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CESA – Centro de Ensino Superior Aprendiz

Apostila de
Introdução ao Estudo
do Direito I
(parte primeira - revisada)

Elaborada pelo Prof. Geovane Lopes de Oliveira como


instrumento auxiliar de estudos.

Barbacena, 1º Semestre de 2019.


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SUMÁRIO

NOTA PRÉVIA......................................................................................................................................... 1
CONCEITO DE DIREITO, ACEPÇÕES DO VOCÁBULO, CARACTERÍSTICAS E VISÕES DO
FENÔMENO............................................................................................................................................. 2
A ideia e o conceito de Direito............................................................................................................................ 2
As múltiplas acepções da palavra Direito............................................................................................................ 4
As visões do fenômeno jurídico.......................................................................................................................... 6
Características do direito.................................................................................................................................... 9
Historicidade..............................................................................................................................................................9
Imperatividade.........................................................................................................................................................10
Coercibilidade, coação e sanção..............................................................................................................................10
Autoridade competente...........................................................................................................................................12
Pacificação social......................................................................................................................................................13
Mínima eficácia social..............................................................................................................................................13
Bilateralidade atributiva...........................................................................................................................................13
O DIREITO COMO CIÊNCIA.............................................................................................................. 15
Dogmática e Zetética........................................................................................................................................ 17
Objeto e método do direito.............................................................................................................................. 18
Solução, decisão, verdade e opinião na ciência jurídica..................................................................................... 19
DIREITO, SOCIEDADE E POLÍTICA................................................................................................ 20
DIREITO, ÉTICA E MORAL............................................................................................................... 23
O FUNDAMENTO DO DIREITO........................................................................................................ 25
Jusnaturalismo (Direito Natural)....................................................................................................................... 25
Juspositivismo (Positivismo Jurídico)................................................................................................................. 26
Culturalismo e teoria tridimensional do direito................................................................................................. 28
A NORMA JURÍDICA........................................................................................................................... 30
“Norma” x “enunciado normativo” x “fonte normativa” x “lei” x “regra” x “princípio”....................................... 30
Contrafaticidade do direito......................................................................................................................................31
Classificação das normas jurídicas...........................................................................................................................32
Validade, vigência e eficácia da norma.............................................................................................................. 35
Presunção de validade das normas jurídicas...........................................................................................................38
Retroatividade e ultratividade.................................................................................................................................38
Conflito de normas no tempo..................................................................................................................................39
BIBLIOGRAFIA PARA ESTUDO....................................................................................................... 40

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Nota préé via

O presente trabalho não pretende substitui a leitura dos muitos competentes


manuais e compêndios de Introdução ao Estudo do Direito presentes na bibliografia do Direito
pátrio. É, antes, um esforço de condensação dos elementos principais que o aluno deve
apreender para compreender o fenômeno jurídico, colocados de uma forma mais coloquial e
acessível. Por isso optei por não trazer referências bibliográficas expressas no corpo do texto
(salvo três exceções em que fiz citações diretas), mas o conteúdo aqui presente decorre da
leitura de literatura compatível. Ao final, será apresentada uma bibliografia básica, que serve de
orientação para leituras complementares.

De qualquer sorte, a disciplina será estudada a partir dessa leitura elementar e


completada por textos complementares disponibilizados para os alunos ao longo do semestre.

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Concéé ito déé diréé ito, acéé pço éé s do voca bulo,
caractéé ríé sticaséé viso éé s doféé no méé no

A ideia e o conceito de Direito

Tentem, num exercício de imaginação, considerando o que vocês já estudaram sobre


pré-história, criar na mente a imagem de uma sociedade primitiva. O mais primitivo possível!
Não há linguagem complexa, apenas comunicação gutural. Não há apropriação modificadora do
espaço, apenas ocupação e coleta. Vocês vão concordar que, mesmo nessa imagem,
conseguimos conceber certo nível de definição das estruturas de poder. Ou seja, mesmo nas
sociedades mais primitivas, há algum tipo de ordem. É essa a ideia elementar de direito: a
organização ou ordenação da sociedade.

E dessa indução já podemos construir uma série de outras percepções do fenômeno


jurídico: a) ele é um fenômeno social porque só tem sentido falar em ordenação quando estamos
diante de um grupo de pessoas que convivem entre si, com interesses muitas vezes conflitantes;

b) está essencialmente ligado à ideia de poder, porque antes de qualquer ordenação social é
preciso definir (seja por qual critério for) quem manda e quem obedece.

É claro que o direito tal qual conhecemos e estudamos hoje é completamente


diferente dessa alegoria pintada anteriormente. No passado remoto, seja nas sociedades mais
primitivas, seja nas sociedades da antiguidade clássica, o direito, como fenômeno social, não
estava desconectado de outros fenômenos de ordenação dos grupos. Assim, a religião, a moral
e a tradição formavam um todo complexo de organização social sem limites bem demarcados.
Contudo, a evolução das sociedades, sua complexificação, trouxe a especialização desses vários
âmbitos de ordenação da vida, de forma que se tornou possível compreender o direito nas suas
especificidades.

Essa percepção das diferentes formas de concretização do Direito nas sociedades ao


longo dos tempos também nos indica outro fator fundamental na construção do conceito de
Direito: o tempo, a história. Falar de Direito não é falar de uma entidade ideal, sempre igual, e
aplicável a todas as experiências sociais concretas surgidas desde quando o homem começou a
povoar a terra. Logo, se, por um lado, é possível induzir a conclusão de que todas as sociedades
possuíram, de alguma forma, estruturas jurídicas que as ordenavam, também é possível (e

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necessário) induzir a conclusão de que, em cada uma delas, a depender de circunstâncias
históricas específicas, o fenômeno do direito concretizou-se de formas diversas.

Se imaginarmos a sociedade feudal (aquelas presente na Europa entre os séculos IV


e XII mais ou menos) – para aqueles que acompanham a série “Guerra dos Tronos”, é mais ou
menos aquele estado de coisas – e a compararmos com a antiguidade clássica (cuja
representação aproximada pode ser encontrada em filmes como “300”, “Tróia” e congêneres), é
perfeitamente possível identificar as diferenças das estruturas de poder e da construção e
concretização do direito em cada uma daquelas épocas, embora ele guarde traços de
aproximação. Da mesma forma, se compararmos aquelas sociedades com nossa sociedade
capitalista atual conseguiremos ver inúmeras diferenças e algumas semelhanças.

Contudo, a definição do direito tem mais uma complicação. Como fenômeno social,
ele refere-se a relações humanas. Assim, estudá-lo e compreendê-lo significa fazer parte do
objeto de estudo e transportar para o estudo todas as visões de mundo que constroem o
estudioso. Há muito tempo a filosofia e a ciência já compreenderam que, não raro, as opiniões,
preconceitos (e pré-conceitos) e convicções do indivíduo interferem na forma como ele
compreende o mundo à sua volta. Por isso, explicar o direito é sempre explicar o direito a partir
de certa ótica, de certa visão de mundo.

Feitas todas essas considerações, podemos começar a delimitar o conceito do nosso


objeto de estudo. Tomemos, primeiramente, o fato de que o direito é histórico e difere de
sociedade para sociedade no tempo e no espaço e comecemos a identificar aquilo que, a
despeito da diversidade, pode ser encontrado em todos os Ordenamentos Jurídicos.

Assim, quando falamos em direito temos a clara noção de que ele é um conjunto de
ordens, que vamos chamar de norma (que, no sentido comum, refere-se a modelo ou padrão a
ser seguido), que pretendem estabelecer condutas. Mais do que isso, é possível compreender
que todo direito é criado e aplicado por alguém que, por algum motivo, pode fazer aquilo, e
que, acima de tudo, deve ser obedecido. Outro elemento bastante comum nos fenômenos
jurídicos concretos é o estabelecimento de punições para as pessoas que descumprem a ordem
ou não praticam a conduta designada por quem pode mandar. Como foi dito, a função
primordial dessas ordens é definir condutas como forma de organizar a sociedade e evitar que
os muitos conflitos que possam surgir entre seus membros não desagreguem e destruam o
corpo social, garantindo sua continuidade.

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Com isso, podemos desenhar um conceito do Direito que servirá de base para nossos
estudos:

O DIREITO é um conjunto historicamente situado de normas de conduta que visam


regular imperativamente o comportamento dos membros de uma determinada sociedade,
dotadas de coercibilidade e um mínimo de eficácia social, emitidas e aplicadas pelas
autoridades competentes, cujo objetivo principal é garantir a pacificação social.

As múltiplas acepções da palavra Direito

O que definimos anteriormente é apenas uma das várias acepções da palavra


Direito. Mais especificamente aquilo que os juristas convencionaram chamar de DIREITO
OJETIVO, que se refere ao conjunto de normas válidas e vigentes numa determinada sociedade,
que estabelecem ordens e regramentos de caráter genérico e abstrato, com pretensão
universal. Os autores mais clássicos chamam o Direito objetivo (geralmente grafado com inicial
maiúscula) de norma agendi (expressão latina que significa, numa tradução aproximada,
“norma de agir”), ou seja, o comando genérico que determina condutas sociais de forma
abstrata (não se refere a este ou aquele ato praticado por esta ou aquela pessoa, mas a todos os
possíveis atos praticados que possuam as características descritas na norma e estão sujeitos,
portanto, ao resultado por ela estabelecido).

Ao lado da noção de Direito objetivo, é preciso compreende outra, tão importante e


decorrente dela. Refiro-me ao DIREITO SUBJETIVO. O direito subjetivo (geralmente grafado com
inicial minúscula), identificado pelos autores clássicos como facultas agendi (do latim,
“faculdade de agir”), é uma posição jurídica de vantagem atribuída pela norma (norma agendi)
a um indivíduo para que ele consiga ver concretizada uma pretensão protegida pelo
Ordenamento Jurídico (Ordenamento aqui tem o mesmo sentido de conjunto de normas... à
frente será analisada a dimensão teórica dessa expressão).

Parece complicado, mas não é. Vejamos: o Código Civil Brasileiro define a


capacidade civil das pessoas domiciliadas no Brasil. Ou seja, indica quando e porque os
indivíduos aqui domiciliados podem praticar atos da vida civil como comprar e vender bens
economicamente apreciáveis. Segundo o Código, toda pessoa maior de 18 anos sem problemas
mentais que impeçam seu discernimento e que não seja índio tem capacidade civil plena,
podendo realizar contratos de compra e venda, por exemplo.

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Assim, essa regra é um comando genérico que estabelece uma faculdade. Cada um de
nós que se enquadrar naquela regra (por ter mais de 18 anos, ser mentalmente saudável e não ser
índio) pode praticar atos da vida civil como o contrato de compra e venda quando e se quiser. No
momento em que qualquer um de nós faz isso (compra algo ou vende algo), o fenômeno jurídico
passa do âmbito do Direito objetivo (norma genérica e abstrata) para o âmbito do direito subjetivo
(o exercício concreto da faculdade determinada pela norma genérica).

Mas a noção de direito subjetivo vai um pouco além. Não teria sentido o
ordenamento estabelecer faculdade sem garanti-las. Por isso, se compramos algo e
eventualmente o vendedor não nos entrega, ou se vendemos algo e eventualmente o
comprador não nos paga, podemos dizer que, em qualquer desses casos, houve uma pretensão
não concretizada, não satisfeita (quem comprou ou vendeu e não recebeu a coisa ou o dinheiro
não satisfez a pretensão que decorre daquele ato). É nesse momento que identificamos o outro
aspecto do direito subjetivo. Toda pretensão protegida pelo Direito concede ao portador da
pretensão um conjunto de instrumentos para garantir a satisfação daquela pretensão (polícia,
ação judicial, decisão judicial, penhora, busca e apreensão etc.).

São esses instrumentos que tornam a faculdade de agir (o direito subjetivo) um


efetivo direito e não uma mera vontade. Qualquer um pode ter vontade de ficar rico, mas não
encontrará instrumentos institucionalmente estabelecidos para garantir através da justiça ou da
polícia essa vontade. Mas alguém que tenha feito um negócio jurídico que lhe renderia muito
lucro e não conseguir apropriar-se deste lucro, por força da ação ou omissão de terceiro, poderá
manejar o instrumento compatível previsto no ordenamento para buscar a satisfação desta
pretensão. Daí modernamente falar-se em direito subjetivo como sendo uma posição jurídica
de vantagem atribuída pelo Ordenamento a um indivíduo, como forma de garantir a
satisfação de uma pretensão.

Ainda podemos associar o direito à ideia de justiça (que será objeto de indagações
posteriormente). Nesta acepção, estabelece-se uma vinculação de sua criação, interpretação e
concretização a certo sentido de justiça como valor identificável na sociedade. Vamos deixar
essa discussão complexa para outro momento.

E podemos identificar, também, o direito como ciência jurídica, que será objeto do
próximo capítulo e que se refere aos processos e aos métodos de construção, compreensão,
interpretação e difusão dos conhecimentos jurídicos e das técnicas do direito.

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As visões do fenômeno jurídico

O conceito de direito proposto aqui (conjunto historicamente situado de normas de


conduta que visa regular imperativamente o comportamento dos membros de uma
determinada sociedade, dotadas de coercibilidade e um mínimo de eficácia social, emitidas e
aplicadas pelas autoridades competentes, cujo objetivo é garantir a pacificação social) não é o
único possível. Isto ocorre porque o fenômeno jurídico está sujeito às influências do mundo
cultural e ideológico que constrói o sujeito que interpreta o direito. A formação do indivíduo
interfere na forma como ele compreende e reproduz o direito.

Isso não significa que o conceito de direito seja uma visão pessoal ou
personalíssima. Ao contrário, ele, como outros fenômenos sociais e conceitos socialmente
compartilhados, representa uma visão de mundo compartilhada. A ideologia – entendida como
conjunto de pressupostos de significação incorporados e reproduzidos pelos indivíduos de
maneira mais ou menos naturalizada, ou seja, sem análise crítica – tem papel fundamental na
construção da visão do direito.

O conceito proposto procura ser mais técnico, ou seja, pretende uma neutralidade
axiológica (espera que os valores individuais e grupais não interfiram na identificação correta
dos principais aspectos desse fenômeno social). Assim, essa visão é denominada por muitos
teóricos como NEUTRA. Não obstante, ela é, também, fruto de um viés, uma abordagem
determinada por uma ideologia específica.

Os conceitos ditos neutros buscam organizar as ideias de forma científica,


metodologicamente determinada, como forma de garantir o rigor da conceituação,
desconectando o conceito de valores, preconceitos, crenças etc. Mas a ilusão dessa
possibilidade já é uma ideologia, porque os fenômenos sociais interferem nas relações sociais e
são explicados pelas próprias relações sociais, de forma que o objeto do direito é também sua
condição de possibilidade (quando alguém tenta compreendê-lo e produzir normas que
regulem as relações, essa pessoa sempre – sempre mesmo – partirá de um conjunto de pré-
conceitos e pré-juízos que direcionaram tanto a compreensão quanto a construção do direito).
Não há neutralidade, o que não significa dizer que o direito não possa ter rigor técnico, mas
apenas que devemos entender sempre quais são os pressupostos do discurso daquele que se
lança no projeto de compreender, explicar e construir o direito.

Ao lado da visão neutra os teóricos identificam ainda outras duas, diametralmente


opostas: a visão APOLOGÉTICA, que constrói o conceito de direito a partir de uma visão positiva
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do fenômeno, reconhecendo no direito um instrumento de produção de felicidade,
emancipação, desenvolvimento humano e social, justiça etc.; e a visão CRÍTICA, que, ao
contrário, identifica no direito um instrumento de opressão, manutenção das desigualdades,
garantia das estruturas de dominação etc.

A maioria dos autores contemporâneos brasileiros reproduzem visões apologéticas


do direito (ou supostamente neutras, mas com um indisfarçado viés apologético). Mas a visão
crítica, que parece um tanto pessimista, não busca necessariamente a superação ou anulação
do fenômeno jurídico. Muitas delas, reconhecendo essa instrumentalização negativa do direito
(o uso dele como ferramenta de opressão) propõem renovações e revisões que pretendem
reconstruir essa instrumentalização pautada em outros paradigmas, para fazer do direito algo
positivo. Ou seja, identificar seu o caráter pejorativo e destrutivo não significa dizer que ele só
se presta a isso, mas sim que é preciso lidar com esse problema e tentar convertê-lo em
instrumento de libertação.

Ao longo da história, muitos teóricos e filósofos se debruçaram sobre o conceito e


produziram definições situadas em cada uma dessas categorias explicadas (apologética, neutra
e crítica). Vejamos uma de cada para compreender a questão:

O principal representante da visão neutra é, sem dúvida, pela sua importância na teoria
jurídica do século XX, Hans Kelsen, jurista e professor austríaco que viveu entre 1881-1973.
Partidário do positivismo jurídico (uma escola teórica que buscava construir uma ciência do direito
nos mesmos moldes do rigor científico das ciências da natureza), esse teórico entendia que a função
da ciência do direito era explicar a organização do ordenamento jurídico, as relações entre as
normas desse ordenamento (hierarquia, subordinação, causalidade etc.), sem deixar que aspectos
externos interferissem no estudo (história, moral, sociologia, filosofia etc.) e que o papel do direito
era tão somente organizar a sociedade, as relações interpessoais, de forma impositiva,
considerando-se a legitimidade (atribuída pela norma) ao detentor do poder.

Um nome importante da visão crítica é Yevigeniy Bronilavovich Pachukanis (1891-


1937), jurista russo de orientação marxista, que sustentava que o direito é um fenômeno
específico da sociedade burguesa, que se presta exclusivamente a reproduzir as formas
capitalistas como formas jurídicas, garantindo a reprodução da estrutura social opressora de
manutenção da dominação das classes que ocupam o poder. Para ele, no limite, seria preciso
superar a estrutura capitalista, inclusive com a destruição do direito (que a reproduz),
substituindo-se as formas jurídicas pelo poder popular e normas técnicas de ordenação.

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A visão apologética, como grande expressão da ideia de direito difundida ao longo dos
tempos, é plena de exemplos, mas vamos destacar a mais famosa definição de todos os tempos, do
jurisconsulto romano Celso, que viveu por volta do século I d.C., que dizia ser o direito “a arte do
bom e do justo”. Nada mais elogioso do que pretender que a função e o objetivo do direito sejam
produzir o bem e concretizar a justiça. O grande problema de definições como essa no mundo
contemporâneo, é a dificuldade de se definir o que é bom e o que é justo, considerando-se a
diversidade de projetos de vida e visões de mundo que convivem nas sociedades complexas do
século XXI, todas solicitando a prevalências de suas noções de bom e justo.

Como o direito, na sociedade contemporânea, tornou-se propriamente uma técnica, ou


seja, um conjunto de procedimentos e instrumentos disponíveis aos membros de determinada
sociedade para que alcancem objetivos previstos no Ordenamento, isso fez com que o direito se
parecesse com algo supostamente desvinculado das intenções do poder. Mas fazer isso não o
transforma em neutro, apenas mascara as intenções por trás dele. Contudo, como fenômeno social,
ele reflete as estruturas e formas da sociedade que regula. Isso significa que o direito nunca estará
desatrelado das outras dimensões da sociedade. É por isso, aliás, que

é um erro imaginar que seja possível estudar o fenômeno jurídico sem compreender essas
outras dimensões e as relações que existem entre elas e o direito. Como dirá com perfeição
Alysson Mascaro:
O direito é um fenômeno que pode interpenetrar todos os demais na sociedade, mas, ao mesmo
tempo, também é interpenetrado por todos os demais fenômenos. [...]
Alguns não entendem o tipo de relação que há entre o direito e a economia. Pelo fato de desconhecerem
as estruturas e a especificidade do capitalismo, pensam que o direito existe e funciona do mesmo modo
em todos os modos de produção, mas a resposta é o contrário disso. Conhecer a economia capitalista é
fundamental para entender o direito, porque há relações profundas entre esses dois fenômenos sociais. O
capitalismo é que revela a plenitude do fenômeno jurídico.
Há juristas que se formam nas faculdades de direito sem nada saberem sobre as questões da cultura,
do racismo ou da psicologia. Esses juristas muito pouco poderão identificar a respeito de sua própria
personalidade ou caráter, e realimentarão as injustiças culturais e as distorções de valores nos casos
em que trabalharem. O direito, portanto, está também imbricado com todos esses fenômenos sociais,
culturais e psicológicos.
[...]
Contudo, o jurista tecnicista, que em geral quer esconder a relação do direito com o todo – seja com o
capitalismo, que lhe dá a qualidade, seja com as demais relações, que se lhe somam
quantitativamente em maior ou menor grau –, identifica o direito apenas com a norma jurídica.
Pinça um fenômeno isolado do direito e quer fazer dele a razão de ser da explicação jurídica, sem
relacionar a norma com os demais fenômenos. Estes são os juristas limitadores, que procedem a um
reducionismo na explicação do direito, escondendo as relações dos direitos com a sociedade para não
explicitarem os seus reais vínculos. (Mascaro, A. L. Introdução ao estudo do direito. 4ª Ed. São Paulo:
Editora Atlas, 2013. p. 11-12)

Assim, uma pergunta importante é: por que estudar, analisar e identificar qual visão
do direito carrega esse ou aquele autor? E a resposta é simples: trabalhar com o direito,
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compreendê-lo e explicá-lo é sempre uma tomada de posição, uma vinculação a algum projeto
ideológico específico. Da mesma forma, manejar o Direito é (ou deveria ser) muito mais do que
simplesmente reproduzir as técnicas de aplicação e organização presentes no(s) Ordenamento(s)
Jurídico(s). O jurista tem um papel importante de desconstrução e reconstrução de conceitos, de
avaliação dos rumos do seu objeto de estudo e instrumento de trabalho, análise e problematização
das significações atribuídas aos textos normativos pelos Tribunais, teóricos e pensadores do direito.
E esse papel só será competentemente cumprido se a capacidade de identificação dos pressupostos
ideológicos presentes na fala do seu interlocutor for plena.

Consolidou-se contemporaneamente no Brasil a expressão “operador do direito”,


para designar todos aqueles que trabalham com o direito. Contudo, tal expressão denota já
uma visão parcial, instrumental e tecnicista do direito. Trata-o como instrumento técnico-
tecnológico, tentando retirar dele os aspectos ideológicos que o constroem, e transformando o
jurista num simples operário reprodutor daqueles instrumentos. Entretanto, o estudioso do
direito, em qualquer nível, deve ter a consciência de seu papel político (transformador ou
simplesmente reprodutor das formas jurídicas consolidadas). Só assim é possível falar em
autonomia intelectual.

Características do direito

Voltemos uma vez mais ao conceito de direito proposto: conjunto historicamente


situado de normas de conduta que visa regular imperativamente o comportamento dos membros de
uma determinada sociedade, dotadas de coercibilidade e um mínimo de eficácia social, emitidas e
aplicadas pelas autoridades competentes, cujo objetivo é garantir a pacificação social.

A análise desse conceito revela características fundamentais na definição e


identificação do fenômeno social que é o direito. Vejamos.

Historicidadé
Parece ter ficado claro, pelo muito já exposto, que o direito, embora possa ser
compreendido a partir de algumas características que perduram no tempo e no espaço, é, como
fenômeno social, essencialmente ligado ao tempo e lugar nos quais se manifesta. As
instituições, institutos, relações, legitimações e processos do direito variam conforme as
características da sociedade que regulam, e, por óbvio, em razão de fatores múltiplos, essas
sociedades modificam-se no tempo.

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Por isso o direito da Antiguidade clássica é diferente do direito feudal, do direito
moderno, do direito contemporâneo. Também em análise de períodos históricos menores podemos
verificar as transformações do direito. Basta pensar no direito brasileiro do período colonial,
imperial e republicano para perceber essa realidade. Daí o estudante ter a obrigação de cuidado
quando for comparar institutos jurídicos de tempos e lugares diversos. É preciso sempre identificar
os pressupostos históricos e teóricos destes institutos para manter o rigor conceitual.

A avaliação de alguma realidade jurídica do passado é sempre feita com os olhos do


presente (não é possível de outra maneira), e é imprescindível ter em mente este fato, para não
cometer distorções históricas e tratar identicamente coisas que não o são.

Por outro lado, a historicidade do direito não implica uma ruptura total e absoluta com
o passado, porque o processo histórico de construção e transformação da sociedade não
desconecta uma fase da outra. Há sempre um resgate, uma releitura do passado no presente, seja
para negá-lo, seja para reafirmá-lo (às vezes as duas coisas ao mesmo tempo), o que torna o estudo
histórico uma ferramenta fundamental de compreensão do presente e de projeção do futuro.

Impératividadé
Se o propósito essencial do direito é regular condutas sociais, não basta que ele seja
apenas orientador e aconselhador, é preciso que ele se imponha como obrigação para as
pessoas cujas ações ele pretende regular, do contrário faltaria ao direito eficiência, porque as
pessoas só cumpririam as normas caso quisessem. Porém, essa qualidade depende de outros
elementos para ser completa, não basta reconhecer no direito a condição de ordem imperativa,
é preciso instrumentalizá-lo para garantir essa imperatividade, donde surgem a coercibilidade, a
coação e a sanção.

Coércibilidadé, coaçaã o é sançaã o


A coercibilidade é uma prerrogativa garantida ao direito para poder constranger os
indivíduos a cumprir as ordens jurídicas. Ela é a possibilidade ou o poder de exercer coação. Mas a
coação, nesse caso, é uma coação institucionalizada e legítima – daí muitas vezes prefere-se o
vocábulo coerção (ato de exercer a coercibilidade, como elemento da imperatividade da norma).

Na modernidade o Estado exerce o monopólio da força, de forma que o exercício de um


direito subjetivo com vistas a concretizar uma pretensão negada por alguém (receber o que

é devido, por exemplo), só pode ser feito através de órgãos do Estado, legitimados a tanto pelo
direito produzido por esse Estado.

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Daí que a coação (coerção) do Estado, embora se valha dos mesmos mecanismos de
outras formas de coação, não é proibida, desde que exercida nos limites da permissão do
direito. Aquelas pessoas que já se viram sob a mira de um revólver, ou submetidas a
chantagens, se e quando fizeram o que lhes era exigido, fizeram-no por medo (de ser
machucado, exposto, morto, ou de que isso acontecesse com alguém importante para si). Essa
violência não é legítima porque parte de uma negação do direito, do descumprimento de uma
ordem jurídica que impõe à vítima a supressão de sua liberdade. A ação dos indivíduos no
cumprimento do direito também é, em alguns momentos motivado por medo (da multa, da
prisão etc.), mas a ameaça que os leva a cumprir o direito é legítima e legal, porque presente no
conjunto de normas jurídicas do ordenamento.

Nesse sentido, é de suma importância outro aspecto da coercibilidade, que é a sanção.


Esse vocábulo, de um modo geral, possui um significado negativo, referindo-se a alguma
reprimenda prevista na norma jurídica para o descumprimento do direito. Porém, tecnicamente, a
sanção é o resultado previsto na norma para a ação tipificada. Por isso sanção pode ser positiva ou
negativa. Quando a norma for proibitiva ela irá prever uma determinada ação que não deve ser
praticada pelo sujeito (matar alguém, estacionar em determinado local etc.) e designará uma
sanção (negativa) para o ato do sujeito que executa a ação proibida (prisão, multa etc.).

Por outro lado, em algumas poucas ocasiões a norma jurídica pode estabelecer uma
conduta desejada e, para tanto, determinar uma sanção benéfica (positiva), ou seja, indicar um
resultado para a execução da ação desejada (frequentemente, nos casos de pagamento de
impostos, a norma jurídica indica múltiplas formas de pagamento, estabelecendo descontos para
algumas delas – à vista, antecipado, pagamento total etc.). Por isso, podemos dizer que a sanção

é um resultado previsto na norma para uma ação tipificada, sendo negativa quando estabelece
restrições de direito para o sujeito que pratica a ação proibida e positiva quando estabelece
benefícios para o sujeito que pratica a ação deseja e estimulada pela norma.

Falamos até agora da coação (coerção) como instrumento que gera medo e compele
os sujeitos a praticarem condutas obrigatórias ou não praticarem condutas proibidas. Assim, é
uma coação psicológica, garantida pela previsão de sanção e pela certeza ou temor da aplicação
dessa sanção. Mas, ainda assim, os indivíduos podem descumprir (e frequentemente o fazem)
as normas impositivas do Ordenamento Jurídico, mesmo reconhecendo a possibilidade da
aplicação da sanção.

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Énesse momento que identificamos outro aspecto da coerção, que se concretiza
pelo uso efetivo da força nos casos de descumprimento da norma. Já não estamos falando mais
de coação psicológica, mas de coação física, que ocorrerá todas as vezes que alguém for preso
porque cometeu crime ou porque está sendo processado ou indiciado (são as chamadas prisões
processuais, em razão das quais as pessoas indiciadas ou os réus podem ficar presos por algum
tempo antes da condenação – flagrante, prisão preventiva, prisão cautelar), e ainda quando
alguém se torna réu em uma ação de execução de dívida tributária, entre outras. Nesses casos
não estaremos diante de simples ameaça de uso da força, mas de uso da força propriamente.

Resumindo: a coercibilidade é a característica que garante a imperatividade


(obrigatoriedade) do direito, porque garante às autoridades a possibilidade do exercício da força
(coação) para constranger alguém a cumprir a ordem jurídica, aplicando as sanções definidas na
norma.

Autoridadé compéténté
No tópico anterior foi mencionado o uso da força ou da ameaça por um bandido como
exemplo de coação não legítima e ilegal, para diferenciar esta ação da ação do Estado, que

é legítima e legal (ou que deve ser assim, sob pena de ser do mesmo tipo daquela do bandido).
Daí se concluir que todos os agentes do Estado só podem exercer a força e as prerrogativas que
exercem porque foram autorizadas pelo direito. Assim também quem faz o direito, só o faz
porque está legitimado para tanto.

Como se disse, nas sociedades modernas o exercício da força é monopólio do


Estado (salvo raras exceções previstas no ordenamento). Da mesma forma, cabe ao estado a
criação, reprodução e aplicação do direito, através dos poderes estatais (executivo, legislativo e
judiciário). Esses poderes são compostos por órgãos, esses órgãos são compostos por agentes.
Os órgãos possuirão competências determinadas pela constituição e pelas outras formas de
legislação, enquanto os agentes possuirão atribuições, também designadas pelo ordenamento
jurídico. Toda vez que um agente o um órgão impõe o direito ou cria o direito conforme as
normas de competência, sua ação é legítima e legal e deve ser obedecida, sob pena de sanção.
Disso decorre também outra característica relevante do direito contemporâneo: ele

é heterônomo, ou seja, é criado não pelos sujeitos aos quais ele se impõe, mas por terceiros (o
legislativo não é composto pela totalidade de membros da sociedade porque não vivemos numa
democracia direta – aquela em que todo cidadão participa diretamente das decisões do poder –
, mas sim numa democracia representativa, visto que atribuímos aos Congressistas a prerrogativa
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de decidirem em nosso nome). Isso não desqualifica a imperatividade do direito, porque isso
decorre do exercício da competência e não do fato de ser o direito criado diretamente pelos
jurisdicionados.

Pacificaçaã o social
O direito existe com um propósito básico: organizar as relações sociais através da
definição de condutas proibidas, obrigatórios e permitidas. Com isso, espera-se que o corpo
social não se destrua, não se esfacele, continue existindo apesar das múltiplas desavenças
eventualmente presentes no seio da sociedade. Este é o primeiro aspecto da pacificação social.

O segundo aspecto refere-se ao fato de que o direito não se presta, rigorosamente


falando, a produzir felicidade, mas apenas a impedir a desagregação da sociedade e a
perenização das desavenças sociais.

Míénima éficaé cia social


Para que o direito cumpra seu objetivo, é preciso que a sociedade cujas condutas ele
pretenda regular reconheça o direito e o cumpra minimamente. Se o ordenamento só existe
como elemento figurativo, mas nas relações sociais reais as normas são completamente
desconsideradas, o direito não servirá pra nada.

É claro que todo ordenamento terá normas que “pegam” e normas que “não
pegam”, ou seja, normas que a população incorpora e cumpre e aquelas que ninguém respeita e
cujas sanções não são impostas pelas autoridades, mas isso não diz de um ordenamento que
ele não se presta a cumprir seu objetivo.

A mínima eficácia social refere-se à qualidade do ordenamento jurídico de, como


um todo, impor-se, sendo reconhecido como legítimo e válido, efetivamente regulando uma
parte (ainda que mínima) das condutas dos membros da sociedade e aplicando, quando
necessário, as sanções previstas.

Bilatéralidadé atributiva
Bilateralidade atributiva é uma proporção intersubjetiva que autoriza os sujeitos de
uma relação a pretender, exigir ou fazer algo, que revela a impossibilidade de existir direito sem
existir relação entre duas ou mais pessoas (intersubjetividade). A pretensão não decorre do
simples arbítrio de uma das partes, e se refere a um bem protegido pelo Direito, diferençável da
específica vontade das partes. É a atribuição de garantia à pretensão dos sujeitos da relação,

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limitada a ela ou extensível a terceiros (donde os vários instrumentos jurídicos para concretizar
a pretensão – por isso garantida), que define tal característica.

Essa proporção intersubjetiva não precisa, contudo, ser sempre recíproca, como
acontece com os contratos (onde ambas as partes, de regra, possuem pretensões e obrigações
umas para com as outras). Basta que a relação exclua o arbítrio e represente interesses
legítimos (garantidos pelo direito).

Da mesma sorte, essa noção de bilateralidade também se aplica às relações entre o


Estado e o particular, e não apenas nas relações entre particulares, embora não nos mesmos
moldes das relações contratuais, porque se vislumbra a atribuição de competências de um lado
(que geram poder e dever) e a garantia da concretização de direitos do outro, e nisto reside a
nota da bilateralidade.

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O Diréé ito como ciéé ncia

O fenômeno jurídico ganhou, com a modernidade, status de ciência, embora ainda


hoje muitas vozes da doutrina neguem a ele essa condição. Não há espaço aqui para uma
discussão aprofundada sobre a correção ou não dessa percepção, de forma que, nos parágrafos
seguintes, vamos verificar os aspectos da ciência jurídica, partindo da premissa de que o direito
pode ser entendido como ciência.

Nas sociedades primitivas o direito sequer se diferenciava de outras instâncias da


vida (moral, religião, trato social etc.). Compunha, com todas as outras, a esfera de
normatividade da existência social e tinha como fonte alguma divindade (ou algumas) que era
representada na terra pelo chefe da sociedade ou pela figura religiosa proeminente (ou por
ambos, com prevalência hierárquica do chefe político). Contudo, essa diferenciação ainda não
torna o direito uma ciência propriamente dita. Nessas duas culturas mencionadas o direito é
percebido essencialmente como arte e técnica.

A partir do Império Romano o direito começa a de desconectar das outras instâncias


normativas (na Grécia antiga esse fenômeno já começa a ocorrer, porém em menor medida). No
feudalismo, há uma espécie de retrocesso nesse processo, retomado posteriormente com a
superação do feudalismo e implantação gradual do capitalismo e das estruturas estatais. A bem
da verdade, o direito que conhecemos hoje é fruto, em grande parte, justamente do capitalismo
e da invenção dos Estados Nacionais.

Se quisermos identificar o direito como ciência, o primeiro passo é reconhecer que


ele possui objeto específico e método próprio de estudo, que busca construir postulados
rigorosos e perenes, embora sempre sujeitos ao falseamento, ou seja, à possibilidade de que
sejam questionados, verificados através de novos experimentos e, eventualmente, descartados
por novos postulados mais adequados, que também estarão sujeitos, por seu turno, a
questionamentos, tudo isso através de métodos específicos de construção e reconstrução do
conhecimento. São esses, aliás, os principais critérios de definição e ciência na
contemporaneidade.

De qualquer sorte, é preciso diferenciar o direito de outras ciências, determinando


suas características próprias. Por isso, diversos autores propõem classificações, muitas vezes
divergentes sobre a classificação das ciências. Vamos adotar uma classificação simples, para

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efeitos didáticos (reconhecendo que haverá falhas nela e que existem outras formas de
classificar as ciências).

A primeira grande separação que pode ser feita será entre ciências da natureza e
ciências sociais. O direito é tipicamente uma ciência social.

As ciências da natureza envolvem-se com a análise, verificação e construção de leis a


respeito dos fenômenos naturais (leis da física, da química etc.). Nesse trabalho, tais ciências
postulam uma pretensão de verdade, ou seja, buscam desvendar e construir postulados que
descrevam rigorosamente as relações que geram os fenômenos naturais (causa e efeito, por
exemplo). Dizemos que elas possuem uma pretensão de verdade porque elas aspiram a
determinar a realidade como acontece, como é. Daí que a lei da gravitação universal de Newton
tornou-se uma “lei” porque pretendeu e conseguiu descrever o fenômeno da gravitação, suas
causas e os efeitos delas decorrentes, a fim de determinar (medir e antecipar) os fenômenos
naturais da gravitação. Sua eficiência científica plena durou por séculos, até que no Século XX,
Einstein problematizou a teoria newtoniana e, partir de sua teoria da relatividade, desqualificou
alguns dos postulados da teoria de Newton, embora essa ainda seja válida para muitos aspectos
do mundo em que vivemos.

A seu turno, as ciências sociais (história, antropologia, sociologia, economia etc.)


possuem não uma pretensão de verdade, mas uma pretensão de correção, porque não
pretendem descobrir leis universais de causalidade, mas sim compreender os fenômenos
ligados às relações sociais. Além disso, as ciências sociais não estão sujeitas à verificabilidade
contrafactual, ou seja, não é possível refazer um experimento social nas suas exatas dimensões
e contextos a fim de verificar se a teoria “x” ou “y” é verdadeira. Daí o sentido da compreensão.

As ciências sociais têm um caráter retrospectivo-prospectivo, ou seja, voltam-se


para os fenômenos do passado a fim de compreender suas causas e as consequências dos atos
humanos decorrentes delas, com o objetivo de tentar direcionar o futuro ou, pelo menos,
prever com alguma aproximação, os desdobramentos de fenômenos sociais futuros. As ciências
da natureza tem caráter apenas prospectivo, apenas visam identificar leis para definir, com
precisão e certeza as relações causas para todos os fenômenos iguais.

O direito tem ainda outra característica que o situa no âmbito das ciências sociais
aplicadas. Ocorre que o direito, assim também a economia, e diferentemente da história e da
antropologia, por exemplo, tem como objetivo específico interferir nas relações sociais de forma

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direta. Não lidam apenas com a busca da compreensão do fenômeno social, mas pretendem
também servir de parâmetro para políticas públicas e atuação dos poderes estatais.

E, diferentemente da economia, o direito pretende essa intervenção de forma


efetivamente prescritiva, ou seja, pretende regular efetivamente as condutas sociais. Por isso
sua especificidade: além de ciência é social, além de social é aplicada, além de aplicada é
prescritiva (normativa).

Dogmática e Zetética

A ciência jurídica pode ser compreendida e estudada sob duas perspectivas diferentes.
Quando falamos de Zetética, referimo-nos à apropriação do fenômeno jurídico de uma maneira
filosófico-especulativa, relacionado às perguntas e às condições de possibilidade do direito. Assim,
uma investigação zetética discutirá os conceitos jurídicos sem estabelecer pontos de partida
insuperáveis, sempre na busca da construção ou reconstrução dos conceitos apropriados ou criados
pelo direito. A investigação zetética não estará preocupada em tentar entender, por exemplo, o que
significa furto e roubo para o Ordenamento Jurídico positivo, mas sim quais as dimensões da noção
sócio-cultural do furto e do roubo, quais parâmetros merecem revisão e mesmo qual a dimensão da
noção de roubo e furto admitidos pela sociedade. Seu principal objeto é redefinir os parâmetros
fundacionais do direito (a partir dela, por exemplo, podem ser propostas mudanças estruturais na
legislação e na interpretação das normas jurídicas vigentes numa determinada sociedade,
reconfigurando totalmente o direito posto).

Já a investigação dogmática (a palavra se refere a dogma, que significa postulado


não questionável, não problematizável, imutável), limita-se a compreender e reinterpretar o
direito válido e vigente numa determinada sociedade. Logo, a dogmática jurídica é,
basicamente, a compreensão do conjunto de normas válidas e vigentes em uma sociedade
(ordenamento jurídico e sua interpretação judicial). A investigação dogmática parte da norma
posta (positivada) e discute essa norma dentro dos parâmetros disponibilizados pelo próprio
ordenamento jurídico, vedando a reconfiguração da norma fora de tais parâmetros. A principal
função da dogmática jurídica é trazer segurança jurídica às relações sociais, porque estabelece
premissas bem definidas, limitadoras da atuação dos operadores do direito.

De um modo geral, a maior parte do ensino empreendido nas faculdades de direito


no Brasil tem viés dogmático, constituindo-se em simples exposição das normas vigentes e das

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interpretações que os tribunais fazem delas, o que implica uma deficiência gigantesca na
capacidade intelectual dos alunos, futuros juristas.

É claro que a dogmática não é um mal em si. Pelo contrário, ela é fundamental para
a manutenção da ordem e para a pacificação social. Ademais, ele corresponde ao preparo
técnico dos juristas, afinal, não se concebe que um aluno saia da faculdade sem compreender o
Direito posto (positivado) e os usos e aplicações deste direito nos Tribunais, já que sua vida
profissional depende disto.

Contudo, a tecnificação extrema do direito e sua abordagem essencialmente


dogmática produz a incapacidade de problematização das estruturas jurídicas, da forma jurídica
que é, em última análise, uma reprodução das formas sociais que, a seu turno, reproduzem a
estrutura de poder estabelecida. Esse processo constrói naturalizações destas estruturas de
poder, fazendo com que as escolhas políticas (que se tornaram jurídicas) sejam compreendidas
como postulados eternos, naturais, decorrentes da nossa própria condição, e não contingências.
Com isso, os operadores do direito tornam-se incapazes de produzir pensamento crítico, de
discutir os fundamentos do direito.
Luiz Alberto Warat chamou isso de senso ou “sentido comum teórico do direito”

(Introdução Geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2002), que é um quadro de referência imaginário, construído a partir da
ideologia estruturante do Direito posto, fora do qual o jurista não consegue existir e pensar,
porque induzido e conduzido a guiar-se dentro de um quadro de lugares comuns reproduzidos
acriticamente no âmbito das crenças, das opiniões éticas e dos conhecimentos vulgares.

Essa condição transforma o direito em instrumento de reprodução das formas


sociais criadas e buscadas por aqueles que fazem as escolhas sobre o que direito é, sobre quais
os valores o direito deve ter, sobre quais os bens jurídicos devem ser julgados mais relevantes.
Consequentemente, essa reprodução dos valores conduz a uma espécie de conformismo dos
operadores jurídicos. Por isso, não é difícil ou temerário dizer que os paradoxos originários da
sociedade repleta de conflitos e contradições acabam sendo, exatamente, diluídos no interior desse
corpus denominado de sentido comum teórico do saber jurídico. (STRECK, Lênio Luiz. Dogmática
jurídica, senso comum ereforma processual penal: o problema das mixagens teóricas. IN: Pensar,
Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 626-660, jul./dez. 2011. URL:
http://ojs.unifor.br/index.php/rpen/article/viewFile/2165/1766; acessado em 02/04/2015)

Objeto e método do direito

Das considerações anteriores, pode-se inferir qual seja o objeto do direito: é a


norma como ordem de regulação de condutas sociais, obrigatória e impositiva. E o método de

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construção da ciência dependerá das opções teóricas e ideológicas, ou do momento histórico
do direito.

Muitos destes métodos serão estudados quando tratarmos de hermenêutica


jurídica, por isso não é necessário anteciparmos aqui suas características. Elas transitam,
basicamente entre o juspositivismo estrito e o jusnaturalismo. Alguns deles são: a escola
racionalista do jusnaturalismo; o empirismo jurídico, a escolha da exegese francesa, a escola
histórica alemã, entre outros.

Merece destaque a moderna concepção hermenêutica do direito, que reconhece o


processo de construção de significados do direito como sendo decorrentes de processos
interpretativos baseados em retórica e convencimento, de forma que a adesão torna-se o
principal indicador da realização da pretensão de correção da ciência jurídica.

Solução, decisão, verdade e opinião na ciência jurídica

É preciso destacar que a ciência jurídica, como ciência prescritiva, tem como objetivo a
decisão, ou seja, a construção de ordens que extinguem conflitos, mesmo que isso não decorra da
produção de satisfação dos indivíduos submetidos à decisão. Ou seja, importa ao direito dirimir o
conflito por força de uma palavra final, definitiva, não por força da reconstrução e/ou realização das
expectativas dos indivíduos. E mais: o direito não pode furtar-se a essa tarefa.

Nas ciências naturais, os estudos e experimentos podem não ser conclusivos e


aguardar novos estudos futuros, até que se conceba uma solução para o problema estudado. O
direito não se pode dar o luxo disso. Precisa finalizar as contendas e determinar as condutas de
forma certa e propositiva, do contrário não alcançaria seu principal objetivo, que é realizar a
pacificação social.

Já dissemos que o direito não lida com a verdade (pretensão que só cabe às outras
ciências, mas não às sociais como gênero, ou ao direito, como espécie delas). Logo, a pretensão de
correção do direito é derivada da opinião, mas não da opinião meramente subjetiva, e sim da
opinião fundamentada que seja capaz de convencer o auditório, ou seja, o conjunto de indivíduos
que podem decidir sobre o direito (uma nova lei, uma decisão, uma nova política pública etc.).

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Diréé ito, sociéé dadéé éé políé tica

No ponto anterior foi dito que o objeto do direito, enquanto ciência, é a norma como ordem de
regulação. Contudo, disso não se pode inferir qual seja o conteúdo do direito. É nesse contexto que é possível
compreender o direito como fato social. Sua construção decorre de um conjunto de fatores sociais situados
no tempo e no espaço. Esses fatores delimitam o papel regulador do direito.

Com efeito, o conteúdo do direito está diretamente ligado a uma escolha. Saber se tal ou
qual ato (suprimir a vida de alguém, subtrair um objeto do domínio de uma pessoa, estar obrigado a
cumprir promessa, estar obrigado a pagar pelo sustento do filho, dever impostos etc.) é ou não é uma
questão jurídica decorre da análise do Ordenamento Jurídico, por certo, mas o ato de escolha sobre se
aquele ato deve ou não ser considerado jurídico e de que forma o direito vai regulá-lo está conectado
ora aos anseios da sociedade como um todo (raramente), ora aos interesses de grupos específicos ou de
parte da população diretamente interessada (frequentemente).

No passado, o reconhecimento da juridicidade das questões da vida não era muito claro.
Frequentemente havia uma indiferenciação entre o que era direito, o que era moral, o que era religião. É
o surgimento e consolidação do capitalismo que produzem essa especificação, essa transformação
qualitativa no direito. Como explica Allison Leandro Mascaro:
Em modos de produção primitivos, pré-capitalistas, o direito era muito similar a uma ação ocasional,
artesanal. Davam-se soluções para casos quaisquer de acordo com o poder, a força e as habilidades
individuais daquele que mandava, e tais soluções não se repetiam em outros casos parecidos. Além disso,
a moral e a religião jungiam sobremaneira os comportamentos. No capitalismo o procedimento
é diverso. O comércio, a exploração do trabalho mediante salário, a mercantilização das relações
sociais, tudo isso deu margem a um tratamento do direito como uma esfera social específica,
eminentemente técnica, independente da vontade ocasional das partes ou do julgador.
Com o capitalismo, o direito passa a ocupar um lugar específico no todo da vida social. A princípio,
ressalta aos olhos que essa instância jurídica é o local no qual um ente aparentemente distante de
todos os indivíduos, o Estado, se institucionaliza e passa a regular uma pluralidade de
comportamentos, atos e relações sociais. E, além disso, por detrás do Estado há determinadas
relações sociais necessárias que performam a própria estrutura jurídica. (Mascaro, A. L. Introdução
ao estudo do direito. 4ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2013. p. 3-4)

Assim, as escolhas que produzem o conteúdo do direito criam os condicionamentos sociais


necessários à realização de determinados interesses (que podem ser gerais, numa sociedade em que a
participação e poder da população se manifesta plenamente; ou específicos, quando os mecanismos
democráticos são inexistentes ou falhos), pautados, todos eles, entretanto, na manutenção da estrutura
social na qual está inserida o direito. Daí a principal função do direito, que é a regulação social, marcada,
como de resto todo o processo de interação social, por relações de poder, presta-se para organiza as
interações comportamentais sociais, dando-lhes pontos de apoio que garantem a prevenção e/ou
repressão de interações disruptivas e/ou desviantes, através da criação de padrões de vinculação que

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refletem o paradigma social. Esses padrões de vinculação criam direitos e deveres e, por consequência,
responsabilidades e pretensões.

Se o direito é instrumento do poder (e ele é, em última análise), ele está inegável e


profundamente ligado ao fenômeno político, ou seja, ao fenômeno que lida com a busca e manutenção
do poder (visto que é isto o objeto principal da política). A rigor, o direito é produto da política, afinal,
quem não possui poder político não pode criar direito, e só é direito aquilo que decorre de uma
competência juridicamente estabelecida por meio de escolhas políticas.

Mas vamos tentar entender uma dimensão da política pouco estudada no direito, mas
fundamental para se compreender a dinâmica entre ela e o direito. Um autor relevante do início do
século XX, por muito tempo deixado no ostracismo em razão de sua ligação com o nazismo alemão, mas
recentemente recuperado em razão da importância de sua teoria, propôs uma distinção importante
entre “o político” e “a política”. Trata-se de Carl Schmitt.

Para ele, “o político” representa o momento inicial de definição de um corpo político, a


decisão fundamental sobre como será construída a sociedade. E nesse momento, o principal aspecto é a
definição quanto a quem pertence ao corpo social a partir das características que esse corpo social
incorporará. Assim, “o político” é o momento da definição entre “nós” e “eles” (nós democracia; eles
ditadura; nós liberalismo econômico; eles economia planificada; nós pluralismo cultural; eles
intolerância e xonofobia etc., etc., etc.). É essa definição essencial o ponto de partida da história política
de uma sociedade (ou o ponto de recomeço, se pensarmos em processos revolucionários e mudanças
drásticas ocorridas ao longo da história).

Quando olhamos para nossa Constituição e lemos seus quatro primeiros artigos podemos
ter uma dimensão fática da tese de Schmitt (alerto que nossa Constituição não foi construída com base
nessa teoria, apenas estou propondo aqui um exercício de interpretação dos fatos à luz daquela teoria).
Nos mencionados artigos fica definido que somos Estado Democrático de Direito, República, Federação;
que nos baseamos na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo político, valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa; que a legitimação dos poderes públicos estabelecidos decorre do
povo, que é o verdadeiro titular do poder; que os poderes estabelecidos devem estar em harmonia e
consonância um com os outros, todos submetidos à constituição; que temos objetivos de redução e
extinção da pobreza, da discriminação, de ampliação da liberdade e da justiça; que nos relacionamos
com os outros Estados com base no respeito, na não intervenção, na proteção dos direitos humanos etc.

Tudo isso lança as bases da sociedade brasileira e não foram escolhas jurídicas, foram
escolhas políticas, posteriormente traduzidas em ordens jurídicas (normas). E é a partir desta base que
se constrói a atividade política (“a política”, na expressão de Schmitt). Logo, todas as instituições
(poderes estabelecidos e instrumentos de exercício do poder político) decorrem daquela escolha e
submetem-se às características daquelas escolhas.

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Dessa forma, num primeiro momento a política (“o político”), como momento de definição
da sociedade, cria o direito e o sujeita às suas escolhas. Posteriormente, o direito passa a sujeitar a
atividade política, ou seja, aos jogos de controle e troca de poder na sociedade. Por isso a atividade
política, embora possa modificar o direito (e frequentemente faça isso), essa modificação estará sempre
sujeita a parâmetros jurídicos essenciais (definidos pelo momento político primordial e convertido em
norma fundamental), e será, portanto, limitada.

Logo, o exercício da atividade política, sendo plenamente delimitada pelo direito, terá como
sede institucional sempre o Estado (será sempre “dentro” do Estado, a partir das estruturas criadas e
impostas do Estado, que política acontecerá, mesmo que parte dela seja decidida e definida fora
daquelas instâncias estatais, porque sempre dependerá da chancela legitimadora daquelas instâncias
estatais). E o objetivo da atividade política será sempre a busca pela transformação das relações e
instituições sociais ou pela manutenção destas (a depender das pretensões daqueles que detém o poder
ou que consegue convencer e impor sua vontade). Esse jogo será sempre construído através de
argumentação para convencer os demais interlocutores da arena política de forma a influenciar ou
definir a tomada de decisão. E por mais que pareçam irracionais as escolhas e disputas (ou brigas) no
jogo político, estará em questão sempre uma escolha racional ou um processo racional de escolha
(análise econômica, de interesses particulares contrapostos a interesses públicos etc.), apesar de, não
raro, sejam construídas paixões e utopias em torno de tais escolhas.

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Diréé ito, éé tica éé moral

Assim como o direito, a moral pretende estabelecer normas de conduta social. Então
precisamos entender a diferença entre esses dois fenômenos sociais. Como já foi dito, por muito tempo
direito e moral andaram de mãos dadas, às vezes de forma quase indiferenciada. Mas no final do século
XIX e início do XX houve um distanciamento entre essas duas esferas em razão da expansão do
positivismo jurídico de matriz normativista. Após a 2ª Guerra Mundial é possível identificar uma
aproximação entre esses dois fenômenos, pelas mãos dos positivistas éticos (pós-positivistas).

Antes vamos entender o conceito de moral: moral vem da palavra mores, que significa
costume. Então a moral está diretamente ligada a esse aspecto da vida social, aos costumes
compartilhados que induzem certa forma de dever, uma obrigação de conduta, pautada no
reconhecimento pelo indivíduo da obrigatoriedade desse costume. E tais costumes estão direitamente
ligados a valores, a uma noção de bem e de mal, de certo e de errado.

Uma palavra muito usada e confundida com moral é ética. Ética vem de ethos, que significa
forma de ser de um povo. Ambas – moral e ética – têm significados aproximados, mas não idênticos.
Enquanto a moral refere-se a um conjunto de convicções de uma pessoa, grupo ou sociedade sobre o
bem e o mal, a ética, no seu sentido filosófico, refere-se à parte da filosofia que reflete sobre as
condições de possibilidade do fenômeno moral. Assim, a ética é uma reflexão, uma especulação
filosófica sobre o sentido do bem e do mal e as suas formas de apresentação e concretização na
sociedade. Se a moral estabelece normas de conduta e comportamento baseadas no conceito de bem e
de mal da sociedade, a ética tenta entender o que é o bem, o que é o mal, o que é o certo, o que é o
errado, e quais as formas de agir dentro desses parâmetros.

A palavra ética é muitas vezes empregada também no sentido de deontologia, que se refere
ao conjunto de deveres baseados na noção de certo e errado estabelecido para determinada categoria.
Assim, a deontologia médica vai se referir ao código de ética dos médicos, a deontologia jurídica ao
código de ética dos advogados etc.

Mas quais são, afinal, as diferenças entre moral e direito? Podemos estabelecer pelo menos
seis diferenças marcantes. A primeira refere-se à finalidade. Enquanto a moral está ligada ao
aperfeiçoamento interno do indivíduo (que ao cumprir suas normas busca agir corretamente, de forma
boa), o direito busca apenas evitar conflitos sociais (não importa ao direito se respeitamos a propriedade
de outro porque achamos que isso é um bem, mas apenas que a respeitemos, independentemente da
motivação). Claro que, às vezes, a motivação interior do sujeito que pratica o ato fará diferença na
consequência jurídica dele (crime doloso – com intenção de praticá-lo – ou culposo – apenas com
imperícia, imprudência ou negligência –, por exemplo).

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A segunda diferença refere-se à fonte da qual emana cada uma dessas esferas normativas.
O direito, na atualidade, provém essencialmente do Estado, enquanto a moral tem múltiplas fontes:
autoridades morais e religiosas, grupos sociais etc. E disso decorre a terceira diferença, quanto ao
reconhecimento. Ao direito basta que haja validade formal para que seja obrigatório e para que as
consequências possam ser aplicadas. Já para a moral impor-se será preciso que o destinatário da norma
moral aceite-a, concorde com ela, acredite nela. Também relacionado com estas diferenças está a
sanção. No direito ela é formal e coercitiva (capaz de impor fisicamente as consequências previstas),
enquanto na moral ela é informal e não possui coerção física (salvo em casos extremos de seitas
religiosas de autoflagelação).

A quinta diferença é quanto ao conteúdo. O direito é amplo, trata de todas as esferas da


vida dos indivíduos, porque ele pretende organizar a vida em sociedade e preservá-la. Já a moral é
restrita a partes da vida dos indivíduos, e estabelece apenas princípios gerais de conduta. Daí também a
última diferença: o conhecimento das regras morais é fácil, o acesso a ele é simples. Já no direito, o
acesso é difícil e o conhecimento é complexo.

De qualquer sorte, tanto a moral influencia o direito quanto o direito influencia a moral. Ao
longo da história muitos modelos de relação entre eles foram propostos. Alguns são totalmente
desconsiderados hoje porque completamente irreais: a identificação do direito com a moral (ambas
possuindo o mesmo conteúdo), ou o reconhecimento do direito como mínimo ético (todo o conteúdo
jurídico é moral, mas o conteúdo moral é maior) ou da moral como mínimo jurídico (todo o conteúdo
moral é jurídico, mas o conteúdo jurídico é maior).

Os dois modelos mais referenciados e aceitos são: 1) a moral completamente separada do


direito, cada um contendo seu conteúdo próprio, sem inter-relação (pensamento típico do positivismo
normativista), ou 2) moral e direito representados como círculos secantes, nos quais cada campo tem
seu conteúdo próprio, mas há uma zona em que os conteúdos são compartilhados. Essa última é hoje a
representação mais aceita pelos juristas.

Mas é preciso destacar, contudo, que, na zona de interseção, tanto o direito gera valores
morais quanto a moral gera valores jurídicos. Exemplo do primeiro caso são todas as lutas por
reconhecimento e respeito de grupos maltratados e oprimidos (mulheres, trabalhadores, negros,
homossexuais etc.). Seus direitos tornam-se primeiro jurídicos para depois converterem-se em princípios
morais reconhecidos socialmente. Já no segundo caso é mais fácil entender o processo. Toda vez que
uma regra moral se torna de tal forma relevante para uma sociedade e importa na garantia da
organização social ela tende a se converter em direito (exemplo são as pensões devidas pelos pais aos
filhos, como forma de concretizar a obrigação moral de assistência à prole).

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O fundaméé nto do Diréé ito

Como o direito regula condutas sociais de forma obrigatória e decorre do poder – o


que significa que ele produz um impacto imenso na sociedade – ele precisa ser de alguma
forma justificado. É daí que surgem as teorias sobre o fundamento do direito.

Jusnaturalismo (Direito Natural)

A primeira e mais antiga das formas de justificação do direito é a chamada teoria


jusnaturalista ou teoria do direito natural. O mito fundador do direito natural é o relato literário
da tragédia Antígona, de Sófocles. Nela, a personagem que dá nome à tragédia, em
determinado momento da história narrada, insurge-se contra o rei, que tinha determinado a
proibição do sepultamento do irmão de Antígona (que tinha lutado para tornar-se rei) como
forma de punição pela rebelião e pela traição. Antígona tinha um senso de obrigação de garantir
o sepultamento do irmão por considerar isso um direito natural do irmão, ou seja, um direito
anterior e superior às normas do rei.

Antígona então informa ao Rei que reconhece sua autoridade, mas que, apesar dela,
não poderia cumprir a proibição porque havia uma lei maior do que ele e anterior a ele que
garantia o direito aos rituais fúnebres. E essa norma não podia ser modificada nem pelo Rei, a
quem também obrigava.

Essa é a ideia básica do direito natural: ele seria um plano jurídico diferente do
plano jurídico representado pelo direito criado pelos homens (ou seja, as teorias jusnaturalistas,
mesmo que de forma diversa, sempre reconhecerão a existência de dois planos normativos: um
produzido pelos homens e outro decorrente de uma força superior à vontade e desejo humano,
sendo este último um limitador e regulador daquele primeiro). Seria atemporal, inderrogável
pelos homens e de cumprimento obrigatório, limitando o poder de criação do direito dos
homens.

Ao longo da história do direito, pelo menos três formas de explicar o direito natural
existiram: um direito decorrente da natureza (na antiguidade clássica), um direito decorrente de
um Deus (na idade média) e um direito decorrente da razão humana (modernidade).

Na antiguidade clássica, reconhecia-se, como regra (visto que alguns filósofos


contrapunham-se a tais ideias), a existência de uma separação entre o direito criado pelo homem e
um direito etéreo, sempre existente, fruto do reconhecimento de certa forma de divindade na
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natureza. O homem, como parte dessa natureza, estaria, portanto, submetido às leis por ela
impostas. Vê-se reflexos dessa ordem de ideias, por exemplo, no pensamento de Platão, quando
estabelece o mundo das ideias como uma espécie de “cofre” onde estariam guardadas as ideias
perfeitas de todas as coisas existentes, cujo acesso só seria possível pela razão humana, o que
justifica a tese daquele autor a respeito da preferência pelo governo desenvolvido pelos indivíduos
capazes de “alcançar” esse tal mundo das ideias, porque a eles seria dado o privilégio de conhecer a
perfeição e a capacidade de tentar reproduzi-la na sociedade humana.

Séculos depois, já na idade média, a noção de natureza como divindade é


prontamente substituída pelo reconhecimento da divindade como entidade única e apartada da
natureza, criador desta e definidor desta e do direito natural que a organiza. Em Agostinho de
Hipona vemos um exemplo marcado desse deslocamento que, contudo, mantém a base do
pensamento jusnaturalista, reafirmando a ideia de duas ordens jurídicas, a dos homens e a de
Deus, estando aquela subordinada a esta.

A modernidade produz novamente um deslocamento do lugar do direito natural. O


iluminismo, como movimento teórico-filosófico principal da modernidade, reafirma o processo
de desqualificação da noção de Deus (tempos depois relegada a elemento completamente
estranho ao direito) e precisa reconstruir o pensamento jusnaturalista sobre outras bases.
Nesse momento, a razão humana torna-se o lugar do direito natural, não como instrumento de
capacitação do conhecimento do direito natural (como no pensamento de Platão, por exemplo),
mas como própria criadora ou definidora do direito natural.

Juspositivismo (Positivismo Jurídico)

A ideia básica do juspositivismo é quase tão antiga quanto a tese jusnaturalista. A


rigor, o primeiro registro de um pensamento compatível com o juspositivismo (embora não
possa ser classificado como propriamente juspositivista) encontra-se também na antiguidade
clássica, mas especificamente no pensamento sofista.

Os filósofos dessa corrente tornam-se relevantes no período grego de transformação da


sociedade grega, que substitui a imagem de herói como representação do ideal grego (indivíduo
especial, dotado de qualidade ímpares, inatas, capaz de mudar o curso da história pelos seus atos)
pela imagem de homem comum, comprometido com a construção da democracia. Nessa transição
os sofistas, professores de retórica destacam-se justamente por sua

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atividade, visto que o homem comum relevante é aquele capaz de participar ativamente nas
discussões públicas e de convencer seus iguais a concordar com eles.

Para os sofistas “o homem é a medida de todas as coisas” (célebre frase de


Protágoras), assim, não é possível aceitar a existência de um plano normativo diferente do
humano e superior a ele. Toda norma é criação humana. Não obstante essa origem remota, o
pensamento propriamente juspositivista inicia-se na modernidade. Também ele pode ser
dividido em três etapas: legalista (exegético), normativista e ético.

O positivismo legalista (também chamado exegético como referência à escola de


pensamento francesa de mesmo nome, desenvolvida na França pós-revolucionária), reconhecia
a existência apenas do plano normativo humano e equiparava a norma à lei, de forma que todo
o conteúdo ordenador do direito decorria da descoberta do sentido e alcance proposto pelo
legislador no texto da lei (ou decorrente da análise do erudito estudioso do direito na versão
alemã daquela doutrina).

Essa perspectiva reduz a dimensão do direito a simples identificação das relações


sintáticas presentes no texto e das vontades do legislador veiculadas pelo texto, limitando o
processo interpretativo a simples reprodução acrítica do texto legal (não é à toa que o juiz
naquele período, na França, era denominado juiz “boca-da-lei”).

O segundo momento da teoria juspositivista é chamado de normativista e conta


com a mais eminente figura jurídica do século XX como seu defensor – Hans Kelsen. O
positivismo normativista, tal qual o legalista-exegético, mantém a base do pensamento que
confronta o jusnaturalismo: negação da existência de dois planos normativos (um decorrente da
vontade humana e outro acima da vontade humana) e reconhecimento do direito como
fenômeno essencialmente humano (tudo que é direito o é pela vontade humana). Mas também
reconhece a possibilidade de múltiplos significados para a norma jurídica decorrente da
pluralidade de interpretações.

Kelsen, reproduzido depois por um sem número de juristas, dizia que a o direito
poderia ser entendido como ciência, em contraposição à sua dimensão puramente prescritiva e
ordenadora. E nesse âmbito (da ciência do direito), toda a construção teórica giraria em torno
do conceito de norma jurídica, como unidade de significação e objeto daquela ciência. Porém,
conceituar a norma significava essencialmente reconhecer sua função (ordenação social), sua
fundamentação (autoridade competente) e a cadeia de interligações entre as múltiplas normas
jurídicas (ordenamento organizado hierarquicamente), numa análise meramente formal do

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fenômeno normativo, desconectada das dimensões valorativas da experiência humana (moral,
ética, filosofia etc.). Assim, embora reconhecesse a pluralidade de significados da norma
(diferentemente da postura essencialmente legalista da fase anterior do positivismo), Kelsen via
esse âmbito do direito como externo à ciência jurídica propriamente dita e conectada a ela
apenas em razão da necessidade de cumprimento das relações lógicas entre as normas
(ordenação hierárquica).

O terceiro momento da teoria positivista do direito desenvolve-se pós 2ª Guerra


Mundial, e tenta resgatar para o direito e elemento ético perdido em razão da difusão das ideias
do positivismo normativista.

Assim, embora o pensamento positivista contemporâneo reconheça os avanços


produzidos pelo rigor técnico e teórico do pensamento kelseniano, identifica também uma
deficiência no que se refere à insistente tentativa de subtrair do direito o elemento valorativo
humano (axiológico). E a deficiência existe porque é impossível pensar o direito sem o elemento
moral e, também, porque seria indesejável, visto que poderia produzir aberrações e atrocidades
(como as perpetradas na 2ª Guerra, muitas delas justificadas pelo estrito cumprimento do
direito formalmente válido).

Dessa forma, o positivismo ético (por muitos chamados de pós-positivismo) mantém


a estrutura formal do pensamento positivista normativista, acrescido do reconhecimento de
que o direito, criado nesses moldes, decorre invariavelmente (e deve respeitar) os valores
sociais compartilhados.

Culturalismo e teoria tridimensional do direito

A terceira teoria de fundamentação do direito é uma crítica direta ao positivismo


jurídico e possui muitos pontos de aproximação com o pós-positivismo (juspositivismo ético),
tendo surgido antes daquele.

A tentativa aqui é de superar os pontos negativos das duas outras teorias


contrapostas (direito natural e positivismo jurídico), reconhecendo o direito como produto da
cultura humana, ou seja, como influenciado pelas e influenciador das (numa relação dialética)
muitas manifestações sócio-culturais humanas (religião, artes, moral etc.).

No Brasil, sua principal representação é construída pela teoria tridimensional do


direito, criada por Miguel Reale. Segundo essa teoria, o direito é o resultado de três dimensões:
fato, valor e norma. A dimensão fática refere-se ao mundo do ser, dos fatos sociais, a base para

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o direito (uma vez que ao direito importa regular comportamentos sociais existentes, e não
intenções e pensamentos). Essa dimensão é avaliada pelo conjunto de valores que a sociedade
compartilha (a dimensão axiológica, ou o mundo do “dever-ser”), que define a importância dos
fatos sociais para definir o que deve ser regulado e qual a amplitude da regulação. Disso
decorre a norma, da valoração dos fatos sociais que justificam as normas (dimensão normativa,
ou mundo do “querer-ser”).

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A norma juríé dica

“Norma” x “enunciado normativo” x “fonte normativa” x “lei” x “regra” x


“princípio”

Se o direito é um instrumento do poder, que reproduz, como forma jurídica, a forma social,
e busca regular condutas segundo estas formas sociais, ele precisa fazer isso através de algo: a NORMA.

As normas são as ferramentas do direito para regular as condutas e estabelecer sanções.


Como isso é feito? Através de enunciados (formas de expressar a norma), que são chamados enunciados
normativos (ou textos de norma). Onde estão esses enunciados? Dispostos de forma sistematizada nas
inúmeras fontes normativas válidas da sociedade (constituição, leis, decretos etc. – serão objeto de
estudo específico). Assim, as fontes normativas contêm enunciados normativos (os vários dispositivos da
constituição, os vários dispositivos das várias leis e códigos e outras fontes) que conterão as normas
jurídicas que regulam as condutas entendidas pelo direito como condutas relevantes.

A identificação da norma propriamente dita ocorre através da interpretação dos enunciados


normativos. Ela é, então, uma ordem, um comando imperativo dotado de poder coercitivo, decorrente
da interpretação de enunciados normativos inscritos em qualquer fonte normativa válida de uma
determinada sociedade.

O enunciado normativo, por sua vez, é o texto que enuncia a norma. E a norma decorre de um
processo de interpretação dos enunciados através do qual se constrói a norma (construir = identificar

+ criar). O enunciado normativo não é a norma em si, mas uma moldura para a norma. É ele que delimita
as múltiplas possibilidades interpretativas que gerarão a norma. Enunciado e norma estão totalmente
vinculados, mas eles não são a mesma coisa. Há enunciados que contém várias normas, há normas que
decorrem da interpretação de vários enunciados e há, ainda, enunciados que contém uma única norma,
que é a quase perfeita expressão do texto.

Podemos identificar dois tipos de norma. As regras e os princípios. Há uma enormidade de


teorias a respeito dessa dicotomia, que serão estudadas no futuro. Por ora é importante apenas entender que
as regras são comandos que descrevem objetivamente uma conduta e estabelecem uma consequência para
ela. São mandados de definição. Imputam um resultado a uma ação (é proibido matar e o resultado para o
descumprimento dessa ordem é a sujeição a uma pena privativa de liberdade especificada no enunciado).
Quase sempre decorrem do esquema “se A, então B deve ser”. Sua aplicação não permite gradações além
daquelas já estabelecidas no próprio conteúdo da norma (pena de 2 a 5 anos para determinado crime, por
exemplo... ou o sujeito cometeu o crime descrito e estará submetido à pena definida, dentro dos limites
estabelecidos, ou não cometeu o crime e não sofrerá sanção daquela regra).

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Por outro lado, os princípios também são comandos que determinam comportamentos, mas
não os descrevem propriamente. Ao contrário, descrevem o objetivo almejado ou o valor protegido,
estabelecendo uma ordem de agir ou não agir de forma a alcançar, na maior medida possível, aquele objetivo
ou de concretizar da maior forma possível o valor protegido. São chamados, por alguns autores, de mandados
de otimização porque determinam a construção/concretização daquele objetivo ou valor, no maior grau
possível. Por isso sua aplicação não pode ser dada da exata maneira da norma. Os princípios permitam
gradações, ponderações sobre se a atuação ou a não atuação de quem está obrigado a ele é ou não
compatível com o objetivo/valor que ele determina (é objetivo do Brasil construir uma sociedade livre, justa e
solidária – art. 3º, I, da Constituição Federal – e os poderes públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário –,
bem como o particular em alguma medida, devem estabelecer esforços para alcançar esse objetivo através
dos instrumentos disponíveis pelo ordenamento jurídico).

Todos estes conceitos, entretanto, giram em torno do conceito de norma, que é,


relembrando uma vez mais, um comando estatal decorrente da interpretação de um enunciado
normativo que estabelece condutas sociais.

Contrafaticidadé do diréito
Da análise do conceito de norma é possível extrair uma verdade curiosa. O direito tem um
caráter contrafático, ou seja, mesmo quando a realidade é contrária a ele, em permanece obrigatório e
aplicável. E isso pode ser entendido em quatro aspectos:

1) Permanência da validade e vigência da norma mesmo quando descumprida: numa


experiência das ciências da natureza, a não verificação de hipótese torna a lei científica
falha e ela será descartada ou modificada invariavelmente. Já no direito, o fato de os
indivíduos não cumprirem uma norma (não confirmarem essa norma) não torna a
norma jurídica inválida ou não vigente. Pelo contrário, o descumprimento da norma
pode revelar-se o verdadeiro reforço da vigência da norma, porque cria a justificativa
para a imposição, pelo Estado, das sanções previstas, como forma de reafirmar essa
validade e essa vigência.

2) Pretensão de modificação da realidade social: uma norma jurídica, de regra, estabelece


condutas obrigatórias, independentemente das práticas sociais e, não raro, justamente
para conter ou redirecionar as práticas sociais. É como se o direito “brigasse” com a
realidade para enquadrá-la (veja-se, por exemplo, a enormidade de leis que são
publicadas para tentar diminuir a criminalidade, ou seja, para fazer com que a realidade
se submeta ao direito).

3) Pretensão de manutenção da realidade social (contrafaticidade indiretra): no sentido


oposto ao aspecto anterior, mas com mesmo efeito, por vezes o direito presta-se a

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manter ou resgatar práticas ou ideias superadas pela sociedade, em razão do interesse
específico de grupos no poder. Exemplo disso são as muitas leis que surgem para
reafirmar privilégios ou condutas que socialmente não são mais desejadas ou mesmo
praticadas, mas que, para alguns grupos são interessantes (veja-se o caso do Código
Florestal, que, para a maioria da população, precisava ser mais protetor da natureza,
mas que, ao final, cedeu aos interesses fortes da chamada Bancada Ruralista, que
representa os produtores rurais e que não queria mais limitações no uso da
propriedade rural para ampliar a proteção ambiental).

4) Permanência da validade a despeito da lógica e do senso comum: o direito é repleto de


presunções que, muitas vezes, são contrárias ao senso comum ou à lógica. Veja-se, por
exemplo, a cerveja sem álcool, que possui uma quantidade mínima de álcool (e pela
lógica não poderia ser chamada “sem álcool”), ou os veículos não poluentes que, a
rigor, poluem dentro dos limites da lei e, por isso, são considerados “não poluentes”, ou
ainda os casos de presunção de homicídio na ausência de corpo e do respectivo laudo
de necropsia atestando a causa da morte, extraído de outros elementos e provas
presentes no processo.

Classificaçaã o das normas juríédicas


As normas jurídicas não são todas iguais, variando quanto a elementos de sua constituição
(destinatário, forma de prescrição, tipos de sanção etc.), daí ser possível estabelecer uma classificação
para identificar tais diferenças, lembrando que toda classificação é uma escolha epistemológica e
metodológica que quem a produz, e que, por isso, pode variar de autor para autor, não sendo isso
propriamente um erro, mas apenas uma abordagem diferente. Seguem algumas das mais importantes
classificações de normas jurídicas.

Quanto ao destinatário (ou seja, aqueles que serão submetidos à norma) teremos normas
gerais e individuais. As gerais serão direcionadas à coletividade ou a um número indeterminado e
indeterminável de sujeitos (a sociedade brasileira toda está submetida ao código civil, inclusive que irá
nascer e for brasileiro; todos os servidores públicos federais estão submetidos ao Estatuto da categoria,
e isso vale inclusive para os futuros servidores públicos). As individuais sujeitam uma única pessoa ou um
número determinado ou determinável de pessoas (sentenças judiciais, decretos de posse de autoridades
etc.).

Quanto à prescrição (ou seja, quanto ao tipo de ordem que emana da norma – não confundir
com a palavra prescrição no sentido de perda da pretensão de acionar o judiciário, que é aquele prazo limite
dado ao indivíduo ou ao Estado para buscar uma decisão judicial através de um processo) as normas podem
ser proibitivas, obrigacionais e permissivas (são os chamados operadores deônticos). A prescrição

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de proibição descreve uma conduta vedada e estabelece uma punição para sua prática (normas que
definem crimes, por exemplo); as obrigacionais descrevem uma conduta que deve ser cumprida pelos
destinatários e estabelece uma punição para a não realização da conduta (obrigação de votar, de pagar
impostos). Já as permissivas garantem uma prerrogativa ou liberalidade para o destinatário de forma que
ele possa fazer ou deixar de fazer algo sem que qualquer das suas ações possa gerar consequência
(normas definidoras de direitos fundamentais, por exemplo: ir e vir, liberdade de manifestação de
pensamento etc.).

Mas as permissivas podem também vir associadas a outras formas de prescrição: há


permissivas associadas a recomendações e associadas a obrigações. No primeiro caso (permissão +
recomendação) estaremos diante de uma norma que dá liberdade de agir ao sujeito, mas induz a que ele
atue de determinada forma que o Poder Público entende como mais desejável (é o caso das normas que
dão oportunidade de obter desconto para pagamento à vista de tributos: o devedor pode pagar
parcelado, mas se optar por pagar à vista pagará menos). No segundo caso (permissão + obrigação)
estaremos diante de uma norma que estabelece uma competência. Ao mesmo tempo em que autoriza o
sujeito a agir impõe a ele a obrigação de agir (um juiz quando toma posse recebe a autorização para dar
sentenças judiciais e a obrigação de cumprir essa função nos termos da lei).

Também podemos dividir as normas quanto ao modo de enunciação, ou seja, quanto ao


modo através do qual a norma será emitida para o destinatário. Serão escritas as normas apostas a um
suporte (papel, meio eletrônico etc.) através do uso da língua portuguesa (todas as normas presentes na
constituição, nas leis, nas sentenças escritas etc.). Serão verbais aquelas apenas faladas ou veiculadas
através da voz, mediante o uso da língua portuguesa (a ordem do guarda para que o sujeito saia do
carro, a voz de prisão etc.). E serão não-verbais aquelas veiculadas através de imagens e símbolos
(linguagem pictórica), como o semáforo, as placas de trânsito com símbolos apenas, as faixas de trânsito,
a identificação de uma preferência para gestante, idoso, deficiente etc., com os símbolos reconhecidos
desses grupos.

Outra forma de classificar a norma é quanto à sanção. Algumas normas não possuem sanção
porque não há razão de a sanção existir. Por exemplo, o artigo 22 da Constituição estabelece competências
legislativas para a União (o governo federal), mas não determina sanção para o fato de a União não legislar
sobre alguma daquelas hipóteses. Mas há ainda normas que deveriam ter sanção e, quando nas as tem são
chamadas pela doutrina de normas imperfeitas. Imagine uma norma proibitiva que não estabeleça nenhuma
punição. A chance de ela ser ignorada pela população é muito grande e não haverá qualquer forma de
exercer coação sobre o povo. Há sanções que são negativas, e essa é a maioria das previsões normativas,
porque definem punições para a ação ou omissão em desacordo com o estabelecido em lei (é proibido matar,
pena de x anos; é obrigado pagar impostos, multa de x reais pelo não pagamento). Essa punição é qualquer
restrição de direito. Há sanções que são positivas (premiais),

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porque estabelecem um benefício para o destinatário que age conforme a conduta ou comportamento
descrito pela norma de forma voluntária (desconto para pagamento à vista de tributos, folga no dia da
doação de sangue etc.). Esse benefício pode ser econômico ou meritório.

Quanto ao âmbito de aplicação (ou seja, à dimensão do universo de fatos aos quais se aplica a
norma, que se convertem em hipóteses nela previsto) teremos normas incondicionais, como as normas dos
Dez Mandamentos (não matarás, não cobiçarás etc.) que não possuem condições que as excluem, ou seja, o
indivíduo seria sempre obrigado a cumpri-las, independentemente das circunstâncias nas quais estivesse. São
também exemplos disso as normas constitucionais que determinam que o crime de racismo

é imprescritível (ou seja, nunca acabará o prazo para o Estado julgá-lo e puni-lo). Do outro lado teríamos
as normas condicionais (que refletem a maioria das normas presentes no ordenamento pátrio). Estas
normas estabelecem hipóteses (descrevem condutas), mas estão sujeitas a circunstâncias que, quando
ocorrem, impedem a imposição da sanção estabelecida para a conduta descrita. São exemplos as
excludentes de ilicitude, como a legítima defesa, por exemplo (alguém pode eventualmente matar uma
pessoa e não ser condenado por crime de homicídio por causa da legítima defesa).

Relativamente à consequência teremos normas que prescrevem conduta e normas que


prescrevem sanção. De um modo geral aparecem juntas, porque dependentes uma da outra (uma conduta
prescrita sem sanção designada não produz efeito) e não é possível a existência de norma de sanção sem
norma de conduta (imaginem uma norma assim: “pena de 01 a 02 anos”... não tem sentido!). As normas que
prescrevem conduta simplesmente descrevem ação ou omissão exigida ou proibida, enquanto as normas de
sanção estabelecem o resultado para a realização ou não realização da ação ou omissão prevista na norma de
conduta. Haverá normas que aparentam não estabelecer sanção porque a sanção estará implícita (é o caso
das normas de direito civil que estabelecem a invalidade de alguns atos
– casamento entre pai e filha, por exemplo – sendo a invalidade a própria sanção do ato).

As normas podem ser ainda, quanto à densidade, concretas e programáticas. As concretas


são objetivas e definem plenamente uma conduta (essa definição é muito parecida com a definição de
regras exposta no início do capítulo) delimitando a sanção específica para tal conduta (por isso possuem
alta densidade ou concretude). Já as programáticas estabelecem um projeto ou valor a ser alcançado,
cumprido ou concretizado, sem definir perfeitamente os instrumentos que serão usados para alcançar o
objetivo (essa definição se parece muito com a de princípio), por isso possuem baixa densidade ou
concretude.

Quanto à função da norma podemos dividi-las em dinâmicas e estáticas. As normas dinâmicas


são especificamente aquelas que estabelecem competências normativas, ou seja, instrumentos que garantem
a modificação do ordenamento (o legislativo só produz novas leis em substituição às antigas porque possui
competência normativa). Já as normas estáticas são aquelas que têm por finalidade

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estabelecer direitos e obrigações ou competências aos jurisdicionados (como as funções públicas: policial, juiz
etc.). Todas as normas que não estabelecem uma competência normativa têm função estática.

Por fim, podemos analisar o modo de aplicação, em razão do que as normas serão absolutas
(aplicadas num padrão binário – sim ou não) ou relativas (aplicadas de forma graduada). Exemplo: Se o
sujeito é menor de 16 anos será (invariavelmente) incapaz, de forma que as consequências dessa sua
condição trarão obrigatoriamente implicação pra suas ações. Se o sujeito é pai da moça ele não poderá casar-
se com ela. Por outro lado, quando estamos falando de indenização, ela será aferida de acordo com a
extensão do dano (portanto haverá maior ou menor extensão quanto maior ou menor for o dano).

Validade, vigência e eficácia da norma

A norma, para ser aplicada (imposta ao destinatário) precisa ter algumas características
específicas. São elas que identificarão se a norma é válida e vigente. E quando ela é efetivamente
aplicada ou reconhecida como obrigatória e cumprida pelo destinatário, podemos dizer que é eficaz.

A necessidade da verificação da validade da norma está diretamente ligada à identificação


da norma como norma jurídica propriamente dita. Toda norma é um comando que decorre da
interpretação de um enunciado normativo presente numa fonte normativa válida. Então é possível
entender a validade como uma característica relacional, uma comparação entre uma norma específica e
o conjunto de outras normas que compõe o ordenamento jurídico. Assim, a validade (chamada por
muitos de validade formal) refere-se à relação de pertencimento da norma ao ordenamento jurídico, e
essa condição é aferida pela verificação do cumprimento de requisitos estabelecidos por normas
hierarquicamente superiores àquela cuja verificação de pertencimento se analisa.

O primeiro teórico do direito a sistematizar esse conceito foi Hans Kelsen. Como ele entendia,
por ser um positivista normativista, que a norma era a única coisa que importava para o direito, ele construiu
um sistema de validade ligado à estrutura hierárquica do ordenamento. Assim, para Kelsen, a validade de
uma norma é aferida pela análise do cumprimento por esta norma dos requisitos (fundamentos) de validade
estabelecidos pela norma hierarquicamente superior. Como o ordenamento

é estruturado de forma hierárquica, podemos dizer que a norma de maior hierarquia (a Constituição no
caso do Brasil e das democracias constitucionais contemporâneas) define os principais fundamentos de
validade de todo o sistema (ordenamento) e os fundamentos específicos das fontes normativas
imediatamente abaixo delas, e estas os fundamentos de validade das seguintes, assim sucessivamente
até chegar ao nível mais baixo de fontes normativas do sistema normativo (os requisitos de validade são
cumulativos, ou seja, quanto mais baixo o nível da norma, mais requisitos de validade a norma terá,
porque estará submetida direita ou indiretamente aos requisitos de todos os níveis superiores a ela).

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E, para Kelsen, fundamento de validade está ligado diretamente à autoridade que produz a
norma e ao procedimento utilizado para tanto. Assim, será válida a norma que tenha sido emitida pela
autoridade designada pela norma superior, através do procedimento estabelecido pela norma superior.
Resumindo: os dois principais requisitos (ou critérios ou fundamentos) de validade são: 1) autoridade
competente e 2) procedimento adequado. Se qualquer um dos dois faltar, a norma que carecer de
qualquer deles será considerada inválida, o que significa dizer: será considerada como não pertencente
ao sistema jurídico daquela sociedade e impossibilitada de obrigar os cidadãos ou de gerar qualquer
efeito ou consequência na sociedade.

Na atualidade, os juristas identificam um terceiro requisito: 3) conteúdo não vedado. Isso


decorre do reconhecimento de que uma norma, ainda que emitida por uma autoridade competente
segundo o procedimento adequado não pode ferir os valores compartilhados pela sociedade que, de tão
importante, se tornaram também norma jurídica. Imaginem uma lei que determine que a mulher estará
proibida de usar roupas que exponham mais do que os tornozelos e o antebraço. Mesmo que tenha sido
produzida pelo Congresso Nacional seguindo os procedimentos estabelecidos na Constituição para Leis
ordinárias, ela será inválida porque fere a isonomia entre homem e mulher estabelecida pela
Constituição, além do direito de liberdade.

A vigência, a seu turno, não decorre de uma análise relacional entre normas, mas de uma
análise temporal (por isso que alguns autores chamam-na de validade temporal, o que pode confundir
porque a validade – que então deverá ser chamada de validade formal – não é a medida da vigência... Com
efeito, pode haver normas válidas e não vigentes – normas em período de vacatio legis, por exemplo

– porque a validade refere-se a critérios de pertencimento ao ordenamento enquanto a vigência refere-


se a tempo de obrigatoriedade da norma).

A vigência pode ser definida, então, como o lapso temporal ou período de tempo em que a
norma é obrigatória e está apta, portanto, a produzir efeitos. Também não é o tempo em que a norma
produz efeitos porque pode existir norma vigente que não produz efeitos porque a população não
cumpre a norma e o poder público não aplica sanções. É a diferença entre vigência e eficácia. Uma
norma é obrigatória quando a conduta descrita por ela é obrigatória e, portanto, a sanção definida na
norma pode ser aplicada àqueles que não realizam a conduta determinada ou realizam a conduta
proibida. Assim, se uma lei entrou em vigor ontem proibindo algo, quem pratica esse algo hoje cometeu
uma ilegalidade (praticou ato vedado na lei) e está sujeito à sanção. Mas pode ser que ele não sofra a
sanção (porque ninguém viu, porque ninguém processou, porque ninguém multou etc.). Assim essa
norma, que é válida e vigente, não foi eficaz porque a consequência por ela estabelecida para seu
descumprimento não foi aplicada.

Já a eficácia refere-se à produção efetiva de efeitos. No exemplo anterior, se o sujeito que


cometeu a ilegalidade for punido a norma terá sido eficaz porque a sanção por ela prevista pelo

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descumprimento foi aplicada. Ou, ainda, se depois da entrada em vigor da norma a população começar a
cumprir voluntariamente o que ela determina (proibição ou obrigação) ela também será eficaz, porque a
coação psicológica surtira efeito e produzirá uma mudança de comportamento na população. Assim
poderemos dizer que a norma válida e vigente é também eficaz.

Existe eficácia técnica, que se refere ao fato de o poder público possuir os instrumentos
para a verificação da conduta e imposição das sanções (Se a polícia militar em Barbacena não possuísse
bafômetro – quando isso ainda era exigido para aferir o nível de álcool no sangue – não poderia aplicar o
teste. Então as normas relativas a isso não teriam eficácia técnica) e eficácia social, que se refere ao grau
de comprometimento da população com o cumprimento da norma e o grau de aplicação de sanções
pelo seu descumprimento (assim, se uma norma não é cumprida pela população e o poder público não
pune, essa norma não regula comportamento e não tem, portanto, eficácia social).

Há ainda normas que possuem apenas eficácia jurídica (vale dizer que toda norma,
independentemente de possuir ou não eficácia técnica ou social, sempre terá eficácia jurídica, quando
válida e vigente): são as normas dependentes de regulamentação (dependem da atuação de alguma
outra esfera do poder público para garantir sua concretização – um decreto que regulamente uma lei,
uma lei que regulamente um direito constitucional etc.). Nesse caso, a norma não poderá produzir
efeitos, a não ser o efeito óbvio de revogar as normas anteriores que com ela contrastem, e o efeito de
gerar uma obrigação para o poder público de realizar a regulamentação, sob pena, às vezes, de ser
demandado em juízo para fazê-lo.

A norma perde a vigência quando é revogada. Isso faz com que ela não seja mais obrigatória
para os casos futuros. Mas não é tecnicamente adequado falar em perda de validade com a revogação.
Como a validade é um critério formal aferível uma única vez, com o nascimento da norma, ela não é
propriamente extinta com a revogação, na verdade ela torna-se exaurida, porque não há mais sentido de
se falar em norma valida quando ela já não é mais vigente.

Contudo, embora revogada, a norma continua a ser aplicada para solução dos fatos que
aconteceram enquanto ela era vigente (imaginem uma ação judicial de um contrato que foi assinado na
vigência de uma lei que já foi revogada... nesse caso o juiz decidirá a questão baseada na lei revogada
porque era ela que regulava o contrato quando ele surgiu). Se a norma perdesse a validade, significaria
que ela foi extirpada do sistema e não poderia produzir efeitos (o que acontece, por exemplo, quando
uma norma é julgada inconstitucional) e os efeitos que ela eventualmente produzisse deveriam ser
desfeitos (exemplo: se uma norma dá posse a pessoas para que ocupem cargos públicos e depois de
anos ela é reconhecida como inconstitucional – e, portanto, inválida já que não cumpriu os requisitos de
validade definidos na Constituição – todas as pessoas que viraram servidores públicos em decorrência
daquela norma deverão ser demitidas).

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Présunçaã o dé validadé das normas juríédicas
Quando um Projeto de Lei é votado e aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo
Presidente da República, torna-se uma Lei, que é promulgada e publicada (essas etapas serão vistas no
capítulo sobre técnica legislativa). Se não houver vacatio legis a Lei entrará em vigor imediatamente e
poderá produzir efeitos na sociedade. Diz-se então que ela é obrigatória.

Contudo, eventualmente sua validade pode ser questionada, mas isso só poderá ser feito pelas
vias jurisdicionais, ou seja, através de ação judicial. Dito de outro modo, todos os indivíduos estarão obrigados
e não poderão furtar-se de cumprir a norma regularmente publicada, sob pena de sanção. Assim, qualquer
discussão sobre a não aplicação da norma (que é uma discussão de mérito e abrange o questionamento a
respeito da não compatibilidade do ato à hipótese prevista na norma) ou sobre sua não adequação ao
ordenamento (que se refere a uma discussão formal sobre o não cumprimento dos requisitos de validade) só
1
poderá ser regularmente levantada pela via de ação judicial.

E é esse último aspecto, da obrigatoriedade de uso da via judicial para discussão da validade da
norma que encerra o que os juristas chamam de presunção de validade da norma. Qualquer norma, para ser
vigente, deve ser válida antes (normas que entraram em vigor, mas não são válidas serão, de regra,
expurgadas do ordenamento, sendo seus efeitos desfeitos por decisão judicial). E a entrada em vigor da
norma faz presumir sua validade e, portanto garante sua obrigatoriedade. Se assim não fosse, qualquer
indivíduo, a todo o momento, poderia deixar de cumprir qualquer norma sob a alegação de que sua validade
não foi verificada, por simples declaração particular. Isto transformaria a sociedade num caos e impediria que
o direito cumprisse seu objetivo principal, que é a organização e pacificação social.

Rétroatividadé é ultratividadé
As normas, quando entram em vigor, começam seu período de obrigatoriedade e deverão ser
aplicadas a todos os fatos posteriores a elas que realizam as condutas descritas pela referida norma. Da
mesma forma, quando revogada, a norma não pode mais aplicar-se aos fatos ocorridos posteriormente à sua
revogação. Contudo, é possível que os efeitos de uma norma jurídica sejam aplicados a fatos anteriores ao
início de sua vigência ou que estes efeitos persistam posteriormente à sua revogação. No primeiro caso
estamos falando do fenômeno da retroatividade e no segundo, da ultravidade.

A retroatividade é exceção, visto que a norma é produzida para gerar efeitos futuros. No caso do
ordenamento jurídico brasileiro, tal só poderá ocorrer por expressa determinação da norma posterior

1 Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu que órgãos administrativos autônomos poderiam
deixar de aplicar normas que considerassem inconstitucionais, mesmo quando ainda não houvesse ação judicial ou
decisão judicial a respeito da inconstitucionalidade (como o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Contas da
União). Contudo, esse entendimento é muito recente, diverso do entendimento anteriormente consolidado na
Corte, e, provavelmente, ainda será objeto de novas discussões no STF. Um de seus ministros (Alexandre de
Moraes), inclusive, pouco tempo depois daquela decisão, emitiu decisão monocrática contrária a tal entendimento
num caso que tratava das prerrogativas de um Tribunal de Contas Estadual.
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ou para beneficiar o réu no direito penal ou o responsável por obrigação tributária acessória (multa e
congêneres) no direito tributário.

De qualquer sorte, mesmo quando é permitida a retroatividade da norma por expressa


determinação legal ela não poderá agredir as garantias fundamentais constitucionais chamadas ato
jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da Constituição e artigo 6º da Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

O ato jurídico perfeito refere-se à relação jurídica concretizada e completa, apta a produzir
todos os efeitos segundo as normas vigentes ao tempo em que se concretizou. Por exemplo, um contrato
de compra, um testamento, um casamento. Imaginemos que depois de João casar-se com Maria sob o
regime de comunhão universal de bens, venha lei que retire a previsão de tal regime de bens do
Ordenamento brasileiro ou estabeleça uma condição não existente ao tempo do casamento de João com
Maria e que eles não cumpram. Nesse caso, independentemente da nova legislação, o casamento será
considerado plenamente válido e perfeito.

O direito adquirido refere-se à situação em que a lei preveja um direito para um indivíduo
que poderá ser fruído por ele tão logo cumpra determinadas exigências da lei. Cumpridas tais exigências,
o direito incorpora-se ao patrimônio do indivíduo, não podendo ser retirado nem mesmo por nova lei
que tenha mudado as condições de sua aquisição. Aqui o melhor exemplo é a aposentadoria. Se a lei
previr “x” anos de contribuição e “y” anos de idade, tão logo o sujeito tenha alcançado tais condições ele
poderá aposentar-se. Se ele não o fizer e, tempos depois, nova lei surgir transformando as condições em
“x + 8” e “y + 5”, ainda assim ele poderá aposentar-se porque já adquirira tal direito quando cumpriu os
requisitos anteriores, embora não tenha solicitado a aposentadoria. Vale registrar que enquanto o
indivíduo não tiver cumprido exatamente as condições previstas na lei ele possuirá apenas expectativa
de direito e sofrerá os reflexos das modificações da lei posterior.

A coisa julgada (ou caso julgado) refere-se à decisão da qual não caiba mais recurso.
Quando isso acontece não será possível rediscutir a decisão.

Todas essas garantias referem-se à concretização da segurança jurídica, ou seja, da


previsibilidade do direito.

Conflito dé normas no témpo


São três os critérios de solução de conflitos de normas no tempo.

O primeiro deles não envolve propriamente o elemento tempo. Trata-se do critério da


hierarquia. É o principal critério de solução de conflitos porque se baseia na estrutura do ordenamento
jurídico e determina que “normas hierarquicamente superiores revogam normas hierarquicamente
inferiores”. Assim, quando normas que disciplinem a mesma matéria de forma conflitante não estiverem
no mesmo plano hierárquico, a maior revogará a menor, mesmo que seja mais antiga.

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O segundo critério, chamado propriamente de cronológico, determina que normas posteriores
revogam normas anteriores. Assim, se uma norma nova disciplina de forma diversa assunto tratado por
norma antiga, se elas estão na mesa ordem hierárquica, a mais recente revogará a mais antiga.

O terceiro critério, chamado critério da especialidade, estabelece uma relação diversa das
anteriores. Por ele, uma norma geral que traga disposições sobre o mesmo assunto que possam ser
compatibilizadas com outra norma especial que trate do mesmo tema não irá revogar esta. Da mesma
forma, uma norma especial que traga disposições sobre o mesmo assunto que possam ser
compatibilizadas com outra norma geral que trate do mesmo tema não irá revogar esta. Por norma geral
entende-se uma norma que discipline uma matéria de forma ampla, sem tecer minúcias sobre o tema, e
uma norma especial é aquela que traz disposições minuciosas sobre determinado tema.

Nesse último critério a revogação só terá lugar quando não seja possível compatibilizar as
disposições entre a norma geral e a especial. Nesse caso, a maioria da doutrina e da jurisprudência
concorda que a prevalência seja dada à norma especial como regra, embora seja sempre possível, no
caso concreto, verificar-se a pertinência de manter a norma geral em detrimento da norma especial.

Bibliografia para éé studo

ABBOUD, Georges; CARNIO, Herinque Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução à teoria e à
filosofia do direito. São Paulo: RT, 2013.
BITTAR, Eduardo C. B. Introdução ao estudo do direito: humanismo democracia e justiça. São Paulo:
Saraiva, 2018.
DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 7ª Ed. São Paulo: RT, 2016.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução ao Estudo do Direito. 23ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 7ª Ed. São
Paulo: Atlas, 2013.
MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 36ª ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2014.
NIÑO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002.

WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito. (03 volumes). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2002.

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