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A HORA DA STELLA

NO CERRAR DOS LÁBIOS, OLHOS IRÃO FALAR

Anna Paula Silva Santos


Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, SE, Brasil

Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é
que faz conteúdo. Escrevo, portanto [...] por motivo grave de "força maior", como se diz nos
requerimentos oficiais, por "força de lei". Sim, minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias
soltas, pois eu também sou ó escuro da noite.
(LISPECTOR, 1993, p. 32)

Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais rosto.
Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo:
é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis.
Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever
(FOUCAULT, 1995, p. 20).

Um filme, um método e uma conversa entre olhares. Tecer uma investigação sobre
imagens requer, num primeiro momento, abertura, e esta, no sentido aqui pretendido, se
apresenta como dispendiosa e é, por diversas vezes, atravessada pelas inúmeras defesas de
conservação que nos compõem. Aqui, investigar imagens trata-se de estar aberto aos
provocamentos do campo, da cena, à dupla afetação de olhar e ser olhado, empenhando-se numa
grande recusa ao papel de investigador-especialista, buscando partir ao encontro das imagens e
narrativas num movimento de entrega que abarque intensidade nos vínculos, nos laços
articulados por esse exercício de imersão prolongada que compõe a tela e etnografia de tela, “o
estar lá e escrever aqui”.

Não se trata de produzir justificativas e explicações para o que está lá, em cena, não há
teoria capaz de explicar o campo, dizer sobre ou para ele. O campo é que será o motor condutor-
provocador de questões; a teoria, os conhecimentos de/sobre algo nos servem apenas como
aparatos, como instrumentos que entrarão na composição das ações, desse movimento de
estranhar e problematizar uma realidade certa, sempre única e naturalizada. Trata-se de uma
busca pelo diferente, pelo raro.

As diferenças são constitutivas dos processos, das relações; são mobilizadoras de forças
capazes de subverter caminhos postulados e rasgar com o instituído quando este aparece como
redutor dos possíveis modos de operar e existir no espaço. Acreditando, então, que um caminho
errado ocorre quando estabelecemos a unicidade como regra para caminhar, vale pontuar que o

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caminho que aqui será percorrido é apenas um entre a infinidade de caminhos possíveis para
essa multiplicidade inerente as imagens, a este vasto campo que brota na tela, do qual não se
pode caminhar em direção a uma única verdade.

Ser livre não significa não acreditar em nada: significa é acreditar em muitas coisas –
demasiadas para a comodidade espiritual de obediência cega, significa estar consciente de que
há demasiadas crenças igualmente importantes e convincentes para a adoção de uma atitude
descuidada ou niilista ante a tarefa da escolha responsável entre elas; e saber que nenhuma
escolha deixaria o escolhedor livre da responsabilidade pelas suas consequências – e que,
assim, ter escolhido não significa ter determinado a matéria da escolha de uma vez por todas,
nem o direito de botar sua consciência para descansar (BAUMAN, 1998, p. 295).

Pensar numa trajetória que siga na contramão das formas prontas, arquitetadas para
serem tomadas como modo uno e certo de ser e existir no campo da vida, tomando assim a
escrita como forma de resistência, como ferramenta para produzir uma história que abarque os
diferentes modos de subjetivação (FOUCAULT, 1982) pode gerar incômodo, uma vez que a
problemática nos diz respeito, nos coloca em pauta, em questão. Portanto, montar uma narrativa
histórica em termos de uma genealogia, constitui-se num grande desafio, em fazer uma análise
investigativa que seja capaz de embrenhar sujeitos e campo como elementos entrelaçados e de
mútua afetação.

Não se trata de buscar um mito de origem, um real humano; o olhar genealógico se opõe
à busca de uma verdade dita precursora; aqui, a questão não se reduz numa caçada pelas bases
que fundamentam a natureza do ser, não se pretende descobrir ‘quem somos’, ‘quem é Stella’,
parafraseando com o filme que será aqui analisado; mas de embarcar na contramão dessa
questão. Busca-se, pelo contrário, a alteridade, a dispersão, os “por acasos” e acidentes. Tomar
o caminho genealógico implica, portanto, no comprometimento com a singularidade e a
processualidade das experiências, numa busca por (des)enredar as linhas de força dispostas
pelos modos de subjetivação, definidores e cerceadores do humano enquanto sujeito, da Stella
enquanto criança (REVEL, 2005).

Desse modo, tendo em vista que, aqui, interessa falar da recusa dessa prévia instituída,
isto é, da força que por hora se exerce e se faz potente, e, assim, pensar estratégias para romper
com tais modos que preexistem e se naturalizam dentro do campo social, e no que tange a esta
empreitada, mais especificamente, nas culturas e identidades infantis, caminharemos em
diálogo com a noção de poder; ora, “onde há poder, há resistência” (FOUCAULT, 1985) e, já
se faz notar que, onde há resistência, há possibilidade de subversão.

Seria, portanto, como ir atrás de uma espécie de “Hora da Estrela” aproveitando o título
da obra de Clarice Lispector (1993) para tecer, aqui, uma metáfora ante o despontar de modos

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de reexistir. Ora, no percurso deste romance, Macabéa, personagem da obra, só ganha destaque
perto da hora de sua morte, evento que provoca rupturas no campo, choca, desvela atenção; um
paralelo pode ser feito com a resistência, exatamente, neste ponto: a resistência se faz presente,
coextensiva e contemporânea, necessariamente onde há poder, e, na medida em que essa se dá,
em geral, silenciosa, invisível, nas falhas e pelas entrelinhas; ao brotar do interior daquele,
alcança sua hora da estrela, quando de alguma maneira, encontra brechas para escapar dos
dispositivos hegemônicos de classificação, identificação e normalização, e, assim, chacoalha,
subverte-os, ganhando voz e destaque perto da hora da morte do velho, hora infante, nascente,
inaugurando um novo diagrama de poder (REVEL, 2005).

Aqui, a tentativa se faz justamente nessa direção: em diálogo com o filme Stella de
Sylvie Verheyde (2008) almejar a Hora da Estrela ou melhor, ‘a Hora da Stella’. Este elo vem
expresso, conforme dito anteriormente, através da noção de resistência, que nos comunica um
compromisso com linhas de fuga, com pontos de inversão, com estados limítrofes capazes de
proporcionar um verdadeiro abalo sísmico entre o “lá e o aqui”.

Trata-se de um encontro entre mundos: da arte e sua linguagem abstrata, cores, sons e
silêncios com as teorias, discursos e práticas que nos constituem e falam sobre e através de nós;
há uma troca de olhares – o olhar dos personagens, o olho câmera e nossos olhares – um
encontro com experiências originárias, com certos modos de reexistir na vida, raridades que
movem os sentidos e confrontam saberes já estabelecidos.

Nesse exercício, caminharemos com Stella, que vocifera e vaza a tela, nos convidando
a habitar seus diversos mundos, partilhando uma releitura viva acerca dos modos de viver, nos
convocando a pensar uma nova estética de si, fomentando desconfortos necessários à abertura
para construção de um território de experimentação ética e política que nos permita a
composição de novos olhares.

O objetivo do presente texto, portanto, é desenhar, em parceria com o filme, novos


mapas de vida, novas formas de mapear a infância, numa tentativa de trabalhar algumas
questões movidas pelo encontro com a tela, buscando uma análise que recuse a tentação do uno
da realidade e almeje seu plural, a alteridade. Buscar-se-á fugir da dicotomização das
possiblidades que produzem caminhos pautados no certo x errado; bem x mal; selvagem x
educado; na criança faltante x na criança agente; para que desse modo se possa compor novos
formas de atenção, talvez novos saberes, e até mesmo uma nova linguagem, rumo a um
movimento ético-político que propicie terreno fértil e aberto a (re)invenção ou nova arte de si.

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Para dar vida ao objetivo que busca, a partir de Stella, a criança protagonista das cenas,
analisar o desenrolar de imagens e narrativas que desestabilizem as verdades em nós
conservadas, os saberes-poderes que dizem o que é “a” infância, aqui, interessa como recurso
metodológico a “etnografia de tela” (RIAL apud BALESTRIN e SOARES, 2012 p.89).

A tentativa é sair da dicotomia pesquisador X objeto de estudo, pondo em exercício a


produção de um conhecimento atravessado por um encontro de afetação recíproca, isto é, onde
não só o que se vê, mas quem vê sai transformado; buscando, desta forma, tecer análises e
leituras, que pluralizem sentidos acerca dos modos de ser infante no mundo. Trata-se de assumir
um novo exercício diante da proposta etnográfica, encarando-a como um processo de
observação incessante e participante que transforma tanto os protagonistas da trama quanto o
próprio espectador, “quem vê e o que se vê” (BALESTRIN e SOARES, 2012). Em outros
termos, diz de um processo de experimentação.

Não há, pois, exclusiva e unicamente, um sujeito agente e um objeto passivo de análise.
São transformados, não apenas o que se vê e se faz formalmente objeto, mas também aquele
que observa; devemos, aqui, encarar o processo como resultado dos encontros e trocas,
facilitados por meio das relações entre sujeito e objeto, tendo sempre a clareza de que, nesta
equação relacional, não há papéis fixos, não há estabilidade, todos os elementos aqui envolvidos
são passíveis de transformação e capazes de inverter/subverter a lógica atuante.

As imagens cinematográficas falam; e, elas falam muito mais do que através de palavras,
dizem pelo corpo, através do olhar; e, para conhecê-las, faz-se necessário colocar-se em
condição de experiência, em ater-se a uma espécie de “atenção flutuante” (KASTRUP, 2007),
de uma escuta que vá ao encontro das “falas dispersas”, dos ditos e atos que fogem o roteiro a
ponto de explodir, irromper, vociferar. Sim, porque o que estes desvelam compõem
singularidades e sensações intempestivas, e, por vezes, humanamente desconfortáveis. Refere-
se, portanto, em assumir um compromisso com a condição de ser afetado, que não se perca ou
se agarre nas informações trazidas pelas palavras, pelos discursos, jogos de verdade; que não
se limite, portanto, à produção de caminhos pelos pares certo/errado, útil/inútil, mas que seja e
convoque presença e abertura às diferenças.

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A Tessitura de Si pela via do Encontro

O que será que me dá / Que me bole por dentro, será que me dá/ Que brota à flor da pele, será
que me dá/ E que me sobe às faces e me faz corar/ E que me salta aos olhos a me atraiçoar/ E
que me aperta o peito e me faz confessar/ O que não tem mais jeito de dissimular/ E que nem é
direito ninguém recusar/ E que me faz mendigo, me faz suplicar/ O que não tem medida, nem
nunca terá/ O que não tem remédio, nem nunca terá/ O que não tem receita
(CHICO BUARQUE, 1989).

“A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior, e não há uma


palavra que a signifique [...] trata-se de livro inacabado, que exige a participação do outro
para continuá-la”
(LISPECTOR, 1993, p. 11)

“Não sabemos da alma senão da nossa; as dos outros são olhares, são gestos, são
palavras, com a suposição de qualquer semelhança no fundo” (FERNANDO PESSOA, 1955).
Afetar e deixar-se ser afetado pelo encontro. Eis o pré-requisito para mergulharmos em campo:
uma entrega sem defesas, trocas sem quantificações, disformes, sem formalizações, efetuadas
mais pelo fluxo contínuo e móvel de intensidades produtoras de afetações. Eis a condição prévia
para ouvir o que o olhar balbuciador de Stella tem a dizer, para experimentar os mundos de
Stella. Por balbuciador, entende-se um discurso que revolve resíduos intraduzíveis, não
capturados, que não se deixam caducar pelos termos essencializadores da língua-mãe, do
idioma; visando, através da afirmatividade dessa fala disjuntiva do balbucio, compor os
sentidos que se perdem na construção de imagens-clichês e estéreis daquela que aparece como
estrangeira – a infância –, para tecer uma compreensão que se volte ao ato de criação, tateando
o estranho, o ‘de fora’ sem a solidez do nosso mundo, sem a rigidez que compõe o nosso olhar-
razão.

Esse olhar-razão envolve os projetos tradicionais para o Mundo Infantil, projetos que
tomam as crianças como seres ainda inadaptados, como foco principal de atenção, como aqueles
que não se adequam a forma, ao instituído e que nessa condição de ser-discrepante provocam
fissuras ante as normas sociais. É o olhar que perpassa e veste o processo de socialização do
infantil e o situa como alvo de modelagem passiva e passível de interesses certos e imposições.
Aqui, retira-se da infância qualquer possibilidade de operar como ser agenciador de si (PIRES,
2010).

Trata-se de uma questão moral, de um projeto moral que substitui o se fazer pelo ser
feito, que descasca as diferenças uma a uma até gerar padrões. “Nós, homens do conhecimento,
não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos – e não sem motivo. Nunca nos

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procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?” (NIETZSCHE, 2009,
p. 2). Não nos procuramos; ao contrário, nos deleitamos com plena confiança no conhecimento
e na crença em seus feitos, calamos nossa avidez, nossa sede, nossa fome de vivências. Vive-
se a e na ausência, como seres sempre ausentes na experiência, presentes apenas na busca
incessante por objetivos que se estruturam e dão corpo a uma espécie de simulacro da vida
(NIETZSCHE, 2009).

Assumir, entretanto, uma postura crítica diante desses valores regidos pela moral;
colocar em pauta de análise o valor com o qual se veste tais valores morais, exige força maior,
força que consiga se contrapor “a tudo que até agora foi celebrado na terra como moral”
(NIETZSCHE, 2009, p. 3), a essa matriz de conhecimento tal qual até hoje nunca existiu, nem
nunca foi tão desejada E é diante desse projeto, desse fluxo fiel a produção de um alicerce de
verdades, onde se tomam tais valores como dados, inquestionáveis, ilesos a qualquer sombra
de dúvida – onde não há hesitação alguma em atribuir ao bom o valor mais elevado e ao certo
o padrão a ser mantido, cultivado e promovido, o único caminho útil e de fecunda influência
para sociedade – é que impetuosa irrompe a cena Stella (NIETZSCHE, 2009).

Ela, protagonista do filme, coloca-se à desserviço desse projeto moral, borra com o
roteiro previsto pelas instituições ditas primordiais à infância, pondo elementos de saber e
lugares de poder em cheque, e isso nos é caro. A lógica que perpassa tais espaços engloba certos
preceitos e práticas, e, com essas Stella dança. Seus olhares, em silêncio, colocam em evidência
um modo de reexistir no mundo que destoa, um modo inventivo-adaptativo, o qual, por diversas
vezes, é lido como vergonhoso, periculoso e selvagem porque fere com o normal desejado, com
os padrões decisivos para um “bom” funcionamento e desenvolvimento de uma criança, de uma
criação que sirva aos padrões essenciais ao apequenamento da infância à índice do mundo
adulto.

Stella dança. Stella dança com o corpo. Stella dança com o olhar. A abertura do filme
começa com a dança de Stella; a câmera, inicialmente, nos fornece poucas pistas do espaço em
que a dança acontece; a música ‘Love me baby’, bem como a distribuição das luzes, sua roupa
repleta de lantejoulas cor rosa choque e uma maquiagem bem marcada contribuem para
direcionar a atenção para ela, o filme acaba de iniciar, mas parece já deixar uma mensagem: o
foco é Stella, o corpo de Stella, e, seu olhar tem algo a falar, ou melhor, seu silêncio tem algo a
desdizer.

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A entrada do filme dá seguimento cruzando a dança com outros jogos de imagens-
movimento, filmando, ao som da mesma canção, os diferentes espaços (metrô – bar – escola)
que irão acompanhar a trama, compondo os mundos de Stella, espaços que ela experiencia em
seu dia-dia, espaços que, em sua alteridade, dizem respeito aos discursos e práticas que os
permeiam, ora convergindo, ora divergindo entre si: 1. Stella no metrô – aqui, a câmera foca,
num primeiro momento, apenas nela, sentada, olhar fixo, sozinha; em seguida, a filmagem é
feita do ponto de vista da atriz: o que ela avista? _Multidão, desconhecidos, apenas uma porção
de adultos subindo e descendo as escadas, num fluxo contínuo; mas, sem se notar, sem se afetar,
continuava ela sozinha.

No curso das interações da vida cotidiana, o contato operado pelos olhos é infinitamente frágil.
A reciprocidade baseia-se num fio precário que geralmente não tarda a romper-se: um ou outro
[…] frequentemente os dois ao mesmo tempo, desvia o olhar e segue seu caminho. A interação,
que repousa em nossas sociedades ocidentais […] exige que o olhar não se detenha sobre
nenhum ponto, para que ninguém sinta o peso de sua insistência […para que] nenhuma troca
[seja] iniciada [experienciada] (BRETON, 2009, p. 217-218).

Dando sequência, a segunda cena dá apenas meros sinais que parecem querer descrever
o lugar: 2. Bar – a câmera filma o espaço sem a presença de Stella, foca, inicialmente, num
homem que fuma, volta à Stella, e, numa troca rápida, retorna ao lugar, mostrando mais adultos,
focalizando bebidas, cigarros, mesa de bilhar e mais adultos. A terceira cena, de cara, logo
destoa das demais: 3. Escola: a câmera, aqui, acompanha Stella ao fundo, caminhando em
direção a uma nova multidão, agora de crianças, em seguida foca nela e contrasta com as demais
crianças situadas de costas para ela; novamente meio deslocada, meio estrangeira, novamente
sozinha.

Stella: Não tenho muito contato com os outros. Não olho pra eles e eles não me
olham.

As cenas descritas nos convidam a pensar sobre solidão, sobre essa sensação que
transpassa os espaços, ainda que estes estejam/sejam repletos de pessoas. Mas seria a solidão
um aspecto sempre negativo? Acompanharia, aqui, a solidão aquela mesma noção de um
‘algo/alguém faltante”? Seria solidão um vazio? O filme parece nos convidar a pensar em
solidão; entretanto, numa solidão como espécie de motor agenciador de encontros,
(des)caminhos, uma solidão que, por sua vez, se for ao encontro da noção de vazio, será pelo
sentido que nos traz Manoel de Barros (2011), onde os vazios são maiores do que o cheio e até
infinitos. “Sim, minha força está na solidão” (LISPECTOR, 1993, p. 32); se aqui a tarefa, como

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já foi dito, exige força maior, fala-se, pois, de solidão nesse sentido. A força de Stella transborda
a todo momento de sua solidão, balbuciando através de seus olhares – sensações, intensidades
afetivas intempestivas que sobrepujam as práticas e discursos –, gerando possibilidades pela
abertura de novos encontros, novas janelas, novas formas de povoar o mundo.

Nos Mundos de Stella e nas vidas que neles habitam, as pessoas, esses seres ambulantes
e relacionais os quais, ainda que atravessados por linhas de normalização e controle de si,
apresentam sempre a possibilidade de tomar outros rumos, traçar rotas de fuga constituídas pelo
encontro com o inusitado, estabelecidas a sorte dos acasos. Dessa forma, dois mundos vestidos
de instituições têm suas estruturas sacodidas e desestabilizadas no filme: a família e escola; e,
importa dizer que, talvez, sem a desestabilização desses lugares de saberes-poderes os encontros
ali produzidos não fossem possíveis.

Um lar é um encontro ao acaso no meio de um bar

A família, peça chave no processo de socialização, primeiramente em condição de


espaço, assiste o transfigurar do lar em bar, onde uma pequena troca de consoantes, que pouco
causa a palavra, promove ao campo e aos diversos olhares que os tocam e se tocam através dele
uma enorme fissura, onde vazam afetos e estranhamentos. O olho câmera ao invadir o espaço
bar quer conduzir a atenção a um mar de provocações; parece querer testar o telespectador,
como se esperasse assistir suas reações faciais, os resquícios dos sentimentos que sobrepujam
a pele; como se quisesse brincar, até mesmo caçoar com certas conservas enrijecidas. É um lar
ou é um bar? É um bar. É um lar. E assim, a pretendida imagem cristalizada de família, àquela
que se pode retratar num porta-retratos de bela moldura, vai sendo pelo mover da câmera
pulverizada. Ela peca, fere com os estimados objetivos clichês de cuidado e proteção para com
menina Stella.

Stella: Eles têm cara de criança. Devem ir pra cama às oito e meia sem
ver TV. São do tipo protegidos. Não sou assim.

É na passagem para o século XVII que surge essa criança como nova categoria social.
Certas práticas divisoras aqui começam a instaurar, entre o mundo da criança e do adulto,
diferenças responsáveis pela introdução de distinções claras entre as estratégias e discursos do
entorno desses dois atores sociais, agora bem definidos e classificados. O antes ‘adulto em
miniatura’ tem destacadas as características como: vulnerabilidade, fraqueza e inocência, ou
seja, nasce agora um ser que urge por cuidados, educação e atenção diferencial.

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Mas na contramão desta noção tem-se o desenrolar da trama, onde a todo momento que
Stella entra em cena, desestabiliza com uma série de crenças ao redor da infância, coloca em
cheque esse território infantil que floresceu na modernidade e deu corpo a essa infância
acoplada a ideia de ser faltante, ser que carece de suprimentos e cuidados, que carece,
verdadeiramente, de ser, de “ser alguém na vida”, de ser feito de acordo com objetivos vários
e bem definidos. Aqui, entre as plurais modalidades de governo de conduta: políticas – Estado
e Polícia – e não-políticas, tanto aquelas de especialistas (escola) quanto as ‘naturais’, a família,
questão do atual tópico; surgem no sentido de dar forma e homogeneizar a relação do Eu
consigo e do Eu com o Outro, em nome da ordem e do bem-estar social (FOUCAULT, 1982).

O comumente chamado jeito certo de narrar uma história da infância, trata-se, por sua
vez, da narração de uma história do Diferente, “onde a criança é o outro em relação aos demais;
o outro, no sentido da exceção entre os outros [um estrangeiro, um estranho]” (CORAZZA,
2004, p. 151).“As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens
que não entendem nossa língua” (LARROSA, 2006, p.183) – esses seres primitivos que
precisam ser educados, disciplinados, civilizados, tornados adultos (à semelhança dos
europeus), os quais abarcam possibilidades imprevistas – constituem obstáculos para a
manutenção de uma sociedade harmônica e bem estruturada. Essa estrangeiridade é
ameaçadora, e, por isso, precisa ter sua ‘natureza’ domada. Assim, as crianças parecem surgir
desse movimento de necessidade de preservação da ordem social, do medo do desconhecido.
Por essa via de pensamento então, Stella, teria surgido do pleno caos, da quebra do roteiro,
como uma criança que nasceu de uma receita familiar que não deu certo, que não se enquadrou
nos padrões previstos para a composição do espaço perfeitamente desenhado para chamar de
lar.

É por isso que a chegada de um estranho tem o impacto de um terremoto… O estranho despedaça
a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as
suposições locais – e, desse modo […] desafia o propósito dos esforços de organização […]
desafia a própria possibilidade de esforços eficientes (BAUMAN, 1998, p. 17).

Os cuidados, atitudes, normas e regras de conduta para com a criança, como também, o
esboço, dentro do vasto campo de possibilidades, de um limite para a ação não estão presentes
para Stella apesar de serem defendidos como fundamental ao modelo infantil. Na trama, esse
mundo é posto ao avesso; rodeada por bebidas alcóolicas, palavrões, cigarros, jogos, sem
alguém para controlar sua alimentação/hora de dormir ou quaisquer decisões; num “mundo
adulto”, sem os pudores, sem as ditas devidas restrições:

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Stella: Moro em cima de um bar, por isso tenho vários colegas... são
vagabundos, bêbados.

Stella: Fazer as coisas como se deve não é comigo e não são meus pais
que vão me ajudar.

Na Idade Média, período em que se desenvolveu a sociedade feudal, a noção de criança


e infância, não se faziam fortes e nem se quer presentes. “A arte medieval desconhecia a
infância ou não tentava representá-la. […] [E o que] É mais provável [é] que não houvesse lugar
para a infância neste mundo” (ARIÈS, 1981, p. 17). Nada mais era que um adulto em miniatura,
que se situava no meio relacional assim como qualquer outro, integrando processos e realizando
práticas produtivas sem estar envolvido por nenhuma condição ou olhar especial. Assim é
Stella, tão logo desvinculada de sua família, habitando o mundo adulto, misturando-se sem
grandes problemáticas ou distinções.

Podemos rapidamente capturar, lançar um olhar rotulado à Stella, desenhá-la como ‘o


fruto de uma instituição família falida’, ‘a menina fadada a dar errado na vida’. Mas se
pinçarmos uma imagem considerando as singularidades de sua micro-história, poderemos dar
vazão, abertura para as múltiplas faces e potencialidades de Stella. Trata-se de tomá-la como
agente ativa, criativa, produtora e produto de transformações constantes e não mero substrato
de inscrição. A tentativa aqui é de fomentar um platô coletivo de análise que investigue as
políticas afetivas e disciplinares que atuam na construção das culturas infantis, que quebrem
com a redução da infância à índice do mundo adulto.

É, pois, considerar que não há roteiro prévio a ser seguido, que a graça do humano estar
envolto numa matriz relacional são os imprevistos, os improvisos, os movimentos que rasgam
com os padrões, rompem com as expectativas. Há relações. Há fazimentos. É uma questão de
considerarmos os encontros e trocas como elementos constituintes de quem somos, de parar de
tomar o processo de socialização como receita pronta e geradora de um humano-final. É
entender que a micro-história é imprescindível no processo de tessitura de si e mesmo até na
composição dos nossos olhares (PIRES, 2010).

Desse processo de se fazer, de se constituir em comunhão, em experiências de mútua


composição é que extravasam relações ao acaso em Stella. E assim, se pode dizer: um lar é um
encontro ao acaso no meio de um bar. Aqui, não existe, necessariamente, uma ruptura na
compreensão de “lar”, apenas uma mudança de ponto de vista. É pensar a ideia de lar como um
não-lugar, como potência de vínculo. Um vínculo essencialmente diferenciado dos demais, um

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vínculo que abrigue presença, onde as relações tecidas extrapolam os limites territoriais e o
habitar se dá de um para o outro. Este é, para Stella, Alain Bernard.

"Um encontro entre dois: olho a olho, cara a cara/ E, quando estiveres perto, arrancarei teus
olhos/ E os colocarei no lugar dos meus/ E tu arrancarás meus olhos/ E os colocarás no lugar
dos teus/ Então te olharei com teus olhos/ E tu me olharás com os meus/ E arrancarei meus
olhos para colocá-los no lugar dos teus/ Então ver-te-ei com os teus olhos e tu ver-me-ás com
os meus." (MORENO, 1983, p. 249)

Alain e Stella. Comunhão e entrega. O olho câmera fixa nos olhares tecidos dele para
ela. O foco viaja pelo espaço e repousa em Stella. A cena traz a menina, que no seu silêncio e
pesar de olhos observa os pais numa dança, uma dança com outros; uma dança que Stella
pluraliza os sentidos e transparece ao telespectador pelo vazar do seu olhar. Alain percebe. Ele
sempre a percebe. E o telespectador é convidado a perceber a relação de cuidado que grita na
tela mesmo em silêncio. Há um compartilhar afetivo, uma intensidade que naquele momento
faz do espaço bar ter potência de lar; onde ele e ela formam um nós pelo qual a dor é partilhada.

Assim, bem ali onde escapam as normas, nutrem-se possibilidades de composição de


outros mapas relacionais, mapas que se produzem como rotas de fuga das relações-padrões
prescritas: pais-filhos; onde, rasgando com os parâmetros adulto x criança; menina x homem,
uma força latente do encontro, da composição pela troca se manifesta, invade a tela
atravessando a solidão de ambos personagens, num lugar inesperado, um não-lugar, do qual
surge pelo acaso, no imprevisto, um improviso que nutre novos modos de habitar solidão.

A experiência afetiva como alimento para a aprendizagem

Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome


que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto,
nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim "affetare", quer
dizer "ir atrás". É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a
fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado
(ALVES, 2002, p. 1)

Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva, e assim, a


cena começa a ser composta: o plano se abre e, com ele, enxergamos, ao lado de Stella, Alain
Bernard. A escola aparece como parte do encontro, com Alain, Stella compartilha a tarefa,
compartilha a vida. Afeto quer dizer “ir atrás”, e por esse movimento uma forma enrijecida se
ressignifica, a escola se pluraliza.

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Stella: Que merda, não sei o que fazer depois.

Alain: (...) você vai improvisar.

Desses dizeres a câmera se transporta para o espaço escola. A fome faz a alma voar em
busca do fruto sonhado, e, tomada por essa fome, Stella assume a tela: olhos fixos olhando a
sua frente, tomada por fome de escuta, de uma escuta que revisite a audiência da cena anterior,
uma escuta ‘à la Alain Bernard’; por um momento, a escola não cede à escuta surda, mas se
abre ao improviso, empresta seus ouvidos a vida, a experiência afetiva que mobiliza Stella; ali,
não ocorre a clichê fabricação de realidade no educar, mas o encontro com uma realidade que
intempestiva aparece; os olhares do corpo que ali representa a escola estão todos com ela, estão
todos com fome da história de Stella, com fome de ouvi-la.

Professor: Muito obrigado, senhorita! Quando quer, você vai bem!

Onde queres revólver sou coqueiro/ Onde queres dinheiro sou paixão/ Onde queres
descanso sou desejo/ E onde sou desejo queres não/ E onde não queres nada, nada falta/ E onde
voas bem alta eu sou o chão/ E onde pisas no chão minha alma salta/ E ganha liberdade na
amplidão (VELOSO, 1984).

Como diz o professor sem atentar ao significado do dito: o quereres em sala de aula
afeta a aprendizagem; mas nem sempre o quereres escola comunga do quereres vida do
aprendiz:

Stella: Tem uma coisa que percebo cada vez mais, posso não ter o
conhecimento que preciso mas sei tudo sobre futebol, sei fazer coquetéis e jogar
fliperama, sei as regras do bilhar e sei jogar cartas, sei várias letras de música
de có, sei quem é sincero e quem mente, sei como se faz bebês e como se transa,
só que no resto, sou péssima.

Nessa instituição, em um campo social onde habitam culturas infantis que narram a
criança como ser faltante – aqueles que precisam ser educados e disciplinados, transformados
no “sujeito mais querido, perfeito e completo da Modernidade: educado, racional, autônomo,
centrado, unitário” (CORAZZA, 2002, p.201) –, predomina uma modalidade atencional com
objetivos estáticos determinados que visam um uno comum: a redução da distância que se faz
entre a irracional criança e o adulto firme na razão.

Cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria sujeira que
precisa ser varrida. […] numa ordem durável e resistente, que se reserve o futuro e envolva ainda
[…] a proibição da mudança, [do novo desconhecido, do estranho], até a ocupação de limpeza e
varredura são partes da ordem. Pertencem à rotina diária e, como rotina de tudo, tendem a repetir-

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se monotonamente, duma forma completamente transformada em hábito e que torna a reflexão
redundante (BAUMAN, 1998, p. 18).

[As crianças pertencem], à legião das identidades rechaçadas, desordenadas, caóticas,


impensadas da cultura a serem excluídas, especificadas, distribuídas em outras […] há
necessidade de incluir essas identidades na enumeração, classificação, registros, estudos,
disciplinas […] mecanismos que reduzem e dissolvem suas alteridades no “mingau” doce e
fluido da domesticação do que é a identidade do Mesmo (CORAZZA, 2004, p. 151)

Stella convida a escola à vida, à experiência. E, ao contrário do que possa parecer, não
se pretende aqui uma defesa do desaparecimento da escola. É no sentido de uma escola conjunta
à vida – uma escola gerenciadora e geradora de trocas, de uma transformação do instituído pelas
forças instituintes dos encontros que invadem o campo –, que Stella nos convoca a movimentar
o pensamento e assumir diante do processo de aprendizagem um posicionamento crítico acerca
dos modos como tem sido pensado o aprender. Buscando, não romper ou destruir com a escola,
mas lançar a ela provocamentos que multipliquem seus sentidos e dissolvam a significação
fatigada que se teceu sobre ela e sua função, que dita que ela deve empenhar-se à serviço da
manutenção de uma certa superioridade e autonomia do adulto-educado ante ao pequeno-
selvagem, para que este sequer se questione da grandeza e importância da razão como forma de
ver e experimentar o mundo (OLIVEIRA, 2010).

Stella: A professora de História. Eu gosto dela. Ela é bonita. Não sei como
aconteceu, mas comecei a prestar atenção nela. Não é tão chato se a gente
presta atenção. Ela fala da vida das pessoas e isso me interessa.

Uma aprendizagem que abarque interesse – que tenha o quereres, a experiência afetiva
como motor – propõe a construção de um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do
‘seu’ lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados” (KOHAN,
2007, p.95). Um aprender que não cale as vicissitudes da infância, mas vá ao encontro de, à
partilha dessa nova língua:

[...]a infância fala uma língua que não se escuta. [...] pronuncia uma palavra que não se
entende. [...] pensa um pensamento que não se pensa. [...]. Essa parece ser uma das forças da
infância: a de uma nova língua, de um novo, outro lugar para ser e para pensar, para nós e para
os outros (KOHAN, 2009, p. 59).

A educação é onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de
nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tão pouco arrancar de suas mãos a
oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez
disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum (ARENDT, 2000, p. 247).

Trata-se de multiplicar caminhos, de não fixar uma única direção; e se for para firmar
um compromisso com direção que seja uma a serviço de modos de tatear a infância que não

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percam de vista suas formas mutantes e desterritorializadas, abordagens que possibilitem o
aparecimento das diferenças, das singularidades e produzam, assim, uma (re)construção
daquela infância-tempo em Infâncias Intempestivas, onde, essas se constituam, não em função
de um tempo determinado, de uma fase a ser superada, mas da pluralidade das experiências ao
longo do tempo, na tentativa vinculá-las o máximo com a vida e toda sua potência criadora, e,
desvinculá-las das verdades atuais de saber, lidar e podar a infância.

Lançar mão da noção de experiência, de cara, nos convoca a transformação, no


acolhimento da vida em sua processualidade; ela é o campo agenciador das metamorfoses, o
fermento necessário para descolar o sujeito do seu interior, despertá-lo à alteridade, ao
desenrolar de uma rota de fuga da mesmice naturalizada nos valores e objetivos impregnados
nas rotinas, ao nascimento para além do nascer gestacional. “Somos nascidos a cada vez que
percebemos que o mundo pode nascer novamente e ser outro, completamente distinto daquele
que está sendo. O nome de uma faculdade chamada criação, transformação, revolução, tomada
a partir de encontros ao acaso; isso é a infância” (KOHAN, 2007, p.112); e isso pode ‘vir a ser’
a educação.

Sentadas à espera do trem Stella e Gladys. Mais um encontro ao acaso. Acaso de sorte,
segundo Stella; Gladys a confundiu com Nathalie Corbière (uma das boas alunas da classe).
Uma confusão de nomes aqui, deu força a uma fusão de trocas. Uma amizade entre diferentes
é pela diferença constituída:

Stella: Gladys nem ficou brava por causa do cachorro. Isso é que é
amiga. Nem com os palavrões do meu pai. Ela achou engraçado. Coisa de
romance, bem francês. Minha solidão acabou!

Uma ampliação dos horizontes da escola se dá pelo encontro entre elas. Dali emana uma
força produtora de novo vínculo afetivo que une a vida com a escola, e a escola à Stella. É
motor de novidade. Foco na tela: Stella compra seu primeiro livro, a cena que daí se segue traz
a menina a correr. É como se o filme pausasse a trama para assisti-la correr com vida, pela vida,
da vida; como se ali corresse sua rota de fuga, de escape, como se atravessasse e fosse
atravessada por outro mundo, pela experiência que se inauguraria pelo ‘mover-se a ler’. A
corrida encerra na cena, mas continua na vida de Stella; em seu quarto, a leitura do livro é
interrompida, o imprevisto da vida irrompe a cena, e, como se ocorresse uma troca entre janelas,
da janela-mundo-livro à janela-mundo-quarto: uma criança vislumbra um homem estirado ao

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chão, repleto de sangue depois de levar um tiro. Não, nada de previsão num roteiro; era o acaso
novamente falando na vida de Stella.

Explosão diante dos horizontes da escola. Explosão dos sentidos da infância.


Experiência afetiva como alimento para aprendizagem diz respeito, portanto, em visualizá-la
mais como integrante e integradora da condição de vida. Nessa linha, poderemos enxergar para
além de uma redução temporal que prevê um projeto final de ser criança; encontrando na sua
indeterminação, no seu devir constante, no seu status de fora, sinais de força e resistência que
possibilitem rupturas e mutações ante as práticas e discursos condutores dos modos de
subjetivação.

Trata-se, pois, de criar caminhos que possam desvincular a infância de sua condição de
ser faltante, visualizando-a com um olhar inaugural, um olhar que não dita ‘qual o lugar da
infância’, mas se abre para a presença e experiência da infância em qualquer lugar, para que,
assim sendo, sejamos nós mesmos dotados de infância, de infância como modo de ser no
mundo, infância como forma de olhar, para ela, para si e para o mundo.

[...] a criança constitui a criação mesma, um novo começo para os valores, a liberdade mais
afirmativa, o tempo circular que retorna, pura afirmação da vida. A inocência e o esquecimento
isentam a criança dos rancores e do ressentimento. Ela é a pura afirmação de um novo início, de
uma pura criação. (NIETZSCHE apud KOHAN, 2007, p. 110).

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