverem sido previstas, o próprio legislador
arece convincente. teria expressado.141
A equidade no direito civil, de acordo com esta definição,
desempenha o mesmo papel que a prerrogativa exerce na teoria
do direito constitucional de Locke. O papel da equidade, tal como
definido, é fundamentalmente idêntico àquele das cláusulas ge-
rais no direito alemão após 1919.
Originalmente, parece que a equidade, nesse sentido definido
por Blackstone142 , foi aplicada nos e pelos tribunais da common
law, porém, sem que o problema tivesse finalmente encontrado
uma solução143 • A concepção de equidade apresentada acima pode
ser remetida diretamente a Bracton, e indiretamente a Aristóteles,
jttt'Í~1.CQ..,Ç.QtUJ.ll~!!1,.S...!»j~,..pi;)a;amoi.,....w~~"-&lia:.e~QQ1;~1
0

se refere à doutrina da não retroa ão.


141 BLACKSTONE. vol. 1, p. 62.
142 POLLOCK e MAITLAND, History, vol. I, p. 189.
140 VINOGRADOFF. Common Sense, p. 203, 204. 143 WINFIELD. Sources, p. 129; LEVY e ULLMANN, Legal Tradition, p. 296.
412 - Ü IMF'ERIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 413

IBpiano, Tomás de Aquino e Grotius. Trata-se de uma concepção sobre a reivindicação salarial dos empregados 148• Se a equidade
de equidade que desapareceu completamente, mas temos de diz que a conduta das partes deve ser considerada, ou que aquele
admitir a possibilidade de que um dia, sob circunstâncias políticas que busca equidade deve agir equitativamente, então estas provi-
diferentes, ela possa renascer. O próprio Blackstone rejeitou essa sões correspondem exatamente àquelas do sistema jurídico ale-
função da equidade 144 com as seguintes palavras: "A lei, sem mão, o que contém a proibição do venire contra factu proprium,
equidade, embora dura e áspera, é muito mais desejável para o deduzido dos padrões jurídicos alemães de conduta.
bem público do que a equidade sem lei: isto poderia fazer com Contudo, é sociologicamente significativo que, no período
que todo juiz se tornasse um legislador, introduzindo muitas outras decisivo da ascensão da burguesia e da emergência do sistema
confusões lamentáveis". Este aspecto da equidade, perpassando econômico competitivo, ou seja, no final do século XIX, a equi-
todo o sistema jurídico, desapareceu inteiramente. Desde 1875, a dade foi convertida num sistema quase tão coeso quanto aquele
única defuúção possível diz que "a equidade consiste naquele corpo da common law. Essa transformação ocorreu em duas direções.
de normas administradas apenas pelas cortes conhecidas como Por um lado, as normas de equidade foram ajustadas à common
tribunais da equida "145 sso significa que mesmo hoje, para law. Por outro lado, a equidade se tomou um sistema rígido, ces-
uma exposição do · eito inglê , talvez tenhamos que reiterar o sando sua função criativa. Ela se tornou um sistema fechado, como
ql!_e Maitland defen eu sendo um postulado para o futm9 na common law; ou melhor, a common law e a equidade juntas
e lorde Mansfield procurou imp ementar enquanto foi ministro7 foram transformadas num sistema último do direito.
usti a: que "chegará o dia em que os advogados não mais se
Esse desenvolvimento começou com a queda de Wolsey e
per tarão se uma dada norma e uma
chegou ao seu ápice durante o período em que Nottingham foi
ministro da Justiça. A injunção, uma arma do absolutismo mo-
~ A equidade criou ins- nárquico contra o ius strictum dos tribunais da common law, retar-
tituiçõ s · 'dicas rm erativamente demanda- dou este desenvolvimento em direção à racionalidade que é
da. esenvolvimento econômico como or exem lo o crédito essencial ao direito das sociedades modernas. Não é de surpreen-
(jurisdição exclusiva) ou a execução específica e a injunção Guris- der, portanto, que o principal defensor do direito racional, Sir
àição conq>nentrl7"Põ UtroJ. do, a equidade desempenha em Edward Coke, tenha se oposto tão severamente ao uso da equida-
parte a funs;ão das cláusulas e s. Se, por exemplo, o estatuto de, tal como foi formulado por Thomas Egerton (depois barão de
das limitações for suplementado pela introdução do confisco, Ellesmere, visconde de Brackley) e Francis Bacon. Não pode ha-
baseada na cláusula geral, então "a equidade age como vigilante, e ver dúvidas de que a decisão do barão de Ellesmere no caso do
não como indolente" 147; este princípio é idêntico àquele desen- conde de Oxford149, em que a Chancelaria reservou-se o direito
volvido pela Suprema Corte alemã, principalmente na instância de alterar por injunção os julgamentos dos tribunais baseados na
da jurisdição que se aplica à revalorização do marco e ao confisco common law por terem sido fundados na "opressão, no erro e numa
consciência injusta", violou a previsibilidade e a calculabilidade
144 BLACKSTONE. vai. 1, p. 62.
145 MAITLAND. Equity, p. 1.
14 8 Decisions of Reichsgericht in Civil Matters, vai. 1, 144, p. 22; Decisions of the
146 Ibidem, p. 20. Reichsarbeitsgericht, na coleção de Bensheimer Publishing Co., vai. 111, p. 58.
147 Smith v. Clay (1767) 3 Bro. C.C. 640; Knight v. Simmonds (1896) 2 CI. 294. 149 (1615) 1 C. L. Rep. 1.
414 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 415

do sistema jurídico liberaL\ o pano de fundo político desse con- doutrinas desta corte tenham de ser modificadas cada vcr-
flito, que já foi tratado inúmeras vezes, e a decisão de James I, que passam pelo juiz seguinte. Nada me causaria mais
desconsiderando os conselhos de Bacon e mantendo as ideias fun- pavor ao renunciar deste posto do que lembrar que fiz
damentais do caso do conde de Oxford, contradiziam a exigência alguma coisa para justificar a objeção de que a equidade
pela racionalidade do direito 150• Essa irracionalidade foi explica- desta corte varia como os pés do chanceler. 152
da por Selden da seguinte maneira: A Divisão da Chancelaria não é mais um tribunal da consciên-
A equidade é uma coisa má. Pois a lei nós podemos Contudo, é preciso admitir que a doutrina do caráter vincu-
cia153.

medir e saber no que estamos confiando: a equidade se lante dos precedentes judiciais foi admitida no caso da equidade
refere à consciência daquele que é chanceler; e quanto mais tarde do que no da common la'l.d54 • Mesmo em 1879155, Jessé,
mais ampla ou estreita for sua consciência, do mesmo M. R afirmou que
modo será a equidade. É como se tudo fosse feito para Não podemos esquecer que as normas de equidade não
que o padrão de medida fosse o pé do chanceler! Um são, tal como as normas da common law, estabelecidas a
chanceler tem um pé grande, outro um pé pequeno, um partir de um tempo imemorial. Sabemos perfeitamente
terceiro tem um pé indiferente. É a mesma coisa com a que elas têm sido estabelecidas a cada momento - alte-
consciência do chanceler.151 radas, melhoradas e refinadas a cada momento( ...). Po-
demos dizer que foram os chanceleres que as inventaram
Este grande burguês detectou com o instinto aguçado de sua
pela primeira vez, e estabelecer a data em que eles intro-
classe o ponto vulnerável do sistema jurídico de seu tempo. A equi-
duziram pela primeira vcr- a equidade na jurisprudência,
dade naturalmente seguiu a queda dos Stuarts; na época de Cromwell,
e, portanto, nos casos desse tipo, os precedentes mais
a Corte de Equidade foi abolida em 1654. Com a Restauração, con-
antigos da equidade possuem um valor muito inferior. As
tudo, ela ressurgiu. Mas a revolução burguesa, mesmo mantendo a
doutrinas são progressivas, refinadas e melhoradas; e se
Corte de Equidade, alterou suas funções sociais. Essa mudança nos
queremos saber como se constituem as normas na equi-
faz relembrar de quatro nomes famosos: Sir Heneage Ftnch, lorde
dade, é claro que temos de olhar antes os casos mais
Nottingham (1673-1682), lorde Hardwicke (1736-1756) e espe-
modernos do que os mais antigos.
cialmente lorde Eldon (1801-1806). Esses homens formularam o
acabamento dessa transformação do seguinte modo: O desvio é perfeitamente explicável pelo fato de que a equi-
dade lida com cláusulas gerais, que formam uma fonte inesgotá-
As doutrinas dessa corte devem ser estabelecidas e cria-
vel para a alteração da lei em qualquer direção. No seu todo,
das tão uniformemente quanto aquelas da common law,
contudo, a autoridade do precedente é estabelecida tanto na equi-
implementando princípios fixos, mas cuidando para que
dade quanto na common law.
sejam aplicados de acordo com as circunstâncias de cada
caso( ... ) Eu não posso concordar com o fato de que as
152 Gee v. Pritchard (1818) 2 Swanst. 402; KERLEY. Chancery, p. 181.
153 Sr. Justice Buckley (mais tarde lorde Wrenbury) na Re Telescriptor L. R. (1903)
150 HOLDWORTH, vol. V, p. 39; BLACKSTONE, vol. 111, p. 54; KERLEY, Chancery, 2 C.L., p. 195.
p. 113, 115. 154 ASHBURNER. Equity, p. 34 e ss.
151 SELDEN. Table Talk and Blackstone, vol. Ili, p. 432. 155 ln Re Hal lett (1879), L. R. 13, Ch. D, p. 710.
416- Ü IMf>l!RlO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 417

14.3.5. 14.4. AVALIAÇÃO Soc10LóG1CA DA FUNÇÃO DA LEI E DO Juiz

As razões para essa t1ansformação são claramente explica-


14.4.1.
das nas falas dos juízes concernidos. Já vimos que de acordo
com Goodhart o sistema eh. stare decisis perpassa por todo o di-
Na Inglaterra, bem como na Alemanha, e naturalmente tam-
reito, mas temos de acrescentar que isso acontece por causa da
bém na França, com a qual neste momento não estamos nos ocu-
tendência à calculabilidade, racionalidade e estabilidade da pro- pando, a expressão da crença no império do direito instituído é a
priedade e dos processos cb troca156 • A força vinculante do pre- expressão tanto do poder da burguesia como uma confissão de
cedente é, portanto, exigida para evitar os riscos contra a sua fraqueza. A supremacia do direito instituído, na qual se in-
"propriedade e os direitos":õ7• Retrocedendo "da propriedade que sistiu inúmeras vezes, implica primeiramente que as mudanças
não foi determinada pelas autoridades" 158 • Um desvio das deci- sociais só possam acontecer por meio da legislação, e a supremacia
sões precedentes prejudicruia promotores e donos de terra, colo- da legislação é enfatizada porque a burguesia tem ampla partici-
cando em risco os direito; de propriedade 159• Isso debilitaria pação no processo legislativo 163 e porque as leis são interferências
insidiosamente a confiançanecessária das relações contratuais 160 , do Estado na liberdade e na propriedade. Se tais interferências só
especialmente se os casos lidam com contratos·"costumeiros e se podem ser feitas através da lei, se tal lei só pode ser promulgada
a decisão tem sido adotadt num país durante muito tempo" 161 • pelo Parlamento, se a burguesia está devidamente representada
Portanto, todo desvio colcx:a em risco os direitos e atrapalha a no Parlamento, então a doutrina do Império do Direito implica
"troca e o comércio" 162 • Mesmo onde não há a obrigação para que aquele estrato da sociedade que é objeto de tal interferência
seguir os precedentes, o de;vio é evitado o máximo possível; por impõe tais interferências sobre si mesmo. E, naturalmente, ele
exemplo, pela Casa dos Lordes, em relação aos julgamentos das 'está voltado aos seus próprios interesses.
cortes inferiores. A rigidez da equidade não se deve apenas à A doutrina do Império do Direito instituído implica, em
aversão dos puritanos durante esse período particular, tal como segundo lugar, a dissimulação da fraqueza da burguesia. Pois é
foi explicada por Roscoe Pound, mas resulta da necessidade de claro que a concepção na qual as mudanças sociais só podem ser
um sistema econômico competitivo para a racionalidade formal realizadas por lei parlamentar e que os corpos administrativos e
do direito. os juízes podem apenas declarar e não fazer a lei é uma ilusão
criada para que o poder de tais corpos administrativos sobre o
Parlamento não possa ser admitido. A lei é aquele absoluto com o
156 FIFFOOT. English Law, p. 2S2.
qual a burguesia procura garantir sua salvação, embora ela se con-
15 7 Lorde Cranworth, Young v. Robertson (1 862) 4 Macq. H. L. 314, 345. sidere auto-suficiente e o centro do mundo. Desde Descartes, a
158 Lorde Hardwicke, Elli s v. Srnith (1751) 1 Ves. Jan., p. 17. teoria individualista afuma que o homem - ou seja, o homem
159 THESIGER, L. J. em Pugh v. Golden Valley Railway Co. (1880) 15 Ch.D. 330,
que tem propriedade e educação - encontra-se no centro do
334 e 49 L.J .Ch . 72 1,723.
160 BRETT, M . R. Em Plamer v. Johnson (1884) 13 Q.B.D. 351 , 354. 53 L.J . Q.B. mundo, e o universo gira em tomo dele; mas, ao mesmo tempo,
348, 349.
161 Lorde Esher, M . R., em Phillips v. Rees (1889) 24 Q.B.D. 17, 21, 59 L.J.Q.B. 1, 4.
162 LINDLEY, L. J., em Andrewi v. Gas Meter Co. (1897) 1 Ch. 361, 371. 163 WEBER. Wirtschaft, p. 174.
418 - 0 IMPIÕRIO DO ÜIREITO
FRANZ N EUMANN - 419

ele constantemente procura por um absoluto, seja um direito ab- A crença no Império do Direito instituído, contudo, se deve
soluto, ~u um deus absoluto, ou um líder absoluto a quem a às necessidades do capitalismo competitivo por uma racionalida-
burguesia pode recorrer. A confissão pelo Império do Direito é a de formal dos processos de troca. "A necessidade de calculabilida-
expressão da fraqueza que acompanha o crescimento econômico de e de confiança no funcionamento da ordem jurídica e da
da burguesia. Esta fraqueza é bem mais visível na Alemanha do administração induziu a burguesia a restringir o poder dos prín-
que na Inglaterra. Qianto mais o burguês for fraco politicamen- cipes patrimoniais e da nobreza feudal, instituindo uma organi-
te, mais se reforça a importância do Império do Direito. zação em que a burguesia desempenhou um papel decisivo,
Portanto, temos de notar duas funções que se colocam numa controlando a administração e as finanças e colaborando para as
relação antagônica: o direito é, por assim dizer, a ideologia ex- mudanças no sistema jurídico"l66• Neste sentido, o conflito fictí-
pressada (4.usdrucksideologie), mas ao mesmo tempo é a ideologia cio na atitude dos liberais em relação à legislação parlamentar,
velada (Verhüllungsideologie). Esta última função contém dois as- que Roscoe Pound167 mostrou de forma convincente que existia
pectos. Ela vela o império da burguesia, pois ao invocar o Império na atitude dos puritanos americanos, está solucionado: a aversão à
do Direito não precisa nomear os verdadeiros governantes da so- legislação, de um lado, e a crença firme no poder de instituir, do
ciedade; ao mesmo tempo, invocar o Império do Direito significa outro. Mas não foram somente os puritanos americanos que se-
velar a falta de vontade das classes dominantes por uma reforma guiram esse caminho duplo. Essa também foi a atitude do libera-
social; "A lentidão da máquina parlamentar transforma o único lismo ao rejeitar o princípio da interferência legal na liberdade e
meio de alteração das leis num meio para assegurar sua imutabi- na propriedade, mas que ao mesmo tempo expressou sua convic-
lid ad e"164. 1sso, contud o, rmp
. lica que a ênfase dada ao Império ção na superioridade da legislação parlamentar, ou porque esta
do Direito instituído depende do fato de que o Parlamento, como preveniria contra tal interferência, ou, caso não fosse possível, a
um todo, consista numa representação dos interesses da burgue- ajustaria aos seus próprios interesses.
sia, ou seja, que o proletariado não chegou ao ponto de ser um Às necessidades do capitalismo competitivo corresponde uma
poder político perigoso para os interesses da burguesia. O Parla- lei geral com forma suprema da racionalidade ou da força vincu-
mento funciona normalmente, mas apenas enquanto as classes lante dos precedentes e a absoluta sujeição do juiz à lei, e conse-
proprietárias o dominam 165 • No exato momento em que a classe cp.tentemente a separação dos poderes. O capitalismo competitivo é
trabalhadora se emancipar, se tomar politicamente consciente, a caracterizado, como já vimos, pela existência de um vasto número
burguesia abandonará a crença no Império do Direito instituído, de competidores com força aproximadamente igual, competindo
e então ou recorrerá a um novo direito "natural" que não pode ser no livre mercado. Para mais detalhes, indicamos a apresentação de
modificado pela legislação parlamentar e que consiste principal- Max Weber dos vários elementos do sistema capitalista168 : liber-
mente na ordem existente da propriedade - isso, contudo, so- dade do mercado de produtos; liberdade do mercado de trabalho,
mente durante um período de transição - ou ela abolirá 0 liberdade na seleção dos empresários, liberdade de contrato, calcu-
Parlamento juntamente com suas funções legislativas.

166 Ibidem, p. 174.


167 POUND. Common Law, p. 46-7.
1 64 JAGER. Das eng/ische Recht, p. 30.
168 WEBER. Wirtschaft, p. 3; idem, Gesammelte Aufsatze zur Religionssoziologie,
165 WEBER. Wirtschaft, p. 174.
vol. I, p. 1 (trad. The protestant Ethic and the Spirit of Capita /ism).
420 - 0 (MP~RIO DO DIREITO
FRANZ NEUMANN - 421

labilidade total da administração do direito. A principal caract Mas a lei geral e o princípio da distinção entre os poderes do
tica do capitalismo consiste na "busca do lucro e do lucro ren Estado têm, ao lado de sua tarefa de dissimular o poder e tomar o
através da empresa capitalista continuamente racional( ... ). Defini processo de troca calculáveL uma função ética decisiva, que foi
remos a atividade econômica capitalista como aquela que se apo· expressa na teoria de Rousseau. Pretende-se que a generalidade
na expectativa de lucro pela utilização das mercadorias para a troca, da lei e a independência dos juízes realizem a igualdade pessoal e
ou seja, nas oportunidades (formalmente) pacíficas de lucro" 169• política. A lei geral, considerada a noção básica do sistema do
Portanto, o Estado tem de prover a realização dos contratos. A liberalismo, estabelece a igualdade pessoal de todos os homens,
expectativa de que os contratos serão cumpridos terá sempre de ser um postulado que nos parece tão óbvio que chega a ser inconce-
calculável A realização desta expectativa numa sociedade competi- bível que uma tal máxima seja questionada nos dias de hoje. Já
tiva pressupõe, contudo, leis gerais; pressupõe também que as nor- vimos que todos os direitos dos homens estão sob a "reserva da
mas jurídicas são determinadas com exatidão, isto é, que elas são as lei". As interferências na liberdade têm que ser feitas com base na
mais formais e racionais possíveis, ao passo que o juiz tem o menor lei. Apenas se tal interferência for feita com base em leis gerais a
espaço possível para a discrição. Em tal sociedade, o juiz não pode liberdade será garantida, porque o princípio da igualdade é pre-
recorrer a cláusulas gerais, tais como boa-fé, bons costumes, raroa- servado. Considerando essa relação, a afirmação de Voltaire é ver-
bilidade, ou política pública. O próprio Estadq, se há algum inte- dadeira, ao dizer que a liberdade significa depender apenas da lei;
resse, tem de tornar sua interferência calculáveL ou seja, não deve mas apenas se a lei for geral; foi desse modo que ela foi concebida
interferir retroativamente, pois caso contrário ele invalidaria as ex- por Voltaire. Se o legislador pode emitir comandos individuais, se
pectativas criadas; ainda mais, ele não pode intervir sem que seja pode prender este ou aquele homem, se pode confiscar esta ou
por intermédio do direito, pois tal intervenção seria imprevisível aquela propriedade, não poderíamos falar em independência dos
Por fim, ele não pode intervir por meio de comandos individuais, juízes. Se o juiz tem de aplicar os comandos individuais do Esta-
porque qualquer intervenção individual viola o princípio de equi- do, ele se toma um mero advogado, um mero policial. A verda-
dade que prevalece entre os iguais competidores. deira independência, portanto, pressupõe o império do Estado
Consequentemente, o juiz tem de ser independente, ou seja, por meio de leis gerais que são aplicáveis a um o.úmero infinito ~e
o litígio deve ser decidido independentemente de qualquer co- casos futuros. Dessa forma, a generalidade da lei, a independência
mando de um governo. A independência dos juízes, é claro, consis- dos juízes e a doutrina da separação dos poderes têm funções que
te numa característica essencial do capitalismo competitivo. Isso transcendem as necessidades do capitalismo competitivo, pois as-
implica, contudo, uma distinção entre os vários poderes no Estado. seguram a liberdade e a igualdade pessoais. A generalidade da lei
A doutrina da separação dos poderes é assim o elemento organiza- e a independência dos juízes dissimulam o poder de um estrato
cional do capitalismo competitivo, e além de seu significado políti- da sociedade; elas tomam o processo de troca calculável e tam-
co, cria competências, especifica as delimitações entre as várias bém criam liberdade pessoal e segurança ao mais pobre. Todas as
atividades do Estado, e portanto garante a racionalidade do direito três funções são significativas, e não apenas aquela de tomar o
e de sua administração17º. processo de troca calculável, como querem os críticos do liberalis-
mo. Repetimos: todas as três funções são realizadas no período do
capitalismo competitivo, mas é importante discriminá-la~. Se não
169 WEBER. Protestant Ethic, p. 17.
170 Idem, Wirtschaft, p. 166.
forem feitas tais distinções, e não se perceber na generalidade da
422 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 423

lei nada além de uma exigência da economia capitalista, então é retamente ao indivíduo ou que regulam a relação entre o indivíduo
óbvio que se pode inferir, juntamente com Carl Schmitt, que a e o Estado; nesse caso, elas não concernem à esfera do Parlamento.
lei geral, a independência dos juízes e a separação dos poderes O orçamento, a organização dos corpos administrativos e tribunais,
têm de ser abolidas quando o capitalismo morrer. a fixação de salários de servidores públicos, a operação das empresas
públicas - todos eles são lei em um sentido formal. Esse é o pri-
14.4.2. meiro significado político da doutrina alemã. Mas temos que acres-
centar um segundo. Como a determinação genética do conteúdo
Vamos considerar agora, desses pontos de vista, o significado da lei é irrelevante, é possível manter a validade de todas aquelas leis
social da doutrina alemã171 • A ênfase dada à generalidade da lei que foram emitidas antes da criação da Constituição. Na Prússia
deriva do fato de que na metade do século XIX os monarcas impu- essa doutrina levou à manutenção da validade dos decretos pré-
seram constituições que limitavam seu próprio poder legislativo, constitucionais do monarca e do Allgemeine Landrecht, especial-
mas somente na medida em que transferiam aquele poder ao Par-
mente o famoso II. 7, Seção 10172 • Com base nessa seção, a polícia
lamento. Em tal situação, tornou-se necessário fazer uma distinção
obteve poderes discricionários extraordinários para interferir na li-
entre as matérias que eram reguladas pelo direito, ou seja, aquelas
berdade e na propriedade sempre que desejasse, sem o consenti-
reguladas pelas decisões compartilhadas pelo monarca e pelo Parla-
mento do Parlamento. De acordo com aquela seção, a polícia deveria
mento, e aquelas controladas somente pelo m:onarca.
providenciar os meios necessários para a obtenção da tranquilidade,
Uma real compreensão da doutrina alemã só é possível se con- segurança e ordem públicas, e da precaução contra todos os perigos
.derarmos o malogro da burguesia alemã. A introdução por P~ que ameaçavam o público ou os indivíduos.
La · ·u à autoridade do Parla-
Em terceiro lugar, a escola alemã, com exceção de Gierke e
Hãnel, adotou uma teoria muito estranha sobre o caráter do
processo legislativo; a saber, sua separação em partes lógicas que
eram nomeadas como as determinações do conteúdo de um
estatuto, e como emissão de sanção para tal estatuto. A teoria
constitucional prussiana concluiu que o conteúdo de um estatuto
fosse estabelecido pelo Parlamento (um acordo entre as duas
17 1 FRAENKEL. Klassenjustiz, Berl in, 1927; GNEIST. Rechtsstaat; KERN, Eduard. câmaras), ao passo que a sanção era promulgada pelo rei: "Somente
Der gese tz liche Richter, Berl i n, 1927; KLUEBER, )oh an Ludwi g. Die
Selbstandigkeit des Richteramts und die Unabhiingigkeit seines Urteils im o assentimento do rei permite que o esboço de um estatuto se
Rechtsprechen, Frankfurt, 1832; MOSER, Johan Jakob. Von der Landeshoheit eleve ao patamar de lei. O rei é( ... ) o legislador" 173 • Essa estranha
in Justizsachen, Frankfurt e Lipzig, 1773; NEUMANN. Bedeutung; VON PFIZER,
Carl. Ueber die Grenze zwischen Verwa/tungs- und Ziviljustiz, Stuttgart, 1818; distribuição entre os poderes do rei e do Parlamento foi deduzida
SCHMITT, Carl. Verfass ungsle hre , Munich e Leip z ig, 1928; idem,
Unabhiingigkeit der Rk hter, Gleichheit vor dem Gesetz und Gewahrlestung des do Art. 62 da Constituição prussiana, que, contudo, não diz nada
Privateigentums nach der Weimar Verfassung: ein Rechtsgutachten, Berlin, 1926; sobre essa questão. Para o Reich, a mesma conclusão foi deduzida
Idem, Ueber die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens, Hamburg,
1934; von Staff, "Commentary to articles 102 -104 of the Weimar Constitution".
ln: H. C. Nipperdey (ed.), Die Grundrechte und Grundpflichten der Deutschen;
Adolf Stoezel, Die Entwick/ung des gelehrten Richtertums in den deutschen
1 72 FLEINER. lnstitutionen, p. 133 .
Territorien, Stuttgart, 1872; idem, Brandenburg-Preussens Rechts vwerwa/tung
und Rechtsverfassung, Berlin, 1888; idem, Karl Gottlieb Suarez, Berlin, 1885. 173 SCHULZE; GÃVERNITZ. Staatsrecht, p. 22 .
424 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 425

do Art. 5 da Constituição de Bismarck. Neste caso, a determinação liberal, a interferência do monarca não deixou de ocorrer177• Foi
do conteúdo de um estatuto foi estabelecida por meio de um somente em 1804 que Frederico Guilherme III renunciou à
acordo entre o Reichstag e o Bundesrat, embora a sanção fosse sua pretensão de declarar inválido um julgamento178 • Por fim, o
exclusivamente trabalho do Bundesrat. Contudo, o Art. 5 dizia rei, através de uma ordem que data de 6 de setembro de 1815,
que "a legislação do Reich era exercida pelo Bundesrat e pelo aceitou a doutrina segundo a qual os juízes estão sujeitos somente
Reichstag". Apesar dessa formulação explícita, Laband afirmou o à lei179 • Mas, mesmo em 1842, Savigny reclamou das contínuas
seguinte: "A sanção é portanto legislação no sentido constitucional interferências da administração nas questões da justiça civil180 •
da palavra{ ... ). A questão quanto ao objeto do poder legislativo é A situação da justiça penal era ainda pior. Frederico Guilhereme
idêntica à questão sobre o portador do poder do Estado" 174 • III se reservou o direito de aumentar uma sentença penal de
O malogro político da burguesia alemã não pode ser mais uma corte181 , mesmo em 1802, e o Código penal prussiano de
claramente demonstrado do que no caso da aceitação daquela 1805 manteve esse direito nas mãos do rei. O próprio rei não
teoria dualista que, por um lado, reduziu a extensão do poder podia punir, mas poderia ratificar e aumentar a severidade da
legislativo parlamentar e, de outro lado, mesmo com um poder pena. O direito foi substituído em 29 de junho de 1840 pelo
legislativo restrito, superestimou o papel do rei ou dos monar- direito de misericórdia182 •
cas federais em assembleia no Bundesrat. Essa ênfase atribuída A ideia da generalidade da lei seguiu paralelamente a esse
ao direito instituído, como já mostramos, oculta a fraqueza da avanço da ideia de um juiz independente. O postulado da gene-
burguesia. ralidade da lei surgiu num período de transição, porque se tratava
O desenvolvimento em direção à independência dos juízes da única base na qual a independência do juiz se apoiaria na
é um processo muito complicado. O liberalismo alemão luta ausência de meios institucionais para sua própria proteção, ou
contra a interferência do monarca e contra a pretensão do seja, seria possível ainda destituí-lo ou transferi-lo para outro tri-
monarca em ser ele mesmo um juiz, e assim o faz em favor de bunal. A falta de uma segurança organizada também levou à ins-
que o juiz seja a única autoridade capaz de decidir os litígios. A tituição dos tribunais especiais que permanentemente despojavam
vitória do liberalismo prussiano tomou-se visível pela primeira as cortes ordinárias de sua autoridade e que tinham de decidir de
vez na Seção 6 da "Introdução" ao Allgemeine Landrecht prussiano, acordo com a vontade do monarca183 •
na qual se diz que o decreto do monarca não faz parte do código, Uma mudança decisiva ocorreu na época da Revolução de 1848,
mas é meramente uma decisão arbitrária, e que ele é incapaz, quando se assegurou pela primeira vez a independência absoluta
portanto, de decidir um litígio 175 • Sob a influência de Suarez
defendeu-se a posição durante as deliberações do Allgemaine
Landrecht que em estados despóticos o déspota poderia ser um 17 7 Idem, Suarez, p. 381 .
178 Idem, Brandenburg-Preussen, vol. li, p. 355.
juiz, mas não em uma monarquia176 • Apesar dessa demanda
1 79 KERN, Richter, p. 97.
1 80 STÔ LZEL. Brandenburg-Preussen, vol. 11, p. 741 .
181 Ibidem, p. 359.
17 4 LABAND. Reichstaatsrecht, p. 11 7. 182 Ibidem, P- 521-2.
175 STÔLZEL. Suarez, p. 385. 1 83 Exemplos de tais cortes encontra m-se em KERN, Richter, p. 102. O caso dos
1 76 Exemplos de ta l interferência encontram-se em STÔLZEL, Brandenburg-Preussen, irmãos Karl e Gottlieb Welcker e E. M. Amdt, professores da Universidade de
vo l. li, p. 31 7, 324. Bonn, pode ser mencionado.
426 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 427

do juiz. Há poucas dúvidas quanto a saber se nesse período, apesar veis a seus inimigos políticos 185 • A partir da Seção 63, a seleção
da controvérsia de se o rei estava autorizado a destituir os juízes dos juízes para as várias cortes é deixada· inteiramente nas mãos
segundo sua discrição 184, ele frequentemente assim o fazia. A lei de do presidium da corte, com exceção do exame dos magistrados e
29 de março de 1844, embora representasse um progresso consi- dos presidentes das cortes comerciais.
derável, ainda deixava nas mãos do governo o direito de aposentar @'esse período, ou seja, de 1848 a 1918, a racionalidade for-
os juízes a qualquer momento, conforme desejasse. A Constituição mal do direito se desenvolveu e se realizou num grau extraordiná-
de Frankfurt, que, aliás, nunca se efetivou, postulou na Seção 175.1. ·o. As leis eram interpretadas literalmente.)Qiiestões de equidade
a independência dos juízes; na Seção 177, a proibição de destituí- e de conveniência eram estranhas à interpretação das leis. A teoria
-los ou de transferi-los para outra corte, ou de aposentá-los contra da escola dª-._livre discrição e a interpretação sociológ!ca foram ex-
sua vontade; e na Seção 175.ll. proibia cortes excepcionais. Ao pressamente rejeitadas. O direito à revisão judicial não foi reconh~
mesmo tempo, a Constituição excluía os tribunais administrativos cid · - ra os advogados liberais o exigissem como um corretivo
e transferia apenas às cortes ordinárias o poder de decidir qualquer contra a falta de influência o Parlamento. Durante esse período,
e
tipo de litígio (Seção 182.1.). Apesar do fracasso da Revolução, as cláusülãS g~rais nao exerciam ~ · A Suprema Corte
suas ideias fundamentais em relação à posição do juiz se tomaram iniciou se\)S trabalhos em 1879. No primeiro terço dos volumes
uma realidade política. Elas foram aceitas e ampliadas na Consti- publicados de suas decisões sobre 9uestões aVIs, a corte refenu-se
tuição de Weimar de 1919. A lei prussiana de 7 de março realizou · nalmente somente ao exc tio doli meralis186 •
as ideias fundamentais das Seções 175 e 177 da Constituição de Mesmo após o Código Civil ter entrado em circulação em 1°
Frankfurt. Os juízes poderiam assim ser destituídos ou aposenta- de janeiro de 1900, as cláusulas e · ão exerciam um ~de
dos somente após os procedimentos disciplinares. papeb--A Se - 10.ll.17 do Alli emeine Landrecht russiano uase
De 1848 a 1919 a independência do juiz não foi um pro- nã.o-fei....ap · o s rinci ais comentári
blema, apesar das muitas tentativas por parte de vários governos ~çãa..de 1863 Gbre..o 4/lgç.meine Landrecht não
de interferir em sua independência. Após a formação do Reich, a meneiooam n roa 1ínica decis...-......o\.M.IJJ,I-~=~~~
lei de 27 de janeiro de 1877 reconheceu mais uma vez esse prin-
cipio fundamental. Mas esta lei introduziu outra garantia, a sa-
ber, aquela da autonomia dos juízes - o direito de distribuir entre
eles os muitos ofícios de uma corte. Até esta época, o próprio
ministro da Justiça da Prússia distribuía tais ofícios, ou seja, ele
determinava quais juízes deveriam se sentar nos tribunais penais
ou nas outras cortes. No já mencionado "período conflituoso", o
ministro da Justiça da Prússia não soube usar sua autoridade e
compôs os tribunais penais de modo a obter sentenças desfavorá-

1 85 GNEIST. Rechstaat, p. 228.


184 Comparem a controvérsia na Seção 99, li, 17 e Seção 103, li, 1O, do Allgemaine 186 HEDEMANN . p. 4.
Landrecht prussiano em STÔLZEL. Brandenburg-Preussen, vol. li, p. 396. 187 FRAENKEL. Klassenjustiz, p. 14.
428 - 0 IMP~RIO DO ÜiRErrO
FRANZ NEUMANN - 429

obediência e disciplina. As posições dos presidentes das cortes


e 40 Geo. III, c. 106); na Prússia, o Allgemeine Landrecht (Seção
eram quase exclusivamente ocupadas por promotores públicos,
8.Il.358) e a Lei das Fábricas de 1848 {Seções 182 e 183) proi-
tomando-os servidores públicos do Estado e, p~rtanto, manten-
biam greves e o indulto das manifestações. A lei de 24 de abril de
do-os em relação estreita com o governo. Eles sabiam muito bem
1854 estendeu a proibição para outras categorias de trabalhado-
como realizar os desejos dos ministros, mesmo quando não eram
res, e a lei da Prússia de 21 de maio de 1850 a estendeu aos
verbalmente expressos, e também sabiam como usar seus poderes
mineiros. Esse período de proibição dos sindicatos foi ideologica-
sobre os membros das cortes. Além disso, a garantia da indepen-
mente justificado pela teoria liberal, dizendo que os sindicatos
dência dos juízes só valia para aqueles juízes que foram definiti-
eram contra as regras do jogo, e economicamente favoreciam a
vamente empregados, e não para aquele · ~st;Q mímero de juízes
prevalência da teoria do wage-fund.
auzjliares que podeÃam ser deitih ídos 9 11 traggftcidos para ou-
1

Esse período de proibição foi seguido por um período de tole-


trós-trumnais de acordo çgm discrição das ministros, e qµe eram
2

1 rância dos sindicatos. Na Inglaterra, o período começou com as leis


-R_ór-eausa de snas cai:r~,...ift:Mirllftleote depegdentes da boa von
Me-àe · , · de 1824 (5 Geo. IY, c. 95) e 1825 (6 Geo. IY, c. 129); na França,
com as leis de 25 de maio de 1864; na Alemanha, com a Lei das
w.z prussiano c;,w.ecialmente quando com- Fábricas de f,9 de maio de 1869. Nessa época, o Estado não mais
p com seu contem orâneo in lês, era um servidor úblico ousava proibir abertamente os sindicatos, mas tomava qualquer tipo
mal pago,_ o qual precisava trabalhar por muitos anos antes QJ.Ie de ação industrial tão difkil que os grevistas e seus líderes eram cons-
finalmente fosse empregadº>de modo que sarnen te os filhos da tantemente atados à rede das providências excepcionais (cf. Seção
~dia burwtesu?oderiam ascender à profissão. O juiz des- 152.11. e Seção 153 da Lei das Fábricas). É importante mencionar
se período possuía todas as características da pequena burguesia: que, de acordo com a Lei das Fábricas, um membro de um sindicado
seu ressentimento contra os trabalhadores, especialmente o tra- poderia deixar o sindicato quando desejasse, e que não poderia ser
balhador organizado e qualificado, seu amor pelo trono e pelo estabelecida qualquer relação jurídica entre o membro e o sindicato.
altar, seu desejo pela manutenção da propriedade, mas também Os sindicatos já estavam fortes o suficiente para tomar impossíveis
sua indiferença frente ao capital financeiro. tais proibições, mas ainda não eram fortes o bastante para garantir
A racionalidade da lei foi realizada especialmente no merca- seu reconhecimento pelo Estado.
do de produtos e nas relações entre as classes dominantes. Na Na Alemanha, o trabalhador, especialmente o trabalhador so-
relação entre o trabalhador e o capitalista, até 1918 ainda havia cialista, não fazia parte da nação. Guilherme II expressou isto aber-
leis excepcionais, como mostrou a lei referente ao direito de asso- tamente quando declarou que "o trabalhador socialista não pertence
ciação dos trabalhadores188• Na França, podemos mencionar a lei à pátria". A nação era representada pela Coroa, exército, burocracia,
de 14 de junho de 1791 (Loi de Chapelier) e o Code penal (Arts. aristocracia fundiária e burguesia. Os juízes representavam esse es-
414, 416); na Inglaterra, os correspondentes Atos Societários (39 trato da sociedade. Seus interesses e aqueles representados pelos
Geo. III, c. 79) e os Atos Combinatórios {39 Geo. III, c.81, e 39 estratos da nação eram idênticos; e já que as leis correspondiam aos
seus interesses, por que eles não deveriam interpretá-las literalmen-
te? O Rechtstaat era decididamente um Estado das classes domi-
188 NEUMANN. Trade Unionism, Democracy, Dictatorship, p. 22 e 55.; idem,
Koalitionsfreiheit, p. 1 e 55. nantes. Mas a generalidade da lei e a independência dos juízes
430 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 431

continham elementos que transcendiam a função dissimuladora Na esfera econômica, a racionalidade do direito inglês chegou a
do poder das classes dominantes e a calculabilidade do processo um grau muito alto, mas apenas nas relações da plutocracia. Já
econômico. O Estado era reacionário, mas não despótico. Ele se mencionamos que entre as condições que Sir Wtllian Holdsworth
mantinha nos limites de suas próprias leis. A separação dos poderes estabeleceu como indispensáveis para o funcionamento do sistema
não era apenas um traço distintivo entre as várias funções do Esta- juridico inglês, a mais importante é a de que o número de litígios
do, mas consistia também numa distribuição do poder sobre o Es- deveria ser relativamente pequeno. Esse objetivo, contudo, é alcançado
tado entre os vários estratos das classes dominantes. Mas a dominação apenas quando os custos são altos e as pessoas pobres têm pouca
dessas classes era calculável e previsível, e portanto não despótica. oportunidade factual para resolver o litígio; ou seja, se a proteção da lei
Aqueles elementos do Rechtsstaat que poderíamos chamar de eter- for negada a uma grande parcela da sociedade. Devido à incompletude
nos garantiam segurança e uma certa parcela de liberdade para a das estatísticas judiciais inglesas, é extremamente dificil obter uma
classe trabalhadora. visão correta da situação. Portanto, podemos somente comparar alguns
Na Inglaterra, onde o centro de gravidade residia no reconheci- números da Inglaterra e Wales com os números da Prússia em 1927.
mento dos direitos políticos, a vitória do Império do Direito foi mais Neste ano, na Inglaterra e em Wales, o Comitê Judicial do Privy
rápida e mais conclusiva do que na Alemanha. A violação óbvia dos Council decidiu 165 casos; a Casa dos Lordes, 58; a Corte de Apelação,
princípios que consideramos constitutivos dp Império do Direito 470; e o Supremo Tribunal de Justiça procedeu 401 apelações. Na
encontra-se na decisão da Corte da Star Chamber, que ocorrera a Alemanha, o Tribunal do Reich decidiu 2.767 apelações das cortes
partir do estatuto de 1487 (3 Hen. VII c.1). Esta corte violou o prussianas sobre questões de direito civil e 1.197 casos de direito penal.
princípio da separação dos poderes, porque "o mesmo corpo que Temos que acrescentar que as decisões dos supremos tribunais federais
promulga ordens, que controla a execução da lei e a administração do (Oberlandesgerichet) em questões penais chegaram a 6.410 casos, as
Estado (o Conselho do Rei), também age como um tribunal de jus- apelações para os Ober/andesgerichte e para os tribunais regionais
tiça com uma jurisdição penal abrangente"189• Esse corpo, estabeleci- (Landgerichte) nas questões civis somaram 117279 casos, e as decisões
do pelos estatutos de 1487, nada fez para restringir a autoridade de questões criminais dos Landgerichte chegaram a 46.331. Esses
ilimitada da jurisdição do Conselho do Rei. Somando-se a este co- números revelam que a proteção juridica da ampla massa da população
mitê, ainda existiam outras cortes excepcionais com características é muito mais efetiva na Alemanha do que na Inglaterra; que o benefício
similares, mas em 1641 a Star Chamber foi abolida e a Lei de Háheas da racionalidade da lei é des:frutado por um estrato muito maior da
Corpus foi aceita (31 Car. II 6.2). As Leis de Pagamento (12 e 13 sociedade na Alemanha do que na Inglaterra.
Wtll. ill. C.2) comissionaram juízes quandiu se bene gesserint, seus A ideia de estender os benefícios do direito racional para a
salários foram fixados e só poderiam ser removidos após passarem classe média baixa e para os trabalhadores foi realizada muito
pelas duas casas do Parlamento. Isso significava que um juiz só po- lentamente. No século XVII, uma classificação das várias atividades
deria ser dispensado ou em consequência de alguma ofensa, ou pela do Estado, uma distinção entre justiça e administração, dificilmente
decisão de ambas as casas do Parlamento. De um ponto de vista seria possíveP90• O sistema centralizado do século XVI "esmagou
político, o Império do Direito foi, portanto, assegurado.

190 ROBSON. justice, p. 16; POUND. Common Law, p. 73; MAITLAND, F. W.


Co//ected Papers, vol. 1, The Shal/ows and Silences of Real Ufe, p. 470, 478;
189 MAITLAND. Constitutional History, p. 220-1. HOLDWORTH. History, p. 502, 508.
432 - Ü IMPÉRIO DO DIREITO

com força os pobres"191 • As tentativas de remediar essas deficiências,


tal como a Corte de Requerimentos, desapareceram após a Grande
Rebelião. No início do século XIX, o sistema jurídico inglês era
mais centralizado do que qualquer outro no mundo: "Com exceção
das pequenas ações criminais confiadas àJustiça de Paz, praticamente
todo trabalho judicial do país era realizado pelos juízes dos tribunais
da common law, o chanceler, o guardião dos arquivos, ou pela Corte
do Almirantado". Blackstone192 exigiu tribunais locais, e os tribunais
municipais só foram introduzidos no final de 1879 (9 & 10 Vic.
C.95). Não se pode negar que o problema criado ao se estender a
racionalidade do direito para as classes mais pobres ainda tem de
ser resolvido. A afirmação de Bentham193 de que a common law é
Capítulo 15
conspiratória porque é irracional só se justifica até um certo ponto.
A common law é extremamente racional, mas apenas para os ricos.
Ela continua irracional, em ampla medida, p_ara o pobre e para a
pequena burguesia.
O Império do Direito sob
a Constituição de Weimar
(O Capitalismo
Monopolista)

19 1 Ibidem , p. 187-8.
192 BLACKSTONE. vol. 111, p. 83.
19 3 BENTHAM. Judicial Evidence, livro VIII, Cap. 111, §4.
FRANZ NEUMANN - 435

15.1. A MUDANÇA DA ESTRUTURA ECONÔMICA E SOCIAL E os


ELEMENTOS MATERIAIS DO SISTEMA jURfDICO

Da competição ocorrida na Alemanha no período anterior à


guerra emergiu a concentração do capital; e da concentração de
capital, o capitalismo monopolista1 • O período do pós-guerra
afetou decisivamente a estrutura da economia alemã. As razões
para que o desenvolvimento pré-guerra na Alemanha e na
Inglaterra tomasse um curso diferente foram expostas por Veblen.
Os inícios das tendências foram plenamente desenvolvidos pela
guerra e durante o período após a inflação. E a escassez de matéria-
-prima levou à criação de novas indústrias. A divisão de trabalho
chegou ao seu ápice e foi paralelamente acompanhada por um
máximo de racionalização de todo o aparato econômico. A
racionalização das empresas individuais foi suplementada pela
racionalização de todo o sistema econômico, pela padronização e
pela uniformidade.
As necessidades das empresas individuais para diminuir seus
custos e assegurar os mercados levavam nessa direção. Essas necessi-
dades, contudo, não podiam ser juridicamente sanadas com base
na livre competição; elas só poderiam ser realizadas por cooperação,
ou seja, numa forma superior e mais consciente de cooperação en-
tre os produtores.
A produtividade potencial e efetiva do período do pós-
-guerra cresceu rapidamente. Mas a acumulação do capital en-

BAUER, Otto. Kapita/ismus und Sozia/ismus nach dem Weltkrieg, vol. 1,


Rationalisierung·Fehlrationalisierung, Viena, 1931; LEVY, Herman . Industria/
Germany: A Study of its Monopoly Organizations and their Contro/ by the
5tate, Cambridge, 1935; BRADY, Robert A. The Rationa/isadon Movement in
Germany Industrial Revoludon, 1915; NEUMANN. Koa/itionsfreih eit; idem,
Trade Unionism ; HILFERDING, Hudolf. Das Finanzkapita l, Viena; SERING,
Paul. Die Wandlungen des Kapitalismus. Zeitschrift für Sozia/ismus, 22123,
1935, p. 704; BERLE, A. A.; MEANS, G. C. Corporation and Private Property,
New York, 1933; RENNER, Karl. Oie Rechtsinstitute des Privatrechts und ihre
soziale Funkdon, Tünbingen, 1929.
436 - o IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 437

controu barreiras, especialmente na Alemanha, devido a uma As formas em que o monopólio capitalista está organiza-
diminuição do campo de expansão capitalista. Essa mudança do são apresentadas no livro do professor Levy. A importância
foi acompanhada de um deslocamento da industrialização para da racionalização monopolista foi tratada no livro de Robert
as novas indústrias, mas o peso das indústrias em estagnação, A. Brady.
especialmente da agricultura, cresceu permanentemente. A pos- Na Alemanha, o capitalismo é organizado em três diferentes
sibilidade de evasão tornou-se cada vez mais difícil no período tipos: para a dominação do mercado de trabalho, na organização
de crise na medida em que a composição do capital se transfor- dos trabalhadores, centralizada numa única grande associação; para
mava, e a ratio de capital fixo cresceu. A dispensa dos trabalha- a dominação do mercado de produtos, nos já mencionados tipos
dores dava alguma possibilidade de se sanar as necessidades da da companhia e do cartel; e na dominação do Estado, num certo
crise diminuindo os custos. tipo de. organização "estamental", tal como a Associação da
O aumento da produtividade, de um lado, e a dificuldade Indústria Alemã do Reich (Reichsverband der Deutschen Industrie).
sempre mai~~ ercados, de outro, levaram a uma Por outro lado, os sindicatos combinam todas as três tarefas.
perda de <4~em grande escal . A produção despendida pela A intervenção do Estado tem um caráter duplo. Por um
erra o fechamento das em resas, a imposição de quotas, a lado, ela é progressiva. Ela promove o desenvolvimento das for-
guerra de preços entre os monopólios, tu o isso aumentou o ças produtivas, seja diretamente através de suas atividades eco-
aux- ais da rod - ca~italista. O monopólio é a ferramentt" nômicas (postos, estrada de ferro, capacidade hidráulica), ou
\ld~ perda or~anizada de ca ital rinci , ~ente naquelas indús- indiretamente por meio de uma certa quantia para o seguro so-
~s qne faliram,. Portanto, o monopolio tem uma função d_,Y,; cial, especialmente assumindo o risco das doenças, saúde e segu-
plai- e iva e õ aumento de racionalização; e ro desemprego.
uma reacionária, devido à destruição de capital. O monopo ·sta Por outro lado, a intervenção do Estado impede o desen-
~ ae.p.r. torna mais · '- volvimento das forças produtivas, com os subsídios que dificul-
cil a plena g lora ão deste ro essa técnico. tam a seleção natural do capitalismo, por meio de tarifas, pela
A teoria de que os monopólios sempre são progressivos cor- prevenção das importações, pela proibição do estabelecimento
responde à teoria política da Social Democracia alemã e às visões de novas empresas e pela criação compulsória de cartéis. A im-
dos sindicatos, que veem nos monopólios o primeiro passo em portância do Estado não é reforçada apenas funcionalmente,
direção ao socialismo. A teoria em que os monopólios impedem o mas também elo número crescente de seus funcionário uan7
desenvolvimento da produtividade capitalista corresponde a teo- to...mais aumenta a mtervençao o sta o, cresce rapidamente
ria política comunista do colapso do capitalismo. ta.ml>ém o número de pessoas que formam o Estado, co-rríOJ!.
Ambas as teorias estão certas e erradas ao mesmo tempo. efmimos na Parte I
Pois saber se os monopólios, como formas superiores da organiza- Essa estrutura econômica modificada transforma também
ção industrial, podem ou não podem beneficiar toda a sociedade as funções do empresário. O livre empreendedor desaparece. O
é algo que depende inteiramente das forças políticas. empresário de hoje em dia é mais ou menos um mero funcioná-
438 - Ü IMJ1RJO 00 DIREITO FRANZ NEUMANN - 439

rio da empresa. Todos os proprietários (ver Parte 1 acima) desa- vou Karl Marx2. O poder dos sindicatos diminuiu na proporção
pareceram. Hilferding já disse em 1909 que a sociedade anôni- em que, como ratio, o poder das organizações monopolistas
ma se distingue da empresa não apenas devido à sua forma aumentou. Trabalhadores incapacitados, supervisores, funcionários
organizacional diferenciada, mas pelo fato de que aquela priva o administrativos, assistentes e mulheres muito dificilmente
capitalista de sua função de empresário. Essa transformação é conseguem se organizar. Os sistemas de arbi-tragem, a regulação
claramente descrita, além de no livro de Hilferding, nos livros dos salários pelo Estado e a importância crescente do seguro social
de Renner, Berle e Means. reduziram o papel significativo dos sindicatos na vida dos
A mudança da estrutura econômica também produz uma trabalhadores. Mas o fato decisivo reside em que o poder dos
transformação da estratificação social da sociedade. O progresso sindicatos será maior quanto menor for o tamanho da empresa3•
técnico cria um desemprego estrutural considerável. Para o
estrato capitalista, a ratio daqueles que vivem simplesmente 15.2. A MUDANÇA DA ESTRUTURA POLfTICA4
de renda cresceu. Ainda mais importante é a mudança na
As constituições do período do pós-guerra, tenham elas
composição da classe trabalhadora. O número de trabalhadores
sido ou não escritas, se baseiam todas nos princípios políticos
de escritório, secretários, funcionários aumentou. A introdução
do pluralismo, ou seja, a distribuição do poder do Estado en-
de métodos científicos, produção em massa e a padronização
tre as organizações socialmente livres. A concepção pluralista
reduziram o número de trabalhadores capacitados, e ao mesmo
foi especificamente transformada numa ideia de paridade en-
tempo aumentaram o número de técnicos especializados, por
tre as duas classes da sociedade5 • Enquanto o liberalismo ig-
um lado, e trabalhadores não capacitados ou pouco capacitados,
nora a existência de um conflito de classe, e entende que o
especialmente mulheres, de outro lado. Na medida em que o
reconhecimento da liberdade jurídica e da igualdade jurídica
contrato e a competição se intensificaram no mercado, cresceu
é suficiente, esse período de democracia coletivista reconheceu
o aparato distributivo. Consequentemente, o número daqueles
a existência de um conflito de classe, mas procurou transfor-
incluídos no processo distributivo aumentou. Alguns exemplos
podem ser encontrados no livro de Brady. Essa composição
modificada da classe trabalhadora mudou também as funções
dos sindicatos. Seu objetivo era a restrição da competição no 2 MARX, Karl. Kapital, vai. I, p. 555 (Ed. Alemã).
mercado de trabalho por meio da organização coletiva e dos 3 HILFERDING. Finanzkapital, p. 455; NEUMANN. Trade Unionism, p. 45.
acordos coletivos. Vejam-se os casos da saúde, das doenças e 4 LEIBHOLZ, Gerhard. Oie Auflõsung der libera/en Demokratie in Deutsch/and und
das autoritare Staatsbi/d, Munich e Leipzig, 1933; LASKI, Harold J. Democracy
do desemprego, que serviam como instituições suplementares in Crisis, London, 1932; idem, The State in Theory and Practice, London, 1935;
idem, The Pluralistic State. The Foundations of Sovereignty, London, 1931 , p.
para um livre mercado de trabalho, pois aliviavam a pressão 232 e ss.; KIRCHHEIMER, Otto. Weimar - und was dann?, Berlin, 1930;
exercida sobre o mercado de trabalho pelos grupos de SCHMITI, Carl. Die geistgeschichtiche Lage des Parliamentarismus, 2ª ed., Munich
e Leipzig, 1926; idem, Legalitiit und Legitimitiit, Munich e Leipzig, 1932; idem,
trabalhadores concernidos. Mas exatamente devido a esse Der Hüter der Verfassung, Tübingen, 1931 ; idem, Verfassungslehre; HELLER,
desenvolvimento, que era essencialmente progressivo, os Hermann . Rechtsstaat oder Diktatur ?, Tübin gen, 193 0; NEUMANN.
Koalitionsfreiheit; ROSENBERG, Arthur, The Birth ofthe German Repub/ic, Oxford;
trabalhadores se adornavam com cordões de ouro, como obser- idem, Geschichte der Deutschen Republik, Prague, 1935; TATARIN-
TARNHEYDEN, Berufsverbande und Wirtschaftsdemokratie, Berlin, 1930.
5 SCHMITI. Verfassun; LASKI. The Pluralistic State.
440- 0 )Mf't:RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 441

mar o conflito numa cooperação entre as classes com base na taurar juntamente com o Comando Supremo do Exér-
paridade. O período após a guerra é caracterizado pelo fato de cito um governo ordenado. Os partidos da direita de-
o movimento dos trabalhadores ter-se tomado autoconscien- sapareceram completamente.
te, por ter-se constituído como organização política autôno- Essa aliança entre Ebert, de um lado, e Grõner, do outro
ma, e pela tentativa de transformar toda a sociedade de acordo lado, foi confirmada depois com uma carta que Hindenburg es-
com sua filosofia de vida. Essa tendência, a autoconsciência do creveu para Ebert em 8 de dezembro de 1918.
movimento dos trabalhadores, foi acelerada pela guerra, levan-
O segundo contrato decisivo em que se baseava a Consti-
do à transformação do Estado liberal numa democracia de
tuição foi aquele entre as organizações centrais dos emprega-
massas.
i uma
A i . · .d,e paridade entre vários estratos da sociedade é
na vmve na formação da Constituição de Weimar. A
dores e dos sindicatos, em 15 de novembro de 1918, o chamado
acordo Stinnes-Legien. Nesse acordo, a organização dos em-
pregadores reconhecia a independência dos sindicatos e abando-
histó · da onstituição de Weimar mostra que a conce' -
nava as uniões "amarelas", que até o momento eram fmanciadas
de um contrato social não e um mero 1 e ou um mero artifí-
pelos empregadores. Eles rometeram ao indicatos
. . ara ·ustifica ão do Estado, mas às vezes chega mesm~
dé cooperação .neB-fieg9Gi ' tria e consentiram com a
.ser uma realidade histórica. E estranho q4e nmguem te a
~egulação das-e&ndifi!óeS'"Cft'lf>HgaâGias-atrav~:s-Eae..ai;i;~l.Oi...i;clle;
observado que a Constituição de Weimar foi de fato o traba-
·vos. Esse aca.rdo. · c · eiro im lica não a
~lho. de v,áàos..contratos sociais firmados entre vários ~pos da
re ·ei ão do bolch
soc1e e. b SOClºali sta.
1

eiro c~ ecisivo é aquele entre o presidente do


O terceiro contrato decisivo sobre o qual foi construído o
e o general Grõ r em 10 de novembro de 8.
novo Estado foi aqu e-de-4~ 1919, entre o governo
Grõner, eaquanto testemunha da difamação ocorrida em
e o Partido Social emocrata de Berli , cQID.o re resentante
~e, contpu a história de como esse contrato foi concluído6 7 do movimento soviétic~.-0 UClonácio. Esse pacto continha,
Nós nos aliamos para lutar contra os bolcheviques. A por parte ggYe!ll.Q. messa de introduzir os conselhos
restauração da monarquia era impensável. Nosso ob- tra0alhista letamente stmto a uele
jetivo em 10 de novembro foi a introdução de um go-
d,Q.s soyietes russo~. Um dos resultados desse acordo foi o Art.
verno ordenado que seria apoiado por um exército, e a
165 da Constituição de Weimar que reconhecia os conselhos
Assembleia Nacional, o mais rápido possível. Eu tinha
trabalhistas e prometia uma quota no gerenciamento do siste-
sugerido ao Campo de Marshal [de Hindenburg] a
ma econômico.
não lutar na Revolução( ... ) Eu lhe propus que o Co-
mando Supremo do Exército poderia fazer uma alian- O quarto pacto foi aquele entre os Estados Fe e-
ça com o Partido Social Democrata somente parares- rais em 26 de janeiro de 1919, que im ºe u o abandono do
velho objetivo de se alcançar uma Alemanha unificada e o reco-
nhecimento da existência continuada dos estados federais.
6 GRÔNER. Der Dlchstoss-Prozess in München - Oktober-November 1925
Munich, 1925, p. 223. ' '
442 - Ü IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 443

O quinto e último contrato, que praticamente incluía to- são posterior. A partir de então, os livres acordos entre parcei-
dos os anteriores, foi aquele entre os três partidos em coalizão: o ros sociais desapareceram, e as constrições compulsórias do
Partido Social Democrata, o Partido do Centro e o Partido De- Estado, o "terceiro neutro", que deveria intervir apenas em ca-
mocrata - os chamados partidos de Weimar. O principal con- sos excepcionais, tornaram-se a regra.
teúdo desse contrato era a manuten ão da velha burocracia e do A estrutura política é caracterizada pela democracia de
judiciário, a rejeiÇ o do sistema soviético, a manutenção da in- massas, ou, nos termos de Manheirn, por uma democratização
fl A • a 1 re ·a a introdução da democracia par amentar, e fundamental de toda a sociedade. Este período é aquele "de
uma reintegração de amplos grupos em que os indivíduos, que
Todo esse sistema de paridade deve ser chamado de um até agora foram cada vez mais separados uns dos outros, são
sistema de democracia coletivista7 , o qual significa que o Esta- compelidos a renunciar seus interesses privados e se subordinar
do usa as organizações privadas para a realização de suas tarefas, aos interesses de unidades sociais mais abrangentes"12 • Tal
e partilha com elas o poder político. Entre o partido que nego- período é caracterizado pelo fato de que grande parte da
cia e aquele que colabora, o Estado age como um terceiro par- população agora adquiriu direitos políticos e não foi mais
tido neutro, que deveria interferir somente se os oponentes passivamente excluída da elite dominante 13 • Mas em tal so-
sociais não chegassem a um acordo. Desenvolvimentos simila- ciedade, enquanto a grande massa da classe trabalhadora não se
res podem ser encontrados na Áustria8, França9 e lnglaterra 10• tornar politicamente consciente, a cooperação e a coordenação
Esse sistema constitucional foi chamado de um Estado de Di- por parte da sociedade só será possível se houver um equilíbrio
reito social 11 • de forças entre as classes; ou seja, se nenhuma classe for
suficientemente forte para subjugar a outra, ou para governar
sem a ajuda da outra. Este equihôrio de forças foi expresso nas
instituições constitucionais.
A função do sufrágio se modificou. O sufrágio universal
com o sistema parlamentar é uma expressão do fato de que o
período idílico da burguesia se foi. Os Parlamentos não são
mais lugares onde os representantes das partes privilegiadas da
nação deliberam. Eles representam antes o está ·o em ue o?
~compromissos são e e eci os entre os yários parceiros na luta
de classes 14 •
7 TATARIN-TARNHEYDEN. Berufsverbande; NEUMANN. Koa/itionsfreiheit, p.
39 e ss.
8 LEDERER. Grundriss des oesterreichischen Sozialrechts, 2ª, Viena, 1932.
9 PIC, Paul. Traité élementaire de légis/ation industriei/e, Paris, 1922; relatado por
lgnace Bessling, lnternationales Handworterbuch des Gewerkschaftswesens, 1, 12 MANNHEIM, Karl. Rationa/ and lrrational Elements in Contemporary Society,
p. 504 e ss. London, 1934, p. 39.
10 BAILEY, W. Milne. Trade Unions and the State, London, 1934, p. 298 e ss. 13 Ibidem, p. 1O.
11 HELLER. Rechtsstaat; NEUMANN. Koalitionsfreiheit, p. 53. 14 KIRCHHEIMER. Weimar, p. 20.
444 - o IM~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 445

O equiHbrio de forças entre as classes foi juridicamente discernível na Alemanha do que na Inglaterra. O desenvolvi-
introduzido na segunda parte da Constituição de Weimar, que ento alemão é caracterizado pelo fato de o Parlamento, ao
diz respeito aos direitos humanos. A interpretação desta segun- forçar suas ações, e o presidente do Reich, com sua legislação
da parte foi assunto de controvérsias inflamadas. Enquanto a mergente, intensificarem uma burocracia cuja posição foi cons-
primeira parte da Constituição provê a organização do Estado, tucionalmente assegurada, pois os direitos adquiridos dos fun-
presidente, Parlamento, Reichsrat, etc., a segunda parte contém ionários foram matéria de uma garantia constitucional. Temos
a decisão sobre as atividades futuras do Estado. A visão predo- de acrescentar que o voto de censura, que foi a última arma do
minante era a de que a Cmistittti~o continha nada senão a Parlamento contra o governo, não poderia ser aplicado com
express- s velhos rincípios liberais da liberdade de contra- sucesso na Alemanha do pós-guerra. Todo governo era um
t6-; gaia.trtia-da-pr,opúe er e e cgmercro, e c. visão governo de coalizão. Portanto, a formação de um governo era
geralment ceita era a de ue a decisão fundamental tomada uma tarefa tão difícil, tão complicada e tão intrincada que uma
na<--segurrda-part~c.fut:.ia.-à.-dem ocra qa constttucron parceria por coalizão, após finalmente se ter estabelecido um
Estaà · eito bur ês 15 • governo, não ousaria colocar tudo em risco por meio do voto
É inegável que a ascensão histórica da constituição, os vários de censura.
contratos que formaram sua base, encontrou expressão na segunda Já vimoyqrre-t ireito fundamental é dotado da
parte da constituição não apenas por causa do reconhecimento chamada eserva da legislatur de modo que a buroçracia-peàe
dos velhos princípios liberais, mas devido à introdução de novos in rvir naque es e1 os damentais com base numa lei. As
princípios sociais, que se encontram principalmente no Art. 165 crescentes difi d de.s__e,conômicas e po.1.ítiols., espe-cialmente
(a promessa da democracia industrial), Art. 159 (o reconhecimento uando o Partido N acio Socialista che ou
de liberdade dos sindicatos) e Art. 156 (a promessa da socialização
de certas indústrias).
O sistema do pluralismo e a estrutura modificada do sis-
tema econômico naturalmente reforçaram o poder do governo
contra o do Parlamento. Embora o Parlamento fosse formal- burocracia ·s&J.n.p~~~wa.Ll>...JJ.Lus;~
mente soberano, seu poder subsequentemente diminuiu na ""\, comando tal.oom<:>..a..p.tw
~·h~·~~~~~~~~~~~­
mesma proporção em que o poder do governo, ou melhor, da executados · diatamente.
burocracia ministerial, aumentou. Esse processo foi admira-
velmente exposto no livro Democracia em crise de Harold J. 15.3. A MuoANÇA oo S1sTEMA JuRfo1co
Laski. Os resultados são igualmente aplicáveis ao desenvolvi-
A essa estrutura econômica e política modificada corresponde
mento do pós-guerra na Alemanha, mas apenas com a dife-
uma transformação rápida e decisiva da estrutura jurídica16 •
rença de que a diminuição do poder do Parlamento é mais

16 BONNECASE. La pensée juridique; DESSAUER, Friedrich. Recht, Richtertum und


Ministerialbürokratie, Mannheim, 1928; FRAENKEL. Klassenjustiz; GOODHART,
15 SCHMITI. Verfassungslehre, p. 30 e muitas outras. A. L. Some American lnterpretations of Law. Modem Theories of l.aw, London,
446 - 0 IMl~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 447

Já nostramos que a concepção da generalidade da lei foi do primeiro Kaiser e de outros príncipes foi inconstitucional
abandom.da pela teoria jurídica alemã sob a influência da crítica porque violou o princípio de igualdade perante a lei e o postulado
de Laband. Mas repentinamente esta noção experimentou uma de sua generalidade. A generalidade da lei é considerada essencial
estranha revitalização, principalmente com a influência de Carl para a esfera econômica, bem como para a esfera política.
Schmitt ffibre o pensamento jurídico e constitucional17 • Schmitt Essa afirmação de Carl Schmitt pressupõe ainda que o pos-
alegou q1e a palavra "lei" (law) usada pela Constituição de tulado da igualdade seja endereçado não apenas ao executivo,
eimar significa somente leis gerais, de modo que o Parlamento mas também ao legislativo. Não há dúvidas de que esse princí-
é capa.z de emitir leis gerais. ~s. comandos indiv_idu~is, pio fundamental pretende governar as atividades dos órgãos exe-
p rtanto, segundo sua visão, são pro1b1dos. O poder legislativo cutivos e do judiciário. Isso significa simplesmente que os
do Parlamento é reprimido pela impossibilidade de se emitir servidores públicos e os juízes têm que aplicar a lei do Estado
regulações individuais. ~ prova para esta afirmação, p~ igualmente sem a consideração das diferenças do status dos in-
um--l~corre à história ideológica da noção de díieitg_ divíduos, sem aversão, sem inclinação, de modo que os órgãos
qu~pêEs~gnimos na segunda parte de nosso livro, e por ou~o executivos estejam sujeitos somente à noção de dever18 • O Art.
ek_ prova sua afirmação com o Art. 109 da Constituição de 109 da Constituição de Weimar obviamente repete essa velha
Weimar, q.ue diz: "Todos os alemães são iguais perante a lei": noção de igualdade tal como se expressava em toda constituição
Qye a história das ideias não apoia sua afirmação, é algo que já moderna, como por exemplo se encontrava no Art. 4 da velha
tivemos a oportunidade de ver. Tentamos provar que o postu- Constituição da Prússia. Hãnel, contudo, o advogado constitu-
lado segundo o qual o Estado só pode governar segundo leis c· nal liberal, expandiu o princípio da máxima i dade à lc,...
gerais está ligado àquele de uma certa superestrutura social; e ·sla eríodo 1smar · e e a Jegisl~
que é indefensável separar o postulado da generalidade da lei ~cepcional contra a minoria polonesa na Prússia, gue desp~­
de- o da or sºgnifi ado político daquele veu os poloneses de sua propriedade, estava em oposição à uele
renascimento da generalidade da lei é óbvio Carl Schmitt ~incípio expan o a 1gu teoria e Hane , contu2g.
desenvolv a teoria e publicas;ão q.ue ~ foi aceita. Ela foi u · ; ·tada pela teoria ~-
pi:etendia mostrar que a sugerida confiscação da propriedade titucional alemã anterior a 1914.
>
Agora, contudo, ~ velha ideia liberal foi as§Jimida pm;
certos 1u:Wegadgs pan proteger a pmpàedade pfivada. Agora,
1933; GURVITCH, Georges. L' ldée du droit social, Paris, 1932; idem,
L'Experience juridique, Paris, 1935; HEDEMANN, Justus Wilheim . Die Flucht
após a Constituição de Weimar ter estabelecido a soberania par-
in die Ceneralklausen, Tübingen, 1933; HELLER. Der Begriff; ISAY, Hermann. lamentar, os advogados constitucionalistas começaram a trans-
Rechtsnorm und Entscheidung, Berlin , 1929; JENNINGS, W. J. The
lnstilutional Theory. Modem Theories of Law, London, 1933; KAHN-FREUND, formar o princípio de igualdade numa máxima que pretendia
Otto. Das soziale Ideal des Reichsarbeitsgerichts , Mannheim, 1931; se impor sobre a supremacia legislativa do Parlamento. Qyem
KIRCHHEIMER. Weimar; idem, "Gegen ein Gesetz über Nachprüfung der
Verfassungsmassigkeit von Reichsgesetzen", Die Cesellschaft, 1929, p. 517;
RENARD, Georges. L' lntitulion , Paris, 1933; SCHMITI. Verfassungslehre;
TRIEPEL, Heinrich . Coldbilanzenverordnung und Vorzugsaktien, Berlin e
Leipzig, 1934.
17 SCHMITI. Verfassungslehre, p. 138; idem, Unabhangigkeit, p. 9. 18 WEBER. Wirtschaft, p. 128.
448 - Ü IM~RIO DO ÜIREITO FRANZ NEUMANN - 449

começou i o foi Heinrich Triepel1 9, ao afirmar que a nova fun- lação, o Estado, se quisesse prover estas pessoas em par-ticular,
ção da máxim da igualdade não permitia que se desprovessem deveria fazer uso de normas gerais sem mencionar especialmente
os acionistas da sociedades anônimas de uma parte do valor tais pessoas?
que partilhavam n ocasião da revalorização do marco. Uma
Na verdade, o presidente do Reich promulgou um decre-
enorme literatura foi roduzida com a intenção de provar que o
to emergencial baseado no Art. 48 da Constituição (Decreto
Parlamento de Weimar unca poderia violar o princípio da igual-
de 13 de julho de 1931), cujo Art. VIII proibia a aplicação da
dade, e a Associação do8\Advogados Constitucionalistas Ale-
falência contra o Banco de Darmstater na ocasião do início da
mães chegou até a iniciar ~a investigação sobre esta questão
(Vol. 3 de seus relatórios). Podemos nos furtar em entrar nas crise bancária. Ele deveria ser obrigado a emitir uma lei em
particularidades dessas controvérsias20• termos abstratos proibindo tais aplicações para todos os ban-
cos se economicamente somente o caso deste banco foi real-
Mas mesmo se máxima da igualdade não pode obrigar a
mente decisivo?
egislatura, não se segue necessariamente que o pnnc1p10 e
i-g.ualdade só pode ser realizado por meio de leis gerais. A Na esfera econômica, portanto, o postulado da generalidade
afirmação de que a igualdade pode apenas ser alcançada se~do da lei se torna absurdo se o legislativo não está mais preocupado
tal estrutura da lei é uma conclusão falaciosa de Rousseau, que com a igualdade entre os competidores, mas com os monopólios
já foi considerada por nós, a saber, que a vontade geral, porque que violam aquele princípio de igualdade no mercado, que
é geral, só pode se expressar por meio de leis gerais. Contra tal achamos ser essencial para a teoria da economia clássica. Na
afirmação, pode-se sustentar que a igualdade material pode mesma medida em que há competidores iguais, as regulações
muito bem ser estabelecida através de interferências individuais. iguais podem ser naturalmente realizadas somente por meio de
Se isso é ou não possível dependerá inteiramente da estrutura leis abstratas gerais.
social à qual a lei está relacionada. Em uma organização Consequentemente, é justificado o ataque apaixonado de
econômica monopolista, a legislatura muitas vezes é con- Hermann Heller contra Carl Schmitt e contra a postulada
frontada com somente um caso individual ou com um número generalidade da lei na Constituição de Weimar. Contudo,
limitado de empresas monopolistas. A legislatura frequen- Heller negligencia o fato de que a generalidade da lei não tem
temente pode e deve lançar mão de regulações individuais para omente a função de racionalizar e mecanizar os processos
~r justiça àquelas circunstâncias específicas. Ou ela deveria econômicos, mas também uma função ética que se torna apa-

à-fterma geral, e que pretende cagfe5s3d3mente aplicar-se


.
.ser compelida a dissimular uma regulação individual recorrendo ente na esfera política.
O ressurgimento do conceito de generalidade da lei e de
somente a um caso particular? Se há apenas um Kaiser, ou se sua aplicação indiscriminada sobre as esferas das atividades
' ' ci es ue se distin em dos outros estratos da popu- ecosô.m.ie.s e polÍticas serviu assim como uma ferramenta co".?
trê_ a soberania do Parlamento, que sob a Constituição de .J
·mar não re resentou a enas os interesses dos donos
19 TRIEPEL. Vorzugsaktien, p. 26. te s e da bur~esia, mas em grande medida também re
20 Cf. sobre isso NEUMANN, Koa/itionsfreiheit, p. 41. sentou aqueles interesses a c asse tra adora. A lei geral
450 - Ü IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 451

era para ser aplicada como um meio para se manter a ordem específicas sobre essa questão, eu me refiro ao excelente tra-
existente da propriedade, e foi usada como um fator para des- balho de Kirchheimer*.
legitimar a soberania do Parlamento. Com isso, a generalida- Ao mesmo tempo, a Suprema Corte aceitou a teoria na
de da lei substituiu o direito natural. Ela não era senão um qual a máxima de igualdade também é dirigida à legislatura,
velado direito natural. fazendo com que as decisões "arbitrárias" do Parlamento fos-
Enquanto as controvérsias em torno da estrutura formal sem inconstitucionais 24 • Os Arts. 109 e 153 rapidamente se
do direito eram, nos tempos anteriores à guerra, discussões tornaram, na teoria e na prática jurídicas, a capa protetora con-
teóricas, porque, como vimos, a revisão judicial dos estatutos tra qualquer injúria causada à ordem da propriedade. Os di-
não era aceita, essas controvérsias teóricas se tornaram um fato reitos fundamentais da Constituição de Weimar e a revisão
político de primeira ordem a partir do momento em que a judicial se tomaram na teoria constitucional e na jurisprudên-
Suprema Corte Alemã inverteu sua atitude e sua autoridade cia da Suprema Corte os meios de manutenção do estado exis-
ao rever leis que tinham sido promulgadas. Em uma decisão tente da vida política, cultural e econômica. A justiça alemã
de 28 de abril de 1921, o Tribunal do Reich declarou repen- rapidamente se aproximou do modelo americano. A decisão
tinamente que sempre se considerou autorizado a revisar os final no conflito entre o judiciário e o Parlamento, contudo,
estatutos em conformidade com a Constituição21 • Ele mante- foi impedida pelo colapso da democracia de Weimar.
ve essa atitude nas decisões posteriores 22 • O reconhecimento A teoria constitucional e o judiciário, contudo, não para-
do direito dos juízes para rever os estatutos constitui uma
ram na ampliação e na errônea interpretação dos direitos fun-
reconfiguração da força do Estado. Qyanto mais forte for o
damentais nem no reconhecimento da revisão judicial; eles
Estado, mais os juízes se submeterão a sua autoridade; quan-
começaram a ressuscitar o direito natural que estava morto
to mais fraco for o Estado, mais os juízes se inclinarão na
havia mais de um século. Já mencionamos a distinção entre
tentativa de afirmar seu poder. O reconhecimento da autori-
aqueles direitos fundamentais que já poderiam ser alterados
dade da reyisão judicial é na verdade uma tentativa por parte
pelo legislador e aqueles que estavam além de qualquer mu-
~ do judiciário como um todo para proteier a ordem existente
dança e que consistiam, portanto, em "limitações inerentes sobre
da ro r· dad . eja yçrdadeiro pode ser comprova-
o poder de revisar"25 • O corpo de regras que nessa relação per-
d s d se reconhece esse
en ão do Es-

subvenções estatais aos príncipes; vol. 107, p. 370: a corte examina a va lidade
dos decretos de revalorização; vol. 109, p. 31 O: a corte examina a questão de
saber se um imposto de um Estado federal cobrado por produção intelectua l
é válido.
21 Decisions of the Reichsgericht in Civil Matters, vol. 102, p. 161. * Kirchheimer publicou dois importantes trabalhos sobre o Art. 153 da Constituição
22 Idem, vol. 107, p. 139; idem, vol. 111 , p . 323; Decisions of the de Weimar: "Eigentumsgarantie in Reichsverfassung und Rechtsprechung", VII
Reichsfinanzhof, vol. 5, p. 333; NEUMANN. Cegen ein Cesetz. (1930), Die Cesellschaft 166 e Oie Crenzen der Entignung, Berlinlleipzig, de
23 Vol. 102, p. 161 : a corte investiga se um estatuto que restringe os direitos dos Gruyer, 1930. Este último foi recentemente publicado em uma tradução por K.
donos das propriedades é válido; vol. 111 , p. 320: a corte examina se uma lei Tribe in Economy and Society 12 (1983), 69. (N. do E. inglês).
relacionada à revalorização do marco é válida; vol. 103, p. 200: a corte nega 24 Ibidem, vol. Ili, p. 329.
a validade de um estatuto de um Estado federal que abole o pagamento das 25 Cf. o Cap. 2.2 . acima - "Classificação das Liberdades".
452 - 0 IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 453

manecia imodificável e inalterável proporcionava principalmen- desenvolvimento levou rapidamente ao reconhecimento de um


te a manutenção da propriedade privada. Essa função reacio- direito natural que protegia a ordem da propriedade.
nária e conservadora do novo direito natural foi notavelmente Ainda mais impressionante é a mudança de fronte em re-
expressa pela resolução da Associação dos Juízes da Suprema lação à teoria da função do juiz. O período que vai de 1918 a
Corte, quando o governo do Reich anunciou sua intenção de 1930 foi caracterizado pela aceitação da teoria da escola da livre
promulgar uma lei relacionada à revalorização do mercado, e discrição. Isso implicou a destruição da racionalidade e da cal-
que na opinião da Associação não fez concessões suficientes culabilidade do direito. Essas ideias, que eu já tratei em publi-
para os devedores hipotecários. A resolução que adotaram foi cações anteriores, foram filosoficamente formuladas em uma
a seguinte: importante contribuição do professor Max Horkheimer na Re-
Essa ideia de boa-fé (Treu und Glauben) encontra-se fora vista de Pesquisa Social; ele resumiu tal desenvolvimento do se-
das leis específicas, fora das provisões do direito positivo. guinte modo 29 :
Nenhum sistema jurídico, que mereça este honrado nome, Se nos últimos séculos foi essencial para a manutenção
pode existir sem esse princípio. da troca manter as promessas, ao menos sem interfe-
Portanto, a legislatura não pode nos frustrar ~r causa de rência contínua do poder, esta necessidade diminuiu
uma decisão arbitrária (Machtwort), um resultado que é devido à acumulação progressiva do capital. O estrato
imperativamente exigido pela boa-fé. dominante não consiste mais naqueles inúmeros sujei-
tos que assumem os contratos, mas nos amplos grupos
Seria uma violação severa da honra do governo e do sen-
de poder controlados por poucas pessoas que compe-
timento de justiça se alguém, ao invocar uma nova lei,
tem entre si no mundo do mercado. Eles transformaram
perdesse sua causa porque tal lei estava contra a boa-
vastas áreas da Europa em enormes c:ampos de traba-
fé.26
lho sob uma disciplina de ferro. Qyanto mais a compe-
A Suprema Corte anunciou que negaria a proteção le~ tição no mundo do mercado se transforma numa luta
ao credor hi otecário, ue demandaria uma nova lei, e ames por poder, mais rígida será sua organização interna e
~ldschmidt27 apoiou a Suprema Corte e retomou o antigo di- externa. A base econômica do significado das promes-
reito de resistência, esquecendo-se apenas que a instituição da sas se toma cada dia mais fraca. Não é mais o contrato,
democracia e o direito de resistência são institui~ões incompatí- mas sim o comando e a obediência que caracterizam
~ Hermas Isay foi tão longe que chegou mes!llSl a afinua.c cada vez mais as re1l~IJ.'i.l-=..lll.l.l;:J.Ju.ig~.
qúe t:ad 0 juiz tem o dirr;jto de examinar qualquer estatuto com
Com relação à e i so 1c
~sua compatibilidade com o sentimento de justiça28 • O
vitóàa das cláusulas gerais frente às normas racionais foan~
cláusulas gerais transformam todo o sistema jurídico. Elas abolem

26 juristische Wochenschrift, 1924, p. 90.


27 Ibidem, p. 245.
28 Ibidem, p. 213; também Charles Greves Haines, The Reviva/ of Natural Law
Concepts, p. 246, para o direito internacional.
29 HORKHEIMER, Max. Zeitschrift für Sozialforschung, vol. IV, 1935, p. 14-5.
454 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ N EUMANN - 455

.1\o direito racional formal e o substituem pelas normas racionais essa determinação da Corte e baseou suas decisões na Seção 242
CAmateriais, bem como por decisões irra · · s cláusulas gerais do Código Civil, uma cláusula geral, mostrando que um devedor
se referem, como já vimos, à armas extra)urí 1c . nc1- deve cumprir suas obrigações segundo a boa-fé. Se um emprega-
den ente, a substituição do direito rac1 do, que se encontra sobre as provisões de um acordo coletivo,
áusulas ainda assim aceita um salário menor do que aquele que o acordo
coletivo considerava legítimo frente aos salários então fixados, tal
questão tem sido decidida frequentemente com a ajuda da Seção
242; ou seja, a decisão dependeu das circunstâncias particulares
do caso.
Para podermos decidir a questão de se as cláusulas gerais Esses são apenas alguns poucos exemplos daquela esfera
colocam em perigo a calculabilidade dos processos de troca e a do direito que regula as relações mais decisivas numa sociedade
previsibilidade dos resultados econômicos, temos primeiramente moderna. Eles mostram que a racionalidade foi abandonada em
que saber onde os padrões jurídicos foram introduzidos e qual favor dos monopolistas.
papel eles estão exercendo.
Uma decisão igualmente dominante afetou as cláusulas ge-
As cláusulas gerais cumprem sua função 'decisiva em qual- rais na lei que se referia à competição injusta, como já vimos.
~l quer lei que se aplique às relações dos monopólios. Elas surgem
Elas alteraram a lei que se aplicava às sociedades anônimas e
, sempre que o sistema jurídico é confrontado com o problema evitavam que o exercício dos direitos das minorias fosse utiliza-
do poder privado 30 •
do contra administração de tais companhias. As cláusulas gerais
O problema de saber se uma greve é legal ou não foi decidi- perpassavam por toda a lei referente às combinações industriais
do-principalmente com base na Seção 826 do Código CiVil ãle- (Decreto contra o Abuso do Poder Econômico de 2 de novem-
7
.t@9. A grev}! é ilegal se for incompatível com os princípios dos bro de 1923). De acordo com a lei, o ministro da Economia
hQ_ns costumes. A formulação decis~~- entre empregii- tinha o poder de atuar contra qualquer combinação que "preju-
dor e empregado como unidades classe se baseava, ortanto,
dicasse a vida econômica da comunidade como um todo". De
em um~orma moral, a saber, na questão e se a sputa se c_pn-
acordo com a Seção 8, qualquer uma das partes envolvidas num
fo.nnava ao sentimento de "equiciade e j]!Stiça" do povo A ques-
acordo ou numa combinação pode se retirar sem notificação
tão de-saber se o empregador tem que eagar o salário caso nã.?..,
por razões substantivas. E uma razão substantiva era "especial-
fava-us.o. do trabalho oferecido eor um empregado engajado afas-
mente aceita para ser adotada se a liberdade da ação econômica
ta.c!_o por causa de uma greve ocorrida em outra situação, ou devi-
dCHH:Hn ioforttí ni0 técnic_o em. su~ f,áhrica, etr ; é clgm m eate em relação a tal parte for limitada injustamente, seja referindo-
-se à produção, oferta, ou fixação dos preços". As cláusulas ge-
\..Q~dida ea Seção.Jíl 5 d g Çódjgo Civil em favor do empregadg;
mas a Suprema Corte Trabalhista desconsiderou continuamente rais modificaram até mesmo o direito público, o direito
administrativo e o direito de processo civil. Elas transformaram
todo o sistema jurídico.
30 Cf. NEUMANN. Bedeutung; Hedernann, Die Flucht
456 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 457

Qyais são as razões para a mudança de atitude dos juízes e a reconhecidos pelo povo; mas numa democracia coletivista, que
aceitação da teoria da livre discrição? Em primeiro lugar, o moti- é claramente formada sobre interesses antagônicos, tal reconhe-
vo econômico da inflação que fez com que a Suprema Corte aban- cimento universal dos padrões morais pelas classes é obviamen-
donasse o princípio do marco igual para poder revalorizar os títulos te inconcebível. Um acordo entre as duas classes quanto a saber
já desvalorizados com base na Seção 242 do Código Civil31 • A se a greve é legal ou não também é inconcebível. Para o empre-
segunda razão diz respeito à atitude política do judiciário: sua gador praticamente toda a greve é ilegal, e para o trabalhador
hostilidade diante da democracia. praticamente todas são legais. A relatividade dos padrões de
A partir dessas razões, e dos exemplos indicados, a funs:ãq conduta inviabiliza praticamente todo tipo de racionalidade.
s cláusulas gerais pode ser facilmente discernida. Enquanto um juiz oscila entre as várias interpretações possíveis
De acordo com a relação entre emprega ores e traba- dessas normas, a racionalidade material se torna de fato irracio-
lhadores, as cláltsttlas gerais s_e,orem para firm ar o compromisfo nalidade material quando o juiz funda sua decisão em sua valo-
as classes o acordo entre interesses anta ônk;;32; ração individual.
a enas até por volta de 1930. Até aquele momento, a Contudo, esse aspecto mudou desde 1930. A partir deste
Suprema Corte ln ustn esta e ecra cuidadosamente compro- ~omento, a racionalidade material das cláusulas gerais se constituy1
missos entre os dois grupos. Este.compromisso ft;ü possúrel através '-\ferdadeiramente numa racionalidade,__O resultado de uma ação po<lç_
de..cl ' sulas erais modificáveis aderiam se ajustar a seguramente ser esperado pelo monopolista. No peóodo de càse e
no início da reação política, o juiz executa uma série de identificações
om o início da crise econômica e da rea.- ~ qual a mudança estruturai objetivano sistema econômjco ts:.iri"
ç- olítica essas norm tornaram uma arma contra ale ·s- a.uma transformação psicológica na perspectiva do j~. O primeiro
l~çãa de refqrma s~. Enquanto a ideia de paridade era uma passo consiste em se dis · resa enquanto tal do dono da
realidade, enquanto a democracia coletivista estava funcionan- empresa. Como ocorre e --outros paíse , ~
do, as cláusulas gerais eram um meio de se estabe mL.t{:oria jurídica as abordagens mstitncionªl jstas tornaram-se
~/.!!!~~!!!;!.E..!;~~""'-1.11.1.Mii~.li!WS. Sob tal sistema de paridade ~redominantes33 . l.&~~~~~1?.!]~Wl.llll.-'ª1g!WLlel:ent:e.JW
dono da empresa. ão é só iss · as empresas monopolistas se
tomam idênticas ao sis.tema econômico, e as unidades econômicas
flll!Bl:lall~~~!!!!JLi~du;ê@ti~cas
~!à.!n~
aç~ão~. Um monopólio como o d o
entos das cortes como um ti
na As necessidades dos mono alistas che
a causar uma alteração da lei referente à competição injusta. o ~
toma-possíveL e se una "a traição econômica do aís".

31 Decision of the Reichsgericht in Civil Matters, vol. 104, p. 122; Juristische


Wochenschrift, 1925, p. 1377. Cf. FRAENKEL. Klassenjustiz.
32 Cf. NEUMANN. Bedeutung; KAHN-FREUND, Das soziale Ideal. 33 Cf. p. 45 7 abaixo.
458 - o IM~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 459

Na relação entre os monopólios e os consumidores o direito nado à restrição de mercado 38 • Nos Estados Unidos, a história
nunca se dirigiu em busca de compromisso, mas apenas da pro- da interpretação do ShermanAct de 1890 oferece um excelen-
dução de monopólios34 • As combinações industriais eram consi- te exemplo. Seu Art. 1° afirma claramente que "todo contrato
deradas meros contratos admissíveis com base no princípio da (... ) que restringe o mercado (... ) é portanto declarado ilegal".
liberdade de contrato, e não "uma organização social comparável Ainda que as primeiras decisões baseadas nesse estatuto apli-
ao próprio Estado"35• A incompreensão do princípio da liberdade cassem rigidamente tal cláusula39, as últimas decisões declara-
de contrato também se encontra na jurisprudência inglesa. Ali, ram como sendo ilegal somente a restrição desarrazoada do
também, a liberdade de contrato implicava a liberdade para se mercado 40 • Portanto, segue-se que na esfera do direito mono-
criar monopólios36• polista as cláusulas gerais servem plenamente aos interesses dos
O decreto contra o abuso do poder econômico, de 2 de no- monopolistas. As normas irracionais tornam-se calculáveis para
vembro de 1923, nunca se efetivou. O ministro da Economia do o&: monopolistas, pois estes são suficientemente fortes par~
Reich jamais emitiu qualquer decisão baseada na Seção 4 de tal ~essário, abrir mão da racionalidade formal. O monopolista

decreto, que era contra a combinação industrial. E as mudanças não é ca az apenas de agir sem a ajuda de iiiii direito ri orosa-
por que passou a lei contra a competição no sistema econômico mente calculáve ; a racion · a e orm chega mesmo a ser
monopolista já foram mencionadas. um estoryo para a pleno deseovalyjmeptg de seu poder Com;
te s mostrar o d. racional não ossui somente a fim-
Na Inglaterra, não podemos encontrar melhor exemplo do
~ão de tornar os rocessos de
que a decisão do caso Hopwood v. Roberts 37, em que a cláusula
V tem uma função niveladora. -~""'.ti:::o:i.-;.5?.:_.:...,:~-,
de um estatuto de 1855, onde se lê que as autoridades locais
podem "pagar seus impostos (... ) como lhes convêm", foi inter- lista-r-~-=::===--=~=>.-::.:;...;~~:...::.;:..:::;:.i::.:;;.~.;;-:~
pretada de uma tal forma que os oh · sse somente a pagar im-
s
postos que fossem considerados "razoávei ". .A corte, portanto,
mse · eral numa cláusula est -
liVH contrato,..todas..as...c ue melhor lhe c
Jutária que a dc:sconhecia.
contrato-padrão utilizado pelo monopolista coloca sobre os
A ..inserção da noção de rnzoahjljdade nas cláusulas juri-
clieas-absuatas ppcje 5er CllCOOtrada Dº direjto jpglê§ relacio-

38 Comparem A. L. Haslam, The Law Relating to Trade Combinations (London,


1931 ), as decisões em Wittacker v. Howe (1841 l 3, Bead., 383, e o caso de
34 BOEHM, Franz. Weltbewerb und Monopolkampf, Berlin, 1933, p. 168, 353 . Nordenfeldt (1893) 1 Ch. 630, (1894) A.C. 535 - especialmente a afirm ação
35 BERLE, A. A. Corporation. Encyclopedia of Social Sciences, vai. 4, p. 422; de lorde Macnaghtan na p. 574: "Trata-se de uma justificação suficiente (...) se
BERLE; MEANS, Corporation. a restrição for razoável, ou seja, em relação aos interesses das partes concernidas,
36 United Shoe Machinery Company of Canadá v. Brunet (1909), A. C> 330; e razoável em relação aos interesses do público".
Attorney General of Australia v. Adelaide Steamship Company (1913) A. C. 39 Por exemplo, U. S. v. Trans-Missouri Freight Assoe. (1897) 1, 166, U.S. 290;
781; North West Salt Company v. Electroliytic Alcali Company (1914), A. U.S. v. Joint Traffic Assoe. (1898) 171 , U.S. 503; Northem Securities Corp. V.
e. 461. u.s. (1904), 193 u.s. 197.
37 (1924) 1 K. B. 514 e (1925) A.C. 578; também, para uma consideração crítica, 40 Standard Oil Co. of New Jersey v. U.S. (1911 ) 191, 22 1, U.S. l; U.S. v.
LASKI, Harold J. Studies in Law and Politics, cap. IX, London, 1932. American Tobacco Co. (1911 ) 221 , U.S. 106.
460 - 0 IMP~RIO 00 DIREITO FRANZ NEUMANN - 461

ombros dos não monopolistas praticamente todo risco possí- os quais, na sua maioria, nunca tiveram alguma experiência
...- ""?
vel; enquanto estes últimos têm que cumprir todas as obriga- rática es eci · a"42 • Justice Hughes, quando fora gover-
ções perante a lei, o monopolista pode levá-los a cumpri-las nador, expressou a mesma ideia de modo similar: "Estamos sob
sem a ajuda da corte. Em tais situações, o monopolista procura uma consti~ ão, mas a._j;onstituiçãu é aqni l0->():ttC o!-j~s
abolir a liberdade de contrato, de comércio e a racionalidade .:>tlizem que ela é"43 •
formal do direito. Na medida em que a liberdade de contrato
também inclui a liberdade dos trabalhadores para formar or-
ganizações e negociar coletivamente, bem como implica a li-
berdade de se manter afastados das combinações industriais
terceiros que venham de fora, ou excluir qualquer um sempre
que se fizer necessário, a liberdade de comércio implica liber-
dade para abrir novas empresas em detrimento dos acordos
monopolistas estabelecidos. As liberdades suplementares da li-
berdade de contrato e de comércio tornam-se obstáculos para
a instituição primária da propriedade monopolista. As rela-
ções de produção colocam em perigo as forças produtivas dos
monopolistas.
A vitória da escola da livre discrição, e portanto da
irracionalidade, comprometeu a proteção jurídica desfrutada
pela classe média e pelos pobres. Essa função da escola da livre
discrição já foi prevista por Max Weber antes de 1911: "Não é
certo que as classes que hoje são negativamente privilegiadas,
especialmente a classe trabalhadora, podem esperar alguma coisa
de uma administração informal da justiça, aquela alegada pela
ideologia dos juristas [aqueles pertencentes à escola da livre
. \ ~i~crição*]" : ~! cláusulas gerajs estabelecem. º- domí~io .dos
41

~ c;J UIZC S I Tm J UlZ aJemãg que ocupa uma pos1çao mutto 1m -


~ei:tante se expressou do 1wsiiinte modo sgbJ;e esse domíniJ »
dos juízes: "Em última instância, o sentimento de decência é
decisivo no caso dos velhos juízes ocupando suas altas posições,

42 O presidente do Senado Baumbach, em um comentário sob re a lei de


concorrência (Wettbewerbsgesetz).
* Acréscimo do próprio Neumann. (N. do T.). 43 Citado em Edward S. Corwin, The Twilight of the Supreme Court, New Haven,
41 WEBER. Wirtschaft, p. 5 11 . 1935, p. XXVlll.
462 - Ü IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 463

sulas gerais pOE<JUe o deixam inseguro e d estroem a calculabili-


dãde,.-o.-instituei@naü.sta as ovaciona porque dcixam o exercíJ9,
s mãos dos ºuízes. O institucionalista aceita o
utônoma da 1 ·

,,__ Renard~.
nal,
O pensamento jurídico funcional, que reside no centro de
toda nossa investigação, parte do pressuposto de que o direito não
é uma substância mas uma função da sociedade. O

45 POUND. Common Law, p. 31.


46 RENARD. L'lnstitution, p. 174, 178: "Toda instituição é uma estrutura jurídica
racionalmente ordenada ao bem comum e esse ordenamento é a lei constituliva
(...) A instituição não é uma simples relação, é antes um ser: um 'todo' para as
partes integradas no seu ser, um 'todo' constitu ído por um arra njo de aparelhos
orientados a um fim; um 'todo' em relação ao qual cada parte é investida de
44 As páginas seguintes contêm uma crítica ao livro de Carl Schmitt Über die Orei uma certa titularidade jurídica (...) A relação institucional é uma interiorização,
Arten des Rechtswissenschaftlichen Denkens, Hamburg, 1934. um consórcio, invicem membra".
464 - 0 IMP~RIO DO DIREITO

prevalência da doutrina da escola da livre discrição, e leva em


consideração os argumentos de várias teorias. Ele não acredita que
a reificação de empresas sempre é progressiva, mas leva em
consideração a questão de saber se tais doutrinas cumprem funções
socra.ts progressivas.
"ll..t O pensamento jurídico decisionista, na verdade, não tem nada
lJ a ver com o direito. Nesse tipo de pensamento jurídico, o direito não
passa..de uma técnica para transformar a vontade política numa fof-
-<ma jurídica. Nq decisionismo, o direito não é senão um arcanun p~
\ aJDanutenção do pader O direito é um arcanum dominationis, e é
~rístico que na teoria política. a doutrina dos 1gwna tenha si.g-
gi lo · erdeu sua influência dominante47• Capítulo 16
Ao aceitarmos a abordagem cisionista do direi não es-
tamos...rejeitando as teorias normativistas e institucionalistas._An;.
t~s, a que fizemos foi distribuir as tarefas entre as' várias doutrinas


O Império do Direito sob o
O juiz e o advogado. em primeiro lugar, têm de pensar com
o&..termos da teoria normatiyista. "O juiz, vinculado à interpreta- Nacional-Socialismo
ção~tdc:ro Jmídica positiva, não precisa c;
nhecer a teoria da yalidade do direito, mas sim uma teoria
strit 'urídica"48 • O juiz_ as leis tem
que aplicar as provisões de tais leis, e nada mais. As abordagens
· · ara el e ara as suas tarefas

e...._.......,~~~~~~~~.:;;:.:.~~~~~~~~~w.w."-WI~
~ão, ele esnlJhení aquela inte.qµ;etaÇ
ffiê_social realizado na vida constitucional.

47 SCHMITT, Carl. Die Diktatur, 2ª ed., Munich e Leipzig, 1928, p. 13.


48 RADBRUCH . Rechtsphilosophie, p. 83 .
FRANZ NEUMANN - 467

Este capítulo nã~ e a ar-ex


blema do direito sob o nacional-sociali

16.1. A DOUTRINA DO FASCISMO

A doutrina italiana do Estado totalitário foi exposta clara-


mente em dois documentos: a Carta Dei Lavoro de 30 de abril
de 1927, e a contribuição de Mussolini para a Enciclopedia Ita-
liana (Vo. XIV) 2 • De acordo com o Art. 1 da Carta, a velha e
poderosa nação italiana é um organismo independente de valor
e objetivos supremos, colocando-se acima dos indivíduos e das

BINDER, Julius. Der deutsche Volkstaat, Tübingen, 1934; DAHM, Georg.


Nationalsozialistisches und faschistisches Strafrecht, Berlin, 1935; FORSTHOFF, Ernst
Der tot,a/e Staat, Hamburg, 1933; GERBER, Hans. Staatsrechtliche Crundlinien des
neuen Reiches, 1933; GORING, Herman. Die Rechtssicherheit ais Crundlage der
Volksgemeischaft, Hamburg, 1935; HENKEL, Heinrich. Die Unabhangigkeit des
Richters in ihrem neuen Sinngehalt, Hamburg, 1934; HÔHN, Reinhard. Die Wandlung
im staatsrechtlichen Denken, Hamburg, 1935; "Die Totalitãt eles võlkischen Staates",
Die Tat, 1934, p. 30; KÔLLREUTER, Otto. Vom Sinn und Wesen der nationalen
Revolution, Tübingen, 1933; idem, Crundriss der allgemainen Staatslehre, Tübingen,
1933; idem, Der deutsche Führerstaat, Tübingen, 1934; idem, Volk und Staat in der
Weltanschauung des Nationalsozialismus, Berlin, 1935; LANGE, Heinrich.
Uberalismus, Nationalsozialismus und bürgerliches Recht, Tübingen, 1933; idem,
Vom Cesetzstaat zum Rechtsstaat, Tübingen, 1934; LARENZ, Karl. Deutsche
Rechtserneuerung und Rechtsphilosophie, Tübingen, 1934; idem, Rechts - und
Staatsphilosophie der Cegenwart, 2ª ed., Berlin, 1935; idem, Rechtsperson und
subjektives Recht, Berlin, 1935; LOHMANN, Karl. Hitler's Staatsauffassung, Berlin,
1933; MAUNZ, Gerhard. Neue Crundlagen des Verwaltungsrechts, Hamburg, 1934;
MICHAELIS, Karl. Wandlungen des deutschen Rechtsdenkens, Berlin, 1935; NIKOLAI,
H. Der neue Aufbau des Reiches, Berlin, 1934; idem, Crundlagen der kommenden
Verfassung, Berlin, 1935; SIEGERT, Karl. Crundzüge des Strafrechts in neuen Staat,
Tübingen, 1934; SCHAFFSTEIN, Friedrich. Politische Strafrechtswissenschaft,
Hamburg, 1934; SCHMITT, Carl, Fünf Leitsatze für die Rechtspraxis, Berlin, 1933;
idem, Staat, Bewegung, Volk , Hamburg, 1933; idem, Staatsgefüge und
Zusammenbruch des zweiten Reiches, Hamburg, 1934; idem, Orei Arten des
rechtswissenschaftlichen Denkens; idem, 'Was bedeutet der Streit um den Rechtsstaat?",
Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 1935, p. 189.
2 Publicado na Inglaterra como The Politica/ and Social Doctrine of Fascism pela
Hogarth Press, London.
468 - 0 IMP~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 469

associações que a formam. A nação é considerada no Estado do governo, e as atividades dos sindicatos agora quase não exis-
fascista uma entidade espiritual, econômica e política. O Esta- tem mais.
do fascista é um estado corporativo; ou seja, ele é hostil em rela- Uma exposição cuidadosa da ideologia do nacional-
ção à ideia da democracia, da regra da maioria, e à ideia da socialismo4é a tarefa mais difícil, pois sua doutrina foi expressa
igualdade política. Ele abomina o liberalismo político e econô- em dois documentos que pretendiam ter um caráter canônico,
mico, mas ainda confessa sua fé na iniciativa privada na esfera mas ambos, contudo, foram concebidos antes da ascensão do
da produção (Carta, Art. VIl), porque tal iniciativa é o instru- nacional-socialismo ao poder: a saber, com o inalterável Progra-
mento mais valioso e eficaz para a realização dos interesses da ma do Partido, e com a autobiografia de Hitler, Mein Kamp/ 5•
nação. A intervenção estatal é permitida somente onde falta ini- A autobiografia de Hitler mostra um grande desprezo pela no-
ciativa privada (Art. IX). Embora o fascismo combatesse o sé- ção de Estado, um desprezo que ainda continua, tal como se
culo XIX, ele não buscou retornar ao feudalismo 3 • A base do mostrou em seus dois discursos na Conferência do Partido em
fascismo italiano é o Estado, que é absoluto em relação ao indi- Nuremberg, em 1934 e 1935.
víduo e aos grupos sociais. Ele não tem de ser uma mera máqui-
Para Hitler, o Estado não é uma unidade moral na realiza-
na administrativa, nem uma mera criação da política, mas uma
ção de uma ideia absoluta, mas o servo da ideia de "povo racial".
unidade moral. O Estado é a incorporação da vontade pelo po-
O Estado é "a organização de uma comunidade de seres física e
der, baseada na disciplina.
mentalmente iguais que procura tomar possível a manutenção
Seus traços principais são representados pela ideia hegeliana de suas espécies, bem como possibilitar a implementação dos
de Estado, sendo então um Estado corporativo. As corporações fins da existência designados pela Providência" (p. 164). O Es-
são a organização unificada das forças produtivas e precisam re- tado não é um fim em si mesmo, mas um meio "para a manu-
presentar todos os interesses (Carta, Art. VI). Contudo, elas não tenção da existência racial do homem" (p. 421). "Pois a tarefa do
são órgãos de autogoverno, mas órgãos do Estado (Art. 43 do Estado não é capacitar, mas somente criar um espaço de liber-
Decreto Real 1.130 de julho de 1926 - na execução da Lei dos dade para as forças existentes. Portanto, o Estado pode ser con-
Sindicatos de 3 de abril de 1926). siderado mau se, ao invés de padrões culturais superiores,
As corporações são uuidades centralizadas operando entre sentencia à morte o portador desta cultura em sua composição
os · dicatos mas só passaram a existir em fevereiro de 1934, racial". Sendo assim, Hitler não reconhece a obediência absolu-
ap-es · sténo as o ora oes ter s1 o criado ta dos cidadãos. De acordo com sua visão, um cidadão só está
<-pele-Decreto Real de 2 de julho de 1926, e o Conselho Nacio- sujeito à autoridade do Estado se "este corresponde aos interes-
nal das Corporações com a lei 206 de março de 1930. As pró- ses de sua nacionalidade (Volk.stum)*, ou ao menos não a pre-
prias corporações foram criadas pela lei de 5 de fevereiro de 1934
(nº 163) como um órgão do Estado. Sua composição e atividade
estavam inteiramente sujeitas às decisões que saíam da cabeça Cf. MARCUSE Herbert. The Doctrine of National Socialism. Zeitschrift für
4
Sozialforshung: vol. Ili, 1934, p. 161. A tendência consiste na he~oic;i zação
do homem (Stephan George, Mõeller van der Bruck), da filosofia vitalista, do
irracionalismo e do universalismo (Othmar Spann).
5 O autor usa a edição integral em volume único, 16' ed. de 1932.
3 MUSSOLINI. Fascism, p. 19.
• O termo Volkstum está ligado aqui sobretudo à sua peculiaridade étnica (N. do T.).
470 - o IMP~RJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 471

judica" (p. 104). A autoridade do Estado não é um fim em si cria o Estado, mas não é criado por este, tal como ensina a teoria
mesma. O padrão de medida para a avaliação do Estado é "a fascista italiana. O fato essencial consiste, assim, "nessa totalidade
qualidade de sua instituição da nacionalidade que está em ques- do povo político"8•
tão" (p. 435). Essa totalidade é realizada pelo movimento total (ou seja,
É óbvio que uma tal concepção se aproxima bastante da- o Partido), que por sua vez é representado exclusivamente pela

~
quela do liberalismo. O Estado aparece como um meio, como liderança total. O movimento age por meio de um líder que é
uma mera máquina; a crença de Hitler na "providência" exerce penetrado pela ideia. O líder representa o povo. O movimento
uma função similar àquela do direito natural no sistema liberal total é a força dinâmica dirigida contra a força estática da ma-
da sociedade, mas distingue-se pela formulação zoológica dos fins quinaria do Estado. Portanto, o Estado totalitário não é senão
do Estado; o Estado aparece como um meio para a propagação do a forma da vida do povo. Os fins do Estado são universais, mas
povo racialmente puro. o Estado racial não demanda uma atividade social do Estado
Esse livro (a biografia de Hitler) embaraçou em certa medi- como o faz o Estado bolchevique, ele está relacionado antes ao
da a teoria alemã do Estado. Ele forçou os constitucionalistas a poder total do líder.
adaptarem seus ensinamentos a este documento canônico. Além O direito é a vontade do líder na forma de lei. Esta é a
disso, a tentativ;i fez até mesmo com que se es1stJ.sse noção de nova definição do direito que consiste, na verdade, num cír-
Estada totalit;íào~ >
culo vicioso. Os princípios da legalidade da administração,
A segunda dificuldade se refere à base social, no conflito da sujeição do juiz frente à lei, recebem agora um novo "sig-
da ideia de Estado totalitário com a instituição da propriedade ' nificado", a saber, a sujeição incondicional das cortes e dos
privada, um antagonismo que, contudo, não é específico do corpos administrativos sob a vontade politicamente unifica-
nacional-socialismo alemão, mas que também se encontra no da do líder. Segundo essa teoria, a teoria hegeliana do Estado
fascismo italiano. Para sua solução, é preciso primeiramente fazer é finalmente rejeitada. O Estado totalitário é, portanto, um
uma distinção entre os muitos tipos de totalidade e estados estado "que liderâ, e que é dividido em três partes: o Estado,
totalitários. A teoria constitucional alemã discrimina entre a que é a parte estática; o Movimento (o Partido) que é dinâ-
totalidade absoluta da monarquia absoluta; a totalidade da mico; e o Povo9•
democracia de massas, que é a totalidade dos partidos de massa
em competição; a totalidade bolchevique em que o Estado é 16.2. A IDEIA DE TOTALIDADE
concebido como mero instrumento do império do proletariado;
a totalidade fascista, qqe é a totalidade do Estado italiano, e a A identificação do povo com o movimento, e do movi-
totalidade nacional-socialista, cuja base espiritual é a ideia de mento com o líder, é um truque usado por todo ditador que
raça. "Bssa..ideia_política é uma lei externa objetiva da vida, uma procura justificar seu domínio, e não evocar justificações trans-
missão histórica inalterável" 7• O povo é a unidade da vida. Efe cendentais. ~e se trata de uma afirmação não comprovada, que

6 FREISLER, Roland. Deutsche fustiz, 1934, p. 43 . 8 Ibidem.


7 HUBER. Die Tota/itiit, p. 35. 9 SCHMITT. Staat, p. 12.
472 • Q IMl'tRIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN • 473

na verdade o povo é somente e exclusivamente o objeto do go- menos sociologicamente, a importância social da burocracia e das
verno e não participa deste, foi expressamente admitido por forças conservadoras e tradicionais.
Schmitt, quando disse que "o povo é o lado apolítico que cresce •
gradualmente com a proteção e na sombra das decisões políti-
A razão histórica e sociológica para a divergência entre as
cas"1º. "Apolítico" só pode significar que o povo, porque não
ideias italianas e alemãs sobre a relação entre Estado e nação pode
tem permissão de tomar parte nas decisões políticas, é um mero
ser determinada facilmente. A Itália é um império colonial e,
objeto da liderança. Ou seja, ele tem que se retirar inteiramente
portanto, não tem utilidade para o credo racial do nacional-
para sua esfera privada11 • Obviamente, o referendo que o gover-
-socialismo, pois na autobiografia de Hitler a expansão colonial é
no pode fazer a qualquer momento, de acordo com a lei de 14
expressamente rejeitadau. A almejada expansão oriental pretendida
de julho de 1933, com a finalidade de saber se o povo dá ou não
pelo nacional-socialismo alemão levou à aceitação da ideia racial,
seu assentimento a uma certa lei, não é um substituto para a
permitindo com isso a exclusão de milhões de judeus no Oriente.
soberania do Parlamento. Com esse referendo o povo não se
A insistência na ideia de raça pôde ser mais tarde explicada segundo
torna um fator político. Os partidos concorrendo não existem.
razões de política interna. De acordo com Carl Schmitt - o
O povo não pode escolher entre duas alternativas; só pode dizer
principal jurista do nacional-socialismo13 - , o Estado é resultado
sim ou não. do trabalho da política, e a noção de "política" não é determinada
A razão sociológica para o fato de que o nacional-socialismo pelo Estado. O "político" significa, contudo, segundo Schmitt, as
insista na supremacia do movimento e do povo pode, pri- relações entre amigo e inimigo. Apenas onde existe um tal
meiramente, ser explicado pelo sentimento de inferioridade que antagonismo, apenas onde as pessoas se relacionam como amigo e
o Partido tem em relação à burocracia. Pois a burocracia alemã é inimigo, podemos falar de política. A harmonia, a colaboração e a
numérica e funcionalmente onipotente. As reclamações constantes competição nada têm a ver com política~ ideia central do
do Partido, especialmente de sua velha guarda, contra a má vontade f\\ nacional-socialismo é a abolição da guerra entre classes. A ideologia
da burocracia em receber ordens do Partido veio à tona em meio \~ nacional-socialista não reconhece a existência de classes; ela não
a declarações apaixonadas de Hitler nas duas conferências do rec~ qualquer antai;onismo entre os vários grupos no Esta~ .
Partido em 1934 e 1935, dizendo que o Estado não criou o Sua ideia central é a da" comunidade do povo". Consequentemente,
Movimento, mas o Movimento criou o Estado; que o Estado não nos termos de Schmitt, não poderia haver política na Alemanha
governa o Movimento, mas o Movimento governa o Estado. Essa de hoje, pois não há a constelação do inimi o e · o. Mas
pressão das pretensões do Partido por totalidade minimiza, ao como o Esta o e mterramente tra o da política e a política é
indispensável, um inimigo precisa ser criado. O inimigo é a raça

10 Ibidem, p. 12.
11 Essa afirmação descuidada de Carl Schmitt provocou .uma crítica fere~ por
parte de seu mais íntimo inimigo, Kõllreu_ter, em vário~ p_anfletos e livr~s,
12 Contudo, isso não significa que essa rejeição seja definitiva. Ao contrário,
mencionados na nota 1 acima. Isso tambem levou o d1sc1pulo de Schm1tt,
pois sabemos agora que, ligada à dificuldade da expansão oriental, a Alemanha
Huber a falar continuamente de um Hpovo político". Contudo, o que constitui
exigiu oficialmente a restauração de suas posses coloniais.
o "po~o" como uma entidade política, uma vez que ele não partilha do poder
13 SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. Hamburg, 1933.
político, permanece um mistério.
474 - Ü l~RIO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 475

estranha, que por motivos práticos concerne aos judeus. A de produção. Se, portanto, toma-se a ideia de totalidade seria-
existência dos judeus é o fator essencial para a preservação da mente, chega-se necessariamente ao socialismo. O contrário,
vida política na Alemanha. A competição da nação não tem contudo, é verdadeiro. A política econômica na Alemanha, bem
valor algum se implica - como já mostramos - certas conse- como na Itália15, pode na verdade não ser liberal, mas é quase
quências liberais e democráticas, e a ideia da raça serve, assim, certamente baseada na instituição da propriedade privada. Em
como um meio de integração da sociedade nacional-socialista. todos os panfletos e livros do nacional-socialismo que tratam
Serve ainda para diferenciar essa sociedade de todas as outras, e desse problema, o postulado da totalidade é seguido imediata-
finalmente para preservar a política, separadamente da função mente pelo da empresa privada. Como esses dois postulados
que exerce na política externa. As leis de Nuremberg de 15 de podem ser reconciliados?
setembro de 1935 são a culminação desse desenvolvimento em A chave para a solução dessa antinomia foi muito habil-
direção à integração e diferenciação da sociedade nacional- mente encontrada por Carl Schmitt. Em um de seus importan-
socialista. tes cursos, realizado antes da criação da organização industrial
Por outro lado, a posição central do Estado no fascismo mais poderosa do noroeste da Alemanha16, ele fez uma distinção
~aliano é explicável se se percebe que o Estado italiano é uma entre dois tipos de totalidade: uma quantitativa e uma qualitati-
(!J;:iação relitivamente recente. !\. burocracia, a polícia, e i?rri va. O Estado quantitativamente totalitário é um fenômeno do
exer iciente são as rinci ais cria ões do fascismo italiano:-- romantismo; ele interfere em toda esfera de atividade. O Estado
ªº passo que, na Alemanha, a maquinaria central do Esta o qualitativamente totalitário é um fenômeno especificamente ale-
foi-a!.~ desenvolvida e permaneceu completamen!E' mão.Trata-se de um Estado forte, mas que não interfere em
ia ta do o nacional-socialismo chegou ao poder. A todas as esferas de atividade. A esfera da economia é deixada li-
tarefa primária do fascismo italiano 01 a cnaçao e um tal vre. Ela se satisfaz ao prover algumas regulações para a esfera
aparelho 14• "política". "A ressonância da economia em um Estado forte" foi o
Contudo, a totalidade significa a universalidade dos fins título d~sse curso de Carl Schmitt, em que ele deu expressão
do Estado, o inverso da relação liberal entre Estado e indivíduo, jurídica à unidade entre o nacional-socialismo e o capitalismo
a transformação de todas as importantes esferas sociais em esfe- monopolista. Na verdade, não se trata de outra coisa senão da
ras pública e política. Essa totalidade, apesar disso, se opõe à fé doutrina de Pareto, o qual postulou a abolição de todas as liber-
na iniciativa privada na esfera econômica, como já foi mostrado dades políticas e combinou-a com o postulado de um sistema
insistentemente. 1\.._tualmente, não há uma esfera mais impor- econômico livre. Permanece um mistério saber como a noção de
tante do que a econômi"" A instituição mais importante é s?w totalidade pode ser qualitativa. Se algo é total, então isso tem
dúviàa-a-pmpriedade, particÚÍarmente a propriedade nos meios necessariamente que abranger o todo. A ideia de totalidade só
> pode ser uma noção quantitativa.

14 Com isso não queremos dizer que um Estado democrático italiano não poderia
ter erigido seu aparelho centralizador; pelo contrário, acreditamos que a
integração democrática é um meio ainda melhor para a construção de um tal 15 Sobre a Itália, cf. ROSENSTOCK-FRANK. L'economie corporative fasciste em
aparelho do que a integração ditatorial. Pode ser verdade que sob condições doctrine et em fait, Paris, 1934.
democráticas sua formação necessitaria de mais tempo. 16 SCHMITI, Carl. Mitteilung des Langnam Vereins, 1932, p. 18.
476 - 0 IMPtRJO DO DIREITO FRANZ NEUMANN - 477

Na medida em que o nacional-socialismo ou o fascismo pro- A sociedade do nacional-socialismo se tornou uma


curam realizar uma ordem corporativa ou estamental, podemos sociedade estática, pois qualquer movimento dentro dela pode
aplicar a mesma crítica que usamos contra a ordem estamental antes levá-la à sua extinção. A soberania do Parlamento foi
medieval. Assim como os estamentos da Idade Média velavam o abolida, porque deu ao Partido dos Trabalhadores a opor-
papel exercido pelos proprietários de terras, as corporações e esta- tunidade de chegar ao poder. A totalidade do Estado é, na
mentos ocultam a dominação do capitalismo monopolista. O tra- verdade, a dominação total sobre o Estado, exercida pelo líder
balhador é impedido, e sua ascensão como classe prevenida, por para o bem da classe feudal, transformando o povo em servos
todo tipo de organização estamental. dos estamentos.
É verdade que o fascismo - italiano ou alemão - foi no
começo um governo carismático17• "O puro carisma é estranho à 16.3. o DIREITO E o ESTADO TOTALITÁRIO

economia. Ele constitui um 'chamado' no sentido enfático da


O Estado nacional-socialista é um Estado de direito? Esta
palavra: como uma missão ou uma tarefa interna. Ele despreza e
questão é afirmada ou negada com a mesma paixão22 • De acordo
rejeita o tipo puro, o uso econômico das dádivas ex gratia como
com Carl Schmitt23, o Estado de direito é uma mera concepção
um meio de renda - contudo, trata-se mais de um postulado do
liberal. O Estado nacional-socialista é um Estado verdadeiramente
que de um fato" 18 • Mas o carisma se tomou um assunto comum,
justo, mas de modo algum é um Estado de direito. De outro lado24 ,
e o que permanece é a dominação feudal. No sistema político do
o caráter de Estado de direito presente no Estado nacional-socia-
feudalismo medieval, os direitos políticos estavam ligados à
lista é enfaticamente afirmado, tanto que sob a pressão desses
propriedade fundiária. Beneficium e commendatio são dois pilares,
ataques Carl Schmitt foi forçado a abandonar sua interpretação e
e o commendatio é o contrato de fé - com direitos desiguais 19 •
aceitar a visão oficial, e admitir o caráter de Estado de direito do
Consequentemente, este contrato de fé entre líderes e seguidores
Estado nacional-socialista, mesmo se a ideia em seu todo lhe pa-
se coloca no centro do direito alemão20• Holdsworth descreve o
recesse supérflua25 •
feudalismo na Inglaterra no começo dos séculos XIV e XV como
se segue: "O novo feudalismo chegou ao seu fim, não por meio de Deste modo, temos de investigar se o Estado nacional-
um ataque direto, mas pela perversão da maquinaria do governo -socialista possui os elementos básicos que em nossa visão
centralizado. Ele foi.a imitação bastarda da velha ordem da socie- constituem um Estado de direito. Não há dúvidas de que a teoria
dade-fundada na fraquezada Coroa e na corrupçao das class'ês e a prática do nacional-socialismo rejeitam o postulado do
demiaaates Essas clasiei dominantes não representaram o grande Império do Direito. O direito não é apenas a vontade do líder26 •
e coq:>o da nação2 1• >-

22 A mesma controvérsia está ocorrendo na Itália.


23 SCHMITT, Carl. Nationalsozialismus und Rechtsstaa t. ln : /uris tische
17 WEBER. Wirtschaft, p. 140. Wochenschrift, 1934, p. 17; idem, Leitsiitze.
18 Ibidem, p. 142. 24 Segundo KÔLLREUTER, FRANK, LANGE e GÔRING.
19 Ibidem, p. 142. 25 SCHMITI. Was bedeuted.
20 GÔRING. Crundlage, p. 8. 26 Compare os trabalhos de KÔLLREUTER, SCHMITT, HUBER, GERBER, LANGE,
21 HOLDSWORTH. History, vol. li, p. 417. BINDER, HENKEL, SCHAFFSTEIN e FORTSHOFF - d . nota 1 acima.
478 - o IMP~RIO 00 DIREITO FRANZ N EUMANN - 479

Inumeráveis leis individuais foram instituídas, tais como a lei transição. A culminação da retroação, contudo, pode ser
de agosto de 1934, determinando um funeral estatal para o encontrada na Seção 2 do Código Penal alemão, válida desde a
falecido presidente Hindenburg; de 3 de julho de 1934, lei de 28 de julho de 1935. Segundo esta Seção, "será punido
concedendo a isenção de impostos para o Partido Nacional- aquele que cometer um crime que tenha sido declarado punível
-Socialista; de 7 de março de 1934, permitindo que o ministro por lei ou que mereça punição de acordo com os princípios de
das Finanças do Reich reduzisse os impostos por ocasião da um estatuto penal e os do sentimento do povo. Se nenhum
reorganização do monopólio do aço; de 27 de julho de 1933 e estatuto penal pode ser aplicado diretamente a tal crime, o crime
22 de outubro de 1935, concedendo a isenção de impostos para será punido de acordo com aquele estatuto cuja ideia básica
a propriedade fundiária do presidente Hindenburg e seus convenha melhor ao caso". Sempre que for necessário para a
descendentes, assim como do marechal Mackensen; e de 3 de segurança daqueles que estão no domínio, o nacional-socialismo
julho de 1934, legalizando todas as medidas tomadas para acabar usa leis individuais e retroativas; sempre que tiver que lidar com
com a revolta de Roehm. Há ainda inúmeras leis relacionadas às situações de monopólio, os monopolistas serão isentos das leis
atividades econômicas. É característico que todos os comandos universalmente válidas.
individuais concedam privilégios ou regulem organizações Porém, com essa transformação, a posição do juiz se
monopolistas. A renúncia do caráter geral da lei revela ao mesmo modificou fundamentalmente. É verdade que Hitler se
tempo o caráter feudal da legislação. expressou em favor da independência dos juízes em seu discurso
O princípio da não retroatividade da lei não é mais no Reichstag em 23 de março de 1933, e que o ministro da
reconhecido 27• Em muitos casos, o legislador promulgara leis Justiça do Reich também declarou que um juiz deve ser obrigado
retroativas, tal como as !ex de Van der Lubbe de março de 1934, pela lei, e que a ideia autoritária implica a sujeição completa do
que estendiam a pena de morte a certos crimes cometidos entre juiz à lei28 • O juiz, tendo cumprido sua função contrarre-
31 de janeiro e 28 de fevereiro de 1933; a lei de 14 de julho de volucionária durante a democracia de Weimar, tomou-se agora
1933 permitindo ao ministro revogar as naturalizações e privar mais uma vez o servo absoluto da lei, ou seja, da vontade do
os alemães de sua cidadania; a lei de 3 de julho de 1934 líder: "O direito e a vontade do líder são a mesma coisa"29 • A
retroativamente tornou legal certos decretos e atos admi- independência do juiz recebeu agora um novo "significado"30 •
nistrativos; e, finalmente, a lei de 3 de julho de 1934 que Até agora, ela serviu "para assegurar os direitos legais de um
legalizou todas as m~s tomadas para que se acabasse com a cidadão contra a ação possivelmente arbitrária de um governo
revolta de Roehm, a lei ~· pela primeira yez na histó~ que lhe fosse hostil"31 • Atualmente, a independência dos juízes
declarou um ato prece e ilegal, mas tomou legal um crime já significa sua sujeição ao princípio diretor do Estado nacional-
cometido. A característica de todas essas e mwtas outras lei?
r..etroativas é o aniquilamento dos oponentes políticos 011 a
legali~ ação de medidas ilegaia tomadas durante o período de
-
28 Deutsche Justiz, 1934, p. 370.
29 Idem, p. 881: Gõring, em uma reunião dos promotores púb licos da Prússia
após a revolta de Roehm.
30 HENKEL. Unabhangkeit.
27 HENKEL. Unabhangkeit, p. 11 . 31 Cf. Decisions of the Reichsgericht in Penal Matters, vol. 66, p. 386.
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-socialista "que lidera"32 • Pois o Estado neutro não existe mais. diu se a propriedade servia ou não aos propósitos hostis ao
Os princípios diretores par~ a atividade do juiz têm de ser as Estado 34 , então o juiz na Alemanha de hoje não possui mais a
ideias do nacional-socialismo, tais como se encontram no função de juiz. Ele se tornou um mero "oficial de justiça", um
Programa do Partido e se expressam na vontade do líder. O juiz mero policial35 • A retroatividade da lei também abole parcial-
tem que servir o líder33, mas ao mesmo tempo tem que obedecer mente a independência dos juízes, pois as leis retroativas sem-
ao direito escrito. pre estão relacionadas com fatos já realizados, e, portanto, com
• casos individuais .
Estamos interessados aqui somente na questão de saber Ainda maior é a importânc\a das cláusulas gerais no sistema
como é tecnicamente possível cumprir ao mesmo tempo os jurídico presente. Sua proposta principal consiste em vincular
comandos do líder político e aqueles do direito instituído. Os o direito instituído com a vontade do líder. "Para a aplicação e
conflitos são naturalmente possíveis, e às vezes são reportados. tratamento das cláusulas gerais pelo juiz, o advogado e o
A sincronização da maquinaria jurídica com a liderança polí- magistrado, bem como pelo professor de direito, os princípios
tica ainda não está completa, mas ela quase chegou à sua com- do nacional-socialismo são direta e exclusivamente decisivos";
pletude. A coordenação é alcançada, primeiramente, com a esta é a tese dos famosos cinco princípios para a prática do direito
ajuda da nova concepção de direito, e, em segundo lugar, por de Carl Schmitt36 • As cláusulas gerais se referem às normas
meio das cláusulas gerais; se omitimos a desoneração dos juí- morais externas às normas jurídicas que prevalecem na
zes com base na lei de 1° de abril de 1933 e de 15 de setem- comunidade. A visão declarada do povo é a do nacional-
bro de 1935, e também omitimos todas as interferências -socialismo. Os elementos constituintes da visão da vida do
indiretas nas atividades dos juízes, tais como a pressão do Par- nacional-socialismo são determinados apenas pelo líder37 •
tido, o terror aberto ou encoberto, é porque são efeitos que Embora na sua tese nº 3 Carl Schmitt afirme que as cláusulas
não podem ser controlados. Nos limitamos estritamente àque- gerais não interferem na independência dos juízes, até mesmo
les meios constitucionais de interferência na liberdade do juiz alguns advogados do nacional-socialismo expressaram sua
que permitem ser controlados. A sujeição da lei sob os coman- insatisfação com este ponto de vista38 • Mas não apenas a
dos individuais t.arna a independência do juiz ilusória. A lei transformação da estrutura formal do direito abole a inde-
~ndiyidual é uma proporção, porque ela determina regulaçÕes pendência d~s juízes; a destruição do princípio da separação
._para uma ação concreta. Se a lei não estabelece que qualquer dos poderes também ocorre em sua sujeição. Como uma
propriedade 12ertencente a um grupo hostil ao Estado tem dç doutrina, a separação dos poderes foi enfática e universalmente
ser embar.gada. mas que a propriedade pertencente ao Partido
Comunista ou ao Partido Social Democrata tem de ser api;i-
priaàa,.-c-<ttte e ministro do Interior do Reich finalmente dec;i-
34 Cf. as leis de 23 de maio de 1933 e 14 de julho de 1933.
35 Em seu jovem período, Carl Schmitt afirmou essa conexão entre a generalidade
da lei e a independência dos juízes: cf. SCHMITT. Legalitiit, p. 84.
36 Idem, Leitsiitze; idem, Orei Arten, p. 59; também LANGE. Liberalismus.
32 HENKEL. Unabhiingkeit, p. 21 . 37 SCHMITI. Orei Arten, p. 56, 63 .
33 HUBER. Oie Tota/itiit, p. 30. 38 KÔLLREUTER. Grundriss, p. 254.
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rejeitada na Alemanha, e na prática foi abolida. O líder, através vista alemã. Não poderemos continuar com exaustão essa expo-
do autorizado ato de 24 de março de 1933, e pela lei relativa à sição, pois isso implicaria uma apresentação de todas as ativida-
reconstrução do Reich de 30 de janeiro de 1934, possui supremo des econômicas do nacional-socialismo. Será suficiente
poder legislativo e executivo. Sempre que a vontade do líder discutirmos um problema central. Segundo a definição de Max
político esbarrar na resistência de uma lei já instituída, ele poderá Weber do capitalismo, isso só seria possível com base no traba-
alterar a substância da lei a qualquer momento e na direção lho formalmente livre. O cálculo exato, de acordo com ele, de-
que desejar. pende inteiramente do fato de saber se o trabalhador é ou não
Mas o último remanescente da independência do juiz legalmente livre ao estabelecer uma relação contratual42• Con-
desaparece caso o líder não apenas assuma os poderes legislativo e tudo, o trabalho livre nã'o existe mais sob o regime do nacional-
executivo, mas também as funções judiciais; se ele mesmo ordenar socialismo. As leis de 20 de janeiro de 1935, relacionadas às
a pena de morte, tal como ocorreu na famosa revolta de Roehm. determinações do trabalho nacional43, a lei de 15 de maio de
De acordo com a teoria dos líderes do nacional-socialismo, expressa 1934, que proibia a livre migração dos trabalhadores na Ale-
no discwso que Hitler proferiu no Reichstag em 13 julho de manha, as regulações concernentes aos campos de trabalho, ajuda
1934, por Gõring3 9 e no sensacional artigo de Carl Schrnitt "O fundiária e a proibição das greves, transformaram o trabalho
líder protege o direito"40 , o líder não é somente o legislador supremo, livre numa espécie de estamento de serviços legalmente obriga-
nem apenas o executor supremo, ele também é o juiz supremo. tórios. Apesar disso, não há dúvidas de que a calculabilidade
"A morte do líder foi, na verdade, um genuíno ato de justiça; ela dos processos de troca, na medida em que serve aos interesses
não ocorreu devido à maquinaria jurídica, mas devido à suprema do monopolista, ainda existia, pois seu poder é suficientemente
justiça"41 • Portanto, a teoria jurídica do fascismo é "decisionista". forte, sem a ajuda do Estado e sem a liberdade de contrato, para
Toda a maquinaria do direito se coloca exclusivamente a serviço obter seus fins econômicos. Não pretendemos tratar mais exaus-
do líder, com a finalidade de transformar, o mais rapidamente tivamente desse problema; já é suficiente nossa indicação de
possível, sua vontade em formas jurídicas. Portanto, não podemos sua existência.
~ir ~~do nacional-socialista os páncipios básicos de um
~~o de~. ?aber se o Estado nacional-socialista é um Estado 16.5. A FUNÇÃO ÉTICA DO DIREITO
justa, é algo que fica inteiramente a encargo da avaliação do leitoi.'
5 Entre o Estado e o indivíduo não há qualquer organização
coletiva protegendo o indivíduo e realizando sua liberdade. O prin-
16.4. 0 SISTEMA ECONÔMICO E A CALCULABILIDADE 00 DIREITO
cípio sociológico fundamental, sobre o qual o nacional-socialismo
Nós já descrevemos as usurpações da racionalidade formal foi constnúdo, é, em primeiro lugar, o de uma atomiza;ão completa
do direito dwante o período de transição da democracia coleti- da sociedade. A Frente de Trabalho alemã, uma organização de

39 GÔRING. Grundlage, p. 17. 42 WEBER. Gesammelte Aufsatze, vol. 1, p. 4 (trad. inglesa, p. 22).
40 SCHMITT. Carl. Detsche /uristenzeiWng, 1934, p. 945. 43 Cf. meu artigo "The State and Labor in Germany", Contemporary Review,
41 Ibidem, p. 947. 1935, p. 713 .
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quase 25 milhõ~ de membros, é somente outro nome para o povo


alemão, com exctção dos trabalhadores civis e camponeses, que não
podem fazer part: dela. Trata-se de uma organização em massa dos sabc:J;..Qque~de.DlQ.S..~~s:J~~~gmL..!:..~:!!Ll~~LJIU'
indivíduos, e nã6 tem semelhança alguma com qualquer tipo de , útil ou não.
/
sindicato. Ela nâ.) pode participar de acordos coletivos, e sua pro-
priedade é admiristrada pelo Partido. Essa atomização e sincroni-
zação de todos cs grupos sociais, essa abolição de todo princípio
democrático nas corporações e sua supressão através do princípio
da liderança levain à completa atomização da sociedade, e portanto
permitem que o Estado a controle efetivamente.
O segundo princípio sociológico do nacional-socialismo é o da
totalidade, que controla os assuntos privados por meio do poder pú-
blico. Esse principio encontrou sua expressão mais brutal no plano,
esboçado pela Academia de Direito alemã, de urna nova lei que re-
gularia os divórcios, e que deu ao Estado o poder para divorciar os
casamentos contra a vontade das próprias partes se o divórcio se tor-
nasse um tipo de punição suplementar para os detratores políticos.
O terceiro princípio sociológico é o da diferenciação no inte-
rior da sociedade:, que propõe criar elites confiáveis, tais como um
certo estrato de camponeses e a burocracia do Partido.
Esses três princípios sociológicos são expressos por meio da
rejeição da noção de igualdade entre todos os seres humanos. A
ideia de igualdade é considerada como algo meramente abstrato,
remanescente do direito romano. A Seção 1 do Código Civil ale-
mão, que afirma que todos, desde o momento do nascimento, rece-
bem direitos jundicos plenos, ainda vale verbalmente, chegando
inclusive a ser sugerido formalmente que tal concessão deveria ser
abolida e substituída pdo ~o de direitos jurídicos que pode-
Oam..ser usufiuícfos somente por um compatriota ( VolkSgenosse)44 :
:;:>
De acordo tom muitas definições oferecidas, o direito é aquilo
que é útil para a. Alemanha. A única exceção dessa definição que

44 LARENZ. Rec:htsperson, p. 21 ; GÔRING. Grundlage, p. 12.

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